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TERRA DE BRAVURA E UTOPIA Vila Conceição I e II – o primeiro assentamento da região tocantina

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TERRA DE

BRAVURA

E UTOPIA

Vila Conceição I e II – o primeiro assentamento

da região tocantina

Copyright © 2013, José Luís da Silva Costa

Terra de bravura e utopia: Vila Conceição I e II –

o primeiro assentamento da região tocantina

UFMA - Universidade Federal do Maranhão

Curso de Comunicação Social - Jornalismo

Livro-reportagem apresentado como Trabalho de Conclusão

do Curso de Jornalismo para obtenção do título de bacharel.

Texto e reportagem: José Luís da Silva Costa

Orientação acadêmica e edição: Alexandre Maciel

Projeto grá�co e diagramação: Yara Medeiros e José Luís da Silva Costa

Capa e editoração eletrônica: Yara Medeiros

Imperatriz

2013

José Luís da Silva Costa

TERRA DE

BRAVURA

E UTOPIA

Vila Conceição I e II – o primeiro assentamento

da região tocantina

Dan

iel S

ena

Marcas de tiros na Casa Branca: símbolo de um passado de opressão

O risco

O risco que corre o pau corre o machado, não tem o que temerAqueles que mandam matar também podem morrerNós estamos em guerra, o lado de lá já decretou, pois já pagou pistoleiro pra matar trabalhador...

Luís Vila Nova,

poeta e sindicalista da década de 1980

Daniel Sena

Trabalhadores voltam da labuta diária na roça: agricultura familiar carece de mais estímulos

A Antônia, minha mãe, e Justino, meu pai. Ela levantava cedo todos os dias nesses cinco anos de graduação para me arrumar e ele sempre me esperava na beira da estrada, às 19h, 20h ou meia noite. À Tamires, mi-nha companheira e esposa que esteve comigo nos momentos mais difíceis deste trabalho; ao assentamento Vila Conceição I e II, que resiste aos desa-�os de sua história para manter vivo o sonho de reforma agrária e ao MST, que me estimulou a voltar aos estudos depois de 11 anos parado.

Agradecimentos

estes cinco anos de curso de Comunicação Social-Jornalismo, tive ajuda de muitas pessoas que se pronti�caram a empurrar esta cadeira de rodas e outras formas de auxílio. A maioria “protagonista

do cotidiano” que foram solidários e �carão em minha memó-ria. Aqui vai uma pequena lista dos mais próximos:

Ao casal do assentamento “Nova Conquista” (não re-cordo os nomes), que completaram com 50 centavos o dinhei-ro que faltava ao pagamento da taxa de inscrição do vestibular; a Reginaldo Fernandes, que pagou a taxa de correios;

Ao Primo (da xerox) e seu Gilmar (da cantina) que me ajudaram no início do curso, trazendo-me almoço de suas ca-sas, enquanto eu me articulava na cidade, pois eu não queria fazer o curso tendo que deixar o assentamento Califórnia;

Ao motorista de van Davi, que várias vezes perdeu pas-sageiros, porém nunca deixou de me conduzir de Imperatriz à Açailândia ou vice-versa;

Ao Iuri Petrus, que por várias vezes me concedeu caro-nas para ir ou voltar da UFMA e ainda me deixando repousar sob seu teto quando não conseguia voltar para casa.

Às irmãs Kyara e Jeciane, que mesmo sem me conhece-rem, também me abrigaram em sua casa no início deste curso;

Ao Edilton, Elias Machado (militante e motorista do MST) e Marcio Mosiel, que várias vezes saíram de seus afa-zeres para me levar ou buscar de algum lugar de Imperatriz;

Ao Marcelo, hoje advogado em Açailândia, que me carregou à Imperatriz durante meu estágio supervisionado e à família Varão: seu Bento, dona Conceição e Leonardo, que me adotaram como membro nesse mesmo período.

Ao Antonio, Jeziel, Natan, Josivan, Ribamar, João, Aguinaldo e Zezão, que me ajudaram quando era necessário

N

Tam

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eira

na universidade e Rodrigo Sousa, Vinicius Mendes, Hilton, Obedes (Engenharia de Alimentos) e todos os estudantes que me auxiliaram na subida dos degraus de ônibus ou as es-cadas da UFMA. E a todos os motoristas e cobradores ôni-bus que tiverem a paciência de me ajudar a subir ou descer desses carros inadequados para cadeirantes em Imperatriz;

Aos companheiros Adalberto Franklin e Manoel da Conceição Filho, que doaram fontes bibliográ�cas que tra-tavam da nossa região; a Daniel Sena e Tamires Pereira Cos-ta, por se colocarem à disposição de fotografarem pedaços do cotidiano da Vila Conceição I e II;

Ao Reginaldo (meu irmão), que me empurrou nas ruas da Vila Conceição para fazer a investigação deste livro; aos moradores e assentados que com sua paciência e preste-za conversaram comigo sobre a história desse assentamento;

Ao meu orientador, professor e mestre Alexandre Maciel por sua paciência nas correções deste livro e a sua esposa Yara Medeiros, pela sua disponibilidade na diagra-mação desse trabalho árduo.

Estrada que liga a Vila Conceição II a I: trajeto para buscar histórias

Sumário

Apresentação................................................14

PrólogoMística, futebol e forró até o raiar do dia ......17

Capítulo 1De Itacira a Conceição ................................. 35

Capítulo 2Os quatro cavaleiros da articulação .............. 53

Capítulo 3Cotidiano, casas brancas e juventude de fé .... 83

Capítulo 4 A busca da utopia .......................................121

Referências .................................................147

Dan

iel S

ena

Jovens à espera do coletivo do Barra Grande: transporte é problema sério no assentamento

14

JOSÉ LUÍS DA SILVA COSTA

ApresentaçãoA proposta deste trabalho é descrever a história e o

cotidiano da primeira ocupação de uma fazenda na região de Imperatriz, a Vila Conceição I e II, traçando o momen-to atual de luta por reforma agrária e as di�culdades para a concretização deste sonho. O texto é jornalístico no mode-lo de livro-reportagem, com características do jornalismo literário.

O primeiro capítulo começa dentro do ônibus que leva os jogadores do time do assentamento Califórnia rumo à festa do 23º aniversário do assentamento Vila Conceição I. Passeio pelo jeito muito particular da comunidade, per-cebendo as formas de relacionamento e os acontecimentos desta vila em dia da comemoração. No segundo capítulo, o trajeto continua pela história das articulações para a ocu-pação da fazenda Itacira, chamada por muitos de “Crimi-nosa”. O padre que lutou contra as opressões, Raimundo Nonato; o militante histórico da luta pela terra no Mara-nhão e no Brasil, Manoel da Conceição; o empresário que esteve diretamente ligado à luta, Neudson Claudino e João Fotógrafo, militante e assentado na Vila Conceição I e II desde sua ocupação são os personagens que evocam essa memória.

Cotidiano e o tempo presente da comunidade com-põem o terceiro capítulo. A juventude do futebol ou da re-ligião, moradores novos e pioneiros da Vila Conceição I e II e as crianças da escola avaliam seu papel na continuidade da luta, agora, por uma vida mais digna no campo. Um mo-saico de como os personagens pensam os atuais 25 anos do assentamento.

Luís Preto e Antonia Querubina como rei e rainha no carnaval de 1994: momentos para festejar

No quarto e último capítulo, em conversas com mi-litantes históricos e outros habitantes, procuro descobrir o que eles esperam de um futuro não muito distante. Será possível, com as in°uências externas – como os processos eleitorais que acirram divergências, as igrejas e os meios de comunicação – os assentados seguirem na busca do sonho que levou, um dia, os mais velhos a terem a ousadia de lutar?

Espero que todos apreciem este roteiro para entender uma comunidade peculiar.

O autor

Arquivo do assentamento

Espaço onde se realizou a primeira festa do assentamento: símbolo da hospitalidade

Arquivo do assentamento

Prólogo

oi dentro de um ônibus fretado pelo time do assen-tamento Califórnia, que é rival do Cruzeiro, a equipe principal da Vila Conceição I e II, que decidi relatar uma história de 25 anos. Nosso destino, em 2010, era

a festa dos 23 anos de aniversário da primeira ocupação de terra da região tocantina.

As festividades nesses lugares são comandadas geralmen-te por forrozeiros que ainda resistem na empreitada de alegrar gente simples. Eles costumam tocar até o sol sair. É muito bonito e romântico ver o dia nascer enquanto os casais dançam molha-dos de suor, muitos já cheirando mal, com cara de sono e ressaca. Mas, com ar vitorioso de quem ganhou a noite arrastando os pés no meio do salão.

A cena dos �nais de festa na Vila Conceição ainda é pare-cida com a dos tempos mais antigos. Alguns cambaleiam cheios de cachaça na cara, se afobando uns com os outros:

— Como esta festa foi boa! Ou maliciando: — Vocês viram aquela dona? Dancei com ela a noite toda!

Como são boas as festas deste assentamento! As imagens se completam com organizadores juntando cadei-

ras, mesas e garrafas de cerveja espalhadas pelo pátio da associação

Mística, futebol e forró até o raiar do dia

F

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JOSÉ LUÍS DA SILVA COSTA

dos produtores, onde a festa é sempre realizada. As crianças circu-lam pelo terreiro depois da festa procurando moedinhas que algum festeiro possa ter deixado cair durante a noite. E o bom é que nessa caça de níqueis perdidos a criançada sempre sai ganhando. Quando encontram as valiosas prateadas, às vezes somam R$ 10, R$ 15. Já vai servir para o lanche da escola no dia seguinte, na segunda-feira.

O time do assentamento Califórnia, onde moro, é arquirri-val do Cruzeiro, por um motivo básico: quase sempre “bateu” nossa equipe. Os cruzeirenses ganhavam todos os torneios da região e os da sua própria festa e, além do mais, se mantinham de “salto-alto”. Eu estava ali por várias razões e a principal é que eu nunca tinha comparecido às festividades daquele assentamento. O outro inte-resse é que eu precisava observar o local de perto, já que pretendia escrever sobre a pioneira das “invasões” de fazendas na região.

Opa! Invasão não! Ocupação! As duas palavras têm sig-ni�cados diferentes quando o assunto é a reforma agrária. Para o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), a primeira transmite uma ideia errada sobre o ato de lutar por uma proprie-dade. A expressão invasão pode ser associada a baderna, bagunça, no seu sentido mais grotesco e cruel. Já a segunda forma, ocupa-ção, sugere ocupar algo que está desocupado, sem benefício para ninguém e que pode servir para uma comunidade. Neste caso, quem precisa: os sem-terra. A justi�cativa está no fato daquela fazenda não estar contribuindo com a sua função social, ou seja, “servir a todos”. Desta forma, eu queria muito conferir uma festa na Vila Conceição I e II e sentir sua mística. Acomodado em minha cadeira de rodas, seguia dentro do ônibus que levava a torcida e o time do assentamento Califórnia para disputar o troféu do torneio de aniversário da antiga fazenda “Criminosa”, apelido que se dava à Vila Conceição antes da ocupação. Ver de perto o futebol dos me-ninos que enchem de orgulho os moradores an�triões. O Cruzeiro é um time de futebol amador de referência na cidade de Imperatriz e região. Bem mais estruturado, quando comparado com aqueles

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que são convidados para os eventos organizados por eles, como os das cidades vizinhas São Pedro d’Água Branca, Cidelândia, Olho d’Água, Vila Nova dos Martírios e outros assentamentos de Impe-ratriz e Açailândia.

Naquela época o time do assentamento Califórnia também estava cheio de moral, pois havia vencido o torneio de futebol ama-dor da cidade de Açailândia. Era o momento de nos vingarmos do Cruzeiro, claro, no futebol. E aquela viagem veio a calhar: aproveitei e saboreei muito o translado, a folia e zoeira de seguir até aquele que foi o assentamento pioneiro da região. Alguns dizem até que foi o primeiro do Maranhão. Dentro do ônibus cantávamos: “Descobri-mos lá na base que a tal da reforma agrária do papel não vai sair...”1 – versos que os acampados e assentados entoam em seus momentos de festa. E eu, com a cabeça encostada na janela, pensava no grande sacrifício para aquele assentamento chegar aos 23 anos.

Eu estava seguindo para uma das grandes bases orgânicas do MST no estado e que tem o nome escolhido em homenagem ao líder camponês mítico do Maranhão, Manoel da Conceição. Para mim, era emocionante, porque carregava no peito um misto de aventura conjugado às lembranças das histórias sobre a revolução cubana nas matas da Sierra Maestra, na Cuba de 1958.

Não sei o porquê, mas a realidade e a organização da Vila Conceição I e II sempre me remetiam aos livros que tinha lido sobre a turma de Fidel Castro e Che Guevara. Acho que é por conta de como a fazenda Itacira foi conquistada, traços deixa-dos nas conversas de militantes sem-terra, movimento do qual eu também faço parte. Enquanto eu acompanhava a bagunça de nos-sa torcida e dos jogadores, ansiosos para levar o título de campeões do torneio, continuava pensando no livro que um dia escreveria sobre aquelas pessoas lutadoras. A respeito de uma vila que procurou preservar um dos símbolos do Maranhão, o babaçu e suas utilidades.

1Autoria de Zé Pinto, poeta e mili-tante do MST.

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Durante todo o percurso da viagem era possível apreciar as exuberâncias daquelas palmeiras, com suas palhas que servem de abrigo para acampamentos de beira de estrada, balançadas com o vento agitador do verão de julho. Aqui no Maranhão o meio do ano é o período de sol, calor e chuva escassa. Este percurso também me fez ver que o mesmo vento fazia subir nuvens de poeira do solo arenoso daquela terra. Era possível sentir derrapagens do ônibus em algumas bitolas ou “jacarés” — que para o sertanejo também quer dizer valas, atoleiros secos deixados pelo inverno anterior —, dando frio na barriga dos mais medrosos.

Estrada de terra com aquelas ladeiras, mesmo que tenha pas-sado por terraplanagem, sempre é um perigo, mas os passageiros não estavam nem aí, queriam mesmo era chegar à vila e se divertir, por-que dentro do ônibus o negócio estava muito bom para toda aquela moçada. Paqueras, cantorias, pandeiradas e muita algazarra.

Depois de passarmos por duas pequenas pontes que cobriam os dois riachos do caminho, onde antigamente os festeiros tiravam suas ressacas da noite em claro das primeiras festas, visualizamos, em primeiro lugar, a Vila Conceição II. Esta �ca a um quilômetro da BR-010, faz parte do conjunto da história e é uma comunidade do assentamento, que no decorrer deste livro voltará a ser lembra-da. Encontramos outros times pelo caminho, alguns jogadores de moto, outros em caçambas de caminhonetes e todos com o objeti-vo de se divertir e comer de graça. Nas festas de assentamentos, a comida é responsabilidade do an�trião e o visitante não paga nada pelo alimento. No nosso caso, tínhamos outro atrativo, que era des-tronar o Cruzeiro dentro de sua casa, no meio de seus torcedores.

Seguia conosco um de nossos pretensos goleiros, rapaz alto para os 18 anos que tinha, magro, mas com jeito de menino, sem a responsabilidades necessária para assumir, de fato, essa posição em campo. Às vezes, quando tínhamos que colocá-lo embaixo das traves, lá �cava ele, distraído com as meninas que se posicionavam atrás de seu gol. Gleicione era tão distraído que seus zagueiros re-

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clamavam, chamando sua atenção. Algumas vezes era o treinador, outras eram seus torcedores e também amigos. O fato é que ainda não estava pronto para a função. Perguntou-me:

— Zezim, é aquela a Vila Conceição? Estamos chegando? Alguns mais próximos me chamam de “Zezim”. Seria “Ze-

zinho”, entretanto no coloquial as pessoas se esquecem que é o diminutivo de “Zé” e acaba �cando mesmo Zezim. Eu disse que sim, apenas balançando a cabeça, porque ainda estava emociona-do ao me aproximar da Vila Conceição.

A viagem do Califórnia até a entrada da Vila Conceição dura exatamente 20 minutos. Este dia contei 15 minutos no reló-gio da entrada até a primeira Vila, local onde a ocupação ocorreu, em 1987. Quando chegamos, vimos outros carros e ônibus esta-cionados na entrada, porque dali para frente não podíamos mais seguir em veículo motorizado.

Alguém da recepção da festa entrou em nosso transporte e fez um pequeno pronunciamento. Era uma das coordenadoras da festa, uma mulher morena, de aproximadamente 40 anos, com a face de uma das Querubinas. Maria Querubina da Silva Neta é uma das lideranças arrojadas do sindicalismo de Imperatriz, da década de 1980, também assentada e uma das fundadoras do lugar, portanto, uma das an�triãs. Ela tem quatro �lhas morando na Vila Conceição e em Imperatriz. Como é muito parecida, acredito que esta deve ser uma de suas �lhas. Ela cumprimenta, com um tom de voz um tanto estressado:

— Gente, bom dia! Queremos dizer a todos que sejam bem vindos! Esta festa é tradicional e não vamos aceitar abusos. É preciso respeito porque vocês irão para casas de famílias. Por isso, pedimos que desçam do carro para o credenciamento. Vocês receberão um tí-quete de refeição como este, onde está a indicação do lugar de almoço e janta. Não percam ou �carão sem refeições. Obrigado e boa festa!

Como sou cadeirante, com a ajuda dos colegas desci e fui direto para a mesa de credenciamentos, onde conhecia quase to-

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dos. Quem me atendeu foi uma moça de aproximadamente 30 anos, que tinha conhecido em 2001, quando eu fazia parte da “Brigada dos 20”. Esta “brigada” era um grupo que tinha a res-ponsabilidade de realizar formação política do MST nos assenta-mentos. Como ela estava cheia de tarefas por conta da recepção, nem nos cumprimentamos direito:

— Posso �car na casa do Luís Preto? — Claro que sim.E ela foi me entregando os tíquetes e dizendo: — Aí estão seus tíquetes. Não perca e entregue na hora em

que for fazer alguma refeição. O número da casa está no verso. Pedi que alguém me levasse até lá para eu guardar minha bo-

roca, uma camu°ada com as cores do Exército, a mesma que eu usava para ir à universidade. Lá dentro só tinha roupas. Outras coisas de maior importância sempre andavam comigo em uma pochete.

Luís Preto foi militante do MST pouco depois da ocupa-ção, tendo sido um dos coordenadores estaduais da organização naquele período. Ele é esposo de dona Maria da Penha, uma pe-dagoga formada no curso de Pedagogia da Terra, um convênio das universidades federais, o MST e o governo federal. Ela é a diretora atual da escola do assentamento. Ambos são pais de três �lhos, também militantes da luta por reforma agrária.

Quando cheguei à casa do casal, o Luís logo foi apanhan-do meus pertences, cumprimentando-me, pedindo desculpas por não poder me dar mais atenção, mas con�rmando que depois conversaríamos. E eu, que estava interessado em conhecer a festa, observar e anotar tudo que achasse interessante para entrar em meu livro, fui logo dizendo:

— Tudo bem. Vou para o campo de futebol ver a folia, como andam as coisas por lá e saber se o time do Califórnia já jogou!

Claro que como sou um pouco desavergonhado e pela minha condição de cadeirante, sempre encontro alguém para me conduzir.

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E desta vez fui levado da casa do Luís ao campo por um dos jogado-res de um assentamento próximo, o Sol Brilhante. Fomos conversan-do até chegar ao local. Eu pedi que me deixasse no meio da muvuca, na sombra de uma grande e belíssima mangueira, onde estavam mis-turados os vendedores de cerveja, que como regra, são todos do as-sentamento. Também estavam lá os geladinzeiros – os comerciantes de geladins. Compunham o ambiente, da mesma forma, torcedores de todos os times, com maior número para os donos da casa e os jogadores das equipes que esperavam sua vez de jogar.

Cada partida durava 30 minutos por tempo e eram elimi-natórias. Não podia acontecer empate, ou haveria cobranças de pênaltis. Então era preciso esperar a vez de seu time e, como as equipes eram de longe e tinham di�culdades para chegar ao local, aqueles que vinham primeiro participavam de um sorteio, a partir do qual se saberia quem eram seus adversários.

Posicionei-me no meu canto, assistindo ao jogo que acon-tecia, Grêmio versus Gameleira. O primeiro era um time do as-sentamento “50 Bis”, da cidade de Açailândia e outro também assentamento, este de Imperatriz. Quase nem prestei atenção na disputa, pois estava mesmo era observando a organização do evento. As crianças vendendo geladins, caravanas chegando, a equipe do torneio atuando, torcidas gritando à beira do gramado.

Aproximou-se de mim, sentando em um dos banquinhos da-queles improvisados, feitos para se curtir um descanso quando o sol está quente, um rapaz de 35 anos, chamado pelo apelido de Gamar. Ele é um homem alto, moreno, conversador e já estava àquelas altu-ras cheio do “mé”. Foi chegando com duas cervejas de latinhas e me ofereceu uma.

— Esta é para você, Zé Luís.Eu aceitei, agradeci e �quei um pouco surpreso, com uma

pessoa que me conhecia e até naquele instante e eu não conseguia recordar quem era.

— Como está a Alice, sua irmã?

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JOSÉ LUÍS DA SILVA COSTA

Antes de responder, eu �quei mais curioso ainda. O cara conhecia minha irmã.

— Ela está morando em Lagoa Grande. Está militando naquela região.

Com isso fui criando as condições para ali se tornar uma boa conversa, porque estava subentendido que ele era morador do assentamento e então perguntei:

— Como está roça? Sem piscar e �xando os seus olhos em mim, Gamar me

disse sorrindo, como um verdadeiro camponês:— Você já viu roça neste período? Foi quando me lembrei que estávamos em julho, no meio

do verão maranhense. Se bem que aquela pergunta era também para estreitar nossa conversa. Mas, ele percebeu que ainda eu não estava me recordando dele e disse em seguida:

— Cara, sou o Gamar, �lho de seu João Fotógrafo. Lem-bra dele?

— Sim, claro. Como ele está?— Ele está bem de saúde. Está lá em casa. Vai lá em casa! Gamar nem sabia que eu desejava mesmo encontrar o pai

dele, que também foi um dos fundadores da vila, além de se man-ter uma grande liderança da comunidade.

— Pode deixar, depois do almoço passarei na casa de vocês. Ele se levantou, pegou outra cerveja, deixou para mim, despe-

diu-se e saiu meio cambaleante. Pensei: “A estas horas, mais ou me-nos meio dia, ele já está assim. Com certeza este não vai ver a festa”. Antes de sair para almoçar na casa do Luís Preto, �quei um pouco assistindo o �nal da partida e saboreando aquela latinha, com calma.

O Grêmio venceu a Gameleira por 2 a 1 e tinha passado para frente. O Califórnia ganhou do São Pedro d’Água Branca nos pênaltis. O jogo �cou no tempo normal de 1 a 1. E nosso próximo adversário, depois do almoço seria o Cruzeiro, em jogo marcado para as duas horas. Procurei alguém para me conduzir

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até a casa do Luís e encontrei meu irmão Reginaldo, um dos mo-radores. Ele não é assentado. Como era também militante em um desses acampamentos que �cam próximos à Vila Conceição, conheceu uma acampada, ela sim, �lha de assentada, namoraram e estavam morando juntos há cinco anos. Ofereci-lhe um gole da cerveja e ele rejeitou. Esqueci que ele tinha se convertido ao pentecostalismo, fato comum hoje em dia em assentamentos. No caso, passou a fazer parte da Assembleia de Deus depois de sabo-rear todos os tipos de cachaça antes de se converter.

— Você vai almoçar onde? — perguntou.— Na casa do Luís Preto.— Vamos! Eu te levo. E saímos matando um pouco da saudade. As duas vielas

que saíam do campo eram pequenas subidas, mas ele estava acos-tumado a me empurrar. E fomos direto pela rua que, dali a uns 100 metros, dava na minha casa provisória, o recanto de minhas refeições e pernoite durante a comemoração de aniversário do assentamento.

Antes, parei para cumprimentar o seu Carlindo, outro per-sonagem da Vila Conceição. Ele é dono de um pequeno bar que serve de afago para algumas amarguras sertanejas, para o cha-mado golinho antes do banho e da janta para os que chegam das roças nos dias comuns. Aquele não era um dia de costume, era tempo de celebração e com isso o bar estava cheio de fregueses. Dessa vez não só dos moradores, mas das pessoas de outras locali-dades que já comemoravam e esperavam a hora do forró. Encostei só para dar uma palavrinha com aquele senhor, já passando dos 50. Um negro forte, consciente de sua contribuição na vida polí-tica da comunidade. Sua calvície é a marca dessa história.

— Olá seu Carlindo! Como está o senhor?— Estou bem! E você? Agora não posso conversar muito.— Eu sei, seu Carlindo. Só quero uma cervejinha. Manda

uma bem geladinha!

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Assim eu pedia licença para meu irmão e dizia para ele que dali para a casa do Luís eu conseguia me virar. Mas pedi para ele �car mais um pouco e solicitei um refrigerante. Ele topou e comecei ali mesmo a levantar com meu irmão os nomes que faziam parte do percurso desses anos de lutas da ex-fazenda “Criminosa”.

Em nossa conversa, Reginaldo, um técnico em agropecuá-ria, também formado nas escolas do MST, mas não mais atuante nas trincheiras da reforma agrária, foi me dizendo quem eram e como estavam as principais lideranças da comunidade. E acrescen-tava algumas curiosidades que eu poderia depois checar. Os fatos que para muitos são boatos, todavia, eu deveria conferir se iriam caber neste livro. Fiz anotações em me caderninho da Tillibra, de 48 folhas, que, desorganizado como eu, também servia para outras coisas. Depois do bate-papo, da cerveja e do refrigerante, saiu cada um para seu canto e, lógico, ele me deixou na casa do Luís.

Só nesta residência onde pousei contei 37 pessoas, a maio-ria militantes da região de Imperatriz e Açailândia. Colocaram meu prato de cozidão, típico do Maranhão e norte do Tocantins, que é arroz, feijão, macaxeira e carne. Depois daquela refeição tirei uma soneca de uma meia hora porque eu não poderia perder o “clássico” do torneio: Cruzeiro x Califórnia. Passado o jogo eu pretendia ir à casa de seu João Fotógrafo.

Depois de acordar, passar uma água no rosto e trocar umas poucas palavras com a militância que estava sentada na calçada larga da casa do Luís, numa alegria total, pedi a ajuda do André, 19 anos na época, �lho mais novo de Penha e Luís, menino res-ponsável pelo escritório do MST na cidade de Açailândia, para que me acompanhasse até o campo. Ele disse:

— Na hora. Porque quero ver outra taca que o Cruzeiro vai dar no Califórnia.

— Hoje nós vamos ganhar e descontar todas que pegamos de vocês, bem aí, na casa e na festa de vocês. — devolvi a provocação.

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E saímos em direção ao monumento do futebol da vila. Quando chegamos lá, o jogo já tinha começado. Ali tive uma certeza: é duro jogar contra an�triões. Toda a torcida do Cruzeiro estava presente. Mas senti a vitória de perto nessa ocasião. O jogo já estava com 15 minutos do primeiro tempo e o placar marcava um a zero para o Califórnia. A nossa torcida era pequena, pres-sionamos muito, contudo jogar contra os donos da casa é compli-cado, ainda porque tinha o juiz e quem perde sempre põe a culpa no árbitro. E foi assim mesmo. No �nal, com lances duvidosos, o time da casa virou o jogo para três a um e perdemos a partida.

Como o jogo tinha acabado, fui procurar meu outro des-tino. O mesmo André me deixou na casa do seu João Fotógrafo, que �ca na rua principal, a São Luís, à direita de quem sai do gra-mado onde aconteceram as competições de futebol naquele dia. Durante o percurso tive que aturar aquele cruzeirense.

— Vai �car mais esta para vocês se vingarem da gente!— Você sabe que a vingança é um prato que se come frio?Fomos zoando um com o outro, até chegar à casa da outra

liderança: seu João Fotógrafo, de cabelos bem grisalhos, hoje com 77 anos e muita história para contar. Mas, por outro lado, lem-branças que ele gostaria de esquecer. Particularmente conheci seu João em 2000, em um encontro estadual do MST, que acontecia no auditório Central do Campus da UFMA, no Bacanga. Foi aí que entrei no movimento. Ele, trocando umas ideias com uma das principais lideranças do MST, João Pedro Stédille, depois deste ter ministrado uma palestra na abertura do encontro. João sempre teve o respeito das lideranças da organização no estado do Ma-ranhão, mas hoje está afastado, por causa da idade. Entretanto, quando pode, ainda dá suas contribuições.

Quando cheguei à casa de seu João, o André foi me deixar no quintal, passando por um beco de uns dois metros de largura, embaixo de um pé de goiaba, em plenas três horas da tarde. Esta árvore, cujas folhas eram poucas, não me propiciava uma som-

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bra gostosa como a da mangueira no campo, onde tinha tomado umas cervejas com o Gamar. No entanto, como eu já havia sido exposto a muito sol no dia, não custava nada me bronzear um pouco mais. O André me deixou lá meio de supetão, porque ele queria voltar para o campo e saiu dizendo de forma brincalhona:

— Está aí a entrega. Se vira!— Obrigado! Depois apareço na sua casa.E como sempre neste dia, devido à correria especial, não

tive muito a atenção do dono. Mas consegui puxar um pouco de conversa com Gamar, que estava acordando do porre que começou de manhã. Conheci sua �lha, que mora no Itinga com sua neta, a jovem Zaylânia, de 19 anos, que, por sua vez, já tinha duas �lhinhas lindas, uma de três aninhos e a outra de poucos meses. Eu e Zaylânia tínhamos nos conhecido em um ônibus, há três meses, no caminho de Açailândia. Ali no quintal do bar-raco do patriarca da família, ela passou a maior parte tempo preparando um caldo de macaxeira para vender à noite na festa, muito bom para “tira-gosto”.

Ali deu para colher algumas informações. Menos com o velho líder grisalho, pois sua atenção estava voltada para a festa e seus outros afazeres. Eu pensava: “Um dia vou ter o senhor em minha frente, falando tudo o que eu perguntar!”

Minha curiosidade era maior quando o assunto se chama-va “ocupação da fazenda Itacira”, há 23 anos. Por causa de algu-mas coisas que tinha ouvido, não naquele dia, mas durante toda a minha militância. Era um assunto que ninguém tocava ou então se falava muito em surdina. Tema que despertava a “amnésia dos mais velhos. Mas, ali eu almejava observar de perto o ritmo da festa, a correria deste dia especial, que o Gamar já havia comemo-rado uma parte e pretendia mais ainda.

— Como você está? Ele estava ao meu lado há uns 10 minutos, sentado em

uma cadeira de couro seco de boi, que no Maranhão se chama de

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“tamborete”, pensando, pensando... Demorou mais ou menos um minuto para me responder.

— Estou bem melhor agora.— Esta casa é de quem?Fiz esta pergunta porque a casa não era uma daquelas

comuns feitas com recursos do crédito de habitação do governo federal, que é próprio para residências em assentamentos. Estes locais são padronizados, do jeito que é uma são todas. Se o dono chegar, como estava o Gamar, meio grogue, pode com certeza errar de casa.

— Este barraco é dele. A outra casa, ele alugou para gerar um pouco de renda.

Casebre nos moldes culturalmente forçados deste estado rico, mas de gente muito pobre. A casa era tampada de barro, de-nominada de “taipa”. A maioria das residências do local era coberta de palhas de babaçu, das mesmas que vimos na estrada quando seguíamos para cá. A casa de seu João é coberta de telhas. Fiquei no quintal da casa por um bom tempo e, aqui e ali, trocava umas palavras com a Zaylânia, perguntando como estavam as coisas.

Ela foi sempre muito amável e educada nas respostas, mas não deixava de lado nem um pouquinho de seu tempo, bem con-centrada em sua tarefa, o caldo de macaxeira que preparava com muito cuidado e não deixava passar do ponto. O caldo tinha se-gredos, a�nal era um dia especial e eles também precisavam faturar naquela noite. Pois quanto mais se aproximava o horário da festa dançante, mais se percebia a chegada de outras pessoas, de todos os cantos de Imperatriz e região. A festa já é tradicional.

Nossa conversa era interrompida pelos: “Bruuunnns! bruuunnns..!” – barulhos de motos com os canos de escapamento furados. Ou, em alguns casos, nem esse acessório existia, o que tornava estas máquinas mais barulhentas. Garotos sem nenhum tipo de habilitação desejavam encantar as garotas que, apesar de ser festa na roça, não têm mais o costume de usar vestidos de

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chita. A moda do vestuário tanto masculino quanto feminino é a mesma da cidade, também por causa da in°uência da televisão.

Estava ainda na casa de seu João, mas quase de saída para também �car só no jeito, emperiquitado, para me divertir tam-bém e, claro, continuar observando tudo no desenrolar daquele dia muito especial para seus moradores e visitantes. Foi quando seu João se aproximou e sentou perto de mim. Ele mesmo puxou uma pequena conversa.

— Zé Luís, como está o assentamento Califórnia?— Está bem. Só estamos um pouco tristes porque perde-

mos de novo para o Cruzeiro! — disse-lhe. Soltei a a�rmação de brincadeira, de forma que pudesse criar

um pouco mais de liberdade para falar de meus objetivos de estar ali.— Seu João, eu estou aqui também para ver tudo que acon-

tece na festa. Observar o dia a dia da comunidade. Quero escrever um livro sobre a história da Vila Conceição I e II.

— Muito boa a ideia. Aqui tem muita história a ser escrita.— É um livro-reportagem. É para a conclusão de meu curso

de jornalismo. Aqui é só o início, virei outras vezes aqui, ver, conver-sar, entrevistar quem tiver boa vontade e histórias para me contar.

Ele deu um suspiro como quem se emocionaria com suas palavras que viriam a seguir, depois de um tempo re°etindo o que diria num pensamento que percorreu, em “milésimos de se-gundos”, aqueles 23 anos. Este é um instante complicado de se descrever, porque se trata da emoção de um homem surrado pela história da forma mais dura que se possa imaginar.

— Zé Luís, aqui não tem mais a união que a gente tinha no passado. Está tudo tão diferente. A desunião é grande!

Neste instante, percebi que ele era um daqueles que, de-pois de tanto lutar por seus direitos, em muitos momentos se tor-na pessimista. Ele fez durante muito tempo oposição ao grupo político do então deputado estadual e assentado em sua origem, Valdinar Barros. Dentro da comunidade, foram adversários. Mas,

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seu João me pede licença e sai para olhar uma panela que estava no fogo.

— Seu João, conversamos em outro momento. Está na hora de eu ver quem foi o campeão do torneio e me arrumar para a noite. Este é só o começo do trabalho. Vou voltar aqui com mais tempo para conversarmos melhor e gravar uma entrevista com o senhor.

— Tudo bem.— Tchau! A gente se vê na festa.Despedi-me e fui sozinho, pelo mesmo beco, com minha

cadeira para frente da casa. Fiquei lá para ver se eu topava alguém que pudesse me levar ao campo e de lá para a casa do Luís e en-quanto isso pensava: “Seu João, vai querer esconder o jogo”. Eu ti-nha quase certeza de que a ocupação da fazenda seria um assunto que ele gostaria de �car calado, porque sobre este tema boa parte da militância veterana sempre silenciava.

Na espera de alguém, aparece meu irmão, o Reginaldo, que sem muita demora me levou ao campo. Só deixou um tem-pinho para eu me despedir do pessoal que estava dentro de casa. Fui só até a porta e dei tchau para todos. Seu João estava na co-zinha e só a Zaylânia e o Gamar puderam responder minha des-pedida. Ela estava em uma rede amamentando sua caçulinha.

Chegando ao campo, o resultado era visível no rostos dos torcedores do Cruzeiro. O Azulão da casa tinha vencido a �nal do torneio outra vez, contra o Grêmio, da cidade de Açailândia, nos pênaltis. “Clássico nacional” na �nal do torneio da festa da Vila Conceição.

Agora era só esperar a festa que só ia começar às nove da noite, um tempo bom para todos se arrumarem, porque quando começa, só de manhã cedo o forrozeiro para. Os vencedores ainda tinham umas grades de cerveja para beber. A loira “gelada” é uma das premiações de todas as festas de lugares do interior. Parece contraditório oferecer bebidas para atletas, mas é assim no futebol

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amador dessas regiões. Para aqueles que já passaram do tempo de se arriscar no futebol pro�ssional, quando o dono da festa oferece uma premiação de uma grade, uma e meia, é considerado um valor muito baixo como premiação. Grati�cação boa é de duas grades para frente.

Para eu chegar até a Associação dos Produtores, local da festa, enfrentei algumas di�culdades. Os obstáculos eram toras de madeiras de uns oito metros, que os organizadores da festa colocaram nas esquinas, dando distância para que o pátio se tor-nasse um pouco maior. As toras serviam para impedir o tráfego de carros e motos em meio às pessoas, que já era grande, evitando assim algum tipo de acidente que pudesse vir a atrapalhar a festa. Com di�culdade, �quei um pouco distante para ver a abertura da parte dançante da celebração. Mas acompanhei um discurso de uma das lideranças do assentamento, o Valdinar Barros:

— Boa noite! Quero dizer que até agora tivemos a notícia de que passaram por aqui, durante todo o dia, três mil e quinhen-tas pessoas. Quero avisar para quem está vindo pela primeira vez que quem veio para se divertir está no lugar certo. Para quem veio com intenção de bagunçar, o “pau-de-sebo” está no mesmo lugar de sempre. A todos, boa festa!

É claro que o discurso não foi exatamente este. Mas é que já conheço um pouco deste homem, sei que o seu falar é in°a-mado, no sentido mais agitador possível. Característica marcan-te de quem foi formado nas bases do sindicalismo combatente e do campo progressista da igreja católica. Valdinar sempre soube emocionar as pessoas com seu discurso.

E esta história de “pau-de-sebo” é, que no passado, como polícia só andava em acampamento de sem-terra com manda-dos de prisão, os próprios trabalhadores é que resolviam seus problemas de confusão em festas. Se aparecesse alguém para atrapalhar a diversão da maioria, depois de uns goles de cachaça, ele seria amarrado num “pau-de-sebo”, até passar a embriaguês

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no dia seguinte ou não oferecer mais nenhum risco para os outros. Hoje não é mais assim. A polícia é chamada e os policiais são até bem tratados, pois ajudam a manter a tranquilidade da festa.

Outra marca das festividades de forrozeiros em assenta-mentos é a valsa de início e �m de festa. A parte dançante da celebração é aberta com uma valsa tocada na sanfona, sem letra ou acompanhamento de outro tipo de instrumento. Só a sanfona mesmo! O tocador também não avisa. Simplesmente, como já é uma prática, depois das boas vindas de alguém da casa, as pessoas se aproximam do salão e, quando os primeiros acordes tocam nos tímpanos dos festeiros, cada um procura seu par.

A cena se torna semelhante a um clássico bailado de �lmes épicos. Lá na frente é um tocador, negro, já velho e semianalfa-beto ao invés de ser uma orquestra. Depois que termina a valsa e todos bailaram alegres, o sanfoneiro rasga seu instrumento. Os integrantes do conjunto entram e todos começam arrastar os pés até as seis horas da manhã, quando chega a hora da valsa de en-cerramento.

Horta comunitária já gerou trabalho e alimento para muitos

Arquivo do assentamento

S

Arquivo do assentamento

etembro de 2011, especi�camente no dia 6. Depois de um salto inicial de quase dois anos, para dar outro, agora, de quase 25 anos atrás na história diária da Vila Conceição I e II, volto a encarar a labuta de aprendiz de

jornalista. Às 14h47, eu e minha noiva, Tamires – que estava me auxiliando nos trabalhos de pesquisa – estamos seguindo uma nova etapa da investigação. Descemos de uma van na entrada do assenta-mento e logo me acometem as lembranças de histórias que não vivi, mas carrego o desejo de repassar para outras gerações.

Primeiro nos deparamos com um tremendo areão, como chamamos um solo que afunda os pés de quem anda ou as ro-deiras de quem é empurrado em uma cadeira de rodas. Minha noiva consegue passar no teste de como me conduzir naquelas circunstâncias, ali naquele sol que se torna mais quente ainda pe-las proximidades com o asfalto da monstruosa e perigosa Rodovia Belém-Brasília. Ela me leva, juntamente com nossas bolsas, para o mais próximo possível de uma sombra.

E olha ela aí de novo! Uma mangueira, quer dizer não aquela do início da história, esta era mais nova, porém, já propicia uma boa preguiça naquele horário vespertino. Agora, para quem vai esperar o coletivo que nenhum de nós sabe a hora certa de passar, a sombra da mangueira não está tão agradável assim, pois

De Itacira

à Conceição

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o sol começa a cair para o poente e em algumas horas a pequena árvore não nos servirá mais.

O local em que estamos ainda faz parte da estrada, mas, para aproveitarmos melhor o aconchego da sombra, pensamos em es-calar um pequeno monte de terra, com pouco mais de um metro e meio de areia, bem arriscado de proporcionar uma queda. É quan-do vejo, deitado em uma rede se balançando, saboreando o que resta do verão escaldante neste período do ano, um senhor.

— Fuiifuiuu... fuiiiuuu! Ei senhor, dê-nos uma força aqui!Ele se levanta de sua confortável redinha e vem em nossa

direção, caminhando devagar, mancando de uma perna. Abrindo o portãozinho de madeira da muito humilde casa, bastante en-sombreada, ele pergunta:

— Como eu posso lhe ajudar?— O senhor �ca lá atrás da cadeira de rodas e quando eu

der o sinal, pode puxar.— Tudo bem. — Já! Pode puxar!Apesar da idade um pouco avançada e de ter uma perna

menor do que a outra, com um caxingado no andar, ele demons-tra muita força e um corpo de quem trabalhou muito tempo na roça. Com sua ajuda consigo �car ajeitado em um monte de areia para esperar o carro com destino à vila.

— Muito obrigado! Sou Zé Luís.— Sou o Chico Barracão.Eu estou agora de costas para uma das sedes da antiga fa-

zenda Itacira, que hoje é um dos patrimônios dos assentados e penso: “Já ouvi falar deste senhor em conversas com a militância”. Simplesmente estou diante de Francisco da Silva Sousa, um dos quais vivenciaram, em 1987, a ocupação daquela fazenda.

— Seu Chico, estou pesquisando sobre a história de vocês. Quero escrever um livro sobre suas lutas neste período. Topa con-versar comigo agora? Não vou tomar muito seu tempo!

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E ele, se escorando no pequeno pé de mangas, começa a me contar um pouco da história da ocupação da fazenda. A origem da batalha de seu Chico foi a necessidade de trabalhar a terra. Como dizem popularmente aqui no Maranhão, ele teve “precisão” de participar de uma ocupação de terras. A formação de personalidades como a dele também foi o resultado de um traba-lho de base feito pela Oposição Sindical, um grupo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Imperatriz, nos bairros e interiores da cidade, com o apoio da Comissão Pastoral da Terra, a CPT.

A CPT é uma das pastorais sociais da igreja católica e foi criada em 1976, de forma ecumênica, com outras agremiações religiosas, como a igreja luterana e presbiteriana do Brasil. A pas-toral funcionou baseada nos princípios elaborados pela II Con-ferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em agosto de 1968, em Medellín, Colômbia e pela III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em janeiro e fevereiro de 1979, na cidade de Puebla de Los Angeles, no México. Assim, o incen-tivo aos primeiros movimentos de sem-terra surgiu dos bispos católicos depois de uma abertura maior que a igreja teve no Con-cílio do Vaticano II (1962-1965).

Depois dessa mudança se intensi�cou um outro olhar para questões sociais no Brasil e América Latina. Com uma ideia diferente de pregar o evangelho, olhando o pobre não como se apresentava antigamente, como um destino divino. Depois dessa abertura religiosa no país, avaliava-se que ser pobre não é por vontade de Deus, mas por mesquinharia dos próprios homens. Esses camponeses pobres passaram a ser formados pelo setor mais progressista da igreja católica, que também �cou conhecido por Teologia da Libertação ou Comunidades Eclesiais de Bases, as Ceb’s. O objetivo principal é que eles pudessem organizar as próprias lutas sozinhos.

A partir dessa visão, padres, freiras e leigos das Ceb’s come-çaram a se articular também na região tocantina, onde o con°ito de

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terra estava muito presente. A articulação resultou nas lideranças daqueles interiores, como seu João Fotógrafo, Valdinar Barros, Maria Querubina, Manoel da Conceição e Denise, sua esposa, além dos muitos outros. Todos, com exceção do casal Manoel da Conceição e Denise, que estavam de volta do exílio vivendo no estado do Pernambuco, moravam nas cidades vizinhas de Impe-ratriz e eram trabalhadores da roça. Foram eles os militantes sin-dicalistas que realizaram o trabalho de base, claro que com a ajuda direta de alguns religiosos, como o frei Rogério, o padre Raimun-do Nonato e as freiras Elize, Gertrudes e Cátia. Com certeza há tantas outras pessoas que, talvez, não constarão neste livro.

É o “trabalho de base” que proporciona a realização do de-sejo de ter um pedaço de chão para os lavradores sem-terra. É preciso colocar entre aspas, porque este é sempre o detalhe da luta que aglutina as forças dos que enfrentam todos os obstáculos, como a vistoria de uma área a ser ocupada para a concretização do sonho de reforma agrária.

O assunto reforma agrária, em meados dos anos 1980, já era motivo de preocupação para donos de grandes propriedades no sul e sudeste do país. Tanto que eles também se articulavam na União Democrática Ruralista, a UDR. A entidade de fazendeiros foi criada em 1985, na cidade de Presidente Prudente, São Paulo e nacionalmente, em 1986, na capital de Goiás, Goiânia.

Durante muito tempo a entidade de fazendeiros foi a gran-de inimiga dos sindicatos de trabalhadores rurais combativos, de agentes de pastorais, padres das Ceb’s e advogados destes grupos. Ela também tinha sua articulação nacionalmente. Assim como aqueles que lutavam por terra e reforma agrária, existiam outros que pretendiam barrar esta luta.

O trabalho de base é o momento em que as lideranças que foram formadas se direcionam para o povão, público que vai dar o suporte para resistir à luta: os sem-terra. Essas lideranças vão às periferias e interiores das cidades convidar trabalhadores rurais

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para as reuniões, ocasião em que são explicados os passos para conseguirem seus objetivos em conjunto.

Seu Chico Barracão passou por esse processo. Ele morava no povoado Trecho-Seco, há 35 km de Imperatriz. Tinha uma terrinha que servia para dar o sustento à sua família, mas teve que vender e virou um sem-terra. Muitas vezes o camponês se vê obrigado a vender sua propriedade rural. O motivo pode ser a ilu-são de que morar na cidade é melhor. Outras vezes, porque se tor-nou vizinho dele um fazendeiro que quer ampliar os seus limites adquirindo as terras do camponês. O fazendeiro tenta... tenta... Até conseguir. E foi isso que aconteceu: o assédio de fazendeiros fez com que ele vendesse seu pequeno chão. Como Chico mesmo disse:

— Estavam de olho gordo em minha pequena terra. Depois de vender seu patrimônio, ele �cou trabalhando

em terras dos outros, atividade ainda muito comum no Norte e Nordeste do país. Chico virou um arrendatário, que é uma das ca-tegorias de sem-terra. Mas, depois de �car por um tempo depen-dendo de terras alheias para sobreviver, ele se cansou e �liou-se ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Imperatriz, passando a ser convidado para reuniões secretas.

— Eu era convidado para reuniões, porém eu não podia falar nada sobre elas a ninguém.

Havia dois motivos para ser o mais discreto possível. O primeiro deles era que naquela época, em 1987, ainda era deli-cado organizar um debate em grupo com esse caráter. Persistia no Brasil um clima de muitas incertezas políticas. Outra razão é que no dia 10 de maio do ano anterior ao da ocupação da fazenda Itacira, havia sido assassinado nas escadarias da Catedral de Fáti-ma, em Imperatriz, o padre Josimo Tavares, um desses religiosos que assumiram esse novo jeito de ser da igreja católica. Por isso, era tudo muito bem articulado para que não escapasse nenhuma informação antes que acontecesse um ato de ocupação.

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Os exemplos dessa nova forma de luta por meio da ocupa-ção de fazendas já apareciam nos jornais da televisão, com o regis-tro das primeiras ocupações, chamadas pela imprensa de invasões. Elas aconteciam principalmente no sul do país, organizadas pelo MST, que ainda não atuava no Maranhão. O�cialmente o Movi-mento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, nesta época, estava só com três anos de fundado. Criado em 1984, seu primeiro encontro nacional aconteceu na cidade de Cascavel, no estado do Paraná.

A primeira “bola” dessa região seria a fazenda Itacira ou “Criminosa”, conhecida por esse nome devido à sua fama de lu-gar de muitas mortes, que teriam ocorrido muito antes de ser ocupada pelo sindicato. A maior parte dos lavradores do estado do Maranhão, especi�camente aqueles que viviam nos arredo-res da fazenda Itacira, nos povoados de Cidelândia, São Pedro d’Água Branca, Vila Nova dos Martírios, Olho d’Água, hoje to-dos municípios, trabalhavam em áreas alheias. Esses homens e mulheres, na sua maior parte, eram migrantes vindos de outros estados nordestinos fugindo da seca ou mesmo de diversas regi-ões do Maranhão, todos buscando melhoria de vida.

A localidade em que se estabeleceram era uma das mais sofridas do estado para quem vivia da terra. A precariedade que esses moradores enfrentavam era basicamente pela falta de con-dições dignas como estradas, escolas e saúde pública. Eles tinham como única forma de sobrevivência a labuta com a terra e assim viraram arrendatários.

O arrendatário é um tipo de trabalhador rural que faz seu cultivo em terras que não são suas, com a responsabilidade de pa-gar ao dono uma parte do que conseguir produzir. Um fazendeiro pode ter vários arrendatários e lucrar muito em cima de todos que trabalham em sua gleba.

Quando estes trabalhadores não obtêm uma boa produção o fazendeiro nunca perde, na verdade só quem sai prejudicado é o roceiro. Se a roça, por questões como pragas e faltas de chuvas,

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não resulta na colheita esperada, o fazendeiro muitas vezes �ca com o pouco que é colhido. Essa situação era o que incomodava a vida daqueles homens e mulheres, que tinham como único ofício, na época, o plantio da terra. Com esse estado de coisas, o jeito era se organizar e lutar.

O regime de trabalho descrito era a prática comum no estado, mas não na fazenda Itacira, porque lá a terra nunca era cedida para camponeses. Aquela propriedade era simplesmente o brilho dos olhos de trabalhadores que trabalhavam dessa for-ma, nas fazendas das vizinhanças.

A fazenda ocupava uma área muito grande, que passava dos cinco mil hectares compostos de pastos, na sua maior par-te, além de alguns babaçuais e pequenas °orestas. A propriedade pertencia, segundo con�rma Manoel da Conceição – ativista po-lítico que estava de volta do exílio – a Matias Machline, em socie-dade com o então presidente da república, José Sarney, seu amigo.

Matias Machline foi o fundador da Sharp na década de 1960, uma empresa brasileira que se associou com a japonesa Sharp Corporations, de produtos eletrônicos. Apaixonado por criação de cavalos e gaúcho de Bajé, mantinha vários haras no interior paulista. Ele era descendente de russos que vieram fu-gidos da revolução de 1917 para a Argentina e foi amigo dos ex-presidentes da república João Figueiredo e José Sarney.

Machline morreu em agosto de 1994, vítima de um acidente de helicóptero quando seguia da cidade de Nova York para Atlantic City, ambas nos Estados Unidos. Talvez seja por causa desta ami-zade com o então presidente Sarney que os entrevistados da Vila Conceição tenham especulado que a fazenda era uma sociedade entre José Sarney e Matias Machline, fato não comprovado.

A Itacira tinha pastos que serviam de alimento para o gado e enriqueciam o bolso de seu dono e não daquele povo. E o que sobrava para os homens que tinham famílias em média com cinco �lhos e uma esposa? O que pode fazer quem mora em uma região

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rural, sem escolas, saúde pública e qualquer outro tipo de trabalho para sobreviver a não ser plantar? A resposta na maioria das vezes era aceitar a exploração.

Mas, liderados por um grupo de oposição do sindicato, os pequenos camponeses sem-terra se organizaram para retrucar de outra forma a estas perguntas. Seu Luizão, morador do assenta-mento Califórnia e irmão de seu Raimundo Bolacha, um assen-tado da Vila Conceição, já tinha me confessado:

— É duro ver o fazendeiro entrar com seu gado nas suas plantações de arroz, feijão e milho para lhe pressionar.

Claro que não se tem informações sobre fatos assim ocor-ridos na fazenda Itacira, porque como já foi informado, ela nunca era cedida para arrendatários, o que era mais comum no estado. A�nal, na Itacira só �cava o gerente, que muitas vezes é o mesmo capataz, conhecido por Carabina, com seus empregados ou ca-pangas para garantir a segurança da propriedade.

Sinais daquela parte da história do assentamento estavam bem ali atrás de mim, simbolizados em uma das duas casas que eram sede da fazenda e que os assentados procuram, hoje, pre-servar com muito carinho. Enquanto divago, seu Chico Barracão, que foi um dos integrantes da luta por aquela terra, segura as manetas de minha cadeira de rodas com a intenção de me virar e levar a uma das antigas sedes da Itacira. Ele quer me contar de forma mais viva pequenas histórias, me levando naquela casa.

Dois fatores me impedem de aceitar seu convite para ver de perto as marcas presentes da história: o primeiro é que estamos a espera do ônibus e se ele passar na hora em que estivermos na casa, com certeza não dará tempo de pegá-lo. Outro é que de onde estamos para chegarmos à velha sede teremos de passar por veredas e enfrentar pequenas moitas de juquiras, alguns monturos e muita areia. En�m, ele não conseguirá me levar e eu o convenço de que a ideia não é boa, pelo menos não naquele momento.

— Seu Chico, não dá. Deixa para a próxima vez. Eu vou

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voltar aqui mais vezes, minha cadeira pode quebrar e eu �car em uma situação muito feia.

— Eu consigo lhe empurrar daqui até lá. Vai dar tempo de irmos lá, menino.

— Não, é melhor mesmo deixar para a próxima vez. O senhor continua a contar as histórias e continuo a gravação.

— Então tá. Aquela casa era onde �cava o gerente de tudo isso aqui. A casa está cedida para o MST. Mas, quem está cuidan-do dela é o pai da Simone. Ela é da direção do MST, é difícil ela andar aqui, vive a maior parte do tempo viajando.

Com empolgação, Chico continua o seu relato:— Quando o Movimento assumiu a casa, �zeram uma

limpeza geral e botaram para funcionar como um espaço de for-mação de militantes.

No instante em que ele me fala da Casa Branca que �ca na entrada, é perceptível o estado de emoção no seu rosto. Traz sempre seu olhar para a casa que está distante de nós uns 70 me-tros, com um pequeno mastro de bambu segurando a bandeira vermelha do Movimento dos sem-terra, que já está precisando ser trocada, antes que mude da cor vermelha para rosa ou branca, dependendo do tempo que �car exposta ao sol, chuva e vento. Às vezes Chico baixa a cabeça para se lembrar de alguns detalhes e em uma delas me diz, sorrindo.

— Quando nós voltamos do despejo e reocupamos a Itacira, os homens do gerente não esperaram aqueles sem-terra e correram todos. Eu não me recordo direito qual era o número de famílias que reocupou, só sei que a gente estava em grande quantidade.

Enquanto ele fala, eu me recordo de um fato que ocor-reu em 4 de dezembro de 2007. A casa já estava cedida para a organização e todas as vezes que eu passava na Belém-Brasília, indo ou voltando da universidade reparava que a bandeira estava a meio-mastro. Logo eu percebi que tinha acontecido alguma mor-te no meio do MST. Quando cheguei em casa recebi a notícia do

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falecimento de uma dirigente estadual da cidade de Açailândia. Salete Moreno tinha morrido em um acidente. Depois do ocor-rido a casa de formação política recebeu o nome da dirigente e virou Escola de Formação Salete Moreno.

Segundo seu Chico Barracão, na casa ainda existem as marcas de balas causadas pelos rituais de morte de desafetos do antigo proprietário da Itacira. No exato momento em que conta-ria outras estórias, somos interrompidos pelo barulho escandalo-so do coletivo, que mais parece com um “pau-de-arara moderno”.

O motorista para o veículo, solicitado por seu Chico, que também me ajuda a entrar no ônibus para dividir o espaços com outros passageiros da Via Conceição I e II e com sacas de pro-dutos que eles compram na “rua”. Quando se ouve um assentado dizendo: “hoje vou à rua!”, signi�ca que ele vai à cidade. Os mora-dores fazem compras nos meios urbanos de produtos que a roça não oferece.

Depois de subir com toda a di�culdade no ônibus, nos des-pedimos e saímos, minha noiva-assistente e eu, em direção à Vila Conceição I. Precisamos continuar ouvindo histórias de prota-gonistas do cotidiano que moram ali há quase 25 anos. É lá, a sete quilômetros da entrada, onde pegamos o transporte, que vive a maior parte das lideranças.

Da Itacira à Vila Conceição: realidades contrastantes

Seguindo os relatos dos atuais moradores, é possível visu-alizar na mente como era aquela grande propriedade que está às margens da Rodovia Belém-Brasília e que hoje abriga pequenos produtores rurais. A principal forma é comparar o modo como se estruturam as fazendas de hoje, que não se diferencia muito da-quelas do passado, como a Itacira. Na imaginação surgem cercas quilométricas, capim para o gado – se houvesse bovinos ali – e funcionários cuidando do curral ou dos animais nos pastos. Ce-

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nário sem a estrada que hoje existe e que faz ligação com a cidade de Olho d’Água, que na época era apenas povoado e está locali-zada há 12 km da sede do assentamento, permitindo o acesso para outros municípios.

Basta observar que os lucros de uma fazenda produtiva não são repartidos por seus proprietários com a comunidade. Às ve-zes tudo �ca com o dono, como foi o caso da fazenda de Matias Machline, ainda nos anos de 1980. Logo ele, que tinha outros afazeres administrando sua empresa de eletrônicos no sul do país. Como disse o presidente da associação dos produtores do assen-tamento, Carlindo, sentado em uma das cadeiras de seu bar na Vila Conceição I:

— Com certeza esta terra serviria apenas para o empresá-rio dos eletrônicos especular, porque não se produzia nada, prati-camente nada quando a fazenda estava nas mãos dele. Hoje tenho meu lote e tenho este bar. E assim é com os outros companheiros. Aqui tem gente que cria e vende peixe na cidade de Imperatriz. Vendem leite para os laticínios da região, galinhas, porco e polpas de frutas nas feiras da grande Imperatriz.

Nos anos anteriores a 1987, quando ainda existia a fazenda Itacira, seu único produto era o capim. Apesar do pouco que mu-dou na paisagem, existe apenas uma pequena diferença: o latifún-dio daquela época era mais arcaico e a violência ostensiva. Hoje o latifúndio ostenta uma máscara por trás da vasta produção do agronegócio e a grande propriedade se “modernizou”. Aparen-temente, para a sociedade, ela emprega e alimenta muita gente, mas, segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, este papel é realmente cumprido pelas pequenas propriedades.

O levantamento nacional identi�cou pouco mais de quatro milhões de estabelecimentos da agricultura familiar, o que repre-senta 84,4% das áreas agriculturáveis brasileiras. Este numeroso contingente de agricultores familiares ocupa uma área de 80,25 milhões de hectares, ou seja, 24,3% da área rural.

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Estes resultados mostram uma estrutura agrária ainda con-centrada no país. Os estabelecimentos não familiares, apesar de representarem 15,6% das terras, ocupavam 75,7% da área. Ainda segundo o censo, a área média dos estabelecimentos familiares era de 18,37 hectares, e a dos não familiares, de 309,18 hecta-res. Apesar de cultivar uma área menor com lavouras e pastagens (17,7 e 36,4 milhões de hectares, respectivamente), a agricultura familiar é responsável por garantir boa parte da segurança ali-mentar do país em uma lógica de distribuição interna.

Converso agora, já na vila, com Maria Querubina da Silva Neta, �lha de pais maranhenses, “uma maranhense legítima” , se-gundo suas próprias palavras, nascida na cidade de Olho da Água do Tocantins, antes parte do município de Pedreiras e hoje denominado Santo Antônio dos Lopes.

— Só um de meus avós não era do Maranhão. Este tinha nascido do outro lado do rio Parnaíba, no estado do Piauí, mas foi criado do lado do Maranhão.

Querubina, como �cou chamada no meio dos companhei-ros de Comunidades Eclesiais de Bases, as Ceb’s, do movimento sindical, viveu 12 partos. Seu jeito de peitar os obstáculos lhe ga-rantiu o respeito de todos ao lado de quem militou. Por isso, não aceitava algumas condições impostas pelo dia-a-dia de uma so-ciedade extremante machista, sendo obrigada a largar seu marido. De uma convivência de 25 anos, ela só �cou com as quatro �lhas para criar e pode se a�rmar que ela venceu.

— Morei com o meu marido 25 anos. Ele se mudou para a região de Cidelândia com uns parentes dele e quase um ano depois eu vim para cá, para esta região, atrás de meu marido. Comecei a participar das Comunidades Eclesiais de Bases. Nós rezávamos novenas nas casas e fazíamos reuniões na igreja. Foi neste período que comecei a participar do movimento sindical.

Atento ao seu relato e com o pouco que já conheço de Que-rubina, tinha certeza que ela não aceitava ser mandada por um ma-

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rido. Na verdade ela não concordava com as imposições dos ho-mens nos moldes de seu ex-esposo, o que era comum no país.

— Ele dizia que mulher dele não participava dessas coisas. Mulher era para �car em casa. Como ele foi para o garimpo, �camos distantes e depois não o procurei mais, criando minhas �lhas sozinha.

Enquanto ela falava de si, eu me recordava de dois mo-mentos de Querubina. Um deles em uma plenária do Partido dos Trabalhadores, em 1994. Querubina também fazia parte de uma corrente interna, o “PT de Aço”. Seu discurso era agitador, em-polgava os seus colegas de corrente política, que tinha por base os trabalhadores rurais e se posicionava contra alianças mais abertas do partido. Com o microfone na mão, ela declarava:

— O PT só pode fazer diferença na luta, se for mais forte e combativo pela classe trabalhadora.

A outra vez que a tinha visto foi num pronunciamento em uma assembleia do assentamento, nove anos depois desse acon-tecimento. Ela continuava acreditando em uma articulação mais combativa da classe trabalhadora e do partido.

A camponesa sempre foi do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e cobrava um espaço mais ativo de participação das mu-lheres no órgão. Representantes do sexo feminino não podiam se �liar à entidade no período em que Querubina militou. Esta foi umas das grandes bandeiras levantadas por ela para combater esse preconceito, inclusive no interior da própria categoria.

— Hoje temos mais mulheres �liadas ao sindicato do que homens. Mas foi difícil conseguirmos esta garantia. Continuo �-liada, só não faço parte da diretoria. Para isso tivemos que chamar as mulheres para dentro do sindicato, fazer nossas articulações e também fazer valer nossos direitos.

Na opinião daquela mulher negra, pobre, maranhense lu-tadora, que conseguiu criar as quatro �lhas, a comparação entre a produção do assentamento Vila Conceição I e II com a fazenda Itacira é motivo de risada.

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— Quando nós entramos aqui, esta fazenda não produzia nada, aliás, só tinha pasto e sem sequer ter uma cabeça de gado. Também tinha um gerente que vivia lá na casa branca da entrada. Posso lhe dizer com toda a certeza, esta fazenda só tinha um dono e hoje somos vários donos produzindo de tudo um pouco.

A comparação entre a produção da Vila Conceição e da fazenda Itacira nos 25 anos anteriores é mesmo um pouco discre-pante. A produção da fazenda Itacira era irrisória quando compa-rada à dos pequenos produtores atuais, além de ser destinada ao abastecimento de várias cidades próximas.

A redistribuição dos lucros no assentamento acaba sendo muito maior em relação ao que se fazia há um quarto de século. Naquela época, o que se produzia era só de um dono, hoje são de 137 siprados. Assim são denominadas tecnicamente, pelo Incra, aquelas pessoas que fazem parte do cadastro nacional do órgão, na lista de bene�ciários da reforma agrária.

Depois da conversa com Querubina, já está na hora de eu sair para a casa de meu irmão onde eu passarei a noite, na vila Tu-cum. Esta vila é parte de umas sobras de terras que os assentados deram para quem é �lho ou morador do lugar e que não tem casa. Meu irmão é casado com a Gonsalina, uma �lha de assentada.

Para se chegar até este lugar pitoresco, onde o cheiro e o jeito de roça são mais vivos ainda, é preciso passar por um pequeno córrego, chamado Cinzeiro e no qual há um ano eu tinha tomado banho. A água era muito limpa e fria, agora eu não pretendo sa-ber de nenhuma destas características. De qualquer forma, é muito arriscado atravessá-lo à noite, iluminado só com uma fraca luz de lanterna.

Como a casa de Querubina �ca em uma parte alta da rua Pa-dre Josimo, então para eu ir à residência de meu irmão ele teve que me buscar lá. Descemos por uma longa banguela, ele sempre condu-zindo a minha cadeira de rodas. A ladeira tem uns 200 metros e meu irmão, que tinha acabado de chegar de seu trabalho, em Imperatriz,

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na última viagem do coletivo da Vila, com o relógio marcando 20h12, estava com uma cara de cansado. Nas curvas daquela estrada, vindo de trabalho braçal e com fome, é realmente para o cristão �car com a cara muito feia. E ele ainda foi me buscar na casa de Querubina.

Na verdade, no trecho da rua onde ele foi me buscar, �-cam as casas de quatro das lideranças da comunidade, Luís Preto, Querubina, Valdinar Barros e Santo Careca. Não sei se é coinci-dência ou estratégia do tempo de acampamento. Quando se está acampado, todas as lideranças são visadas, tanto com relação à pistolagem quanto a possíveis prisões. Hoje tudo isso no assenta-mento não faz mais sentido, pois a realidade é outra e a conjuntu-ra política mudou muito, sobretudo com relação a uma ocupação que ocorreu há pouco mais de duas décadas.

Na caminhada que fazemos até a Vila Tucum, onde mora Reginaldo, é possível ver o contraste em uma comuni-dade, que enfrenta uma globalização de forma localizada, pois são roceiros, camponeses que estão interligados diretamente com a cidade. O jeito das pessoas já os diferencia do “homem da roça” de três décadas no passado. Eles agora falam gírias e usam até mesmo roupa de marca. Tudo bem que algumas são “piratas”. No caminho da casa de meu irmão é possível en-contrar e com frequência, várias crianças brincando de “Salva latinha” e “Pega-Pega”.

Continuamos a descer para a pequena Vila Tucum de pou-cos moradores, com muito cuidado, por enfrentarmos ainda uma suntuosa escuridão, apenas com a luz da lanterna. E depois de chegamos ao �nal da última rua, o negócio agora é descer de uma altura de dois metros.

Reginaldo me deixa um tempinho com os garotos, seus ente-ados, para buscar ajuda, pois sozinho ele não dará conta. Logo reapa-rece com dois conhecidos dele para, juntos, colocarem força comigo.

— Oi, boa noite! Eu sou Zé Luís, irmão do Reginaldo.Como foi muito rápido e por estarmos preocupados com

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aquela pequena aventura, nem presto atenção nos nomes dos caras. Eu só lhes explico como podem fazer para me ajudarem naquele ins-tante. Explico em detalhes para eu não ter que tomar banho àquelas horas no Cinzeiro.

— O Reginaldo segura atrás, �ca um de cada lado e outro na frente para não deixar a cadeira de rodas correr.

O Reginaldo já estava acostumado com situações parecidas e só retribuímos a força dos companheiros pela ação solidária, com um muito obrigado. Agora estamos diante do riacho, sem nenhum peri-go de tomar banho. Sua profundidade é de uns 30 centímetros e para não afundar ou atolar os pneus, havia umas tábuas. Na verdade estas tábuas servem para a passagem de pessoas com bicicletas, mas agora estavam sendo perfeitas para apoiar minha cadeira. Ali, na frente daquela pequena corredeira, Reginaldo para e diz:

— Silêncio pessoal! Vou tentar pegar umas traíras, aqui tem sempre peixes.

Ele tinha me falado que também podem ser encontrados na-quelas águas outros tipos de peixes como carás, piabas, muçum e até mandis. O momento é de silêncio, porque entra em cena um pesca-dor. Se nós dependêssemos dessa pro�ssão, nas mãos de meu irmão, morreríamos de fome, pois ele não pegou nenhum peixe. Resolvemos seguir em frente, rumo ao seu casebre, para jantarmos e descansarmos para o dia seguinte refazermos aquele mesmo percurso, só que o in-verso. Ele, para seguir até o seu trabalho na cidade e eu para continuar checando informações para meu livro-reportagem. Depois de banharmos e jantarmos, �camos sentados na fren-te de sua casinha de taipa, coberta de palhas como a maioria das 15 ha-bitações da Vila Tucum. Olhamos o céu e ouvimos a trilha sonora das cigarras, com seus agudos sinfônicos. Na percussão, os sapos cururus, que estavam há uns 50 metros de nós, mergulhados no riachinho. Na-quela parte do assentamento faz um pouco mais de frio, não como o do Sul do país. Mas é que estamos tão acostumados com o calor do Maranhão, que achamos estranho uma brisa noturna do interior.

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No dia seguinte somos acordados com o cantar dos galos, um chamando o outro, que responde ao longe. Minha cunhada passa o café. Torrado não, de quitanda mesmo, que também é cheiroso no seu preparo fazendo qualquer um despertar de seu sono. Nos assentamen-tos em geral, quase tudo é da quitanda, ainda mais na entressafra da produção, período em que as roças não dão os frutos ainda e no mer-cado o legume está com o preço alto.

Enquanto o café �ca pronto, eu já estou acordado. Acabo não dormindo mais porque outras aves começam a participar do ama-nhecer. Eu reconheço os nomes das mais comuns: sabiás, bem-te-vis, pardais, jandaias, anuns, pipiras, rolinhas. Às sete horas, eu levanto e depois do café sigo para a sede da Vila Conceição I, continuando a minha missão de escarafunchar as duas décadas e meia de vida daquele assentamento.

Intervalo do mutirão da limpeza: organização acabou até com as muriçocas

Arquivo do assentamento

m termos de articulação das bases, quatro pessoas foram fundamentais para o processo de conquista da fazen-da Itacira. Raimundo Nonato, Manoel da Conceição, Neudson Claudino e João Fotógrafo são personagens

que estiveram diretamente envolvidos com as origens do assenta-mento Vila Conceição I e II.

Padre Raimundo Nonato foi uma escolha natural. A maioria dos entrevistados da vila citou esta personalidade, que teve papel crucial nas articulações das questões de terra na região tocantina. Além de guardar muitas informações sobre a história da ocupação da fazenda Itacira, o padre fazia parte da coordenação da Comissão Pastoral da Terra recém criada, à época, na diocese de Imperatriz, como recorda:

— Era o Josimo na diocese de Tocantinópolis e eu na de Imperatriz.

Eu já o conhecia de antes, de minhas participações na igreja católica quando atuava na Pastoral da Juventude. E dos encontros de Comunidades Eclesiais de Bases, no Centro de Treinamento Anajás, um espaço de formação da igreja, que serviu também de local de preparação para todos os setores políticos de esquerda da região. O CTA, como é chamado, hoje está localizado no bairro Bom Jesus, quase na saída de Imperatriz para João Lisboa.

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Os quatro cavaleiros

da articulação

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Como a mangueira é uma planta muito comum no Mara-nhão, aqui está ela presente de novo, agora ao fundo do estaciona-mento da Universidade Federal do Maranhão, local acertado de nossa conversa. Padre Nonato está mais magro do que há alguns anos. Seus cabelos grisalhos agora servem para disfarçar um pou-co da pequena calvície que surgiu com o tempo.

Seu nome verdadeiro é Raimundo Nonato Barbosa Costa e foi ordenado padre há pouco mais de 30 anos, no dia 28 de março de 1981. É um �lho legitimo de Imperatriz, um imperatrizense do “pé rachado”, como diz o ditado popular. Por dez anos, se dedicou ao trabalho da CPT-MA, quando estabeleceu uma parceria com o padre Josimo, que atuava no Bico do Papagaio, região norte do estado do Tocantins, antigo Goiás. O lugar recebe esse nome por ter, no mapa, uma semelhança com um bico deste pássaro.

— Era só uma CPT?— Não! Cada estado tinha a sua. O Josimo era da CPT do

Bico do Papagaio e a gente se encontrava muito nos seminários que havia.

A CPT sempre realizava encontros nacionais. Além disso, a Assembleia Nacional da pastoral costumava acontecer em Goiânia e lá bispos, padres, religiosos e leigos de todo Norte e Nordeste do Brasil se encontravam.

— O Josimo, naquela época, já recebia algumas ameaças. Aqui nós acompanhamos este trabalho pastoral quando estávamos no antigo povoado de Cidelândia. Foi lá que começou o trabalho de formação com as lideranças daquela região que estão hoje no movimento sindical. Eram todos de Cidelândia, Valdinar, Queru-bina e tantos outros que não se encontram mais por aí.

Quando o padre Nonato chegou a Cidelândia, o assentado e futuro deputado estadual Valdinar Barros já era delegado sindical e morava no Centro do Abrão, um povoado próximo daquela paróquia. Querubina morava em Cidelândia e era uma das líderes também do sindicato. “Santo Careca”, outra das lideranças, vivia no mesmo local.

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Em um gesto para forçar a memória, com os dedos da mão direita apoiados em uma moto estacionada próximo da gente, ele recorda:

— O João Fotógrafo, não morava na Cida (nome popular de Cidelândia). Morava ali por perto da comunidade, que era co-ordenada por mim. O Luizinho, o Luís Preto, morava no povoado “Marreco”, ele era dirigente da comunidade de lá.

Enquanto ele fala eu estou acomodado em minha cadeira de rodas e o padre em um dos banquinhos duros de concreto do esta-cionamento da UFMA, segurando meu gravador. Sempre costumo explicar a quem entrevisto que tenho di�culdades de amparar o aparelho próximo da boca de quem vai me dar uma entrevista, para que �que com um bom áudio.

Observo seu jeito de se referir aos companheiros. Nonato ainda tem grande afeição por esta turma, talvez saudade por eles não frequentarem mais a igreja. Pelo menos não da forma que fo-ram orientados por frei Rogério, o vigário antecessor de Nonato, que hoje mora em São Luís.

— Esse pessoal todo foi fruto do trabalho começado com frei Rogério. Quando cheguei à paróquia eu só �z dar continuidade a um bom trabalho feito por ele, que cuidava da formação política desses líderes.

A celebração do dia 1º de Maio, o Dia do Trabalhador, representava bem essa marca. Nonato recorda hoje desses mo-mentos bons das atividades organizadas pelas Comunidades Eclesiais de Bases. Ele dá uma pausa, respira e diz que no 1º de Maio a celebração eucarística sempre terminava em mani-festações dos trabalhadores. Tudo coincidia com a preparação da construção da ferrovia dos Carajás e nestas manifestações já pairava o alerta de que a obra iria causar um enorme impacto para aquelas famílias.

O padre ressalta com veemência que muita gente foi ex-plorada para abrir a estrada ferroviária, que hoje passa por dentro

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do povoado. Gesticula muito, empolgado com suas recordações e se mostra um tanto decepcionado com o sistema que vigora no Brasil:

— O ser humano é sempre colocado ao bel prazer dos grandes projetos econômicos. Nesse tempo havia muita explora-ção dos trabalhadores. Os proprietários de terras não pagavam de forma justa os direitos desses trabalhadores. Naquela época houve muitas denúncias contra todos os tipos de explorações. Os donos de fazendas passavam por dentro das roças dos camponeses que trabalhavam em suas pequenas terrinhas. Os operários da ferrovia levavam arroz, milho e outros legumes e os trabalhadores da roça nunca foram indenizados.

Explicando o seu papel como coordenador da CPT, o pa-dre Nonato relata como se articulavam os trabalhadores rurais. Fica um pouco em silêncio para se lembrar de fatos escondidos em sua memória. Depois de mais uma remexida no banquinho desconfortável, prossegue com seu relato dizendo que o sindicato e a igreja começaram a atuar juntos na questão para reivindicar os direitos daqueles trabalhadores. E tem gente que até hoje nunca recebeu indenização.

— Então veio o grande Carajás derrubando tudo, para estirar a ferrovia por onde iria passar todo o minério. Nós, que tínhamos um trabalho com as Comunidades Eclesiais de Bases, as CEB’s, tivemos muitos problemas nesse tempo relacionado a isso. Logo em seguida apareceu a questão da fazenda “Cri-minosa”.

Nonato con�rma que a “Criminosa” teve este apelido por ter sido palco de muita violência e pertencia mesmo a represen-tantes do grupo Sharp. Ele ainda garante que se tratava de uma sociedade com o então presidente da República, José Sarney.

Depois de conversarmos por quase uma hora, encerramos nosso papo. Ficou claro na conversa com padre Nonato que ele teve uma participação importante nesta luta de 25 anos.

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“Conceição”: um nome para o assentamento

Agora a conversa é com o homem que foi homenageado emprestando seu nome para o assentamento, Manoel da Concei-ção ou Mané, como ele gosta de ser chamado. Militante histórico da causa dos camponeses, ele nasceu na cidade de Pirapemas, hoje município de Coroatá. A entrevista com o líder camponês contou com a participação de dona Denise, sua esposa, porque este não recorda de muita coisa e tem di�culdades de fala causadas por um início de Acidente Vascular Cerebral, o AVC.

Logo no início da entrevista entro no assunto da ocupação da fazenda Itacira, processo que contou com a sua participação des-de o começo. Manoel des�a sua memória.

— Nós estávamos fazendo a discussão de começar a fa-zer ocupações de fazendas para quem não tinha terra. Ocupamos a fazenda “Criminosa” no dia 16 de julho de 1987. Alguns dias depois a polícia foi lá, acompanhada de jagunços e fez nosso des-pejo. E depois fomos ocupar o sindicato, na época com umas 200 ou 300 famílias.

Depois de ocuparem o sindicato, �caram lá por uns 15 ou 20 dias enquanto se resolvia a questão de saber de quem era mesmo aquela terra, “se do Sarney ou desse Matias”. As famílias que ocupa-ram vinham daqueles povoados citados por padre Nonato: Cidelân-dia, São Pedro da Água Branca, Centro dos Gaviões e outros. Depois do despejo, �cou um grupo de companheiros para dar sustentação e garantir a terra. Eram uns 20 ou 25 homens e permaneceram arma-dos para assegurar a posse da terra.

— Esse negócio de número é um detalhe, pois faz muito tempo e não se tem mesmo a certeza de quantos eram realmente — disse dona Denise, interrompendo-o.

Manoel da Conceição continua seu relato recordando o ato de resistência dos trabalhadores, entendendo como acontecimento cômico os pequenos confrontos que ocorreram na área da fazen-

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da. Ele se lembra que quando seus companheiros �caram na área ocupada, escondidos para garantir a conquista, depois do despejo, homens vestidos de policiais voltaram ao local para garantir a rein-tegração de posse. Os ocupantes que estavam na área, escondidos, começaram a resistência e aconteceu o tiroteio. Porém, Manoel a�rma que nesta ocasião não houve mortes.

Mané trata do episódio de maneira engraçada, porque a polícia foi enganada neste dia. Dona Denise reforça a fala de seu companheiro dizendo que depois do ocorrido houve na imprensa o boato sobre mortes, mas ninguém nunca reivindicou a falta de al-guém, nem de um lado nem de outro. Por conta disso, ela con�rma, de forma enfática:

— Não houve mortes!O velho camponês, ainda sorrindo da cena recordada por

ele, rea�rma que quem começou o tiroteio foram os pistoleiros, que estavam disfarçados de policiais. Um dos companheiros, do qual Manoel não lembra o nome, estava dentro de um buraco no chão, fazendo tocaia e viu quando os jagunços entraram disfarçados de policiais. Nesse instante começaram os tiros.

Como foi uma reação dos trabalhadores para se proteger, Mané deixa claro que é preciso esquecer algumas atitudes que foram tomadas mais no impulso de se defender da ação de capangas da fa-zenda e na luta pela conquista da fazenda Itacira. Esse episódio teve como base um grupo de oposição do sindicato. Mané sustenta a teoria de que a diretoria da entidade de trabalhadores rurais era toda “pele-ga”. Por isso, seu grupo teve que se organizar e conquistar a direção.

Mané tem muita di�culdade para falar e para andar, mas mantém um jeito tranquilo e paciente de se expressar. Ele chega a comentar sobre a falta de uma das pernas, perdida na prisão: “Mi-nha perna, minha classe!” A frase é de um livro seu e virou um lema de luta. Ele tinha sido preso baleado no pé e por ter �cado seis dias na prisão sem muitos cuidados na cidade de Pindaré-Mirim, aca-bou perdendo a perna. Hoje acentua o principal aspecto positivo na

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história da conquista da terra que se tornou o assentamento Vila Conceição I e II, emocionando-se:

— O que �cou de bom, foi que esta foi a primeira ocupação na região de Imperatriz. E ali foi a fonte para outras ocupações de terras no estado. Nós fomos o exemplo de que é possível lutar por reforma agrária.

Aqui �ca a história deste homem que se sacri�cou, perdendo uma das pernas, para defender uma bandeira coletiva, segundo a qual, no Maranhão, a miséria foi e ainda é reinante. Desde suas primei-ras lições no Movimento de Educação de Base, quando se tornou membro da Ação Popular. Depois, se articulando para uma possível luta armada no país, resistindo, no Maranhão, à grilagem de terras, na região de Pindaré. Preso logo depois do golpe militar, em 1964 e enviado para o exílio por quatro anos na cidade suíça de Genebra.

Depois de nossa conversa, os dois, Mané e Denise, saem juntos, ela segurando em seu braço para lhe dar apoio e andando devagarzinho pelo corredor do campus da Universidade Federal do Maranhão, local marcado para nosso encontro. Desta vez não fomos testemunhados por belas sombras de copas de mangueiras.

Esperança em uma busca coletiva

Depois de ter sido citado por Manoel da Conceição como uma das pessoas que mais contribuíram com o início das articu-lações para história do assentamento Vila Conceição I e II, para mim foi uma grande surpresa saber que meu próximo persona-gem é empresário de destaque do comércio de Imperatriz.

Eu já tinha algum conhecimento sobre Neudson Claudino, pois ele foi um dos militantes fundadores do Partido dos Traba-lhadores no Maranhão, mas �quei espantado quando, em nosso papo, �quei sabendo que aquele empresário, de família tradicio-nalmente conservadora, foi um dos articuladores do “PT de Aço”, a corrente mais radical da legenda no estado.

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Depois de ser ajudado a descer do carro da empresa, que foi me apanhar na rodoviária de Imperatriz, sou bem recebido por seus funcionários. Oferecem-me cafezinho e colocam um ventila-dor só para mim, pois o calor está escaldante. Enquanto eu espero o empresário, chega em uma bandeja uma aguinha geladinha para descontar o suor que escorre por meu corpo.

Após quase meia hora de espera, lá de dentro sai aquele senhor, com jeito de pressa. Antes de chegar até mim ele fala com alguns empregados da loja, repleta de móveis, muito bonitos e modernos. Seu Neudson vem em minha direção e me cumpri-menta:

— Olá como está?— Estou muito bem e senhor?— Estou com saúde.Logo recordo seu rosto, lógico que também das plenárias

do Partido dos Trabalhadores. Eu sabia que o conhecia, mas não lembrava sua �sionomia. Agora, com ele ali em minha frente, me recordo, ele até já tinha me dado algumas caronas quando saía-mos de alguns encontros municipais do partido.

Neudson começa relatando sobre a sua chegada na região de Imperatriz. Seu nome completo é Francisco Neudson Claudi-no e veio para Imperatriz em 1966. Mudou-se para esta cidade com a �nalidade de inaugurar o Armazém Paraíba, ocasião em que foi gerente da empresa. E ainda era sócio de uma conces-sionária, a Willis Overlan do Brasil S/A na cidade de Bacabal, também estado do Maranhão.

— Eu �quei no Armazém Paraíba até 1969, quando saí para criar meu próprio negócio. A loja era de papai, João Claudi-no Sobrinho e tinha como sócios três de seus 16 irmãos.

Neudson Claudino �ca muito à vontade para conversar comigo e não se esquiva nem um pouco de sua história. É prove-niente de uma família de piauienses muito abastada, com a qual teve divergências políticas, mas segundo ele, não criando desafe-

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tos mútuos. Com pouco tempo de conversa, entra no recinto da loja onde estávamos um senhor com a aparência de quem tem muita experiência, com seus bonitos cabelos brancos. Claudino o recebe de uma forma muito amigável e depois faz questão de me contar como se conheceram:

— Você viu este senhor que acabou de chegar?— Sim. É seu pai ou tio?— Não, mas veja só. Este é o típico cliente que você tem de

conhecer por meio da psicologia, naquela época não existia cartão de crédito ou crediário. Então este senhor chegou para mim e dis-se: “Eu sou do interior do Maranhão, tenho uma família grande, sou um homem direito e quero que você me avie uns cortes de tecidos”.

Ele me explica que aviar é fornecer uns cortes de tecidos para ele revender. Este trecho é importante para se conhecer um pouco mais do caráter de Neudson Claudino dentro dos preceitos em que foi criado.

— Depois de uma longa entrevista eu lhe forneci os teci-dos, ele veio no prazo combinado e me pagou direitinho. Fizemos outros negócios e nossa relação aumentou. E você sabe quem é este homem?

Pergunta e só consigo repetir:— Seu parente? Irmão?— Este é o pai do atual prefeito de Imperatriz, o Sebastião

Torres Madeira. Minha relação é só esta com o prefeito, por ser amigo de longa data de seu pai.

Fico um pouco surpreso. “Mas, o que isso tem a ver com a Vila Conceição I e II?”, penso. Vamos conhecer mais à frente, pois ele fez questão de mostrar este detalhe de sua vida para dizer que é um homem honrado, criado dentro dos princípios cristãos cultivados pela Igreja Católica Apostólica Romana. De boa fa-mília, como se dizia no passado. Neudson é aquele tipo de pessoa que gosta de contar a história seguindo cada “vírgula”, nos míni-

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mos detalhes. Nessa toada eu me pergunto: “Como um homem criado desta forma pode construir relação com camponeses que lutavam por terra e reforma agrária no Maranhão?”.

A resposta para minha indagação interna vem aos poucos, mas ele, por ser um homem inteligente e atencioso com um bom tempo que estamos conversando, ainda recorda da minha primei-ra pergunta, interrompida pela chegada de seu amigo.

— Então continuando, o senhor gerenciou o Armazém Paraíba até 1969...?

— Não, não... Sua pergunta anterior era: “Como que é que um empresário se sensibiliza pelos problemas sociais?”.

Neste momento tento disfarçar um pouco de vergonha e só con�rmo:

— Isso!— Pois bem! Eu iniciei este processo no movimento de igreja.Nesta hora eu quase mato a charada e por pouco não peço

para ele parar, pois eu já tinha entendido tudo. Entretanto, deixo ele seguir porque ali poderia vir alguma surpresa.

— Eu venho de uma educação tradicional católica. Na época a missa era em latim, a gente assistia, não participava. Eu cheguei a frequentar o seminário, estudando tudo em latim. E em minha compreensão era difícil entrar em minha cabeça esse jeito de ter fé.

Em seguida ele continua o relato de sua história no interior da igreja católica, na qual participou de cursinhos de cristandade. Lá, foi apresentado a outro Cristo, diferente do que está na Bíblia. Entendeu Jesus como “o �lho de Deus feito ser humano” que, com suas próprias palavras:

— Veio conviver com a gente aquilo que os profetas anun-ciaram. Porque os homens falharam, não tiveram condições de assimilar e ele mandou seu próprio �lho.

A partir daí ele inicia uma longa pregação nos moldes da Te-ologia da Libertação. E eu permaneço só observando seu jeito, sen-tado, com as pernas cruzadas e explanando para mim sua mudança

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de concepão de fé dentro da própria igreja católica. Quando ele entra no apedrejamento da mulher pecadora nós somos interrom-pidos por uma de suas empregadas, que traz um cafezinho. Assim que ele recebe sua xícara, percebo que está com vários sinais do Mal de Parkson, com pequenas tremedeiras em sua mão direita.

A transformação histórica dentro da igreja católica se re°etiu na região de Imperatriz nas lutas sociais, neste caso dando origem à ocupação da fazenda Itacira. Isso se mostra no jeito em que Neudson Claudino passou a ver o mundo, a partir das reuniões do movimento de cursilho, que ocorria na então pre lazia de Carolina. O movimento, compreendendo toda a região Tocan tina, pois ainda não havia a dio-cese de Imperatriz, que teve iní cio em 1973, quase dez anos depois do Concilio Vaticano II. Neudson mesmo se confessa um socialista.

E sendo um participante ativo da igreja católica, Neudson era um leitor assíduo de uma publicação religiosa, a revista Fa-mília Cristã. Admirava um articulista que tratava de organização popular, política e outros temas mais modernos para aquele pe-ríodo e que escrevia no periódico quinzenalmente. Foi quando resolveu conhecer o intelectual, aproveitando que estava em São Paulo para resolver questões pessoais. O tal colunista, Plínio de Arruda Sampaio, lhe apresentou algo novo na questão da política, o surgimento do Partido dos Trabalhadores. A partir da relação entre os dois, segundo ele próprio me con�rma, de forma séria:

— Nasceu o PT no estado do Maranhão.Aqui quase eu mato a charada, mas eu ainda quero mui-

to ver aonde sua história irá desembocar na ocupação da fazen-da Itacira, em 1987. Algumas pistas ele já deixou: CEB’s, PT e agora Plínio de Arruda Sampaio, um dos fundadores nacionais do Partido dos Trabalhadores. A legenda, na época, representava uma esperança para muita gente que sonhava com reforma agrá-ria e com um país democrático e socialista. Sonho acalentado, também, por aqueles padres e freiras formadores dos homens e mulheres que ocuparam fazendas Brasil afora. Vamos ver então,

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�nalmente, como Neudson Claudinho vai encontrar Manoel da Conceição, Querubina, Valdinar Barros e muitos outros que hoje fazem parte da história da Vila Conceição I e II.

—E o PT do Maranhão foi formado com o material que eu trouxe de São Paulo. Foi fundado no estado, aqui em Impera-triz. Com Luís Vila Nova e companhia.

Luis Vila Nova foi outra liderança camponesa do estado, já teve mandato de deputado e hoje está vivendo na cidade de Buriticupu. Aí não me seguro e pergunto:

— E o Manoel da Conceição, já estava por aqui?— Não, ele ainda estava no exílio. Só depois ele chegou e

foi morar no estado do Pernambuco para criar o Centru. Com muita luta, conseguimos convencê-lo a voltar para o Maranhão.

— Como assim?—Ele pensava que tinha perdido sua base no Maranhão

quando foi para o exílio depois do golpe de 1964. Manoel tinha e ainda tem o respeito de toda esta gente. Ele conseguiu levantar a autoestima de todos que ele um dia foi obrigado a deixar.

— Depois de fundado o partido, o curioso é que eu era membro do Rotary Club, uma sociedade muito conservadora. Eu não podia me expor publicamente sobre minhas concepções polí-ticas. Porque senão eu perderia inclusive minha clientela.

Agora as ideias começam a se afunilar quando ele cita um fato que quase todos com quem conversei mencionaram como crucial para a articulação da ocupação: a organização e formação política para se fazer frente à direção da época do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Imperatriz.

— Eu oferecia as condições para que as reuniões de estu-dos das cartilhas de formação política acontecessem. Quando se via um amontoado de bicicletas em frente de alguma casa eram os trabalhadores tendo formação, estudando as apostilas do PT.

Neudson ressalta que neste processo surgiu a necessidade de enfrentarem a direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

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Então prepararam um deles para se eleger presidente do sindica-to: Valdinar Barros.

Eu o interrompo:— O Manoel da Conceição me disse que quem organizou

a ocupação da fazenda Itacira, antiga “Criminosa”, não foi o sin-dicato, mas uma oposição sindical, porque a direção era...

Antes de eu pronunciar a palavra, ele mesmo a antecipa:—... Pelega!E ainda acrescenta:— Pelega e ligada ao Davi Alves Silva.O nome citado é de um político que tinha como práti-

ca distribuir “sacolinhas” para o povo de Imperatriz. Eram como cestas básicas, porém muito menores dos que a de hoje, com-postas de artigos como arroz, feijão e manteiga. Esse era um dos seus principais artifícios para ganhar as eleições na cidade. Davi morreu vítima de um assassinato, não muito esclarecido, em 1998, em Imperatriz.

Pergunto, então, de supetão:— Então o senhor ouviu falar de Antonio Tibúrcio?— Claro! — E acrescenta, ironicamente — O que desapa-

receu? Você sabe onde ele está?— Não!Antônio Tibúrcio era o presidente do sindicato da época

e tido por seus sócios como pelego, alguém que cumpriria as ordens dos fazendeiros ou de Davi Alves Silva. Ele foi encon-trado morto na “Estrada do Arroz”, logo depois das disputas pela entidade.

Neudson Claudino ainda carrega uma marca dessa sua participação na luta popular, uma tentativa de assassinato que so-freu. O fato aconteceu no dia 2 de novembro de 1992, no bairro Vila Cafeteira. Saindo do lançamento da pedra fundamental da igrejinha daquela comunidade, ele, que estava na companhia de Valdinar Barros, foi surpreendido por pistoleiros. Na ocasião so-

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mente seu companheiro, o Valdinar, foi atingido por três tiros e veio a permanecer internado por uns tempos.

Esta contextualização é importante para se compreender o processo histórico desta comunidade que, por ser a pioneira das ocu-pações na região tocantina precisa ser escrita. As articulações existi-ram, e estão aí espalhadas nas lembranças de cada protagonista.

A nostalgia militante de João Fotógrafo

A conversa com João Francisco de Sousa, ou para muitos apenas, seu João Fotógrafo, acontece em sua própria casa. Eu pas-sei a noite na residência da sogra de meu irmão Reginaldo, dona Mariona, na Vila Conceição I. Vale a pena levantar cedinho em um lugar tranquilo para se dormir, como a Vila Conceição, em uma casa cheia de crianças.

Ao acordar com o barulho da meninada, animados para irem à escola, até penso que serão distribuídos brinquedos no colégio, pois eu ainda não tinha visto pequenos tão empolgados no momento de ir estudar. A família de dona Mariona é muito humilde. Com ela vivem alguns netos e uma das três �lhas, cada qual com seus �lhos. Dois netos ela quem cria: Willian, de 15 anos e Lena, de dez. Ela é uma daquelas mulheres que é a chefe da família. O café está demorando a sair e eu estou atrasado para a conversa com o seu João Fotógrafo. Ele já sabe que eu estou à sua procura e penso: “Já que o café daqui está demorando, estou um pouco atrasado, junto o útil com o agradável. Vou à casa de seu João fazer minha entrevista e tomar um pouco de seu café”.

E assim faço. Aproveito um jovem que passa na rua da casa de dona Mariona e peço que ele me leve à residência de seu João Fotógrafo. Neste caso, sigo o caminho inverso que tinha feito para ir à casa de meu irmão, dias atrás, na contramão da mesma ban-guela. Ou seja, o rapaz que estava me ajudando pega uma grande subida para me conduzir até meu objetivo.

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— Oi de casa! Vou entrando.Na residência só moram seu João, que está preparando três

beijus, e o seu �lho, Gamar. — Vamos tomar café? — convida seu João.— Eu aceito.Atacamos o “quebra-jejum”, como chamamos por aqui,

composto de café, leite e beiju. Sigo, depois do desejum, para a calçada fumar um cigarro e curtir aquela sombra matutina. O Ga-mar parece que foi à roça, pois saiu com uma foice. Seu João �ca limpando a cozinha e lá de dentro grita:

— É já que me desocupo, Zé Luís!— Tudo bem, �que à vontade!Uns 20 minutos depois ele sai da cozinha um pouco molha-

do, passando a mão na cabeça já branca pelo tempo e diz:— Estou pronto Zé Luís. O que você quer comigo?Explico de forma que ele entenda, mesmo sabendo que tal-

vez ele não quisesse conversar comigo sobre o assunto. Ele pode ser um daqueles que sentem frio na barriga quando se toca no tema da ocupação da fazenda Itacira. Ou também sofrer de “amnésia”, esquecendo-se de tudo que aconteceu depois daquele 16 de julho, no ano de 1987.

— Seu João, eu estou pesquisando sobre a história do assen-tamento Vila Conceição I e II. Pretendo escrever um livro-repor-tagem para concluir meu curso de jornalismo.

Nesta hora percebo que ele �ca um pouco apreensivo. De repente vai para dentro da casa e pega dois tamboretes, um para ele e outro para um conhecido seu que tinha acabado de chegar. “Espero que este senhor não nos atrapalhe”, penso. É quando ele resolve sentar e seu colega �ca na dele, sem nos interromper. Seu João, em tom de brincadeira, adverte:

— O que você quer com isso, Zé Luís?— Só quero registrar, porque acho a história de vocês mui-

to bonita e heroica.

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A presença do companheiro não o deixa intimidado e isso me faz crer que ele irá colaborar. Realmente João começa con-tando sua própria história, onde nasceu e como veio parar nessas bandas do estado do Maranhão. No alto de seus 76 anos de idade, este piauiense, que se mudou para o Maranhão em 1969, espe-ci�camente para a cidade de Cidelândia, recorda perfeitamente dos primeiros passos rumo ao que são hoje os 25 anos de uma comunidade de pequenos agricultores.

No dia 15 de maio de 1987, eles começaram o trabalho de base para juntar trabalhadores e executar a ocupação. João con�r-ma que Manoel da Conceição tinha chegado e criado o Centru1 com as irmãs Elich e Gertrudes, duas freiras que faziam trabalhos pastorais na região. A primeira reunião foi feita na casa do Santo Careca e para se organizarem melhor, foram organizadas outras em toda a região de Cidelândia passando pelos povoados Centro do Domingão, Centro dos Gaviões, do Trecho-Seco e outros.

O Trecho-Seco é uma comunidade antiga, do tempo da cons-trução da BR-010 e por estar nas margens da rodovia, hoje perten-ce a dois municípios: Cidelândia, na parte oeste e São Francisco do Brejão, na parte leste. O povoado é dividido pela Belém-Brasília.

Este é um momento em que seu João começa a se empolgar em suas recordações, fazendo de suas palavras quase que um discurso político e agitador. Pelo que já conversei com outros, seu João nunca foi muito bom com a fala como Querubina e Valdinar, mas ainda é grande articulador da comunidade.

— Pois �zemos o trabalho de formação e conscientização, conseguindo juntar de 400 a 500 famílias, mas na hora do ato só

apareceram 254. Ele continua fazendo o relato com

os olhos brilhando, recordando aquele mo-mento:

— Saímos em quatro caminhões. Eram umas 23h. Entramos por Cidelândia.

1 Centro de Edu-cação e Cultura do Trabalhador

Rural, ONG cria-da por Manoel da Conceição.

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Paramos na fazenda do Moacir Espósito, que não lembro o nome. E de lá saímos para a fazenda Itacira em caminhada, passamos a noite andando.

Quando o interrompo para saber das mulheres ou se eram somente os homens que estavam naquela busca da terra prometi-da, ele abaixa a cabeça branca, passa um graveto que mantém na mão direita, no chão, riscando para recordar melhor e diz que a maioria era mesmo de homens. Também havia algumas mulheres, porem por causa do medo do que poderia acontecer, a maior parte delas veio depois.

Ele dá uma pausa para acrescentar um fator importante: o medo. Sendo esta a primeira ação deste tipo na região tocantina, o temor era grande. Eles estavam com mais receio porque em reuni-ões de preparação para a ação alguém poderia ter deixado escapar os planos de ocupação e eram grandes as chances de se chegar ao local e encontrar pistoleiros armados ou mesmo a própria polícia. João a�r-ma que a organização não estava só na ocupação. Também somaram forças companheiros que não participaram como estratégia.

— Nós estávamos organizados também com uma equipe que não participou da ocupação.

Seu João continua fazendo o seu relato, agora com bri-lho nostálgico nos olhos. Ele acrescenta que essa equipe que não participou da tomada da fazenda tinha a responsabilidade de só divulgar que a Criminosa tinha sido ocupada no dia seguinte, na rádio Imperatriz AM, a única de Imperatriz na época. Enquanto fala, João contempla o horizonte ao longe, tentando trazer para perto as imagens desse �lme:

— Caminhando por dentro, chegamos até um dos córre-gos da fazenda, onde moravam uns posseiros, que também estavam combinados com a gente e nos acompanharam. Já eram umas sete horas da manhã quando fomos para a sede, a Casa Branca.

Ele continua frisando o medo que os a°igiu neste ato. Mas, ressalta que era tarde para recuar, pois a maioria das famílias estava na

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fazenda já ocupada. Um dos principais instrumentos do trabalhador naquela época para ter acesso às notícias era o rádio e muitos deles levavam os seus pequenos aparelhos. Chegando à área onde �cariam acampados ouviu logo os rumores e alardes que já estavam no ar via rádio Imperatriz, de propriedade de Moacir Espósito, dono de uma das fazendas por onde eles passaram.

— Nós ouvimos na rádio do Moacir uns comentários dele, que nos colocou ainda mais medo por termos feito a ocupação. Ele dizia no rádio assim: “Vocês vão ser todos presos. Podem até morrer alguns por causa disso, porque a área está cheia de segu-ranças...”. E com isso muita gente desistiu, teve companheiros que nem desenrolaram suas mochilas e voltaram para Cidelândia.

João prossegue seu enredo verídico, dizendo quais foram os primeiros afazeres desse acampamento, pois em uma organização como essa, se não houver disciplina, todos perdem. Portanto, fo-ram divididas logo as equipes de tarefas: uns foram construir os barracos; outros, cuidar da segurança. O grupo que �cou de fora iria atrás de mantimentos com outras organizações como sindi-catos, paróquias e associações de moradores.

Entretanto, a maior parte rumou para o broque – nome que se dá à derrubada da juquira ou de uma parte das matas para se fa-zer as roças. Esta é uma das práticas antigas do camponês, derrubar para plantar. Hoje, já existem alguns métodos mais ecológicos, mas no passado ninguém sabia fazer uma roça sem derrubar a mata.

— Dentro de 15 dias nós tínhamos mais de 500 linhas de matas derrubadas, prontas para botarmos roças.

Nas conversões e medidas de terras do camponês existem algumas peculiaridades no estado do Maranhão. Por exemplo: uma linha é o equivalente a 25x25 braças. Uma braça varia mui-to no Brasil, mas aqui em nossa região ela tem a medida de 2,20m, ou seja, uma linha �ca assim calculada: 55mx55m. O trabalhador rural da região pouco trabalha usando a medida de hectares.

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Durante este papo já foram cinco cigarros. E não foi à toa que eu lhe chamei para conversar em sua calçada, com a vista para o campo de futebol, logo na esquina de sua rua. Dali era possível ver o primeiro local em que �quei quando vim observar e começar este livro. A mangueira pioneira permanece lá, do meu lado direito, a uns 100 metros. Agradeço então o seu João, pois sua contribuição foi de extrema importância na junção de fatos tão dispersos.

Por acaso no dia seguinte eu estou na casa de meu irmão, depois do café da manhã, esperando a hora de subir da Vila Tucum para a Vila Conceição, quando seu João Fotógrafo aparece por lá. Não sei se ele foi para me ver, mas podemos conversar um pouco mais sobre o assentamento. Ele está bem mais à vontade e saudoso dos tempos em que ele mesmo garante, “éramos mais unidos!”

A conversa conta com a participação de minha cunhada, moradora na comunidade desde sua adolescência. A roda de ba-te-papo entre nós três é regada a café e cercada pelo som de um bando de curicas pousada em um pé de anajá.

Entre um acampamento e um assentamento existem muitas diferenças no jeito das famílias se organizarem. Dependendo do contexto político em que está inserido na luta ou da correlação das forças políticas que comandam a região, estes tipos de agrupamen-to humano podem ou não ter um resultado pací�co. Há momentos em que os acampamentos também usam da força para se proteger e conquistar seus objetivos, no caso a terra, o seu real motivo de luta.

O assentamento Vila Conceição I e II passou por expe-riências não muito boas ao montar barracos, por ser o pioneiro na região nessa prática. Poucas ocupações da região tocantina tiveram situações tão complicadas como os trabalhadores rurais desse assentamento. É como se expressam, com nostalgia, todos com quem conversei para a execução de minha pesquisa. Exem-plo disso é o seu João Fotógrafo, que desabafa sempre com muita saudade dos momentos de união entre os acampados.

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— Zé Luís, aqui não está mais como era. Hoje está todo mundo desunido.

Seus olhos brilham no exato instante em que pronuncia estas palavras. A emoção vem da lembrança de um tempo que não voltará mais. Olhando o milho que começa a pendoar na roça próxima, eu penso que se aquelas 254 famílias não tivessem tido ousadia de lutar, há mais de duas décadas, hoje não estaríamos vendo aquele plantio.

— Zé Luís, hoje o povo está todo desunido, ninguém quer mais saber de ir para as reuniões.

— É uma consequência dos tempos, seu João. As lutas pas-sam a ser outras.

— Outro dia os samangos pegaram aqui um cara que matou outro a machadada no Tocantins.

— É eu vi. Eu estava aqui nesse dia e mostra como vocês se juntam quando é preciso.

— O assentamento recebe in°uência das grandes cidades, por meio da televisão, das igrejas evangélicas que não comungam dos mesmos ideais.

Agora sai um pouco de lado o repórter Zé Luís e entra o ser humano que também se emociona, que está muito longe da objetividade. Dou uma parada no assunto e tento explicar para ele, a título de consolação, alguns motivos para estas mudanças aconte-cerem em um assentamento. Não sei se acerto com minha teoria de “sociólogo de meia-tigela”, mas até que ele muda um pouco.

— Tem muita gente aqui que não sabe o que é um buso. Zé Luís, você sabe o que é um buso?

Eu, me ajeitando na cadeira de rodas e continuando minha admiração com a plantação de milho de nossa frente, sorrio para seu João e respondo:

— Sei sim, claro. Não é aquele instrumento feito de chifre de boi, que se usa em um acampamento para convocar uma as-sembleia?

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— É isso mesmo, Zé Luís. Hoje se tivesse um daqueles por aqui, o tocador ia fazer calos nos beiços e não apareceria ninguém para as reuniões.

Um dos líderes histórico da Vila Conceição I e II parece frustrado com a realidade dos assentamentos, porque este não é um fenômeno especí�co do seu. João se preocupa com o andar da história e as divisões políticas no interior da própria comunidade.

Todo acampamento tem seu próprio jeito de se organizar, diferentemente de uma comunidade qualquer ou de um bairro comum da cidade. Os assentamentos tem particularidades e de-monstram objetivos claros em sua luta especí�ca pela terra. Com isso, as formas de organização se tornam muito mais atraentes e consistentes para a vida em resistência.

— Depois que se conquistam seus objetivos, �ca cada um por si, o individualismo passa a ter presença constante na vida de uma comunidade como a nossa, Zé Luís.

— Até parece que o sonho já se realizou — ele continua — E eu digo que não, pois a reforma agrária é muito mais complexa do que se imagina. É preciso que se tenha um grande projeto de políticas pú-blicas em vista, sobretudo com a ideia de se fazer com que a juventude permaneça na comunidade. E aqui a juventude está indo embora para a cidade grande. Vai estudar e não volta mais.

João acaba sendo muito sincero em seu ponto de vista. Ele diz que aquela forma de organização só funcionou no período de acampamento, quando todos se comportavam como “um por todos e todos por um”, pegando aqui emprestado o lema-clichê dos “Três Mosqueteiros”.

Na história real da luta pela terra, a visão do pioneiro das ocu-pações em Imperatriz é que as formas clássicas de organização em um assentamento não funcionam mais. Pelo menos quando os obje-tivos mudam ou nas ocasiões em que os moradores acham que a luta chegou ao �m, se conformam com a situação. Minha re°exão acom-panha as palavras saudosas deste militante que está à minha frente.

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— Zé Luís, aqui hoje está assim: um puxa para um lado e outro puxa para outro. Sem contar que hoje, quando é no período de eleições, aí é que a divisão se acirra. É um que traz seu candidato de fora, outro que é candidato do partido diferente...

Eu o interrompo pedindo para que ele apanhe meu isqueiro que está na mesa da cozinha da casa de Gonsalina e Reginaldo. Quando ele volta e eu acendo meu cigarro e ele acrescenta:

— Zé Luís, aqui é um lugar muito bom, em minha opinião, apesar dessas di�culdades que mencionei e de algumas divergên-cias entre a gente. Hoje muita gente vive muito melhor e se não fosse esta vida aqui do assentamento, muitos �lhos dessas famílias estariam no crime.

Ele acaba se rendendo por alguns instantes diante de vários aspectos positivos dos assentamentos:

— Por exemplo, eu tenho casa e uma terrinha. E assim é muita gente que mora aqui. Se não fosse a Vila Conceição I e II ou nossa história, muita gente não tinha como viver hoje nesse mundo desigual e muito competitivo da cidade.

Seu João se levanta e diz que precisa ir para casa, tem umas coisas para fazer lá. Só me espera terminar de gravar, salvar e de-pois de tudo, agradeço. Após tantas constatações �co imaginando a forma de organização de um acampamento no Maranhão, há 25 anos. Seus grupos de trabalho ou brigadas como se chamam no MST, ou as subdivisões dos setores que merecem uma maior atenção por parte do acampamento, como a saúde, a educação, a segurança e a infraestrutura.

Para todos esses ramos é preciso ter um grupo responsável. Como em um acampamento o poder público não está presente ainda, assumindo suas responsabilidades, essas equipes seguem em busca de apoio junto a parceiros não-governamentais.

Recordo também do que me disse o padre Nonato. Na con-dição de pároco do povoado de Cidelândia e coordenador da CPT na época, ele tinha como tarefa organizar campanhas de alimentos

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em outras paróquias e entidades internacionais, que também da-vam suporte aos acampados.

Com certeza este tipo de organização não dá mais certo hoje porque, há duas décadas e meia, suas articulações eram mais emer-genciais. Seu João �ca triste com a situação atual, é uma evolução quase natural de um movimento político depois de suas conquistas, caso da história do assentamento. Hoje por exemplo, a comunidade conta com transporte coletivo para o centro de Imperatriz, suas ruas são pavimentadas com bloquetes e a maior parte das conquis-tas parece ter se consumado.

Mesmo sabendo que alguns pensam que não há mais mo-tivos para se continuar a luta, o que era mais forte e os unia como guerreiros era a busca pela terra. Hoje cada assentado, guardadas as proporções e ressaltadas as diferenças, tem o seu pedaço para com-bater a fome e viver melhor. Diante destes aparentes benefícios, muitos pensam que a luta acabou.

É necessário, agora, conquistar o que falta, como �cou claro na fala de João. Um projeto de desenvolvimento para a comunidade segurar a juventude em sua localidade. E políticas públicas, para estimular a vida da comunidade mais ainda. Os caminhos para es-ses sonhos é que causam as atuais divergências políticas. Como ele mesmo disse:

— Hoje um grupo defende um ponto de vista, outro tem uma opinião própria e quase não se convergem.

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Trabalho conjunto dos assentados garantiu crescimento das vilas

Sedes da antiga fazenda Itacira, casas simbolizam passado de luta ferrenha

Primeiros anos depois da terra conquistada Arq

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Reunião da paróquia de Coquelândia para fundação da Casa Familiar Rural

Horta comunitária é meio de sustento para várias famílias

Igreja Católica em dia de missa: religiosidade tem forte presença

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Arquivo do assentamento

Manoel da Conceição: “Fomos exemplos de que é possível lutar por reforma agrária”

Maria Querubina: “Hoje temos mais mulheres filiadas ao sindicato do que homens”

Chico Barracão: “Não tem mais jeito para nós, pequenos”

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Luís Preto: presença essencial na luta histórica e no cotidiano de uma vila com novas influências

Maria da Penha diretora da escola: “São poucas crianças no assentamento”

João Fotógrafo: “Se não fosse a Vila Conceição muita gente não tinha como viver hoje”

Dona Mariona: quintal bom para conversas

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Concorrência entre os 13 bares nas duas vilas parece amistosa

Crianças ainda brincam como antigamente e sonham, em seus desenhos, com outras realidades

Uma das ruas da Vila Conceição II: como será no futuro próximo?

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Igreja Católica da Vila Conceição II: movimentos religiosos foram essenciais na formação política das lideranças

Modelo de casa de barro coberta de palha é o mais antigo do assentamento

Sede da associação onde acontece a festa anual de aniversário

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Crianças jogando peteca (bola de gude): resquícios de uma infância inocente

Tamires Pereira

3Cotidiano, casas brancas

e juventude de fé

Na área original da fazenda Itacira existiam duas ca-sas que funcionavam como sedes. É uma marca das ocupações de sem-terras tentar conservar os bens que existem em uma fazenda como símbolos das

conquistas. Essas “heranças” passam a ser de todos que ajudaram na luta e se sentem parte da história. Patrimônios assim não se dividem. Geralmente esses espólios nunca são passados para as mãos de alguém individualmente. A comunidade cuida ou deixa intacto, porque aquele espaço ou objetos estão marcados pelos traços da história de luta.

A Vila Conceição preservou por muito tempo esses dois bens que foram conquistados junto com a terra. Porém, a casa branca situada na entrada do assentamento pela BR-010, hoje não está mais no domínio dos assentados. Neste caso ela fugiu à regra patrimonial do movimento. Hoje o senhor Luís Avelino, que é um dos moradores antigos, porém não participante da ocu-pação, é quem mora e cuida da propriedade.

Por cinco anos o local foi utilizado como escola de for-mação política de seus militantes novos e também foi sede de eventos do próprio movimento, como os destinados a estudos da luta política. Há três anos, aconteceu ali um dos módulos do “Curso Prolongado”, assim chamado porque o programa tinha a

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duração de três meses intensivos. A formação era indicada para os assentados ou seus �lhos, moradores dos estados do Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins, que pretendiam se preparar para seguir na própria organização.

Os módulos eram coordenados pelo setor de formação do próprio movimento. No curso, a militância, além de estudar os clássicos da teoria política, fazia análises de conjuntura buscando compreender de forma global as questões voltadas para o socia-lismo e a reforma agrária. Para os que não eram alfabetizados, um dos períodos era dedicado ao aprendizado das letras.

O estudo é sempre tratado com muita importância pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terras. A comunidade do lugar também se mostrava articulada com o evento, assumindo algumas responsabilidades, por exemplo, ceder suas casas como alojamento ou “adotando meninos e meninas” de outros lugares por três meses, que é o tempo de duração das formações.

Neste período, tudo é organizado para que não se esta-beleçam che�as formais na estrutura pedagógica, mas, sim uma coordenação composta, também, por estudantes em representa-ções dos núcleos de bases, uma característica de organicidade do MST. Além da coordenação político-pedagógica, geralmente são os integrantes do setor de formação dos estados que fazem parte dos módulos.

— É muito bom que eventos como esse aconteçam em nos-sa comunidade. Lá em casa mesmo, �caram dois meninos do esta-do do Pará. — apóia seu Chico Barracão.

No assentamento também são realizados trabalhos comu-nitários com as crianças da escola, mutirões de limpeza e exibidos �lmes de qualidade para a comunidade. Iane Costa foi por muito tempo do setor de formação do MST e sabe explicar melhor:

— A comunidade é sempre consultada antes de um trabalho desses. Se não concordar, a atividade não acontece. É preciso que seja em conjunto, é um mutirão.

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Eleonildes Pinho é uma jovem de 25 anos que tem lide-rança no sangue. Sobrinha de um outro líder do assentamento Califórnia, foi convidada a participar do curso e gostou muito, porque conseguiu colocar na prática seu talento: a representação teatral.

Eleonildes fazia parte do setor de cultura do MST no Ma-ranhão, mas hoje não está mais integrando a militância. Nós es-tamos conversando em frente à sua casa. Não há o testemunho de nenhum pé de mangas, mas desta vez de uma bela e ensombreada copa de um jambo. Falamos a respeito da sensação de estudar em uma propriedade que é histórica para a Vila Conceição I e II.

— Quando chegamos à Casa Branca, fomos logo dar uma limpeza geral porque seria lá o nosso lugar de estudo por três meses.

Como ela mora no assentamento Califórnia, que está pró-ximo da Vila Conceição I e II, foi uma das que recebeu a tarefa de ir à frente, dois ou três dias antes do curso iniciar, para organizar a tal faxina geral.

— Fomos nós, que moramos mais próximos do lugar, quem limpamos. Como moro no Califórnia, tive que ir junto com o pes-soal do assentamento Nova Conquista e com alguns moradores da comunidade local para executarmos a tarefa.

Ela é uma menina empolgada, tem uma fala muito rápida e tive que gravar com meu celular.

— Para nós foi como uma grande mística estudar em um lugar que foi conquistado com muita luta. Teve um pessoal do Pará que estava alojado na casa e tiveram que mudar. Eles �caram com medo de �car na casa, tinham medo de assombração. Nós éramos uns 80 estudantes.

Ela faz esse comentário rindo, enquanto enrola o seu cabelo com uma de minhas canetas.

— Como estava a casa por dentro?— Quando nós chegamos a casa estava com alguns dias que

tinha sido pintada. Era uma cor branca, eu nem observei direito,

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talvez fosse apenas cal. Agora, uns detalhes tinham sido preserva-dos. Havia umas marcas antigas de tiros por dentro.

— Algumas pessoas mais velhas do assentamento dizem que a casa foi um local em que se matavam trabalhadores ou de-safetos de quem era responsável pela área. Isso na época da Itacira — comento.

Porém, esse era assunto que mesmo sem pesquisar eu par-ticularmente já tinha ouvido falar e quem me con�rmou foi o Neudson Claudino, no dia em que nos encontramos.

A casa branca da vila principal, onde os trabalhadores �ca-ram quando ocuparam a fazenda, continua do mesmo jeito de anos atrás. Mantém ainda os traços do tempo, que lhe relegaram certo esquecimento. Está de pé e ninguém toca ou faz qualquer coisa, uma mudança sequer na sua estrutura. A comunidade sabe que, mesmo sem um cuidado maior, ela é um patrimônio coletivo e histórico que permanece de todos que se sentem personagens desses 25 anos.

Dona Querubina disse que a propriedade chegou a ser cedida para uma família morar por pouco tempo, mas logo em seguida a co-munidade pediu de volta. Era preciso que a Casa Branca continuasse a compor uma paisagem de saudades ou de esquecimentos. Saudades porque quando os lavradores moradores dali, indo ou voltando de suas roças, a miram, vem em suas mentes instantes de boas recorda-ções. Esquecimentos, porque gostariam que outra parte mais triste dessas lembranças fosse apagada de suas memórias.

Apesar de ter ido muitas vezes à Vila Conceição I nunca foi possível apreciar de perto esses monumentos, que são simples, mas de grande valor para os seus 137 assentados. É que as duas casas brancas são de difícil acesso para um cadeirante. Hoje, em volta do local, o mato está muito alto e de longe só é possível ver um pouco das suas paredes brancas e o telhado marcado da chuva, sol e o vento.

A única forma que tive para conhecê-la foi pedindo à mi-nha noiva-assistente que fosse com um de nossos celulares para

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fotografar e depois me mostrar. Alguns buracos que aparecem nas fotos podem representar, talvez, as marcas da resistência. Poucos moradores sabem ou têm a consciência da importância daquelas casas para as novas gerações. Um dia poderão conhecer este retra-to vivo sem o aprisionamento da luz, como na fotogra�a.

Com um zelo maior, ela talvez pudesse deixar de ser a casa “velha”, para tornar-se um símbolo com mais presença de seu passado. Mas, este ideal ainda parece estar distante de uma parte considerável da juventude ou das crianças, a�nal são estes que um dia terão em suas mãos a história do assentamento Vila Conceição I e II.

Força jovem

No quintal da moradora dona Mariona, me preparo para uma roda de conversa com um grupo de jovens evangélicos do as-sentamento. Antes da reunião começar, converso com Ian, o �lho do dono da casa, sobre o papel das religiões e é possível perceber como a fé religiosa faz parte da sua vida.

É domingo e aquele jovem manifesta um comportamento diferente do demonstrado há alguns dias, quando papeamos com outros meninos da vilinha diante de algumas cervejas. Ian me fala dos seus sonhos e das di�culdades de realizá-los, residindo na vila. E ainda sobre a juventude do assentamento de um modo mais geral. Mas claro, muito curioso, me questiona sobre religiões.

— Você tem religião?— Sou católico, mas faz uns tempos que não vou a uma

missa — respondo, para emendar outra pergunta — E você, é evangélico há muito tempo?

— Desde os 12 anos de idade. Ian ainda insiste:— Você acredita em Deus?— Acredito. Não do jeito que a maioria do povo brasileiro

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acredita. Fui seminarista por quatro anos, eu queria muito ser um padre. Hoje tenho críticas às religiões, inclusive à minha — esclareço.

E assim conversamos francamente enquanto os outros co-meçam a chegar. Aquele diálogo serve para me aproximar mais do garoto e dos outros que se aproximam. Ian é um menino bran-co, de olhos castanhos claros, sempre com um sorriso no rosto, animado com as atividades de sua igreja. Também está satisfeito com a relação mantida com seus colegas de congregação, brincan-do e zoando, mas, como ele mesmo deixa claro:

— Sempre com Jesus Cristo no coração.Neste domingo todos aqueles garotos e garotas evangélicos

estão em êxtase, pois acabaram de sair do culto dominical, se pre-param para o almoço e logo voltarão a “servir Jesus” a partir das duas horas da tarde, no ensaio disciplinado do coral. Na ocasião, irão preparar as coreogra�as que serão apresentadas à noite, no culto principal.

Estamos na casa de seu Marciel, um dos professores da escola Nossa Senhora da Conceição, que se mudou para aquela zona rural por ter passado no concurso de professor fundamental. No início, ele trabalhou um tempo aqui mesmo tendo que morar em Imperatriz:

— Estava difícil de ir e voltar todos os dias para este serviço, então tive que me mudar de vez, trazendo comigo minha família — relata, sorridente, o fervoroso praticante da Assembleia de Deus.

Os preceitos religiosos também são compartilhados por sua esposa, dona Edinelsa de Oliveira Santos e pelos �lhos, Bis-mark Marciel de Oliveira, o mais velho, que é estudante de biolo-gia na UEMA de Imperatriz, Ian dos Santos Oliveira e Iany dos Santos Oliveira, que demonstravam felicidade na expectativa de nossa conversa.

Agora estão todos em forma de círculo para um debate que lhes deixa um teor de curiosidade. Imaginam eles talvez: “o que um cara como eu quer conversar com eles?” Percebendo a ansiedade

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geral, o primeiro questionamento é saber se eles conhecem a história da Vila Conceição I e II. Apenas um dos presentes na reunião sabe, ainda que super�cialmente, as origens da comunidade em que todos moram. Ele é �lho de um dos ocupantes e mesmo assim não é ca-paz de dizer, por exemplo, porque o assentamento tem esse nome. Na conversa com os jovens �ca claro que seus sonhos são estudar e trabalhar sem ter que ir para um lugar distante de seus parentes e amigos.

— Eu não gosto muito daqui porque faltam as outras coisas que gente precisa, como por exemplo, farmácia, outras opções de la-zer que não sejam os bares, além de mais emprego — manifestou-se Maria das Neves, uma adolescente de 16 anos, neta de assentada.

Ela é um dos jovens que ainda precisa estudar no assenta-mento, pois só seguiu até a oitava série. Do nono ano em diante terá que continuar os estudos em Imperatriz. Nesse momento também se dedica à igreja. Afrodescendente, dona de uma bela voz, Maria ajuda sua mãe nas tarefas de casa e auxilia o Bismark na direção da mocidade da igreja. É animada e busca como os outros, a realiza-ção desses sonhos. Para ela, assim como a maioria dos presentes da reunião, as casas brancas não tem simbologia:

— O símbolo maior é Jesus Cristo. E acho que não temos que trazer um bem material como um símbolo.

Maria não conhece a história dessas casas, portanto não comunga do mesmo signi�cado que as lideranças mais velhas nutrem por essas propriedades. Em especial a que tem as marcas da resistência, mais próxima deles, que está na Vila Conceição I.

Ian, com um violão na mão, já esboça alguns acordes. A reunião é descontraída, pois é composta por pessoas que estão mudando de fase e cujos impulsos juvenis resistem mesmo diante dos dogmas religiosos. Ian ensaia solos no violão, baixinho, para não atrapalhar a conversa. Mas, mantém-se atento ao desenrolar do papo, tanto que entra na conversa para dar sua opinião sobre a casa branca mais próxima.

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— Eu não conheço a história desta casa, só sei que ela está abandonada e tomada pelo mato.

— Mas, parece que houve mortes nela — interrompe o jovem mais velho do grupo, que é o único �lho de assentado, Paulo de Assis.

Mesmo com as suas origens, não sabe esmiuçar os detalhes que tornaram a casa um símbolo tão precioso para as lideranças mais velhas.

— O que parece é que a Casa Branca é um assunto enco-berto de tabus. Muita gente prefere não falar e, assim, a infor-mação não chegou completa a nós mais jovens e àqueles que são recém-chegados no assentamento — completou Paulo.

Os jovens não entendem o real signi�cado da Casa Branca, mas defendem mudanças no assentamento. Assim, sempre reto-mam a conversa para o rumo da necessidade do poder público construir praças e outras opções de lazer na vila.

— Os jovens �cam de fora das discussões do próprio as-sentamento. Não que sejamos proibidos de participar, mas preci-samos de mais espaços.

Quem faz este discurso é James de Sousa Mendes, que até então não tinha se pronunciado. É morador do assentamento e mantém uma pequena sorveteria, cuja aparência é de uma sim-ples casa, apenas com uma calçada larga para que seus visitantes possam �car mais à vontade nos momento em que se pretende distrair das rotinas ou namorar. James continua a manifestar sua opinião com seu jeito de jovem que está com todo o pique e que busca questionar algumas situações:

— Acho, ainda, que deveria ter um posto policial. Mesmo que não se tenha registrado violência na comunidade, porém pre-cisamos. Hoje não está bom para nós jovens, para trabalhar ou estudar precisamos sair do assentamento.

A casa onde ocorre o encontro é de tijolos, ainda sem reboco ou qualquer pintura, com o piso de “cimento grosso”, como se re-

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fere aqui na região quando se pretende colocar azulejos, mas ainda se espera a oportunidade ou dinheiro aparecer para concluir a obra.

Fica nos fundos do quintal de dona Mariona, situada, por sua vez, na esquina das duas principais ruas da comunidade, a Pa-dre Josimo e a 16 de Julho. Aqui não é onde “o vento faz a curva”, mas é o local em que o ônibus manobra, preparando o retorno para cidade.

Um local de muito barulho nos momentos em que o assen-tamento está em seu horário de pico. Sempre à tardinha, quando todos vêm da roça ou qualquer horário de domingo, pois �ca no ca-minho do povoado Olho d’Água. A Vila Conceição recebe muitos jovens de lá para se divertirem na comunidade e vice-versa.

Domingo em comunidade

A casa onde estava �ca em frente ao bar de seu Valdemir, fa-zendo um “X” com a de seu Amadeu, este um vendedor de lanches, com sua característica principal de ser sisudo. Amadeu oferece café da manhã para quem está indo muito cedo para Imperatriz e ali é o local certo de apreciar bolos ou cuscuz. Trata-se de um bom ponto de vendas, porque é também o local onde o motorista do ônibus estaciona por 20 minutos para descansar. Lá se presencia cenas como esta, que aconteceu bem mais cedo, antes do encontro com a juventude:

Chega um senhor, meio barrigudo, de aproximadamente uns 70 anos de idade, negro, usando um chapéu de palhas novo, com uma roupa daquelas que se chama de “domingueira” e acompanha-do de uma senhora também na mesma faixa etária, supostamente sua esposa. Como é domingo, também se pode conjecturar que eles estejam indo à missa na cidade. Depois de sentar, à espera da saída do transporte, ele diz de forma brincalhona a seu Amadeu:

— Ei velho feio, traz para mim e para ela um copo de café com leite e dois bolos de milho!

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Com a cara fechada, não que não tenha gostado das pala-vras do freguês, seu Amadeu prepara o pedido calado e só respon-de alguma coisa, sorrindo discretamente, quando o entrega:

— Pega, velho nojento. Veja se desta vez não se esqueça de pagar!

— Está me chamando de velhaco?— E não é?— Sou o seu melhor freguês.E a cena se encerra quando Amadeu deixa o cliente de lado

para atender outro, que desta vez pede suco de laranja. Alguns tipos de sucos que ele vende ali são de polpa das frutas de suas roças mesmo, como as de caju, acerola, goiaba e abacaxi. O lanche de seu Amadeu funciona a qualquer hora do dia, mas o movi-mento principal se concentra no período matutino. Ele serve um pouco de tudo, desde os bolos mais comuns como os de milho e macaxeira, cuscuz de arroz, de milho, café com leite, até sucos e refrigerantes, salgados, coxinhas e pastéis.

Após sair da reunião com os jovens evangélicos, continuo com a observação do cotidiano do assentamento, agora em um bar. Em uma comunidade pequena como esta, os bares funcio-nam quase com uma “central de informações”. O boato não é especí�co desses estabelecimentos, existem as conversas de calça-das, de praças e, para os mais modernos, as redes sociais. Só que neste caso, estou no bar de seu Valdemir.

No domingo, as opções para se divertir são os passeios aos açudes e riachos ou frequentar os bares. Percebo que uma parte da juventude da comunidade circula em suas motos em busca de aventuras ou algum tipo de lazer. É possível ouvir o barulho dos veículos correndo para cima e para baixo, ali mesmo, no cruza-mento das ruas 16 de Julho com a Padre Josimo.

Estava marcado para hoje um jogo entre os times femini-nos do assentamento e do Olho D’Água, o povoado mais próxi-mo do lugar. Como o evento foi cancelado resta como diversão

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para esses jovens o banho em um dos riachos. Infelizmente, não foi possível saber em qual deles será a diversão, se o do seu Chico Barracão ou do seu Gonçalo. Não podem faltar, claro, namoros e bebidas.

Na verdade esses nomes de riachos são referências por con-ta de estarem situados nas propriedades desses assentados. O do Chico Barracão é logo na entrada e de seu Gonçalo, na metade da estrada de terra, quando se entra para a esquerda e caminha-se por uns dois quilômetros. São nesses lugares que se completa a diversão da juventude ou se pensa em alguma alternativa de lazer dominical, como as participações nos torneios de futebol ou os passeios mais distantes, até as praias do rio Tocantins.

O boteco onde estou observando todos os detalhes abre ao meio-dia. É quando começam a chegar os brincantes de �m de semana para aquela cervejada, um tira-gosto e alguns xavecos com as mulheres que sempre aparecem. Elas chegam aos pou-cos para animar aqueles que estão sem companhia. Mesmo que tenham outros interesses além da diversão com os amigos, elas sempre deixam o ambiente do bar do seu Valdemir mais alegre. Não me interpretem mal, é que festa ou bar sem um “rabo de saia” para embelezar o salão é sem graça.

O bar é apenas uma varanda coberta com telhas de amianto pintadas de branco para suavizar o calor do sol. A varanda tem um perímetro de uns dez metros de cada lado, com o botequim no centro. É de lá que saem as geladas para refrescar a freguesia.

Seu Valdemir localizou seu bar na mesma esquina da casa em que ocorreu a reunião com os jovens evangélicos, naquela ma-nhã. O local foi inaugurado há pouco tempo e traz, em seu estilo de decoração, as cores de uma das indústrias de cerveja do país, deixando o ambiente um pouco mais “quente”, no sentido mais saliente que se possa pensar.

Mas quente, literalmente, vai �car logo que o sol pegar todos ali, a não ser aqueles que estão na única sombra do estabelecimento.

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E depois é só mandar descer cerveja nas mesas que �cam em volta da também única sinuca do bar.

Alguns buscam se esconder do sol atrás daquele pequeno cubículo, que possui uma janela que serve de balcão e uma portinha que dá acesso ao espaço do congelador, onde se guardam os engra-dados e outras coisas que só o dono pode dizer. E tem aqueles que preferem a branquinha e o cigarro de fumo no papel de caderno.

É comum a abordagem de uma dona bonita, elegante, para pedir um cigarro de marca a um cavalheiro charmoso:

— Ei, me dá um pouco de seu fumo aí! Depois saem para um determinado lugar para torcer um

porronca ou bolodoro. E de longe se vê aquela baforada e a fuma-ça subindo. Para aqueles que gostam da cachaça da terra, a do bar de seu “Cravinho” é a melhor.

— Ei, quer uma cerveja ou quer beber com a gente? — fala comigo um jovem de uns 30 anos de idade, com um apelido curioso: Mansão.

Ele está curando a ressaca da seresta da noite anterior. Aquele é justamento o momento de quem foi ao local relatar a quantidade de cerveja que tomou na madrugada e falar sobre as donas que “pegou” ou não. Ali, no bar de seu Valdemir, eu só ob-servo aquelas conversas apimentadas pelo sacolejo do rebolado das mulheres presentes. No ambiente, três mesas, sendo duas de-las para a clientela e a terceira de sinuca, onde duas duplas estão disputando fervorosamente.

A partida segue há duas horas e internamente eu torço por uma das duplas, por serem mais próximos. A modalidade que jo-gam é a mais comum na região: as duplas escolhem entre as bolas pares ou ímpares e quem derrubar todas do seu grupo primeiro, ganha o jogo. Algumas vezes observo que as duplas casam notas de dois, cinco, dez reais e só aí percebo que a partida não é somen-te amistosa. O certo nessa história é que não verei o �nal da pe-leja, pois tenho que me preparar para, logo mais à noite, conhecer

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o culto evangélico da Assembleia de Deus, que iniciará às 19h. E ainda tem a pelada sagrada do domingo no futebol.

Neste momento já é possível acompanhar uma procissão de jovens e crianças rumando para o campo. Até os que são “cren-tes” passam por lá para apreciar o futebol dos craques sem clubes. Ao redor do gramado verde do campo da vila todos se acomodam em banquinhos, estrutura muito diferente das arquibancadas dos grandes estádios.

Estão lá as mulheres e namoradas dos jogadores que, divi-didos entre os “sem camisa” e os “com camisa”, se arrebentam por uma bola. De repente, a marcação de um escanteio pelo árbitro da partida torna-se motivo de grande reclamação por parte de alguns torcedores e jogadores que sofreram a penalidade:

— Ei, juiz ladrão, isso não foi escanteio! Ei juiz, a bola não bateu no zagueiro!

O juiz da partida só olha para este torcedor como quem diz: “Calma esta partida, não vale a decisão do Brasileirão, é só uma brincadeira de amigos!” E segue realizando seu trabalho majestoso. Ele é a autoridade dentro daquele campo, onde a regra principal é a velha fórmula das peladas no estado do Maranhão: “dez ou dois”. Ou seja, o time que �zer dois gols vence o jogo. Permanecendo o empate em dez minutos de bola rolando, decide-se a disputa em cobranças de pênaltis, com uma melhor de três cobranças.

A cena de lazer dominical se completa com crianças que andam de bicicleta na beira do campo, enquanto outras brincam com bolas na lateral de maneira que não atrapalhe a pelada princi-pal. Com o entardecer é a escuridão que começa a tomar conta do campo e as pessoas principiam o retorno às suas casas, pois ainda tem que tomar banho, jantar e depois sair para igreja, católica ou evangélica. Mas, aqueles que gostam da birita já saem do campo direto para o bar de seu Antônio, que está logo ali em frente ao gramado, já com jeito de que vai fechar. Como é um domingo, os consumidores neste horário já se preservam para o dia seguinte,

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segunda de trabalho. Além disso, a concorrência de bares é grande e a quantidade de consumidores pequena.

Mais tarde, na igreja evangélica, as pessoas chegam aos pou-cos e cumprimentam-se com aperto de mãos. É o momento de todos celebrarem ao Senhor e a alegria está estampada no rosto desses irmãos, que tem como único sentido de suas vidas a adora-ção e a pregação da palavra de Deus. As crianças também fazem parte deste universo da glori�cação e do louvor. Enquanto se espera o horário de iniciar o culto, uma garota me chama atenção. Diana, 12 anos, saúda a todos que chegam com simpatia.

Logo percebo que ela tem uma de�ciência intelectual. O seu jeito extrovertido não esconde as di�culdades na fala e quando ela procura se interagir com outros de sua idade é sempre deixada de lado. No culto, enquanto os outros garotos estão integrados para as atividades de coreogra�as, a menina permanece só, no canto direito de quem entra na igreja, bem organizada e limpa, e que possui 12 metros de comprimento por oito de largura.

Por dentro, a cor é a da paz e da pureza: a branca. Por fora, prevalece a escuridão, encandeada com as luzes fracas da cumeeira e a do poste, que se localiza na frente do oitão do templo. Ao fundo, uma grande cortina grená, com o pastor e seus assessores congre-gados, três deles da própria vila e um visitante da cidade de São Francisco do Brejão. Suas funções ali são de fazer com que os �éis, por meio da empolgação, entrem em sintonia com suas pregações. É o que se percebe nas respostas dos �éis a cada palavra exclamada por suas lideranças.

— Amém?— Amém!— Ô gloria!— Aleluia, Senhor!E outros, mais ao fundo, respondem com os olhos fortemen-

te fechados, as mãos para cima, ou só com uma delas, pois às vezes estão com a Bíblia na outra:

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— Ô glória!— Glória Senhor! — grita um senhor de uns 60 anos, que

está atrás de mim. E todos sempre respondem a mesma frase de forma sugerida

pelo pastor. Em seu cantinho, concentrada, a pequena Diana está com seus olhinhos brilhando na espera da vinda do Jesus, como garante a Bíblia na interpretação do pastor. O tema da pregação daquela noite é a salvação, explicitada na aceitação de Jesus e dos seus ensinamentos.

Na aclamação da última coreogra�a, lá no púlpito, de olhos fechados e não escondendo o êxtase de �el, está um dos assessores do pastor naquela noite e dirigente da mocidade, o Bismark. Ele foi um dos jovens que participou da reunião da manhã e que tinha me ajudado com a resposta de alguns questionamentos sobre o assen-tamento Vila Conceição.

Bismark responde à coreogra�a dos adolescentes com um vibrante grito: “Glória!”. É o �m da apresentação de seus dirigi-dos, entre os quais outros jovens, como Maria das Neves e a Iane, irmã de Bismark. Todos dirigem aquelas respostas de “Glórias” e “Améns” olhando para mim, sentado ao fundo esquerdo de quem entra na igreja. Talvez tenham a esperança de mais uma alma salva.

Depois é hora de sossegar ou mesmo dormir, mesmo sendo domingo, 21 horas. Porém, no caminho dos membros da comunida-de para as suas casas ainda se encontram outros sentados nas portas e batendo papo. Alguns já estão com as suas portas fechadas na certeza de que o dia seguinte é de árdua labuta. Entretanto, não muito longe dali, ainda se escuta uma música brega que, com certeza, faz alguém chorar de saudades de algum amor distante.

Esperança: bandeira que enrola os pequenos

Visito em uma segunda-feira a Escola Municipal Nossa Se-nhora da Conceição, onde estudam 106 crianças do primeiro ao

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oitavo ano. Quem está no nono ano ou ensino médio precisa se deslocar para Imperatriz, seguindo todos os dias no ônibus esco-lar, que sai sempre ao meio-dia.

A escola tem seu espaço dividido em cinco salas de aula, formando um “L” de frente para sua entrada, �cando à esquerda a secretaria, a sala dos professores, outra de vídeo e a cantina, que é o espaço mais querido dos alunos entre as 9h30 às 10 horas. Es-ses são os horários sagrados de confraternização entre as turmas compostas, em sua maioria, por garotos entre 6 e 11 anos.

Logo aparece um menino, que olha meio por baixo, um pouco descon�ado, não �cando muito à vontade comigo, porém exibindo logo de cara o que ele gosta de fazer:

— Ei, olhe este desenho que eu �z!— Qual é seu nome?— Glaydson.— Glaydson de que, rapaz?— Glaydson Rodrigo Barros.— Você tem quantos anos?— Eu tenho dez anos.Pego seus desenhos em minhas mãos e observo re°etindo so-

bre os caminhos que levaram este garoto, que vive em uma comuni-dade com esta formação da luta pela terra, a fazer um desenho como este no papel. Ele traçou uma pickap em formato de som-automoti-vo, com a carroceria levantada, simbolizando grande festa.

Talvez não seja o caso de �car tão alarmado com aquela pro-pícia futura arte se por acaso ele tivesse desenhado a imagem de uma roça ou de um único animal, cavalo ou boi, já que reside em um assentamento, lugar onde nasceu e está crescendo. O garoto elaborou uma imagem de algo que não tem nada a ver com o seu cotidiano.

— Gladyson, foi você mesmo quem fez o desenho?Com um sorriso meio envergonhado, achando que eu fosse

repreendê-lo, apoiado em uma das pernas e com a mão nos qua-dris, me responde:

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— Sim, fui eu.— Estão bonitos.Ele sorri mais à vontade e com seu jeito matuto, sai cor-

rendo para buscar outros desenhos, todos no mesmo estilo. Talvez esses trabalhos um dia se tornem alguma obra de arte. Agora ele retorna com mais três �guras feitas por ele, inclusive assinadas nos cantos direitos inferiores das folhas de papel.

São outros carros de som, duas pikups e um fusca, todos coloridos para trazer a realidade das versões de som-automotivo. Desta vez ele não está mais só e, sim, com uma turma de colegas do grupo escolar. Todos querendo espiar e outros com um tanti-nho de inveja por eu ter achado os desenhos de Gladyson bonitos e curiosos.

— Por que você fez este tipo de desenho?— Não sei. Eu só �z.— Posso tirar fotos com meu celular?— Humrum!Ele só con�rma com um murmúrio e balança a cabeça po-

sitivamente. Depois que fotografo o desenho de uma forma que ele �que bem visível na telinha, ele sai correndo com sua obra de arte nas mãos, pulando de alegre como estivesse sido premiado. A meninada se afasta um pouco e cria-se um início de confusão en-tre dois deles. Não sei se é briga de verdade ou brincadeira, porém tenho logo a certeza de que nem tudo é só alegria. E os gritos dos “pestinhas” agora compõem um coro só, a�nado em um mantra um tanto perigoso:

— Briga, briga, briga, briga...Lá no meio do grupo de meninos e meninas está uma dupla

grudada um no colarinho do outro, já um pouco suados, às vezes rolando pelo chão, com �apos da grama do pátio da escola que tem um dos nomes de Nossa Senhora, o da Conceição. E prossegue a balbúrdia da hora sagrada para eles na escola, o recreio e que mui-tos, por castigo, tem medo de �car sem.

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— Briga, briga, briga, briga...— Briga, briga, briga, briga...Até que surge, apressada, de dentro da secretaria da escola

e falando sério com os meninos, a diretora daquela instituição, dona Maria da Penha. Ela vem ainda contida, não está nervosa, mas fala �rme:

— Parem com isso já! Venham os dois aqui! Estão querendo se mostrar?

Os dois garotos param quando ela adverte a primeira vez. Assustados e envergonhados, eles se aproximam da diretora, obede-cendo a seu chamado e enquanto isso os outros, que antes gritavam, saem um por um e devagarzinho. A diretora ainda ameaça:

— Se ainda brigarem vou chamar os pais de vocês. Vamos para a secretaria conversar.

E os algozes saem acompanhando dona Penha para conver-sarem melhor e em local mais apropriado do que em um pátio e na frente de um estranho como eu. Ali é possível olhar aqueles garotos sapecas, que diante de pessoas em situação física como a minha manifestam grande curiosidade. Como fazem todas as crianças, cercam minha cadeira de rodas, passam as mãos por ela, tentam me empurrar e olham meu pé direito, sempre com a pergunta clássica:

— Por quê seu pé é assim?”E eu me esforço para dar uma resposta certa àqueles que não

são repórteres, mas se mostram curiosos, como eu, com relação ao mundo deles. As respostas sempre são:

— Meu pé �cou assim porque não tomei vacina quando eu tinha que tomar.

Mas a resposta gera outras perguntas, como: — Por que você não tomou a vacina?Agora eu tenho que explicar direitinho, pois apesar deles es-

tarem bem atentos, alguns talvez não entendam: — É que eu morava no interior e na cidade em que eu resi-

dia não se ligava muito para as campanhas de vacinação.

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Ali mesmo, debaixo da mangueira que está no centro do pátio da escola de Nossa Senhora, junto da garotada, depois de presenciar um princípio de briga dos meninos e de tentar explicar porque meu pé direito é torto, assisto às brincadeiras deles por alguns minutos.

Uma delas é a popular “polícia e ladrão”, já bastante antiga. Outra, mais clássica, é a de pular corda, brincadeira que há um tempo pertencia ao universo exclusivo das meninas. Pelo menos neste dia estão todos misturados em um pula-pula, sincronizados com dois garotos que balançam a corda de nylon malhada, nas cores de uma cobra coral.

Alguns estão tão distraídos que nem merendaram. Outros brincaram tanto que tem que voltar para a sala de aula suados. Jailson de Oliveira, 11 anos, que balança a corda, diz, gritando e correndo em disparada ao seu parceiro:

— A corda pegou no pé dele!Se refere ao adversário, Joaquim Alves, de dez anos, que es-

tava pulando neste momento.— Bateu não, bateu não! — discorda �rmemente. O parceiro de Joaquim sai como quem quer levar a corda e

diz com a certeza de quem teve um gol justo anulado por um árbitro:— Triscou sim, no calcanhar dele.E assim continua a pequena teima. Na brincadeira não havia

ninguém que �zesse o papel de árbitro, apenas algumas possíveis testemunhas que aqui estão, como eu. Neste caso, suas opiniões valem muito para conter qualquer polêmica. Depois de alguns co-mentários dos garotos e garotas que assistiam a disputa de quem pulava por mais tempo, é dado “ganho de causa” para a dupla que pediu a falta e denunciou o triscão da corda de pular no pé do ad-versário. O acusado quase se encabula, mas aceita a decisão do júri sem autoridade e inesperado.

Porém, o apito �nal da disputa é o toque estrondoso da sire-ne da escola avisando que terminou o recreio. Esse som serve mui-

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tas vezes também como relógio para o cotidiano da vila. Como seu barulho alcança todo o assentamento, a sirene é um dos marcadores das horas do dia. O primeiro toque soa às 7h30, quando começam as aulas todos os dias. A segunda sirenada é às 9h, avisando aos alunos que está na hora do intervalo para a merenda. O terceiro é ao meio-dia, momento de encerrar as aulas do turno matutino.

À tarde, o horário das cornetadas começa às 13h, repete-se às 15h, anunciando o recreio vespertino e, consequentemente, às 15h30, seu término. Ainda soa mais uma vez depois no encerra-mento dos trabalhos, às 17h30. Assim, a sirene continua de segun-da à sexta, ordenando os horários para os interessados no funciona-mento da escola e também servindo de referência para aqueles que vivem o cotidiano do assentamento Vila Conceição I.

Geografia e cotidiano

A comunidade �ca praticamente vazia em dias de úteis. Os homens e algumas mulheres levantam cedo para irem ao trabalho, seja nas roças ou na cidade. Quem tem que seguir para longe às seis horas em ponto tem de estar na parada do ônibus, outro mar-cador do tempo no assentamento.

O bar de seu Luís Piauí não funciona direito nos dias de semana, só abre porque às vezes, de segundas às sextas-feiras, vira açougue, onde ele cuida e zela a carne que abastece a comunidade. Seu Luís em algumas ocasiões mata uma novilha de seu pequeno rebanho ou compra de quem tem para oferecer, depois faz o corte e vende na comunidade. Muitas vezes é preciso que o morador �que atento quando existem carnes para vender. Por causa da demanda, há casos em que famílias �cam sem poder comprar esse alimento.

Uma das características especí�cas da zona rural, é que antes do abate dos suínos, o dono do animal passa nas casas dos mora-dores, um ou dois dias antes já procurando compradores para carne do porco. Esta prática é por conta de que a carne suína não é tão

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consumida quanto a de gado e isso só acontece se o dono não ven-der antes para seu Luís Piauí.

A rua de seu estabelecimento é a 25 de Julho, que tam-bém é a mesma da escola e da creche Flor do Campo. A creche existe há 16 anos e por ela já passaram vários dos jovens de hoje. Mantém na sua direção dona Maria Lima, esposa de seu Antonio Lima, uma das lideranças antigas do assentamento.

Esta rua sai direto de um dos escanteios do campo de fute-bol para a casa de seu Piauí, que é uma ladeira de uns 120 metros localizada exatamente em frente ao lugar onde acontecem as festas de aniversário do lugar. Todo este espaço está situado, por sua vez, nos limites da sede da Associação dos Produtores Rurais do Assen-tamento Vila Conceição I e II. A via segue até seu �m, cruzando com a rua que passa na casa branca.

Para explicar melhor como é �sicamente o perímetro do as-sentamento formado por suas ruas, basta recordar do formato de uma pista de corrida de Fórmula 1 ou lembrar-se de um losango em diagonal. Pense na rua principal, que é a 16 de Julho, uma home-nagem à data de ocupação da fazenda. Ela vem da estrada que liga a BR-010, sete quilômetros para trás, passando direto ao povoado Olho d’Água. No perímetro do assentamento a via é bloqueteada e, antes de chegar à uma das casas brancas, ela faz uma curva e desem-boca na rua São Luís, que, seguindo direto, faz também uma curva, sempre à esquerda e entra em direção ao campo de futebol, já retor-nando para sair novamente na principal.

No meio deste desenho geométrico, �cam quatro ruas trans-versais. A Rua Padre Josimo é uma homenagem ao religioso que de-fendia os trabalhadores rurais e a reforma agrária na região, sendo assassinado um ano antes da ocupação da fazenda Itacira. Já a Rua 25 de Julho lembra a data em que se comemora o Dia do Trabalhador Rural. Neste mapa, uma corta a outra. E para �nalizar o desenho ge-ométrico, a rua 18 de Setembro, que é data da reocupação e corta a 25 de Julho. Para descrever melhor só passeando pela Vila Conceição I.

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O estabelecimento comercial de Luís Piauí é também, o local onde circulam informações e boatos sobre todos os tipos de assunto, até aventuras amorosas com mulheres, às vezes casadas. É costume também dos frequentadores avaliar a participação do time local, o Cruzeiro, em algum torneio, campeonato ou amistoso. Rolam, ainda, papos sobre o futebol pro�ssional, aquele em que a várzea não existe e do qual participam os maiores do futebol brasileiro.

E claro, no bar de seu Piauí se discute muitas questões de política ou da própria organização do assentamento. As vilas Con-ceição I e II são comunidades em que os mais velhos, segundo se percebe, carregam uma maior consciência política e essas lideranças são quem encampam o debate espontâneo. A partir daí, muitas vezes surgem algumas propostas para se mudar o rumo político em certos momentos.

Seu Luís Piauí é conhecido por essa alcunha porque é na-tural do estado do Piauí e como a maioria de seus companheiros veio da região de Cidelândia. Ele é um senhor branco, com pinta de “fazendeiro” nos moldes dos romances de Jorge Amado ou Graci-liano Ramos. Hoje está de cabelos bem grisalhos, de olhos verdes e vesgos. Sempre fez parte da oposição ao grupo político de Valdinar Barros. Enquanto este era do “PT de Aço”, Luís Piauí fazia parte da “Articulação de Esquerda”, outra corrente integrada ao Partido dos Trabalhadores. Tratava-se obviamente de uma divergência só parti-dária, porque quando o assunto é Vila Conceição I e II, os grupos em confronto sempre se aliavam em prol das lutas da comunidade.

— Nossas disputas sempre foram no campo eleitoral. Mas, mesmo assim, já estivemos juntos em palanques quando nossas correntes defendiam o mesmo rumo. E sobre Vila Conceição nunca nos dividimos. — garante seu Piauí, sentado em uma de suas cadeiras “preguiçosas”.

Como este é um dia que não foi à roça, resolveu abrir sua bodega e tentar vender alguma coisa. Ele tentou sair candidato ao cargo de vereador em 2012 e há 16 anos é o responsável pela

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distribuição da água que abastece toda a vila, sendo contratado pela prefeitura para fazer este serviço.

O assentamento �ca meio deserto nos dias de semana e raramente aparecem fregueses para a tradicional cachacinha do meio-dia e para aquela fofoca, mas, mesmo assim, podem visi-tá-lo os clientes que precisam de seu serviço de atendente do bar.

— O comum mesmo é eu ir à roça todos os dias olhar mi-nhas criações e minhas plantações. e quando isso acontece abro a quitanda só à tarde. Porém, algumas vezes pre�ro �car na vila e botar para funcionar. O serviço de distribuição da água eu faço da seguinte forma: a cada duas horas tenho que ir onde está o motor para mudar a rua que está indo a água.

E ele continua explicando a logística:— São duas horas para todas as ruas. É o momento em que

os moradores se abastecem, enchem seus reservatórios de água.

Educação: primeiros passos

A creche já mudou várias vezes de lugar na localidade, hoje está funcionando na casa de alguém da comunidade, uma resi-dência alugada à prefeitura. As administrações municipais nunca se preocuparam em construir um lugar onde a creche fosse per-manente. Atende um número pequeno de crianças na idade de frequentar espaços de alfabetização. São 43 meninos e meninas entre os turnos vespertino e matutino, que usufruem dos benefí-cios deste espaço público e que dão os primeiros passos em busca de uma formação.

— Há um trabalho de conscientização em torno da preven-ção de gravidez precoce. Hoje não é mais comum uma adolescente engravidar aqui no assentamento, alguns anos atrás, sim — argu-menta dona Maria da Penha, a diretora da escola que também acha curioso o fato da pequena quantidade de crianças que existem no assentamento.

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Converso com uma das atendentes da creche, a professora Pricila Moura de Brito, 25 anos, formada, pedagoga e concursada como professora da educação infantil. Ela mora em Imperatriz e precisa se deslocar todos os dias até o local de trabalho. Pega o pri-meiro coletivo, às 5h30 e volta na viagem das 17h. A jornada acaba sendo muito cansativa, ainda mais quando ela encontra com seus “sobrinhos” de sala de aula, sempre prontos para as brincadeiras.

— Gosto muito do trabalho com crianças, mas uma coisa que me deixa irritada é quando a família se abstém de ajudar na educação pensando que a responsabilidade é só nossa. — pondera Priscila no alto de seus sonhos de realização como pedagoga e de “tia” de um monte de crianças.

Como exemplo, se refere a Fabinho, garoto de quatro anos que se apresenta como uma criança hiperativa, dá muito trabalho, bate nos outros coleguinhas e cospe nos funcionários.

— Nestes casos as crianças precisariam de um acompanha-mento especial, de um psicólogo, por exemplo, e a creche não tem esse pro�ssional.

A coordenadora geral da creche ou diretora está com proble-mas familiares, com o �lho mais velho na UTI e por isso obteve afastamento de algumas atividades do serviço. O rapaz sofreu um acidente de moto na estrada quando vinha de uma festa à noite, cain-do e batendo com a cabeça no chão de uma estrada de terra batida.

Às vezes, durante as conversas com Pricila, ela tinha que sair urgentemente para atender crianças que se comportavam de tal maneira que nunca podiam ser chamadas de anjinhos.

O nome mais comum que se ouve na visita à Flor do Campo é “tia!”. “Tia isso... Tia aquilo... Tia, o Fabinho riscou meu caderno!” Esta é uma das grandes missões do cotidiano de uma das funcioná-rias da creche do assentamento, uma jornada gigantesca para quem mora em Imperatriz e tem que trabalhar em um lugar muito dis-tante de sua casa. Até que, em um dos momentos de conversa com a “tia”, somos interrompidos por uma denúncia:

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— Tia, a Jéssica jogou meu caderno no chão!A autora da denúncia é a garotinha chamada Júlia de Car-

valho, de três anos, com uma voz estridente. Sua queixa à tia Pri-cila vem acompanhada de pequenos soluços de choro. Uma garo-tinha que, com certeza, não sabe ainda se virar na vida, cuja mãe está em casa fazendo tudo por ela e o pai na roça labutando pelo pão de cada dia, tem no choro seu único jeito de protestar contra as coisas que não lhe agradam. Depois da reclamação de Júlia, a tia sai para solucionar o problema.

O barulho em uma creche é muito maior do que em uma simples sala de aula de crianças maiores. Por serem ainda pequeni-nos e muito indefesos na vida, quem dá os primeiros passos para a educação deles precisa ter muita responsabilidade. Mas, agora a tia Pricila está com uma criança nos braços e outra na barra de sua saia.

Neste instante percebo que a continuação da conversa com a professora da creche não é mais viável naquele momento. A Flor do Campo possui seis funcionários: a diretora, duas merendeiras, duas professoras e um vigilante, que só atua mesmo durante a noite.

Jovem exemplar e a galera da bola

Ela passeia pela vila resolvendo coisas de sua casa, pois na au-sência de sua mãe, se vira como uma futura dona de casa, já que os pais estão na roça. Cuida dos irmãos mais novos e os deixa prontos para irem à escola de manhãzinha. Ela é como qualquer garota que, em outra situação, com mais oportunidades e em cidades maiores, seria, com certeza, uma modelo de capa de revista. Carrega consi-go a cor da brasilidade. Devido ao sistema de criação em que vive na comunidade, se apresenta como uma garota de comportamento exemplar.

Enquanto se pode observar do bar de seu Cravinho, ela caminha ao sol das 11h do dia, neste calor derretedor de segun-da-feira, re°etido pelo calçamento do povoado. Com seus cabelos

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revoltos pelo vento, ela vai e vem do comércio de Luís Preto ou no do seu Cavinho. Depois de tudo isso se dirige à escola para buscar os irmãozinhos. Em seguida, segue para a casa da vizinha de frente à sua com uma bacia e parece que na vasilha traz folhas de alface ou couve. Acaba retornando com um pedaço de abóbora madurinha na mesma vasilha. Parece que ocorreu ali um tipo de escambo.

Kelly de Lima Silva é seu nome. Sua idade: 16 anos. É �lha de Gilberto de Lima Silva e Maria Lucélia de Lima Silva e neta de antigos moradores ou de ocupantes da fazenda, dona Maria da Silva e seu José Pereira da Silva, conhecido por Zezão, falecido há poucos meses. Os pais de Kelly cresceram com o assentamento.

Ela tem outros sonhos, diferentes da maioria das moças de sua idade, mesmo que pareçam ilusórios, de querer um dia con-quistar a fama. Aqui no assentamento é muito comum encontrar meninas com este propósito, de ser atriz ou modelo. Mas Kelly, que ainda faz a 8ª série, sonha em ser enfermeira. Ela quer concluir o colegial e buscar uma faculdade que ofereça o curso de enferma-gem para a realização de seus sonhos.

Kelly garante que é feliz morando na Vila Conceição I e con-tinua dizendo que para ela, a juventude vive bem no assentamento, estabelecendo uma comparação com o período de seus pais e avós:

— Na época de meu pai as coisas eram muito mais difíceis. Ninguém tinha a liberdade de visitar os amigos. Não porque fosse proibido, mas por ser perigoso, é questão de segurança.

Na conversa, eu lhe digo que os outros jovens reclamaram do cotidiano da vila e acham que precisam de mais espaços para a juventude. Ela toma a palavra e diz de maneira contundente:

— É que estes jovens vieram há pouco tempo da cidade. Aqui é muito bom, tem como a gente criar os nossos espaços de lazer.

Como a maior parte das casas, a de Kelly foi construída em um nível acima da rua. Com a frente de sua moradia repleta de plantas e °ores, ela sempre aproveita o intervalo do almoço para trocar ideias com a vizinha. As duas �cam sentadas à sombra dessas

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plantas, esperando chegar a hora em que escola as chame com sua sirene ensurdecedora. Kelly só vai mesmo quando toca a sirene, pois o grupo escolar �ca há poucos passos de sua residência.

Esse é seu jeito todos os dias, e neste se apresenta de forma peculiar: bem vestida na moda juvenil, mesmo que esta seja a onda antiga, com seu par de All Star preto, ela sai com seus livros e ca-dernos apoiados nas costelas do lado esquerdo. Na mão direita leva o pequeno e delicado estojo para suas canetas, lápis e borrachas. Traz agora também o mais novo acessório no bolso traseiro do short azul marinho na altura dos joelhos: o celular. Mesmo não tendo sinal de celular na maior parte do assentamento, ele sempre está entre os materiais que nunca se deixa em casa.

Quando termina a aula às vezes Kelly volta para casa, troca a roupa por outra mais adequada à prática esportiva e segue para o campo de futebol, como a maioria dos jovens e crianças no �nal de todas as tardes. Também vai para prestigiar o namorado, Alonso, que é um dos jogadores do time principal do assentamento e estu-dante de educação física de uma universidade de Imperatriz.

Com relação à pratica vespertina das peladas de futebol, existem aqueles que são mais fominha no futebol e vão todos os dias seguindo a pequena procissão das cinco horas, na direção do altar mor onde se encontram duas traves brancas e um gramado verde. Este é o local onde muitos dos jovens se deleitam, viram cra-ques ou correm atrás da esperança para um retorno físico perfeito. Como o jovem Enok, de 30 anos, que há três sofreu um AVC e paralisou uma parte do corpo, mas, mesmo assim, consegue fazer exercícios físicos e andar de bicicleta. Todos os dias com a discipli-na de um monge, ele está em volta do campo de futebol fazendo suas caminhadas e pequenas corridas. Ele e o goleiro principal do Cruzeiro são sempre os primeiros que chegam.

O grande tapete verde, ainda que não tenha o tamanho o�-cial de um campo de futebol e seja repleto de pequenas ondulações na sua maior parte, não deixa de ser um local de encontro e de

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fazer as ligações de celular. É o único local do assentamento que se consegue um sinal razoável. Aqui é possível se encontrar a namora-da, triste de saudade, conversando no viva-voz do aparelho e ainda assim gritando:

— Amor, você chega hoje?O lamento é de uma garota que está encostada em um Ipê,

uma árvore gigantesca, a mais alta dos arredores do campo, aproxi-madamente entre 12 a 15 metros de altura. Este é o lugar preferido de todos os que utilizam o celular enquanto no meio o jogo, treino, rachão, pelada ou barreirinha, o foco é correr atrás da gorducha.

A garota que fala ao celular parece que obteve uma resposta positiva do namorado, pois acaba de trocar aquela carinha de quem estava prestes a chorar, por uma de quem viu passarinho verde. Sai sorridente e comentando com a amiga que a espera um pouco mais adiante e que está mesmo é admirando os atletas do Cruzeiro. Eles já se posicionam no campo para brincar de forma mais séria, em um treino de verdade comandado pelo técnico Bilu. Antes do trei-no o espaço do campo está dividido desta forma: uma das meta-des pertence aos peladeiros, que chegam da roça e dos garotos que vem da escola para dar aquela suada. A outra está ocupada pelas mulheres, organizadas por Valquíria, 21 anos, irmã de Alonso. Ela também estuda educação física e lidera as garotas.

— Ei, vamos dividir os times — alerta Bilu.— É mesmo, já está na hora. E dá para se formar uma

barreira.— Tira os seus aí, Barone!— Eu �co com o Cleilson.— E eu chamo o Gato.— Vem Alex.— Venha Humberto...E assim eles terminam de con�rmar a formação de cada time

da pelada vespertina. Organizados ali para todos poderem jogar, a formação é feita com um de cada lado chamando os jogadores de

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maneira alternada para não haver prejuízo na formação dos grupos que vão jogar as “barreiras”. E quem não está na hora vai esperar a próxima “barreira”.

Depois do jogo, convido o Bilu, um dos responsáveis pelo futebol, que se senta em um banco próximo de mim. Ele está cansado e se desmanchando em suor, sempre olhando o reló-gio porque tem um encontro marcado com o chuveiro. Tomar banho depois de jogar à tardinha, logo que chega da roça é o mais certo e não sentar para responder perguntas de um curioso futuro jornalista.

Ele acaba respondendo apenas questões básicas como os jogadores que saíram do Cruzeiro e deram certo em times pro-�ssionais.

— Aqui tivemos como maior exemplo do futebol o Daniel. Ele jogou um tempo no time pro�ssional do Imperatriz no �m da década de 1990, era um meia bom. De lá foi jogar em times do estado do Goiás.

Questionado sobre os homens que formam o time atual do Cruzeiro, ele responde, já meio impaciente com o suor que seca em seu corpo de 30 anos e sempre buscando olhar as horas no pulso direito, em um relógio de pulseira preta:

— Cara, hoje tem alguns meninos que ainda sonham seguir pro�ssionalmente, mas esta é uma realidade um pouco distante, porque falta visibilidade para os times grandes.

Alguns que jogavam muita bola se perderam pelo caminho. Foi o caso de Zé Augusto, que como ele mesmo coloca, era um “negão com um pé grande” e tinha um chute comparado a um tiro de canhão.

— Ele era um cara que quando ia bater um pênalti avisava para o goleiro adversário: vou colocar entre suas pernas. E botava mesmo! A força dele era monstruosa e ninguém segurava mesmo. Hoje ele está perdido no álcool. É o irmão do seu Carlindo e mora no assentamento Califórnia.

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No presente os jogadores mais novos não conhecem a his-tória do assentamento, até mesmo por ser um assunto delicado e cheio de mistérios. Outro fator que os deixa distante da realidade local é que são poucos aqueles que têm uma ligação maior com as raízes da Vila Conceição I e II. Muitos chegaram pouco tempo depois.

— A maior parte não está nem aí para história de como foi sofrido conquistar tudo aqui. — a�rma Bilu, batendo as costas da mão na palma uma da outra repetitivamente, como um sinal de desdenho por parte dos jovens que compõem o Cruzeiro.

Mas é certo que ele não coloca a culpa nos jovens. É que esta história precisa ser contada:

— Hoje o time não está com toda aquela bola de anos atrás. Muitos tiveram que sair para trabalhar fora ou já viraram pais de família e não estão com muito tempo para se dedicar ao esporte.

Antes de encerrarmos nossa conversa, chegam dois jovens jogadores do Cruzeiro, curiosos e buscando saber sobre o que nós estamos conversando. Eles vão logo sentando em um dos espaços do mesmo banco. Também estão suados, com camisas nos ombros e pés sujos. Outros jogadores se mantém distantes, tomando fôlego do treino ou da pelada.

— Esses meninos não estão nem aí para o que ocorreu em nossa história. E os mais velhos não se preocuparam em lhes con-tar. — reforça Bilu, apontando para os garotos e fazendo de seus beiços um dedo indicador, como é de costume dos maranhenses.

Os outros jovens convocados para a conversa �cam meio sem entender do assunto por não terem a prática de se pronun-ciar a respeito da vida da comunidade e acerca de temas que não conhecem.

Mas, questionados sobre o papel da juventude, eles conse-guem, de forma acanhada, expor seus pontos de vista. Um deles, o Pedro Martins, 18 anos, que bate as mãos para retirar a sujeira, vem

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me cumprimentar e aproveita para dizer que os jovens precisam buscar seus sonhos em outros lugares, independente de se tornarem jogadores pro�ssionais ou não.

— Não busco ser pro�ssional no futebol, quero ter um futu-ro melhor e aqui não dá para isso. É preciso trabalhar fora para ter uma vida melhor.

Diferente de Kelly, Pedro parece um pouco decepcionado com a vida da juventude do assentamento que tem que sair de seu lugar para garantir um futuro melhor. Ele não espera para conti-nuar a conversa, vai dizendo essas palavras e montando na bike, pedalando com cuidado para subir um quebra-molas meio alto como uma montanha para quem está com as pernas formigando de correr pelo campo disputando jogadas.

Depois de subir devagar o quebra-molas e continuar seu trajeto, o Bilu, que �cou para trás grita, pedindo licença e saindo para tentar uma carona na garupa da bicicleta do jogador que parte, sonhando com um banho.

— Ei Pedim, espera aí, vou com você! Pedro já tinha quase pego uma velocidade boa na bike e tem

que parar e esperar um dos responsáveis pelo time, que às vezes assu-me várias funções espontaneamente, desde coordenador a treinador.

As mulheres estão com a palavra!

Elas e eles passam devagarzinho, conversando e acompa-nhados de seus �lhos de mãos dadas. Carregam embaixo do braço bíblias da edição “Ave Maria”. Outros levam pequenas apostilas de cânticos que animarão a festividade religiosa. A movimentação que aos poucos cruza e faz aquela noite no assentamento �car mais agitada, só cresce. A juventude começa a se aglomerar na esquina próxima à igreja. É o instante de sair e também de galan-tear as meninas. Uns estão de bicicleta, outros de moto, algumas dessas barulhentas, outras mais silenciosas, por serem mais novas.

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Estamos na noite que se encerram as novenas à Nossa Senhora, fosse ela a de Fátima, a Aparecida ou mesmo a da Conceição.

Aquela esquina é também a mesma do bar de seu Cravinho e da quitanda do Luís Preto, ambos com as portas ainda abertas para atender seus clientes. As conversas e o bate-papo rolam sol-tos, pois sempre existem aqueles que não participam do momento religioso, mas gostam de espiar curiosamente os religiosos.

Os que não são �éis fervorosos jogam sinuca no bar do seu Cravinho, enquanto outros �cam sentados na calçada do Luís Preto e tem como principais assuntos o dia de trabalho na labuta da roça, na venda do leite e as eleições municipais de 2012, que começam a se de�nir. Do outro lado da rua, uma voz feminina, cansada e rouca, cumprimenta a todos:

— Olá!— Olá, Querubina! — Responde seu Cravinho, que estava se

servindo de seu jantar ali mesmo no alpendre de seu estabelecimento. Ela passa com os passos lentos de quem lutou a vida inteira

por uma vida melhor, por terra e reforma agrária. Dona Querubina é muito religiosa e está acompanhada de seus familiares. Como suas �lhas estão mais tempo na cidade, cuidando de uma entidade de quebradeiras de coco babaçu, ela mantém companhia dos netos. Igrejeira mesmo!

Outra que sai de casa para a celebração, com seu livrinho de cânticos é Maria da Penha. Ela está com o semblante alegre, sem demonstrar que passou o dia inteiro labutando com os meninos no colégio:

— Você não vai para a igrejinha, Luís?— Vou não, Penha.— Então, já estou indo.Depois disso, ela me surpreende dizendo que participa, po-

rém não gosta muito dessas celebrações e que vai mesmo porque o povo está lá. E continua a argumentação a�rmando que quem está na frente das coisas de uma comunidade precisa estar onde

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o povo se faz presente. Ali deixa escapar um pouco da ideologia que assumiu depois de se formar no curso Pedagogia da Terra, no início da primeira década de 2000.

O curso foi um programa conveniado entre Incra, o MST e a Universidade Federal do Pará. Ele tem a mesma grade cur-ricular de outro de pedagogia, a diferença é que este assume o método da alternância, já que o estudante tem que cursá-lo três meses na universidade e outros três na comunidade onde mora. Os módulos também apresentam questões mais especí�cas para serem aplicadas no campo.

Na frente da capelinha de São João Batista, como a maior parte é de mulheres, começam a chegar uma a uma para aquela reza. Algumas delas, com a ajuda dos poucos homens mais próximos, montam as pequenas barraquinhas de vendas de comidas típicas, como bolo de milho, chá-de-burro, pipoca, maçã do amor e milho cozido.

Ali, sentem-se devotas da mãe de Jesus, já que maio é o mês em que todos rezam nas noites de segunda-feira para celebrarem seu nome. Tudo está articulado para depois da última novena acontecer uma conversa com as mulheres presentes, na qual eu irei perguntar sobre o presente da comunidade. Como elas, parte importantes da vida do assentamento Vila Conceição I e II veem o cotidiano? Como elas se inserem na construção daquela história? Tudo articulado por Luciana Queiroz, que prefere se identi�car com este nome �ctício.

A capela é pequena, mas no seu interior parece um pou-co espaçosa devido à ordenação dos bancos e de cadeiras escolares velhas, que para uso do colégio não prestam, mas ainda servem como assentos. A igreja parece com uma antiga casa velha ou uma construção religiosa que foi derrubada para ser reformada em outro modo. Ainda é possível perceber os alicerces de uma construção antiga, porém arrumada e retransformada em igrejinha. A frente da casa de oração �ca há uns seis ou sete metros do limite com a rua, estabelecendo uma calçada de dois degraus que separam este aterro

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do meio-�o. Depois eles se encontram com um pouco de grama até a porta larga da igrejinha de São João, o padroeiro da comunidade.

Lá dentro as rezas de terço com as pessoas pedindo mais graças à Virgem da Conceição, ao santo padroeiro João Batista e a todos os santos das ladainhas que eles rezam. Uns, de olhos fe-chados, outros com olhos abertos, mas todos contritos na oração puxada por dona Querubina. Ela está na frente, um pouco ao lado do altar, perto de seu Godô, com uma camiseta velha com a ins-crição: “Santas missões populares”. O dirigente da comunidade católica permanece do lado oposto, bem concentrado, responden-do baixinho ao terço. Esta personalidade tem a responsabilidade de fazer a representação dessa comunidade nas atividades organi-zativas da paróquia. Enquanto isso, dona Penha está literalmente sentada no meio do povo com o livrinho de cânticos.

Às nove e meia termina o momento religioso e como é a hora destinada aos avisos, seu Godô se levanta e comunica:

— Gente, neste próximo �m de semana acontecerá na paró-quia um encontro de formação com os catequistas. Então, quem é catequista se organize para estar lá.

Depois do aviso de seu Godô, dona Querubina também se ergue para dar outro aviso, em especial para as mulheres. Neste ins-tante eu imagino que é o meu pedido para que elas �quem e con-verssem um pouco comigo, mas o comunicado acaba sendo outro:

— Bem gente! Todos sabem que toda a segunda-feira a Toi-nha vem para cá para nos fazer movimentar com um pouco de exercício. Pois é, ela está no colégio esperando a todas.

Estranho, pois parece que todas as mulheres vão sair para a ginástica semanal. Mas Luciana se levanta logo depois e passa outro aviso:

— Gente! E quem não for para o exercício, se puder �car um tempinho mais, eu �co grata. É que tem um estudante que quer fazer umas perguntas para nós, mulheres da comunidade.

Depois de aberta a reunião com as que �caram e esclare-

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cido o motivo de permanência um pouco mais na capelinha, saí-ram algumas, no entanto �caram outras, que vão viabilizar o papo. Mesmo sendo uma reunião só com as mulheres, seu Godô �ca sem deixar nenhum constrangimento para elas.

O ponto central da conversa é sobre como é a vida das mulhe-res no assentamento. Fica claro, desde o início, que as principais in-satisfações delas com a vida da comunidade são o transporte coletivo e a falta de emprego. A reclamação comum é que, apesar de terem como se deslocar para a cidade, a estrada apresenta muitos proble-mas, como a�rma dona Maria das Chagas, uma moradora desde o início:

— Quando é período de chuvas temos atoleiros e quando é verão a poeira na estrada, juntamente com os buracos são nossos problemas, meu �lho! — se referindo a mim — Mas, no início de nossa luta aqui, quando precisávamos ir à cidade tínhamos que ca-minhar daqui até a beira da rodovia e são sete quilômetros.

— Agora imagine isso em uma noite chuvosa e socorrendo um doente!

Quem complementa a descrição dramática é dona Francisca de Souza, se acomodando no banquinho desconfortável da igreja e com medo de sujar a saia amarela que está usando. Na preocupação de Luciana, que é a mais nova da reunião, com 25 anos, o trabalho é o que falta:

— Quando uma de nós precisa trabalhar é preciso se mu-dar para a cidade. Ou mesmo �car no sacrifício de ir e voltar todos os dias, o que é muito cansativo. E ainda temos que cui-dar dos �lhos.

Neste instante quase se estabelece uma polêmica por uma discordar da outra. Enquanto uma argumenta que o problema principal é a falta de transporte, outra destaca a carência de em-pregos. O que se percebe neste cotidiano das mulheres da co-munidade é que os sonhos de gerações diferentes se confrontam.

As primeiras mulheres da Vila Conceição participaram do

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processo de luta inicial, enquanto a segunda leva, como presença mais jovem, necessita das condições para continuar os passos dei-xados por seus pais e avós na busca de uma vida melhor, estímulos para permanecerem na terra.

Na manhã seguinte, observo melhor o cotidiano do assen-tamento. Às 8h, quando a vila está quase deserta por ser a hora de trabalho nas roças ou nos currais, muitas mulheres estão dentro de casa preparando o almoço do esposo que está no trabalho braçal ou dos pais, que preparam o sustento dos �lhos, ainda tendo que ir deixar a comida dos que labutam na roça.

É o horário onde se encontram poucas pessoas nas ruas ge-ométricas da Vila Conceição I e neste instante está esperando o ônibus a Antônia Querubina, a Toinha, �lha da líder Maria Que-rubina. Conhecemo-nos há quase dez anos em atividades do MST. Ela é a professora de ginástica que vem todas as segundas-feiras para fazer as mulheres se movimentar e perder calorias.

— Então é você quem faz a mulherada do assentamento entrar em forma?

Ela sorri com simpatia, no alto de seus quase 40 anos. Toi-nha é uma mulher moderna e uma das dirigentes do MIQCB1, com sede na cidade de Imperatriz, ONG de reconhecimento in-ternacional por causa de seus projetos de bene�ciamento do coco babaçu e de luta pela preservação dos babaçuais em quatro estados: Pará, Maranhão, Tocantins e Piauí. Continuo a conversa ali mesmo

no meio da rua, cercado pelos latidos de cachorros, que tentam uma cadela no cio.

— Ontem à noite quase que eu ia assistir a ginástica das mulheres.

— Fez bem você não ter ido. Elas não iriam gostar e �cariam sem graça para praticar as danças.

Ela sorri e segue sua viagem para o ponto de ônibus, com uma mochila azul

1Movimento In-terestadual das

Quebradeiras de Coco Babaçu,

ele está articula-do nos estados do Maranhão, Pará, Tocantins

e Piauí

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-marinho nas costas, ainda nos trajes de esportes: um short preto com listras laranja nas laterais. O cotidiano permanece na espera de alguém que lhe faça mudar, para melhor, em alguns momentos da vida deste lugar. Seus personagens são os moradores, atores que transformarão o enredo da luta por melhores dias construindo um futuro, que se for da escolha de cada um, será o melhor de todos.

Futuro da Vila Conceição vai depender das novas gerações

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A busca

da utopia

Como é possível imaginar o futuro da Vila Conceição I e II diante de tantos os percalços que surgem no cotidiano de uma comunidade que luta por uma vida mais digna? Os sonhos das pessoas que convivem

ali desde aquele 16 de julho de 1987 com suas histórias corajo-sas podem mudar de acordo com as novas visões de mundo que tem desenvolvido? Os membros daquela comunidade irão per-manecer seguindo os preceitos políticos do movimento que lhes garantiu a vida atual?

A principal prática da comunidade continua semelhante ao longo desses anos todos: brocar suas roças no princípio dos ve-rões para plantar no início do inverno. Em meio a esses afazeres, as grandes festas de aniversário, que serviram para desmisti�car a imagem de “baderneiros”, “animais” ou comunistas que “tomavam os bens alheios e comiam criancinhas”. Como rea�rma, de forma categórica e indignada, seu João Fotógrafo:

— Nossa primeira festa foi para chamar a atenção das pes-soas da cidade para este ponto. Não somos como eles pensam e dizem! Somos gente!

A primeira festa da história da Vila Conceição aconteceu dois anos depois da tomada da terra, em 2 de julho de 1989. As outras foram transferidas o mais próximo possível da data, 16 de

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julho. De lá para cá, os membros da comunidade continuaram comemorando alegremente esta data como um ato sacro. E pros-seguiram na organização de suas lutas, organizando assembleias para discutir e minimizar os seus problemas, além de planejar ações como os seus mutirões de limpeza. Por causa dessa última atividade coletiva é que hoje não existem mais muriçocas na sede da vila principal. Luís Preto fala com orgulho deste feito:

— Aqui tinha bastante muriçoca, mas resolvemos fazer ar-rastões periódicos nos quintais daquelas famílias mais descuidadas com a higiene.

A história se arrastou por entre os matos e sombras de árvores que permitiam mirar o futuro na melhor das tocaias. Nas trinchei-ras dessa luta diária, Luís Piauí, Luís Preto, Maria da Penha, Maria Querubina, Valdinar Barros, seu Zezão, João Fotógrafo, seu Sebas-tião, Santo Careca, Antonio Lima, seu Carlindo e muitos outros, com o medo ao lado esquerdo, desbravaram este novo cotidiano.

Criaram divergências entre eles, é claro, questão normalís-sima quando se trata de vida em comunidade. Mas, as divisões, a partir dos anos 1990, foram necessárias para que fosse possível aliviar-se, hoje, com a superação dos anos mais perigosos de suas vidas: as pistolagens, atentados contra aqueles que ousaram sonhar.

O socialismo não vingou plenamente, o capitalismo per-maneceu e a propriedade privada, sua alma, também está mui-to viva. Maria Querubina lembra saudosa, desse tempo de lutas. Em suas peculiaridades femininas de quem teve 12 partos e criou quatro �lhas, explica:

— Buscávamos a implantação das condições para uma so-ciedade sem explorações: o socialismo.

No mais remoto de sua memória, Querubina se frustra com o marasmo de hoje quando se trata de continuar no mesmo caminho daqueles ideais. Não é um desassossego só dela e das ou-tras lideranças, personagens dessa história, o cotidiano do assen-tamento demonstra essas percepções. A juventude do futebol, as

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106 crianças que estudam na Escola Nossa Senhora da Concei-ção e as mulheres que atuam de forma mais ativa na comunidade encaram as roças, símbolos de 25 anos de luta, não mais como uma perspectiva de futuro. Sem se falar das constantes interferên-cias externas, como igrejas, os pastores e a política eleitoral, outras vozes que soam fortes na comunidade.

Impossível não perceber as mudanças que chegaram. O pas-sado do chão de terra batida, às vezes esburacada com as chuvas de algumas gerações, foi substituído pela realidade atual do calçamen-to e dos jovens que saem em busca de trabalho fora da vila.

Neste domingo de sol escaldante, mesmo se aproximando o inverno maranhense de 2012, seu Carlindo resolve questões pes-soais pela vila em cima de sua moto. Há 25 anos, talvez fosse a pé ou sobre um cavalo e as pendengas não eram tão individuais, talvez envolvendo a segurança interna do antigo acampamento. Assim mesmo, atende meu convite para conversar sobre o futuro da vila.

Antes de entrar na questão propriamente dita, provoca-me o pensamento: “o que será que seu Carlindo vai me dizer do futuro?” O futuro é incerto, entretanto, para alguns que olham e procuram, como seu Carlindo, Valdinar, Luís Preto e outros interferir no presente, pode-se ter uma ideia de como será este tempo vindouro.

Carlindo ainda está preocupado com a derrota recente para vereador do companheiro Valdinar Barros nas últimas eleições e também vê com pessimismo o futuro da vila. O principal preju-ízo para ele, que representa uma classe de camponeses, é a saída constante dos mais moços para trabalhar em outras cidades ou estados.

— Não é culpa nossa, das lideranças, pelas saídas dos mais jovens. É culpa do próprio sistema brasileiro que não melhora a agricultura camponesa.

E ainda em cima da moto vermelha, no meio do sol quen-te, em frente à casa de Luís Preto, acrescenta:

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— Eles não querem mais trabalhar como seus pais e avós. Estão com razão de procurar mais conforto para o trabalho e o conforto é trabalhar fora da lavoura.

Seu Carlindo justi�ca, já um tanto emocionado, que a pe-quena agricultura de hoje não teve avanços e que se alguém quiser continuar produzindo vai ter que ser nas formas mais arcaicas, com roças no toco, sem um preparo mais técnico para este �m:

— Zé Luís, se a situação da pequena agricultura tivesse alcançado melhorias os mais jovens não estariam saindo para tra-balhar em outros lugares. Não se criou condições para preservar as tradições camponesas. E isso não é especí�co do assentamento Vila Conceição I e II.

Ouvindo seu Carlindo, percebo ali um camponês que tem um entendimento das questões que interferem diretamente na vida da comunidade. Fala como um sábio dos tempos moder-nos. Uma lição para muitos universitários, já que seu estudo foi escasso e, sua maior prática, é mesmo a da militância sindical. Carlindo mantém um bar no assentamento. Certo dia Gamar e eu contamos 13 bares nas duas vilas e a concorrência entre eles parece muito amistosa. Além disso, Carlindo é o presidente da associação principal dos produtores.

Conheci Carlindo quando Valdinar Barros, que também foi deputado estadual, ainda ocupava o cargo de vereador em Imperatriz, em seu primeiro mandato e ele era uma espécie de segurança. No mesmo período em que o parlamentar acabou sofrendo um atentado. Mas, uma fonte que prefere não se iden-ti�car, disse-me com clareza que seu Carlindo, apesar de apoiar posteriormente o nome de Valdinar, não concordou com a saída dele para disputar, em 2012 o cargo de vereador. Carlindo já previa a possível derrota.

E foi o que aconteceu. Valdinar não conseguiu os votos su-�cientes para ocupar novamente uma cadeira de vereador em Im-peratriz. Esta constatação serve para apresentar seu Carlindo como

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um homem que possui um grande poder de avaliação estratégica para os embates políticos. Por isso, tem condições de cogitar como será o assentamento no futuro.

Antes de sair, Carlindo abastecer sua moto de gasolina ven-dida no comércio de Luís Preto. O combustível é de boa qualidade e comercializado em pequenas quantidades para os moradores que possuem carros ou motos, tanto do assentamento como do povo-ado mais próximo, o Olho d’Água. Mesmo sem garantir a segu-rança que um posto de gasolina oferece, Luís Preto toma todos os cuidados no armazenamento da gasolina para que não aconteçam acidentes. De fato nunca houve, segundo garante um de seus vizi-nhos, seu Antonio Preto.

É muito comum os moradores abastecerem seus motores dessa forma, pois os postos mais próximos estão localizados um, na cidade de São Francisco do Brejão, há mais de 25 quilômetros do assentamento e outro, em Imperatriz, que �ca ainda mais dis-tante. No momento em que abastece a moto conversam os dois, Luís Preto e seu Carlindo:

— Você vai aonde com esta moto neste domingo?— Vou olhar uma vaca que está parida.— Rapaz, o domingo é de �car em casa. Quando a gente

morre não leva nada disso.E os dois riem, enquanto Luís Preto reparte a gasolina de

um garote de dez litros, para uma garrafa pet de dois litros. É a alternativa do posto improvisado, onde não existe aquele marcador digital para conferir a quantidade exata do produto que entra no tanque. E seu Carlindo ainda responde:

— Claro que não vou levar comigo, mas vou deixar para os meus �lhos e netos.

Em meio à gargalhada gutural de Luís Preto com a res-posta de seu Carlindo, aproximou-se dos dois, com um pedaço de limão na mão direita e um gadanho na mão esquerda, o Ga-mar. Este instrumento tem as características de uma vassoura, só

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que no lugar que seria para varrer, é como se fosse um pente de uns 50 centímetros, com dentes de ferro parecidos com pregos.

Gamar é aquele do início da história, no campo de futebol, dia em que começo a fazer minhas primeiras observações para este livro. Se ele está carregando um limão cortado, logo se pode con-cluir que vai aproveitar o domingo caloroso diferentemente de seu Carlindo, com uma cachacinha. E para quê o gadanho? Talvez para depois limpar seu quintal ou para entregar a um possível dono por já ter utilizado nesta limpeza! Ele cumprimenta os dois e logo em seguida, com a moto já abastecida, seu Carlindo sai com a missão de ver sua vaca parida. E permanecem em pequenos cochichos, Luís Preto e Gamar, que de vez em quando passa de leve sua língua na banda de limão, fazendo pequenas caretas.

Os cochichos de ambos são de difícil interpretação à distância, mas tem algo a ver com o bar do seu Cravinho, que é logo em frente e está com dois clientes disputando partidas de sinuca, com outros por perto assistindo. Dentre eles André, de 25 anos, o �lho mais novo do Luís Preto, estudante de direito em Imperatriz e militante do MST como o seu pai foi no início das lutas por reforma agrária no estado.

Enquanto o Luís desarruma o posto improvisado, dirijo-me ao bar do Cravinho para ser também um dos espectadores das partidas de sinuca e tentar buscar de algum deles o que pensam do futuro do assentamento. O Gamar está lá, em um canto, agora sem o gadanho. O pedaço de limão ainda está com ele, revezando de mão para mão e ele continua passando a língua de vez em quando na banda azeda.

A opinião de Gamar sobre o que se espera dos tempos vin-douros do assentamento, não é muito diferente das palavras de seu Carlindo. Com as ressalvas que este se mostrou mais intelec-tual, não desvinculando a situação em que se encontram de uma abrangência geral para a agricultura camponesa. Gamar apenas ressalta, refazendo a pergunta:

— Que futuro?

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E acrescenta que talvez muitos não mais considerem o local como um assentamento, pelas raízes perdidas das lutas, as in°u-ências sofridas de outros setores sociais, como igrejas evangélicas, além de forças políticas e eleitoreiras que tentam, em sua opinião, transformar as vilas Conceição I e II em “currais eleitorais”. Ele se refere ao fato de esta comunidade só ser lembrada nestes períodos de eleição e acabar “caindo nas armadilhas do sistema”.

— Zé, eu era jovem ainda, mas lembro quando os mais ve-lhos tinham discussões ideológicas referentes à nossa comunidade. Hoje isso não existe mais, apenas em pequenos grupos.

Gamar reforça seu argumento acrescentando que o assenta-mento mais parece um bairro de Imperatriz por causa do compor-tamento tanto dos que moram aqui desde o início, quanto os que chegaram tempos depois de tudo conquistado.

— Muitos dos que moram aqui não têm o respeito como os antigos posseiros que �zeram esta comunidade e ainda tentam colocar no rumo que estava.

Neste instante ele sai rápido em direção ao balcão e volta com uma cachaça marcada no copo com uns três dedos antes que seu limão �que só na casca. Após um pequeno gole, ele procura apressar a conversa, porque está de olho na partida de sinuca e não quer perder os lances �nais do vencedor.

No som rola uma música brega que todos chamam de ser-taneja, no entanto, foi feita para homens apaixonados chorarem. Não por um passado de lutas que se foi, mas por uma paixão que não deu certo. Quando a música chega ao refrão: Tudo bem, você não sabe o que é gostar de alguém... um dos presentes, um pouco dis-tante da gente, termina seu copo de cerveja e grita: “Eita musicão! Caba não mundão!” Gamar vira para o dito apaixonado, que pede outra cerveja, olha para mim e sorri discreto, concluindo sua fala:

— Aqui é praticamente um bairro qualquer de Imperatriz. — Levanta e sai dizendo — Vou jogar esta parada e vou bater neste cara agora. Depois conversamos mais.

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Estamos bem no centro movimentado do povoado, com pes-soas passando de bicicleta, donas de casas com verduras nas mãos indo preparar o almoço e crianças jogando peteca, o que para nós, maranhenses, é o mesmo que bola-de-gude. Gamar garantiu que vai voltar para continuar o papo, mas eu imagino que depois de uns goles a mais ele com certeza não retornará. Não nas próximas horas.

Entretanto, ali o cotidiano teima em passar a história para trás. Começam a chegar pessoas na esquina para esperar o ônibus, que está em seu horário e que no dia anterior não nos presenteou com seu barulho por estar quebrado em algum lugar de Impera-triz. Na casa vizinha, ao lado do bar do Cravinho, umas mulhe-res jovens levam cadeiras para a calçada alta, de quase um metro, também para testemunhar a passagem desse cotidiano. Dentre elas está uma senhora, com certeza a matriarca das mais novas, que tem todo o jeito de ser suas netas e de não morarem no as-sentamento.

A mais velha é a dona Querubina, moradora e personagem garantida desta história, que mesmo já estando nestas páginas, não pode �car de fora de meu desejo curioso de especular como será o assentamento Vila Conceição I e II no futuro. Sobretudo ela, que foi parte importante desta luta.

Querubina não senta logo de cara, traz uma cadeira, mas parece que esquece algo lá dentro e volta para buscar. Com o seu retorno para usufruir da companhia de suas parentas, eu me apro-ximo antes que ela se acomode na sua cadeira-preguiçosa e peço que ela me diga de forma informal, como ela, sendo uma liderança, vê o futuro da comunidade. Porém, antes que ela se negue por estar querendo descansar ou curtir suas netas, eu lhe digo que será uma conversa rápida e que ela voltará logo para sua cadeira.

A militante veterana é incisiva na resposta à pergunta prin-cipal desse capítulo:

— Como você vê o futuro do assentamento Vila Conceição I e II para daqui há dez, 15 anos?

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Como liderança que é, respondeu ali mesmo em pé, de uma forma muito parecida com seu Carlindo:

— Vejo com muita preocupação! E digo mais: não coloco aí nem 10 ou 15 anos. Vou colocar cinco anos.

Sem me preocupar com as redundâncias das respostas pa-recidas dos dois que �zeram a luta para garantir o que é hoje este povoado, reproduzo as respostas negativas sobre este futuro, o que deixa Querubina e seus companheiros muito tristes com o que pode vir a ser.

— Nós, que somos �lhos de camponeses, de quebradeiras de cocos, de pescadores tradicionais e que �zemos isso durante toda a nossa vida... �co muito preocupada.

Neste instante ela insere outros segmentos que também pertencem a esta região, mas dá ênfase para sua categoria. Como foi durante muito tempo quebradeira de coco babaçu, Querubina está preocupada por ter acontecido na comunidade, durante quatro meses, um curso de pedreiro patrocinado por uma empresa grande que se instalou na região há pouco tempo. Ela continua com seu desabafo como se estivesse discursando e seu brado pudesse chegar aos ouvidos, nesta mesma hora, daqueles que comandam este país:

— Se não tiver uma nova tecnologia para os pequenos camponeses, uma capacitação permanente, o nosso futuro é de-sastroso como o dos pequenos trabalhadores tradicionais. Olha que as mulheres recebem hoje cursos de corte-costura, de crochê e de como aprenderem a fazer bonecas. Os �lhos dos roceiros da-qui recebem cursos de pedreiro. Isso é para nos preocupar mesmo com este futuro!

Querubina está desanimada e triste com o que ela observa neste presente. Porém, alimenta a certeza e, sem as astúcias de ser nenhuma cartomante ou cigana que pode prever o futuro, diz que ele signi�cará o �m da prática tradicional da lavoura na terra. Fala com seu linguajar caboco ou caboclo, de quem levou a vida inteira nas lavradas do campo. Quase suplica, na certeza de que seus re-

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clames serão ouvidos em um gigantesco e imaginário autofalante que ela usa neste momento – o microfone de meu gravador. Mas de repente sai para junto das netas, senta-se e comenta algo com elas. E vai presenciar, ali, o cotidiano que pode lhe trazer de fato um futuro ainda mais nostálgico para seu povo.

Já se aproxima o momento do almoço para muitos, menos para seu Cravinho, que, preocupado em atender um e outro de sua clientela, anda com seu prato de arroz, feijão, quiabo e carne ali mesmo em seu alpendre. O domingo segue seu curso, com um ca-loroso sol de �m de verão – para os maranhenses – e já sendo en-coberto por algumas nuvens grossas que começam a cercar a região, reivindicando o inverno. É o inverno que vai dar o ponto certo dos novos plantios e para as safras de legumes, posteriormente servidos nos pratos daqui e das cidades.

Na esquina daquele pedaço do assentamento, aumenta o número de esperançosos pela chegada do ônibus, que permane-ce demorando. E o domingo vai passando junto com todos que circulam pela vila, com aqueles que queimam a garganta com uma cachaça temperada, como o Gamar, que por sinal já está no quarto copo e sem dar um sinal de que ela arde mesmo ou é ruim.

Descendo um pouco mais a mesma rua, é possível ver outro personagem deste domingo, o Miguel, um jovem de 27 anos, mecânico e borracheiro. Pro�ssão diferente daquela que Querubina prevê o �m, a de lavrador. Ele corre para cima e para baixo com motos que não são as suas, mas veículos que ele testa para ver se seu trabalho foi bem feito. A�nal ele é quem as concerta e precisa saber se está acertando em seu trabalho.

Miguel está com a roupa toda suja de graxa e óleo de mo-tor. Ele acelera, acelera, acelera... O cano de descarga da moto atira: pôoou! pôoou! Sentado na moto, para, olha atento o cano e segue com seu trabalho, ganhando o sustento de cada dia para sua família. Das vezes que estive por ali não me lembro de ter

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visto o Miguel sentado em uma mesa de bar. Sempre o encontro com uma ou duas motos em sua pequena o�cina à espera de suas mãos, que também trabalham no conserto de bicicletas.

A o�cina é quase uma referência para a região, pois Miguel consegue serviços também do povoado vizinho. Fica recuada da rua uns dez metros, no fundo da casinha velha, que é de fato sua o�cina. A casa é de barro e coberta com palhas, modelo dos mais antigos da vila. Com a chegada do crédito de habitação, estas re-sidências �caram para os �lhos ou agregados que precisassem de um teto, mesmo que fosse de palha. Miguel usa o local para guar-dar seus equipamentos, porque prefere mesmo é trabalhar nas sombras das mangueiras que estão no terreiro.

Ao lado de sua o�cina está a casa de Kelly, a jovem bo-nita, negra, com traços indígenas e que gosta de usar um par de All Star para ir à escola. Preciso saber o que ela, com os seus 16 anos, espera do futuro para aquela comunidade. O local de nossa conversa é o bar de seu Valdemir fechado, onde aproveitamos a sombra da varanda.

O bar de seu Valdemir só é aberto a partir das quatro horas da tarde e às vezes ele nem abre. Fica em frente à casa onde eu almoçarei naquele domingo, na mesma rua da casa de Luís Preto e do bar do seu Cravinho, que agora já estão para trás. Kelly já percebe que a conversa será sobre o assentamento

Em sua fala ela não é tão pessimista sobre a realidade atual quanto os outros que falaram anteriormente. Entretanto, confessa ter saudades do período em que na comunidade se podia dor-mir de portas abertas. E diz que gostaria mesmo que voltasse um pouco do sossego de tempos atrás. Como ela mesmo exempli�ca, mostrando marcas na parede do bar:

— Você está vendo isso aqui?— Sim!Eram marcas na parede que já estavam rebocadas com ci-

mento.

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— Aqui foram tiros. De uma pessoa recém-chegada na co-munidade. Pessoas que vieram morar aqui e não sabem respeitar os primeiros moradores.

Ela, de uma forma bem especí�ca, relata o mesmo que os ou-tros disseram. São as interferências exteriores à comunidade as quais, como salientou o Gamar e repetindo uma de suas declarações, desper-tam semelhanças: “aqui estamos vivendo como um bairro qualquer de Imperatriz!” A declaração de Kelly serve para uma re°exão posterior da realidade. Ela acrescenta que hoje tornaram-se comuns os assaltos nas estradas e que pensa um futuro sem os males de outros lugares.

Espera voltar a viver na vila como um lugar tranquilo, mas, apesar disso, ainda não a compara com as periferias de Imperatriz. No entanto, em sua opinião, se não forem tomadas providências a vila vai acabar se tornando um lugar ruim de morar. Como uma jovem que sonha com um futuro melhor, Kelly comenta:

— Espero que nosso posto de saúde possa funcionar melhor. E que a creche deixe de ser em uma casa alugada e tenha seu espaço próprio.

Outro problema que Kelly sonha ver solucionado, para que possa continuar tendo orgulho de morar na Vila Conceição é o transporte, pois o ônibus, como já mostrado em outra parte do li-vro, só passa quatro vezes por dia. Batendo na mesa de sinuca, local em que ela está apoiada, constata:

— Se a estrada fosse melhorada ou mesmo asfaltada nós teríamos transporte melhor. Hoje mesmo ele não veio porque está quebrado.

Penso nos usuários que, com certeza, já devem ter desistido da viagem que fariam para a cidade. Dali de onde estamos não é possível ver o ponto de ônibus, mas eles já foram com certeza para suas casas. Este cotidiano a comunidade pretende melhorar para contar outras histórias em momentos futuros.

Balanceio as conversas com as personagens que vivem todas as horas do dia dessa comunidade e observo o comportamento de

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um povo que ousou sonhar por trás de cada trincheira. Às vezes, quando se usa esta expressão, pode realmente ser no real signi�cado que ela carrega.

Mudanças

Em uma quinta-feira de dezembro, não se ouve a balbúr-dia das crianças para irem à escola, a�nal só a diretora está na Escola Municipal Nossa Senhora da Conceição em meio ao si-lêncio. São as férias escolares que os meninos e meninas passam todo o novembro esperando. Nas férias, a saudade dos colegas não aperta muito o peito, eles se veem quase todo o momento. Sente falta, mesmo, é dos professores, que moram nas cidades próximas. Até que os docentes ainda aparecem, pois precisam cumprir os rituais burocráticos de apresentar as notas ou parti-cipar de algumas reuniões de conselhos de classe, conversando sobre algum garoto peralta.

Neste dia está ausente a maioria das motos e desta vez nem na o�cina de Miguel. Poucas circulam pelas ruas estreitas da “Vilona”. O silêncio somente pode ser interrompido pelo assovio do vento, pois ainda é verão. Mesmo com alguns estabelecimentos abertos, os fre-gueses são poucos. Em alguns casos as mulheres, donas da casa, �cam para atender um ou outro. Os maridos foram para a lavra da terra, mas um pequeno grupo delas, sentadas na parada de ônibus espera pelo transporte juntamente com os alunos da cidade, que sempre te-mem �car para trás. Todos ali aproveitam para colocar o papo em dia. Aproximo-me e faço a mesma pergunta sobre o futuro.

A maior parte das mulheres presentes na reunião espontânea permanece em silêncio. A timidez impede que elas opinem. Mas, Rai-munda Conrado da Silva, 63 anos e mãe de nove �lhos, se apresenta. Um dos seus �lhos morreu aos 28 anos de derrame ou falando de forma mais so�sticada, de AVC. A grande maioria deles mora na co-munidade. É viúva e sobre isso, se apoiando na perna direita, diz:

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— Meu marido faleceu assim que chegamos aqui. E eu não quis arrumar outro. Preferi criar sozinha meus �lhos.

Seus �lhos foram educados por ela fazendo parte das lutas. Um deles é o presidente da Casa Familiar Rural, a CFR, criada pelos padres estrangeiros chamados de “Irmãos do Campo”. A sede dessa entidade �ca no povoado Coquelândia e tem como objetivo formar os jovens em práticas de rodízio entre o estudo e a agricul-tura. No local formam-se técnicos para ajudar no trabalho mais cientí�co da lavoura. A educação deles é orientada pelo método da alternância: uma semana na escola e outra na comunidade. Este seu �lho é chamado de Edelvan Conrado da Silva, de 32 anos, também formado em pedagogia.

Outro membro da família que se colocou pronto para assumir as oportunidades que apareceram foi Edelblan Conra-do da Silva, formado em geogra�a e estudante de enfermagem. Dona Raimundinha tem muito orgulho desses �lhos e diz que é muito feliz com a vida que mantém hoje. Com ela na comu-nidade, moram ainda o Bilu, que é um dos responsáveis pelo Cruzeiro e o “Bigode”, trabalhador rural. Raimundinha também é mãe de Enok, vítima de derrame. É o jovem que faz exercícios no campo de futebol em companhia do goleiro do time da vila.

Dona Raimundinha foi, durante muito tempo, referência para o MST na comunidade. Participava e ajudava a organizar os encontros de mulheres, os eventos estaduais e mesmo manifestações por reforma agrária em Imperatriz. Hoje ela se apresenta mais calma quando o assunto é a luta. Está ali, na frente da casa de seu Cravinho, também na espera do coletivo que levará o almoço para um de seus �lhos que está na roça. E o ônibus sempre passa nas proximidades do pedaço de terra onde ele trabalha. É uma das práticas se aproveitar o transporte para o envio de encomendas, neste caso, a marmita com o “feijão nosso de cada dia”.

Ali mesmo, na expectativa da chegada do transporte, dona Raimundinha, como uma porta-voz das outras companheiras, diz

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que sua esperança em um futuro é que os �lhos dela, bem como os descendentes de outros posseiros “tomem de conta” desse legado de lutas. E que possam assumir os frutos deixados pelos mais velhos da comunidade.

— Minha esperança é que tenhamos mais conquistas e que este assentamento seja mais evoluído. Que nossos �lhos assumam a história que deixamos para eles.

Ela vai direto ao ponto, já que, por se tratar de futuro, nin-guém sabe o que este pode reservar lá na frente. Mas, a esperança está presente nos sinais de seus cabelos já embranquecidos, mar-cando a trajetória de experiências otimistas. Raimundinha acha, ainda, que os jovens estão no caminho certo de construir um as-sentamento vitorioso e deixar escrito nas páginas memoriais para outros, que como ela e seus companheiros, um dia ousaram sonhar. É possível ver em seu olhar que suas buscas continuam e lembran-do que estas nunca foram fáceis. Ainda mais porque sua família e seus companheiros, trabalhadores rurais e sem-terra foram discri-minados por uma sociedade um tanto conservadora.

— Olha, meu amigo, nossa vida aqui não foi fácil. Já tivemos que tirar gente doente em redes. É para a gente deixar isso tudo se perder? Nós vamos desrespeitar todos que morreram em busca deste sonho?

Raimundinha conclui e sai para continuar na espera de seus sonhos, que naquele momento não virá nas poltronas de um ôni-bus, mas do que ajudou semear nos 25 anos de histórias. “E como demora o carro barulhento!”, pensa alto ao olhar as horas em seu relógio de pulseira preta no braço, enquanto volta a conversar com as amigas.

Na mesma rua, descendo em direção à casa branca, um pe-queno prédio chama a atenção, com uma placa de indicação, com letras verdes, que simbolizam a preservação do meio ambiente. É a sede do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Ba-baçu, espaço de reuniões das mulheres, que naquele instante está

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fechado. Lá dentro, equipamentos de bene�ciamento do produto principal, o bago do coco.

Ao lado, outra casa que também faz parte do espaço, apenas coberta, fazendo ver de longe o amontoado de casacas depois de alguma mulher ter operado a extração, ainda na forma tradicional, usando o machado, o macete e as forças. E vem novamente à cabe-ça a pergunta sobre o futuro: o que será deste espaço? A visionária Querubina já respondeu lá atrás, um tanto dura com este porvir pelo que ela observa hoje.

Passeando no assentamento Vila Conceição, o deserto que parece em dado instante pelas vielas ameaça deixar essa con�gu-ração com o aumento dos jovens, em fardas escolares, mochilas nas costas e pequenos aparelhos eletrônicos ouvindo as músicas da moda. É quando um dos garotos pergunta ao grupo:

— Quem será o motorista de hoje?— Acho que hoje será o Sales, porque com esta hora e nada

do ônibus escolar.Uma garota gesticulando e ao mesmo tempo mudando uma

faixa de música de seu MP3, com uma grande carga de gíria na fala, aproxima-se da turma e diz que está torcendo para ser o coletivo e não o escolar. Ela não argumenta mais, se concentrando na busca da sua trilha sonora. Eu, por curiosidade, pergunto:

— Você está ouvindo o quê?E ela saindo sem dar muita atenção para minha pergunta, só

responde assim:— O que todos gostam de ouvir: sertanejo universitário.Ela se afasta e �co meditando aquela resposta: “eu gosto de

algo mais barulhento”. Lá mesmo, na esquina, compartilha aquela trilha com outros amigos. E sorriem em pequenas balançadas, ensaiando danças. Sem ter gravado o nome da menina que gosta, como os outros, desse ritmo novo, tento achar o instante adequado para uma conversa mais profunda enquanto o ônibus não chega. E pergunto a ela novamente:

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— Como você gostaria que fosse a vida da juventude no futuro?

De maneira mais espontânea ela responde, deixando alguns de seus colegas atenciosos com sua argumentação. Outros, mais tímidos, se afastam para que eu não lhes pergunte nada ou busque puxar uma conversa:

— Aqui é bom, mas esse sacrifício de estudar longe, assim não dá. Se tivéssemos como continuar os estudos sem essa di�cul-dade toda renderíamos muito mais no colégio.

— Então as notas de vocês não são boas?Neste instante acontece uma grande algazarra entre eles,

olhando-se uns aos outros e ninguém quer entrar no mérito da pergunta, que até eu, depois achei um pouco indiscreta. Mas, por ali deu para perceber por meio de uma resposta e das reações de seus colegas que eles talvez tenham que escolher em algum momento entre continuar estudando e ajudar no sustento de casa, seja traba-lhando nas lavouras ou em outro tipo de serviço na cidade. Entra a grande responsabilidade do poder público em uma simples queixa de uma jovem que pretende continuar os estudos, porém as di�cul-dades que aparecem podem lhe atrapalhar.

Passam pequenos instantâneos luminosos em minha ca-beça de conversas que tive com a Kelly e com dona Raimun-dinha. A jovem Kelly, por acreditar que tudo pode mudar, vol-tando a ser o que era antes e dona Raimundinha, que, além de também demonstrar otimismo, tem os exemplos de dois do seu quase time de futebol de �lhos, que conseguiram assegurar tais oportunidades, mesmo vivendo no assentamento. E lembrei ainda de outros exemplos, como os irmãos Letícia, formada em agronomia e André, que está se graduando em direito, ambos �lhos de Luís Preto.

Nas ladeiras que levam à casa de João Fotógrafo continuo a indagar quem encontro sobre como será este futuro, mesmo que na imaginação. Já �cam claros os confrontos dos pensamen-

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tos analíticos de seu Carlindo e de dona Querubina com aqueles mais otimistas. Estes últimos, devido à falta de profundidade mi-litante e participativa nas discussões da luta, não apresentam uma opinião mais bem argumentada. A�nal, o pensamento mais crí-tico se encontra mesmo com aqueles que continuaram os estudos ou participaram das atividades mais organizativas tanto da luta sindical quanto das conquistas do próprio MST.

Mas, em conversa com seu João Fotógrafo, ele é mais cate-górico em suas defesas. Prefere, por exemplo, trocar o verbo “preju-dicar”, por um que se ouve só em assentamentos: prodijicar. É uma forma muito particular do linguajar camponês. E acrescenta, com gestos no ar quase dando uma surra no sistema capitalista e nos governos:

— Não tem sentido viver do jeito que estamos vivendo, sem que o governo olhe por nós. É melhor juntar todos e irmos embora. Do jeito que estamos não dá para continuarmos.

Seu João se acalma um pouco e sempre que se conversa sobre Vila Conceição I e II, recorda-se de Itacira, retomando o �o dos seus pensamentos às mesmas velhas histórias. Isso demonstra a paixão ainda viva dos anos de muita luta e, junto dessa emoção, vem sua nostalgia por um tempo que nunca vai voltar. Seu maior desabafo é porque ele sabe que a cada dia a situação exige mais luta e é difícil ver tudo parado. João acrescenta em seu discurso seguro, bem argumentado na maneira interiorana do estado:

— Zé Luís, é preciso a juventude se juntar e continuar nossa luta. Nós já estamos velhos. Não temos condições de continuar. Eles precisam ter a consciência de que isso tudo aqui será deles.

Enquanto João �naliza seu argumento de duras críticas à juventude, passa um jovem de aproximadamente 16 anos, em uma das poucas motos barulhentas, com o cano de descarga pipocando e com a velocidade alta para aquela pequena vila. João aponta com o dedo de sua mão esquerda e comenta:

— Olha aí! Eles querem fazer traquinagens sobre motos. Só

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querem saber de festa e de fazer meninos nas �lhas alheias. Não falo isso só para os �lhos dos outros, falo para os meus também.

Dona Maria da Penha, diretora da escola, já havia me es-clarecido que são poucos os casos de gravidez envolvendo ado-lescentes, mas mesmo sendo raros, não se pretende dizer que eles não aconteçam. No entanto, ela garante que há pouquíssimos ca-sos e seu João, agora mais calmo, passando sua mão na calça jeans azul, pois tinha terminado de chupar um geladinho, continua o seu discurso irado:

— Se o governo não voltar a fazer nada por nós e se juven-tude não pressionar para isso acontecer, vamos continuar existindo apenas nesse seu livro.

João Fotógrafo fecha sua arguição de um velho militante po-lítico com um sorriso vibrante de quem disfarça a tristeza de ver as lutas dele e de seus companheiros pararem ali. Trata-se de uma bata-lha perene, segundo ele e enquanto não se construir uma sociedade mais justa ela, a luta, vai prosseguir. O líder deixa no fechamento de sua fala escapar a poesia de estar lutando por um mundo melhor. Ele mesmo já disse, em outras ocasiões, que não teve estudo, mas tem condições, por conta de sua vida defendendo o ideal de reforma agrária, de debater com qualquer pessoa de nível superior.

A vilona segue sua rotina e seu cotidiano na busca desse futuro, que ainda está muito longe. Hoje, depois de tantos sacri-fícios em sua história para estarem ali, com os sonhos ainda não alcançados, já romperam, no entanto, muitas barreiras. Um desses obstáculos superados é de certa forma, o preconceito. Atualmente, muita gente da sociedade olha de forma diferente aquelas pessoas, comparando-se com o jeito que eram encarados em tempos recen-tes, com carga pesada de preconceito e discriminação. A vila segue com seus meninos jogando petecas nas ruas e meninas brincando de amarelinha e com as mulheres que continuam quebrando cocos e assim preservando a árvore desse fruto. Ou labutando nas roças, em grande auxílio para os maridos.

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A Vila Conceição I faz sombra para a Vila Conceição II. Esta última é uma segunda agrovila, mas o Projeto de Assenta-mento é o mesmo. A Vila conceição II acabou um pouco depen-dente do que acontece na primeira, lugar onde vive a maioria das lideranças.

A vilinha deixa sua marca e seus vazios em um período em que os homens saem para suas roças. Não que seja longe, mas pela pequena quantidade de moradores antigos, alguns forasteiros, por proximidade com a cidade, trazem nos �ns de semanas famílias dos parentes que vivem ali. Além de amigos que vêm para tomar uma cervejinha de sábado ou domingo, ouvindo músicas bregas. Foi nesta pequena comunidade que vivenciei este clima de lazer no feriado de 1º de Maio de 2011: alguns carros de som em volume máximo e de pessoas de comportamento citadino.

A vilinha se torna assim movimentada nos feriados, sábados e domingos, diferentemente dos dias de meio de semana, em que ela se parece muito com aquelas pequenas cidades pacatas e deser-tas dos �lmes americanos de faroeste. No verão, o vento assovia nas esquinas das suas poucas ruas ou bate forte nas paredes das casas, que são sedes de associações ou espaços de armazéns de produtos da roça. Estas pequenas construções podem ser chamadas até de prédios sem andares, em se comparando com as pequenas casas dos moradores, pelo seu tamanho maior.

Nas ruas pequenas e estreitas da vilinha, nesses dias apare-cem um ou dois meninos, com bolas de borracha, brincando no meio daquele sol de rachar, driblando jogadores invisíveis ou pe-quenas moitas de matos onde eles imaginam adversários. É nesse horário de almoço em que estão alguns velhos, livres de suas roupas de serviço, e sentados em tamboretes nas portas de suas casas, de onde gritam:

— Ei menino, venha pegar minhas botas!— Já estou indo, pai.— Depois me traga água para matar esta sede.

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E o menino sai para atender, não o pedido, mas a ordem. Nos costumes das pessoas comuns, com formação de família e com resquícios das sociedades patriarcais do passado, é quase natural que o pai não peça, mande. Assim, a criança sai para atender sua ordem e não demora muito. O velho roceiro, ali mesmo na calçada, bebe e se sacia com cada gota do líquido precioso. Depois relaxa um pouco para, após o almoço, retomar o trabalho no campo.

A pouco mais de um quilômetro da vilinha, no sentido BR-010, está uma das casas brancas, já cedida em alguma ocasião ao MST como espaço de escola de formação política e que hoje serve de moradia a seu Luís Avelino. Apesar de ser um dos antigos mo-radores e estar ali há muito tempo, não foi um dos posseiros e nem participou da ocupação da então fazenda Itacira. Por isso mesmo ele teve problemas com algumas lideranças do acampamento.

Segundo seu Raimundo Cearense, que não quis citar no-mes, seu Luís Avelino e sua família chegaram a ser expulsos por não aceitarem algumas decisões da coordenação do acampamento. E, na época de organização dos trabalhadores acampados, quando alguém falava em coordenação, se referia a Valdinar Barros, Maria Querubina, Carlindo, João Fotógrafo, Luís Preto e outros.

Seu Luís Avelino mexeu em algumas partes da casa para adaptá-la à moradia com seus �lhos e netos. Não existem mais marcas de balas nas paredes e sinais de mãos ensanguetadas. E também não é mais uma casa branca, apesar de ainda ser histórica. Agora ela está pintada com um azul-celeste bem fraquinho.

Ele me recebe com seu jeito pacato, tímido e com seu corpo suado. Mesmo não sendo mais um moço de vigor juvenil, a enxada está em suas mãos e a roupa encharcada de seu suor. Mostra-se sucinto em sua fala, diz que espera um futuro bom. Quer mesmo é continuar o que está fazendo: plantando umas “manivas” de man-diocas ou macaxeiras. Manivas são partes do caule do pé de man-dioca e são estas pequenas partes que o lavrador usa para plantar.

— Eu espero que aqui só melhore nossa situação.

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Sem mais prolongamento de sua fala, discursos políticos ou de agitação que os companheiros sempre costumam usar, Luís Avelino apenas salienta que está feliz com os seus 20 anos morando naquele lugar. Até parece meio redundante sua fala, mas é que com minha visita de surpresa, ele, que estava muito ocupado, responde com pe-quenas interjeições e sempre sacudindo a cabeça positivamente:

— Hunrruum! Hanrrã!A cada vez que ele responde olha para sua enxada, queren-

do involuntariamente dar mais atenção para ela do que para qual-quer outra coisa naquele momento. Prefere encerrar rápido nossa “inapropriada” conversa. Abotoando o terceiro botão de baixo para cima de sua camisa de trabalho, que com o suor molhando parece marrom, cor da terra molhada da Vila Conceição I e II, se despede dizendo:

— Zé Luís, passa aqui outra hora! Vou terminar um servi-cinho ali na roça.

— Tudo bem! Eu volto aqui outro momento.Pre�ro então �car conversando com seu �lho, Simael, um

técnico em agropecuária que está de viagem marcada para o Mato Grosso. Seu Luís sai colocando seu facão adequadamente na bai-nha dependurada do lado esquerdo de suas calças e falando algo para as mulheres da casa que deve ser a respeito do almoço, mas não foi possível identi�car.

Enquanto isso, as plantas e árvores de seu terreiro �cam acenando com as folhas daquelas mangueiras gigantescas, ba-lançadas pelo vento, propiciando belíssimas sombras para seus donos e para possíveis visitas. Estas mangueiras devem ser pa-rentes mais velhas daquela com as quais �z meu primeiro con-tato diretamente nas pesquisas para este livro, com seu Chico Barracão, há algum tempo.

Terreno com areia encalçada, copas de mangueiras ensom-breadas e a frente da casa histórica da antiga fazenda. Não há como não pensar no futuro que homens e mulheres do Vila Conceição I

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e II teimam há 25 anos em moldar. Um futuro que alguns sábios procuram de�nir ou esperar no seio de suas experiências de lutas. E que seu Chico Barracão, deitado em sua redinha no descansar de seu almoço, ao som dos bichos de seu quintal, espera que seja bom.

Antes mesmo de abrir sua cancela, ainda curtindo o vai-e-vem dos punhos da rede, no ranger destas nas escarpas, ele grita em saudação:

— E aí meu amigo, como está? Chegue mais para cá, moço!— Hoje não posso demorar muito.— Diga: terminou seu livro e nossa história? — A história de vocês não pode terminar. São vocês que a

fazem. Mas, o livro está dependendo de conversar um pouco mais com vocês, moradores e posseiros.

Ali mesmo, por causa das circunstâncias, papeamos em sua cancela, ele apoiando na porteira seu corpo torto e já velho, porém ainda duro, não com o mesmo vigor de quem fez mais de 30 �lhos e teve quatro mulheres. Entretanto, ainda é um físico de quem faz roças, cuida de seus animais e das limpezas do seu terreiro, que está localizado ao lado de seu Luís Avelino. São separados apenas pela estrada que faz todos chegarem às duas vilas, começando pela segunda, que está há um quilômetro e a primeira, a sete. E com os dois, seu Luís e seu Chico, de frente para a Belém-Brasília.

Só recapitulando: as duas vilas estão invertidas geogra�-camente em relação à cidade de Imperatriz, causando, para quem não as conhece, alguma confusão. Como a ocupação da fazenda ocorreu pelo povoado Olho d’Água, ou seja, pelos fundos da fazenda Itacira, a Vila Conceição I �cou sendo esta, por con-siderarem que foi neste local que �caram acampados e porque a maioria absoluta dos ocupantes era da região de Cidelândia, Coquelândia, São Pedro da Água Branca, Vila Nova dos Martí-rios e do próprio Olho d’Água. A Vila Conceição II �cou logo às margens da BR-010, pelo fato de alguns posseiros preferirem as proximidades da cidade. Na verdade eles não esperavam que

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um dia sua entrada principal do assentamento seria pela rodovia que vem de Belém com destino à Brasília.

Mas nesta parte �nal do livro pretendo saber o que os mo-radores e posseiros mais antigos esperam do tempo que virá. Seu Chico logo entende a indagação e de cara, sem discursos políticos, coloca seu pensamento meio pessimista:

— Futuro?— Sim, senhor!Eu respondo um “Sim, senhor!” em tom de brincadeira,

projetando na sua �gura um coronel ou uma pessoa que tivesse um status social bem elevado. É uma brincadeira entre a gente, nos tratar desta forma. Ele continua ainda mais pessimista:

— Nós não vamos ter um futuro. Como se pode continu-ar produzindo se a gente não tem nenhum incentivo dos governos? Aqui faz muito, um tempão que não se recebe uma ajuda de governo.

Seu Chico se apresenta como ele é de fato, um homem que diz o que pensa e não mede as palavras antes de pronun-ciá-las. Sabe ler, embora de forma muito de�ciente, não teve a oportunidade de ser também um grande “lavrador das palavras”, como ele mesmo diz. Porém, sua experiência lhe possibilita não ver bons tempos para o futuro do lugar onde mora, sendo que foi um dos protagonistas da criação desta comunidade. Talvez seja apenas um desabafo de seu Chico, sobretudo porque ele mesmo diz que não é possível colocar a terra para produzir sem o apoio dos mandatários políticos que controlam o poder no estado e no país.

Por estas palavras, ele, com certeza, mantém as mesmas crí-ticas de dona Querubina e seu Carlindo. Mas Chico Barracão �ca mais na dele, poucas vezes esteve nas lutas políticas da região, di-ferentemente de alguns de seus companheiros, que empunhavam a bandeira, marchavam nas ruas e gritavam palavras de ordem. Não era alguém da linha de frente, preferia �car na retaguarda de seus sonhos mais individualizados.

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— Só participei mesmo dessa ocupação. E poucas vezes es-tive nas manifestações.

Ele é mesmo muito na dele, mas sobre o futuro a sua perspec-tiva é ainda mais derrotista do que a dos outros. Enquanto escava as unhas de dedos da mão esquerda com as da mão direita, na tentativa meio desajeitada de limpar as marcas do trabalho na terra, ele co-menta sem muita preocupação, quase desdenhando da situação:

— Não tem mais jeito para nós, pequenos. Nosso futuro será daqui uns tempos, todos se mudarem para as cidades.

Uma diferença de suas críticas para a de outros companhei-ros, é que na opinião de seu Chico, tudo já está perdido de modo coletivo. Ele acrescenta:

— Quem tiver condições de conduzir seu negócio sozinho ainda vai um pouco longe. Mas, quem depende direto do governo não vai muito tempo.

Enquanto dona Querubina e Carlindo acreditam que, se houver uma mudança no modelo agrícola brasileiro, priorizando o pequeno camponês ou pelo menos dando uma maior atenção para estes, as coisas podem melhorar, seu Chico crê que não há mais jeito para um futuro melhor. Ele prefere �car ali em seu terre-no, cuidando dos afazeres mais comuns ou, por conta de sua idade já avançada, balançando em sua redinha, como estava quando lhe chamei para conversar.

Conclusão indefinida

Como esta não é uma história de �cção ou que já tenha um �m, ela não termina aqui. É um recorte do tempo desses 25 anos de cotidiano da comunidade que vai seguir seu caminho e, claro, só este futuro trará as respostas do que foi teorizado até agora pelos seu personagens.

Muitos �caram pelo caminho ou resolveram trilhar por ou-tros atalhos a busca de uma vida melhor. Só a mestra do tempo um

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dia vai dizer quem estava certo: os que continuaram ou os que ca-minharam por outros terrenos, sejam os da religião, via que aceita a vida como fosse a vontade de Deus, ou os rumos da política eleito-ral, como estratégia de mudanças. Várias divergências continuarão ocorrendo, algumas buscando solucionar os problemas que surgi-ram ou mesmo por vaidade de quem só pensa em si, pois pessoas de caráter egoísta existem em todos os espaços.

Uma coisa é certa: o cotidiano vai continuar, dependendo, sobretudo, dos novos atores – as crianças e a juventude. Para que nas próximas duas décadas e meia se escreva uma nova história com um �nal feliz, o que, para aquelas pessoas, seria a realização de seus ideais. Todos aqueles que foram consultados para esta obra, seja para qualquer tipo de informação, ou mesmo tenham virado li-nhas mais longas elaboradas nesse texto, são os protagonistas deste futuro que se constrói incerto. E segue o exemplo de ontem, a vi-vência do presente e a esperança do amanhã. Esse cotidiano pode mudar...

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