teoria do medalhão

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TEORIA DO MEDALHÃO

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Conto de Machado de Assis em que um pai sem caráter (poderia ser Sarney) apresenta ao filho que acaba de compretar 21 anos (algum filho varão de Sarney) um caminho de vida asqueroso e sem-vergonha.

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TEORIA DOMEDALHÃO

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Coordenação EditorialIrmã Jacinta Turolo Garcia

Assessoria AdministrativaIrmã Teresa Ana Sofiatti

Assessoria ComercialIrmã Áurea de Almeida Nascimento

Coordenação da Coleção ClássicosLuiz Eugênio Véscio

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TEORIA DOMEDALHÃO

Machado de Assis

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Assis, Machado de, 1839-1908.Teoria do medalhão / Machado de Assis.

Bauru, SP : EDUSC, 2001.28 p. ; 15 cm. - - (Coleção Clássicos)

ISBN

1. Literatura brasileira - Contos. 2. Contosbrasileiros. I. Título. II. Série

CDD. B869.301

A8484t

Editora da Universidade do Sagrado CoraçãoRua Irmã Arminda, 10-50 - CEP 17011-160 - Bauru - SP

Fone (14) 235-7111 - Fax (14) 235-7219e-mail: [email protected]

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Apresentação

Machado de Assis (1839 – 1908) foi umobservador crítico e irônico da sociedadebrasileira do final do século XIX. Mas nemsempre foi assim,claro.Machado,que nasceupobre,era filho de um pintor de paredes por-tuguês e de uma lavadeira negra, teve que as-cender com o próprio esforço e pagou o pre-ço de sua ascensão cautelosa reproduzindo oideário dessa sociedade. Prova disto são osseus primeiros romances – A mão e a luva eHelena, por exemplo.

Machado penou um bom tempo parapoder exercer sua crítica sutil e sua ironia fe-rina. Era um mulato, não podemos esquecer,vivendo no seio de uma sociedade escravo-crata,autoritária e racista.Sabia dos cuidadosque devia tomar para sobreviver com o míni-mo de tranqüilidade. E conseguiu tudo isto,dizem os seus biógrafos. Mário de Andrade,por exemplo, afirmou que “tudo o que quisvencer, venceu”. Foi escritor de primeiragrandeza, reconhecido no seu tempo, e im-piedoso com os seus contemporâneos emprosa elegante e serena.

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O conto que temos aqui reproduzidopertence à fase madura do autor e saiu em li-vro em 1882. É do período em que Machadojá experimentara o “naufrágio das ilusões ro-mânticas”que orientaram a sua primeira pro-dução literária. O autor também já se encon-trava em posição confortável e podia exerci-tar o seu humor cortante e ferino, como ve-mos nesse Teoria do medalhão, onde umpai inescrupuloso apresenta ao filho de 21anos um roteiro de vida à la O Príncipe deMaquiavel.

É um modelo teórico reconhecidamen-te eficaz para conquistar respeitabilidade esucesso em sociedades suscetíveis ao jogodas aparências.Uma fórmula que pode ser re-sumida assim;“nunca infringir regras e obri-gações capitais”.Para isto,desde a juventude,controlar o ardor e a exuberância, desenvol-ver idéias rasas, disciplinar o cérebro para acircunspecção oca, conduzir o espírito parao convencionalismo e exercitar a capacidadede pertencer a qualquer partido. E jamais,nunca mesmo, usar a ironia. No resumo daópera, adquirir uma tal gravidade, aprumo ecompasso, que gregos e troianos o acharão oser mais confiável e respeitável do mundo. E

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tornar-se, enfim, um medalhão, a quem cabe-rão cargos e honrarias, poder e riqueza, emsuma.

De certa forma, é cumprir tudo aquiloque Machado de Assis jamais pretendeu fa-zer: moldar-se com a fôrma dos homens desua época sem o requinte da ironia, “essemovimento ao canto da boca, cheio de mis-térios, inventado por algum grego da deca-dência, contraído por Luciano, transmitido aSwift e Voltaire”. Seguir a teoria do medalhãoé conformar-se com a mediocridade respei-tável – muitas vezes recompensada, verdadeseja dita – mas distante da aspiração genuínade qualquer espírito inclinado aos prazeresdo intelecto e, especialmente, a produção dealguma coisa verdadeira.

Nesse sentido, vale a pena recordar opoeta rio-grandense Silvio Duncan (1922 –1998) que, no final da década de 40, lançoucom outros escritores (entre eles RaymundoFaoro) a revista Quixote. Era uma publicaçãoliterária que ousava criticar o poder intelec-tual dominante e aspirava realizar algumabarbaridade na vida cultural do Rio Grande.Era expressão de uma luta contra os meda-lhões da cultura, como disse tantas vezes Sil-

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vio Duncan.Os medalhões que ditavam as re-gras do que era e não era o poema,por exem-plo, ou determinavam quem deveria ser pu-blicado. Silvio,“sacudido de sonhos”, não po-dia dobrar-se a estas figuras e, “alma revoltade loucura santa”, investiu contra todos osmoinhos dos medalhões que estiveram aoseu alcance.

Leitor de Machado de Assis, Silvio Dun-can jamais perdeu o prazer da ironia e docombate intelectual inclusive.Teve o prazerde não ser um medalhão, mesmo quando en-trou no “regímen do aprumo e do compasso”e as sereias cantaram aos seus ouvidos paraque integrasse à ordem bem pensante.Ao seumodo, foi um Quixote “falando à indiada chu-cra pelo rugido do sangue” e produzindopoemas que considerava verdadeiros e quesão admirados até hoje.“Forte como um an-seio de liberdade”, nunca se dobrou ao rotei-ro dos medalhões do seu tempo.

Vitor BiasoliProfessor de História da UFSM - RS

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Teoria do Medalhão

– Estás com sono?– Não, senhor.– Nem eu; conversemos um pouco.

Abre a janela. Que horas são?– Onze.– Saiu o último conviva do nosso

modesto jantar. Com que, meu peralta,chegaste aos teus vinte e um anos. Há vintee um anos, no dia 5 de agosto de 1854,vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estáshomem, longos bigodes, alguns namoros...

– Papai...– Não te ponhas com denguices, e fale-

mos como dous amigos sérios. Fecha aquelaporta; vou dizer-te cousas importantes.Senta-se e conversemos. Vinte e um anos,algumas apólices, um diploma, podes entrarno parlamento, na magistratura, na impren-sa, na lavoura, na indústria, no comércio, nasletras ou nas artes. Há infinitas carreirasdiante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz,formam apenas a primeira sílaba do nossodestino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar

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de precoces, não foram tudo aos vinte e umanos. Mas, qualquer que seja a profissão datua escolha, o meu desejo é que te façasgrande e ilustre, ou pelo menos notável, quete levantes acima da obscuridade comum.Avida, Janjão, é uma enorme loteria; osprêmios são poucos, os malogrados inúme-ros, e com os suspiros de uma geração é quese amassam as esperanças de outra. Isto é avida; não há planger, nem imprecar, masaceitar as cousas integralmente, com seusônus e percalços, glórias e desdouros, e irpor diante.

– Sim, senhor.– Entretanto, assim como é de boa

economia guardar um pão para a velhice,assim também é de boa prática social acaute-lar um ofício para a hipótese de que osoutros falhem, ou não indenizem suficiente-mente o esforço da nossa ambição. É isto oque te aconselho hoje, dia da tua maiori-dade.

– Creia que lhe agradeço; mas queofício, não me dirá?

– Nenhum me parece mais útil ecabido que o de medalhão. Ser medalhão foio sonho da minha mocidade; faltaram-me,

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porém, as instruções de um pai, e acabocomo vês, sem outra consolação e relevomoral, além das esperanças que deposito emti.Ouve-me bem,meu querido filho,ouve-mee entende. És moço, tens naturalmente oardor, a exuberância, os improvisos da idade;não os rejeites, mas modera-os de modo queaos quarenta e cinco anos possas entrarfrancamente no regímen do aprumo e docompasso. O sábio que disse:“a gravidade éum mistério do corpo”, definiu a compos-tura do medalhão. Não confundas essa gravi-dade com aquela outra que, embora residano aspecto, é um puro reflexo ou emanaçãodo espírito; essa é do corpo, tão-somente docorpo, um sinal da natureza ou um jeito devida. Quanto à idade de quarenta e cincoanos...

– É verdade, por que quarenta e cincoanos?

– Não é, como podes supor, um limitearbitrário, filho do puro capricho; é a datanormal do fenômeno. Geralmente, overdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinqüentaanos, conquanto alguns exemplos se dêementre os cinqüenta e cinco e os sessenta;mas

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estes são raros. Há-os também de quarentaanos, e outros mais precoces, de trinta ecinco e de trinta; não são, todavia, vulgares.Não falo dos de vinte e cinco: esse madrugaré privilégio do gênio.

– Entendo.– Venhamos ao principal. Uma vez

entrado na carreira, deves pôr todo ocuidado nas idéias que houveres de nutrirpara uso alheio e próprio.O melhor será nãoas ter absolutamente; cousa que entenderásbem, imaginando, por exemplo, um atordefraudado do uso de um braço. Ele pode,por um milagre de artifício, dissimular odefeito aos olhos da platéia; mas era muitomelhor dispor dos dous.O mesmo se dá comas idéias; pode-se, com violência, abafá-las,escondê-las até à morte; mas nem essa habi-lidade é comum, nem tão constante esforçoconviria ao exercício da vida.

– Mas quem lhe diz que eu...– Tu,meu filho,se me não engano,pare-

ces dotado da perfeita inópia mental, conve-niente ao uso deste nobre ofício. Não merefiro tanto à fidelidade com que repetesnuma sala as opiniões ouvidas numa esquina,e vice-versa, porque esse fato, posto indique

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certa carência de idéias, ainda assim podenão passar de uma traição da memória. Não;refiro-me ao gesto correto e perfilado comque usas expender francamente as tuassimpatias ou antipatias acerca do corte deum colete, das dimensões de um chapéu, doranger ou calar das botas novas. Eis aí umsintoma eloqüente, eis aí uma esperança. Noentanto, podendo acontecer que, com aidade, venhas a ser afligido de algumas idéiaspróprias, urge aparelhar fortemente oespírito.As idéias são de sua natureza espon-tâneas e súbitas; por mais que as sofreemos,elas irrompem e precipitam-se. Daí a certezacom que o vulgo, cujo faro é extremamentedelicado, distingue o medalhão completo domedalhão incompleto.

– Creio que assim seja; mas um talobstáculo é invencível.

– Não é; há um meio; é lançar mão deum regímen debilitante, ler compêndios deretórica, ouvir certos discursos, etc. Ovoltarete, o dominó e o whist são remédiosaprovados. O whist tem até a rara vantagemde acostumar ao silêncio,que é a forma maisacentuada de circunspecção. Não digo omesmo da natação, da equitação e da ginás-

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tica, embora elas façam repousar o cérebro;mas por isso mesmo que o fazem repousar,restituem-lhe as forças e a atividade perdi-das. O bilhar é excelente.

– Como assim, se também é um exercí-cio corporal?

– Não digo que não, mas há cousas emque a observação desmente a teoria. Se teaconselho excepcionalmente o bilhar éporque as estatísticas mais escrupulosasmostram que três quartas partes dos habitua-dos do taco partilham as opiniões do mesmotaco. O passeio nas ruas, mormente nas derecreio e parada é utilíssimo, com a condiçãode não andares desacompanhado, porque asolidão é oficina de idéias, e o espírito dei-xado a si mesmo, embora no meio da multi-dão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.

– Mas se não tiver à mão um amigoapto e disposto a ir comigo?

– Não faz mal; tens o valente recursode mesclar-te aos pasmatórios em que toda apoeira da solidão se dissipa. As livrarias, oupor causa da atmosfera do lugar,ou por qual-quer outra razão que me escapa, não sãopropícias ao nosso fim; e, não obstante, hágrande conveniência em entrar por elas, de

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quando em quando, não digo às ocultas, masàs escâncaras. Podes resolver a dificuldadede um modo simples: vai ali falar do boatodo dia, da anedota da semana, de um contra-bando, de uma calúnia, de um cometa, dequalquer cousa, quando não prefiras inter-rogar diretamente os leitores habituais dasbelas crônicas de Mazade; 75 por centodesses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão asmesmas opiniões, e uma tal monotonia égrandemente saudável. Com este regímen,durante oito, dez, dezoito meses – supo-nhamos dous anos,– reduzes o intelecto,pormais pródigo que seja, à sobriedade, à disci-plina, ao equilíbrio comum. Não trato dovocabulário, porque ele está subentendidono uso das idéias; há de ser naturalmentesimples, tíbio, apoucado, sem notas verme-lhas, sem cores de clarim...

– Isto é o diabo! Não poder adornar oestilo, de quando em quando...

– Podes;podes empregar umas quantasfiguras expressivas, a hidra de Lerna, porexemplo, a cabeça de Medusa, o tonel dasDanaides, as asas de Ícaro, e outras, queromânticos, clássicos e realistas empregamsem desar,quando precisam delas. Sentenças

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latinas, ditos históricos, versos célebres,brocardos jurídicos, máximas, é de bomaviso trazê-las contigo para os discursos desobremesa, de felicitação, ou de agradeci-mento. Caveant, consules é um excelentefecho de artigo político; o mesmo direi do Sivis pacem para bellum. Alguns costumamrenovar o sabor de uma citação interca-lando-a numa frase nova, original e bela, masnão te aconselho esse artifício; seria desna-turar-lhe as graças vetustas. Melhor do quetudo isso, porém, que afinal não passa demero adorno, são as frases feitas, as locuçõesconvencionais, as fórmulas consagradaspelos anos, incrustadas na memória indivi-dual e pública. Essas fórmulas têm a van-tagem de não obrigar os outros a um esforçoinútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-eipor escrito. De resto, o mesmo ofício te iráensinando os elementos dessa arte difícil depensar o pensado. Quanto à utilidade de umtal sistema,basta figurar uma hipótese.Faz-seuma lei, executa-se, não produz efeito,subsiste o mal. Eis aí uma questão que podeaguçar as curiosidades vadias, dar ensejo aum inquérito pedantesco, a uma coletafastidiosa de documentos e observações,

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análise das causas prováveis, causas certas,causas possíveis, um estudo infinito dasaptidões do sujeito reformado, da naturezado mal, da manipulação do remédio, dascircunstâncias da aplicação; matéria, enfim,para todo um andaime de palavras,conceitos e desvarios. Tu poupas aos teussemelhantes todo esse imenso arranzel, tudizes simplesmente: Antes das leis, refor-memos os costumes! – E esta frase sintética,transparente, límpida, tirada ao pecúliocomum, resolve mais depressa o problema,entra pelos espíritos como um jorro súbitode sol.

– Vejo por aí que vosmecê condenatoda e qualquer aplicação de processosmodernos.

– Entendamo-nos. Condeno a apli-cação, louvo a denominação. O mesmo direide toda a recente terminologia científica;deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiardo medalhão seja uma certa atitude de deusTérmino, e as ciências sejam obra do movi-mento humano, como tens de ser medalhãomais tarde, convém tomar as armas do teutempo. E de duas uma: – ou elas estarãousadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou

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conservar-se-ão novas: no primeiro caso,pertencem-te de foro próprio; no segundo,podes ter a coquetice de as trazer, paramostrar que também és pintor. De outiva,com o tempo, irás sabendo a que leis, casose fenômenos responde toda essa terminolo-gia; porque o método de interrogar ospróprios mestres e oficiais da ciência, nosseus livros, estudos e memórias, além detedioso e cansativo, traz o perigo de inocularidéias novas, e é radicalmente falso.Acresceque no dia em que viesses a assenhorear-tedo espírito daquelas leis e fórmulas, seriasprovavelmente levado a empregá-las comum tal ou qual comedimento, como acostureira – esperta e afreguesada, – que,segundo um poeta clássico,

Quanto mais pano tem, mais poupa ocorte,Menos monte alardeia de retalhos;

e este fenômeno, tratando-se de ummedalhão, é que não seria científico.

– Upa! que a profissão é difícil.– E ainda não chegamos ao cabo.– Vamos a ele.

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– Não te falei ainda dos benefícios dapublicidade. A publicidade é uma donaloureira e senhoril, que tu deves requestar àforça de pequenos mimos, confeitos, almo-fadinhas, cousas miúdas, que antesexprimem a constância do afeto do que oatrevimento e a ambição. Que D. Quixotesolicite os favores dela mediante açõesheróicas ou custosas é um sestro própriodesse ilustre lunático. O verdadeiro meda-lhão tem outra política. Longe de inventarum Tratado Científico da Criação dosCarneiros, compra um carneiro e dá-o aosamigos sob a forma de um jantar,cuja notícianão pode ser indiferente aos seus conci-dadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez,vinte vezes põe o teu nome ante os olhos domundo. Comissões ou deputações para felic-itar um agraciado, um benemérito, umforasteiro, têm singulares merecimentos, eassim as irmandades e associações diversas,sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográfi-cas. Os sucessos de certa ordem, embora depouca monta, podem ser trazidos a lume,contanto que ponham em relevo a tuapessoa. Explico-me. Se caíres de um carro,sem outro dano, além do susto, é útil mandá-

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lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato emsi, que é insignificante, mas pelo efeito derecordar um nome caro às afeições gerais.Percebeste?

– Percebi.– Essa é a publicidade constante,

barata, fácil, de todos os dias; mas há outra.Qualquer que seja a teoria das artes, é forade dúvida que o sentimento da família, aamizade pessoal e a estima pública instigamà reprodução das feições de um homemamado ou benemérito. Nada obsta a quesejas objeto de uma tal distinção, principal-mente se a sagacidade dos amigos não acharem ti repugnância. Em semelhante caso, nãosó as regras da mais vulgar polidez mandamaceitar o retrato ou o busto, como seriadesazado impedir que os amigos o expu-sessem em qualquer casa pública. Dessamaneira o nome fica ligado à pessoa; os quehouverem lido o teu recente discurso (supo-nhamos) na sessão inaugural da União dosCabeleireiros, reconhecerão na composturadas feições o autor dessa obra grave, em quea “alavanca do progresso” e o “suor dotrabalho”, vencem as “fauces hiantes” damiséria. No caso de que uma comissão te

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leve à casa o retrato, deves agradecer-lhe oobséquio com um discurso cheio degratidão e um copo d’água: é uso antigo,razoável e honesto. Convidarás então osmelhores amigos, os parentes, e, se forpossível, uma ou duas pessoas da represen-tação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ouregozijo, não vejo que possas, decente-mente, recusar um lugar à mesa aosreporters dos jornais. Em todo o caso, se asobrigações desses cidadãos os retiveremnoutra parte, podes ajudá-los de certamaneira, redigindo tu mesmo, a notícia dafesta; e, dado que por um tal ou qualescrúpulo, aliás desculpável, não queirascom a própria mão anexar ao teu nome osqualificativos dignos dele, incumbe a notíciaa algum amigo ou parente.

– Digo-lhe que o que vosmecê meensina não é nada fácil.

– Nem eu te digo outra cousa. É difícil,come tempo, muito tempo, leva anos,paciência, trabalho, e felizes os que chegama entrar na terra prometida! Os que lá nãopenetram, engole-os a obscuridade. Mas osque triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Veráscair as muralhas de Jericó ao som das

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trompas sagradas. Só então poderás dizerque estás fixado.Começa nesse dia a tua fasede ornamento indispensável, de figura obri-gada, de rótulo. Acabou-se a necessidade defarejar ocasiões, comissões, irmandades; elasvirão ter contigo,com o seu ar pesadão e crude substantivos desadjetivados, e tu serás oadjetivo dessas orações opacas, o odoríferodas flores, o anilado dos céus, o prestimosodos cidadãos, o noticioso e suculento dosrelatórios. E ser isso é o principal, porque oadjetivo é a alma do idioma, a sua porçãoidealista e metafísica. O substantivo é a reali-dade nua e crua, é o naturalismo do voca-bulário.

– E parece-lhe que todo esse ofício éapenas um sobressalente para os deficits davida?

– Decerto; não fica excluída nenhumaoutra atividade.

– Nem política?– Nem política. Toda a questão é não

infringir as regras e obrigações capitais.Podes pertencer a qualquer partido, liberalou conservador, republicano ou ultramon-tano, com a cláusula única de não ligarnenhuma idéia especial a esses vocábulos, e

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reconhecer-lhes somente a utilidade doscibboleth bíblico.

– Se for ao parlamento, posso ocupar atribuna?

– Podes e deves; é um modo de convo-car a atenção pública. Quanto à matéria dosdiscursos, tens à escolha: – ou os negóciosmiúdos, ou a metafísica política, mas preferea metafísica. Os negócios miúdos, força éconfessá-lo,não desdizem daquela chateza debom-tom, própria de um medalhão acabado;mas, se puderes, adota a metafísica; – é maisfácil e mais atraente. Supõe que deseja saberpor que motivo a 7° companhia de infantariafoi transferida de Uruguaiana para Canguçu;serás ouvido tão-somente pelo Ministro daGuerra, que te explicará em dez minutos asrazões desse ato. Não assim a metafísica. Umdiscurso de metafísica política apaixonanaturalmente os partidos e o público, chamaos apartes e as respostas.E depois não obrigaa pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhe-cimentos humanos tudo está achado, formu-lado, rotulado, encaixotado; é só prover osalforjes da memória. Em todo caso, nãotranscendas nunca os limites de uma inve-jável vulgaridade.

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– Farei o que puder. Nenhuma imagi-nação?

– Nenhuma; antes faze correr o boatode que um tal dom é ínfimo.

– Nenhuma filosofia?– Entendamo-nos: no papel e na língua

alguma, na realidade nada. “Filosofia dahistória”, por exemplo, é uma locução quedeves empregar com freqüência, masproíbo-lo que chegues a outras conclusõesque não sejam as já achadas por outros. Fogea tudo que possa cheirar a reflexão, origina-lidade, etc., etc.

– Também ao riso?– Como ao riso?– Ficar sério, muito sério...– Conforme. Tens un gênio folgazão,

prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem elim-iná-lo; podes brincar e rir alguma vez. Meda-lhão não quer dizer melancólico. Um gravepode ter seus momentos de expansãoalegre. Somente, – e este ponto é melin-droso...

– Diga.– Somente não deves empregar a

ironia, esse movimento ao canto da boca,cheio de mistérios, inventado por algum

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grego da decadência, contraído por Luciano,transmitido a Swift e Voltaire, feição própriados céticos e desabusados. Não. Usa antes achalaça, a nossa boa chalaça amiga,gorducha, redonda, franca, sem biocos, nemvéus,que se mete pela cara dos outros,estalacomo uma palmada, faz pular o sangue nasveias, e arrebentar de riso os suspensórios.Use a chalaça. Que é isto?

– Meia-noite.– Meia-noite? Entras nos teus vinte e

dous anos, meu peralta; estás definitiva-mente maior. Vamos dormir, que é tarde.Rumina bem o que te disse, meu filho.Guardadas as proporções, a conversa destanoite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamosdormir.

Fonte: MACHADO DE ASSIS. Obra completa.Volume II. Rio de Janeiro:Aguilar, 1994. Pági-nas 288-295.

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Sobre o livro

formato 10 x 15 cm

mancha 7.2 x 13.7 picas

tipologia Garamond Book

papel pólem 75g/m2 (miolo)couchê 180g/m2 (capa)

impressão e Gráfica e Editora Pallottiacabamento

tiragem 50.000

Equipe de realização

Coordenação Luzia BianchiExecutiva

Produção Renato ValderramasGráfica

Edição de Carlos ValeroTexto

Revisão Valéria Biondo

Criação da Capa Henrique Cassab Sasajima