teoria da mutualidade e da força coletiva final livro texto s proudhon andrey
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lIVRO FALA DA TEORIA MUTUALISTA DESENVOLVIDA POR PROOUDHON - ANARQUISTA FRANCES.TRANSCRIPT
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Teoria do poder, da reciprocidade e a
abordagem coletivista:
Proudhon e os fundamentos da cincia social no anarquismo
Autor: Andrey Cordeiro Ferreira1
1 Graduado em Cincias Sociais pela UFF, Mestre e Doutor em Antropologia Social pelo Museu
Nacional-UFRJ, professor do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ,
lder do Ncleo de Estudos do Poder (NEP) grupo de pesquisa do CNPq.
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Pierre Jospeh-Proudhon2
, ao lado de Bakunin, o principal terico do
sindicalismo revolucionrio e do anarquismo internacional no sculo XIX. Suas teses
sobre o poder, o federalismo e sua viso sobre organizao social so essenciais
formulao de teses que ajudaram na fundao das principais associaes de
trabalhadores e, em razo disso, influenciaram na constituio do movimento
sindicalista revolucionrio. Alm disso, como veremos, essa atividade terico-prtica
lanou certas bases analticas e conceituais da cincia social e sociologia moderna,
especialmente, da escola sociolgica francesa.
Pierre-Joseph Proudhon, intelectual operrio francs, nasceu na cidade de
Besanon em 1809 e morreu em janeiro de 1865. Autor de uma vasta obra, com
dezenas de livros, podemos descatar aqui algumas obras: O Que a Propriedade? Ou
princpio do direito e do governo (1840); Da criao da ordem na Humanidade
(1843), Sistemas das Contradies Econmicas ou Filosofia da Misria (1846), Do
Princpio Federativo da necessidade de recdonstituir o Partido da Revoluo (1863) e
sua obra pstuma Da Capacidade Poltica das Classes Operrias (1865). So essas
obras que iremos analisar aqui, j que as mesmas apresentam o contedo principal da
teoria do autor.
A obra de Proudhon no Brasil comunmente analisada a partir da (e reduzida a)
crtica de Marx ao Sistemas das Contradies Econmicas realizado em Misria da
Filosofia sendo muito pouco estudada, seja no contedo, seja influencia que exerceu
sobre o movimento operrio e socialista. Por isso fundamental o exame da obra do
autor. A ideia de cincia em Proudhon tem dois sentidos, uma cincia que voltada para
explicao do social e para mudana social. Essa relao inextricvel do social no duplo
sentido de objeto e de processo de mudana marcar a forma com o anarquismo
concebe a relao entre teoria e prtica e especialmente a forma como no processo de
institucionalizao da sociologia como disciplina, ocorreu uma negao ou
invisibilizao da contribuio proudhoniana para as cincias sociais. Pouco
reconhecimento foi dado a essa contribuio terica e poltica de Proudhon,
especialmente em pases como o Brasil.
2 O presente texto consiste de uma verso preliminar e ainda ser submetido reviso tcnica e de
contedo.
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Iremos aqui mostrar como Proudhon abriu o terreno para duas formulaes
estratgicas: a teoria da mutualidade e da reciprocidade e a teoria do poder, atravs da
noo de fora coletiva que daria nascimento ao coletivismo3. Essas duas contribuies
seriam incorporadas de diferentes maneiras, na sociologia pela escola sociolgica
francesa e no movimento operrio e socialista atravs da interpretao e sistematizao
que Bakunin realizou, ligando essas teses e conceitos a uma teoria da revoluo e
tambm a um mtodo materialista.
Para efeito deste artigo iremos dividir a anlise da obra de Proudhon em trs
grandes conjuntos: o da reflexo sobre direito e economia poltica; o da teoria poltica e
federalista; o da teoria da capacidade poltica e das classes sociais. Esses conjuntos
chamam a ateno para complexidade de temas e contedos (certamente todas as obras
de Proudhon tratam de temas que poderiam ser enquadrados em uma ou outra categoria)
desenvolvidos pelo autor. Mas daremos ateno aqui especialmente forma como da
teoria do valor trabalho se chega uma nova concepo de sociedade e teoria do poder e
reciprocidade.
1 - Economia poltica e teoria do governo e da justia
Para entender a teoria e pensamento de Proudhon, e como este seria
organicamente ligado ao movimento operrio, devemos levar em considerao alguns
aspectos da sua produo intelectual e poltica. A obra de Proudhon entre 1840 e 1850
estava profundamente marcada pelos temas da Academia de Ciencias Morais e
Polticas4 e tambm pela crtica da economia poltica liberal e socialista francesa. Sua
crtica da propriedade privada e das contradies econmicas do capitalismo era
direcionada pelo objetivo tico-poltico de garantir o equilbrio da igualdade com a
3 Coletivismo uma designao que surgiu especilamente dentro da Associao Internacional dos
Trabalhadores, para indicar o campo formado em torno das teses anarquistas que defendiam a propriedade
coletiva e uma abordagem da sociedade centrada no conceito de fora coletiva. 4 Instituio Cientfica criada em 1795, durante a Revoluo Francesa em substituio as antigas academias reais. A Academia de Cincias Morais e Polticas fazia parte do Instituto de Frana, que
agrupava ainda as cincias fsicas e matemticas e literatura e belas artes em academias prprias. A
Academia realizava concursos. O livro O que a Propriedade foi resultado de uma bolsa concedida pela Academia Proudhon e ele ainda dialogaria com os temas da mesma em outras obras, como
Sistema das Contradies Econmicas. Isso mostra que Proudhon estava dialogando com os temas estratgicos do campo cientfico francs formado pela revoluo de 1789.
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liberdade, problema no resolvido pela revoluo francesa de 1789. Podemos dizer que
esta obra se liga a trs dimenses:
1) a sua viso profundamente embebida na economia poltica, numa teoria holstica da
distribuio, produo, trabalho e propriedade privada que torna-se assim sua principal
contribuio, especialmente o ataque ao pilar do sistema jurdico e econmico Francs e
capitalista (com o filosofema A propriedade um roubo);
2) a sua viso da filosofia, que caminha para uma crtica da Igreja e do Estado, e pela
afirmao do que denominaria de filosofia popular, marcando assim uma radical ruptura
com a referncia hegeliana, incorporando a dialtica como principal trao do seu
mtodo;
3) por fim, um projeto tico-poltico, que perpassa e caracteriza sua obra, de buscar um
forma de governo justo que pudesse eliminar as desigualdades e efetivar as promessas
abandonadas da revoluo francesa, liberdade, igualdade e fraternidade (o que d um
estilo sempre generalista as suas obras, que normalmente misturam um objeto cientfico,
um discurso sobre o mtodo e tambm um projeto ou uma poltica para o futuro5). No
existe assim uma separao entre a cincia pura ou neutra e documentos tico-polticos,
sua obra sempre uma mescla desse saber erudito e de um discurso institunte.
Essa base estar formulada nos seus livros de direito e economia poltica, os
quais representam uma parte importante da sua obra: O Que a Propriedade?
Princpios do Direito e do Governo, Da Criao da Ordem na Humanidade e
Sistemas das Contradies Econmicas ou Filosofia da Misria que em seu conjunto
lanam dois dos fundamentos daquilo que Proudhon entendia como cincia social: a
dialtica serial, entendida como um mtodo e conjunto de conceitos filosficos; a teoria
5 Essa caracterstica narrativa prpria do contexto acadmico em que Proudhon produziu suas obras,
mas foi usada pelos crticos, especialmente por Marx, como principal elemento para desqualificar seu
pensamento como idealista ou pr-cientfico. Mas exatamente na fora e fraqueza derivada dessa
estratgia narrativa que Proudhon abarca um universo no englobado pelo marxismo: o da teoria e
tecnologia de governo da sociedade ps-revolucionria derivada da crtica das instituies da sociedade
capitalista moderna. A vinculao do projeto de governo a uma crtica da sociedade capitalista (do fundamento do direito, do governo e da economia) marca uma profunda diferena em face dos socialistas
como Robert Owen, reformadores morais que no vislumbravam uma crtica do capitalismo, mas
reformas sociais a partir do Estado. Por outro lado, Marx aprofundou a teorizao do capitalismo num
grau que Proudhon no realizou, mas deixou como utopismo a teoria das formas de governo, assimilando assim a possibilidade do uso das instituies capitalistas (mais-valia, o Estado) como
insturmetos da edificao do socialismo. Essa seria uma diferena fundamental entre Proudhon e Marx.
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da propriedade e da economia capitalista, que ao mesmo tempo implicava teoria do
governo (no sentido em que a economia poltica entende o termo).
A ciso entre Proudhon e Marx na reealidade no motrivada, como Marx apresenta,
pelo carter idealista da proposio proudhoniana, mas sim pela diferena em relao a um
conjunto de temas: 1) o determinismo econmico; 2) o papel do Estado; 3) o conceito de
comunidade e comunismo. Estes dois temas resumem todas as grandes diferenas poltico-
intelectuais levantadas no campo do movimento socialista do sculo XIX. Mas apesar desta
diferena, existe um recurso comum que o recurso dialtica. no Livro Misria da
Filosofia (escrito em resposta a Filosofia da Misria, de Proudhon) que Karl Marx, entre muita
das objees que levanta, explicita este ponto central de divergncia:
Assim pois, a arbitrariedade dos soberanos , para o senhor Proudhon, a razo suprema na economia poltica. Verdadeiramente faz falta a ignorncia absoluta da
histria, para no saber que, em todos os tempos, os soberanos tiveram que
submeter-se as condies econmicas, sem poder ditar-lhes nunca sua lei.Tanto a legislao poltica como a civil no fazem mais que expressar e protocolizar as
exigncias das relaes econmicas. Foi o soberano que se apoderou do ouro ou
da prata para fazer deles meios universais de troca estampando-lhes seus rostos ou, ao contrrio, foram estes meios universais de troca os que se apoderaram do
soberano obrigando-o a imprimir-lhes seu selo e dar-lhes uma consagrao
poltica? (Marx, 1973, p.56- 57)
O trecho acima mostra a marca de toda diferenciao que seria levantada entre
anarquistas e comunistas, que diz respeito concepo ontolgica da histria e o lugar
do econmico. Marx atribui a Proudhon a compreenso de que o Estado cumpre um
papel determinante na histria e economia poltica, ao passo que ele considera os
soberanos (o Estado) como apenas o realizador dos movimentos da economia.
A compreenso do lugar do poltico em relao ao econmico e como cada um
determinaria o conjunto da existncia social, abriria o campo das mltiplas oposies
que marcariam as diferenas entre eles. Esta diferena seria formulada
fundamentalmente na definio conceitual de Marx de infraestrutura econmica e
superestrutura poltico-ideolgica, em que o primeiro determinaria em ltima instncia
o segundo. No aqui o espao para estudar detidamente a historia das cises entre
Marx-Engels e Proudhon. Por isso, basta dizer que esta reflexo sobre o lugar do
poltico expressa a distancia entre dois posicionamentos tericos que partem de uma
base filosfica relativamente comum.
Primeiramente, importante marcar que, o livro de Proudhon O que a
Propriedade? (1840), apresenta a problematizao do discurso de constituio da
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sociedade burguesa; a crtica dos fundamentos de legitimao da propriedade abrir
espao para a recusa dos principais pressupostos de teorias sociais subsequentes, como
o evolucionismo e o racismo cientfico6. As teses de origem da propriedade (direito
natural, ocupao, trabalho) so todas questionadas, para afirmar-se que a propriedade
, em ltima instncia, produto da fora e por ela sustentada7. A mesma crtica seria
direcionada ao Governo. Desta maneira, os dois principais indicadores da civilizao,
seriam submetidos a uma crtica severa8.
Proudhon formularia esta questo desde o seu primeiro trabalho, O Que a
Propriedade? Ou pesquisas sobre o princpio do direito e do governo (1840), em que
levanta algumas hipteses sobre a relao entre economia e poltica9.Iremos expor
brevemente os principais argumentos deste trabalho. No Captulo 1- Mtodo seguido
nesta obra idia de uma revoluo, Proudhon argumenta: Tenciono discutir o
prprio princpio de nosso governo e de nossas instituies; a propriedade; estou no
meu direito; posso enganar-me na concluso de minhas pesquisas; estou ainda no meu
direito; agrada-me inserir o ltimo pensamento de meu livro no comeo; estou ainda no
meu direito. (Proudhon, 1988, p.15). Vemos aqui exposto um enunciado fundamental
que ordenar toda a argumentao do autor: a interdependncia da economia com a
poltica, ou dizendo de outra forma, a relao dialtica existente entre o sistema
econmico e o sistema poltico da sociedade capitalista10
.
No Captulo 2 - Da propriedade considerada como direito natural, Proudhon
analisa a definio de propriedade contida no direito romano: O direito romano definiu
a propriedade como o jus tendi et abutendi re sua, quatenus jris ratio patitur, o direito
6 Notemos que a discusso sobre o racismo, as nacionalidades e o patriotismo foi feita de forma
relativamente transversal a questo das classes e do capitalismo. A recusa do racismo operada por
Proudhon ao discutir a escravido nos Estados Unidos da Amrica, aonde afirma no haver desigualdade
entre as raas mostra exatamente essa co-relao. 7 Portanto, sem a fora, a propriedade impotente contra a propriedade, j que sem a fora, no pode crescer com o ganho; portanto, sem a fora, a propriedade nula. (Proudhon, 1988, p. 189). 8 Se a propriedade privada combatida emblematicamente por Proudhon, Bakunin combate a noo de
Estado, e chega mesmo a criticar a idia de civilizao, ao questionar as teses da superioridade do
operariado urbano sobre o campesinato,que segundo ele, vigia nos meios operrios jacobinos como
herana do revolucionarismo burgus. 9 Esta obra marca assim outro discurso sobre a propriedade e sobre a sociedade civil; de indicador de
civilizao, a propriedade vai ser vista como fator gerador da desigualdade, produto da conquista e da
violncia. 10 Note-se que ainda no aparece nenhuma meno explcita a dialtica neste primeiro volume das
Memrias sobre a Propriedade. A perspectiva dialtica se encontra insinuada na seguinte afirmao:
Tende a coragem de me seguir, e, se vossa vontade for franca, se vossa conscincia for livre, se vosso esprito souber unir duas proposies e dela extrair uma terceira, minha idias fatalmente sero as suas (Proudhon, op.cit, p. 17).
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de usar e abusar da coisa, tanto quanto admite a razo do direito. (Proudhon, op.cit,
p.17). A partir desta considerao, e depois de analisar a constituio francesa de 1793 e
o Cdigo Napolenico, concluiu que: Distinguem-se na propriedade:1) a propriedade
pura e simples,o direito senhorial sobre a coisa, ou, como se diz, a propriedade nua. 2)
a posse.(...) Esta dupla definio enquanto domnio e posse da mais alta relevncia; e
preciso apreende-la bem para compreender o que temos a dizer. (Proudhon, op.cit,
p. 42).
Vemos na definio do fato econmico da propriedade residir idia de domnio
(do latim dominus, direito ou autoridade do senhorio sobre alguma coisa, termo
intercambivel com dominatione, dominao), o que coloca no centro da noo de
propriedade o poder, que conjugado com a noo de direito, consagraria a legitimidade
da propriedade por um sistema legal. No mago das relaes econmicas, na definio
mesma da noo de propriedade, reside o fato da dominao e conseqentemente, o
elemento poltico. Mas a propriedade tomada tambm como instituio base e
princpio do Governo, segundo os termos de Proudhon, ou do sistema poltico, para
empregar uma linguagem conceitual mais definida. E esta injuno se conjuga com uma
definio econmica do governo: O Governo a economia pblica, a administrao
suprema dos trabalhos e dos bens de toda uma nao. (Proudhon, op.cit, p. 178). A
propriedade e a economia se definem pela poltica, e a poltica se define pela economia.
Os termos, separados e opostos pela teoria e pela prtica social, na anlise de Proudhon
s alcanam sua plena definio um atravs do outro11
.
Esta conjugao ento uma primeira considerao implica a dialtica da
poltica com a economia, ou da Propriedade Privada com o Estado:
Ora, a propriedade engendra necessariamente o despotismo, o reino do arbitrrio, de uma vontade libidinosa; e isso pertence tanto essncia da
propriedade que basta, para nos convencermos, lembrar o que ela o que se passa
a nossa volta. A propriedade o direito de usar e abusar. Logo, se o governo
economia, se tem por objeto nico a produo e o consumo, a distribuio das tarefas e dos produtos, como o governo possvel sem propriedade? Se os bens
so propriedades, como os proprietrios no seriam reis, e reis despticos, reis na
proporo de suas faculdades de posse? (Proudhon, op.cit, p. 240).
Esta viso da dialtica da poltica com a economia, como crtica do determinismo
econmico, assim a formulao mais precisa da diferena entre Proudhon e Marx. Ao
11 Este procedimento dialtico do autor mais identificvel quando ao final desta obra, discute os
modelos de organizao social, definindo trs regimes: 1 propriedade, ou a tese; 2 comunidade, ou a
anttese. Da superao das contradies dos deriva o terceiro, o regime de liberdade, como sntese social
da economia com a poltica.
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contrrio de considerar o Estado ou o Governo como um instrumento passivo das foras
econmicas, Proudhon considera que Governo economia, um agente constutor e parte
das contradies econmicas.
O livro O Que a Propriedade no um livro de economia: um livro que
poderamos considerar de sociologia jurdica. Proudhon tenta mostrar como o direito de
propriedade privada, consagrada pelas modernas revolues, entra em contradio com
um fato sociolgico: a produo e a fora coletiva do trabalho (reconhecido como
princpio gerador da propriedade), no levam ao direito de propriedade mas a sua
negao.
no livro Sistema das Contradies Econmicas ou Filosofia da Misria, vol
Ie II que o autor estabelece sua crtica da economia poltica. Mas ainda assim preciso
levar em considerao que o livro no se prope a ser uma analise puramente
econmica do capitalismo, mas sim uma abordagem filosofica (ou seja, a partir de um
ponto de vista tico-poltico) do que produz a misria e a desigualdade social.12
Nesse
sentido, preciso ter uma chave de leitura bem determinada: o livro est assentado na
proposio de teoria do valor trabalho (e no na teoria da mais valia como faria Marx
anos depois), e na expectativa de demonstrar que o valor tal como se supunha ser
formado pela lei da oferta e procura (economia poltica burguesa) era um equvoco, mas
que tambm a proposio da regulao estatal para controlar o valor (feita por
socialistas e comunistas) no era uma soluo econmica factvel. Ou seja, no se deve
buscar nesse livro uma teoria do funcionamento da economia capitalista, mas sim uma
crtica de como o valor na economia capitalista no expressava o valor trabalho de
forma efetiva, gerando assim desigualdade social e misria. Certamente, ao apresentar o
carter sistmico (e cada uma das categorias dialticas que compem o capitalismo, ele
avana na teorizao econmica, mas no faz uma analise exaustiva da economia.
O sistema das contradies econmicas assim fundado sobre a contradio do
valor: composto por valor de uso e valor de troca, a economia moderna no reconhece
na realidade a dimenso sinttica e logo o valor no chega a ser o valor constitudo (ou
seja, valor trabalho com o pagamento e instituio da relao proporcional entre valor
de uso e valor de troca). A inexistencia dessa proporcionalidade do valor era assim a
primeira e fundante contradio econmica. O valor na sociedade capitalista, apesar de
ser produzido pelo trabalho, no reflete isso de forma plena: os economistas burgueses
12
importante observar que O Que a Propriedade e Filosofia da Misria buscam responder questes levantadas em concursos pblicos da Academia de Ciencias Morais e Polticas de Paris.
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acreditavam que o valor de troca expressaria a melhor ordem social, ao permitir o
desenvolvimento do comrcio; os socialistas acreditavam que regulando a produo de
valores de uso atravs do Estado para satisfazer as necessidades bsicas seria a
soluo, evitando assim a superproduo. Mas nos dois casos, no se buscava constituir
o valor a partir do valor trabalho. Proudhon aponta que na realidade somente uma
distribuio proporcional de valores de uso e troca na economia social poderia produzir
a igualdade, lembrando que esta assertiva estava associada ao pressuposto do fim da
propriedade privada e reconhecimento da fora coletiva como geradora de um direito
coletivo. Logo, se no plano do direito, o trabalho e fora coletiva geram um direito
coletivo que no reconhecido pelo direito de propriedade, no plano econmico
implicava que o valor nunca refletia a centralidade do trabalho na sua constituio. A
propriedade privada tendo um poder de acumulao infinito que se exerce sobre
quantidades finitas: Logo,visto que uma nao, como a humanidade inteira, uma
grande sociedade industrial que no pode agir fora de si mesma, fica demonstrado que
nenhum homem pode enriquecer-se sem que outro empobrea (Proudhon, 1988,
p.187). Assim, a acumulao capitalista leva ao empobrecimento dos trabalhadores, a
sua expulso da produo, apesar de depender deles.
Essa relao propriedade privada-valor ainda complementada por pares
dialticos que ordenam a economia moderna: diviso do trabalho e mecanizao;
concorrncia e monoplio; o papel da polcia ou imposto (que a interveno
governamental e estatal na economia e nos outros fatores). Desta maneira, o que as
contradies econmicas apresentam que para cada fator de expanso da
produtividade dos valores dentro da economia moderna existia um fator de opresso do
trabalhador e gerao de desigualdade. A diviso do trabalho levava a uma maior
eficincia do trabalhador, mas tambm a sua dependncia e alienao; a maquinaria e
desenvolvimento tecnolgico, possibilitando uma jornada de trabalho menor e assim a
libertao do trabalhador, produzia assim a tendncia ao desemprego; a concorrncia,
expresso da liberdade de comrcio que deveria levar os preos para baixo, tendia na
realidade a produzir o monoplio; o Estado por sua vez representa a manuteno do
trabalho improdutivo atravs do imposto que deveria ser uma redistribuio social, na
realidade reverte este ganho para sua manuteno (criando assim o que hoje o
problema crnico do dficit fiscal) de forma que no conseguiria resolver as
contradies econmicas. Analisando a srie das contradies, no captulo dedicado as
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mquinas ele mostra mais claramente a contradio inerente a esta dependncia mutua
entre trabalho e capital.
De um fabricante ingls: A insubordinao de nossos operrios nos faz pensar em passar sem eles. Fizemos e provocamos todos os esforos de inteligncia
imaginveis, para substituir o servio dos homens por instrumentos mais dceis e
quase conseguimos. A mecnica libertou o capital da opresso do trabalho. Em
todo o posto onde ainda ocupamos um homem, apenas em carter provisrio, esperando que seja inventado para ns um meio de realizar a tarefa sem ele. (Proudhon, 2003, p. 233)
Ou seja, a dependncia do capitalista para com o trabalhador acompanhada pela
tentativa de negao desta dependncia, pela sua eliminao da produo. O
desenvolvimento tecnolgico, como pela afirmao do empresrio ingls, a forma que
concretizar parcialmente este objetivo. A contradio reside aqui: a dependncia
necessria do capital em relao ao trabalho e o impulso permanente no sentido de,
visando acumulao infinita, diminuir a participao dos salrios nos produtos e
expulsar os trabalhadores da produo.
De um lado os capitalistas que exploram o trabalho e tendem pela dinmica
econmica a expulsar os trabalhadores da produo para aumentar sua acumulao; mas
somente o trabalho gera o valor, o capital para ser acumulado, fazendo com que o
capitalista seja refm do trabalhador. De outro lado, o trabalhador que explorado e
expropriado pelo capitalista (do ponto de vista da teoria do valor trabalho, a mais valia
a espoliao) obrigado a vender sua fora de trabalho para o capitalista para poder
garantir sua reproduo social enquanto sujeito real e vivo. Assim, no poder absoluto do
capital existe um limite, a impossibilidade de existir sem o trabalhador; do lado deste
ltimo, na sua nica forma de existncia reside tambm o elemento que reproduz sua
subordinao e dependncia e, ao mesmo tempo, seu poder social.
Mas o componente principal que o livro Filosofia da Misria marca uma
clara posio de ruptra em relao s promessas do capitalismo; longe de uma crena
produtivista, o livro enfatiza que as contradies econmicas implicam sempre para
cada ganho ou tendncia de aumento da produtividade e da liberdade, existe uma
tendncia de produo da desigualdade e da opresso. Esse componente dialtico ante o
capitalismo e a economia moderna tentam chamar a ateno de que no prossivel
governar a partir da produo do valor (capitalista), mas que para poder estabelecer uma
sociedade igualitria seria preciso elevar o valor ao nvel de valor constitudo, sinttico
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ou absoluto, um valor que refletisse uma distribuio proporcional do uso e troca s
alcanvel pelo fim da propriedade privada. Logo, a crtica da economia poltica
burguesa e da economia socialista acompanhada pelo apontamento de uma nova
tecnologia de governo, componente principal da obra de Proudhon. Temos nessa obra
um duplo movimento: reconhecer a contradio do valor e antinomia da lei de
desenvolvimento do capitalismo (valor-troca/imposto-redistribuio; contradio
diviso do trabalho/mecanizao, concorrncia/monoplio) e que esta lei implicava na
impossibilidade de que o valor trabalho fosse reconhecido como fundamento da
economia e do direito.
Desta forma a dialtica serial se explica pelo surgimeto cumulativo na historia
das diferentes formas dialticas: a dialtica valor de uso/de troca inerente a economia;
logo, esta dualidade est presente em toda a histria, assim como a dialtica
autoridade/liberdade; a diviso do trabalho e a mecanizao surgem na histria como
parte do processo de desenvolvimento humano, antes da concorrencia e do monoplio,
da moeda/crdito e tambm do Estado como agente distribuidor e da balana comercial
como fator regulador da economia internacional. As categorias antinmicas (tendncia e
contra-tendencia representada por cada um desses princpios econmicos, constiutui a
srie das contradies econmicas que constitui o sistema capitalista). No possvel
mudar o sistema mudando ou agindo apenas sobre um dos temos da srie. Podemos
dizer que o livro Filosofia da Misria enuncia pela primeira vez a lei do
desenvolvimento capitalista como a lei do desenvolvimento das suas contradies: a
desigualdade gerada a partir dos fatores objetivos que isoladamente poderiam produzir
igualdade, mas que sistemicamente s podem gerar o seu contrrio, logo o
desenvolvimento do sistema s pode reproduzir a desigualdade.
Assim, no valor, no h nada de til que no se possa trocar e nem nada de trocvel que
no seja til: o valor de uso e o valor de troca so inseparveis. Mas enquanto que, pelo
progresso da indstria a demanda varia e multiplica-se ao infinito, a fabricao tende em
consequncia a exaltar a utilidade natural das coisas e finalmente a converter todo o valor
til em valor de troca; por outro lado a produo aumentando incessantemente a potncia
de seus meios e sempre reduzindo os seus custos, tende a trazer a venalidade das coisas
sua utilidade primitiva, de modo que o valor de uso e o valor de troca esto em luta
perptua. Os efeitos desta luta so conhecidos: as guerras comerciais e de mercados, a
superproduo, a estagnao econmica, as proibies, os massacres da concorrncia, o
monoplio, a depreciao dos salrios, as leis de mximo, a esmagadora desigualdade das
fortunas, e a misria, decorrem todas da antinomia do valor. Ser-me- dispensado dar aqui a
demonstrao destes fatos, que, alis, decorrer naturalmente dos captulos seguintes
(Proudhon, 2003, p. 136)
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A lei do valor, a lei da concentrao de capitais, a lei do desenvolvimrento das
foras produtivas j se encontram aqui esboadas; mas todas elas subordinadas a lei da
reproduo da desigualdade inerente ao sistema das contradies econmicas. Logo, ao
contrrio de Marx para quem as foras produtivas criam todas as condies para o
socialismo (ao desenvolver as foras produtivas e ao concentrar socialmente a produo
e organizao social, faltando apenas a planificao econmica), Proudhon funda uma
crtica do capitalismo que no se vincula a crena de que o capitalismo cria as condies
para o socialismo, mas ao contrrio, ele vai buscar em princpios economicos marginais
ao sistema (a recriprocidade, o valor constitudo em alguns setores) os fundamentos de
uma nova ordem social. A principal descoberta dessa obra esta, que a lei do
desenvolvimento capitalista o desenvolviomento das suas prprias contradies: a economia
capitalista contraditria, ela no realiza a liberdade (comercial e econmica) e igualdade
(poltica) que a economia poltica e o liberalismo anunciam. Essa descoberta, que vincula essas
contradies ao Estado, j que este no figura como regulador exterior, mas como parte das
contradies econmicas atravs do Imposto/Balana Comercial. Ao mesmo tempo, so nos
princpios marginais ao sitema, presentes em experincias pr-modernas e modernas que esto
os elementos para uma nova economia poltica.
Proudhon tem em comum com Marx a teoria do valor trabalho, a crtica da
propriedade privada, a lei da concentrao de capitais. Para Marx existe uma
continuidade entre essas contradies e o socialismo/comunismo. Mas para Proudhon
esse sistema desenvolve suas contradies sem revolv-las inerentemente, sem relao
de continuidade com o socialismo. por isso que as contradies econmicas so a
filosofia da misria, porque se trata de ver como estas contradies produzem misria
e desigualdade mesmo a partir de condies tcnico-economicas que permitiriam o
contrrio, ao passo que Marx v o capitalismo e o desenvolvimento das foras
produtivas e como as bases objetivas da abundncia necessrias ao
socialismo/comunismo.
exatamente aqui, que sutilmente, se introduz uma diferena fundamental:
sendo o valor (na viso Marxista) observado a partir da tica da mais-valia, a
interveno sobre a mais-valia se d no no sentido da sua eliminao, mas do
desenvolvimento das foras produtivas, do aumento da acumulao sendo o
socialismo/comunismo resolvidos na esfera da distribuio (as foras produtivas so
assim mais determinantes que as relaes de produo, enquanto que para Proudhon o
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contrrio). Antes de acabar com a explorao preciso aumentar a explorao regulada
pelo Estado que ir equilibrar os valores de uso e troca, acabando com a anarquia
capitalista atravs da planificao estatal. A soluo econmica de Marx para a
contradio do valor que entre a contradio de produo social e apropriao privada,
o Estado intervm produzindo uma concentrao de valor que sero redistribudos por e
atravs dele. Logo, o valor tal como apresentado na sociedade capitalista associado a
mais valia no visto como um problema ou em contradio com o
socialismo/comunismo. Trata-se de usar o Estado como instrumento para regular a
economia capitalista e usar a lei do valor capitalista para produzir o comunismo, atravs
do excedente.
Na viso de Proudhon, trata-se de fazer no uma gesto estatal da contradio do
valor, mas de mudar o princpio econmico do valor (poque se entende que na
sociedade capitalista o valor no est constitudo de acordo com o reconhecimento do
valor trabalho) e por isso preciso mudar a relao de produo e distribuio
simultaneamente, atravs da coletivizao da propriedade e eliminao do salrio e do
lucro como pr-condio ao socialismo (pois a sim o trabalho passa a ser reconhecido
no valor). O valor constitudo ou valor social exige um valor constituinte, este s
pode se realizar mediante uma tranformao prvia das foras coletivas de realidade
econmica em si a uma realidade sociopoltica por si, j que surgindo em certos
setores da economia, ela no pode irromper seja pelas medidas da economia poltica
liberal, seja por reformas comunistas atravs do Estado. Por isso no tomada do
Estado que assegura a resoluo da contradio do valor, mas mudana econmica da
relao de propriedade e produo que permite que o valor seja constiudo como valor
trabalho de forma efetiva, socialmente13
. Logo, exigida uma ao simultnea sobre a
lei da produo (instituindo o valor social) e na esfera da distribuio (instituindo um
governo federativo). A forma de autogoverno federativo assim institucionaliza e
consagra a coletivizao, que no um princpio oposto ao de mutualidade, ao
13 Assim o poder, instrumento da fora coletiva, criado na sociedade para servir de mediador entre o trabalho e o privilgio, encontra-se encadeado fatalmente ao capital e dirigido contra o proletariado.
Nenhuma reforma poltica pode resolver esta contradio pois, como os prprios polticos o confessam,
tal reforma apenas daria mais extenso e energia ao poder e, a menos que se derrube a hierarquia e se dissolva a sociedade, o poder no poderia tocar nas prerrogativas do monoplio. O problema pois
consiste, para as classes trabalhadoras, no em conquistar, mas sim em vencer ao mesmo tempo o poder
e o ITlonoplio, o que significa fazer surgir das entranhas do povo, das profundezas do trabalho uma
autoridade maior, um fato mais poderoso, que envolva o capital e o Estado e que os subjugue. Toda a
proposio de reforma que no satisfaa a esta condio ser apenas um flagelo a mais, uma verga em
sentinela, virga vigilantem diria um profeta, que ameaa o proletariado (Proudhon, 2003, p.434).
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14
contrrio, a forma sociopoltica e jurdica de uma relao econmica fundada na
reciprocidade/mutualidade14
. exatamente a tese do valor constitudo (e no
constitudo) que permite a crtica do socialismo como fase transitria, pois na realidade
as formas econmicas antagnicas devem ser geradas na sociedade antes da revoluo e
a revoluo as eleva a posio de formas sistmicas ou dominantes; na teoria marxista,
como no existe a classe por si, preciso que o Estado seja usado para intervir sobre o
valor (e nesta viso o valor e mais-valia tal como existe na sociedade capitalista pode
ser apropriado pelo Estado), sendo a mudana na sociedade posterior a revoluo e
provocada pelo e atravs do Estado atravs de medidas de distribuio (que depois
levaro a necessidade da revoluo cultural).
Mas aqui que chegamos ao ponto principal. Proudhon estabelece e supe
nessas obras de crtica do direito e da economia poltica, a partir desta tese geral, um
conceito que sintetiza suas proposies: o de fora coletiva. neste ponto que a
filosofia poltica se transforma em sociologia, pois se apresentar na forma de uma
formulao bem ntida da dinmica dominao-explorao. So estes conceitos que
sero necessrios a nossa reflexo. A noo de fora coletiva, empregada por Proudhon
em diversas obras, formulada na sua obra mais volumosa, De la Justice dans
Revolution e de la Iglesie (1857), da seguinte maneira:
Os indivduos no so os nicos dotados de fora; as coletividades tem tambm a sua.Uma fbrica, formada por operrios cujos trabalhos convergem para um
mesmo fim, que obter este ou aquele produto, possui enquanto fbrica ou
coletividade, uma fora que lhe prpria; a prova est em que o produto desses indivduos, assim agrupados, muito superior ao que constituiria a soma dos seus
produtos particulares, se tivessem trabalhando separadamente.
Do mesmo modo a tripulao de um navio, uma sociedade em comandita, uma
academia, uma orquestra, um exrcito, etc., todas estas coletividades contm fora, fora sinttica e,conseqentemente, especfica do grupo, superior em
qualidade e em energia soma das foras elementares suas componentes ...
Conseqentemente, sendo a fora coletiva um fato to positivo como a fora individual, a primeira perfeitamente distinta da segunda, os seres coletivos so
realidades do mesmo modo que os indivduos.
Pelo seu poder, que de todos os seus atributos o primeiro e o mais substancial, o ser apresenta-se pois na qualidade de realidade e de vida;apresenta-se, entra na
criao, da mesma maneira e sob as mesmas condies de existncia que os outros
seres. (Justice, LEtat, apud in Gourvitch, 1976 p. 273).
14 O que Proudhon no desenvolveu foi como do ponto de vista estratgico e ttico se faria essa
trasnformao. Foi Bakunin e os coletivistas suos que teorizaram essa transformao, introduzindo o conceito de revoluo social e outras contribuies tericas.
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15
O conceito de fora coletiva expressa aqui o fato de que o trabalho coletivo
(implicado na realidade de diviso do trabalho) que o produtor do valor, e que esse
valor produzido coletivamente e pago individualmente (por meio do salrio) gera uma
contradio: o trabalhador permanentemente expropriado do produto do seu trabalho
porque o conjunto das somas individuais no paga o produto coletivo. Da que da
constatao econmica da existncia de uma fora coletiva que produz o valor, se chega
a ideia de direito coletivo e coletivismo como forma de gerar o valor absoluto ou
constitudo15
. Logo, a fora coletiva uma realidade objetiva, uma realidade em si
que constituda e explorada na diviso do trabalho por relaes especficas de
produo. Essas foras coletivas em si, so um produto da diviso da sociedade em
classes sociais e elas marcam uma diferena fundamental que o autor elabora entre
indivduo e sociedade e do carter sui generis da sociedade.
Partindo do pressuposto da teoria das foras coletivas (que j havia sido
esboada em O Que a Propriedade) o autor formula um conceito de sociedade, que
definido da seguinte forma: Quem diz sociedade, diz conjunto de relaes, numa
palavra, sistema. Ora, todo sistema s subsiste em determinadas condies16 .
(Proudhon,1988, p.194). Esta definio do que a sociedade se torna distinta das
definies desenovistas usuais, tais como a orientada pela perspectiva contratualista
liberal do gnero de Hobbes e Locke.
A maioria dos filsofos e dos fillogos vem na sociedade apenas um ente da razo ou, melhor dizendo, um nome abstrato servindo para designar uma coleo de homens. um
preconceito que recebemos desde a infncia, com as primeiras noes de gramtica,
segundo as quais os substantivos coletivos e os que indicam gnero ou espcie, no
designam realidade alguma. Haveria muito a dizer sobre este ponto, mas eu limitar-me-ei
ao meu assunto. Para o verdadeiro economista, a sociedade um ser vivo, dotado de
inteligncia e de atividade prprias, regida por leis especiais que apenas a observao descobre e cuja existncia manifesta-se no sob forma fsica, mas pelo concerto e ntima
solidariedade de todos os seus membros. Assim, quando h pouco,sob o emblema de um
deus da fbula, fazamos a alegoria da sociedade, nossa linguagem, no fundo, nada tinha de
15 Aqui ento temos uma noo da imcompatibilidade da abordagem de Marx e de Proudhon: o primeiro
almejava uma teoria do funcionamento da sociedade capitalista, chegando a teoria da mais-valia;
Proudhon, partindo da critica, no fazia uma teoria da sociedade capitalista apenas ou principalmente,
mas uma teoria de uma forma de governo e economia que fosse a negao do capitalismo. Isso levou
Marx a acusar Proudhon de socialista utpico, mas por outro lado essa teoria de governo que ser a base
da experincia da Comuna de Paris e de todas as revolues federalistas, inclusive da revoluo russa.
Marx no se preocupou com um a teoria do Governo e do poder porque ele considerava que o Estado burgus pudesse ser instrumentalizado. Proudhon considerava que as formas de governo eram ligadas as
formas de propriedade e logo no poderiam ser instrumentalizados, mas sim substitudos por novas
formas de governo. 16 Em O Que a Propriedade (1840), Proudhon trata de demonstrar como a Propriedade Privada o princpio de organizao da sociedade capitalista, do Governo. Aqui comea a abordagem terica
caracterstica do anarquismo, que afirma a interdependncia do poltico com o econmico.
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16
metafrico; era o ser social, unidade orgnica e sinttica, a quem acabvamos de
denominar. Aos olhos de algum que tenha refletido sobre as leis do trabalho e da troca (eu
deixo de lado toda outra considerao), a realidade quase diria a personalidade, do homem
coletivo, to clara e certa e quanto realidade e personalidade do homem individual. Toda
a diferena consiste no fato de que o ltimo apresenta-se aos sentidos sob o aspecto de um
organismo cujas partes esto em coerncia material, circunstancia que no existe na
sociedade. (Proudhon, 2003, p. 163-164).
Este conceito de sociedade, que no nem uma coleo de indivduos, nem um
ser dotado de coerncia material como um super-indivduo est intimamente associado
ao conceito de fora coletiva. A diferena entre a superposio dos indivduos e a uma
fora coletiva est na forma e finalidade pela qual os indivduos esto associados, e que
constitui a realidade per si da sociedade. Podemos dizer que o conceito de sociedade
caracterizado por trs elementos:
1) a sociedade um sistema, um conjunto de relaes, onde operam para sua
constituio mltiplas causas sem as quais no pode existir, sendo que sua organizao
no dotada de nenhuma ordem ou equilbrio a priori, sendo esta sempre instvel,
resultado da ao social;
2) a sociedade composta fundamentalmente por foras: foras coletivas, mltiplas e
diversas na sociedade, que se distinguem das foras individuais e que se caracterizam
pelo poder e fatos que geram, que no so idnticas soma de foras individuais. A
fora coletiva pode ser qualificada como: a) organizao social de sujeitos concretos
(que supe diviso, coordenao, especializao funcional, convergncia de esforos e
etc) que se constitui para execuo de uma determinada atividade; b) mltipla,
diversificada, podendo se materializar em atividades econmico-produtivas, polticas,
culturais etc; c) contraditria, conflituosa, cada sujeito concreto pode participar em
empreendimentos diferentes, em diferentes foras coletivas, com diferentes finalidades
que servem a diferentes fins; d) passvel de explorao, dominao, rebelio; ela se faz e
desfaz pela atividade em que se materializa, como qualquer atividade econmica.
Dessa crtica, do direito e economia, surge a noo de fora coletiva como
conceito que sintetiza a crtica da economia com o projeto tico-poltico igualitarista e
socialista. com base nesse conceito que ele ir formular a teoria do mutualismo e do
poder.
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17
2 Federalismo e teoria do poder
Uma caracterstica fundamental do pensamento e da abordagem sociolgica de
Proudhon, na qual este se difere de Marx e de todos os economistas burgueses, que o
primeiro pensou e aplicou a concepo dialtica e os conceitos gerais da filosofia ao
estudo do poder e da poltica, rompendo com o predomnio do econmico carcterstico
de Marx e dos liberais do sculo XIX e XX. Essa transposio das categorias e
conceitos gerais da filosofia dialtica est formulada no seu livro Do Princpio
Federativo a necessidade e reconstituir o Partido da Revoluo e expresso pelo
encadeamento de conceitos que comeam com a dialtica autoridade-liberdade,
passando pelo conceito de regimes polticos at o conceito de forma de governo. Logo a
teoria do federalismo surge como parte de uma teoria geral dos governos e, logo, do
poder17
. Mas aqui tambm no somente o autor faz um diagnstico dos regimes
polticos e formas de governo, mas delineia uma forma de governo a partir da crtica.
O primeiro componente da teoria do poder e da poltica o dualismo poltico a
dialtica entre autoridade e liberdade, que figurando como conceitos geral-abstrato
est na base da formulao dos conceitos particulares-concretos da anlise poltica. O
dualismo poltico (Autoridade e Liberdade) expressa a oposio e conexo dessas duas
noes. Vejamos como o autor coloca o problema:
A ordem poltica repousa fundamentalmente em dois princpios contrrios, a Autoridade e a
Liberdade: o primeiro iniciador, o segundo determinante; este tendo por corolrio a liberdade de
pensamento, aquele a f que obedece (...) A Autoridade e a Liberdade so to antigas no mundo
como a raa humana: nascem conosco, e perpetuam-se em cada um de ns. Notemos apenas
uma coisa, a que poucos leitores atentariam: estes dois princpios formam, por assim dizer, um
par cujos termos, indissoluvelmente ligados um ao outro, so contudo irredutveis um ao outro e
permanecem, independentemente do que faamos, em luta perpetua. A Autoridade supe
necessariamente uma Liberdade que a reconhea ou a negue; a liberdade por seu lado, no
sentido poltico do termo, supe igualmente uma autoridade que lide com ela, a reprima ou a
tolere. Suprima-se uma das duas, a outra no faz mais sentido: a autoridade, sem uma liberdade
que discuta, resista ou se submeta, e uma palavra a liberdade, sem uma autoridade que a
equilibre um contra-senso (Proudhon, 2001, p. 46)
Aqui ns vemos dois movimentos. Em primeiro lugar, a existncia da dialtica, a
unidade dos contrrios e o antagonismo. Ao mesmo tempo, existe uma determinada
17 Vejamos: Antes de dizer o que se entende por federalismo, contm relembrar em poucas paginas a origem e a filiao desta idia. A teoria do sistema federativo e inteiramente nova: creio mesmo poder
afirmar que ainda no foi apresentada por ningum. Esta, contudo, intimamente Iigada a teoria geral dos governos, mais precisamente, a sua concluso necessria (Proudhon, 2001, p. 45)
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18
compreenso da dialtica j que no este uma sntese possvel entre os dois termos,
apenas o antagonismo e o balanceamento de foras da luta entre os dois polos da
unidade contraditria.
Essa unidade contraditria inerente poltica se alinha a outra ideia
extremamente importante que a da inexistncia de sistemas absolutos, ou seja, no
possvel que num regime autoritrio toda liberdade seja suprimida e nem num sistema
libertrio toda autoridade. Nesse sentido o equilbrio entre os dois princpios o que
determinante para a formao dos regimes e governos. Da que essa dialtica encontra
seu campo de expresso ltima no em si mesma, mas na forma como a poltica se
realiza. Vejamos:
o principio de autoridade, principio familiar, patriarcal, magistral, monrquico, teocrtico, tendente a hierarquia, a centralizao, a absoro, dado pela natureza, por conseguinte,
essencialmente fatal ou divino, como quisermos. A sua ao, combatida, dificultada pelo
principio contrario, pode indefinidamente ampliar-se ou restringir-se, mas sem nunca poder
desaparecer. o principio de liberdade, pessoal, individualista crtico; agente de diviso, eleio, transao, dado pelo esprito. Princpio essencialmente arbitral por consequncia, superior a
Natureza da qual se serve, ao destino que domina; ilimitado nas suas aspiraes; suscetvel, como o
seu oposto, de extenso e de restrio, mas tambm do mesmo modo que ele incapaz de se
esgotar pelo desenvolvimento, como de desaparecer pela derrota. Surge da que em toda a
sociedade, mesmo a mais autoritria, uma parte necessariamente deixada a liberdade; igualmente em toda a sociedade, mesmo a mais liberal, uma parte e reservada a autoridade. Esta
condio e absoluta; nenhuma combinao poltica se Ihe pode eximir. A despeito do
entendimento cujo esforo;o leva incessantemente a resolver a diversidade na unidade, os dois
princpios continuam presentes e sempre em oposio. O movimento poltico resulta da sua
tendncia inelutvel e da sua mutua reao. (Proudhon, 2001,p. 47)
A dialtica aqui definida como uma luta perptua entre dois termos: o polo da
autoridade e polo da liberdade apresenta-se assim como irredutveis e indissolveis.
Esse aspecto importante, pois como cada princpio ir se expressar em regimes
polticos de liberdade ou autoridade, podemos concluir que na realidade existe uma luta
perptua entre regimes na histria (regimes de liberdade contra regimes de autoridade) e
tambm dentro dos regimes de liberdade para fazer prevalecer o principio da liberdade
contra a autoridade. Podemos daqui extrair no somente um instrumento para a anlise
da cincia poltica e sociologia. A dialtica interna poltica definida pela luta entre
categorias, assim como a dialtica interna economia definida pela contradio entre
valor de uso e valor de troca.
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19
Destas duas noes resultam para a sociedade dois regimes diferentes, que designamos regime
de autoridade e regime de liberdade; cada um dos quais pode assumir de seguida duas formas
diferentes, nem mais nem menos. A autoridade no aparece em toda a sua estatura seno na
coletividade social: consequentemente nada pode exprimir-se, agir, seno pela prpria
coletividade ou por um elemento que a personifique; identicamente, a liberdade no
perfeita senao quando e garantida a todos, seja por todos terem lugar no govemo, seja por o
cargo no ter sido subtrado a ningum. Impossvel fugir a estas alternativas: Governo de
todos por todos ou governo de todos por um s, isto para o governo de autoridade; governo de
participao de todos por cada um ou governo de cada um por si proprio, isto para o regime
de liberdade. (Proudhon, 2001, p. 55-56)
com essa formulao que o autor chega no mais a dialtica interna do
movimento poltico, mas a dialtica entre regimes polticos, o que ele denomina de
regime de autoridade e regime de liberdade. Cada um destes regimes polticos
implicaria duas grandes formas de governo, conforme abaixo:
Alem disso, sendo a sociedade composta de indivduos, e podendo a relao do individuo
ao grupo conceber-se, do ponto de vista poltico, de quatro maneiras diferentes, da
resultam quatro formas governamentais, duas para cada regime: 1. Regime de Autaridade
A) Govemo de todos por um s; Monarquia ou Patriarcado; B) Governo de todos par
todos; - Panarquia ou Comunismo. o carter essencial deste regime, nas suas duas formas, e a indiviso do poder. II. Regime de Liberdade B) Governo de todos por cada um; -
Democracia; b) Governo de cada um por cada um; - Anarquia ou Self- Government!
(Proudhon, op.cit.p. 49)
Aqui ento anunciado um tema fundamental: o que caracteriza os diferentes
regimes a indiviso (autoridade) e a diviso (liberdade) do poder. O Conceito de
forma de governo chave para entendermos essa elaborao Chama-se formas de
governo, a maneira como se distribui e se exerce o Poder. Natural e logicamente estas
formas esto em relao com o principio, a formao e a lei de cada regime.
(Proudhon, 2001,p 60). O problema do poder, nesta perspectiva, est ligado a dois
conceitos: distribuio e exerccio, orientadas sempre pela prioridade da autoridade
sobre a liberdade ou da liberdade sobre a autoridade.
Aqui interessante que Proudhon ir dialogar com Bonald (terico do
absolutismo) para debater a origem do Estado. A origem do Estado est na indiviso da
famlia e na indiviso da comunidade, que so por assim a matriz do Estado e do
princpio de autoridade.
Sabemos como se estabelece o governo monrquico, expresso primitiva do principio da
autoridade. O Sr. De Bonald explica-no-lo: e pela autoridade paternal. A famlia o embrio
da monarquia. Os primeiros Estados foram geralmente as famlias ou tribos governadas pelo seu
chefe natural, marido, pai patriarca, e finalmente rei. Sob este regime, o desenvolvimento do
Estado efetuava-se de duas formas : " pela gerao ou multiplicao natural da famlia, tribo ou
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raa ; 2" por adoo, quer dizer, pela incorporao voluntaria ou forada das familias e tribos
circunvizinhas, mas de maneira que as tribos reunidas s tornassem com a tribo me uma s
familia, uma " mesma domesticidade. Este desenvolvimento do estado monrquico pode atingir
enormes propores, indo ate as centenas de milhes de homens, dispersos por centenas de
milhares de lguas quadradas. ,A panarquia, pantocracia ou comunidade, forma-se naturalmente
pela morte do monarca ou chefe de famlia e a declarao das pessoas, irmaos, filhos ou
associados de continuarem indivisos, sem haver eleio de um novo chefe. Esta forma poltica
rara, mesmo se h exemplos, a autoridade e a mais pesada e o individualismo mais oprimido
que em nenhuma outra. (Proudhon, 2001,p. 50)
Logo os regimes de autoridade poderiam ser considerados aqui como aqueles
compostos por uma chefia centralizada ou Rei e por varias chefias descentralizadas, mas
baseada na autoridade patriarcal mantidas indivisas pela relao comunitria. De
maneira geral, existe uma correspondncia entre o Estado monrquico na escala geral e
a famlia patriarcal na escala domstica, e da autoridade da comunidade, de maneira que
a sociedade que fornece as bases do regime poltico e da forma de governo.
Dessa forma, temos a dialtica autoridade-liberdade, a dialtica dos regimes e
das formas de governo. Essa dialtica, entretanto no esgota ainda o que Proudhon
denomina de governos de fato, que seriam as formas histricas especficas de
combinao concreta. Para Proudhon existe uma diferena fundamental entre os
regimes e formas de governo baseados na dialtica autoridade-liberdade e os governos
de fato.
Tudo isto fatal como a unidade e a pluralidade, o quente e o frio, a luz e as trevas. - Mas,
dir-me-ao, nunca se viu o governo ser apanagio de uma parte mais ou menos considervel
da nao, com excluso do resto: aristocracia, governo das classes altas; oclocracia,
govemo da plebe; oligarquia, governo de uma faco .. A observao correta, tal j aIi se
viu: mas esses governos so governos de fato, obras de usurpao, de violncia, de relao,
de transio, de empirismo, onde todos os princpios so simultaneamente adotados, depois
igualmente violados, mal conhecidos e confundidos; e no estamos presentemente nos
governos a priori, concebidos segundo a lgica, e baseados sobre um s principio.
(Proudhon, ibd)
preciso fazer algumas consideraes de mtodo nesse momento. A ideia dos governos
concebidos a priori (categorias dialticas lgicas) se ope os governos de fato (os
vivenciados emprica e historicamente). Mas ao mesmo tempo Proudhon no concebe
uma relao de oposio entre as categorias dialticas e filosficas e a anlise histrica:
Nada de arbitrrio, mais uma vez, na poltica racional, que cedo ou tarde no se deve
distinguir da poltica pratica(Proudhon, 2001, p. 56).
Logo a questo no entender que os princpios de autoridade-liberdade e os
regimes no existem em forma pura em lugar nenhum, mas entender que no se pode
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buscar nas realidades empricas que elas expressem apenas construes lgico-
filosficas, como meras aplicaes desses sistemas. Aqui que reside a essncia do
mtodo, quando se vai do abstrato ao concreto, do lgico ao histrico, os governos de
fato se diferenciam dos regimes (que so redues da dialtica ao predomnio de um
principio), fogem da unicidade ou simplicidade e adquirem complexidade; tambm
deixa o carter abstrato para assumir formas concretas, empricas. Assim, no se trata de
uma oposio entre a teoria e prtica, mas da transio entre as categorias tericas e a
prtica, de maneira que no se concebe que a prtica (os governos de fato) so apenas a
aplicao da teoria dos governos. A idia de transao entre os princpio que garante a
transio entre os regimes dados a priori e os governos de fato. Ele exemplifica pelos
governos monrquicos, que apesar de apoiados no poder absoluto, foram obrigados por
necessidade de administrao a implantar a diviso de poderes. Isso ele explica pelo
recurso economia poltica. A idia de transao entre os princpios derivada
especialmente das necessidades prticas e das imposies objetivas da manuteno do
poder e da prpria forma de governo, ou seja:
A razo desta modificao e fcil de compreender. Se um homem so tem dificuldade em
ser suficiente para a explorao de um domnio de cem hectares, de uma manufatura que
ocupa algumas centenas de operrios, para a administrao de uma comuna de cinco a seis
mil habitantes, como levaria ele o0 fardo de um imprio de quarenta milhes de homens?
Aqui, portanto, a monarquia teve de se inclinar diante do duplo principio, emprestado da
economia poltica: que a maior soma de trabalho fornecida e o maior valor produzido,
quando 0 trabalhador e livre e age por sua conta como empreiteiro e proprietrio; que a
qualidade do produto ou servio; o quanto melhor quanta 0 produtor conhece melhor a sua
parte e a ela se consagra exclusivamente. Ha ainda uma outra razo para este emprstimo
feito pela monarquia a democracia: que a riqueza social aumenta proporcionalmente a divisao e a interao das industrias, o que significa, em poltica, que o govemo ser tanto melhor e oferecera menos perigo para o prncipe, quanto as funes forem mais distintas e
equilibradas: coisa impossvel em um regime absolutista. Eis como os prncipes foram
levados a republicanizar-se, por assim dizer, a fim de escaparem a uma ruina inevitvel: os
ltimos anos nos deram disso exemplos flagrantes, no Piemonte, na ustria e na Rssia. Na
situao deplorvel em que 0 czar Nicolau tinha deixado 0 seu (Proudhon, 2001, p. 64)
Os governos de fato (monarquia e comunismo, democracia e anarquismo) tendem a se
materializar na base de emprstimos recprocos por presses da economia. Uma
omisso na perspectiva de Proudhon explicar, por exemplo, como os governos
republicanos tomam de emprstimo instituies e formas de ao dos governos
monrquicos. Apesar de enunciar isso com a idia de que o funcionrio publico uma
autoridade, ele no faz a mesma demonstrao anterior. Mas a idia de que o governo
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monrquico se republicaniza pode ser completada que o governo republicano se
monarquiza de acordo com as presses para sua autopreservao.
Onde est ento o elemento que orientada pela dialtica autoridade-liberdade,
pelos regimes e formas de governo que possibilita a transio da lgica dialtica da
poltica a prtica ilgica dos governos de fato? Na luta de classes. A distribuio do
poder, a dialtica autoridade-liberdade e todos os conceitos vo do geral-abstrato ao
particular-concreto por uma srie de mediaes cuja sntese a luta de classes:
A monarquia e a democracia, para no me ocupar doravante seno delas apenas, sendo
portanto dois ideais fornecidos pela teoria, mas irrealizveis no rigor dos seus termos,
foram forados, como acabei de dizer, a resignar-se na pratica a transaes de todas as
espcies: de todas essas transaes obrigatrias saram todos os governos de fato. Esses
governos, obras do empirismo, variveis infinitamente, so essencialmente e sem exceo
governos compostos ou mistos.(...) Todas as variedades de governos de fato, por outras
palavras, todas as transaes governamentais experimentadas ou propostas desde os tempos
mais recuados ate nossos dias reduziram-se a duas espcies principais, que chamarei pelas
suas designaes atuais, Imperio e Monarquia constitucional. Isto exige uma explicao.
Sendo a guerra e a desigualdade da sorte desde as origens a condio dos povos, a
Sociedade divide-se naturalmente em um certo numero de classes: Guerreiros ou Nobres,
Padres, Proprietrios, Mercadores, Navegantes, Industriais, Rurais. Onde a realeza existe,
forma uma casta prpria, a primeira de todas: e a dinastia. A luta de classes, o antagonismo
dos seus interesses, a maneira como esses interesses se ligam, determina o regime poltico,
consequentemente, a escolha do governo, as suas inumerveis variedades e suas variaes
mais inumerveis ainda. Pouco a pouco todas essas classes se reduzem a duas: uma
superior, Aristocracia, Burguesia ou Patriciado; uma inferior, Plebe ou Proletariado. entre
as quais joga a Realeza, rgo do Poder, expresso da Autoridade. (Proudhon, 2001,P. 69-
70)
Aqui temos ento um elemento fundamental da dialtica proudhoniana (que ser
retomada por Bakunin): o antagonismo no plano ontolgico-filosfico (a oposio
irredutvel) se resolve na histria pelo conceito de luta de classes. a luta de classes que
determina a forma dos governos e dos regimes polticos, ou seja, o antagonismo entre
autoridade-liberdade, na lgica no suficiente para explicar a formao dos governos
de fato, mas esse antagonismo autoridade-liberdade passa no plano da histria pela luta
de classes: os governos de fato surgem das transaes de princpios ocasionadas pela
luta de classes, pelo carter contingente das disputas de interesses e das relaes de
fora.
Dessa maneira, das formas de governo possveis, aquelas experimentadas
empiricamente se encontravam especialmente trs: o Imprio, a Monarquia
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23
Constitucional e a Democracia ou Repblica Unitria. O esquema abaixo permite que
visualizemos exatamente como a dialtica filosgica s encontra sua sntese na
complexidade concreta, na qual os regimes e formas de governo se realizam numa
multiplicidade de possibilidades.
Luta de
Classes
(Concreto)
Dualismo Poltico Autoridade-Liberdade (Abstrato)
Regime de Autoridade (Abstrato) Regime de Liberdade (Abstrato)
Monarquia (Forma de Governo) Comunismo (Forma de Governo) Democracia
(Forma de Governo)
Anarquia
(Forma de
Governo)
Imprio
(governos de
fato)
Monarquia
Constitucional
(governos de
fato)
Comunidades
Patriarcais
sem chefia
Estado
Intervencionista
(governos de
fato)
Democracia
Unitria
(governos de
fato)
Repblica
Federativa
(governos de
fato)
Repblica de
Comunas
Federalizadas
(governos de
fato)
Aqui ento o autor usa os dois termos para qualificar historicamente a forma de
governo monrquico, o Imprio e Monarquia Constitucional. Para cada forma de
governo existe na perspectiva de Proudhon certa aliana de classes entre classes baixas,
altas e Estado ou autoridade.
A dialtica autoridade-liberdade no plano geral-abstrato vai se especificando por
meio dos conceitos de regimes poltico e formas de governos, nos quais existe sempre o
predomnio da autoridade em relao liberdade e da liberdade em relao autoridade.
A diferena que os regimes polticos e as formas de governo s encontram a sua
soluo contra sua dissoluo no no universo da poltica, mas da economia, de forma
que somente com a economia poltica mutualista se poderia criar um regime de
liberdade e uma forma de governo anrquica ou federativa.
Outro elemento fundamental que as formas de governo historicamente
existentes implicam sempre transaes e luta entre os princpios de autoridade e
liberdade e mais especificamente entre os regimes polticos. Essas transaes fazem
com que no existam formas de governo puras e que a luta e instabilidade poltica seja a
principal caracterstica da poltica18
. Ao mesmo tempo, do ponto de vista da histria,
existe o pressuposto de que os regimes de liberdade surgem conforme a prpria
sociedade se complexifica. No trecho abaixo fica ntida a viso da dinmica retrocesso-
18 A monarquia e a democracia, para no me ocupar doravante seno delas apenas, sendo portanto dois ideais fornecidos pela teoria, mas irrealizveis no rigor dos seus termos, foram forados, como acabei de
dizer, a resignar-se na prtica a transaes de todas as espcies: de todas essas transaes obrigatrias
saram todos os governos de fato. Esses governos, obras do empirismo, variveis infinitamente, so
essencialmente e sem exceo governos compostos ou mistos (Proudhon, 2001, p 69)
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progresso est na base da evoluo dos sistemas polticos, mas Proudhon parece ter um
otimismo grande no progresso. Aqui poderamos dizer que a prpria formula de
equilbrio e transao entre os princpios abre a possibilidade de que o progresso vire
um retrocesso ou estagnao.
Consideremos que desde h mais de oito mil anos, - as recordaes da histria no passam para alm, - todas as variedades de governo, todas as combinaes polticas e sociais foram
sucessivamente experimentadas, abandonadas, retomadas, modificadas, disfaradas, esgotadas, e que o insucesso recompensou sempre o zelo dos reformadores e iludiu a esperana dos povos.
Sempre a bandeira da liberdade serviu para abrigar o despotismo; sempre as classes privilegiadas se rodearam, no prprio interesse dos seus privilgios, de instituies liberais e
igualitrias; sempre os partidos mentiram ao seu programa, e sempre a indiferena sucedendo f. a corrupo ao esprito cvico. Os Estados sucumbiram devido ao desenvolvimento das
noes sobre as quais se tinham fundado (...) Notareis, desde logo, que os dois princpios, a Autoridade e a Liberdade, de que vem todo o mal, mostram-se na historia em sucesso lgica e
cronolgica. A Autoridade, como a famlia, como o pai, genitor, aparece primeiro: ela tem a iniciativa, e a afirmao. A Liberdade racional vem depois a critica. O protesto, a determinao. O fato desta sucesso resulta da prpria definio das idias e da natureza das
coisas, e toda a historia da testemunho disso. Ai, no h inverso possvel, no h o mnimo vestgio de arbtrio. 2) Uma outra observao no menos importante, que o regime autoritrio, paternal e monrquico, afasta-se tanto mais do seu ideal, quanta a famlia, tribo ou cidade torna-
se mais numerosa e 0 Estado cresce em populao e em territrio: de maneira que quanta mais a autoridade se estende, mais se torna intolervel. Dai as concesses que ela e obrigada a fazer a liberdade. - Inversamente, o regime de liberdade aproxima-se tanto mais do seu ideal e multiplica as suas condies de sucesso, quanto 0 Estado aumenta em populao e em extenso,
as relaes se multiplicam e a cincia ganha terreno. De incio e uma constituio que todos reclamam; mais tarde ser a descentralizao. Este duplo movimento, um de retrocesso, ou outro
de progresso, e que se funde em um fenmeno nico ... (Proudhon, 2001,P. 82)
A histria se apresenta ento no somente como a luta de classes, mas como um
confronto rentre regimes polticos, sendo que a histria moderna teria apresentado uma
importante ruptura com relao ao autoritarismo. Essa concepo est associada a sua
anlise da histria: um fenmeno poltico e outro sociocultural tinham marcado a
ruptura do princpio de autoridade. A Revoluo francesa e a reforma religiosa:
Na luta eterna dos dois princpios, a Revoluo Francesa, como a Reforma, aparece como uma
era diacrtica. Ela marca o momento em que, na ordem poltica, a Liberdade oficialmente tinha
ultrapassado a Autoridade, da mesma forma que a Reforma tinha marcado o instante em que, na
ordem religiosa, 0 livre exame tinha tornado ascendente sobre a f. Desde Lutero, a crena
tornara-se por todo o lado racional; a ortodoxia, tanto como a heresia, pretendeu conduzir pela
razo 0 homem a fe, 0 preceito de Sao Paulo, Rationabile sit obsequium vestrum "que a vossa
obedincia seja racional", foi bastante comentada e posta em pratica; Roma pos-se a discutir
como Genebra, a religio tendeu a fazer-se ciencia, a submisso a Igreja rodeou-se de tantas
condies e reservas que, salvo a diferena dos artigos de fe, no havia diferena entre 0 crente e
o incrdulo (Proudhon, 2001,p. 83)
O destaque dado a esses dois acontecimentos marca uma especificidade da
anlise de Proudhon: nele no existe a viso de que o progresso est centrado na
economia, no desenvolvimento das foras produtivas. O conceito hegeliano de
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desenvolvimento aparece aqui como progresso, mas diferentemente de Hegel e de
Marx, para quem o elemento do desenvolvimento a razo, no primeiro, a fora
produtiva, para o segundo. A reforma religiosa abriu o terreno para a crtica da religio
e emergncia da cincia, fim dos sistemas absolutos e liberdade de crtica; a revoluo
francesa abriu o caminho para a repblica, para a diviso do poder e para liberdade
poltica.
Mas toda teoria formulada acerca do federalismo no se encerra em si mesma.
Ao mesmo tempo os regimes poltios esto numa relao de conexo com a economia,
na qual encontram sua base de estruturao e dissoluo:
No entanto no foi tudo dito. Por muito isenta de falhas que seja na sua lgica a constituio federal, por mais garantias que ela oferea na aplicao, ela mesma no se
agentar enquanto encontrar na economia pblica causas incessantes de dissoluo. Por outros termos, necessrio ao direito poltico o contraforte do direito econmico. Se a
produo e distribuio da riqueza for deixada sorte; se a ordem federativa no servir
seno para proteger a anarquia capitalista e mercantil; se, devido a essa falsa anarquia, a
Sociedade se encontrar dividida em duas classes, uma de proprietrios-capitalistas-
empreiteiros, a outra de proletrios assalariados; uma de ricos, a outra de pobres; o edifcio
poltico ser sempre instvel. A classe operria, a mais numerosa e a mais pobre, acabar
por no encontrar nela seno uma decepo; os trabalhadores coligar-se-o contra os
burgueses que, por seu lado, se uniro contra os operrios; e ver-se- a confederao
degenerar, se o povo for o mais forte, em democracia unitria, se a burguesia triunfar, em
monarquia constitucional. Considerada em si mesma, a idia de uma federao industrial
servindo de complemento e de sano federao poltica, recebe a mais estrondosa confirmao dos princpios da economia. a aplicao sobre a mais alta escala dos
princpios de mutualidade, de diviso do trabalho e de solidariedade econmica. que a
vontade do povo teria transformado em leis do Estado. (Proudhon, 2001,127)
Em resumo, a teoria do poder e dos regimes polticos est assentada no nvel geral-
filosfico no conceito de dualismo poltico e no nvel concreto na luta de classes, na
qual a relao dialtica entre poltica e economia do explicao ltima para a oscilao
histrica entre regimes polticos e formas de governo, as transaes concretas e a
multiplicidade histrica dos mesmos. exatamente aqui que a teoria do poder est
assentada na teoria econmica e filosfica do autor, referida inicialmente. Na economia,
o problema do valor e da desigualdade considerado sob o aspecto da resoluo da
contradio do valor, atravs de uma formula que visa constituir o valor trabalho como
fundamento da economia e do direito.
Em resumo, podemos dizer que para Proudhon sua concepo de poder est
assentada ento em trs conceitos gerais-abstratos: o conceito de dialtica autoridade-
liberdade, a autoridade representando a concentrao do poder, do comando e a
liberdade a diviso do poder, autonomia; o conceito de desenvolvimento como
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progresso/retrocesso e no como passagem do germe ao ser completo; o conceito de
transao um movimento do lgico ao histrico e do histrico ao lgico, no sentido que
o real no uma mera aplicao do terico, mas ao mesmo tempo ele engloba a
dialtica como oposio da qual a prpria luta de classes o fator de sntese, gerando as
transaes e contradies da poltica, o que tambm implica um antagonismo e
transao perptua entre os regimes polticos e formas de governo19
.
A partir destes conceitos so formadas as caractersticas centrais da matriz
anarquista de anlise do poder: 1) a poltica no vista como um reflexo exterior e
determinado da economia, mas pensada a partir de uma dialtica constitutiva que a
dialtica entre autoridade e liberdade como princpio ordenador da distribuio e
exerccio do poder; 2) a anlise da poltica baseada na reflexo sobre os regimes
polticos, formas de governo e governos de fato, que nunca sendo a realizao ou
aplicao de um princpio, so constitudos pela luta entre os regimes e pela luta de
classes que o fator no qual as transaes alcanam snteses histricas concretas; 3) a
luta e transaes entre princpios, regimes e formas de governo no so resolvidas no
terreno exclusivo da poltica, na realidade, essas formas de governo tendem sempre a
dissoluo em razo da sua localizao dentro da economia; 4) o conceito de
desenvolvimento ou progressoimplica que na histria um regime de liberdade e suas
formas de governo correspondentes se coloquem como mecanismos de progresso em
relao aos regimes de autoridade, mas conforme a tendncia dissolvente da economia
opera, ele tende a estagnao no desenvolvimento da liberdade e importa cada vez mais
mecanismos dos regime autoritrio; 5) dessa forma, uma oscilao histrica entre
regimes autoritrios e suas formas de governo (Imperios, Monarquias, Monarquias
Constitucionais) e liberais (Democracia Unitria, Republica federativa), no consegue
resolver o problema da contradio da poltica. Essa contradio s se resolve, por meio
da luta de classes, com uma nova variao, a forma de governo chamada anarquia,
autogoverno ou federao e com uma economia de base mutualista.
19 Visto que os dois princpios sobre os quais repousa toda a ordem social, a Autoridade e a Liberdade, por um lado, so contrrios um ao outro e perpetuamente em luta, e que por outro lado no podem nem
anular-se nem fundir-se, uma transao entre eles torna-se inevitvel. Qualquer que seja o sistema
preferido, monarquia ou democracia, comunismo ou anarquia, a instituio no pode sustentar-se de p
algum tempo, se no tiver sabido apoiar-se, em uma proporo mais ou menos considervel, sobre as
bases do seu antagonismo. (Proudhon, 2001,p.63)
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Na anlise da poltica dessa matriz, a teoria das formas de governo surge como
dialtica interior, entre princpios, regimes e formas de governo, e uma dialtica
exterior, entre a poltica e a economia. Do ponto de vista terico-explicativo a dialtica
autoridade-liberdade empregada para pensar a sucesso e desenvolvimento dos
regimes polticos e formas de governo e para indicar uma nova forma de governo, e suas
condies interiores (diviso do poder, um determinado equilbrio autoridade-liberdade)
e sua condio exterior (as condies econmicas).
Proudhon estava se referindo ao fato de que o Imprio Napoleonico, existente na
Frana, estava caminhando para uma crise e que seria o momento para tirar proveito da
situao histrica e propor uma nova forma de Governo. xatamente aqui que esta
abordagem se liga a outra, a da anlise sociolgica da capacidade poltica da classe
trabalhadora e seu papel na mudana social.
3 A capacidade poltica, fora coletiva e mutualismo
A obra de Proudhon e sua conexo com o movimento operrio e socialista
absolutamente incompreensvel se no levamos em considerao o seu livro pstumo
A Capacidade Poltica das Classes Operrias (1865). O livro desencadeado pela
discusso acerca do Manifesto dos 60 Operrios20
do Senna na sociedade francesa e a
reao crtica de Proudhon ao projeto de um conjunto de operrios de apresentar
candidatos dentro das eleies do regime imperial francs. Toda a primeira parte do
livro a elaborao da sua posio poltica apresentada um ano antes de boicote as
eleies e de defesa da associao como principal projeto da classe trabalhadora.
Neste livro temos uma teoria da ao e da constituio da classe enquanto
agente, enquanto fora coletiva; ao contrrio da viso hegeliana e marxista na qual a
histria move o agente, que no seno o realizador (da razo, da produo) a teoria da
capacidade poltica est centrada no reconhecimento das condies subjetivas da
formao da classe, a autoconscincia, e nas condies objetivas, a sua autoatividade
como agente. A partir da anlise do episdio das eleies ele coloca a questo (que a
20
Declarao poltica de ativistas operrios defendendo uma poltica de classe, que os trabalhadores se
apresentassem como classe para disputar as eleies.
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princpio surgia no plano jurdico, e reconhecimento da capacidade eleitoral e poltica
do trabalhador) e eleva esse tema ao patamar propriamente sociolgico. Vejamos:
A questo das candidaturas operrias, resolvida negativamente pelas eleies de
1863 e 1864 implica a da capacidade poltica dos trabalhadores mesmos ou, para
servirme de uma expresso mais geral, do povo. O povo, a quem a revoluo de
1848 deu a faculdade de votar, ou no capaz de julgar em poltica? E cpaz de
formar sobre as questes que interessam a coletividade social uma opinio em
armonia com sua condio, seu porvir e seus interesses? capaz de proncunciar,
em consequncia, sobre as mesmas questes submetidas a sua arbitragem direta e
indireta, um julgamento fundamentado? capaz de constituir um centro de ao
que seja fiel expresso de suas ideias, suas vises e suas esperanas e que esteja
encarregado de procurar a execuo de seus projetos? (...) Tal a inevitvel
questo sucitada pelas candidaturas operrias da classe trabalhadora, questo a qual
asbolutamente indispensvel responder; o povo ou no capaz? Os Sessenta,
preciso felictar-lhes por isso, se declararam corajosamente pela resposta
afirmativa.(Proudhon, 2003)
O problema da capacidade poltica a questo de fundo levantada pelo debate sobre o
manifesto dos 60 operrios do Senna. O manifesto dos 60 operrios foi respondido por
outro, o contramanifesto dos 80 que recusou os argumentos da luta de classes e foi
tomado por Proudhon como a reproduo das idias da burguesia que estavam graando
na grande imprensa: Descarto que esses operrios, como cidados e como
trabalhadores, valessem tanto como os outros; certamente no tinham nem sua
originalidade nem sua ousadia. Mas as consideraes em que se fundavam, pode
facilmente ver-se que no faziam seno repetir as lies de La Presse, Le Temps e Le
Siecle. (Proudhon, op.cit)
A partir disso ele parte para diferenciar a noo de capacidade poltica real e
legal. interessante observar que nessa diferenciao ele toma o caso concreto do
sufrgio universal e seu significado na evoluo poltica francesa: o voto censitrio
tinha como prerrogativa a suposio da capacidade poltica dos proprietrios, os
proprietrios seriam inerentemente capazes politicamente: depois ele questiona a
utilizao de critrios de sexo, idade, raa para atribuir o mesmo reconhecimento
(institudo pela revoluo de 1848).
Observemos antes de tudo que, tratando-se do cidado, tomamos a palavra
capacidade sob dois pontos de vista diferentes: existe a capacidade legal e a
capacidade real. A primeira nasce da lei e supe a segunda. No seria possvel
admitir que o legislador reconhecesse direitos a cidados naturalmente incapazes.
Antes de 1848, por exemplo, para exercer o direito eleitoral era preciso pagar 200
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francos de contribuio direta. Supunha-se, portanto, que a propriedade era uma
garantia da capacidade real; assim os contribuintes de 200 francos eram tomados
pelos verdadeiros interventores do governo e pelos rbitros soberanos de sua
poltica. Isto no era seno uma fico, posto que nada provava que entre os eleitos
no houvesse e muitos realmente incapazes apesar de sua cota, nem nada
autorizada tampouco a crer que fora desse circulo, entre tantos milhes de cidados
sujeitos a um simples imposto pessoal, no houvesse uma multido de respeitveis
capacidades. Em 1848, foi mudado o sistema de 1830: se estabeleceu sem restrio
alguma o sufrgio universal e direto. Por esta simples reforma, todo homem maior
de 21 anos, nascido e residente na Frana, foi facultado pela lei com a capacidade
poltica. Se supos que o direito eleitoral e at certo ponto a capacidade poltica
inerente a condio de homem e cidado. Mas isto no tampouco mais que uma
fico. Como poderia ser a faculdade eleitoral uma prerrogativa de raa, de idade,
de sexo, nem de domiclio, melhor ou com mais razo que da propriedade?
(Proudhon, 2003)
Desnaturalizando a capacidade poltica, separada da capacidade legal instituda pela
sociedade dominante, ele ir afirmar a capacidade real a partir de um conjunto de
condies que diz respeito relao do sujeito individual e coletivo com a
multiplicidade objetiva do mundo sobre a qual incide atravs da sua atividade.
Assim queiramos ou no, desde o momento em que nos propomos a tratar como historiadores e como filsofos a capacidade poltica, devemos sair do terreno das fices e chegarmos a capacidade real, nica de que falaremos adiante. Para que em um sujeito,
individuo, corporao ou coletividade haja capacidade poltica se requer trs condies
fundamentais: 1.Que o sujeito tenha conciencia de s proprio, de sua dignidade, de seu
valor, da posio que ocupa na sociedade, do papel que desempenha, das funes que tem
direito a aspirar, dos intereses que representa ou personifica. 2.Que, como resultado dessa
conscincia plena de s prprio, afirme sua ideia, a saber, que conhea a lei de seu ser,
saiba express-la pela palavra e explica-la pela razo, no somente em seu principio seno
tambm em todas as suas consequencias. 3.Que desta ideia -assentada como profisso de
f- possa, segundo exijam as circunstancias, extrair sempre concluses prticas.
(Proudhon, 2003)
A capacidade poltica real engloba a legal e definida por trs dimenses cumulativas:
1) a autoconscincia (sentir-se), que expressa uma percepo valorativa e sensitiva do
sujeito em relao a si; 2) a racionalizao (ideolgica, terica), que implica que alm
do autoreconhecimento preciso uma viso do mundo e dos seus interesses para si
(pensar-se); 3) a prxis, a atividade transformadora de autorealizao (fazer-se). Isso
vai levar a teorizao da capacidade poltica da classe operria como sujeito
independente da burguesia, marcando uma diferena substantiva em relao ao
marxismo21
. A classe trabalhadora surge por si (e isto valido para os sujeitos
21 Podemos dizer que Marx, diferentemente de Hegel, opera com duas categorias fundamentais, o real
em si e o sujeito para si. Na teoria das classes sociais a passagem da classe em si a uma classe para si altamente problemtica, porque sempre exige uma interveno exterior que produza a conscincia.
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polticos em geral), porque preciso a capacidade poltica, essa capacidade implica a
constituio da classe por si e do sujeito por si22
.
Aqui o problema da participao nas eleies burguesas e sua recusa o
terreno para a defesa da construo de centros de ao da classe operria, que seriam
o principal fundamento do sindicalismo e a base para a sistematizao da AIT. Nesse
sentido, ao analisar a experincia da classe trabalhadora francesa Proudhon observa que
esta se encontrava no processo de constituio dos seus centros de ao e de separao
da poltica burguesa.
Da mesma maneira, ser capaz em poltica no estar dotado de uma aptido partiular para entender os negcios do estado nem para execer tal ou qual emprego
pblico, nem o tampouco demonstrar pela cidade um zelo mais ou menos
ardente. Tudo isto questo de oficio e de talento; no isto o que constitui no cidado muitas vezes silencioso, moderado e alheio aos empregos- a capacidade poltica. Possuir a capacidade poltica ter conscincia de s mesmo como
individuo de uma coletividade, afirmar a idea que dela resulta e procurar sua realizao. O problema da capacidade poltica na clase trabalhadora -do mesmo
modo que na burguesa e em otras pocas na nobreza- se reduz, portanto, ao
seguinte: a) Se a clase trabalhadora, sob o ponto de vista de suas relaes com a sociedad e o Estado, adquiriu conscincia de si prpria; se como ser colectivo,
moral e libre, se distingue da classe burguesa; se separa de seus intereses os seus,
se aspira a no confundir-se con ela; b) Se possui uma ideia, a saber, que formou a
sua prpria constituio; se conhece as leis, condies e frmulas de sua existncia; se prev seu destino, seu fim; se comprend