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1. A curiosidade e o entendimento do ser humano As histórias detetivescas são, em nossos termos científicos, “objetos” que podem ser analisados a partir de uma vasta gama de possibilidades interpretativas. Uma primeira grande oposição – aliás, orientação que já nos faz apreender determinados sentidos desse tipo de tex- to da literatura – poderia centrar-se nos estudos das duas personagens principais que coabitam o universo do romance policial: os criminosos e os detetives. Transitar pelos caminhos da cien- tificidade para mostrar, por exemplo, os métodos recorrentes de investigação dos detetives protagonistas das histórias, assim como elaborar uma sistematização a respeito dos motivos e dos modos de serem praticados os crimes são trabalhos realmente prazerosos. Com “brincadeiras” desse tipo, procurando detectar personagens ou até mesmo vivenci- á-las, descobrimos até com muita facilidade outras questões que podem ser incorporadas aos estudos que desenvolvemos por intermédio do uso da Semiótica. Vamos a um caso: o estudo das paixões. Dentre as acepções do termo “paixão” arroladas no Dicionário Aurélio, destacam-se as se- guintes: “sentimento ou emoção levados a um alto grau de intencionalidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão; inclinação afetiva e sensual intensa; desgosto, mágoa, sofrimento; disposição contrária ou favorável a alguma coisa, e que ultrapassa os limites da lógica”. Tais orientações revelam tanto o es- tado resultante dos sujeitos que vivem a paixão (desgosto, mágoa) como a possibilidade de serem iniciadas novas ações a partir desses estados (disposição contrária ou favorável a alguma coisa). O termo “paixão” tem uma dupla origem etimológica, do grego paskheín, verbo que conjugado na primeira pessoa do presente do indicativo, egó páskho, significa “eu sofro uma determinada ação”, e de páthos, por intermédio do latim passio. Seu sentido primeiro, por estar ligado à fragilidade do Objetivo Apresentar as teorias semióticas e discutir perspectivas e possibilidades de análises, abordando questões específicas, a partir de exemplos diversos, sobre o aparato teórico-metodológico da semiótica de linha francesa. Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas Kathia Castilho & Marcelo Martins

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1. A curiosidade e o entendimento do ser humano

As histórias detetivescas são, em nossos termos científicos, “objetos” que podem ser

analisados a partir de uma vasta gama de possibilidades interpretativas. Uma primeira grande

oposição – aliás, orientação que já nos faz apreender determinados sentidos desse tipo de tex-

to da literatura – poderia centrar-se nos estudos das duas personagens principais que coabitam

o universo do romance policial: os criminosos e os detetives. Transitar pelos caminhos da cien-

tificidade para mostrar, por exemplo, os métodos recorrentes de investigação dos detetives

protagonistas das histórias, assim como elaborar uma sistematização a respeito dos motivos e

dos modos de serem praticados os crimes são trabalhos realmente prazerosos.

Com “brincadeiras” desse tipo, procurando detectar personagens ou até mesmo vivenci-

á-las, descobrimos até com muita facilidade outras questões que podem ser incorporadas aos

estudos que desenvolvemos por intermédio do uso da Semiótica. Vamos a um caso: o estudo

das paixões.

Dentre as acepções do termo “paixão” arroladas no Dicionário Aurélio, destacam-se as se-

guintes: “sentimento ou emoção levados a um alto grau de intencionalidade, sobrepondo-se à lucidez

e à razão; inclinação afetiva e sensual intensa; desgosto, mágoa, sofrimento; disposição contrária ou

favorável a alguma coisa, e que ultrapassa os limites da lógica”. Tais orientações revelam tanto o es-

tado resultante dos sujeitos que vivem a paixão (desgosto, mágoa) como a possibilidade de serem

iniciadas novas ações a partir desses estados (disposição contrária ou favorável a alguma coisa).

O termo “paixão” tem uma dupla origem etimológica, do grego paskheín, verbo que conjugado na

primeira pessoa do presente do indicativo, egó páskho, significa “eu sofro uma determinada ação”, e

de páthos, por intermédio do latim passio. Seu sentido primeiro, por estar ligado à fragilidade do

Objetivo Apresentar as teorias semióticas e discutir perspectivas e possibilidades de

análises, abordando questões específicas, a partir de exemplos diversos, sobre o aparato

teórico-metodológico da semiótica de linha francesa.

Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

Kathia Castilho & Marcelo Martins

sujeito que vivencia ou sofre a paixão (luto, sofrimento, tristeza etc.), relaciona-se indiretamente

com o estado patológico desse sujeito: doença da alma. Etimologicamente, portanto, a paixão diz res-

peito à passividade do sujeito: por um lado, ela é provocada por um agente exterior a ele e, por outro,

ela invade, sobrepõe-se à razão do sujeito. Nesses dois sentidos, o sujeito é passivo em relação à pai-

xão que o assola.

Há de se considerar, porém, que a paixão pode ser um impulso para a ação de um sujeito. Vol-

tando às histórias detetivescas, podemos dizer que as paixões de malevolência, como a vingança, trans-

formam o sujeito da “falta” e esse será o criminoso da história. Em outras palavras, a personagem que

sofreu uma perda, uma ofensa etc.. pode, com essa perda, sentir-se acionada a recuperar o objeto per-

dido (mesmo que seja, simplesmente, uma questão de “honra”, isto é, um alívio que aporta ao sujeito

os sentimentos positivos outrora perdidos). Essa abstração faz com que concretizemos figurativamente

os crimes desencadeados pelo sentimento de vingança, por exemplo.

A Rita levou meu sorriso

No sorriso dela

Meu assunto

Levou junto com ela

E o que me é de direito

Arrancou-me do peito

E tem mais

Levou seu retrato, seu trapo, seu prato

Que papel!

Uma imagem de São Francisco

E um bom disco de Noel

A Rita matou nosso amor

De vingança

Nem herança deixou

Não levou um tostão

Porque não tinha não

Mas causou perdas e danos

Levou os meus planos

Meus pobres enganos

Os meus vinte anos

O meu coração

E além de tudo

Me deixou mudo

Um violão

2 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

O sujeito que tem a voz delegada no discurso, o eu-lírico para as teorias da literatura, ou o narrador

em primeira pessoa (presença do “eu” no discurso) para nós; sofreu uma série de perdas decorrentes

do fazer da personagem Rita. Enquanto o “eu” teve seu estado alterado, de conjunção com o

“sorriso”, com o “assunto”, com os “planos”, com os “pobres enganos”, com os “vinte anos”, o com

“coração”, com “o que (...) é de direito” etc. para um estado de disjunção com esses objetos (sempre

revestidos, pelo sujeito, de valores); a Rita, por sua vez, parte justamente sorrindo! Com ela, leva

seus pertences: “retrato”, “trapo” e “prato” (além da “imagem de São Francisco” e o “disco de Noel”).

O “eu” pode ser caracterizado por esse estado de falta, desencadeado pelo fazer da personagem Rita.

O texto acaba aqui, e não se sabe se esse estado do “eu” fará com que ele fique “curtindo a fossa” ou,

ao contrário, tente reconquistar a ex-companheira (ou mesmo se vingar dela).

O mais interessante, porém, é o motivo da partida de Rita, descrita pela voz do próprio narrador como

“vingança”: “Rita matou nosso amor / De vingança”. Ora, se houve vingança por parte da moça é por-

que, obrigatoriamente, ela vivenciou um estado de falta. Causar “perdas e danos” foi o modo que a

personagem encontrou para liquidar a falta sofrida e estabelecer o seu equilíbrio emocional ou passio-

nal. O que o “eu” fez para que ela se sentisse ofendida não está explícito na letra, mas podemos con-

jeturar por meio de duas orientações de leitura: o sorriso da partida (satisfação); e o fato de o “eu”

em nenhum momento dizer que sente falta dela, mas dos objetos que ela lhe tirou (o que significa que

o “eu” estava mais interessado neles — e nos valores neles investidos – do que na própria compa-

nheira, como se pode observar pelo uso excessivo de pronomes ligados ao próprio narrador: “eu” e

“meu” em detrimento de apenas um “nós”).

Outros exemplos podem nos trazem à memória como se dão os desdobramentos dos percursos da

vingança. Recentemente, duas personagens entraram para uma galeria bastante restrita de vilões da

dramaturgia brasileira que se incorporaram ao nosso imaginário: Laura, de Celebridade, e Nazaré, de

Senhora do Destino, interpretadas respectivamente por Claudia Abreu e Renata Sorrah. A primeira

personagem passou todo o período da novela tentando “se vingar” de sua rival, Maria Clara Diniz

(interpretada por Malu Mader). Ao considerar que o seu pai teve roubada a prova de partilha de direito

autoral de uma música de grande sucesso, Laura vinga-se de Maria Clara, tirando-lhe tudo que lhe era

de direito pelo trabalho realizado durante anos. O objeto da vingança, aqui, passou por uma transfe-

rência de alvo, pois aquele que foi o “ladrão” de fato já não estava mais na história. De um modo um

pouco diferente, Nazaré, mesmo tendo roubado a filha de Maria do Carmo (Suzana Vieira), passou

boa parte da novela tentando se vingar da outra. E um caso como esse acaba sendo tão interessante

quanto o primeiro: Nazaré construiu uma relação absolutamente imaginária com a outra personagem,

e a ela atribuiu determinados deveres, como o de pagar por informações a respeito da filha desapare-

cida, como o de acreditar que Maria do Carmo não poderia ir à polícia dar queixa dela etc. Em ambos

3 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

creditam aos outros, Maria Clara e Maria do Carmo, deveres que não passam de imagens mentais cons-

truídas e desencadeadoras dos modos de as vilãs serem e estarem no mundo.

Comentemos mais um aspecto relacionado às novelas citadas: em determinado ponto das histórias, as

“mocinhas” surram suas respectivas rivais, em capítulos que atingiram altos índices de audiência. Mesmo

esse fazer, a surra, pode ser entendido como “vingança”, pois as protagonistas estavam literalmente “à

beira de um ataque de nervos” devido a chantagens, traições, mentiras, decadência econômica e moral

etc. promovidas ou desencadeadas pelas vilãs. A “surra”, expurgação da alma para as protagonistas, foi

o meio encontrado para o restabelecimento do equilíbrio delas. E, daqui, conclui-se que pode haver uma

vingança desencadeada por outra vingança, movimento narrativo revelador de traços de cultura.

Para finalizar, um último comentário deve ser feito. O sujeito que se sente ofendido ou em estado de fal-

ta precisa restabelecer um equilíbrio emocional ou passional, como dissemos a partir dos exemplos aci-

ma. Se o sujeito não desenvolve esse percurso, ou ele fica num estado de “amargura permanente”, ou

volta a um estado de satisfação, bastante resignado (sentindo-se ofendido, sem o seu objeto etc.). Se

ele não se adequar a esse reconhecimento de si mesmo como, talvez, “fracassado”, “espoliado” etc., ele

vai desenvolver um percurso de vingança., mesmo que tenha como alvo outro sujeito, que não aquele

que lhe tirou um objeto ou que lhe ofendeu. Citamos o caso de Laura, mas apresentamos ainda um ou-

tro, bastante elucidativo para a idéia que estamos desenvolvendo. Referimo-nos à fábula “A vingança do

Leopardo” (sem autoria):

Uma vez um filhote de leopardo afastou-se de casa e se aventurou entre uma grande ma-nada de elefantes. Seus pais o tinham advertido para manter distância daqueles gigantes-cos animais, mas ele não lhes deu ouvidos. De repente, houve um estouro da manada e um ele-fante, sem sequer vê-lo, pisou no filhote. Pouco depois uma hiena encontrou o corpo e correu a contar aos pais.

— Trago notícias horríveis — ela disse. — Encontrei seu filhote morto na savana. — A mãe e o pai leopardo deram urros de raiva e desespero. — Como aconteceu? — perguntou o pai — Diga quem fez isso com nosso filho!

Não descansarei até me vingar! — Foram os elefantes — disse a hiena. — Os elefantes? disse o pai leopardo, surpreso — Você disse que foram os elefantes? — Sim - disse a hiena, — vi as pegadas deles. —O leopardo andou de um lado para o outro, rosnando e balançando a cabeça. — Não, você se enganou — disse por fim. Não foram os elefantes. Foram as cabras.

As cabras assassinaram o meu filho!. Imediatamente deu uma corrida morro abaixo, irrompeu entre um rebanho de cabras que

pastavam no vale e, num ataque de fúria, matou todas em vingança.

4 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

O tipo de paixão apresentado diz respeito, principalmente, como insistimos, ao que denominamos simu-

lacro, que são as imagens “mentais” dos sujeitos a respeito de si mesmo, do “outro”, e dos objetos com

os quais se relaciona ou não. Baseando-se na crença ou no saber em relação ao “outro”, os sujeitos, por

meio de imagens puramente imaginárias, construídas a partir de seu universo de valores; quando em

estado de “falta”, sentem-se decepcionados. Daí, duas situações decorrem: ou os sujeitos se resignam,

amargando a “derrota”, ou eles partem para a reparação da falta: quer para reaver o objeto-valor que

lhe foi espoliado, quer para “manchar” a honra do outro, conforme apontamos nos exemplos. Ressalta-

mos, assim, que as paixões afetam o estado do sujeito, sendo sentidas na alma; isso, por sua vez, ou

faz com que o sujeito desenvolva outras ações, ou que simplesmente perdure no estado de determinado

sentimento “sentido” (porque tais sentimentos são “carnais”, também).

Lembramos que o estado do sujeito é o modo como ele se encontra na relação com um objeto qualquer

e sobre o qual ele investe determinados “valores”, ou de aproximação/atração ou de distanciamento/

repulsão; ou de euforia ou de disforia. Todos os estados do sujeito são desencadeados por ações, reali-

zadas por um “outro”, ou por ele mesmo, mas a partir da relação intersubjetiva que guia o seu modo de

ser e estar com o “outro” (“outro ser”, o próprio “contexto”, ele “mesmo” etc.). O movimento, observa-

se, é cíclico, pois as próprias ações são desencadeadas por paixões — os procedimentos instauradores

da ação serão estudados a partir dos verbos modais querer, dever, poder e saber.

Como estamos tratando da paixão, sempre do ponto de vista dos afetos provocados “na alma” e exten-

sivos ao “corpo”, podemos considerar uma infinidade de exemplos de paixão a ser descritos a partir dos

estados dos sujeitos: antipatia, cólera, decepção, tristeza, avareza, ciúme, medo, vergonha etc. Essas

paixões, podemos dizer, são negativas e muitas desencadeiam fazeres malevolentes por parte do sujei-

to que a sofre. Há, por outro lado, as paixões positivas, que, por sua vez, desencadeiam fazeres bene-

volentes: alegria, satisfação, bem-querença, simpatia etc. É muito pertinente notarmos o fato de que

cada uma dessas paixões é atualizada nos textos das diferentes culturas, sendo, neles, descritos os dis-

positivos modais que as instauram nos sujeitos. Para a nossa cultura, as paixões de malevolência de-

vem ser punidas, enquanto as de benevolência, muitas vezes, nem são levadas em conta, pois as consi-

deramos inerentes aos “sujeitos”, e não um bem, inclusive cultural, adquirido.

Se num primeiro momento enfatizamos paixões que “dependem do ‘outro’” para afetar o sujeito

(entendemos, aqui, o “outro” como “outra pessoa”), podemos considerar também as paixões que não

dependem de ninguém para que elas sejam desencadeadas, a não ser do próprio sujeito que a vivencia-

rá. Nesse caso específico, o “eu”, que está sempre inserido num contexto e, portanto, se constrói em

relação ao “outro”, desdobra-se ou biparte-se, instituindo-se como sujeito de uma manipulação e de um

fazer, ao mesmo tempo. Dentre esse outro tipo de paixões, destacamos a curiosidade, que, do ponto de

5 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

informação ou simplesmente como um “querer saber” alguma coisa que ainda não sabe; relações es-

sas que sempre estarão ligadas ao “outro” como presença física ou ao “outro” como sujeito bipartido

ou desdobrado. Nas histórias detetivescas utilizadas como mote para essa discussão, a curiosidade é

uma paixão que assola, num determinado ponto da narrativa, todas as personagens da história, e é

essa mesma paixão que move o sujeito leitor a querer acompanhar os desdobramentos da narrativa

até o fim. E isso porque, afinal, todos querem saber quem é o criminoso, como ele agiu e o porquê de

suas ações.

O teatro e o cinema, em outras épocas, e hoje mais pontualmente a TV são veículos de comunicação

de massa que constroem “heróis midiáticos”, cuja idolatria por si mesma instaura a curiosidade numa

legião de fãs – ou de curiosos. Assim, telespectadores “apaixonados” querem saber os modos de

vida, as ações e as histórias que circundam a existência dos ídolos, não medindo esforços para isso:

desde a compra e a divulgação de revistas e jornais especializados ao apoio a jornalistas que conse-

guem flagras inéditos ou notícias “quentinhas”. Muitas celebridades de nosso mundo contemporâneo

sobrevivem da paixão da curiosidade sentida por seus adoradores – ou simples curiosos. Nos discur-

sos sociais instaurados por este fato, discutem-se, até mesmo como conseqüência, as histórias deno-

minadas “fofoca” ou “boato” e instauram-se discussões intermináveis sobre a “privacidade” dos sujei-

tos públicos.

Entender a curiosidade, que é uma paixão, como propulsora da ação do sujeito é o que nos importa

neste momento: o sujeito vai, a partir do “querer saber”, construir-se como ser competente para rea-

lizar determinadas ações que possam assegurar-lhe o término da “falta de conhecimento/informação”

que tem. Quando atinge esse intento, sente-se realizado, mas pronto ou disposto a vivenciar “novas

curiosidades” e, obviamente, saná-las. Segundo os relatos bíblicos que orientam o imaginário religioso

do homem ocidental, Adão e Eva foram instaurados como sujeitos pelas paixões do medo e da vergo-

nha: enquanto a primeira pode ser descrita como um “não querer receber um castigo” ou “uma puni-

ção”, a segunda pode ser entendida como um “não querer receber uma ‘avaliação negativa’” Ao lado

delas, há de se considerar também a paixão da curiosidade, que, podemos dizer, existe desde que o

homem é homem, porque ela baliza as relações intersubjetivas estabelecidas entre os homens, sem-

pre considerados dentro de um contexto. O que esta grande introdução tem a ver com a nosso en-

contro de hoje? Além de ressaltar que a paixão deve acompanhar o espírito científico de todos nós

que assumimos nossos respectivos papéis de pesquisadores, esse assunto pode permear nossa incur-

são para os estudos da própria comunicação humana. Ser curioso é deixar-se seduzir pela necessida-

de e pelo desejo de responder a questões que não se sabe. Do ponto de vista científico, é entender

coerentemente o mundo, de modo a apreender argumentos que possam explicá-lo. A curiosidade é a

paixão primeira que deve instaurar todos

6 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

Página 7 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas aqueles que estudam a comunicação e suas diversas formas de linguagem. Em nossa área, por exemplo,

propomos algumas questões iniciais:

Como a moda se constitui como linguagem?

Quais relações estabelecidas com a moda no corpo e fora dele?

Quais discursos são veiculados por determinada moda?

Como esses discursos respondem às necessidades ou aos desejos humanos?

Como a moda pode ser analisada do ponto de vista da subjetividade do sujeito?

Até que ponto – e como – a moda concretiza discursos sócio-históricos?

Questões como essas são primordiais ao longo da construção de nosso papel de pesqui-

sador ou de cientista da área de moda. Os sujeitos que passam por tais questões sem

refletir sobre elas ou sem tentar respondê-las serão, num dado momento, cobrados por

isso; pois investidas assim vão diferenciar positiva ou negativamente os pesquisadores e

os resultados de seus respectivos trabalhos.

Até então, discutimos a paixão da curiosidade como instauradora do homem como tal e a atrelamos ao

trabalho acadêmico que vamos desenvolver durante o curso Cultura de Moda. Além dessa perspectiva,

podemos considerar também uma outra fonte de inspiração para o fazer do homem científico: os objetos

e os problemas com os quais nos defrontamos em nossas bibliotecas particulares, em nossas discussões

com professores etc. devem ter-nos “maravilhado”, num determinado momento de nossa vida. Esse ma-

ravilhamento, deslumbramento ou essa “estesia” é, segundo os gregos antigos, o primeiro passo no ca-

minho da sabedoria.

Atando as pontas, podemos considerar, então, que o maravilhamento e a curiosidade são molas propul-

soras também do fazer científico e, no nosso caso, eles se estendem às análises da moda como lingua-

gem, como elemento de comunicação nas e entre as culturas. Nesse percurso a ser trilhado por nós,

muitas vezes envolto pelo mistério ou pela dificuldade que são naturais à aquisição e à transmissão do

conhecimento humano, defrontaremo-nos com a tentativa de satisfazer nossas necessidades e desejos,

instaurados pelas paixões que nos guiam como sujeitos pesquisadores. Ao discurso científico que emba-

sará o tratamento dado a nossos respectivos objetos, atrelaremos vários pontos de esclarecimento, de

aprofundamento ou de nova perspectiva que serão provenientes de outras várias disciplinas. Assim, ao

mesmo tempo em que explicitaremos nossas opções teóricas ou metodológicas, também as discutiremos

a partir de outras perspectivas, com o intuito de analisar e interpretar os fenômenos, mas também de

construir o nosso próprio discurso de autoridade no assunto a partir consolidação dos métodos e dos ins-

trumentais utilizados em nossa argumentação e explicitados em nossas análises. Convidamos vocês, en-

tão, a caminhar conosco numa rápida apresentação do aparato teórico-metodológico que orienta nossas

pesquisas e, em muitos momentos, nossas vidas além dos portões da universidade.

Para encerrar esta primeira parte, nós propomos a vocês uma pequena charada, típica das elucubrações

8 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

Você entra num apartamento. Harry e Joan jazem no chão, mortos. Há um vidro

quebrado ao lado deles. Há um gato no sofá, costas arqueadas, olhando fixa-

mente para eles. Portas e janelas estão fechadas. Não há mais ninguém no apar-

tamento. Questão: como escapou o criminoso?

2. Pelas sendas da Semiótica: perspectivas de análises

Conceitos: visão geral I

Três grandes linhas de Semiótica coexistem atualmente no Brasil. A americana, a russa e a

francesa. A primeira tem como representantes máximos os trabalhos fundadores de Charles S.

Peirce, e, a segunda é tratada pelos integrantes da escola de Tártu, na Rússia, e refere-se aos es-

tudos da cultura, de modo geral. A terceira, por fim, a que nos filiamos mais fortemente, foi de-

senvolvida na França, na década de 1960, pelo lituano Algirdas Julien Greimas pelo Grupo de In-

vestigações Sêmio-lingüísticas da Escola de Altos Estudos e Ciência Sociais de Paris.

Também conhecido como semiótica greimasiana, semiótica discursiva ou semiótica de linha fran-

cesa, nosso modelo teórico-metodológico baseia-se na “geração do sentido” a partir do que se de-

nomina percurso gerativo do sentido (ou da significação). Para operacionalizar esse percurso, de-

ve-se, num primeiro momento, abstrair o “plano da expressão” de um texto e, nessa etapa, não

importa se o texto recebe a nomenclatura “verbal”, “visual”, “gestual” etc.A partir disso, estare-

mos tratando apenas de seu discurso, isto é, do conteúdo veiculado por um texto qualquer, o qual

denominaremos “plano do conteúdo”.

Se Conecte!

Charles S. Peirce http://bases.eci.ufmg.br/semiotica/Default.htm http://ligiacabus.sites.uol. com.br/semiotica/autores_peirce.htm Escola de Tártu http://www.pucsp.br/pos/cos/cultura/tartu.htm Escola de Altos Estudos e Ciência Sociais de Paris http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44501999000100009&lng=en&nrm=iso http://www.imageandnarrative.be/uncanny/dirkdegeest.htm http://www.associazionesemiotica.it/siti/siti_v.php

Se, num primeiro momento, tomamos o texto e deixamos de lado o seu plano de expressão

(visual, verbal ou uma combinatória de expressões), precisamos, então, de um modelo operacio-

nal que dê conta da análise de seu conteúdo, pensado sempre como um percurso de geração de

sentido. Esse conteúdo, como prevê a semiótica de linha francesa, será analisado em três etapas

ou níveis de significação: o nível fundamental, o nível narrativo e o nível discursivo. Essas etapas,

conforme veremos, partem dos elementos mais simples e abstratos do discurso aos elementos

mais complexos e concretos (sempre num crescendo de sentido). Acompanhemos o quadro expli-

9 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑

Nível Discursivo – o discurso é assumido por um

sujeito enunciador que se constrói no e pelo próprio dis-

curso, a partir das marcas de pessoa, de tempo e de es-

paço. Além disso, a narratividade no nível anterior, que

retoma as oposições do nível fundamental, é revestida

mais concretamente por meio de figuras. Nível Narrativo – os elementos opositivos do ní-

vel fundamental são transformados em objetos e valores.

É neste momento que são analisados os sujeitos da nar-

ratividade, isto é, os estados e as transformações de es-

tados que constroem os sujeitos e objetos de valor que

circulam entre ele. Nível Fundamental – apreendem-se as oposições

mínimas do sentido veiculado pelo texto, por meio de seu

discurso. Assim, encontram-se oposições quase universais

como: vida vs. morte; bem vs. mal; natureza vs. cultura;

identidade vs. alteridade etc.

↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑ ↑

A leitura do quadro anterior pode ser, agora, refeita, mas na direção indicada pelas flechas, pois é essa seqüência que seguiremos para expor a progressão de sentido, a partir do percurso gerativo. Na primeira etapa do percurso, que trata do conteúdo dos textos, apreendem-se as oposições míni-mas do sentido do discurso – por exemplo, vida vs. morte; natureza vs. cultura, identidade vs. alte-ridade etc. Esses elementos opositivos são transformados em objetos e valores no segundo patamar do percurso gerativo, que é o momento em que são analisados os sujeitos da narratividade que nos é apresentada, sendo essa um componente de qualquer texto, pois em sua base de significado en-contra-se a noção de “estados” e “transformações de estados”. Assim, por exemplo, o termo cultura apreendido no nível fundamental pode ser recoberto no nível narrativo pelo objeto roupa, e esse ob-jeto vai ser adquirido por um determinado sujeito que, por sua vez, desenvolverá programas narra-tivos para entrar em conjunção com valor que tal objeto apresenta para ele (status, adorno,

sociabilidade, etc.). Para tanto, o sujeito precisará passar por transformações de estados, isto é,

ser manipulado e competencializado para executar a performance de conjunção com a roupa e, na

seqüência, será sancionado por tal conjunção. Finalmente, no nível discursivo, a cultura do nível

fundamental, que foi relida no nível narrativo como roupa, será figurativizada como calça jeans, por

exemplo. Ressaltamos, aqui, o caminho analítico trilhado neste exemplo: do mais simples e abstra-

to ao mais concreto e complexo (cultura à roupa à calça jeans).

Nesta rápida apresentação do percurso gerativo de sentido, discutimos sucintamente a idéia de co-

mo o conteúdo dos textos/discursos é analisado. Após essa empreitada, nas análises “concretas”,

voltamo-nos à especificidade do texto propriamente dito e, assim, debruçamo-nos sobre a sua ex-

pressão, isto é, a sua natureza verbal, visual, gestual, etc., objetivando verificar possíveis relações

entre tal expressão e o conteúdo manifesto. Se houver reiteração, estamos diante de um discurso

poético ou de um discurso em que há “traços de poeticidade”. Os textos com mais de uma ex-

pressão, por exemplo, verbal e visual, como no caso das publicidades, são analisados a partir dessa

mesma perspectiva, sendo considerados, em termos da semiótica, “textos sincréticos”.

Conceitos: visão geral II

O plano de conteúdo dos textos será, então, estratificado em níveis de construção de sentidos, a

partir do que se denomina, em semiótica, Percurso Gerativo do Sentido. Nesse, recupera-se o pro-

cesso da significação, sempre num crescendo, apreendido em três patamares em que são engen-

drados os sentidos do discurso: o nível das estruturas fundamentais, o nível das estruturas narrati-

vas e o nível das estruturas discursivas. Cada um desses patamares possui um componente sintáti-

co e semântico, relativamente autônomo. Apresenta-se, na seqüência, uma esquematização do

percurso, conforme o postulado por Greimas & Courtés:

COMPONENTE COMPONENTE

NÍVEL sintaxe semântica Estruturas FUNDAMENTAL fundamental fundamental sêmio-nar- rativas NÍVEL DE sintaxe narrativa semântica NARRATIVO narrativa

Estruturas NÍVEL sintaxe semântica discursivas DISCURSIVO discursiva discursiva

Greimas e Courtés, 1979, p. 209 (adapt.)

PERCURSO GERATIVO DO SENTIDO

SINTÁTICO SEMÂNTICO

↓ ↓ pessoa, tempo figuras e e espaço temas

10 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

11 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

Nível fundamental

Dois diferentes momentos de “construção da significação” podem ser apreendidos neste nível: o pri-

meiro, pode-se dizer estático, refere-se à apreensão de termos da oposição básica que se estabelece

no texto – como estamos fazendo até então; o segundo, em contrapartida, dinâmico, diz respeito ao

percurso estabelecido entre os termos, pois é do próprio texto que vamos apreender os valores posi-

tivos ou “eufóricos” e os valores negativos ou “disfóricos” dos quais os discursos tratam. Geralmente,

os componentes deste nível são apresentados num “quadrado semiótico”, recurso que possibilita

também visualizar o percurso que estabelece a significação primeira do texto, conforme veremos

mais adiante.

No nível das estruturas fundamentais, reconhecemos os elementos mais simples e abstratos que dão

conta do sentido global do texto, numa operação de reconhecimento das semelhanças e das diferen-

ças (ponto de vista semântico) e numa apreensão de asserção e de negação (ponto de vista sintáti-

co). Assim, universos semânticos como vida vs. morte; natureza vs. cultura, identidade vs. alterida-

de, inclusão vs. exclusão etc. fazem parte deste primeiro nível. A sintaxe deste nível faz com que um

termo seja afirmado e o outro, por conseqüência, negado, do que surgem as primeiras significações

do texto.

Dadas as operações de asserção e de negação, os termos da estrutura fundamental são sobrepostos

por uma categoria abstrata e mais geral do que os próprios termos apreendidos. Essa categoria de-

nomina-se “foria”, que se “discretiza” em euforia (positiva) e disforia (negativa) – sendo que ambas

dizem respeito à conformidade do ser vivo com o ambiente e, sabemos, essa conformidade pode ser,

para o sujeito, positiva ou negativa. Desse modo, podemos apreender duas relações possíveis, dada

a oposição estabelecida já no nível fundamental:

Nesta linha da semiótica que estamos apresentando, utiliza-se um importante elemento de análise

que auxilia no entendimento das oposições fundamentais (e mesmo em outros momentos de análi-

se): o quadrado semiótico, anteriormente citado. Ele é, como dissemos, uma forma de serem apre-

endidas visualmente as primeiras significações do discurso, a partir do par opositivo mínimo, confor-

me apresentamos a seguir.

a) afirmação de s1, negação de s1, afirmação de s2;

b) afirmação de s2, negação de s2, afirmação de s1.

12 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

S

s 1 ------------ s2

| |

| |

não-s2 ------------ não-s1

não-S

----------------------- contrariedade (eixos) –––––––––> complementaridade (dêixis) <–––––––––––> contradição (esquemas)

De acordo com a terminologia semiótica, S é um universo de significação qualquer, que recebe o no-

me de “termo complexo”, em cuja base conciliam-se os termos de oposição. S, por sua vez, opõe-se

ao não-S, que é o “termo neutro”. Enquanto S opõe s1 e s2, não-S opõe não-s1 e não-s2. Por uma

relação de implicação recíproca, não-s1 implica s2 e não-s2 implica s1.

Do ponto de vista da operacionalização dos conceitos, o termo complexo será lido como a presença de

traços positivos dos termos de oposição, enquanto o termo neutro o será pela ausência dos traços

(que negam os termos de oposição de base). Os discursos constroem tais relações entre os termos a

partir dos universos de significação definidos neles mesmos. Nem sempre os termos aparecem

“figurativizados” ou “concretizados”, mas podem ser facilmente recuperados pela pressuposição.

Vamos a um exemplo operatório desses conceitos: em muitos discursos, o “feio” se opõe ao

“bonito” (e temos, aqui, como S, ou como eixo semântico, a aparência, reconhecida a partir do julga-

mento estético). Na língua, sabemos caracterizar ou dar atributos ao que julgamos “feio” e “bonito”; e

nesse caso específico, ainda lançamos mãos de termos como “feinho” e “bonitinho”, ambos implicando

a negação do primeiro e implicando a afirmação do segundo (“feinho” = “não feio” “bonito”;

“bonitinho” = “não bonito” “feio”).

É óbvio que o exemplo dado foi preenchido por termos que fazem parte de nosso universo de julga-

mento estético. Para você, leitor, que pode ter uma avaliação estética diferente da nossa, as posições

dos termos podem ser alteradas! E isso porque não estamos tratando de um texto “pronto”, em cujo

discurso se constroem os critérios de avaliação estética a partir das próprias relações promovidas por

esse discurso hipotético específico. Como dissemos, estamos embasando esse exemplo do feio vs. bo-

nitoem nosso universo de discurso (no qual se incluem nossas crenças, nossos saberes, nossos conhe-

cimentos de mundo, nossas concepções estéticas etc.). Se fôssemos discutir, por exemplo,

13 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

O corcunda de Notre Dame ou mesmo O homem elefante, O patinho feio etc., verificaríamos que a

questão estética e as noções de belo/feio são de fato construídas no próprio discurso.

Ainda com o objetivo de mostrar a operacionalidade do quadrado semiótico, apresentamos mais um

exemplo: o universo semântico que compõe nossa concepção de “sexualidade” – e estamos pensando

em uma possibilidade de discurso, e não a partir de um texto/discurso específico, como fez Kathia

Castilho em Moda e Linguagem (São Paulo, Anhembi Morumbi, 2004). A colocação dos termos

“concretos” nesse nosso quadrado da sexualidade vai depender de nossos valores, crenças e conceitos

acerca do que entendemos como sexualidade. E é esse movimento operatório da análise que deve ser

levado em conta, pois é justamente isso que acontece nos discursos em geral que vamos analisar a

partir de nossos respectivos objetos: tomando como base o reconhecimento de traços diferenciais en-

tre os termos que compõem os universos semânticos tratados nos discursos, mesmo que os recupere-

mos por pressuposição, identificaremos outros termos, e assim remontamos a significação de base

proposta pelos discursos. Nesse universo da “sexualidade”, teríamos, a partir de um discurso “do cida-

dão comum”, as oposições que seguem.

masculinidade feminilidade

não-feminilidade não-masculinidade

Esse seria o nosso primeiro nível de abstração a partir da “sexualidade”. Agora, como dissemos, de-

pendendo de nossas crenças, valores, concepções de mundo etc., vamos preencher cada uma dessas

posições com “figuras” ou termos da língua: homem, mulher, homossexual masculino, homossexual

feminino, metrossexual, hermafrodita, os “palavrões” (lésbica, veado, sapatinho, bicha, sapatão etc.)

etc. Em alguns casos, pode ser que não haja um termo da língua que dê conta do termo da oposição.

Isso não é problema, pois a idéia de concretização “da coisa” está dada e está sendo veiculada pelo

próprio discurso. É importante ressaltar que estamos, a todo momento, trabalhando com a apreensão

de semelhanças e diferenças, de mais abstratas a mais concretas, conforme prevê o percurso gerativo

do sentido. O quadro abaixo retoma as oposições geradas a partir do eixo da sexualidade humana, e

está sendo preenchido com imagens publicitárias difundidas por mídias diversas. É importante ressal-

tar, porém, que a partir do eixo tratado, outras possibilidades de estudo começam a surgir, a exemplo

da construção do “corpo humano” que pode ser analisado também aqui (cf. Do corpo presente à au-

sência do corpo: moda e marketing, de Kathia Castilho – tese de doutoramento em Comunicação e

Semiótica —signo e significação nas mídias, sob a orientação da profa. Ana Claudia de Oliveira, apre-

sentada à Pontifícia Universidade Católica, em 2004).

14 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

Masculinidade Feminilidade

Não-feminilidade Não-masculinidade

Na seqüência das análises “concretas”, após o estabelecimento do eixo de semântico comum e após a

determinação das diferenças ou dos termos de oposição, voltaríamos para o discurso analisado com o

intento de apreender qual dos termos está sendo valorizado positiva ou negativamente. Se ainda par-

timos da hipótese de que os termos apontados acerca da sexualidade tiveram seu preenchimento

“figurativo” realizado por nosso cidadão “comum”, provavelmente chegaríamos à conclusão de que

ele é um sujeito conservador, para o qual “branco” é “branco” e “preto” é “preto”, pois, para ele, não-

masculinidade implica feminilidade e, ao contrário, não-feminilidade implica masculinidade. Outros

discursos, de outros cidadãos, por sua vez, construiriam de modo diverso este mesmo quadrado, com

maior ou menor julgamento “ideológico”: o discurso religioso, por exemplo; o discurso dos membros

do GLS (gays, lésbicas e simpatizantes); o discurso dos próprios homossexuais, o discurso das femi-

nistas; o discurso dos “machões”; o discurso da família “moderna” e o da família “tradicional”,

15 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

e tantos outros mais. A cada construção, porém, insistimos, é possível apreender o que está “por

trás” das opções, pois o próprio “recorte do mundo” para explicá-lo revela o universo em que se inse-

re o produtor do texto, seu ponto de vista acerca dos homens, de suas ações e de suas paixões.

Nível narrativo

Os termos do nível das estruturas fundamentais e o percurso que a eles se propõe já na base do dis-

curso são recuperados no nível das estruturas narrativas, como prevê a semiótica de linha francesa -

sempre num crescendo de sentido (aspectos que estamos reiterando a todo momento). Neste nível,

os termos da oposição básica do texto passam a ser objetos e valores a que aspiram os sujeitos e,

desse modo, ganham novos revestimentos semânticos ou são concretizados diferentemente em rela-

ção aos termos apontados no primeiro nível da geração de sentido, mantendo, no entanto, a mesma

“axiologização”, isto é, a mesma valoração positiva ou negativa encontrada no nível das estruturas

fundamentais.

No nível das estruturas narrativas, a narratividade ganha uma dimensão espetacular em que sujeitos

buscam ou constroem objetos nos quais investem determinados valores, em que sujeitos disjuntos do

objeto valor ou conjuntos deles têm seu estado alterado, quer por um fazer reflexivo (o próprio su-

jeito age), quer por um fazer transitivo (o sujeito recebe uma ação do “outro”): eis a simulação do

funcionamento do mundo, cujas transformações realizadas ora contribuem para que os sujeitos ajam,

ora colaboram para que eles se vejam plenamente repletos dos valores a que aspiram.

No segundo patamar do percurso gerativo de sentido, no nível das estruturas narrativas, portanto,

voltam-se as análises para o fazer transformador do sujeito e os estados que ele altera. A semiótica

propõe um esquema narrativo canônico, um modelo de previsibilidade, que nos possibilita verificar, a

partir da perfórmance do sujeito, isto é, da transformação que ele opera na narrativa, por quais ma-

nipulações ele passou, quais foram as competências que ele precisou adquirir para efetuar tal ação e,

por fim, como ele vai ser julgado por ter realizado ou por ter não realizado o que lhe foi (auto-)

destinado. O esquema mínimo que dá conta da noção da narratividade é o apresentado a seguir:

16 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

S \/ Ov S1 /\ Ov ou S /\ Ov S1 \/ Ov

onde: S = sujeito \/ = relação de disjunção /\ = relação de conjunção O = objeto v = valor Ov = objeto-valor

Observemos os textos abaixo, como proposta para um melhor entendimento dessas relações de

conjunção ou de disjunção, entendidas como estados e transformações operadas pelo sujeito ou

por um “outro”.

Texto 1

A personagem desta historinha responde, pelo visual,

à proposta do sujeito que enuncia a afirmação de que

“Às vezes, na vida, temos que parar para um balan-

ço”. Essa personagem, podemos dizer, por pressupo-

sição, estava “sem o balanço”, portanto disjunta dele

e, na seqüência, entrou em conjunção com ele. O ter-

mo “balanço” é figurativizado como “brinquedo” e,

por ser uma palavra polissêmica, isto é com mais de

um sentido, significa, aqui, também “pausa”,

“descanso”, “momento de reflexão”, etc. É importan-

te percebemos que houve uma transformação de es-

tado: antes a personagem estava “sem o balanço” e,

depois, entrou em conjunção com ele. Pelo visual,

apreende-se que a personagem entrou em conjunção

com os dois sentidos atribuídos a “balanço”.

17 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

Texto 2:

Esta mulher, que vamos denominar sujeito,

está comendo um melão, segundo os costu-

mes de seu local de origem (conheça a his-

tória dos bushmen através do site acima

indicado). De conjunção com a fome, o su-

jeito passa, por meio de seu fazer “comer”,

a disjunção; de onde decorre um novo esta-

do, o da satisfação alimentar. São esses di-

ferentes estados, promovidos por fazeres

diversos, que estão sendo exemplos para a

narratividade proposta como elemento a ser

recuperado e discutido em nossos respecti-

vos objetos de análises.

Texto 3:

Num momento anterior, este sujeito não estava em conjunção com estas marcas

corporais e, portanto, executou uma série de fazeres para entrar em conjunção com

elas. Ao objeto tatuagem, este sujeito investe determinados valores, instituídos pelo

grupo ao qual pertence e, por outro lado, tais valores recuperam os discursos sócio-

históricos que os circunscrevem.

18 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

Texto 4:

Este sujeito, que no nível discursivo vai ser

identificado como “adolescente cambojana”,

prepara-se, de acordo com a fotografia (e

com a leitura do texto verbal que a acompa-

nha: vide site), para “prostituir-se”. Para tal

fazer, ela precisa entrar em conjunção com

determinados objetos, descritos, aqui, co-

mo, por exemplo, maquiagem.

Texto 5:

Neste anúncio, trabalha-se, no nível do dis-

curso, com o diálogo direto. Aqui, o “sujeito

que fala” dirige-se diretamente a seu recep-

tor, no caso o “leitor” do anúncio. A relação

estabelecida é bastante instigante: num pri-

meiro momento, o leitor pode ter certeza de

que está seguro e, portanto, conjunto com a

“segurança” em seu computador. Num se-

gundo momento, porém, após a pergunta e

as informações adicionais, que estão rela-

cionadas ao cadeado no fio do mouse, ins-

taura-se, em muitos, a insegurança e, as-

sim, o sujeito leitor, aquele que “não é do

ramo”, tende a entrar em contato com a

empresa para transformar o seu estado, da

conjunção com a insegurança para a

“segurança”, adquirida, segundo a publici-

dade, por meio de objetos com os quais tra-

balha a empresa anunciante.

19 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

Após os exemplo anteriores, reiteramos que a transformação, isto é, a passagem de um estado a

outro, é o componente mínimo que garante a narratividade para qualquer tipo de texto. Tratamos

predominantemente de textos visuais ou sincréticos, mas mesmo em textos de verbais consegui-

mos apreender a narratividade, quer num conto, num romance, numa notícia, num discurso políti-

co, etc. Vejam como um servidor da Internet, o UOL, constrói-se como competente para noticiar os

acontecimentos ocorridos no antes, no durante e no depois da morte do Papa João Paulo II: em ca-

da manchete do site é possível recuperar estados de um “antes” e estados de um “depois”, desen-

cadeados por fazeres transformadores que simulam o funcionamento do mundo:

Nas narratividades recuperadas nos exemplos acima – e em qualquer discurso – um sujeito possui

um dado objeto, que para ele tem determinado valor e, por uma ação qualquer, perde tal objeto,

desenvolvendo uma “história” para recuperá-lo ou para entrar em conjunção com outros objetos,

outros valores, etc. E o inverso também vai caracterizar a narratividade: daí denominarmos

“estados de conjunção” (/\) ou “estados de disjunção” (\/) na relação estabelecida entre sujeito-

objeto. Mesmo em manchetes de jornais, insistimos, podemos encontrar estados de um “antes” e

de um “depois”, o que, como se entende, caracterizam as ações transformadoras dos sujeitos no

mundo. Por exemplo: “MST invade mais uma fazenda em Goiás”; “Tsunami abala a paz mundial”

http://noticias.uol.com.br/ultnot/especial/2005/04/18/ult2643u112.jhtm

17.abr.05: "Eleitores ilustres" influenciam votação papal 16.abr.05: Primeira votação do conclave pode ficar para terça 15.abr.05: Divulgada mensagem póstuma de João Paulo 2º 14.abr.05: Latinos perdem favoritismo na sucessão do papa 13.abr.05: Vaticano volta a ter rotina de fila de peregrinos 12.abr.05: Cardeais assinam carta por beatificação de João Paulo 2º 11.abr.05: Visitas ao túmulo começam na quarta-feira 10.abr.05: Conclave perde mais um cardeal por enfermidade 9.abr.05: Vaticano restringe especulações sobre próximo papa 8.abr.05: João Paulo 2º é enterrado na basílica de São Pedro 7.abr.05: Papa cogitou renúncia em 2000, diz testamento 6.abr.05: Conclave para escolha do papa começa no dia 18 5.abr.05: Vaticano anunciará o novo papa também com sinos 4.abr.05: Fiéis começam a se despedir de João Paulo 2º 3.abr.05: Corpo é velado com acesso restrito 2.abr.05: João Paulo 2º morre aos 84 anos 1º.abr.05: Papa piora, e milhares fazem vigília

Como o UOL noticiou:

20 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

no primeiro caso, temos um sujeito coletivo, no segundo, um elemento da natureza. A partir desses

estados transformadores e transformados, podemos recuperar percursos “pontuais” das ações: qual

destinador manipulou os sujeitos para realizar dada ação, quais foram as competências necessárias

que ele precisou adquirir para realizá-la, quais sanções lhe foram atribuídas, a partir da ação realiza-

da, etc. Os estados e as transformações, se bem recuperados nas análises, possibilitam ao analista,

por fim, reenquadrá-los no já mencionado “esquema narrativo canônico”, que é um modelo de pre-

visibilidade sob o qual repousam as invariabilidades da narrativa: se alguém age, é porque foi mani-

pulado para tal e é porque tinha os elementos necessários para executar um fazer; esse sujeito que

age, no final de sua “história”, pode receber um prêmio ou castigo, de acordo com quem vai julgá-

lo. Assim, o esquema narrativo canônico compreende quatro fases, que são mais desenvolvidas ou

menos desenvolvidas nas histórias: a manipulação, entendida simplesmente como um “fazer fazer”,

a competência, entendida como um “ser do fazer” (o que é preciso para que o sujeito aja?); a per-

fórmance, que é entendida como um “fazer ser”, isto é, a ação proposta na manipulação e, por fim,

a sanção, que é entendida como um “ser do ser”, ou seja, qual é o estado final da ação e do próprio

sujeito que a realizou.

Tais etapas esquema narrativo canônico são as apresentados no quadro:

Manipulação Competência Perfórmance Sanção

O destinador atribui O sujeito da perfórmance é O sujeito realiza a O destinador in- uma competência dotado das competências transformação de ter preta a perfór- semântica ao sujeito necessárias para a transfor- estado prevista na mance do sujeito, da perfórmance, as- mação que realizará, isto é, manipulação. Sancionando-o sim como as moda- as modalidades do poder ou (ação) cognitiva e ou lidades do dever ou do saber fazer. pragmaticamente. do querer fazer.

modalidades: virtualizantes atualizantes de realização veridictórias

denominação verbal das fases: fazer-fazer ser do fazer fazer-ser ser do ser

21 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

Voltemo-nos para um exemplo bastante simples, visando à operacionalidade dos conceitos apre-

sentados. Tomemos a ilustração abaixo, que trata da transformação da “abóbora” da Cinderela em

“carruagem”:

Do ponto de vista da Fada, ela executa um fazer, que é o de transformar a “abóbora” em

“carruagem”. Para tanto, ela segue seus princípios que lhe destinadores, do querer e do dever fa-

zer, já que, como “fada”, transforma sonhos em realidades. Vejamos: este é o fazer da Fada! Ela

precisou, então, num primeiro momento, ser manipulada para realizar a sua ação, mas essa fase

fica apenas pressuposta na narrativa. Depois, mesmo que ela quisesse fazer ou devesse fazer e

não soubesse como ou não pudesse fazer, a história acabaria aqui. Porém, a Fada tem um saber e

um poder concretizados como “varinha de condão”, objeto mágico que a dota de competência para

realizar a sua ação de transformar a “abóbora” em “carruagem”. Com os elementos necessários

para executar a sua performance, a Fada age.

Se pensarmos numa análise que só dê conta deste aspecto da história, sabemos que estamos num

nível da obviedade e, por isso, quanto mais avançarmos nas explicações e explicitações entre o dis-

curso analisado e o nosso instrumental teórico, mais segurança teremos para dar seqüência às

22 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

interpretações de nossos respectivos objetos. Continuando, então, esta análise, temos que pensar a

questão do ponto de vista da Cinderela, que foi o sujeito que teve o estado alterado: de disjunção

com a festa no baile para a conjunção com a festa, possibilitada justamente pelos fazeres mágicos

da Fada.

Na perspectiva de Cinderela, não há dúvidas que a Fada aparece para sancionar a garota: “Você tem

sido uma boa menina...”. Assim, a fada, num primeiro momento reconhece a bondade de Cinderela

(sanção cognitiva) e, na seqüência, atribui a ela um prêmio por essa bondade (sanção pragmática).

Podemos dizer, então, que no esquema narrativo de Cinderela, a Fada aparece justamente na fase

da sanção e, assim, após o reconhecimento e o prêmio positivos que são atribuídos à garota, desen-

volvem-se outras “historinhas”. Grosso modo, pode-se dizer que a Cinderela fora manipulada pelos

discursos sociais de seu contexto a ser “boa”, “meiga”, “trabalhadora”, etc. Logo, ela aceitou este

contrato social, querendo e devendo ser como o previsto. Por pressuposição, tinha competência para

dar continuidade a essas ações – nas histórias verbais, ela conversa e canta com os animais silves-

tres, cuida deles, etc. –, sendo que elas configuram sua performance. Nessa seqüência da história,

Cinderela é sempre maltratada pela madrasta e pelas filhas delas, que não seguem os mesmos con-

tratos sociais estabelecidos na fase da manipulação, o que revela que elas assumiram outro tipo de

contrato, sendo que suas ações são sempre “negativas”, perversas, até, com Cinderela. Na impossi-

bilidade de ir ao “baile”, aparece a Fada, como dissemos, para sancionar “positivamente” a garota e,

assim, dotar-lhe de todos os elementos necessários para o “ir ao baile”, performance que desenca-

deia a continuidade da narrativa, culminando com o casamento de Cinderela com o príncipe.

Este exemplo mostra que as fases do esquema narrativo canônico podem ser combinadas de modos

diversos, e que o recorte que o analista faz no discurso analisado pode ser discutido de vários pon-

tos de vista a partir dos mesmos princípios orientadores.

A sanção, devemos reiterar, é a “última” fase desenvolvida num percurso narrativo e recai

sobre a perfórmance do sujeito, que, se cumpriu o esperado na manipulação, é sancionado positiva-

mente e, se não, negativamente. A sanção desdobra-se em sanção cognitiva e em sanção pragmáti-

ca. Na primeira, os estados manifestos do sujeito são interpretados e reconhecidos em termos de

verdade (parece e é), falsidade (não parece e não é), mentira (parece, mas não é) ou segredo (não

parece, mas é). Na segunda, por outro lado, a partir dessa interpretação por parte de um julgador,

decorre a sanção pragmática do sujeito, manifestada em forma de prêmio (sanção pragmática posi-

tiva) ou em forma de punição (sanção pragmática negativa). Salas de aula, virtuais ou presenciais

são bons exemplos para o entendimento dos tipos de sanções: ao final do curso, o professor pede

um trabalho e o aluno o faz. A partir do julgamento do professor, que reconhece esforço, dedicação

do aluno e a pertinência do conteúdo discutido, ele atribui uma nota “baixa” ou uma nota “alta”, que

23 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

que concretizam a punição ou a recompensa, respectivamente.Neste, nível, portanto, analisam-se

os “contratos” entre destinador e destinatário, as modalidades e as relações entre destinatário e

objeto previstos nos contratos.Num primeiro momento, o destinatário-sujeito será analisado do

ponto de vista de seu fazer:

Num segundo momento, o destinatário será analisado do ponto de vista dos valores atribuídos aos

objetos:

A gama de combinação desses termos, inclusive com suas respectivas negações é bastante grande

e variável, de narrativa para narrativa. É interessante notar, também, que as relações estabeleci-

das entre o fazer do sujeito e os objetos com os quais ele se relaciona desencadeia o que entende-

mos como “paixão”, conforme a abertura desta aula. É simples: imaginemos um sujeito que “quer

fazer” e “deve fazer” alguma coisa, mas que não “sabe” ou que não “pode fazer”. Isso gera insatis-

fação e, muitas vezes, uma busca obstinada pelo “saber” e pelo “poder”. Se tudo ocorre bem para

o sujeito, que aceita a manipulação e tem as competências necessárias para a ação, desencadei-

am-se, ao contrário, as paixões de satisfação nele.

Nos contratos previstos na manipulação, o destinador só consegue fazer com que o sujeito faça se

constrói dele um “bom simulacro”. Assim, ele vai organizar seu discurso de manipulação por:

desejáveis (o sujeito os quer)

indispensáveis (o sujeito deve tê-los)

possíveis (o sujeito pode tê-los)

verdadeiros (o sujeito sabe tê-los)

ele quer fazer: vontade

ele deve fazer: prescrição

ele pode fazer: liberdade

ele sabe fazer: competência

Sedução: imagem positiva do sujeito

Provocação: imagem negativa do sujeito

Tentação: imagem positiva do objeto

Intimidação: imagem negativa do objeto

24 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

Tais figuras de manipulação será concretizadas em forma de “pedidos”, “solicitações”, “súplicas”,

“ordens”, “cobranças”, “propostas (indecentes)”, etc. No simulacro, então, o destinador faz uma

“leitura” dos modos de ser o sujeito. E nesse simulacro serão apreendidas as crenças e os valores

com os quais tanto o destinador como o sujeito se relacionam. Lembremo-nos, por exemplo, das

“Tentações de Cristo no deserto”: por três vezes, o demônio (destinador) tenta manipular Cristo

(sujeito); em nenhuma dessas vezes, no entanto, Cristo aceitou a manipulação e, assim, pelos obje-

tos e imagens oferecidas pelo demônio e pelas não-aceitações de Cristo, temos um quadro das cren-

ças e dos valores com os quais esses dois sujeitos da narrativa se relacionam.

Voltamos à uma proposta de operacionalização, a partir de discursos da Moda. Acompanhe-

mos os textos que seguem, todos referentes às tendências lançadas durante o São Paulo Fashion

Week (outono – inverno 2005).

O que se apresenta na passarela, sabemos, é uma “tendência a/ao”. Podemos considerar os desfiles

como destinadores manipuladores, que visam a fazer com que o outro faça, ou seja, àqueles que

assistem. É óbvio que muitas peças dos desfiles não serão utilizadas pelos usuários, pois elas foram

construídas apenas para o momento da apresentação e porque, insiste-se, elas são uma forma de

fazer ressaltar a tendência. A essa perspectiva de análise, somam-se outras, conforme veremos na

seqüência.

A concretização ou a figurativização desse destinador manipulador que apontamos como “desfile”

pode ser realizada a partir de um estilista-criador ou de uma empresa em particular.

Mario Queriroz (Reuters/Claudio Pe-droso)

Reinaldo Loureiro (Reuters/Claudio Pe-droso)

Fórum (Tuca Vieira/Folha Imagem)

Cavaleira (Tuca Vieira/Folha Imagem)

25 Teoria Semiótica - Parte I: Perspectivas

Como nos exemplos apresentados, citamos Mario Queiroz, Ronaldo Loureiro, Fórum e Cavaleira.

Esses sujeitos, com suas respectivas construções que tratam de tendências, são, por fim, a concre-

tização do destinador manipulador da moda de passarela.

De outro ponto de vista, porém, verificamos que cada criador-estilista ou empresa que “lança mo-

da”, no senso comum, executa uma série de ações ou de fazeres para, depois, traduzi-las em suas

criações. Seu trabalho consiste em pesquisas de campo de ordem diversa: estudos sobre cores e

contrastes; estudos sobre formas e matérias, estudos sobre o espaço, estudos sobre as relações

entre corpo e indumentária (roupas e acessórios), estudos sobre os comportamentos “de rua”, etc.

Esses fazeres fazem parte dos projetos do sujeito, cujas ações são performances em que constrói

uma série de elementos, que, depois, são transportados à passarela, assumindo o papel de desti-

nador manipulador de outros sujeitos. Dentre esses elementos, destaca-se a própria roupa, obvia-

mente, vinculada a uma marca e a um estilo, a que, por sua vez, subjaz uma discursos: da confor-

tabilidade, da contemporaneidade, da “novidade”, da leitura cíclica dos movimentos da moda, etc.

Nos casos apresentados nos exemplo, é o “brilho” que se mostra como traços para uma nova ten-

dência de moda.

Assim, podemos entender, num primeiro momento, o manipulador criador como sujeito de um fa-

zer, cujo resultado se realiza nos desfiles de passarela e, nesse percurso, constitui-se como um

manipulador destinador aos que o assistem: os especialistas em moda, jornalistas e público em ge-

ral. Como resultado dessa manipulação, traços das tendências apresentadas são incorporados aos

usos cotidianos, e a moda, até então abstrata, passa a ser concreta: quer pela figura de um cria-

dor, quer por uma indumentária que ganha espaço fora dos espaços da passarela.

Esse ciclo de ações, aceitações ou recusas acontece de modo sazonal: a cada estação, no-

vas tendências são lançadas e, como se disse, fazem parte de pesquisas de ordem diversas, muitas

vezes saídas da moda que já se encontra nas “ruas”. Recriada autorizadamente por um estilista ou

empresa, a ela são atribuídas novas feições, que, “de repente”, são devolvidas para os usuários,

que já a utilizavam, sem muitas vezes dar conta disso. Ao ganhar os espaços do cotidiano, a moda

“lançada” padroniza os sujeitos usuários, caso eles a incorporem em seu dia-a-dia, sancionando

positivamente, portanto, aquilo que foi apresentado como tendência no espaço muitas vezes bas-

tante reservado dos desfiles.

Bibliografia CASTILHO, Kathia (2004). Moda e linguagem. São Paulo, Anhembi Morumbi.

––––––– (2004). Do corpo presente à ausência do corpo moda e marketing.

Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Comunicação e Semiótica da

PUC-SP, sob a orientação da profa. dra. Ana Claudia de Oliveira.

FIORIN, José Luiz (1999). “Sendas e Veredas da Semiótica Narrativa e discursiva”.

Revista Delta, vol. 15, São Paulo.

GREIMAS, Algirdas Julien e COURTÉS, Joseph (1979). Dicionário de Semiótica. trad. Alceu Dias Lima et alii. 9ª ed. São Paulo, Cultrix. Vol. I. Revista I-D. Agosto, 1998.

Revista The face. Maio, 2000.