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Michael Kosubek TEOLOGIA NA CONTRAMÃO COMPREENDER A FÉ CRISTÃ PELO PENSAR ONTOLÓGICO-RELACIONAL EM PETER KNAUER SJ Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia Belo Horizonte 2009

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Michael Kosubek

TEOLOGIA NA CONTRAMÃO

COMPREENDER A FÉ CRISTÃ PELO PENSAR ONTOLÓGICO-RELACIONAL

EM PETER KNAUER SJ

Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia Belo Horizonte

2009

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Michael Kosubek

TEOLOGIA NA CONTRAMÃO

COMPREENDER A FÉ CRISTÃ PELO PENSAR ONTOLÓGICO-RELACIONAL

EM PETER KNAUER SJ

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Área: Teologia Sistemática. Orientador: Prof. Dr. João Batista Libanio.

Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia Belo Horizonte

2009

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„Der Zweifler“ Immer wenn uns die Antwort auf eine Frage gefunden schien löste einer von uns an der Wand die Schnur der alten aufgerollten chinesischen Leinwand, so daß sie herabfiele und sichtbar wurde der Mann auf der Bank, der so sehr zweifelte. Ich, sagte er uns bin der Zweifler, ich zweifle, ob die Arbeit gelungen ist, die eure Tage verschlungen hat. Ob, was ihr gesagt, auch schlechter gesagt, noch für einige Wert hätte. Ob ihr es aber gut gesagt und euch nicht etwa auf die Wahrheit verlassen habt dessen, was ihr gesagt habt. Ob es nicht vieldeutig ist, für jeden möglichen Irrtum tragt ihr die Schuld. Es kann auch eindeutig sein und den Widerspruch aus den Dingen entfernen; ist es zu eindeutig? dann ist es unbrauchbar, was ihr sagt. Euer Ding ist dann leblos. Seid ihr wirklich im Fluß des Geschehens? Einverstanden mit allem, was w i r d ? Werdet i h r noch? Wer seid ihr? Zu wem sprecht ihr? Wem nützt es, was ihr da sagt? Und nebenbei: läßt es auch nüchtern? Ist es am Morgen zu lesen? Ist es auch angeknüpft an vorhandenes? Sind die Sätze, die vor euch gesagt sind, benutzt, wenigstens widerlegt? Ist alles belegbar? Durch Erfahrung? Durch welche? Aber vor allem Immer wieder vor allem anderen: Wie handelt man Wenn man euch glaubt, was ihr sagt? Vor allem: Wie handelt man? Nachdenklich betrachteten wir mit Neugier den zweifelnden blauen Mann auf der Leinwand, sahen uns an und begannen von vorne.

Bertolt Brecht (1937)

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“O Duvidante” Sempre, quando nos parecia ter sido encontrada a resposta a uma pergunta, um de nós soltou da parede a corda do velho linho enrolado, chinês, para que caísse e se tornasse visível o homem no banco que tanto duvidava. Eu, ele nos disse, sou o duvidante, eu duvido, se o trabalho que consumiu vossos dias logrou. Se, o que vocês dizem, mesmo dito pior, ainda teria valor para alguns. Se vocês, porém, o disseram bem e eventualmente não confiaram na verdade daquilo que vocês disseram. Se não é equívoco, por qualquer erro, vocês levam a culpa. Aquilo também pode ser unívoco e afastar a contradição das coisas; é unívoco demais? Então, é inútil o que vocês dizem. Seu negócio, então, é sem vida. Vocês realmente estão no fluxo do evento? De acordo com tudo que e s t á vindo a ser? V o c ê s ainda estão vindo a ser? Quem são vocês? E, de passagem: Será que isso deixa sóbrio também? É possível lê-lo de manhã? Será que isso está vinculado a algo existente? As frases que são ditas antes de vocês, são utilizadas, ao menos refutadas? É tudo comprovável? Por experiência? Por qual? Mas antes de tudo sempre de novo, antes de tudo o mais: como se age se acredita-se o que vocês dizem? Antes de tudo: como se age? Pensativos observamos com curiosidade o homem duvidante, azul no linho, olhamos para nós e começamos de novo.

Bertolt Brecht (1937)

(tradução de Michael Kosubek)

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RESUMO

O tema deste trabalho é a compreensão de fé do teólogo alemão e jesuíta, PETER KNAUER. Sua particularidade consiste num pensar ontológico-relacional. Para Knauer, a teologia cristã há de partir do encontro histórico com a mensagem cristã. Ela pretende ser “palavra de Deus”. Para entender essa pretensão de verdade, faz-se necessário, primeiro, explicar o significado da palavra “Deus”. De acordo com a própria mensagem cristã, Deus é maior de tudo que podemos pensar. Por isso, a única maneira de falar de Deus consiste em compreender que o mundo é incapaz de existir sem ele, o que significa dizer, que é criado. Nós compreendemos de Deus aquilo que, sendo totalmente diferente dele, em toda a sua realidade é relacionado a ele. Tal relação, no entanto, é totalmente unilateral. O mundo não pode ser o termo constitutivo de uma relação de Deus a ele. Essa é a objeção maior contra a possibilidade de uma “palavra de Deus” o que implica numa relação de Deus ao mundo. A própria mensagem cristã responde a esse problema pelo seu conteúdo: o universo é criado no amor eterno entre Pai e Filho que é o Espírito Santo. Pelo fato de esse amor não ter sua medida no mundo, também não pode ser lido nele e, por isso, há de ser “sobredito” a ele. A mensagem cristã refere à encarnação do Filho por ele revelar-nos, em sua palavra humana, a nossa comunhão com Deus. Esta pode ser conhecida somente na fé como o estar repleto do Espírito Santo. Objetivo da fé é libertar o ser humano do poder daquele medo a respeito de si que, senão, é a raiz de toda desumanidade. Nessa compreensão a fé não é composta de partes, mas todos os dogmas apenas explicam o único mistério de nossa comunhão com Deus. No contexto de uma compreensão aditiva da fé, que está subjacente a atuais tendências de efervescência religiosa e falsa secularização, a compreensão relacional de fé de Knauer pode ser importante também para a América Latina. Palavras-chave: Palavra de Deus, ontologia relacional, conhecimento natural de Deus,

analogia, autocomunicação de Deus, fé, razão.

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ABSTRACT

The theme of this essay is the understanding of faith of the German Jesuit theologian PETER

KNAUER. His peculiarity is a relational-ontological thinking. For Knauer Christian theology must start from the historical encounter with the Christian message. It claims to be the “word of God”. In order to understand this claim it is first necessary to explain the meaning of the word “God”. According to the Christian message God is greater than whatever we can think. Therefore the only way to know and to speak of God consists in comprehending the world as incapable of existing without him, that’s to say as being created: We comprehend of God that which, while remaining entirely different from him, is in its entire reality related to him. But this relation is unilateral. The world cannot be the constitutive term of a relation of God to it. This is the biggest objection against the possibility of a “word of God” which does imply a relation from God to the world. The Christian message itself replies to that problem by its content: The universe has been created into the eternal love between the Father and the Son which is the Holy Spirit. Because this love does not have its measure in the world it cannot be read in it and therefore has to be said to it. The Christian message refers to the incarnation of the Son for he is revealing us in his human word our communion with God. This can only be acknowledged in faith, our being filled by the Holy Spirit. The aim of faith is to free us from the power of fear for ourselves which would otherwise be the cause of all inhumanity. In this understanding faith isn’t composed piecemeal but all the dogmas explain one unique mystery, our communion with God. In the context of a piecemeal understanding of faith which underlies present religious exuberance as well as false secularization, Knauer’s relational understanding of faith can also be significant for Latin America. Key-words: Word of God, relational Ontology, natural knowledge of God, analogy, auto-

communication of God, faith, reason.

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ABREVIATURAS E SIGLAS

AA Decreto Apostolicam Actuositatem do Concílio Vaticano II sobre o apostolado dos leigos

CEBs Comunidades Eclesiais de Base DH Compêndio dos símbolos e declarações de fé e moral

Denzinger - Hünermann DV Constituição Dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II

sobre a Revelação Divina FR Encíclica Fides et Ratio do papa JOÃO PAULO II FThSt Frankfurter Theologische Studien FZPhTh Freiburger Zeitschrift für Philosophie und Theologie GS Constituição pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II

sobre a Igreja no mundo de hoje GuL Geist und Leben IPh Information Philosophie LG Constituição Dogmática Lumen Gentium do Concílio Vaticano II

sobre a Igreja NRT Nouvelle Revue Théologique PT Perspectiva Teológica StZ Stimmen der Zeit ThAk Theologische Akademie ThGl Theologie und Glaube ThPh Theologie und Philosophie TdL Teologia da Libertação ZThK Zeitschrift für Theologie und Kirche

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ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Modelo substancialista do ser .............................................................................. 65 Figura 2 Modelo convencional de relação – subsequente à substância ............................. 67 Figura 3 Modelo ontológico-relacional de relação – constitutiva para a substância ......... 68 Figura 4 Modelo relacional do ser do mundo .................................................................... 70 Figura 5 Modelo relacional da Trindade .......................................................................... 113 Figura 6 Modelo relacional da união hipostática de Jesus Cristo .................................... 121 Figura 7 Modelo relacional do ser criado em Cristo do mundo ...................................... 133

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO GERAL ....................................................................................................... 13

CAPÍTULO I

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES: TEOLOGIA FUNDAMENTAL HERMENÊUTICA

COMO TEOLOGIA-DA-PALAVRA-DE-DEUS INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 20 1 APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DE SEU INTENTO TEOLÓGICO ........................ 21 1.1 O teólogo PETER KNAUER e sua obra .............................................................................. 22 1.2 O intento teológico do autor ............................................................................................ 24 1.3 O alcance de sua reflexão teológica como caminho na contramão ................................. 28 1.3.1 A problemática atual de compreensão da fé ............................................................... 29 1.3.2 “Vinho novo em odres novos” .................................................................................... 34 2 “FÓRMULA BREVE DA FÉ CRISTÔ: IMPLICAÇÕES HERMENÊUTICAS

PARA SUA FUNDAMENTAÇÃO .................................................................................. 37 2.1 Primeira implicação: a certeza de fé é o “saber-se amado” ............................................. 38 2.2 Segunda implicação: a fé provém do ouvir (Rm 10,17) .................................................. 40 2.3 Terceira implicação: a fé liberta do poder do medo da morte (Hb 2,15) ........................ 42 3 CONCLUSÃO: RESUMO E PONTO DE PARTIDA METODOLÓGICO PARA A COMPREENSÃO DA FÉ CRISTÃ ................................................................... 46 3.1 Resumo: a correlação “Deus – palavra – fé” .................................................................. 46 3.2 O ponto de partida metodológico .................................................................................... 48

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CAPÍTULO II

O SIGNIFICADO DA PALAVRA “DEUS”: RECONHECER O SER CRIADO DO MUNDO

POR MEIO DE UMA CONCEPÇÃO RELACIONAL DO SER INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 51 1 POR QUE A PALAVRA “DEUS” É PROBLEMÁTICA:

A MENSAGEM CRISTÃ AFIRMA DEUS SER INCONCEBÍVEL ............................... 55 2 “SER CRIADO DO NADA” EM RESPOSTA À PERGUNTA POR “DEUS”:

COMPREENSÃO RELACIONAL DO SER ................................................................... 61 2.1 O que quer dizer “ser criado do nada”? ........................................................................... 63 2.2 Explicitando o “ser criado do nada” como relação real, unilateral e direta ..................... 66 3 É POSSÍVEL COMPROVAR O SER CRIADO? ............................................................. 72 3.1 Não prova de “Deus” e sim da “criaturalidade do mundo” ............................................. 75 3.2 Por que o mundo necessita de uma explicação:

Toda realidade mundana representa um “problema de contradição” .............................. 77 3.3 Explicação do mundo pelo seu ser criado do nada: Duas referências distintas e não-contraditórias ............................................................... 78 4 FALAR ANÁLOGO DE DEUS:

CONSEQUÊNCIA DA COMPREENSÃO RELACIONAL DO SER ............................. 80 4.1 Exigência indispensável do falar análogo de Deus ......................................................... 80 4.2 Semelhança do mundo com Deus: a via afirmativa ........................................................ 83 4.3 Dessemelhança do mundo com Deus: a via negativa ..................................................... 84 4.4 Semelhança e dessemelhança em seu sentido unilateral: a via da eminência ................. 85 4.5 Algumas consequências da analogia unilateral referente à fala de Deus ........................ 86 5 CONCLUSÃO: A PALAVRA “DEUS” COMO OBJEÇÃO MAIOR

CONTRA “PALAVRA DE DEUS” .................................................................................. 91

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CAPÍTULO III

A “PALAVRA DE DEUS” SE AUTOEVIDENCIA POR MEIO DE SEU CONTEÚDO TRINITÁRIO – ENCARNATÓRIO – PNEUMATOLÓGICO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 96 1 AS EXIGÊNCIAS LOGICAMENTE NECESSÁRIAS DE “PALAVRA DE DEUS” ................................................................................................... 98 1.1 A distinção fundamental entre “Lei” e “Evangelho ........................................................ 99 1.2 Palavra de Deus como mistério ..................................................................................... 101 1.3 Necessidade da compreensão trinitária ......................................................................... 103 1.4 Necessidade da compreensão encarnatória ................................................................... 104 1.5 Necessidade da compreensão pneumática ..................................................................... 106 2 TRINDADE DE DEUS: TRÊS PESSOAS NUMA NATUREZA ................................. 109 2.1 O problema da desarticulação teológica contínua do mistério da Trindade ................. 110 2.2 A saída do impasse pela concepção relacional da pessoa divina .................................. 111 2.3 A articulação definitiva da unidade da natureza com a diversidade das pessoas .......... 112 2.4 A articulação definitiva da “Trindade imanente” com a “Trindade econômica” .......... 116 3 ENCARNAÇÃO DO FILHO:

UMA PESSOA EM DUAS NATUREZAS .................................................................... 118 4 “TORNAR-SE-IGREJA” DO ESPÍRITO SANTO:

UMA PESSOA EM MUITAS PESSOAS ...................................................................... 130 5 CONCLUSÃO: A FÓRMULA CALCEDÔNICA COMO CHAVE DE LEITURA PARA TODAS AS AFIRMAÇÕES DE FÉ ................................................................... 136 CONCLUSÃO GERAL ....................................................................................................... 138 BIBLIOGRAFIA GERAL ................................................................................................... 144

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INTRODUÇÃO GERAL

Teologia se faz na contramão ou não se faz teologia no sentido próprio da palavra,

Θεòς Λόγος. Essa não é uma exigência em função dos sinais dos nossos tempos tão

profundamente conturbados de hoje. É a condição sine qua non de compreender a mensagem

cristã. Pois ela mesma caminha na contramão de nosso condicionamento humano,

existencialmente como intelectualmente falando. Por essa razão, não é por menos que o termo

usado no título se inspira num livro escrito pelo “mestre” CARLOS MESTERS, bastante

difundido no Brasil, sobre a hermenêutica bíblica na práxis do seguimento de Jesus, “Com

Jesus na contramão”.1

Aqui se busca tirar de certo “incógnito” outro “mestre”2 da teologia contemporânea

com a originalidade de sua contribuição para a reflexão teológica, tanto na Europa como na

América Latina, à base da própria experiência com seu pensamento teológico, tanto como

aluno em Frankfurt/Alemanha quanto como agente de pastoral e docente em Fortaleza/Brasil:

trata-se do padre jesuíta e professor de teologia fundamental emérito PETER KNAUER.

No entender do autor desta dissertação e a partir de que chegou ao seu conhecimento

em torno de produção teológica, o pensamento ontológico-relacional, original de PETER

KNAUER, move-se igualmente na contramão da corrente principal de uma compreensão de fé,

tanto popular quanto intelectual, muito difundida. Seu pensamento é tão “contra-intuitivo”

quanto a própria mensagem cristã pretende ser.

1 Cf. MESTERS, CARLOS. Com Jesus na contramão. São Paulo: Paulinas, 1995. 2 Não se aplica aqui o termo como título, suspeito de uso farisaico especialmente nos ambientes teológico-

eclesiais (Mt 23,7), visto que apenas um é nosso mestre e todos nós somos irmãos (Mt 23,8). Reconhece-se sim que o discípulo não está acima do mestre e certamente deve aquele sofrer o mesmo destino que este (Mt 10,24s). Justifica-se seu uso aqui pelo fato de que se trata de pessoas as quais nos transmitem de forma bem esclarecida “o que olho [algum] não viu, o ouvido [algum] não ouviu e em homem [algum] não emergiu [...]” (1Cor 2,9; nota-se a expressão “ἐπì καρδίαν [...] ἀνέβη” no sentido de que o ser humano não pode inventar o mistério revelado): a nossa própria fé na qual, pela partilha da palavra, representam e tornam presentes o único Mestre.

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Em sua preocupação teológica primordial com o “fundamento da fé” [Grund des

Glaubens], KNAUER procura, com todo rigor científico, “se dar conta”3 da pretensão de

verdade da mensagem cristã de ser “palavra de Deus” num sentido estrito, há mais de

quarenta anos, visto sua produção teológico-literária acadêmica.

Este trabalho se propõe a apresentar apenas o núcleo do pensamento teológico de

KNAUER para um público brasileiro, não somente acadêmico, nem tampouco apenas “católico

[romano]” ou até meramente “cristão”. De acordo com a intenção própria do autor, trata-se de

um convite para a pessoa interessada em compreender a fé cristã, pondo sua mensagem à

prova de forma crítica. A mensagem cristã se apresenta como “palavra de Deus”.

Entretanto, acontece que o próprio termo “palavra de Deus” é em si problemático, põe

a si mesmo como verdade não trivialmente óbvia sem mais para o ser humano. E o é pela sua

própria pretensão de ser “de Deus”. Se podemos facilmente associar “palavra” à comunicação

humana, já o termo “Deus” necessita de um esclarecimento: o que se entende por Deus, quem

é “Deus”? Em seguida, surge o problema maior ainda de como entender que Deus mesmo fale

com o ser humano e, ainda mais, como ser humano?!

Precisa-se, portanto, problematizar o termo. Essa suspeita, afinal de contas, não chega

à mensagem cristã do lado de fora. Evidentemente, é indispensável hoje problematizar o

conhecimento da fé diante da reviravolta do pensamento moderno (e sua contrarevolta pós-

moderna) que tomou rumo do ateísmo moderno (e do pluralismo religioso “pós-moderno”).

Com isso, o pensamento moderno chega a afirmar a impossibilidade de uma “palavra de

Deus” porque Deus mesmo é declarado “morto”, inexistente, ou apenas um termo sem

sentido, ou ainda indecisível, incompreensível linguisticamente falando, porque não designa

nenhuma realidade mundana.4

3 Cf. KNAUER. PETER. Darse cuenta de nuestra fe. Apresentação PowerPoint. Disponível em:

<http://www.jesuiten.org/peter.knauer/knauer0.html#Download>. Acesso em: 08.10.2009. O autor mesmo designa seu empreendimento de buscar “compreender” [verstehen] a fé coerentemente de “Verantwortung des Glaubens” [responder pela fé] ou simplesmente de “Glaubensbegründung” [fundamentação da fé]. Na intenção de “se dar conta” do fato de que o fundamento da fé se encontra nela mesma (na medida de seu estar referida à palavra de Deus), e não advém de fora dela, dá-se preferência, no português, ao termo “fundamentar” ao invés de “responsabilizar”. Também o termo “compreender” é ambíguo: parece que é a tradução standard de “verstehen”, apesar de sua proximidade etimológica ao termo “begreifen”. Daí que surge certa confusão quando se afirma Deus ser “incompreensível” [unbegreiflich] o que segundo KNAUER justamente não quer dizer impossível de ser compreendido (“unverständlich” ou “unverstehbar”).

4 Uma visão panorâmica do debate filosófico atual foi apresentada por MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA no “mini-curso V: Deus no pensamento contemporâneo” do Simpósio internacional de Filosofia e Teologia da FAJE em 02-04 out. 2007 sobre o tema “Transcendência, Razão e Fé”. Esta dissertação não é o lugar de referir a esse debate; mas talvez a concepção relacional de “Deus” por KNAUER, principalmente no que diz respeito às questões metodológicas prévias à sua abordagem, ajudem a enfrentá-lo a partir da teologia.

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Em contrapartida, o “retorno do religioso” em época de “pós-modernidade” sugere

aparentemente ser possível, sim, falar de Deus com maior naturalidade e evidência banal (se

não mais pela razão, então por meio do próprio sentimento, da intuição afetuosa). No entanto,

também esses discursos, mais cedo ou mais tarde, hão de responder à pergunta sobre o direito

com que pronunciam o nome de “Deus”.

Ao contrário disso, pertence ao objetivo da própria mensagem cristã se apresentar

como essencialmente “não-[auto]evidente” [nicht-selbstverständlich] diante do conhecimento

humano (sua condição natural de ser criatura), e sim essencialmente “auto-evidente” [selbst-

verständlich]5 a partir de si própria na fé. Pelo seu anúncio, a mensagem mesma traz essa

distinção consigo em função de pretensão de ser a última palavra sobre a nossa existência,

exposta a sua mais profunda ambiguidade, devido ao poder do medo da morte. Por causa de

Jesus e em confiança à sua palavra transmitida a nós pelos seus seguidores até hoje, sabemo-

nos acolhidos no amor eterno de Deus-Pai ao seu Filho, que é o Espírito Santo. Assim somos

libertados para relacionarmo-nos com toda a realidade nossa humanamente. Essa

consideração prévia da especificidade da fé emerge como um aviso hermenêutico no

empreendimento de sua fundamentação.

Nesse sentido, o trabalho se desenvolve metodologicamente a partir da pressuposição

de que já fomos faticamente confrontados com a mensagem cristã: nota-se que ela mesma

quer ser compreendida como o “evento da autocomunicação de Deus”,6 do “ser abordado pela

palavra co-humana de sua transmissão”7 de seu amor incondicional, gratuito por nós.

Contudo, para se dar conta dessa sua pretensão de verdade, metodologicamente falando, há de

se partir, no trabalho de sua fundamentação, do simples encontro histórico com o fim de

investigá-la no que concerne a essa sua pretensão de verdade.

Portanto, a facticidade do confronto histórico com a mensagem cristã é absolutamente

precedente a qualquer pergunta especulativa sobre “Deus”, porque, de fato, tende a não

acertar a questão de “Deus”. Disso resulta que o esforço de compreensão teológica da palavra

de Deus, que é reflexivo, se relaciona de forma inversamente proporcional (está em direção

5 Nota-se o jogo de palavras no alemão: coloquialmente se entende por “selbstverständlich” (literalmente:

“autocompreensível”) uma coisa óbvia, uma verdade trivial. Nesse sentido, a mensagem cristã não é uma verdade que alguém entende por conta própria. Mas aqui KNAUER aplica o termo em seu sentido literal, como uma verdade que só se entende a partir dela mesma. Só ela se explica por meio de seu conteúdo em sua pretensão de ser palavra de Deus.

6 “Geschehen der Selbstmitteilung Gottes”. KNAUER. Der Glaube, 88. 7 “Angesprochensein im mitmenschlichen Wort der Weitergabe”. KNAUER. Der Glaube, 24. O termo

“Angesprochenwerden” que KNAUER usa frequentemente em seus escritos, as traduções espanhola e portuguesa traduzem por “ser abordado” – pelo que se perde o nexo semântico com sua dimensão verbal.

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contrária) à prática de seu anúncio, bem como ao seu ato de fé correspondente. Mesmo assim,

a reflexão teológica, por sua vez, não deixa de ser ato de fé, igual e unicamente compreensível

como autocomunicação divina.

É por essa razão que o caminho pelo qual a reflexão teológica ganhou importância

existencial para mim, ao mesmo tempo, traça a motivação para esta dissertação:

Embora se tenha assistido às aulas de KNAUER em teologia fundamental (pela primeira

vez no semestre de inverno de 1986/87), seu significado foi se abrindo através de uma semana

de retiro com ele (conforme os exercícios espirituais inacianos), após ter passado um primeiro

ano em Fortaleza em meados de 1988. Daí emergiram questionamentos existenciais de dois

polos: de um lado, o desafio (incorporado desde jovem) de dar conta da própria fé diante da

razão crítica moderna em busca de uma compreensão totalmente livre de contradições

racionais (lógicas): pois uma teologia incapaz de responder com clareza e precisão já não era

mais possível levar adiante. Doutro lado, experimentou-se uma reviravolta no “mundo vivido”

e no “lugar social” que se havia assumido a partir da experiência (acadêmica e pastoral) com a

Teologia da Libertação (TdL) e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em Fortaleza: pois

uma teologia, que não se fizesse a partir dos pobres e excluídos de nossas sociedades, não

merecia mais ser chamada de “evangélica” e, portanto, muito menos de “católica” – por mais

paradoxal que pareça. Por meio da chave de leitura que a teologia de PETER KNAUER nos

oferece, procurou-se conciliar os dois eixos que parecem ser genuínos da mensagem cristã e

não como dois “polos” ou “extremos”, muitas vezes, considerados em tensão recíproca.

Certamente PETER KNAUER não faz “Teologia da Libertação” declaradamente, nem se

consideraria como pertencente a uma teologia tal, muitas vezes, compreendida apenas como

uma corrente de teologia (sobretudo latino-americana) entre tantas outras, ainda mais

considerada “em extinção” por muitos hoje.8 O importante é ver por meio de sua

hermenêutica, que uma teologia que não fosse essencialmente libertadora não prestaria

serviço algum à fé cristã e perderia totalmente seu sentido e seu direito à existência. Pois a

exigência de ser libertadora não é acrescentada de fora à mensagem cristã, mas coincide

inteiramente com sua verdade.

Estruturou-se o trabalho em três capítulos, sendo o primeiro de caráter preliminar e

introdutório, enquanto os outros dois desdobram o núcleo de seu pensamento relacional em

torno da problemática principal do termo “palavra de Deus”, desde já apontada no capítulo I.

8 A tais insinuações reagiu GUSTAVO GUTIÉRREZ em debate (cf. artigo de ROBERTO MALEVAZZI. Disponível

em: <www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=24550>. Acesso em: 8 out. 2009) e entrevista (cf. entrevista feita por LIDIA HUNTER. Disponível em: <www.tierramerica.net/2003/0609/ppreguntas.shtml>. Acesso em: 8 out. 2009).

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Devido ao estado de desconhecido no Brasil, optou-se por introduzir na pessoa e sua

obra, bem como nas intuições principais do pensamento de KNAUER previamente no capítulo

primeiro. Já de início, procurou-se situar sua teologia-da-palavra na contramão, em meio a

sinais paradoxais de nosso tempo, que se vinculam a uma crise de fé cristã profunda. O autor

pensa contra correntezas de compreensões (e suas respectivas teologias) que consideram a fé

racionalmente enigmática, e sim trivialmente acessível por certas experiências religiosas.

Ainda mais diante de uma teologia fundamental clássica, cujas raízes neoescolásticas ainda

não parecem ter sido extintas, a proposta de KNAUER se apresenta como “vinho novo em

odres novos” (Mc 2,22).

Isso se confirma mediante apresentação das implicações hermenêuticas de sua

compreensão de fé. A fé como o estar-repleto-do-Espírito-Santo nos confere uma certeza

sempre maior do que a morte. Desse modo, a fé quer nos libertar daquele medo da morte que

naturalmente tende a nos desumanizar. Uma certeza absoluta ninguém pode inventar por si

próprio. Depende de recebê-la por outro. Uma palavra tal só pode provir de Deus e somente

na fé pode ser acolhida como verdadeira. A fé, por isso, provém do “ouvir” (Rm 10,17). Em

consequência dessa coesão interna entre Deus, palavra e fé, trama-se o ponto de partida

metodológico para a reflexão de KNAUER e, consequentemente, para este trabalho: a

precedência do encontro histórico com a mensagem cristã que pretende ser “palavra de Deus”.

Quem afirma ser “palavra de Deus”, primeiro, há de prestar conta de quem deve ser

“Deus”. Por isso, o segundo capítulo se debruça sobre a pergunta de como falar de “Deus”

responsavelmente. Isso implica dar-se conta do significado de “Deus” anterior ao ato da fé,

mas introduzido a partir da mensagem cristã. Segundo a tradicional afirmação de sua

“inconcebilidade”, Deus não pode ser subordinado a um conceito de nossa linguagem. A esse

problema da fala de “Deus”, a mensagem cristã responde por referência à doutrina da criação.

KNAUER concebe o “ser criado do nada” do mundo mediante uma ontologia relacional

desenvolvida por ele como ser, que em tudo no que ele se distingue do nada, é “criado”. “Ser

criado” implica, por isso, que o mundo depende de “outro” sem o qual não pode existir. A

mensagem cristã chama tal “para-onde” [Woraufhin] do mundo de “Deus”. À medida que tal

conhecimento de Deus compreende tudo que é diferente dele, é uma afirmação da razão a ser

comprovada. Em superação das “provas clássicas da existência de Deus”, KNAUER conduz

sua “prova da criaturalidade”. O mundo só pode ser explicado pelo seu “ser total e

unilateralmente relacionado a ... / em total diferença de ...” seu termo constitutivo. Enquanto

tal, este nunca pode ser conhecido previamente. Por isso a fala análoga unilateral de “Deus”

como o “para-onde” do ser do mundo se impõe com necessidade.

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Nisso, o autor reformula as três vias clássicas da analogia escolástica de acordo com o

conhecimento unilateral: só se pode afirmar semelhança do mundo a Deus à medida da

dessemelhança de Deus sempre maior. Em consequência de não poder ser alvo de conclusões,

nem sobre si, nem sobre o mundo, Deus é conhecido à luz da razão apenas no modo de sua

desconfortável ausência como “o poderoso em tudo” que existe. De repente, o significado da

palavra “Deus” se manifesta, à primeira vista, como objeção maior contra a pretensão de a

mensagem cristã ser “palavra de Deus”.

No terceiro capítulo, em um segundo passo, volta-se a questionar a mensagem cristã

como ela responde à aparente aporia de atribuir uma palavra a Deus, pois isso significaria

afirmar uma relação real sua ao mundo, reconhecida como ininteligível no campo da razão.

Nisso, a mensagem cristã se defronta com o problema de que também o termo “palavra”

parece resistir a ser vinculado à palavra “Deus”. A mensagem cristã responde referindo ao seu

conteúdo trinitário-encarnatório-pneumatológico a fim de se explicar a si mesma em sua

pretensão de revelação enquanto “autocomunicação de Deus”. Seu caráter de palavra garante

a compreensibilidade do conteúdo dela como “Evangelho” e “mistério de fé”.

KNAUER apresenta os três dogmas fundamentais como condição de possibilidade

necessária para a compreensão da fé em desdobramento de sua verdade simples. Somente

numa compreensão trinitária, é possível afirmar uma relação real de Deus ao mundo porque

este não pode ser a referência constitutiva de tal relação. O sentido de conceber “três

autopresenças divinas” em sua mediação diferenciada entre si como “relação da única

realidade divina a si mesma”, é preservar o absoluto de Deus em função do ser assumido do

mundo na relação do Pai ao Filho que é o Espírito Santo, comunhão de amor.

Somente a doutrina da encarnação do Filho torna o termo “palavra de Deus”

definitivamente inteligível. Deus emerge como ser humano para se dizer ao mundo, revelando

a nossa verdadeira condição originária de “criados em Cristo” e assim “filhos de Deus”. Se

essa palavra deve ser verdadeira, seu anunciador original há de ser compreendido como

originalmente amado por Deus. Por isso, a mensagem cristã remonta a Jesus de Nazaré

enquanto Verbo encarnado, “uma pessoa em duas naturezas” que nela se relacionam

indissoluvelmente. A compreensão relacional da fórmula calcedônica garante a afirmação

desta “união hipostática”.

Em sua autocomunicação por meio do Filho, Deus envia seu Espírito que vincula

como “uma pessoa em muitas pessoas” os seres humanos entre si e em Cristo a Deus. Tal

“tornar-se Igreja do Espírito Santo” é a condição de possibilidade do ser humano acolher a

palavra por esta transmitida em sua verdade última de nosso “ser criado em Cristo”. À luz da

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palavra acolhida e assim compreendida, o ser humano não precisa mais idolatrar o mundo

nem desesperar-se com ele, pois toda boa experiência se torna símbolo da presença real de

Deus no mundo, e as experiências ruins perderam seu caráter de representação da ausência do

amparo último de Deus ou de seu “silêncio”.

A pesquisa bibliográfica se estendeu sobre os escritos teológicos do autor à medida

que se teve acesso a eles. Boa parte, e certamente a mais importante, se encontra postada em

sua homepage.9 Outros foram enviados por colegas da Alemanha e também pelo próprio

autor. A literatura secundária, que pensa fielmente conforme o pensamento do autor, é

escassa. Poucos autores pensam dentro do pensamento de KNAUER. A maior parte, porém,

assim é de se temer, não o entendeu e, talvez, por isso, não consiga valorizá-lo. Prova disso

são as vastas referências e discussões nas notas de roda-pé da obra principal de KNAUER, Der

Glaube kommt vom Hören. A consideração desta literatura não podia encontrar seu lugar num

trabalho que investiu todo o esforço numa apresentação pertinente, fiel e compreensível de

seu pensamento ontológico-relacional.

9 Cf. <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/index.html>. Acesso direto ao link com textos do autor,

constantemente atualizado pelo mesmo, e que contém os dados biográficos principais como as demais publicações, inclusive de textos atuais novos, bem como apresentações em formato PowerPoint. Acesso em: 8 out. 2009.

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CAPÍTULO I

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES: TEOLOGIA FUNDAMENTAL HERMENÊUTICA

COMO TEOLOGIA-DA-PALAVRA

INTRODUÇÃO

Este capítulo tem caráter preliminar pelo fato de apresentar a pessoa e um primeiro

levantamento das questões centrais do pensamento teológico de PETER KNAUER. Pretendem-

se introduzir as “coordenadas” de sua intuição original e contribuição principal para a reflexão

teológica contemporânea sobre a fé cristã. Sem poder entrar em análise mais aprofundada,

baseamo-nos na percepção de uma crise geral da Igreja católica e das Igrejas protestantes

históricas em ambos os contextos, no europeu e no latino-americano, como horizonte de

referência atual. Seguindo uma preocupação primordial de KNAUER com relação à fé cristã,

pode-se afirmar que tal crise, no fundo, é uma crise de fé; e é uma crise de fé precisamente

porque falta reta compreensão da mensagem cristã especialmente aos próprios cristãos.10

Procura-se aqui apenas apontar sua problemática porque se acredita que a abordagem de

KNAUER abra pistas inéditas que permitam realmente responder aos desafios que cristãos

enfrentam cá e lá.

Uma razão para tal procedimento consiste na própria maneira como KNAUER

compreende e pratica teologia:11 em primeiro lugar, há de se apresentar em que consiste a

nossa fé para depois perguntar como se pode entender o que foi afirmado e enfim se debruçar

sobre a questão se ela é capaz de responder a todo tipo de questionamento sem falta. O

objetivo é apresentar a fé por meio de sua referência à sua origem na mensagem cristã. Trata-

se de compreendê-la a partir de sua pretensão de ser “palavra de Deus”.

10 Cf. KNAUER. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 3-5. Essa crise KNAUER identifica particularmente

como crise que sofre o termo “Deus” – e isso desde o início de seu magistério. Cf. IDEM. “Hermeneutische Fundamentaltheologie: Der Glaubenstraktat des Hugo von St. Viktor”. In: FThSt 7 (1971) 67; IDEM. „Potentia oboedentialis” und „übernatürliches Existencial” im Verhältnis zum „Verlangen nach der Gottesschau“. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/49.html>. Acesso em: 22 out. 2009; e IDEM. “Fundamentaltheologie im Koran?”. In: FZPhTh 55 (2008) 144. Se a fé está unicamente orientada a Deus, uma crise em torno da reta compreensão do termo “Deus” há de se articular ou manifestar evidentemente como crise de toda a fé (cf. a respeito sua analogia com os discípulos de Emaús em IDEM. “Einzigartigkeit des Christentums”. In: ThAk 13 (1976) 12).

11 É preocupação metodológica fundamental de KNAUER que se façam perguntas à fé cristã. Só questões que são levantadas podem ser respondidas, porém, importa pô-las numa sequência lógica, portanto, correta, igual à maneira de seguir uma receita para fazer um bolo ou culinária qualquer (cf. a respeito seu exemplo em IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 13s).

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A outra razão é a experiência de estranheza da parte de quem se confronta com o

pensamento de KNAUER – ainda mais em ambiente de tradição predominantemente católica.

Essa reação, assim é o que se supõe, encontra seu fundamento na especificidade da própria

mensagem cristã quando pregada retamente. Pois ela mesma vem ao encontro do ser humano

na contramão de sua pré-compreensão convencional e corriqueira daquilo que é considerado

“trivialmente autoevidente” [trivial selbstverständlich].12 De antemão, ela exige uma

“conversão na pré-compreensão” [Bekehrung im Vorverständnis],13 sendo essa parte

constitutiva do anúncio cristão.

A introdução sobre a pessoa, a obra e o intento teológico do autor pretende demarcar

as coordenadas de seu pensamento grosso modo (I/1). Um aprofundamento prévio de sua

concepção da fé cristã faz perceber por onde leva seu caminho de compreensão e

fundamentação da fé no caminho da contramão (I/2). Em termos de resumo das intuições

trabalhadas, aponta-se o ponto de partida metodológico em vista dos capítulos seguintes (I/3).

1 APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DE SEU INTENTO TEOLÓGICO

O objetivo desta apresentação prévia da pessoa, da obra e do pensamento de KNAUER

não é apenas informativo. Segundo o próprio autor, não se pode transmitir a fé – e isso inclui

a compreensão dele próprio, mesmo se por vias mais abstratas – senão testemunhando sua

mensagem com a própria pessoa, tal como Jesus o fez originalmente. Antes de a teologia ser

troca de ideias, ela é encontro de pessoas postas em relação pelo Espírito de Cristo. Pode-se

dizer que, no autor e na sua obra, se espelha o caráter não-neutro e assim comprometedor da

mensagem cristã: depois que chegou ao conhecimento, sua pretensão de verdade

simplesmente não pode mais ser ignorada (1.1). Pela introdução preliminar no pensamento do

autor, demarcam-se grosseiramente as coordenadas de sua teologia (1.2). Situam-se melhor

suas intuições na contramão em contraste com determinadas pressuposições ou conveniências

oriundas de certa tradição teológico-clássica e de alguns sinais do nosso tempo (1.3). 12 KNAUER. “‚Neuer Wein in neue Schläuche’: Welches neue Vorverständnis bringt die christliche Botschaft

mit sich?”. in: GUNNEWEG, ANTONIUS HERMANU, JOSEPHUS.; SCHRÖER, HENNING. (ORG.). Standort und Bedeutung der Hermeneutik in der gegenwärtigen Theologie: Die Vorträge des Bonner Hermeneutischen Symposiums 1985. Bonn: Bouvier Verlag Herbert Grundmann, 1986, 64. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/neuerwein.html>. Acesso em: 14 out. 2009. Cf. tb. IDEM. Der Glaube, 82. A respeito do jogo de palavras inerente ao temo cf. IBID., 19 e I/1.3.2 neste trabalho. Todas as traduções dos textos de KNAUER em alemão são da nossa autoria quando não explicitado por referência à respectiva bibliografia.

13 KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 63.70. Mc 2,22 está vinculado ao tema da conversão em Mc 1,15. Esta não é condição prévia, mas parte integrante da mensagem cristã, causando, ao mesmo tempo, reações de inquietação e fascínio em meio aos seus ouvintes (Mc 1,22.27).

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1.1 O teólogo PETER KNAUER e sua obra

PETER KNAUER (*1935) é padre jesuíta, natural de Berlin (Alemanha) e professor de

teologia fundamental (desde 1969) e de dogmática (de 1978 a 1980), emérito em 2003 pela

“Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen” em Frankfurt am Main

(Alemanha). Desde então, o autor vive em Bruxellas (Bélgica), onde colabora no Foyer

Catholique Européen e no OCIPE (Office Catholique d'Information et d'Initiative pour

l'Europe). Tendo ingressado na Companhia de Jesus em 1953, ordenou-se sacerdote em 1964.

Fez seus estudos de filosofia nos anos 50 em Munique (na Faculdade Filosófica da

Companhia de Jesus, “Berchmannskolleg”, em Pullach) e de teologia nos anos 60 em

Louvaina/Bélgica (Faculdade Teológica da Companhia de Jesus). Em ambos, concluiu com o

grau da “licenciatura”. Em 1969, doutorou-se com uma tese sobre a teologia de GERHARD

EBELING14

na Faculdade Católico-Teológica da “Westfälische Wilhelms-Universität Münster”.

Um de seus (relativamente poucos) livros teológicos foi traduzido para o espanhol, o

português o italiano e o francês.15 Além dele, outros trabalhos e artigos foram traduzidos para

o espanhol sob revisão do autor, mais outro artigo para o português.16 Lecionou sua teologia

em diversos países da América Latina como professor visitante.17 Apesar de tudo isso, a

divulgação e o debate em torno de seu pensamento, até mesmo na Alemanha, até agora, têm

sido lamentavelmente muito fracos. Pois a sua contribuição é importante: quem se deparou

com a sua concepção teológica, e a ela aderiu, mais ainda, pode perceber uma reviravolta no

seu pensamento teológico, capaz de pô-lo da cabeça aos pés.18

14 Cf KNAUER. Verantwortung des Glaubens: Ein Gespräch mit Gerhard Ebeling aus katholischer Sicht.

Frankfurt am Main: Knecht, 1969. KNAUER teve JOHANN BAPTIST METZ como orientador e KARL RAHNER como leitor de sua tese.

15 Trata-se de KNAUER. Unseren Glauben verstehen. Würzburg: Echter, 1986. Cf. IDEM. Para comprender nuestra fé. Palmarín/Mexico, 1989. Tradução de Vanegas Beltrán, Gerardo & Flórez Echevarry, Pedro Antonio (disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/pcnf.pdf>. Acesso em: 8 out. 2009), IDEM. Para compreender nossa fé. São Paulo: Loyola, 1989. Tradução de Attílio Cancian, IDEM. Per comprendere la nostra fede. Roma: Borla, 2006. Tradução de Gerhard Gäd e IDEM. Pour l’intelligence de notre foi. Bruxelles: Lessius, 2009. Tradução de Dieudonné Bembide Tongoy. Uma tradução russa, não impressa, se encontra na homepage do autor.

16 Cf. KNAUER. “Teologia-da-Palavra-de-Deus e Cristologia”. In: Kairós. Revista de Filosofia e Teologia do Instituto teológico-Pastoral do Ceará (ITEP)/Fortaleza-CE, III (2/2006) 255-272. O artigo no original alemão está disponível em:< www.jesuiten.org/peter.knauer/09.html>. Acesso em: 8 out. 2009.

17 KNAUER passou por estadias como professor visitante na Universidad Javeriana de Bogotá (Bolívia), na Pontificia Universidad de Quito e no Seminario Mayor de Guayaquil no Ecuador (1983), na Universidad Iberoamericana em México D.F. (1986, 1989 e 2000) e no Colegio Máximo de San José em San Miguel/Buenos Aires na Argentina (1994). Os dados são acessíveis na homepage do autor sob link acima indicado.

18 Entre os adeptos do pensamento de KNAUER sejam mencionados GERHARD GÄDE (cf. diversas referências a publicações suas neste trabalho), BARBARA ANDRADE (cf. IDEM. “Preámbulo a la teología de Peter Knauer”.

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Na área da teologia fundamental, ele se debruça sobre “temas candentes” [heisse

Eisen]. Preocupa-se com debates e discursos atuais da teologia contemporânea bem como da

história da teologia.19 KNAUER tem publicações significativas na área da ética fundamental.

Elaborou o princípio ético da Escolástica do “duplo efeito”, como princípio básico de uma

ética fundamental.20 Um terceiro enfoque, e talvez o que mais sustente os demais, KNAUER

desenvolve na área da espiritualidade inaciana.21 Como pano de fundo dessa tripartição de seu

trabalho intelectual, percebe-se profunda preocupação pastoral, inclusive com as pessoas

“pequenas” em seu dia-a-dia. Nisso também se orienta a estruturação da Festschrift em sua

homenagem.22

Esta dissertação, no entanto, se restringe estritamente ao seu pensamento teológico

fundamental em seus escritos explicitamente teológicos, antes de tudo, na sua obra

acadêmico-didática principal “Der Glaube kommt vom Hören”.23 Nela o autor se propõe, com

In Revista Iberoamericana de teología. Ciudad de México 2 (2006) 69-72, e nota 88 neste capítulo) e ROBERT DEINHAMMER (cf. IDEM. Fragliche Wirklichkeit - Fragliches Leben: Philosophische Theologie und Ethik bei Wilhelm Weischedel und Peter Knauer. Würzburg: Echter, 2009.

19 Aos temas específicos que formam a segunda parte de Unseren Glauben verstehen, tais como pecado original, dogmas mariológicos, teodicéia, infalibilidade etc., deve ser acrescentada sua contribuição na teologia das religiões (cf. KNAUER. “Ein anderer Absolutheitsanspruch ohne exklusive oder inklusive Intoleranz“. In: D'SA, FRANCIS X.; MESQUITA, ROQUE (Org.). Hermeneutics of Encounter: Essays in Honour of Gerhard Oberhammer on the Occasion of his 65th Birthday. Vienna: De Nobili Research Library. Vol. XX, 1994, 271-295) e IDEM. “Christus in den Religionen: Interiorismus”. In: FZPhTh (2004) 237-25.

20 Cf. KNAUER. Handlungsnetze: Über das Grundprinzip der Ethik. Frankfurt (Books on Demand GmbH), 2002. Trata-se de um trabalho filosófico de fundamentação ética à base de uma reinterpretação universal do “princípio do duplo efeito” desde sua primeira publicação a respeito (cf. IDEM. “La détermination du bien et du mal moral par le principe du double effet”. In NRT 87 (1965) 356–376; e em alemão: “Das rechtverstandene Prinzip der Doppelwirkung als Grundnorm jeder Gewissensentscheidung“. In: ThGl 57 (1967) 107-133.

21 Isto inclui o interesse primordial na pessoa de SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Assim têm ampla divulgação e repetida edição sua tradução comentada da “Autobiografia” de SANTO INÁCIO (IGNATIUS VON LOYOLA. Bericht des Pilgers. Leipzig: St. Benno, 1990. Traduzido e comentado por Peter Knauer, reditado em 2002 por Echter (Würzburg) com edição última em 2007. Além da tradução comentada e dos “Exercícios espirituais” (IDEM. Geistliche Übungen: Nach dem spanischen Autograph übersetzt von Peter Knauer. Würzburg: Echter, 1998 [5.ed. 2008]) seja mencionada a tradução em dois volumes de, no todo, 400 cartas de SANTO INÁCIO (IDEM. Briefe und Unterweisungen. Deutsche Werkausgabe Band I. Übersetzt von Peter Knauer. Würzburg: Echter, 1993 [Band II, 1998]).

22 Cf. GÄDE, GERHARD (Org.). Hören – Glauben – Denken: Festschrift für Peter Knauer S.J. zur Vollendung seines 70. Lebensjahres. Münster: LIT, 2005. Em seu prefácio, GÄDE apresenta KNAUER de forma pregnante como quem dialoga muito além de sua área da teologia com o mundo todo, pondo pessoas em relação umas com as outras, comprovando assim que KNAUER “não apenas ensina, mas também vive sua teologia: a dignidade do sacerdote não consiste em fazer brilhar a própria dignidade, mas a dos outros” (IBID., 3).

23 Cf. KNAUER. Der Glaube kommt vom Hören. Ökumenische Fundamentaltheologie. 6. ed., Feiburg-Basel-Wien: Herder, 1991. A citação das páginas da obra segue a versão disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/20.html>. Acesso em: 14 out. 2009. Trata-se de uma reorganização consequente e madura de suas ideias já publicadas principalmente em sua tese de doutorado, Verantwortung des Glaubens. Der Glaube é ampliado, sobretudo, pelas estruturas normativas da transmissão da fé (a eclesiologia). As seis edições apresentam, na maior parte, atualizações e reações a críticas e contribuições de outros autores.

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24

pretensão análoga ao “Grundkurs des Glaubens” de KARL RAHNER, apresentar a compreensão

sistemática da fé em seu percurso de fundamentação teológica sistematicamente ordenada.

Em três partes principais, KNAUER interpreta o todo da fé cristã em sua unidade e

unicidade de “autocomunicação de Deus na palavra co-humana”24 dentro e à base de sua

tradição católica em diálogo com e por meio da tradição protestante (especificamente

luterana), demonstrando “a correlação estrita de Deus, Palavra e Fé”: “Somente Deus vem ao

encontro na palavra somente à fé somente”.25 Mediante “distinção fundamental” entre “Lei e

“Evangelho” posta em correspondência à terminologia católica de “natureza” e “graça”, o

autor demonstra equivalência formal e material dos significados de “católico” e

“ecumênico”.26

Na primeira parte, KNAUER introduz a ontologia relacional como instrumento e chave

hermenêuticos para um discurso responsável de Deus, desenvolvendo a particularidade

principal da mensagem cristã em sua não- e auto-evidência. Na segunda parte principal, o

autor trata das estruturas da transmissão da fé como “proclamação cristã” [christliche

Verkündigung] em sua historicidade e normatividade, interpretando uma em relação com a

outra. Na terceira parte principal, esta compreensão ontológico-relacional da fé é, por assim

dizer, “testada” em “razoabilidade” [Verantwortbarkeit] diante da razão crítica e concernente

à fidedignidade própria da mensagem cristã.

1.2 O intento teológico do autor

O propósito principal do pensamento teológico de KNAUER é refletir sobre o

“fundamento da fé” [Grund des Glaubens]. Na maioria de seus escritos, mesmo quando

aborda temas mais específicos da teologia em seus diversos artigos, logo se remonta à

pergunta crucial: “No fundo, de que se trata na fé?”.27

24 “Selbstmitteilung Gottes in mitmenschlichem Wort“. KNAUER. Der Glaube, 279. Certamente KNAUER

assume aqui o termo da “Selbstmitteilung” de KARL RAHNER. 25 KNAUER. Der Glaube, 205. 26 Cf. KNAUER. Katholisch = ökumenisch. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/24.html>.

Acesso em: 19 out. 2009. Trata-se da “Abschiedsvorlesung” de KNAUER de seu magistério como professor titular em 07 fev. 2003 em forma de folheto de teses.

27 „Worum geht es im Glauben eigentlich?“. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 15; cf. tb. Der Glaube, 15 e Kurze Einführung in den christlichen Glauben. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/22.html>. Acesso em: 16 out. 2009.

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Na fé, trata-se da verdade muito simples de nossa comunhão com Deus no sentido de

nossa participação da relação de Jesus com Deus-Pai. A essa comunhão o ser humano não

pode chegar por nenhum esforço próprio. Dela não pode saber por conta própria. Por isso, o

Filho se fez carne para no-la comunicar por meio de simples palavra humana e que somente

na fé por ela constituída é acolhida como verdadeira por nos transmitir o Espírito Santo.

Embora a verdade última de nosso ser humano venha a nós somente de fora, por meio da

proclamação cristã, esta nos revela que já nos encontramos amparados por Deus desde o

início de nossa existência.

É assim que, para KNAUER, “‘palavra de Deus’ é o pressuposto fundamental da fé

cristã”28 pelo fato essa ser a pretensão de verdade da mensagem cristã. “Palavra de Deus”, por

isso, não se restringe apenas à Escritura Sagrada e sim abrange Tradição e Magistério vivo

(cf. DV 9 e 10), bem como toda palavra compreensível à luz da fé como autocomunicação de

Deus. O termo “palavra de Deus” aqui não é considerado como um entre outros conceitos

importantes da fé cristã. Ele é considerado ‘o’ termo que abrange tudo que a mensagem cristã

pretende ser. Unicamente a uma palavra exclusivamente compreensível como palavra de Deus

refere-se a fé cristã.

Para poder ser enxergada e acolhida na fé por ela constituída, a mensagem cristã exige

aquela “conversão na pré-compreensão” porque, em sua pretensão de ser “palavra de Deus”,

consequentemente encerra em si uma dificuldade fundamental de compreensão:

Olhando mais de perto não é, de jeito nenhum, imediatamente auto-evidente que se possa formar o conceito “palavra de Deus”. A junção de “palavra” e “Deus” para “palavra de Deus” vincula fogo e água. Ela soa como uma contradição em si.29

Para dar-se a entender, não apesar, mas por meio dessa aparente aporia, a mensagem

cristã afirma não poder apoiar-se em alguma filosofia ou predisposição do ser humano para

sua verdade senão na sua capacidade de “ouvir”. Pois já o termo “Deus” se recusa a uma

abordagem corriqueira nossa. Em sua pretensão de ser a verdade última sobre o mundo, a

mensagem cristã se explica a si mesma pelo seu conteúdo. Nesse sentido, ela é

completamente “contra-intuitiva”.

28 KNAUER. “Was heißt ‘Wort Gottes’?”. In: GuL 48 (1/1975) 7. 29 KNAUER. Was heißt „Wort Gottes“?, 8.

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A compreensão “inadequada” [unsachgemäß] da mensagem cristã distorce sua

percepção como “evento da palavra” [Wortgeschehen],30 enquanto “evento da revelação”

[Offenbarungsgeschehen] (DV 2). Dessa maneira, não é mais possível acolhê-la realmente

como aquilo que pretende ser em seu sentido estrito de “palavra de Deus” (1Ts 2,13): pelo

contrário e observando o cenário de pregação nas mais ilustres igrejas [neo]pentecostais bem

como nas próprias comunidades católicas, assim ela passa a ser transmitida como num

“envelope fechado”.31

É contribuição particular de KNAUER perceber e explicitar que a mensagem cristã

requer outro instrumentário filosófico-hermenêutico para sua compreensão adequada. Ela

mesma o traz consigo em forma de uma “ontologia relacional” [relationale Ontologie]. Ela é a

alternativa à tendência própria do ser humano de encaixar Deus num conceito oniabrangente

do “ser”, como é típico de uma concepção “metafísica substancialista” [Substanzmetaphysik]

por meio da qual abordamos nossa própria realidade. Esta “considera o ser-em-si substancial

como realidade básica [grundlegend] e pode pensar relação apenas como subsequente à

substância [...] como mera função da substância”.32

Ao contrário, uma ontologia relacional concebe a relação constitutiva para o ser do

mundo e assim precedente à substância, sendo aquela mesma “substancial”. Somente uma

concepção relacional do ser será capaz de salvaguardar “o absoluto de Deus” [Absolutheit

30 Ou também “evento de proclamação” [Verkündigungsgeschehen]. O termo originário de EBELING remete à

historicidade da mensagem cristã em sua pretensão de ser palavra de Deus: “Das Wesen der Sprache verweist auf Wort als Geschehen”. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 51 e IDEM. Der Glaube, 88, especialmente nota 101. O conceito equivalente e certamente mais dominante em nosso linguajar teológico latino-americano seria “prática” ou mesmo “práxis” de proclamação. Acontece, porém, que a expressão “Geschehen” assume, no caso em EBELING, conscientemente um duplo sentido: trata-se de um evento [Geschehen] ou [Geschehnis] que se torna presente somente por seu vínculo constitutivo ao que se passou [was geschehen ist], a saber, o “evento Jesus”. A expressão mais usada aqui, porém, é a da “evangelização” que usufrui de uma conotação mais abrangente, mas talvez também ambígua devido a uma justaposição equívoca entre “palavra” e “ação”. Por trás dessa dissociação estáa redução da linguagem a um código de sinais cujo designo se encontra fora dele segundo hermenêutica de significação [Signifikationshermeneutik]. Em contrapartida, “palavra de Deus” se entende como “evento” justamente à medida que a realidade pela palavra designada se encontra nela mesma e se realiza propriamente por ela sozinha.

31 KNAUER. Der Glaube, 162 e IDEM. Unseren Glauben, 7. A metáfora sugere que aquilo que está no envelope ainda é a mensagem cristã em sua inteireza, mas que por empecilhos externos a ela o ouvinte da palavra está impedido de compreender e de acolher adequadamente. Assim nunca poderá acolher a fé em sua certeza absoluta porque não pode dispor de um critério seguro que distinga o que é a palavra faticamente pregada de uma mera “autoprojeção humana” [menschliche Selbstprojektion].

32 KNAUER. Der Glaube, 36, nota 32.

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Gottes].33 À base de uma “ontologia relacional” levada a cabo, KNAUER desenvolve seu

pensamento teológico relacional como teologia fundamental hermenêutica em função de uma

consequente Teologia-da-Palavra-de-Deus.

Trata-se de teologia sempre e apenas como “Teologia-da-Palavra-de-Deus” à medida

que ela compreende a si mesma de acordo com a pretensão da mensagem cristã como

“autocomunicação de Deus”. É teologia fundamental porque ela reflete sobre o fundamento

da fé nossa comunhão com Deus. Ela é teologia fundamental hermenêutica “quando levanta a

pergunta de compreensão [Verstehensfrage] de todos os seus conceitos e os interpreta a partir

de sua conexão [Zusammenhang]”.34 A fé mesma busca compreensão e se explica pelo seu

conteúdo a partir do encontro histórico com a mensagem cristã.

Enfim, essa teologia se entende como ciência porque busca apresentar a fé cristã em

linguagem simples, de forma coerente e sistematizada inclusive diante das demais ciências.

Por meio do diálogo com elas, procura responder a questionamentos em seu respectivo campo

próprio de conhecimento.35 Assim pretende facilitar uma reta compreensão da fé, municiando

a Igreja, enquanto tal, e a cada um dos fiéis na sua missão de evangelizar, bem como dar

auxílio para a fé de cada fiel poder tornar-se cada vez mais adulta.

Sua chave de leitura universal, no que diz respeito ao problema crucial da mediação

entre mundo e Deus, KNAUER encontra no dogma cristológico da Calcedônia ampliando-o em

função de todas as proposições de fé e todo pensar teológico36: sua fórmula resumida no “não

separado” e “não misturado” das naturezas humana e divina na una pessoa de Jesus Cristo o

autor compreende de forma relacional como um “distinguir e pôr-em-relação”

[unterscheidendes In-Beziehung-Setzen].37

33 O capítulo II inteiro se dedica ao aprofundamento dessa concepção relacional do ser. A elaboração dela é

fruto do pensamento original de KNAUER em sua busca de compreender a mensagem cristã consistentemente (o que quer dizer sempre: como ela mesma pretende ser entendida) ainda anterior à defesa de sua tese doutoral. Cf. KNAUER. “Dialektik und Relation: Die Einsicht in das metaphysische Kausalitätsprinzip im Gottesbeweis“. In: ThPh 41 (1966) 54-74.

34 KNAUER. „Glaubensbegründung heute. Der Umbau der Fundamentaltheologie”. In: StZ 59 (3/1984) 204. 35 Cf. KNAUER. Der Glaube, 15 e IDEM. “Was die öffentliche Prüfung aushalten kann: Christlicher Glaube,

Vernunft und theologische Wissenschaft – ein Plädoyer gegen ihre Karikaturen”. In: Frankfurter Rundschau, 3 ago. 1999, 19.

36 Cf. especificamente seu artigo „Die chalkedonensische Christologie als Kriterium für jedes christliche Glaubensverständnis“. In: ThPh 60 (1985) 1-15. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/39.html>. Acesso em: 9 out. 2009.

37 Esta categoria de pensar, KNAUER adota expressamente de GERHARD EBELING (cf. KNAUER. “Zu Gerhard Ebelings ‚Dogmatik des christlichen Glaubens‘. ‚Fundamentalunterscheidung‘ und ‚Lebensbezug‘ als theologische Grundkategorien”. In: StZ 59 [3/1984], 393), e a desdobra exemplarmente em seu artigo supracitado, Die chalkedonensische Christologie.

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Por isso, o autor considera como tarefa própria da teologia fundamental intermediar,

traduzir interpretativamente, as diversas linguagens teológicas (os diversos jogos linguístico-

teológicos), tendo elaborado sua teologia fundamental como uma “gramática” para a fé

cristã.38 Por conseguinte, o trabalho se propõe a expor as regras lingüístico-hermenêuticas de

falar de Deus coerentemente a partir dele mesmo no sentido em que KNAUER as apresenta

com todo rigor, “numa lógica férrea”.39

Nesse sentido, trata-se de uma “meta-linguagem” que tem a pretensão de explicitar o

que “fica por baixo”40 (no fundo) das mais diversas linguagens de fé (sempre suposto que

sejam compreensíveis unicamente como palavra de Deus). Caso contrário, não se trataria mais

de linguagem de “fé”.41 Assim é tarefa da teologia dar conta da mensagem cristã em sua

pretensão de ser palavra de Deus, de deixar o Evangelho dar-se a entender unicamente como

Evangelho. Para tal fim, a mensagem cristã pede ser ouvida justamente porque pretende dizer

a última palavra sobre a existência do ser humano. Nisso ela requer de seu ouvinte uma

mudança radical de seu ponto de vista que abrange toda a compreensão que este tem de sua

existência, do mundo e de Deus.

1.3 O alcance de sua reflexão teológica como caminho na contramão

Em todos os seus escritos, KNAUER não cansa de ressaltar, logo de início, que o erro

principal e muito difundido na compreensão da fé é partir da pressuposição de que se trate de

uma verdade óbvia, naturalmente evidenciável. Tarefa da teologia seria apenas de tornar a fé

mais e mais “plausível” [glaubwürdig] por meio de seus argumentos racionais. Em

38 Cf. KNAUER. Der Glaube, 9. O teólogo, nesse sentido, passa a ser um “intérpete” [Dolmetscher] crítico entre

linguagens teológicas diferentes que parecem contrariar-se (cf. IBID.). 39 TABORDA, FRANCISCO. Recensão de KNAUER, PETER. Para compreender nossa fé. São Paulo: Loyola, 1989.

In: PT 36 (6/1991) 406. TABORDA refere o termo especificamente à concepção da transcendência de Deus em KNAUER, mas reforça que “toda exposição consiste em levar tais princípios a suas últimas consequências na exposição das verdades da fé cristã” (IBID., 407).

40 Exatamente assim é que KNAUER, em outro contexto (cf. IDEM. Unseren Glauben, 62), “traduz” o termo grego hypomoné [ὑπομονή] por esperança. Nesse sentido é que se trata de o cristão cumprir a pro-vocação de 1Pd 3,15, dada pela própria mensagem cristã, de, quando questionado, “dar razão de sua esperança”, termo quase técnico pela autocompreensão de qualquer teologia fundamental (cf., p. ex., LIBANIO, JOÃO BATISTA; MURAD, AFONSO. Introdução à teologia. Perfil, enfoques, tarefas. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2001, 69.

41 No entanto, é inegável que tal meta-linguagem da fé só pode ser compreendida por sua vez como linguagem de fé. Mas enquanto linguagem de fé se encontra ao lado de todos os demais discursos de fé, ou seja, ela não pode se imunizar de seu caráter histórico concreto. Portanto, admite-se que não há escapatória das condições hermenêuticas de qualquer jogo de linguagem. Como ainda manter em pé a pretensão de ser uma linguagem universal de fé, capaz de expor as regras gramaticais de qualquer discurso de fé e intermediar hermeneuticamente [dolmetschen] entre elas? Trata-se de um círculo hermenêutico, não de uma tautologia. Isso significa dizer que uma meta-linguagem da fé também se submete aos critérios pelos quais sujeita as demais linguagens de fé a uma revisão crítica, a fim de poderem ser compreendidas como palavra de Deus.

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contrapartida, KNAUER se remete à própria mensagem cristã que contesta poder ser

compreendida ordinariamente como uma verdade trivial. Contrário a mera “plausibilidade” no

sentido de uma “credibilidade trivial” [Glaubwürdigkeit], própria de cosmovisão qualquer, a

mensagem cristã reclama para si aquela “fidedignidade” [Glaubens-Würdigkeit] que consiste

no estar-repleto-do-Espírito-Santo. Por conseguinte, tanto diante de certa tradição clássica de

teologia quanto perante o “fenômeno religioso” hoje e da maneira como é refletido, o autor se

põe junto à mensagem cristã no caminho da contramão.

1.3.1 A problemática atual de compreensão da fé

Aqui não se trata de analisar a complexidade da situação que o cristianismo enfrenta

em época designada de pós-moderna. Também KNAUER não se demora em

“contextualizações” de sua reflexão teológica. No entanto, longe de ignorar os sinais dos

tempos atuais, o autor logo se debruça em seus escritos sobre as questões de fundo, seja no

campo ético,42 seja no campo da teologia.

Nesse intuito, KNAUER trabalha com a hipótese de que a atual crise do cristianismo, no

fundo, reflete uma crise de fé. De um lado, tal crise há de ser enfrentada desde suas raízes na

tradição particularmente católica e, do outro, perante o atual fenômeno religioso em que se

enraíza a crise do cristianismo.

1. Trata-se de concepções equívocas da fé cristã que circulam no meio dos cristãos até

hoje. Estas continuam sendo divulgadas por manuais e práticas de catequese, fruto de uma

tradição teológica ainda neoescolástica e não-superada em tempos pós-conciliares – apesar de

todo esforço feito no e depois do Concílio Vaticano II.

42 Para além da fundamentação de uma máxima ética universal, manifesta-se a profunda preocupação do autor

com a questão da justiça em suas micro- e macroestruturas: Muito antes de a atenção pública virar à monetarização do mercado, KNAUER estudou e acabou divulgando a “teoria do dinheiro” [Geldtheorie] de DIETER SUHR como uma saída completamente inconvencional (na contramão!) do problema estrutural do desemprego e da distribuição injusta de poderes financeiros enquanto mais um problema de falta de intermediação (cf. KNAUER. “Unser liebes Geld: Aktuelle Überlegungen zu einem Systemfehler”. In: Orientierung 73 (2009) 41-44, e outros artigos a respeito, inclusive em espanhol, em sua homepage).

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KNAUER identifica tais problemas na compreensão e apresentação distorcidas e

distorcentes da fé cristã com a concepção da “teologia fundamental clássica”,43 como ela

entende, por exemplo, a doutrina das praeambula fidei (prelúdios da fé).44 Seu resultado é

uma concepção da fé cristã que o autor designa de “aditiva” e que parece emergir em

conseqüência da compreensão clássica da fé cristã:

Nessa compreensão clássica da fé, se pressupõe ser acessível à razão anterior ao

consentimento à fé (1) que Deus existe (e que sua existência é demonstrável), (2) que Deus

pode revelar-se (e que essa possibilidade seja demonstrável) e (3) que o ser humano há de crer

obrigatoriamente no que é apresentado como assunto de fé; caso contrário, rejeitaria, por

exercício de seu “livre-arbítrio”, a oferta de Deus à salvação.

Em consequência de tais pressuposições, essa concepção puramente formal da fé (1)

compreende Deus como uma realidade apenas complementar, em acréscimo àquilo que o ser

humano consegue conhecer e realizar por conta própria; (2) dicotomiza a compreensão da

revelação de Deus separando o ato da revelação de seu conteúdo; (3) fragmenta a fé pela

mesma dicotomização entre o ato da fé (fides qua) e seu conteúdo (fides quae). Por final, seja

o ato, como o conteúdo, tanto da revelação quanto da fé, é dicotomizado em si mesmo.

Pressupõe-se, com referência à onipotência de Deus e com maior evidência, ser possível ele

se revelar quando e onde e por meio de que quiser em diversos atos singulares e desconexos

entre si. Da mesma forma, concebe-se a própria fé como um aglomerado de uma

multiplicidade de dogmas e doutrinas difíceis. Além de se achar que se trate de verdades

muito complexas e em princípio incompreensíveis, pensa-se que hajam de ser somados a fim

de que se obtenha a fé completa ou inteira. Essa posição de uma fé composta de partes, seja

revestida de espírito neoescolástico (indoutrinariamente “de cima”, fechado ao mundo), seja

de espírito do aggiornamento (dialogicamente “de baixo”, aberto ao mundo), no fundo,

representa uma posição racionalista porque consequência da pressuposição de poder

“comprovar a verdade da fé direta ou ao menos indiretamente por razões da razão ou de

remontá-la a razões da razão”.45

43 Exemplarmente KNAUER cita a obra de LANG, ALBERT. Fundamentaltheologie. 4.ed. München: Hueber,

1967. Por referência a ele, KNAUER caricatura compreensões equívocas da fé muito difundidas ainda hoje, em meio ao povo cristão simples, tanto quanto à comunidade teológico-acadêmica. De forma mais direta contraria sua posição à teologia clássica em seu artigo “Fundamentaltheologische Erhellung der Glaubensproblematik”. In: TÜRK, HANS JOACHIM (ORG). Glaube – Unglaube. Mainz: Grünewald, 1971, 183-197; cf. tb. IDEM. Glaubensbegründung heute, 200-208, e antes em sua tese doutoral.

44 Cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 1-13; cf. tb. IDEM. Der Glaube; 336s e sua abordagem em IDEM. „Potentia oboedientialis“ und „übernatürliches Existential“ im Verhältnis zum „Verlangen nach der Gottesschau“. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/49.html>. Acesso em: 19 out. 2009.

45 KNAUER. Der Glaube, 376; cf. tb. IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 185.

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Em suma, nela se concebe Deus como um pedaço de realidade mundana e sua graça

como uma força mágica “supranatural” para auxiliar o ser humano no que já pode alcançar

por conta própria: elevar-se à comunhão com Deus por mérito próprio. A revelação divina

assim se torna, no fundo, obsoleta. O Evangelho não é pregado e entendido de acordo com sua

autocompreensão de “Evangelho”, e sim pregado como uma “Lei” suprema. O cristianismo

acaba em moralismo porque se prescindiu da mensagem cristã em sua pretensão de ser

“palavra de Deus” no sentido estrito do termo. Isso leva à fragmentação da palavra de Deus:

ou se a compreende limitada demais para Deus se dizer nela ao mundo ou se a entende ampla

demais para deixá-la ser literalmente humana. Deve-se entender “palavra” apenas em um

sentido “figurado”.46 Mais ainda: joga-se “palavra” contra “ação” por reduzir a palavra à sua

“função” de significar coisas fora dela: “Mais que buscar frases, nas quais Jesus mostra sua

consciência de Filho [...], devemos nos fixar nas suas atitudes”.47

A “fé” emerge aqui como resultado de uma série de dissociações devido a falsos

pressupostos. Sua recomposição posterior, porém, leva à mistura entre mundo e Deus,

natureza e graça, razão e fé. Pois “o conteúdo da mensagem cristã não tem a estrutura de um

todo aditivamente composto de partes. Em cada afirmação singular de fé, ao contrário, é

implicado o todo da fé que consiste em nossa comunhão com Deus”.48

2. Além dessa bagagem advinda de tradições teológicas, segundo KNAUER, ainda não

superadas, encontra-se esta problemática de compreensão da fé potenciada por mecanismos e

dinâmicas próprios das sociedades pós-modernas, especialmente no que diz respeito à

situação da religião em geral e do cristianismo em específico.

Há duas tendências que aparentemente se contrariam tanto no contexto europeu quanto

no latino-americano (porém, com gravidade ainda invertida), mas, no fundo, incorrem no

mesmo dilema: de um lado, o mundo globalizado levou ao fenômeno universalmente presente

de um pluralismo religioso que tem suas configurações regionais daquilo que se chamou de

“retorno do sagrado” ou do religioso.49 Em contrapartida, mas simultaneamente, constata-se,

46 Cf. KNAUER. “‚Wort Gottes‘ Grundkategorie des Christentums. in: Lebendiges Zeugnis 47 (1992). Acesso ao

texto digital disponibilizado pelo autor. 47 BOFF, LEONARDO. A Trindade e a Sociedade. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1987, 46. E logo em seguida reafirma:

“Mais que por palavras, é pelas ações de Jesus e na sua gesta libertadora que se revela o Espírito Santo” (IBID., 47). A ainda hoje essa opinião do autor é generalizável entre muitos cristãos e teólogos.

48 KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 76; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 18. 49 A literatura é vasta. Para se obter uma visão geral dos diversos movimentos religiosos no cenário brasileiro

cf. LIBANIO, JOÃO BATISTA. Religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002 e IDEM. Pluralismo Cultural e Religioso. In: AMERINDIA (Org.). V Conferência de Aparecida. Renascer de uma esperança. São Paulo: Paulinas, 2008, 73-78.

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inclusive estatisticamente, na América Latina, crescente secularização de diversas esferas

públicas e privadas da vida societária cada vez mais fragmentada em termos de coesão

social.50

Tal efervescência de vivências religiosas e pseudoreligiosas51 invadiu até os ambientes

mais “conservadores” de um catolicismo tradicional pela sua prática individualista e

comercial (seguindo a lógica do mercado neoliberal) de confeccionar para si mesmo sua

própria “religião”, como um retalho de roupas diversas.52 Mas a médio prazo, tal prática leva

(como já levou) à “desinstitucionalização” da religião. Esta se manifesta na flutuação de fiéis

e crentes entre as mais diversas igrejas ditas “cristãs” em uma espécie de “teste de

degustação” do sentimento religioso, especialmente nas periferias das “megalópoles”

urbanas.53

O passo final é a desistência, primeiro de alguma prática religiosa, e depois da própria

crença, degradada à mera visão de mundo. Parece que a (ainda) atual efervescência de

sentimentos religioso, ou “reencantamento do mundo” (em contrapartida ao processo

moderno do “desencantamento do mundo” observado por MAX WEBER), de um clima mais

mistérico do que místico, mais sacral (cúltico) do que sagrado está, aos poucos, incorrendo na

suspensão de si mesma. Tal fenômeno de “secularização” (no sentido de desaparecimento de

manifestações religiosas na vida pública e também privada das pessoas) se mescla com o

deslocamento desses sentimentos “religiosos” para outros semelhantes tidos como “pseudo-

religiosos”, bem como a substituição do culto religioso e eclesial por eventos seculares, mas

“com ar” de sagrado enquanto “fascinante e atemorizante”.54

50 Cf. a análise de conjuntura no Documento 71 (CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no

Brasil. 2003-2006. 6.ed. São Paulo: Paulinas, 2003) n. 44-62, especialmente n.57 em que se constata ser novidade no Brasil pessoas se assumirem publicamente serem “sem religião”, bem como os dados estatísticos do senso de 2000 na nota 9.

51 KNAUER. Vernunft – Naturwissenschaften – christlicher Glaube, 37s; cf. tb. TÜRK, ECKHARD. „Gute Religion – schlechte Religion. Apologetik im Interesse der Religion und des Menschen“. In: GÄDE, GERHARD (ORG.). Hören – Glauben – Denken, 163-186. Em seu artigo o autor confronta as pretensões de verdade das religiões mundiais com o pluralismo e indiferentismo religiosos em época pós-moderna. Contra a postura e prática difundidas de um consumismo religioso em que a religião “boa” é aquela “tolerante” e dogmaticamente flexível, e a religião “má” a que não deixa de levantar pretensão de verdade única e última (163-166). Da observação que força-motora de movimentos de reforma em toda religião era a busca de critérios de distinguir entre verdadeira e falsa religião, o autor nomeia com referência a KNAUER como critério a insuperabilidade [Unüberbietbarkeit] (167).

52 Nesse contexto a sociologia trabalha com termos como geração patchwork (colcha de retalhos); cf. FERCHHOFF, WILFRIED; NEUBAUER, GEORG. Patchwork-Jugend. Eine Einführung in postmoderne Sichtweisen. Opladen: Leske + Budrich, 1997.

53 Doc. 71, n. 50. 54 Cf. a definição do sagrado de RUDOLF OTTO. Já existem estudos sociológicos comparativos, analisando os

jogos de futebol, os eventos esportivos de grande escala, shows de abertura de jogos olímpicos etc. (cf.

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Dessa maneira, a questão da fé e sua compreensão é cada vez mais deslocada para a

esfera do privado, do individual. Ela se torna uma questão de bom (ou mau) gosto,

encontrando seu reflexo numa “teologia da prosperidade”, que se manifesta como variação de

uma “teologia da retribuição”.55 Consequentemente, a teologia suspende o senso crítico do

esforço intelectual de compreensão. Ao contrário disso, KNAUER entende que “ela [a

mensagem cristã] está preparada para se defrontar com qualquer provação e responder-lhe.

Justamente por isso, ela desenvolve uma teologia fundamental”.56

Especialmente no campo do estudo da teologia das religiões o confronto com tais

concepções de fé, de Deus e de religião com sua inegável pretensão de revelação se torna

agudo. E a reação da instituição eclesiástica, no caso da Igreja Católica, também não tarda: o

medo de relativismos, de dissolução dos dogmas, do perigo de confundir a fé dos fiéis, enfim,

a preocupação com a desintegração de seu rebanho por causa da difusão de uma nova

insegurança teológica (e eclesiástica), tem a tendência de voltar a domesticar a pesquisa

teológica restringindo-a ao papel de “serva do Magistério”.

Parece-lhes possível crer sem compreender. E mais ainda: acham que qualquer

tentativa de refletir a fé significa racionalizá-la, desmistificá-la até. Muitos vivem sua fé hoje

de forma melodramática, puramente emocional e sentimentalista, por meio de missas-shows,

de encontros de oração como grandes espetáculos de curas milagrosas e falas em línguas.

Nisso, certos movimentos no seio da Igreja católica parecem confundir-se com a prática

religiosa das igrejas pentecostais e neopentecostais. O “queremos Deus” ou “queremos ver

Jesus” muito se explicita num “querer sentir Deus”.

Essa concepção de fé tende a ser fideísta porque apodicticamente “se dispõe a

responder pela fé apenas dentro do círculo dos fiéis, e não também perante não-fiéis”.57

Contra a busca de fundamentar a “certeza da fé” [Glaubensgewissheit] na suposta força de um

sentimento religioso, KNAUER afirma: “É verdade que muitos consideram toda religião como

MARDONES, JOSÉ MARIA. Para comprender las nuevas formas de la religión. La reconfiguración postcristiana de la religión. Estella: Verbo Divino, 1994.

55 Doc 71, n. 55. Cf. tb. o diagnóstico dessa situação em RUBIO, ALFONSO GARCÍA. Elementos de Antropologia Teológica. Salvação cristã: salvos de quê e para quê?. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2004, 17-21. RUBIO nota “que se deu nos seminários, nas duas últimas décadas, certa desvalorização da vida intelectual, uma tendência para desenvolver um tipo de formação pouco exigente nos estudos teológicos (e filosóficos). Parece-me que se dá uma aliança, ao menos em parte, com as tendências antiintelectuais presentes na pós-modernidade, voltando-se para a expressividade corporal, emocional [...] pouco importando a coerência do conteúdo, ou, mesmo, a fidelidade à proposta evangélica” (IBID., 20).

56 KNAUER. Gaubensbegründung heute, 200. A esta tentação pós-moderna, KNAUER responde claramente que “se pode pensar sem crer, mas não se pode crer sem pensar” (cf. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 7). A fé dá o que pensar, precisamente porque sua verdade não é uma banalidade.

57 KNAUER. Der Glaube, 379.

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coisa da emoção [Gefühlssache]. Mas essa não é a autocompreensão da mensagem cristã. Ela

quer ser percebida como verdadeira e confiável [verlässlich]. Mas, então, há de se perguntar

evidentemente se sua pretensão de verdade tem razão”.58

Tanto a posição racionalista quanto a fideísta foram condenadas pela Igreja no

Concílio Vaticano I. Contra o racionalismo, a Igreja reafirma a doutrina sobre os mysteria

stricto sensu (cf. DH 3015) e profere anátema contra quem “disser que na revelação divina

não há nenhum mistério verdadeiro e propriamente dito, mas que todos os dogmas da fé

podem ser compreendidos e demonstrados pela razão” (DH 3041).59 Contra o fideísmo, ela

adverte que o consentimento com a fé “absolutamente não seja um movimento cego da alma”

(DH 3010).60 Alguns teólogos reconhecem o desafio, mas procuram o caminho do meio que

se preocupa apenas de não cair nem num nem noutro extremo. KNAUER, em contrapartida,

apresenta sua compreensão da fé como alternativa a essas [falsas] alternativas61 que faz jus à

“pretensão de verdade” [Wahrheitsanspruch] da mensagem cristã. Para sua reta compreensão,

porém, a mensagem cristã exige uma reviravolta também no pensar.

1.3.2 “Vinho novo em odres novos”

Diante da situação acima referida das dissociações entre mundo e Deus, ato e conteúdo

de revelação e fé, bem como de mescla de efervescência religiosa em meio a tendências

secularizantes, a pergunta primordial de KNAUER com relação ao que se trata na fé cristã no

fundo é mais atual do que nunca: É a pergunta pelo que constitui a fé cristã como “fé”62 em

um sentido último e insuperável e, por isso, de pretensão de verdade única e absoluta. É uma

reivindicação da fé à teologia para “dar razão a sua esperança” (1Pd 3,15), tornar o anúncio

cristão “compreensível e comprometedor”,63 não uma compreensão qualquer, não uma

58 KNAUER. Glaubensbegründung heute, 200. 59 Cf. KNAUER. Der Glaube, 376. O autor refere ainda a DH 3028.3032 60 Cf. IBID., 379. No contexto o autor refere também a DH 3033. 61 Cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, IV. Essa dificuldade de escapar realmente de racionalismo e

fideísmo “sem justamente cair numa mistura desgraçada [heillos] de ambos” o autor chama de “crux theologorum” (IBID.).

62 A respeito da fé como obra de Deus em nós e como fé “própria” do ser humano, ou seja, a fé vivida pelo ser humano, cf. KNAUER. Der Glaube, 188ss.

63 KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 15. KNAUER cita EBELING em sua expressão mais típica pelo empreendimento da fundamentação da fé.

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compreensão construída a partir dos nossos preconceitos (nossa concepção prévia do mundo,

de Deus) e das nossas certezas, mas uma compreensão buscada a partir daquilo que faz da fé

ser fé, uma certeza inabalável.

A intuição principal de KNAUER a esse respeito é considerar como “essência da fé

cristã” o fato de que “nenhuma qualidade criada enquanto tal é suficiente para outorgar

comunhão com Deus”64 sendo esta “intelecção” [Einsicht] “a chave para toda teologia”.65 Tal

afirmação se dirige contra a ideia do homo religiosus segundo a qual cada ser humano é capaz

de “experiência de Deus”,66 seja por esforço ético, seja intelectual. Consequentemente ele

fundamenta teologicamente a “estrutura” peculiar da fé na pretensão problemática da

mensagem cristã de ser “palavra de Deus”. Por causa da tendência natural de o ser humano

enquadrar Deus em seus esquemas de concepção da realidade mundana, a mensagem cristã

exige uma inversão total dessa compreensão prévia.

O ser humano, a partir de si mesmo, tem, principalmente, a tendência de pensar de Deus como das coisas do mundo. Isto vale independentemente se se aceite ou rejeite a existência de Deus no sentido de um “ser supremo”. Ou se busca concluir do mundo a Deus através de um princípio cognitivo que abrange mundo e Deus, e assim já rompe com a incompreensibilidade de Deus. Ou se imagina Deus como uma projeção humana e rejeita sua existência. O erro de fundo é o mesmo. Coisa correspondente vale dizer da forma como o ser humano geralmente pensa uma revelação a partir de si mesmo: Deus é todo-poderoso e pode comunicar qualquer coisa.67

Por isso, o ser humano não enxerga, por conta própria, em que consiste o “novo” da

mensagem cristã porque a coloca na categoria “velha” do trivialmente compreensível.

Nesse sentido a mensagem cristã é mal-entendida como “trivialmente autoevidente”. “Trivialmente autoevidente” é aquilo que alguém entende sem problema por conta própria [von selber]. [...] Nesse olhar nem se precisa da Trindade divina nem da encarnação do Filho para o evento da revelação; e também não é inteligível porque a aceitação da revelação deve ser compreendida como uma graça que transcende todas as possibilidades meramente naturais.68

64 KNAUER. Der Glaube, 179. 65 KNAUER. “Der Heilige Geist – Garant der Wahrheit und Einheit”. In: Materialdienst des

Konfessionskundlichen Instituts Bensheim 30 (Caderno especial 10/1979) 5. 66 Cf. KNAUER. Der Glaube, 71s. 67 KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 68. 68 IBID., 69.

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Pela sua proclamação histórica, a própria mensagem cristã alerta o ser humano para o

fato de que a comunhão com Deus, que pretende transmitir, é uma verdade trivialmente “não-

[auto]evidente”. Só a mensagem cristã consegue explicar-se de forma compreensível contra

questionamentos, mas, em sua verdade ela se evidencia a si mesma apenas na acolhida da fé.69

O aviso hermenêutico de colocar “vinho novo em odres novos” (Mc 2,22), para

KNAUER, é intercambiável com o aviso hermenêutico da distinção fundamental

epistemológica entre “Lei” e “Evangelho”, “Natureza” e “Graça”. A distinção entre lei e

Evangelho, natureza e Graça se compreende como palavra própria de Deus por nós e em

contrapartida ao que o ser humano pode saber por conta própria. Isso acontece com relação à

mensagem cristã por meio de todo posicionamento que a rejeita “sem razão”, procura

permanecer indeciso diante dela ou concorda com ela de forma racionalista ou fideísta.

O ser humano, que mergulha nas incertezas de sua existência, ansiando por encontrar

“sentido último” em sua vida, no anúncio cristão, é confrontado com uma palavra que

desconstrói consequentemente todas as ilusões de “chegar lá” por conta própria. Dela não

pode se esquivar a custo de se negar a si mesmo.

A natureza do ser humano clama pelo sobrenatural. Seria mesmo anatural se a natureza humana encontrasse satisfação em si mesma. Mas, ao mesmo tempo, a natureza do ser humano impede o passo para dentro do sobrenatural.70

Pois remetido ao ser abordado em sua consciência (“Lei”) por meio da mensagem

cristã, encontra-se em conflito consigo mesmo e em sua realidade. Quando reconhece sua

necessidade de perdão, sem mesmo poder proferir a si mesmo tal palavra, já a acolheu como

Boa Nova (“Evangelho”).

No ato da escuta confiante dessa palavra realiza-se o que ela revela: o ser amparado do

ser humano na comunhão com Deus desde o início de sua existência. Aprender na reflexão a

delinear essa distinção em seu estar vinculado indissociavelmente é saborear o vinho novo na

contramão das conveniências do nosso pensar.

69 Cf. KNAUER. Der Glaube, 19. O jogo de palavras em torno do termo “selbstverständlich” se dá pela

conotação cotidiana de algo ser óbvio e pela conotação literal que significa compreensível através de si mesmo. Cf. tb. p. 15 e respectiva nota 5 da introdução geral a este trabalho.

70 EBELING, GERHARD. “Der hermeneutische Ort der Gotteslehre bei Petrus Lombardus und Thomas von Aquin“. In: ZThK 61 (1964) 324. Apud: KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 6.

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Pela “palavra de Deus” o ser humano é posto na decisão ou de se compreender em contradição com a sua verdadeira realidade a partir de si mesmo [...], ou, então, de considerar-se [ser] criado “em Cristo” a partir da “palavra de Deus”. No primeiro caso o ser humano abusa da liberdade conferida a ele em função de sua criaturalidade tal qual. No segundo caso se decide na liberdade no Espírito Santo conferida a ele a partir da autocomunicação de Deus. Portanto, não existe uma liberdade neutra anterior ao ser agraciado.71

Tal demarcação prévia da especificidade da palavra de Deus no caminho da contramão

tem implicações a serem explicitadas com relação à fé nela fundada.

2 “FÓRMULA BREVE DA FÉ CRISTÔ: IMPLICAÇÕES HERMENÊUTICAS PARA SUA FUNDAMENTAÇÃO

A apresentação das coordenadas da intuição teológica própria de KNAUER acima teve

caráter apenas introdutório. No entanto, já vislumbrou o rumo de sua abordagem. Antes de

entrar no desdobramento detalhado do significado de palavra de Deus a partir de sua

problemática resumidamente apresentada acima, KNAUER geralmente coloca no início de seus

escritos um “tipo de fórmula breve [Kurzformel] da fé que indica o distintivo cristão

[unterscheidend Christliche]”:72

Crer em Jesus como Filho de Deus significa, por causa de sua palavra humana, saber-se a si mesmo e o mundo todo acolhidos no amor eterno do Pai a ele. O Filho de Deus se fez ser humano para nos tornar certos desse amor por sua palavra humana como palavra de Deus.73

Geralmente suas “fórmulas breves” implicam resumidamente três aspectos

fundamentais da fé como evento da palavra indissociável: o conteúdo da fé como saber-se

incondicionalmente amado por Deus no sentido do ser acolhido no amor eterno entre Pai e

Filho que é o Espírito Santo (2.1); o devir da fé por uma tradição de transmissão que remonta

71 KNAUER. Der Glaube, 191s. 72 KNAUER. Einzigartigkeit des Christentums, 1976, 11. 73 KNAUER. Was die öffentliche Prüfung aushalten kann, 19. Em sua diversidade, as formulações desdobram

inicialmente o que significa estar em comunhão com Deus: KNAUER. Einzigartigkeit des Christentums, 1976, 12; IDEM. “‚Natürliche Gotteserkenntnis’?”. In: JÜNGEL, EBERHARD; WALLMANN, JOHANNES; WERBECK, WILFRID (ORG.). Verifikationen: Festschrift für Gerhard Ebeling zum 70. Geburtstag. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1982, 275–294 (disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/41.html>. Acesso em: 14 out. 2009.); IDEM. Glaubensbegründung heute, 200; IDEM. Unseren Glauben verstehen, 7; IDEM. “Zu Gerhard Ebelings ‚Das Wesen des christlichen Glaubens‘ (1959)”. In: DELGADO, MARIANO (Org.). Das Christentum der Theologen im 20. Jahrhundert: Vom „Wesen des Christentums“ zu den „Kurzformeln des christlichen Glaubens“. Stuttgart-Berlin-Köln, 2000, 74-83. Como um resumo programático de fundamentar a fé pela teologia se encontra em IDEM. Der Heilige Geist – Garant der Wahrheit und Einheit, 4. KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 68.

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originalmente à mensagem e à pessoa de Jesus de Nazaré (2.2); a finalidade da fé que consiste

na libertação do poder do medo pela própria vida por causa de seu “ser-entregue-à-morte”,

necessitando de redenção (2.3).

Em Unseren Glauben verstehen, entretanto, o autor apresenta de entrada uma

experiência pessoal que se poderia chamar de “fórmula breve narrativa” da fé: em um hospital

na Alemanha, observou um menino de aproximadamente cinco anos sendo levado à sala de

cirurgia em companhia de sua mãe. Antes de entrar na sala sozinho, os dois conversando, o

menino se dirige a sua mãe com estas palavras: “Ó mãe, mas Deus está sempre comigo não

é?”.74 O autor mesmo comenta:

Essa palavra singela me impressionou naquela época. Pois ela resume da maneira mais simples de que se trata na fé cristã. Esta fé é tão simples que até uma criança em sua menoridade pode expressá-la. Naturalmente podem-se escrever livros extensos sobre a fé cristã. Todavia, com isso apenas se pode desdobrar o que já se encontra plenamente resumido na palavra da criança. Todas as afirmações singulares de fé apenas podem explanar o que já está expresso na palavra da criança.75

Antes de se perguntar como se pode entender a fé e sua mensagem, há de se tomar

conhecimento do que ela implica basicamente. Aqui não se pretende romper a sequência

lógica da abordagem de KNAUER que o leva da pergunta por Deus à sua palavra para chegar à

fundamentação da fé a partir do encontro histórico com a mensagem cristã. Procuramos, sim,

aprofundar previamente as implicações básicas da afirmação de que, por meio da fé em Jesus

Cristo, estamos em comunhão com Deus.76

2.1 Primeira implicação: a certeza de fé é o “saber-se amado”

De acordo com KNAUER, a criança captou muito bem que na fé cristã se trata de uma

verdade [muito] simples: acreditamos que Deus está sempre conosco. Por isso, ter fé significa

simplesmente “saber-se amado [incondicionalmente] por Deus”.77 É uma verdade simples

porque uma criança já pode “sabê-la” e até expressá-la.78 A criança, como qualquer ser

74 “Du Mutti, der liebe Gott ist doch immer bei mir?”. IDEM. Unseren Glauben, 11. 75 IBID. 76 Nesse sentido a reflexão seguinte se baseia no desdobramento da frase da criança por KNAUER no primeiro

capítulo de Unseren Glauben verstehen (11-19) – no que diz respeito às três implicações acima aduzidas. 77 “Sich-von-Gott-[unbedingt]-geliebt-Wissen”. KNAUER. Der Glaube, 129. Esta expressão concorda com a de

EBELING. Cf. KNAUER. Zu Gerhard Ebelings „Das Wesen des christlichen Glaubens“. 78 Tal simplicidade não se confunde com ingenuidade. Quando não refletida, a fé pode, de fato, além de

simples, também ser ingênua. LEONARDO BOFF a chama de “fé tranquila” (cf. IDEM. Jesus Cristo Libertador. 12.ed. Petrópolis: Vozes, 1988, 196s. No caso da criança, a fé espontânea e ingenuamente vivida é

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humano, “sabe”-se amada quando confia no carinho e nas “declarações de amor” que as

pessoas, antes de tudo seus pais, lhe fazem. Se confiamos que Deus está sempre conosco, é

porque a fé nos dá uma certeza inabalável, maior do que a certeza da própria morte: “Quem

nos separará do amor de Cristo? [...] Pois estou convencido de que nem a morte nem a vida

[...] nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus manifestado em Cristo

Jesus, nosso Senhor” (Rm 8,35.38s).

Não existe coisa maior do que a comunhão com Deus que nos proporciona tal certeza.

Por isso, a fé sempre é insuperável, é uma certeza última que relativiza a morte como certeza

doravante apenas “penúltima”. Por causa de a fé ser verdade simples e insuperável, nada se

pode acrescentar a ela, nada tirar dela. Apenas se pode desdobrá-la, aprofundá-la, assimilá-la

cada vez mais conscientemente. Pois, se pudéssemos concluir de nossa realidade, por conta

própria, o amor de Deus por nós, esse amor não seria mais incondicional, e em Deus não se

poderia confiar mais do que em nós mesmos. Salvação se tornaria pura ilusão. A fé não

passaria de uma certeza automanufaturada, autojustificativa, ambígua em si mesma, incapaz

de nos amparar sempre.

Portanto, nós mesmos não podemos ser a “medida” do amor de Deus por nós. Dizer

que somos amados “sem medida” somente é possível como “participação da relação de Jesus

com Deus”,79 o que significa dizer: numa compreensão trinitária de Deus. O amor com que o

humano Jesus se sabia amado por Deus, por sua vez, é o amor com que o Pai, desde toda

eternidade, está voltado ao seu Filho. Esse amor é o Espírito Santo. Pelo seu testemunho, por

causa de sua palavra, Jesus constitui as condições em nós de acolhê-la ao nos transmitir nela o

seu Espírito. Por essa razão, a fé como o saber-se amado por Deus só é compreensível como o

“estar-repleto-do-Espírito-Santo” [Vom-Heiligen-Geist-Erfülltsein].80

Somente assim, a fé constitui um “saber” em contraste e como alternativa a uma

certeza meramente racional (cognitiva) ou emocional (psíquica), sempre incerta de si mesma

porque própria do ser humano em sua condição de profunda ambiguidade. Se quiséssemos

determinar a nossa fé pelo “sentir-se amado”, já estaríamos perdidos em nossos anseios e

medos, abandonados nos momentos de dúvida. No exemplo da criança acima referida,

contagiante. No caso de um adulto em quem essa fé não cresce de acordo com seu entendimento das coisas de forma geral, pode ser prejudicial para o próprio testemunho dessa fé que se torna inaceitável para as demais pessoas quando começam a questioná-la.

79 “Der christliche Glaube ist das Anteilhaben am Gottesverhältnis Jesu”. KNAUER. Der Glaube, 19. 80 KNAUER. Der Glaube, 20. A expressão própria do evangelho de Lucas (Lc 4,1.14.18. 10,21.23,46 [Sl 31,6] e

At 2,4) leva a entender como Páscoa e Pentecostes se interpretam mutuamente e emerge como expressão padrão nos escritos de KNAUER.

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KNAUER entende que a criança não queria dizer que contava logo com o bom êxito da cirurgia

– em contrapartida a uma “teologia da prosperidade”.81 Pelo contrário, independentemente de

que ia acontecer com ela e além do medo que ela certamente sentia, Deus a amparava com um

amor sempre maior, inclusive mais forte do que a morte.

2.2 Segunda implicação: a fé provém do ouvir (Rm 10,17)

Se a certeza da fé deve ser realmente inabalável (e só assim será de Deus), não

podemos tê-la a partir de nós mesmos como uma convicção primordialmente pessoal ou

subjetiva apenas. A certeza propriamente nossa é a de nossa morte. Com fundamento em

nossa existência, uma certeza maior do que essa não pode ser inventada a custo de ser mera

fantasia ou projeção de anseio nosso. Por essa razão, a fé com sua certeza há de vir de

“outro”, de fora da realidade a nós acessível por conta própria (extra nos).82

É constitutivo para a fé advir de uma tradição de transmissão histórica (a Igreja), por

meio de simples comunicação humana (1Jo 1,1-3). Ela só pode ser trazida por uma mensagem

que se entende como autocomunicação [do amor] de Deus por nós (pro nobis), sempre,

contudo, por meio de sua transmissão enquanto palavra humana. No exemplo referido, a

criança diante da cirurgia, para se “certificar” de sua fé, precisava se remeter à mãe da qual a

recebeu certamente.

A única maneira pela qual podemos confirmar que a certeza de nossa fé seja realmente

“fé”, e não ficção, é o “outro” do qual recebemos a nossa fé. Por essa razão, ninguém pode ter

a sua própria fé sem estar integrado na comunidade dos que assim creem: como o estar-

repleto-do-Espírito-Santo a fé de cada pessoa é fruto da Igreja em sua missão evangelizadora

como “evento contínuo da transmissão do Espírito Santo”.83

81 Esta, por sua vez, haveria de ser associada à mentalidade farisaica da “exigência de sinais judaica” [jüdische

Zeichenforderung] (cf. KNAUER. Der Glaube, 272), que corresponde essencialmente à compreensão de “milagre” da parte de muitos cristãos (cf. IBID., 367).

82 Isso não vale dizer apenas de indivíduo em indivíduo. Também o coletivo de toda a humanidade junto não pode, com fundamento na razão, concluir da realidade por ela conhecida a uma certeza maior que sua finitude relativa (saber-se-entregue-à-morte) e por isso sempre ambígua. Para KNAUER, o sentido do sacerdócio ministerial está embasado neste fato: ele representa em pessoa de Cristo-cabeça que a fé de toda a comunidade, de todo o corpo de Cristo (inclusive seus sacerdotes) sempre e somente provém do “ouvir” (cf. KNAUER. Unseren Glauben verstehen, 191-195).

83 Cf. o desdobramento do conteúdo pneumatológico da mensagem cristã pelo viés eclesiológico no cap. III/4 deste trabalho.

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Por isso, o cristão precisa do cristão que lhe diz a palavra de Deus, ele precisa dele sempre de novo quando ele fica incerto e desanimado; pois a partir de si próprio não pode ajudar a si mesmo sem burlar a verdade. Ele precisa do irmão como portador e proclamador da divina palavra de salvação. Ele precisa do irmão somente por causa de Jesus Cristo. O Cristo no próprio coração é mais fraco do que o Cristo na Palavra do irmão; aquele é incerto, este é certo.84

A iniciativa para a fé não emana da pessoa por sua conta própria, sempre há de se

remeter a outro – em sua origem à pessoa de Jesus. A dependência de uma tradição que se

remonta a Jesus como sua origem é constitutiva para a fé. A mediação de sua verdade se dá

pela história, precisamente pela linguagem humana. Esse é o sentido de Rm 10,17a: “A fé

[provém] do ouvir”.

Entretanto, a mensagem cristã enquanto palavra humana não é apenas veículo de uma

verdade que não se funda nela. Jesus não foi apenas mediador histórico, mero informante da

mensagem da vinda iminente do Reino de Deus em meio de nós. A história humana não é

apenas o palco da revelação divina que nos tira do meio dela para outros fins à parte da

história, para além da palavra. A mensagem cristã remonta a Jesus como sua origem porque

nos dá testemunho de sua filiação divina.

Isso significa dizer que a mensagem cristã se compreende como palavra de Deus

porque é o próprio Cristo que nos interpela por meio do anúncio cristão, sendo ele mesmo

“palavra de Deus” (Jo 1,1), ele mesmo fundamento, mediador e fim da fé (DV 2). Por essa

razão, Rm 10,17b termina afirmando “o ouvir, porém, [provém] da palavra de Cristo”. O ato

da fé que deriva de sua transmissão e o conteúdo pelo seu anúncio transmitido (e somente

neste mesmo ato de fé fielmente [glaubend] acolhido), por isso, não podem ser dissociados.

“O que significa ter fé, somente a partir de Jesus, é definitivamente compreensível. Pois crer

em Jesus significa participar de sua comunhão com Deus”.85

A transmissão da fé “em forma de palavra” (Hb 2,3) é a base segura que garante sua

distinção de outras vias ou supostas fontes de fé como comumente se refere a visões, sonhos

ou intuições, ao desejo [natural] pela felicidade, ou à ardente busca do sentido último de nossa

vida. Essas vias de suposta revelação divina ou de acesso a Deus não são “fontes” fidedignas,

porque não podem ser distintas indubitavelmente de uma invenção nossa.

84 BONHOEFFER, DIETRICH. Gemeinsames Leben. 15.ed. München, 1976, 14. Apud: KNAUER. Unseren Glauben,

134 (grifo nosso). 85 KNAUER. Unseren Glauben, 138.

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Unicamente uma palavra da qual se depende em recebê-la por meio de outro,

paradoxalmente, é digna de confiança incondicional. “Somente pelo filtro da associação

[Zuordnung] mútua de crer e ouvir somente passa a mensagem cristã não-distorcida

[unverfälscht]”.86 Apenas desse modo, o anúncio cristão pode nos afetar em nossa existência

histórica.

2.3 Terceira implicação: a fé liberta do poder do medo da morte (Hb 2,15)

É finalidade da fé nos libertar da raiz de toda desumanidade. Só quando se

compreende o seu verdadeiro sentido libertador, a fé pode salvar por meio da certeza absoluta

de nossa comunhão com Deus. A verdade do significado libertador da fé, porém, só na fé

mesma se encontra. Mas, já de antemão, há de ser acessível ao ouvinte da palavra o

conhecimento da alternativa. É tarefa da proclamação cristã anunciar o Evangelho de tal

forma que surja esta alternativa ainda anterior à acolhida da fé. Quando pregada

adequadamente, a mensagem cristã leva o ser humano ao confronto consigo mesmo,

conscientizando-o primeiro de sua ambiguidade e incerteza, de sua vulnerabilidade e

fragilidade existenciais.

Essa condição existencial humana, que é sua condição criatural, segundo KNAUER,

culmina, de acordo com Rm 5,12, no seu “ser-entregue-à-morte” [Todesverfallenheit].87 É o

pano de fundo antropológico da afirmação de que a fé provém do ouvir e não é mesmo algo

inato ao ser humano. Abstraído da fé, da qual só pode saber por meio do anúncio e cuja

certeza só sabe quando a acolhe, o ser humano permanece preso às garras de uma existencial

incerteza devido ao saber-se entregue à morte. Pois voltado para si só, sua única certeza

absolutamente certa é que há de morrer um dia. Nesse sentido, a tradição protestante concebe

86 KNAUER. Der Glaube, 19. 87 Cf. KNAUER. “Erbsünde als Todesverfallenheit. Eine Deutung von Rom 5,12 aus dem Vergleich mit Hebr

2,14f”. In: ThGl 58 (1968) 153-158. Nesse artigo, o autor relê Rm 5,12 à luz de Hb 2,14s para desconstruir uma tradição equívoca de compreensão do pecado original que, desde o Concílio de Trento (DH 1512), se apóia também em Rm 5,12. Ele vê no pecado de Adão a causa hereditária da morte e da pecaminosidade de toda humanidade. O autor levanta a hipótese de que “a transmissão do pecado original seria idêntica com a própria transmissão do ser-entregue-à-morte, de tal forma que, estritamente entendido, o pecado original no versículo 12 é designado com a palavra θάνατος. Trata-se de um ser-entregue-à-morte que exclui qualquer motivo de esperança” (IBID., 155). Em seguida, KNAUER fundamenta sua hipótese pela interpretação de Hb 2,15: Hebreus fala da humanidade enquanto tal que se encontra em uma situação coletiva e duradoura, que “assim precede como um existencial a todos os atos pessoais próprios” (IBID.). Por causa desse “existencial”, o ser humano se encontra em uma situação coercitiva que continua vigorando em cada ato de pecado enquanto sua escravização (sempre reposta de novo). O “vínculo ôntico” entre a “situação coercitiva” e o “ser-entregue-à-morte” por meio do “medo da morte” é explicado pela consciência que o ser humano, mediante o pecado singular, toma da morte como certeza última na sua vida. O medo da morte exerce um poder sobre o ser humano que o deixa sem esperança.

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o ser humano, visto à parte da fé, inteiramente pecador. E, nesse mesmo sentido, KNAUER

reinterpreta a doutrina do “pecado original” como sendo, por assim dizer, o “existencial

natural” pelo fato de que a fé não é inata.

A doutrina do “pecado original” é na, realidade, apenas o lado reverso de uma verdade muito simples e provavelmente inteligível para cada um: a fé não é inata [...] Inato apenas é a própria existência em sua vulnerabilidade e transitoriedade. Ela é entregue à morte.88

Isso infunde nele o medo da morte. A partir de si mesmo, o ser humano tende a viver

dominado pelo poder do medo da morte, em “estado de servidão, pelo medo [φόβος] da

morte” (Hb 2,15). Este pode manifestar-se em diversos medos89 que o ser humano tem pela

sua vida. Tal “medo a respeito de si mesmo” [Angst um sich selbst]90 o leva a agir

desumanamente porque o faz se agarrar àquilo que lhe parece prometer preservar sua vida a

qualquer custo. Assim o ser humano se torna chantageável:

Quem somente conhece esse seu ser-entregue-à-morte vive do medo a respeito de si mesmo e busca assegurar-se a todo custo. Esse medo, no entanto, é a raiz de todo egoísmo e de toda desumanidade, de tudo aquilo que se chama em linguagem religiosa de “pecado” [...] Esse medo da morte determina a vida toda do ser humano do início até o fim e se encontra anterior à sua culpa pessoal.91

O medo também pode permanecer “latente” e inconsciente até o momento em que for

retirado da pessoa aquilo em que buscou assegurar sua existência. A tais autoilusões

correspondem, no nível social, as ideologias, sejam de cunho político, religioso, ou seja, de

88 KNAUER. Unseren Glauben, 136. Aqui parece ser propagada uma antropologia cristã muito pessimista que

assim estaria em contraste direto com a euforia religiosa hodierna quanto à capacidade natural do ser humano de chegar a Deus (“muitas crenças e pouca libertação” [LIBANIO] – e menos compreensão ainda). Na verdade, a concepção do homem aqui apresentada é profundamente bíblica, pois especialmente o Antigo Testamento apresenta o ser humano em toda sua ambiguidade e contradição consigo próprio, que resulta na sua tendência de autojustificação [Selbstrechtfertigung], como KNAUER exemplifica, refletindo sobre a história da vinha de Nabot em 1Rs 21,1-16 (cf. IDEM. Unseren Glauben, 123s). Ao mesmo tempo, a pregação cristã adequada demonstra que a consciência humana é inextinguível (cf. IBID., 124s e Rm 7,14-24) o que põe o ser humano diante de Deus em toda sua radical necessidade de redenção [Erlösungsbedürftigkeit]. Para aprofundar uma releitura da doutrina do pecado original na linha do pensamento relacional cf. ANDRADE, BARBARA. Pecado original ... ou graça do pecado?. São Paulo: Paulus, 2007.

89 KNAUER diferencia no conceito do medo [Angst] (1) uma função positiva de alerta a perigos e (2) sua perversão quando o medo pela própria vida passa a dominar o pensar e agir do ser humano. (cf. KNAUER. Der Glaube, 22.

90 Trata-se do medo que o ser humano tem em torno de sua própria pessoa, pela sua vida. Tanto nas referidas edições em espanhol e português de Unseren Glauben traduzem “miedo por si [uno] mesmo” e “angústia” ou “temor por si mesmo” (cf. IDEM. Para comprender nuestra fe, 152, e IDEM. Para compreender nossa fé, 123.

91 KNAUER. Unseren Glauben, 136s. O autor aqui menciona o exemplo das ditaduras que são “correntes de desencadeamento de chantagem” [Kettenreaktionen der Erpressung]; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 23.

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cunho econômico. São os falsos ídolos e messianismos de hoje.92 Enquanto nos tranquilizam

diante dos perigos globais que enfrentamos, cimentam a alienação do ser humano. Assim

utilizam sutilmente o poder do medo, que o ser humano tem pela própria vida, a favor

daqueles que, também iludidos, se beneficiam à custa dos demais.93

Em consequência disso, o ser humano se enrosca em si mesmo. Tal autoinsistência

“tem a estrutura de morte e de sua camuflagem por mentira e novamente de morte para que a

mentira não seja descoberta”.94 Toda violência é fruto desse círculo vicioso que leva a

autojustificação de tal forma que sempre se acusa o outro (Gn 3,9-13 e Mt 12,24-27). Pela

pregação cristã, esse dinamismo não é desculpado, mas desmascarado. Não se trata de um

apelo meramente moral,95 mas sim de recordar ao ser humano a sua capacidade de distinguir o

bem do mal (sua “responsabilidade ética” [sittliche Ansprechbarkeit]). Esse é o “nexo”

[Anknüpfungspunkt] que a mensagem cristã pressupõe no ser humano e sem o qual ela e a fé

não poderiam ser entendidas em sua pretensão libertadora.

No ser dominado pelo poder do medo da morte consiste a “necessidade de redenção”

[Erlösungsbedürftigkeit], do ser humano. Pois, por si só, ele não pode chegar a uma certeza

maior que sua própria morte:

A redenção de um tal ser-entregue-à-morte sem esperança, segundo a carta aos Hebreus, consiste na mudança radical de sentido da morte inaugurada por Cristo à fé, tal como somente é possível para Deus. Pela morte de Cristo a morte deixou de ser aquele muro escuro que separa o homem de Deus. Desse modo, para a fé, não é mais a morte a palavra última e definitiva sobre o ser humano, e sim Deus. A fé como a autocomunicação de Deus é uma nova certeza que ela mesma relativiza a certeza incondicional da morte, e por isso também liberta da coerção de buscar realização terrena a absolutamente qualquer custo. Doravante pecado só é possível por abstração da fé.96

92 Cf. ROSSI, LUIZ ALEXANDRE S. Messianismo e modernidade. Repensando o messianismo a partir das vítimas.

São Paulo: Paulus, 2002; cf. tb. KNAUER. Die Dollaraufschrift. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/greenback.pdf>. Acesso em: 19 out. 2009, e IDEM. Der Glaube, 23. O autor, nesse contexto, faz referência à interpretação de Lutero ao primeiro mandamento.

93 Cf. FREIRE, PAULO. Pedagogia do oprimido. 5.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, 29-31. Além da pertinência básica da análise antropológica de FREIRE da situação de injustiça social ainda hoje, o autor impressiona por muitos paralelos por assim dizer “anônimos” a uma teologia-da-palavra (cf. KOSUBEK, MICHAEL. Mit Armen Von Gott reden: Befreiende Evangelisierung in Fortaleza und im Kaiserlei. Monografia de graduação. Entegue à Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen, Fankfurt a.M./Alemanha em nov. 1993 [não publicada]).

94 KNAUER. Der Glaube, 22. O autor cita Jo 8,44 no contexto. 95 Cf. IDEM. Unseren Glauben, 137. 96 KNAUER. Erbsünde als Todesverfallenheit, 156.

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O confronto com a mensagem cristã por meio da prática de sua proclamação (na sua

dimensão profética) tem a força de desiludir o ser humano, desvendar suas máscaras de medo

porque sua palavra transmite uma certeza maior do que a morte. É importante diferenciar bem

com KNAUER em que consiste de fato essa libertação: somos libertados do poder do medo a

respeito de nós próprios, porque a “fé não tira o medo, mas o destitui de poder

[entmachtet]”;97 ele deixa de ter domínio sobre nós. Essa afirmação, no entanto, exige como

seu pressuposto que Deus seja, de fato, “o poderoso em tudo”.98 Dessa maneira a mensagem

cristã pretende nos levar à nossa verdadeira humanidade que consiste em “fazer jus à

realidade” agindo de acordo com suas exigências, o que é mediado pela nossa consciência.99

Mas isso não quer logo dizer que deixamos de sentir medo como mostra a experiência

do autor com a criança. Se a fé nos capacita e assim encoraja a agir humanamente, então, em

meio a um ambiente marcado pela injustiça, tal engajamento em favor da justiça pode

acarretar até mais medo do que se sentia antes:

É possível que um cristão seja ameaçado justamente por causa de sua liberdade de tal forma que talvez seja metido em medo mais do que outros. Mas a fé, então, é uma certeza ainda maior que faz persistir. Assim, a fé destitui o medo; a ele não confere mais a última palavra. A fé faz “preparar-se para o medo” [angsbereit]. Tem-se a coragem de se expor a situações que causam medo.100

Em todo caso, na fé a morte deixa de dizer a última palavra sobre a nossa existência.

Esta emerge, então, em sua verdadeira originalidade que consiste no nosso ser assumido no

amor do Pai ao Filho que é o Espírito Santo, nosso “ser criado em Cristo”, desde o início de

nossa vida. Para preservar sua incondicionalidade, esse “saber-se amado” há de ser

comunicado ao ser humano de fora do mundo, há de ser “sobredito” [dazugesagt]101 a ele por

meio de uma palavra cuja verdade não se confunda com as certezas sempre ambíguas ou

penúltimas e que tem sua medida sempre e apenas no próprio mundo.

97 KNAUER. Kurze Einfürung in den christlichen Glauben. 98 “Der in allem Mächtige“. KNAUER. Der Glaube, 32 e IDEM. Unseren Glauben, 14. O termo é básico e ocorre

sempre, também na forma adverbial, porque se distingue de uma compreensão meramente potencial da onipotência divina. Seu significado se entende somente numa concepção relacional (cf. cap. II/4.5).

99 Cf. KNAUER. Der Glaube, 88; cf. tb. IDEM. Kurze Einführung in den christlichen Glauben. 100 KNAUER. Unseren Glauben, 137. 101 KNAUER. Der Glaube, 207; cf. tb. IDEM. Kurze Einführung in den christlichen Glauben. O termo é utilizado

pelo autor no sentido da Palavra de Deus advir ao ser humano “de fora” de sua condição criatural (cf. IDEM. Der Glaube, 224) e justamente não no sentido de um “acrescentar para completar” como é seu uso coloquial. Pois não se pode afirmar de um lado “que a fé advém de fora de nós” (IDEM. Unseren Glauben, 13) sem que houvesse a condição ontológica anterior de poder ecoar (ser ouvido no sentido de ser acolhido) dentro do ser humano pelo fato (de fé) de seu “ser criado em Cristo”.

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3 CONCLUSÃO: RESUMO E PONTO DE PARTIDA METODOLÓGICO PARA A COMPREENSÃO DA FÉ CRISTÃ

À guisa de resumo, apresenta-se, antes, a correlação intrínseca de Deus, palavra e fé

bastante ressaltada na obra de KNAUER (3.1). Dessa correlação resulta o ponto de partida para

a compreensão sistemática da fé pelo qual o autor define praticamente toda a questão

metodológica de uma maneira muito simples (3.2).

3.1 Resumo: a correlação “Deus – palavra – fé”

Introduzimos o autor como um teólogo na contramão da teologia fundamental clássica

e de uma tendência forte na teologia contemporânea que, em sua reflexão, parte da

experiência religiosa como referência para saber de Deus. Ao contrário delas, KNAUER

concebe, como categoria fundamental na compreensão da fé, a mensagem cristã em sua

afirmação de ser “palavra de Deus”. Mais ainda, é intuição própria do autor considerar a

mensagem cristã sempre e principalmente (porque epistemologicamente) no caminho da

contramão da “autocompreensão” [Selbstverständnis] convencional do ser humano. Em sua

pretensão de ser literalmente “palavra” que vem “de Deus” (porque afirma que somente nela

Deus vem à palavra), ela vê a si mesma como o “vinho novo”. Este, para ser preservado

naquilo que pretende ser enquanto autocomunicação de Deus, exige “odres novos”, uma

“conversão da pré-compreensão” humana. Tal compreensão nova a mensagem cristã mesma

traz consigo.

Esta pré-compreensão, assim é de se temer, desde sempre representa um dos obstáculos maiores para a compreensibilidade [Verstehbarkeit] e a transmissão da fé cristã. A história da recepção do cristianismo emerge em grande parte como a história da tentativa de sempre de novo despejar o vinho novo nos odres velhos, custe o que custar. [...] Mas na fé em Jesus Cristo se trata de conversão que abrange tudo, também a própria pré-compreensão. Somente a partir daí a mensagem cristã pode ter efeito redentor e libertador.102

No intuito de familiarizar o leitor previamente com a compreensão que KNAUER tem

da fé cristã de forma geral, procurou-se vislumbrar algumas implicações principais. Na fé se

trata do ser incondicional e assim gratuitamente amado por Deus. Por isso, sua certeza

[Gewissheit] de destituir de poder o medo da morte não pode ter sua “medida” na condição

humana e na do mundo em sua principal “questionabilidade” [Fraglichkeit]. Uma certeza

102 KNAUER. „Wort Gottes” als Grundkategorie.

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absoluta não pode ser “legível no mundo” [an der Welt ablesbar].103 Ninguém a pode ter a

partir de si mesma ou inventar por conta própria. Ela precisa ser comunicada em uma palavra.

Ela provém do “ouvir”.

Que na fé se trata unicamente de nossa comunhão com Deus só é compreensível se,

antes, este vier à linguagem por meio da proclamação da mensagem cristã que se afirma como

palavra de Deus. “Mas só pelo fato de que esta mensagem faz tal afirmação ainda não é

conhecida sua verdade”104 – justamente porque a mensagem mesma alega não ser trivialmente

[auto]evidente. Por outro lado, “se esta palavra é verdadeira, só se pode tratar de uma palavra

de Deus”.105 Essa afirmação repõe a problemática do termo: quem deve ser “Deus”?

Essa pergunta por “Deus”, por sua vez, também não pode ser respondida previamente

por referência sem mais ao que emerge como trivialmente evidente ao ser humano. Por conta

própria, o ser humano só chega a uma caricatura de Deus, nunca a Deus. Se a certeza

inabalável da fé só pode ser garantida por referência desta a Deus, então, em Deus há de se

tratar de uma realidade que seja inconfundível com a realidade mundana. De fato, a

mensagem cristã afirma Deus ser “incompreensível”.106 Então, também a questão de Deus,

apesar da mensagem cristã pressupor ser objeto da razão, não pode ser respondida

coerentemente senão por uma ontologia relacional, unicamente capaz de salvaguardar tal

“incompreensibilidade” de Deus. Parece que de Deus só se pode falar corretamente à medida

que ele vier à palavra, fizer-se linguagem. Daí que surge a pergunta como atribuir uma

palavra a Deus se este não pode ser confundido com uma realidade mundana? De fato, a

mensagem cristã afirma uma relação de Deus ao mundo por referência a uma relação anterior,

eterna, de Deus a Deus, do Pai ao Filho na qual o mundo é assumido.

Em todo caso se manifesta previamente a correlação intrínseca entre Deus, palavra e fé

pelo fato de que nem Deus, nem a palavra enquanto sua, e nem a fé se evidenciam por aquilo

que o ser humano pode saber por conta própria. Daí surge a pergunta como evitar o fideísmo

se a fé parece implicar não ter pressuposto algum acessível à razão humana?

103 KNAUER. Der Glaube, 331; cf. tb. IDEM. Unseren Glauben, 29. 104 IBID., 26 nota 14. 105 GÄDE, GERHARD. Christus in den Religionen. Der christliche Glaube und die Wahrheit der Religionen.

Paderborn: Schöningh, 2003, 109. Em sua abordagem, fiel ao pensamento de KNAUER, o autor parte na apresentação da correlação intrínseca com a sequência Fé – Palavra – Deus, para chegar à sequência Deus – Palavra – Fé, como KNAUER a apresenta de acordo com EBELING (cf. KNAUER. Der Glaube, 205ss). De qualquer jeito, importa ressaltar que o ponto de partida não é a fé em sua certeza pela comunhão com Deus, e sim a palavra da transmissão da fé em sua dimensão histórica, portanto, acessível à razão.

106 Disso resulta, para KNAUER (com referência a SANTO ANSELMO), uma “regra fundamental” nas afirmações de Deus: elas hão de ser compreensíveis num sentido “insuperável” [unüberbietbar] (cf. IDEM. Der Glaube, 18). Ela é apresentada como critério com mais detalhe no cap. II/1.

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3.2 O ponto de partida metodológico

Somente na fé a fé pode ser acolhida em sua verdade de o ser humano saber-se amado

por Deus. “Em contrapartida, a fé deixa de ser fé quando sua verdade pode ser conhecida

diferentemente do que somente pela fé”.107 Mas o que diferencia a fé de uma ilusão ou

projeção (e assim da acusação de fideísmo) é que a fé só pode ser salvaguardada nesta sua

particularidade porque se refere à palavra (e assim ao “ouvir”) pela qual é mediada e na qual

refere a Deus. KNAUER descarta, logo de início, a opinião de que “se possa, por meio da mera

razão, filosofar-se para dentro da fé”.108

Se, dessa forma, qualquer via apriorística é excluída para o conhecimento de sua

verdade como ponto de partida para a compreensão da fé, há de se remontar simplesmente à

via aposteriori que é o encontro histórico com a mensagem cristã. Este ponto de partida é

aposteriori porque parte de um dado inteiramente acessível à razão: a historicidade da

mensagem cristã em sua afirmação de ser palavra de Deus. Isso significa dizer também que,

como conditio sine qua non para a sua “razoabilidade” [Vernunftgemäßheit] com a razão

humana, ela refere ao seu caráter histórico de transmissão da fé.

Toda tentativa de entender a fé a partir de uma iniciativa propriamente humana, no

sentido de um esforço anterior à escuta da mensagem cristã, apenas confirma o ser humano

em sua tendência de enquadrar todas as coisas em seu próprio horizonte de conhecimento.

Essa realidade, que abrange o próprio processo de compreender a fé, somente por meio do

confronto com a mensagem cristã, vem à tona. E, somente na retrospectiva da acolhida da

palavra na fé, sua alternativa é conhecida como verdadeira.

Por conseguinte, também o ponto de partida metodológico, unicamente adequado para

a reflexão teológica, há de ser a consideração da mensagem cristã a partir de sua facticidade

histórica que é a prática de sua proclamação. Assim, KNAUER explica que a tentativa de

107 KNAUER. Verantwortung des Glaubens, V. As diversas objeções contra o pensamento relacional de KNAUER,

assim nos parece, se concentram na contestação da particular fidedignidade da fé destacada, levada a cabo por ele, e daí da relação assimétrica da fé com a razão, porque esta não consegue evidenciar a verdade da fé no seu campo enquanto a fé pretende abrangê-la como palavra última, declarando que isso já é assunto de fé. Isso logo se manifestou mediante debate público entre WALTER KERN e KNAUER por ocasião da recensão de KERN da tese doutoral de KNAUER e de sua contra-resposta: KERN, WALTER; KNAUER, PETER. “Zur Frage der Glaubwürdigkeit der christlichen Offenbarung. Eine Diskussion zwischen Walter Kern SJ, Insbruck und Peter Knauer SJ, Frankfurt/M.”. In: ZKTh (1971) 418-436 (recensão de KERN: 418-428; resposta de KNAUER: 429-436). As acusações são diversas (fideísmo, aporia por argumentação tautológica, abstração da realidade etc.). KNAUER mesmo reconduz as reações por vezes polêmicas e raivosas em debates à indisponibilidade desses teólogos de revisar criticamente seu próprio discurso (cf. IDEM. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 65.

108 KNAUER. Fundamentaltheologische Erhellung, 183.

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elucidar a mensagem cristã a outra pessoa há de começar por demonstrar que o ponto de

partida não é o outro sem mais, e sim apenas porque é um desde já interpelado pela

mensagem cristã.

Assim vale dizer que toda teologia cristã e particularmente a teologia fundamental pode começar adequadamente [sachgemäß] somente pelo fato de que se é confrontado faticamente desde já com o anúncio cristão. Qualquer outra tentativa significaria a programação prévia de mal-entendidos.

109

Por meio do encontro histórico com a mensagem cristã, seu interlocutor é confrontado

com sua pretensão de verdade de ser palavra de Deus. De acordo com KNAUER, isso requer de

seu ouvinte, como pressuposto metodológico, apenas a capacidade de linguagem, de “ouvir”:

“Do lado da razão apenas se pressupõe que não possam ser admitidas contradições lógicas

quaisquer”.110 Por “razão” KNAUER entende justamente o “trato [Umgang] responsável com a

própria realidade no sentido mais abrangente”,111 contrariando assim uma compreensão

reducionista porque só cognitivista.

No sentido da ciência, isso implica princípios do pensar como o da não-contradição

que, por natureza, levantam pretensão de validade universal. Mas, em artigo recente, KNAUER

alega “a pretensão de universalidade da razão consiste menos em quaisquer princípios

universais do pensar do que antes primeiramente no fato de que universalmente para seu uso

são necessários atenção e cautela”.112

Os demais pressupostos para a fé na razão humana, numa doutrina das praeambula

fidei reformulada, como KNAUER explicita no reconhecimento da criaturalidade do ser

humano e sua “responsabilidade ética”,113 não formam aqui o ponto de partida para a

compreensão da fé. Apesar de serem acessíveis à razão independentemente da fé, são

compreendidos enquanto tais apenas em subsequência ao encontro com a mensagem cristã.

Pressupõe-se, em resumo, apenas o fato de ter sido confrontado com a mensagem

cristã à qual apenas se pode dirigir a pergunta de compreensão se se aceita previamente a

exigência da lógica formal vinculada à linguagem humana: não se admite proferimentos

autocontraditórios. Dessa maneira, o autor reforça o caráter universal da proclamação da

109 KNAUER. „Natürliche Gotteserkenntnis” (grifo do autor). 110 KNAUER. Der Glaube, 17. 111 KNAUER. Was die öffentliche Prüfung aushalten kann, 19. Trata-se, nesse contexto sempre da “razão natural”

[natürliche Vernunft] ou “mera razão” [blosse Vernunft] à medida que KNAUER refere ao conhecimento dela em abstração do conhecimento da fé.

112 KNAUER. “Vernunft – Naturwissenschaften – christlicher Glaube“. In: Studia Bobolanum 4 (2008) 21. 113 Cf. KNAUER. Der Glaube, 337.

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mensagem cristã, que, em função da salvação de todos, pede ouvido a todos.

Metodologicamente falando, isso significa dizer que KNAUER se põe na perspectiva de quem

se defronta com a mensagem cristã pela primeira vez.114 O autor ainda ressalta que, em função

da compreensibilidade universal da fé, é requisito para o teólogo usar uma linguagem simples.

O desenvolvimento sistemático da compreensão da fé se volta, portanto, ao termo

“palavra de Deus”, apontado como em si problemático senão contraditório. “Palavra” e

“Deus” surgem como categorias aparentemente incompatíveis. Como é a própria mensagem

cristã que provoca essa percepção quando retamente apresentada, os passos metodológicos

seguem sua exigência de compreensão: quem diz ter palavra de Deus há de se dar conta antes

de quem deve ser “Deus” do qual pretende ter uma palavra (cap. II). Somente depois, levanta-

se a pergunta: como se pode atribuir uma “palavra” a Deus (cap. III).

114 Já SANTO ANSELMO desenvolve, no Proslogion e também em Cur Deus homo, sua argumentação sola

ratione a partir da perspectiva de um ateu fictício. GÄDE, GERHARD. “Die Rolle der ‚ratio‘ bei der Glaubensveratwortung im Denken Anselms von Canterbury”. In: BROSE, THOMAS (Org.). Religionsphilosophie. Europäische Denker zwischen philosophischer Theologie und Religionskritik. Würzburg: Echter, 9-36, mostra por referência ao debate com GAUNILO DE MARMOUTIERS que ANSELMO assim encarou a possibilidade de pensar a não-existência de Deus de forma consequente e metódica por remontar ao método dialógico inclusive. Knauer diferencia mais ainda entre “três tempos” quanto à condição previa do ser humano (1) antes de ser confrontado com a mensagem cristã, (2) antes de concordar com a fé e (3) depois de acolher a fé como verdadeira (cf. IDEM. Der Glaube, 341ss, especialmente 344).

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CAPÍTULO II

O SIGNIFICADO DA PALAVRA “DEUS”: RECONHECER O SER CRIADO DO MUNDO

POR MEIO DE UMA CONCEPÇÃO RELACIONAL DO SER

INTRODUÇÃO

No intuito de ser entendida – e isso significa sempre de forma coerente e assim

responsável –, a fé se remete à mensagem cristã como seu fundamento. Esta só pode ser

fundementada perante e em consonância com a razão mesmo se não se evidencia nela, nem

sequer pode ser projetada por ela. Também na epocalidade moderna e pós-moderna “razão”

sempre quer dizer “razão autônoma” e por isso crítica.1 Em todo caso, sempre há de se partir

do evento histórico da proclamação cristã. Pelo confronto fático com ela, toma-se

conhecimento (empiricamente constatável) de sua pretensão de verdade que é de ser palavra

de Deus. Doravante, entender a fé significa fundamentar tal pretensão de validade. Quem

afirma ter uma palavra que vem de Deus, consequentemente, há de prestar conta

primeiramente de como entende o termo “Deus”.

Em contrapartida à tendência própria (“inata”) do ser humano de enquadrar o termo

“Deus” nas categorias de compreensão que lhe são próprias (as da linguagem humana em seu

uso referente à sua realidade mundana), a mensagem cristã alerta para o fato de que Deus é

“incompreensível”. Falar de Deus “coerente” ou “adequadamente”2 rompe os nossos

1 Cf. a respeito das razões de fundo do surgimento da “razão moderna” sempre referida de forma

representativa à Crítica da razão pura de IMMANUEL KANT e que também formam a plataforma para a teologia moderna OLIVEIRA, MANFREDO ARAÚJO DE. Filosofia transcendental e Religião. Ensaio sobre a Filosofia da Religião em Karl Rahner. São Paulo: Loyola, 1984, 9s e todo o cap. I dessa obra. Prescindimos, neste trabalho, de uma apresentação mais explícita de toda a reviravolta antropocêntrica da modernidade que deslocou o pensamento sobre Deus do cosmo à subjetividade, porque nada de novo acrescenta à problemática da “questão de Deus” da forma como é levantada por KNAUER. Este contempla em sua crítica ao pensamento metafísico-substancialista todas as abordagens incapazes de dar conta da palavra “Deus” por partirem de pressupostos falsos. Entretanto, parece-nos que os dois autores estão de acordo quanto ao reconhecimento da autonomia da razão humana como instância última de juízo e de conhecimento próprios do ser humano. Cf. KNAUER. Der Glaube, 386ss, especialmente 387, nota 619 e 391, nota 624. Cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 933.968. Nesse contexto, cabe lembrar que o ateísmo moderno para KNAUER não forma uma referência quase que apologética como teologia latino-americana frequentemente supunha ser o “horizonte” das discussões da teologia européia. Antes, KNAUER vê no fenômeno do ateísmo um espelho crítico para todas aquelas caricaturas de Deus que o próprio cristianismo, ao longo de sua história, criou (cf. sua referência a GS 19 em Der Glaube, 71, nota 78).

2 Os dois termos são cambiáveis porque “adequado” (sachgemäß) para KNAUER não quer dizer “mais ou menos cabível”, mas precisamente “livre de contradição” e assim “de acordo com a pretensão de verdade” da mensagem crista (não evidente à razão, autoevidente na fé) em função da fundamentação da fé. Neste contexto é unicamente “adequado” (1) levantar a “pergunta por Deus” no contexto da proclamação cristã histórica e (2) como questão primeira a ser feita em função da compreensão de “palavra de Deus” (cf., p. ex.,

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esquemas de compreensão. Como já assinalado no capítulo anterior, esta exige uma conversão

também no pensar (Mc 2,22). Ela se manifesta numa concepção relacional do ser que introduz

um uso inédito da linguagem humana.3

Parece evidente que “de Deus” não se pode falar da mesma forma como se fala das

coisas do mundo. Pois aparentemente as religiões, ao venerar cada qual o seu “deus”,

concebem-no como uma realidade suprema, superior à nossa, que ultrapassa nossa capacidade

de apreensão.4 Isso, porém, geralmente serve de pretexto para não se defrontar com o

problema de como falar de Deus coerentemente, o problema da “inconcebilidade” de Deus.

Ou logo se faz referência à possibilidade de revelação ou se procura esquivar do confronto

alegando que se trate de “mistério”.5

Por essa razão, o ponto de partida metodológico para a fundamentação da mensagem

cristã há de ser o simples encontro histórico com ela. Enfim, é ela mesma que adverte que sua

verdade, a autocomunicação de Deus por meio de uma palavra humana, seja trivialmente

compreensível ou evidenciável pela razão humana em seu próprio horizonte de conhecimento.

Quaisquer outras concepções metodológicas de se iniciar a fundamentação teológica são

comprovadamente secundárias e se justificam apenas em consequência daquela aqui

apresentada.6

IDEM. Hermeneutische Fundamentaltheologie, 73; IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 182; IDEM. Der Heilige Geist – Garant der Wahrheit und Einheit, 3; cf. tb. IDEM. „Natürliche Gotteserkenntnis”, e IDEM. Der Glaube, 20).

3 A respeito do discurso análogo cf. II/4. Desde já seja esclarecido que não basta apenas constatar que a linguagem da fé é sempre analógica. Há de se compreender o discurso análogo “adequadamente” de forma relacional e não como uma fala inevitavelmente insuficiente e parcial de Deus como nos advém desde a “teologia fundamental clássica” (cf. KNAUER. Hermeneutische Fundamentaltheologie, 73).

4 Cf. KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 313. Há de se distinguir entre o que denominamos de “Deus” e o que pode apenas ser o nome por um ídolo, pois “nem tudo que se denomina de ‘deus’ é Deus” (KNAUER. Dollaraufschrift. Disponível em: <www.jesuiten.org/peter.knauer/greenback.pdf>. Acesso em: 26 out. 2009). Nesse sentido “deus” é uma “fórmula vazia” [Leerformel]. Com referência a LUTERO (seu comentário ao primeiro mandamento do Decálogo em seu “Catecismo Maior” de 1529) e EBELING (cf. tb. KNAUER. Der Glaube, 90, nota 105), o autor explica que é inevitável cada um ter seu ‘deus’. Por um ‘deus’ se entende aquilo a que se agarra a todo custo, e a que se refugia em situação de emergência, porque dele se espera proteção ou garantia existenciais. O critério de uma fala coerente de Deus coincide com o critério de distinção entre “Deus” e “deus” (um mero ídolo). Nesse ponto consiste um elo de diálogo com a teologia latino-americana a respeito de sua reflexão sobre idolatria, mesmo se alguns de seus representantes não vinculam os dois eixos (cf., p.ex., GUTIÉRREZ, GUSTAVO. O Deus da vida. São Paulo: Loyola, 75).

5 Cf. KNAUER. Hermeneutische Fundamentaltheologie, 73s. Quanto à concepção corriqueira de mistério como algo incompreensível, até enigmático, é o oposto da compreensão cristã de mistério tal como KNAUER a apresenta referindo também a JÜNGEL, EBERHARD, Gott als Geheimnis der Welt, 341. Apud: KNAUER. Der Glaube, 114 e III/1 deste trabalho.

6 Cf. a crítica de KNAUER à teologia fundamental clássica com sua concepção da doutrina das praeambula fidei (à base de seu consentimento com a crítica de EBELING) em IDEM. Verantwortung des Glaubens, 1-4.

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Através deste começo gostaria de contradizer à opinião que uma teologia fundamental haja de principiar adequadamente com o fato que o ser humano pergunta por uma explicação do mundo a partir de si mesmo e nisso se defronta com Deus, e então chegue a pensar que esse Deus possa ter se revelado e por isso seja necessário olhar por uma eventual revelação.7

KNAUER alega, por referência à teologia fundamental clássica, que (ainda hoje)

geralmente se entra na reflexão teológica logo “com o pé esquerdo” ou irreparavelmente

errado, pressupondo, de alguma forma, a evidência do fato ou da possibilidade de uma

revelação divina. Supõe-se que uma vez evidenciada a existência de Deus, a possibilidade,

plausibilidade ou até a probabilidade de Deus se revelar não seria mais negável.8

Desse jeito, porém, logo se comprometeu todo projeto de fundamentação teológica da

fé daí em diante, porque já se corromperam “razoabilidade” [Vernunftgemäßheit] e

“fidedignidade” [Glaubenswürdigkeit] da própria mensagem cristã: para que Deus precisaria

se revelar ainda, se o ser humano já pode chegar a conhecer tal possibilidade por conta

própria? Ao contrário, o ponto de partida histórico,9 averiguável pela razão, é a única garantia

de a mensagem cristã poder dar conta da particularidade de sua verdade que é mediada pela

história, pela linguagem humana, mas não se origina nela. Pois, já a palavra “Deus”, de

imediato, não corresponde a nenhuma experiência empiricamente comprovável. E, caso isso

seja afirmado mesmo assim, a própria mensagem cristã recorre à razão humana para contestá-

lo. Daí que surge com necessidade lógica a primeira pergunta a ser tratada: o significado da

palavra “Deus”.

Esta pergunta há de ser logicamente colocada antes do que aquela donde o outro sabe que ele realmente tem palavra de Deus. E ela há de preceder à pergunta pela existência desse Deus. Pois antes que eu possa perguntar se Deus de fato existe, tenho que chegar a um acordo sobre quem ele deve ser. Portanto, irei interrogar primordialmente a mensagem cristã mesma pela sua compreensão de Deus.10

7 KNAUER. Der Heilige Geist – Garant der Wahrheit und Einheit, 3. Nesse sentido, começar a fundamentação

da fé pela pergunta por quem é “Deus” é consequência da percepção de KNAUER que é constitutivo para a pertinência desta pergunta, bem como para sua resposta “adequada” o evento histórico da proclamação da mensagem cristã com sua pretensão de revelação.

8 KNAUER. Glaubensbegründung heute, 202s. 9 Nisso KNAUER defende uma metodologia consequentemente aposteriori. Para tal, o autor se inspira na

importância da “historicidade” [Geschichtlichkeit] da fé em EBELING. A mensagem cristã está irremediavelmente referida à existência concreta do ser humano e de sua realidade mundana, de tal forma que não lhe é permitido partir de algum outro pressuposto.

10 KNAUER. „Wort Gottes“ als Grundkategorie des Christentums. A citação é paradigmática pela abordagem de KNAUER ao respeito. E igualmente notória é a resistência de tantos interlocutores que ignoram a anterioridade lógica desta pergunta de partida de toda fundamentação.

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Aqui vale ressaltar, em analogia ao anteriormente dito sobre o ponto de partida geral

da reflexão teológica fundamental (cap. I), que primordialmente o termo “Deus” escapa de

uma acepção trivial. Também no decorrer da fundamentação da palavra de Deus diante do

“fórum” da razão humana, a mensagem cristã reclama ser perguntada antes de se projetar nela

as categorias nossas, sejam elas antropológicas, históricas ou filosóficas. Estas são sempre e

inescapavelmente “pré-conceitos” que moldam nossas “pré-compreensões”. Estas enquadram

a mensagem cristã em horizontes hermenêuticos rompidos por ela desde seu princípio. Por

essa razão, segundo KNAUER, somente se levanta a pergunta por “Deus” de forma adequada à

medida do ser confrontado com a mensagem cristã (sua pretensão de verdade), pois “a uma

imagem clarificada [geläutert] de Deus originalmente se chegou apenas por meio da

revelação”.11

O esforço intelectual requerido em seguida acontece em função da distinção

fundamental de “uma ordem dupla de conhecimento”, razão natural e fé divina, como

KNAUER explicita noutro contexto referindo ao Vaticano I (DH 3015).12 O Concílio afirma

que as duas não se distinguem apenas no “princípio” de conhecimento e sim também no seu

“objeto”. Enquanto a razão está voltada à realidade do mundo em sua criaturalidade natural, a

fé (por confiar no sentido da auoentrega constituída por Deus e por isso sobrenatural) chega a

conhecer a autocomunicação de Deus a este mesmo mundo, “para crermos mistérios

encobertos em Deus, os quais não chegariam ao conhecimento se não fossem revelados” (DH

3015).

Antecipa-se sua referência aqui para alertar sobre a distinção fundamental

correspondente entre a fala da palavra “Deus” e da fala de “palavra de Deus”. A primeira

acontece em função da segunda e é por ela pressuposta: sem esclarecer como a mensagem

cristã entende o termo “Deus”, é impossível conceber sua pretensão de verdade própria de

“palavra de Deus”. Pois ocorre que já a palavra “Deus” encerra em si aparente impedimento

de seu uso coerente que é a afirmação escriturística e tradicional de sua “inconcebilidade”

11 KNAUER. Dialektik und Relation, 54. Na nota de rodapé n. 1 o autor interpreta o texto do Vaticano I a

respeito da necessidade da revelação (DH 3005) nesse sentido: chegar ao conhecimento da existência de Deus junto a outras verdades metafísicas não é principalmente inacessível à razão, “mas de fato não podiam ser alcançadas sem influência da revelação”. Cf. tb. IDEM. Welchen Sinn hat das Wort “Gott“ im christlichen Glauben?, 322. Nota-se que o termo “revelação“ aqui é empregado no sentido da mera facticidade da pregação cristã e não no sentido do reconhecimento de sua verdade de ser revelação divina! Nos escritos posteriores KNAUER fala quase exclusivamente da pregação ou proclamação cristã, remetendo ao seu caráter histórico perceptível independentemente da fé.

12 Cf. KNAUER. Der Glaube, 361, no contexto da abordagem sobre a significância de milagres para a corroboração da fé; cf. tb. IBID. 141. 211; com mais detalhes em IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 856-858.

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(II/1). Em resposta, a própria mensagem cristã se refere à ordem do conhecimento da razão

natural, no sentido do reconhecimento de toda realidade nossa em seu ser criado,

compreensível de forma consistente somente por meio de uma concepção relacional do ser

(II/2). Enquanto afirmação da razão, essa há de ser principalmente comprovável. Pois apenas

depois de entender a proposição da criaturalidade do mundo em seu ser referido a Deus, pode-

se perguntar pela necessidade de explicar o mundo (II/3).13 A reformulação do significado do

nosso ser criado em resposta a quem é Deus pela “ontologia relacional” implica o uso análogo

da linguagem humana de forma correspondentemente inédita, uma analogia

consequentemente unilateral (II/4). Como resultado do itinerário reflexivo na contramão da

corrente principal da teologia (não só) contemporânea, consta a conclusão mais provocativa

ainda, de que tal conhecimento de “Deus” por meio da razão humana, na verdade, emerge, à

primeira vista, como argumento maior contra a fala de “palavra de Deus”. Mesmo se tal

constatação não seja confortável, porque Deus é conhecido apenas no modo de sua ausência, a

mensagem cristã há de pressupor todo esse horizonte criatural para poder explicar-se à base

deste como “Evangelho”, o ser abordado do ser humano amorosamente por Deus por meio de

sua palavra (II/5).

1 PORQUE A PALAVRA “DEUS” É PROBLEMÁTICA: A MENSAGEM CRISTÃ AFIRMA DEUS SER INCONCEBÍVEL

Antes mesmo de tratar da questão se Deus existe e como se pode ter uma palavra

dele, é preciso que se esclareça o que a mensagem cristã entende pelo conceito “Deus”.

“Seria, na sequência do pensar, um erro grave que tudo escurece se se quisesse perguntar

primeiro se ele [Deus] de fato existe”.14 Um conceito de Deus é necessário em função da

razoabilidade da palavra de Deus. Isso significa dizer que, anterior à acolhida da mensagem

13 Essa “tese da criaturalidade” de KNAUER, especialmente a afirmação de que é comprovável, se tornou no

decorrer de seu magistério a que mais provocou rejeição, inclusive bastante polêmica, na comunidade acadêmica teológica. No entanto, para ela, o autor refere-se explicitamente à afirmação do CONCÍLIO

VATICANO I (DH 3004): “A mesma santa mãe Igreja mantém e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido seguramente pela luz da razão natural e por meio das coisas criadas; ‘pois o invisível nele é concebido pelo intelecto desde a criação do mundo por tudo que é feito’ [Rm 1,20]” (tradução nossa sob consulta da tradução portuguesa do DENZINGER-HÜNERMANN: cf. DENZINGER, HEINRICH. Compendio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. Tradução, com base na 40.ed. alemã (2005), aos cuidados de PETER HÜNERMANN, por Jose Marino Luz e Johan Konings. São Paulo: Loyola, 2007. Cf. tb. KNAUER. Der Glaube, 28.

14 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbestimmung „Gott ...“, 313.

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cristã pela fé, ela deve prestar conta do significado do termo “Deus”. Se isso não fosse

possível de forma consistente, a fé já não mereceria mais credibilidade nenhuma, e a busca de

fundamentá-la já haveria de ser abortada nesse ponto.

Não se pode pretender falar de “Deus” sem ter clareza do significado do termo. E ter

clareza do termo exige poder compreender seu sentido anterior à acolhida crente da fé, a

“adesão à fé” [Glaubenszustimmung]. Sem resposta “todo falar piedoso a mais fica solto no

ar”.15 É dessa maneira que a teologia, na compreensão da questão de “Deus”, encontra-se

diante de um dilema.16

Mais uma vez há de se ressaltar com KNAUER que é a própria mensagem cristã que

problematiza o termo “Deus”.17 Pois, no interior de sua tradição escriturística e magisterial,

sempre se defendeu que Deus “habita uma luz inacessível” (1Tm 6,16), que “ninguém jamais

viu Deus” (Jo 1,18 e o.), que, por isso, é “incompreensível” – o que quer dizer

“inconcebível”,18 e até “inefável”.19 Toda tradição judaico-cristã, inclusive no Novo

Testamento, na patrística e na escolástica (ao menos), sempre se preocupou em preservar o ser

absoluto de Deus de forma mais explícita. Considerar Deus como inconcebível significa para

KNAUER que ele não pode ser subordinado, submetido ou “sujeito” às categorias (sempre

linguísticas, por isso conceituais) pelas quais abordamos a nossa realidade: “Deus [...] não se 15 KNAUER. “Wort Gottes” als Grundkategorie, 276. 16 Nas publicações teológicas mais recentes constata-se certa percepção do problema metodológico-

epistemológico, mas que não é levada a cabo no desenvolvimento da reflexão teológica como, p.ex., em RUBIO, ALFONSO GARCÍA, Elementos de Antropologia Teológica. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2004, 41: “Deus não pode ser medido ou definido mediante os nossos conceitos e imagens!”. No entanto, esta pista aberta pelo autor logo é deixada de lado ao ater-se apenas ao “conceito cristão” que, segundo ele, supõe a evidência da autorevelação de Deus em Jesus Cristo.

17 A teologia levanta a “questão de Deus” a partir do confronto fático com a mensagem cristã no contexto de sua pretensão de verdade de ser palavra de Deus. Isto leva à crítica da especulação filosófica sobre Deus (cf. KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 70), seja no âmbito teológico seja propriamente filosófico. Essa crítica, longe de ignorar sua importância, consiste basicamente em contestar (1) que a filosofia possa ter, por conta própria, a última palavra de Deus e assim (2) responder definitivamente às questões últimas a respeito do mundo e do ser humano (cf. IDEM. Verantwortung des Glaubens, 136s). À parte do confronto com a mensagem cristã a pergunta por Deus não pode ser levantada coerentemente a não ser no sentido de sua “questionabilidade” (IBID., 27).

18 Em seguida, traduz-se o termo “unbegreiflich” por “inconcebível”, para vinculá-lo à raiz etimológica de “conceito” [Begriff] e evitar o mal-entendido de “incompreensível” no sentido de que seria impossível entender o termo “Deus”. KNAUER aqui pode jogar com as palavras quando levanta a questão como se pode ter um “conceito” de Deus se ele é considerado “inconcebível”, pois ambos os termos têm a mesma raiz. Com isso refere ao paradoxo de se precisar de um conceito de Deus embora Deus mesmo não possa ser submetido a nenhum conceito.

19 Assim já consta no IV CONCÍLIO DE LATRÃO (DH 800) e na Constituição dogmática Dei Filius do CONCÍLIO

VATICANO I sobre o Deus-Criador. Após referir aos seus atributos enquanto ser uno, simples e imutável se formula que ele “é para ser anunciado como sendo diferente do mundo quanto ao objeto [res] e à essência, em si e por si beatíssimo, e inefavelmente soberano sobre tudo que está fora dele e [é] possível de ser pensado” [et super omnia, quae praeter ipsum sunt et concipi possunt, ineffabiliter excelsus]”. DH 3001, grifo nosso).

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subordina ao[s] [nossos] conceito[s]”.20 Subordinar alguma coisa ao seu conceito significa

abrangê-la e apreendê-la por meio da linguagem de tal forma que daí se pode investigar tais

realidades para analisá-las e tirar conclusões sobre suas características e suas relações mútuas.

Nesse sentido, Deus é, de fato, “incompreensível” porque não é apreensível por algum

conceito.21

O ser humano adquire conhecimento sobre sua realidade, seu “ser”, à medida que ele a

conceitua, situa-a dentro de seu horizonte linguístico, a põe diante de si, a “objetiva”. “Deus”,

porém, simplesmente não pode ser “nem ponto de partida, nem objeto, nem resultado de

conclusões”.22 Isso não é uma questão de método, e sim de princípio. Pois, se fosse possível

concluir do nosso conhecimento o que quer dizer “Deus”, este se tornaria parte de nossa

realidade. Seu “ser” convergiria com o ser do mundo de alguma maneira, ao menos seria

subsumido ao nosso conceito de ser em detrimento à sua inconcebilidade.

Acontece, no entanto, que, para poder dizer quem é “Deus”, precisa-se de um

conceito. O teólogo não pode esquivar-se do problema evitando o esforço em torno do

conceito.23 Não pode “queimar etapas” desviando ou amenizando a radicalidade da questão. É

o que acontece, por exemplo, quando se diz que nosso conhecimento de Deus é apenas

20 KNAUER. Der Glaube, 28.59. Literalmente haveria de se traduzir a expressão “Gott fällt nicht unter [unsere]

Begriffe” por “Deus não cai debaixo de [nossos] conceitos” como consta na tradução espanhola: “El mismo no ‘cae bajo’ nuestras categorías de la realidad”; IDEM. Para comprender nuestra fé, 33; cf. tb. IBID., 40 e 50 e IDEM. Teología fundamental hermenêutica, 161ss: “Dios no ‘cae bajo’ nuestros conceptos”. O termo concretiza a definição anselmiana e se visualiza na figura 1 na p. 65.

21 Nesse sentido Deus não é “conceituável”. Mas também não se pode simplesmente afirmar sua “inconceitualidade” sem incorrer no mesmo perigo de mal-entender o termo como o da “incompreensibilidade” (cf. p. 13, nota 3 da introdução geral a este trabalho).

22 KNAUER. Fundamentaltheologie im Koran, 12, nota 5 e IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 38. No contexto KNAUER defende ANSELMO do mal-entendido de que ele pretenderia concluir de sua definição de Deus a sua existência, quando é justamente isto que ANSELMO refuta.

23 A conclusão de LUDWIG WITTGENSTEIN, “do que não se pode falar, há de se calar” (IDEM. Tractatus Logico-philosophicus. 3.ed. Londres: Routlege, 1960,188. Apud: KNAUER. Der Glaube, 27, nota 17), a respeito da fala da inconcebilidade de Deus não se impõe. Tampouco o comentário de HANS ALBERT a WITTGENSTEIN de que sua afirmação acaba liberando um falar arbitrário de Deus (cf. IDEM. Traktat über kritische Vernunft. 3.ed. Tübingen: Mohr, 1975, 11. Apud: KNAUER. Der Glaube, 27, nota 17). KNAUER mesmo acolhe no racionalismo crítico de ALBERT sua busca ativa por contradições em qualquer afirmação. A pretensão universal de “validade do princípio metódico da contradição excluída” (KNAUER. Theologische Gedanken zum kritischen Rationalismus. in: IPh (2/ 1976) 2), o próprio ALBERT não pode negar. Mas à acusação de ALBERT, de que a teologia, como qualquer iniciativa de fundamentação última, não resista ao “trilema de Münchhausen”, e assim seja uma “tabuização” no sentido de uma “estratégia de imunização” diante de críticas, KNAUER responde que a teologia se propõe a responder a todas as acusações no campo da própria razão, e assim até defende o emprego da razão crítica (cf. IBID., 4 e tb. IDEM. Der Glaube, 43, nota 43).

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parcial. Mas em Deus não pode haver partes.24 Ou se afirma que nosso conhecimento de Deus

é apenas aproximativo. No entanto, a inconcebilidade de Deus não pode ser simplesmente

diminuída.25

Na pior das hipóteses, cai-se numa postura fideísta ao se afirmar que Deus é

incompreensível porque é “mistério”, ou que logo exige um ato de fé. A essa opinião hoje se

vincula cada vez mais uma posição subjetivista que rejeita qualquer conhecimento cognitivo

ou “racional” de Deus. Dessa maneira, conhecimento de Deus deixa de ser mediado pela

linguagem humana para se basear em determinadas “experiências”, “emoções” ou

“percepções” inefáveis. Mas Deus não é “experimentável” como qualquer experiência nossa.

Tais afirmações, geralmente pronunciadas por motivos de piedade, acabam causando o

contrário: diluem a afirmação radical da “inconcebilidade” de Deus, supondo algum tipo de

deficiência em nossa linguagem quando se trata de falar de Deus. Mas, no discurso de Deus,

não pode haver meio-termos. Por isso, tais suposições não resistem ao questionamento da

razão, porque não são capazes de indicar um critério refutável de validade de sua verdade ou

fonte de conhecimento.26 Nesse contexto, KNAUER situa a crítica da religião pelo ateísmo

moderno em sua pertinência de desmascarar discursos falsamente piedosos porque falam

equivocadamente de Deus. Mas, dessa justamente maneira, não são mais compreensíveis

como fala de “Deus”. “Pois diante de como se fala de Deus se decide se realmente é de Deus

que se fala”.27

Mas como, então, se pode obter um conceito de “Deus” se Deus não é subordinável a

um conceito? A resposta a essa questão só pode ser dada de forma consistente, segundo

KNAUER, por meio de uma concepção relacional do ser que de Deus apenas conhece o que é

diferente dele, mas que a ele remete constitutivamente. Para isso, ele resgata a doutrina da

criação mediante a intuição de SANTO ANSELMO em sua busca de um pensar coerente de

24 Cf. KNAUER. Unseren Glauben, 22. 25 Cf. KNAUER. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 45. 26 Para KNAUER, indicar uma alternativa, através da qual o próprio argumento pode ser refutado, é critério de

que não se trata de uma “estratégia de imunização” diante de crítica qualquer. A ela o autor recorre quanto à sua prova da criaturalidade (cf. II/3), mas se torna o argumento dele contra acusação de fideísmo (cf. IDEM. Der Glaube, 354).

27 EBELING, GERHARD. Wort und Glaube. 3.ed. Tübingen, 1968, 374. Apud: KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 17 (grifo do autor). Em sua tese doutoral, KNAUER trabalha de acordo com EBELING os abusos na fala de Deus que desembocam em discurso idolátrico, associando a fala pseudopiedosa ao discurso ateísta, porque “ambas deixam o mundo ser a-teísta [gottlos] e Deus sem [referência ao] mundo [weltlos]” (IBID., 19).

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Deus, sobretudo mediante sua obra Proslogion.28 Também ela implica uma concepção

relacional do ser porque ANSELMO mostra que negar a existência de Deus leva a uma

afirmação que anula a si mesma.29 Desse modo, ele “define” Deus antes como “quem nada

maior pode ser pensado”.30 Contrário ao que talvez possa implicar, isso não significa que

Deus realmente seja o ser maior possível de ser pensado pela razão humana (a imagem

errônea de um “ser supremo”). Não existe um horizonte ôntico que abrangesse Deus e o

mundo sem conceituar Deus inevitavelmente pelo mesmo conceito do ser do mundo (cf.

figura 1 na p. 65).

Ao contrário, KNAUER entende que ANSELMO nada mais quer dizer com isso de que

“Deus e mundo juntos não podem ser mais do que Deus”31 porque, com relação a Deus, nada

maior pode ser pensado – o que seria o caso de um conceito do ser que abrangesse Deus e o

mundo. O problema de fundo aqui em jogo é de como articular “mundo” e “Deus” em sua

28 Cf. KNAUER. Der Glaube, 18 (especialmente nota 5), 22ss e 59s. O autor vincula a importância do

pensamento anselmiano de Deus ao seu próprio pensamento pelo fato da descoberta que todas as afirmações de Deus hão de ser construídas e consideradas como insuperáveis – ou não são proposições que falam de Deus. Há duas razões para isto: (1) porque se fala de Deus apenas quando alguma coisa está referida somente a ele, de forma constitutiva, e não também a outra coisa e (2) porque somente proposições dessa característica não subordinam Deus ao conceito, e sim exigem que seja definido como “maior do que se pode pensar”. Este theologoumenon que, no entanto, é de natureza filosófica, desconstrói definitivamente todas as tentativas de conceber Deus previamente como um ser cognoscível à parte da afirmação do nosso ser criado. Por isso ele é destacado aqui logo no início do capítulo. Doravante, quem busca pensar de Deus retamente só encontra saída para um discurso coerente de Deus numa concepção relacional do ser, porque não pode mais situar Deus na esfera do conhecimento de nossa realidade abrangida pelos nossos conceitos. A totalidade da diferença ou distinção formal e material entre ser do mundo e um suposto ser de Deus é afirmada pelo Concílio Vaticano I (cf. DH 3015).

29 Cf. cap. I, p. 49s e o artigo referido na nota 114 deste trabalho, GÄDE, GERHARD. Die Rolle der Ratio, 9–36. Cf. tb. A introdução de KURT FLASCH à disputa de ANSELMO com GAUNILO onde aplica o argumento in: MOJSISCH, BURKHARD (ORG.). Kann Gottes Nicht-Sein gedacht werden?. Die Kontroverse zwischen Anselm von Canterbury und Gaunilo von Marmoutiers. Kempten: excertpta classica, 1989, 7-48. Em sua introdução (IBID., 7-48), KURT FLASCH resume o famoso “argumento ontológico” (KANT) em sua ousadia de comprovar a autocontradição da afirmação de que Deus não existe (pois para contestar a afirmação da existência de Deus há de se supor uma ideia de quem é Deus, ou seja, sempre se supõe necessariamente um ser para além do qual nada maior pode ser pensado). A suspeita de racionalismo na recepção do argumento de ANSELMO levou, na modernidade, a uma estilização religiosa ou re-interpretação fideísta (“religiöse Stilisierung” e “fideistische Anselm-Umdeutung”, IBID., 12s; o autor refere explicitamente a KARL BARTH e ANSELM

STOLZ). 30 “Quo nihil maius cogitari possit”. SANTO ANSELMO DE CANTUÁRIA, Proslogion. n. 2. Apud: KNAUER. Der

Glaube, 18, nota 5. Essa afirmação tornou-se referência padrão quando se fala da definição anselmiana de Deus na comunidade teológica. KNAUER. Der Glaube, 59, a chama de “ainda imperfeita” [noch unvollkommen]. Para ele trata-se nessa definição de ANSELMO de uma afirmação sobre o mundo em relação a Deus e não em abstração da realidade mundana (cf. IBID., 59s). Embora ANSELMO propriamente não desenvolva explicitamente uma ontologia relacional, somente através dela pode ser coerentemente compreendido. Pois sua argumentação estritamente lógica no debate com GAUNILO DE MARMOUTIERS, que o não-ser de Deus é necessariamente impensável, só faz sentido se tem seu fundamento ontológico no ser do mundo que não pode ser pensado sem constitutivamente ser referido a Deus. Nesse sentido, alega KNAUER, ANSELMO não define conceitos, mas fornece avisos hermenêuticos para pensar corretamente com relação a Deus (cf. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 188-191).

31 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott“ ..., 320.

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diferença e em seu nexo um com outro, sem que “Deus” seja concebido como realidade

previamente (e assim independentemente do mundo) concebível. É, segundo KNAUER, a

questão básica de toda a teologia.

Na concepção convencional substancialista, pensa-se o nexo entre realidade mundana

e divina como campos no mínimo tangentes ou até parcialmente congruentes. Em

consequência do pensamento metafísico-substancialista, (1) criaturalidade só pode ser

pensada como atributo acrescentado ao ser do mundo (cf. em baixo), e (2) Deus e mundo só

podem ser pensados de forma aditiva como um “a mais” (= o conceito do ser) do que Deus

sozinho. “E o mundo pode [...] não ser pensado de uma maneira que ele é acrescentado a Deus

aditivamente, como se Deus e mundo juntos fossem mais do que Deus sozinho”.32

Aqui, porém, se parte com ANSELMO da distinção fundamental e insuperável entre as

duas realidades de tal forma que somente “Deus” há de ser considerado mais fundamental

ainda. Pois, como nada maior que Deus pode ser pensado, este não se subordina aos conceitos

pelos quais compreendemos a realidade mundana. Sendo assim, na verdade, ANSELMO não

faz uma afirmação sobre Deus, e sim sobre o mundo na totalidade de seu ser. Este, de fato,

pode ser pensado, porém não sem referir-se a Deus em todo seu ser.

No entanto, somente pela explicitação dessa compreensão que ANSELMO dá em

Proslogion n. 15, situa-se Deus consequentemente para além do horizonte do ser e do pensar

da razão humana (e assim longe de toda tentativa de “conceituar” Deus): em contexto de

oração aí afirma que Deus não é somente além de quem nada maior pode ser pensado, e sim é

“maior que se pode pensar”.33 Aqui também vale ressaltar que, contrário ao que se possa

concluir, isso não quer dizer que seja impossível pensar “Deus” de forma alguma e com isso

não ter conhecimento consistente de Deus.

Em contrapartida, KNAUER interpreta essa precisão da definição anselmiana de Deus

no sentido (1) de verdadeira e única preservação possível da transcendência absoluta de Deus,

porque Deus não pode ser captado ou apreendido em nenhum conceito (ele não está “sob”

algum conceito) e (2) que, por isso mesmo, de Deus somente se pode falar num sentido

32 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 8. 33 “Quiddam maius quam cogitari possit”. ANSELMO, Proslogion, n. 15. Apud: KNAUER. Der Glaube, 18 e 59.

Também a Encíclica Fides et Ratio de João Paulo II cita a frase, inclusive em seu contexto maior (cf. FR 14).

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insuperável. Todas as afirmações, tanto na filosofia quanto na teologia, têm essa estrutura da

“insuperabilidade” [Unüberbietbarkeit], hão de falar de forma referente a Deus num sentido

último, por afirmações que não podem ser mais superadas por outras maiores.34

Surge daí a pergunta de como se pode ainda falar de Deus então? De que maneira há

de se falar de Deus se este não pode ser ponto de partida, nem resultado de nossas

especulações racionais? Ora, se não se pode falar de Deus “a partir de Deus”, é óbvio que se

há de falar de Deus “a partir do mundo”. Mas como isso deve ser viável se Deus (1) não

emerge como objeto, se não é objetivável e se (2), com essa definição anselmiana, não se

pode mais admitir nenhuma mistura entre o ser do mundo e o ser de Deus?35

2 “SER CRIADO DO NADA” EM RESPOSTA À PERGUNTA POR “DEUS”: COMPREENSÃO RELACIONAL DO SER

Novamente, KNAUER remete à própria mensagem cristã para dela obter uma resposta.

E novamente esta adverte o ser humano de que ele não pode partir de nenhuma concepção

prévia, de nenhum pressuposto lógico sobre Deus,36 caso não queira incorrer em contradição

consigo mesmo. Pois a mensagem cristã justamente não requer do ser humano uma adesão

cega à fé como um tipo de “salto” para dentro da graça que se equipara a um pulo de cima de

uma rocha sem saber em que se vai bater. Dessa forma, a adesão à fé careceria de qualquer

plataforma responsável.

Além disso, a fé perderia a possibilidade de ser distinta de pseudofé ou superstição,

que, como todas as concepções equívocas de Deus, “sempre são apenas autoprojeções

[Selbstprojektionen] humanas e [que] desembocam em idolatração ou deificação do mundo

[Weltvergötterung]”.37 Trata-se de confundir alguma realidade própria nossa com que se

supõe ser “Deus” (Sb 13,2-4).38

34 Cf. KNAUER. Der Glaube, 18 e IDEM. Unseren Glauben, 22. Cf. tb. a explicação da figura da insuperabilidade

em: IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 194. Sobre o discurso análogo aqui insinuado cf. II/4. 35 Na realidade, ANSELMO forma aqui uma plataforma de diálogo com a religião judaica e muçulmana que com

seu monoteísmo monolítico reforçam justamente o resgate do ser absoluto de Deus. Por outro lado, ANSELMO radicaliza a relação entre mundo e Deus sem incorrer no perigo de separar o mundo de Deus. Pois seu intuito é justamente afirmar que não é possível pensar o mundo sem Deus (cf. nota 143 na p. 59 deste trabalho).

36 Cf. KNAUER. Der Sinn des Wortes „Gott“ im christlichen Glauben, 326. 37 KNAUER. Unseren Glauben, 21.28 e IDEM. Der Glaube, 90. Cf. também nota 118 na p. 52 deste trabalho. 38 A referência ao livro da Sabedoria sustenta a constante referência que KNAUER faz à essa ilusão do ser

humano da qual somente a fé liberta (cf., p. ex., IDEM. Unseren Glauben, 28). Esta concepção irracional de Deus se deve à inclinação própria do ser humano de se agarrar a qualquer coisa deste mundo – seja por fascínio (Sb 13,3), seja por assombração (Sb 13,4) – para compensar o medo da morte, que assim exerce seu domínio sobre o ser humano, levando-o à prática da injustiça. Nisso consiste mais uma ponte de diálogo entre

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Portanto, a fé pressupõe “que já com a razão natural se possa entender o significado da

palavra ‘Deus’” porque “a fé apenas se refere à palavra de Deus, [ao] nosso ser abordado por

Deus e com isso [à] nossa comunhão com Deus”.39 Para falar de Deus, eis o paradoxo, não se

pode pressupor nenhum conceito prévio. Enquanto isso, a mensagem cristã, por sua vez,

remonta ao nosso “ser criado do nada”, à nossa “criaturalidade” [Geschöpflichkeit] como

“via” do conhecimento de Deus. Para dizer quem é Deus, “não podemos como que deixar

para trás nosso ser criado ao concluir do nosso ser criado a Deus, mas temos de ficar, por

assim dizer, sempre “no carpete” de nosso ser criado. Não há uma ‘elevação’ a Deus”.40

Isso sempre acontece quando se inverte a ordem do pensar de Deus pressupondo a

necessidade de antes evidenciar ou tornar previamente “plausível” a existência de Deus:

Somente no chão de um pensamento de Deus filosoficamente demonstrado pode-se fazer plausível que o mundo e sua peculiaridade mais profunda, junto a toda a humanidade, há de ser compreendida como criação, e somente sob este pressuposto há boas razões, então, que Deus aja continuamente na história do mundo e da humanidade.41

Acontece, porém, que “nós não sabemos primeiro quem é Deus para depois poder

dizer que é ele quem também criou o mundo”.42

Enquanto isso, justamente ao referir ao mundo como ser criado por Deus, emerge uma

compreensão bastante mitologizada ainda: não é exatamente pelo discurso da criação que se

fala de Deus de forma antropomórfica, tal como se ele fizesse parte do mundo, um ser

superior ao ser humano, mas, ainda assim, semelhante à sua criatura. E não é isso mesmo que

Gn 1,26 afirma – que somos criados “à sua semelhança”?!

o pensamento de KNAUER e a TdL que ressalta enfaticamente o problema da injustiça [social] ser, no fundo, expressão de uma prática idolátrica (cf. ASSMANN, HUGO & HINKELAMMERT, FRANS-JOSEF. A idolatria do mercado. Petrópolis: Vozes, 1989; SUNG, JUNG MO. Teologia & Economia. Repensando a teologia da libertação e utopias. Petrópolis: Vozes, 1994; e ROSSI, LUIZ ALEXANDRE SOLANO. Messianismo e modernidade. Repensando o messianismo a partir das vítimas. São Paulo: Paulus, 2002. Assim se supera a falsa justaposição frequentemente feita entre idolatria e ateísmo moderno, sendo o primeiro problema próprio do “Terceiro Mundo”, enquanto o segundo expressa supostamente a problemática específica do “Primeiro Mundo”. A “pós-modernidade”, na qual se fundiram globalização econômica e cultural com o retorno do religioso e certo neopaganismo, tornou este nexo mais óbvio ainda.

39 KNAUER. Unseren Glauben, 21. 40 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 315s. 41 PANNENBERG, WOLFHART. “Eine philosophisch-historische Hermeneutik des Christentums”. in: NEUNER,

PETER; WAGNER, HARALD (ORG.). Verantwortung für den Glauben. Beiträge zur Fundamentaltheologie und Ökumenik (Festschrift Heinrich Fries). Freiburg-Basel-Wien: Herder, 1992, 40. Apud: KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ..., 313. Cf. tb. a resenha de KNAUER a este artigo de PANNENBERG in ThPh 69 (1994) 308-310.

42 KNAUER. Der Glaube, 41, e parecido em IDEM. Unseren Glauben, 28.

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63

Por essa razão, KNAUER problematiza antes os termos em questão: qual é, a partir da

mensagem cristã, o verdadeiro sentido da afirmação de que “o mundo é criado do nada”? O

discurso cristão do [nosso] ser criado do nada só se compreende coerentemente por meio de

uma “ontologia relacional” (2.1). Segundo KNAUER, é próprio da ontologia relacional contar

com a possibilidade de haver uma relação constitutiva para uma substância.43 Tal concepção

relacional do ser, no entanto, só se aplica ao mundo em seu ser relacionado a Deus (2.2).

Dessa forma, o pensamento ontológico-relacional assume aqui também função de

“desmitologização” [Entmythologisierung]44 dos discursos míticos da criação muito

difundidos especialmente em ambiente católico.

2.1 O que quer dizer “ser criado do nada”?

Para falar de Deus, a mensagem cristã, desde toda sua herança judaica, remete ao

discurso da criação, fala do mundo como ser criado por Deus – e ser criado “de nenhum ente”

(2Mc 7,28). E ela pressupõe que o ser criado é objeto de conhecimento próprio da razão

humana – mesmo se tal conhecimento emerge como consistente em si apenas por meio do

confronto com ela: “De fato, desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, tais

como o seu poder eterno e sua divindade, podem ser contempladas, por meio da inteligência,

nas obras que ele realizou” (Rm 1,20).45

Mas, o que a expressão “ser criado do nada” quer dizer mesmo, sem que se incorra

em nenhum equívoco daqueles acima referidos? Pois, de imediato, tanto o termo do “nada”

como o do “ser criado” causam dificuldades de compreensão racional (coerente/lógica)

referente a Deus. Logo podem desembocar em concepções criacionistas46 que inevitavelmente

43 IBID., 36, especialmente nota 32. O autor não usa o termo de forma inflacionária, antes prefere sua distinção

ao pensamento convencional de uma “metafísica substancial” [Substanzmetaphysik]. 44 Toda afirmação que subordina Deus ao conceito mistura Deus e mundo. É isso que BULTMANN define como

“mitológico”. Nesse sentido, seu método da “desmitologização” não é apenas hermenêutico-bíblico e sim hermenêutico-fundamental. É recebido por KNAUER seguindo EBELING nesse sentido amplo: “A possibilidade e necessidade de tal desmitologização é mesmo idêntica à possibilidade e necessidade de teologia em geral” (KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 49; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 138, nota181).

45 Enquanto São Paulo parece se inspirar em Sb 13,1s (“são naturalmente insensatos todos os homens que ignoram a Deus e que, através dos bens visíveis, não chegam a reconhecer Aquele que existe”) é o já citado texto do CONCÍLIO VATICANO I, DH 3004 (cf. nota 127 na p. 55 deste trabalho).

46 O criacionismo concebe Deus como causa eficaz [Wirkursache] direta (“física”) do mundo (cf. a argumentação de KNAUER até mesmo contra a pertinência do princípio metafísico da causalidade como explicação do mundo por Deus nas provas clássicas da existência de Deus em IDEM. Dialektik und Relation, 56-64). Pela influência do ex-presidente dos EUA, W. Bush, a concepção criaconista e neocriacionista do “planejamento/design inteligente” [intelligent design] de explicar o mundo retornou a ser assunto em sala de aula da educação escolar nos EUA e até no Brasil (cf.

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64

entram em choque com as hipóteses e os modelos científicos da origem e da evolução do

universo pelas ciências da natureza (como a astronomia, a física quântica e a matemática).

São tentativas de deduzir o mundo de Deus o qual acaba numa “fórmula geral de explicação

do mundo” [Weltformel]. Ver-se-á, em seguida, que “uma dedução tal carece de qualquer

base ontológica”.47

Para a mensagem cristã, ambos os modelos, tanto o criacionsimo quanto o

evolucionismo não formam uma alternativa porque partem de pressupostos falsos: o

criacionismo porque reduz Deus a uma causa mundana (mesmo se “última”) num modelo

pretensamente científico, enquanto o evolucionismo confunde o início do mundo com o

princípio metafísico do ser do mundo inclusive na busca de uma “fórmula universal e

explicativa do mundo”. E mesmo se a astrofísica puder comprovar um dia que o universo

carece de um início temporal, ou a bioquímica que o surgimento da vida orgânica é produto

do acaso, o que vale dizer, alega KNAUER, é que “tudo isso não pode ser sem Deus”.48

Antes é o conceito “do nada” que emerge como algo inimaginável, pois o nada “é” o

que não existe – uma contradição em si. Além disso, sugere-se um momento (temporal) no

qual “nada” existia ainda e depois “algo” veio a existir. Assim, Deus apenas teria criado o

início do mundo para depois deixá-lo tomar conta de si mesmo. Essa é a concepção deísta da

criação que concebe Deus como um relojoeiro que apenas dá o “ponta-pé” para a existência

do mundo o qual continua “funcionando” independentemente de Deus.49 Ou então,

espontaneamente, associa-se um “espaço” vazio – já não seria mais “nada” (!) – no qual Deus

coloca “do nada” (entendido como “de nenhuma matéria”) suas criaturas.

Em contrapartida, KNAUER sugere compreender o termo de forma muito mais

radical.50 “Ser criado do nada” quer dizer que em tudo aquilo, em todos os aspectos de seu

ser, em que o mundo se distingue do “nada” (do não-ser51), ele é criado. Por isso, ele substitui

o “do nada” pela expressão positiva de “inteiramente” ou “totalmente” [restlos]: Daí que

<http://www.comciencia.br/200407/reportagens/10.shtml>. Acesso em 10 out. 2009) – obviamente para combater ou sobrepujar modelos evolucionistas.

47 KNAUER. Zu Gerhard Ebelings „Das Wesen des christlichen Glaubens“; cf. também IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 188. O erro comum de todas essas concepções equívocas é de argumentar com o conceito de Deus (cf. em baixo p. 88).

48 KNAUER. Unseren Glauben, 26 49 Cf. IDEM. Der Glaube, 73s. 50 Em seguida cf. KNAUER. Unseren Glauben, 25. 51 Parece ser mesmo esse o sentido pressuposto na afirmação de conforto que a mãe quer dar ao seu filho a ser

martirizado em 2Mc 7,28. Pois somente se pode saber sempre nas mãos de Deus se nossa dependência dele for total, que nos devemos a ele completamente em toda a nossa existência.

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“somos ‘totalmente’ criados”.52 Ser criado é sempre ser criado do nada. “Ser” e “ser criado”,

por isso, são idênticos, são “uma e a mesma coisa”.53 O “ser criado” não é acrescentado ao ser

do mundo como um acidente à sua substância. “[Se] pudéssemos suspender nosso ser criado,

nada sobraria de nós”,54 mais nada “restaria” do nosso ser. O “totalmente” sempre se refere a

cada realidade concreta em sua dependência total de Deus.

Isto, no sentido da Bíblia, quer dizer ‘ser criado do nada’. Em tudo em que ele [o mundo] se distingue do nada, ele depende de Deus. Deus mesmo está acima de todo tempo; sua eternidade não despedaça em diferentes momentos temporais.55

Depois, também o termo “criação” apresenta dificuldade de compreensão por insinuar

que se trate de uma intervenção de Deus, ou de um processo de “emanação” ou “produção”56

do mundo do ser de Deus, implicando uma relação do tipo causa-efeito.57 Tal imaginação

supõe que o ser de Deus e o ser do mundo convirjam ou se identifiquem ou, ainda, que

tangem em algum sentido ou parcialmente. Mas, dessa forma, iríamos subordinar Deus ao

mesmo conceito do ser do mundo (cf. figura 1). O ser infinito de Deus misturar-se-ia assim

com o ser finito do mundo. Deus deixaria de ser Deus e tornar-se-ia parte do mundo.

Figura 1: Concepção substancialista do ser.

Fonte: KNAUER. Der Glaube, 63 (adaptado). 52 KNAUER. Der Glaube, 25. Em alemão KNAUER utiliza o termo adverbial “restlos” (sem algum resíduo) para

dizer “inteiramente”. Associa-se com isso que o ser criado não é apenas uma entre outras características de nossa existência e sim constitutivo para ela. KNAUER costuma dar o exemplo da árvore que é árvore “sem sobra” exatamente à medida que é criada e fora disso não é (cf. IDEM. Unseren Glauben, 25). Parece que em muitos discursos teológicos e pastorais sobre a criação tende-se a negligenciar ou não tirar a consequência radical – e assim existencial! – dessa afirmação.

53 KNAUER. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 85. 54 KNAUER. Eine Alternative zu „Gott ...“, 314. 55 KNAUER. Der Glaube, 27. 56 Assim até TOMÁS DE AQUINO formula: “Criação é o produzir [productio] de uma coisa no sentido de sua

realidade toda.” (S.th. I q65 a4 c). E ainda: “O emanar [emanatio] de todo o ser de uma causa abrangente, a qual é Deus [...] designamos com o nome ‘criação’.” (S.th. I q45 al c). Apud: KNAUER. Der Glaube, 31, notas 22 e 23 respectivamente. As citações apenas pretendem demonstrar que, também na alta escolástica, formulações relacionais se misturavam com expressões substancialistas.

57 Cf. KNAUER. Dialektik und Relation, 56ss.

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Mas a relação entre mundo e Deus não é a de uma parte com seu todo, e sim de uma

relação unilateral com seu termo.

A concepção substancialista, ao contrário, introduz variabilidade e mudança no

conceito de “Deus”, a quem a Tradição sempre entendeu como eterno e imutável (DH 3001),

“no qual não há mudança nem sombra de variação” (Tg 1,17). Significa dizer que a

mensagem cristã atribui a Deus as características que o distinguem do nosso ser totalmente.

Nosso pensar sempre se move dentro das categorias de tempo e espaço. A mensagem cristã,

ao dizer que Deus é inconcebível, exige uma concepção de Deus para além dessas categorias

como foi explicitado em cima por referência a SANTO ANSELMO.

Diante dessas incoerências no discurso da criação, KNAUER avalia teologicamente as

duas narrativas da criação em Gn 1,1-2,4a.2,4b-25 naquilo que querem dizer, no fundo, sobre

a nossa realidade.58 Alistando tudo o que existe (aquilo que tinha chegado ao conhecimento

dos autores em sua época e circunstância peculiar) em ordens diferentes, até opostas, ambas

concluem que nada daquilo poderia existir sem Deus.59 Tudo o que existe e acontece está

irremediavelmente referido a Deus, remete a ele de forma constitutiva. Por conseqüência,

KNAUER define Deus como “aquele sem quem nada é”, portanto, necessariamente, “poderoso

em tudo” que acontece.

2.2 Explicitando o “ser criado do nada” como relação real, unilateral e direta

KNAUER pensa o ser criado justamente de forma inversa do que muitos cristãos foram

acostumados a se imaginar por causa de uma tradição catequética do mero reproduzir e

decorar, de esquema “pergunta e resposta”, e não de uma catequese compreensiva. E, de

forma mais camuflada e intelectualizada, também em nível teológico geralmente se parte de

concepções da criação que supõem algum tipo de agir divino ou “iniciativa divina”, sem se

58 Cf. KNAUER. Unseren Glauben, 23. Aqui o autor permite um acesso didaticamente mais fácil à dificuldade

de compreensão em questão. Ao constatar a contradição óbvia entre as duas narrações pela inversão da ordem ou sequência das coisas criadas, pergunta-se como se haveria de narrar a criação hoje. Nisso alega que a ordem que se dá depende do próprio ponto de vista do narrador dentro do seu contexto, mas de um ou de outro jeito iria alistar tudo de que sabe que existe para dizer que está referido a Deus de forma constitutiva: sem ele, não poderia existir. Cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 55-72. Nela, KNAUER aprofunda numa análise estrutural em estilo de contemplação exegética as narrativas da criação no livro de Gênesis, justamente para concluir que o sentido teológico dos textos é afirmar que tudo que existe é “razão de nosso falar de Deus” (IBID., slide 73).

59 É interessante observar que repassada a pergunta do “Gedankenexperiment” aos alunos (cf. KNAUER. Unseren Glauben, 23) na disciplina da teologia fundamental em Fortaleza (antes de ler o texto!), sobre como eles iriam proceder se tivessem que fazer um “relato da criação”, todos procederam mais ou menos deste modo: cada um enumerava as coisas do mundo em ordem correspondente à sua percepção para depois dizer: “foi Deus que fez tudo isso” ou “não existiria se não fosse Deus”.

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dar conta de que isso exige um conhecimento prévio de Deus. Mas, para preservar o ser

absoluto de Deus, jamais se pode partir de Deus para entender o discurso da criação. Portanto,

não é partindo do Criador que se chega à afirmação de nosso ser criado, e sim o inverso:

partindo de nossa realidade, conclui-se ao seu ser criado para assim chegar a reconhecer seu

Criador como “aquele sem quem nada é”.

Para ter um acesso mais fácil à compreensão relacional que KNAUER desenvolve

explicitamente em seguida, basta contemplar as implicações no próprio conceito do ser

criado: a da diferença entre criatura e criador e a da relação da criatura ao Criador, uma

relação de “dependência” e de dependência “total” como já visto em cima. Essa relação,

agora, não pode partir de Deus porque não há possibilidade de um conhecimento a priori de

Deus. Se Deus há de ser situado para além dos nossos conceitos a relação, por meio da qual se

afirma ter conhecimento de Deus como criador, tal relação há de ser concebida

consequentemente a partir do mundo e exige reconhecimento de diferença total entre criatura

e Criador.

No esforço de compreender as realidades mundanas em suas relações sempre

reconhecemos sua reciprocidade, pois pressupõem, desde já, a existência das coisas em si

mesmas. Isso significa dizer que “naturalmente” se trabalha com uma concepção metafísico-

substancial do ser com relação ao conhecimento da realidade mundana em suas características

próprias. Tal “metafísica substancial” [Substanzmetaphysik] ou “ontologia substancial”

[Substanzontologie] pressupõe a existência prévia das coisas para depois pô-las em relação

uma com a outra, seja qual for a complexidade da realidade analisada (cf. figura 2).

Figura 2: Modelo convencional de relação – subsequente à substância.

Fonte: KNAUER. Der Glaube, 35.

Mas essa concepção do ser não serve para ser aplicada à relação “entre” o mundo e

“Deus” porque não se pode partir de alguma realidade divina previamente dada (e conhecida)

à afirmação do nosso ser criado por tal “Deus”, na qual a relação é concebida como algo “em

meio” a mundo e Deus. Consequentemente há de se ficar do lado do mundo e concebê-lo

coincidente com a referência que o mundo faz a quem não pode ser conhecido previamente,

senão por meio de tal relação ôntica (cf. figura 3).

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Figura 3: Modelo ontológico

Fonte: KNAUER. Der Glaube

Nesse caso, é a relação

ontológico. Ser e ser relacionado fundem em

não pode existir “nada”. Trata

ou “subsistente”.

Pela “ontologia relacional”deve atribuiao abstrair da substância subjacente a ele, de tal formadevem ser preferidas de afirmações de essência. Antes se trata de uma relacionalidade que precede à sdo mundo a Deus não é nada com seu portador, o mundo mesmo

Por essa razão, “ser” e “ser criado” do mundo hão de coincidir. O “do nada” só

significa que tal identidade entre ser e ser relacionado do mundo é total. O mundo

totalidade, só pode ser pensado dessa forma, como um ser totalmente relacionado a “Outr

ao qual se deve inteiramente

dessa maneira pode-se falar de Deus e, ao mesmo tempo, salvaguardar sua inconcebilidade.

Com a fala de um “ser criado do nada” é fundamentada uma ontologia relacional segundo a qual não há relação apenas como algo acrescentado a uma substâncialimitagênero está, antes, noutro modo de relação. Ser criado é uma relação que constitui a substância do criado e assim [é relação] “subsistente”. A substância do mundo é compreendida dianele. A mensagem cristã traz essa prénão é possível, fazer jus à mensagem cristã dentro de uma préapenas conhece relação posterior à subnada” somente numa ontologia relacional se compreende realmente. E sem o reconhecimento de nosso ser criado, todas as demais afirmações referentes a Deus perdem todo sentido.

60 KNAUER. „Natürliche Gotteserkenntnis“61 A fala muito difundida de Deus como o “totalmente Outro” nesse contexto ignora que, anterior à afirmação

de um ser relacionado, não é possível conceber algum “outro” em diferença total de si (cf. a crítica de KNAUER à doutrina de Deus em Glaubens”). Além disso, ainda assim, não seria possível conceber Deus como “outro” no sentido de um “em face de” [Gegenüber].

62 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „

Modelo ontológico-relacional da relação – constitutiva para a substância.

Der Glaube, 35.

e caso, é a relação que confere ser a alguma coisa, constituindo seu

Ser e ser relacionado fundem em uma coisa só. São idênticos. Fora de tal relação

Trata-se de uma relação carregada de ser, uma

Pela “ontologia relacional” aqui reivindicada, portanto, não se quer dizer que se deve atribuir importância dominante a um conceito de relação posterior à substância ao abstrair da substância subjacente a ele, de tal forma,devem ser preferidas de afirmações de essência. Antes se trata de uma relacionalidade que precede à substância onticamente e sódo mundo a Deus não é nada entre o mundo e Deus, mas é completamente idênticocom seu portador, o mundo mesmo.60

Por essa razão, “ser” e “ser criado” do mundo hão de coincidir. O “do nada” só

que tal identidade entre ser e ser relacionado do mundo é total. O mundo

só pode ser pensado dessa forma, como um ser totalmente relacionado a “Outr

ao qual se deve inteiramente e do qual, ao mesmo tempo, se distingue totalmente.

se falar de Deus e, ao mesmo tempo, salvaguardar sua inconcebilidade.

Com a fala de um “ser criado do nada” é fundamentada uma ontologia relacional segundo a qual não há relação apenas como algo acrescentado a uma substâncialimitante de sua autonomia [Selbständigkeit]. À base de todas as relações desse gênero está, antes, noutro modo de relação. Ser criado é uma relação que constitui a substância do criado e assim [é relação] “subsistente”. A substância do mundo é compreendida diante de Deus como identificando-se [aufgehend] ele. A mensagem cristã traz essa pré-compreensão nova consigo. A meu entender, não é possível, fazer jus à mensagem cristã dentro de uma préapenas conhece relação posterior à substância. Pois já a expressão “ser criado do nada” somente numa ontologia relacional se compreende realmente. E sem o reconhecimento de nosso ser criado, todas as demais afirmações referentes a Deus perdem todo sentido.62

„Natürliche Gotteserkenntnis“ (grifo do autor).

A fala muito difundida de Deus como o “totalmente Outro” nesse contexto ignora que, anterior à afirmação de um ser relacionado, não é possível conceber algum “outro” em diferença total de si (cf. a crítica de

à doutrina de Deus em EBELING: IDEM. Zu Gerhard Ebelings „Dogmatik des christlichen Além disso, ainda assim, não seria possível conceber Deus como “outro” no sentido de um “em

Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 315.

68

constitutiva para a substância.

, constituindo seu status

uma coisa só. São idênticos. Fora de tal relação,

se de uma relação carregada de ser, uma “relação substancial”

, portanto, não se quer dizer que se r importância dominante a um conceito de relação posterior à substância

que descrições de função devem ser preferidas de afirmações de essência. Antes se trata de uma

só assim a funda. A relação o mundo e Deus, mas é completamente idêntico

Por essa razão, “ser” e “ser criado” do mundo hão de coincidir. O “do nada” só

que tal identidade entre ser e ser relacionado do mundo é total. O mundo, em sua

só pode ser pensado dessa forma, como um ser totalmente relacionado a “Outro”61

e do qual, ao mesmo tempo, se distingue totalmente. Somente

se falar de Deus e, ao mesmo tempo, salvaguardar sua inconcebilidade.

Com a fala de um “ser criado do nada” é fundamentada uma ontologia relacional segundo a qual não há relação apenas como algo acrescentado a uma substância

nte de sua autonomia [Selbständigkeit]. À base de todas as relações desse gênero está, antes, noutro modo de relação. Ser criado é uma relação que constitui a substância do criado e assim [é relação] “subsistente”. A substância do mundo é

[aufgehend] com a relação a compreensão nova consigo. A meu entender,

não é possível, fazer jus à mensagem cristã dentro de uma pré-compreensão que stância. Pois já a expressão “ser criado do

nada” somente numa ontologia relacional se compreende realmente. E sem o reconhecimento de nosso ser criado, todas as demais afirmações referentes a Deus

A fala muito difundida de Deus como o “totalmente Outro” nesse contexto ignora que, anterior à afirmação de um ser relacionado, não é possível conceber algum “outro” em diferença total de si (cf. a crítica de

Gerhard Ebelings „Dogmatik des christlichen Além disso, ainda assim, não seria possível conceber Deus como “outro” no sentido de um “em

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Por conseguinte, KNAUER traduz o “ser criado do nada” do mundo pelo termo do “ser

totalmente relacionado a ... / em total diferença de ...”.63 Com os pontinhos, o autor pretende

expressar que o “para-onde” do ser relacionado do mundo não é previamente conhecido, e sim

somente por meio do ser do mundo que em seu ser relacionado remete somente e

constitutivamente ao seu termo.64 Dele só se pode afirmar que é o “para-onde”, ou terminus

ad quem [termo para o qual”]65 ao qual o mundo está referido e sem o qual não poderia

existir. Pois “... como realidade permanecendo totalmente diferente do para-onde da relação, o

[ser] relacionando-se não pode ser, absolutamente, sem seu para-onde”.66 Por isso tal “para-

onde” é o “termo constitutivo” do mundo porque seu “ser relacionado totalmente a ... / em sua

total diferença de ...”, significa exatamente “não poder ser sem”.67

Mas, enquanto normalmente uma relação é conhecida quando antes se conhece seu

para-onde, nesse caso conhece-se o para-onde somente quando se conhece a relação –

precisamente porque, e à medida que, ela é idêntica ao seu “suporte” [Träger]. Dessa forma, a

afirmação do ser criado do nada não é simplesmente uma afirmação sobre a existência do

mundo, e sim sobre a existência do mundo em seu “ser totalmente referido a ... / em total

diferença de ...”, pois se trata de uma relação determinada pelo seu próprio ser referido a, sem

conhecimento prévio de seu termo:

Por exemplo, a palavra ‘meu’ significa que algo pertence a um ‘eu’. Sem um eu não se poderia ter um ‘meu’. Um livro que pertence a mim deixaria de pertencer a mim se eu não existisse mais. Mas mesmo assim ainda sobraria ao menos como um livro, então, sem dono. A relação do ser criado, ao contrário, não se acrescentaria ao ser do mundo, mas seria idêntica com ele [...] Essa relação do ser criado é, então, cheio de toda a realidade do mundo e uma relação em si determinada ainda antes da gente saber por qual para-onde é constituída.68

63 “Restloses Bezogensein auf ... / in restloser Verschiedenheit von ...“. KNAUER. Der Glaube, 27. 64 Cf. KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott...“, 314. 65 KNAUER. Der Glaube, 33, nota 29. Pela referência a esses conceitos da alta escolástica, KNAUER resgata a

nítida consciência da unilateralidade da relação de todo ser criado a Deus por parte de seus representantes mais destacados.

66 IBID., 36. 67 “Pelo conceito do ser totalmente relacionado se quer dizer aqui que algo funde completamente no ‘não poder

ser sem ...’”. KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott...“, 315. Quanto ao conceito do “termo”: “Uma relação é principalmente constituída enquanto relação pelo seu termo, e sem ele ela não é relação” (IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 188).

68 KNAUER. Vernunft – Naturwissenschaften – christlicher Glaube, 24s. Cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 87-89.

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Por causa da determinação ontológica dessa relação pelo ser referido do mundo ao seu

termo constitutivo, Deus é reconhecido como Deus-Criador. Essa afirmação é uma afirmação

da razão e, enquanto tal, não necessita o recurso à mensagem cristã. Contudo, tal

compreensão relacional do mundo vem a ser provocada a partir do anúncio da mensagem

cristã que a traz consigo.

Em consequência disso, há de se afirmar que todas as demais concepções de Deus

como Criador chegam ao seu termo somente por meio dessa concepção relacional, que a

mensagem cristã pressupõe, para dar a entender quem é “Deus” de quem ela fala.69 Tanto a

compreensão da criaturalidade do mundo, por meio de uma ontologia relacional, quanto a

crítica de outras concepções de criação, cujo erro consiste em recorrer a uma ontologia

substancial, hão de ser necessariamente comprováveis.

Nessa concepção relacional do ser do mundo, sobressai-se seu caráter unilateral. O

próprio autor não deixa de insistir, em todos os seus escritos, em que a relação do mundo a

Deus, de fato, é substancialmente diferente e única (cf. figura 4 em baixo):

Um “ser totalmente relacionado a ... / em total diferença de ...”, contrário a todas as relações intramundanas que sempre incluem alguma reciprocidade, significa, segundo seu conceito, uma relação completamente unilateral.70

Figura 4: Modelo relacional do ser do mundo.

Fonte: KNAUER. Der Glaube, 41 (adaptado). 69 Assim, KNAUER critica, de forma diferenciada, outros modelos de criação, isto é, configurações da relação de

criatura para Criador, resgatando de cada qual seu núcleo de verdade: assim, (1) do “ateísmo” reconhece em sua negação da existência de Deus que este não pode fazer parte do mundo (e que por isso ao mundo confere total autonomia), (2) do “panteísmo” resgata a afirmação de que tudo tem a ver com Deus, o que, porém, não quer dizer logo que tudo “é” Deus, (3) ao “deísmo” dá razão no sentido de que o mundo existe referido a Deus desde seu princípio, mas não somente em referência a um imaginado início temporal (pois mesmo se o universo for infinito em espaço e tempo, não poderia existir por si mesmo, e sim somente em total dependência de outro em cada aspecto e momento de seu existir) e (4) com relação a um “teísmo” filosófico muito difundido em ambiente teológico, salvaguarda sua intuição que o mundo sempre está nas mãos de Deus, no entanto o está de forma total. Este fato contesta a frequente suposição de que se deve contar com intervenções divinas singulares no sentido de interromperem a autonomia relativa do mundo. Cf. IDEM. Der Glaube, 70SS; cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 206-210.

70 KNAUER. „Natürliche Gotteserkenntnis”.

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A unilateralidade do ser relacionado do mundo ao seu termo constitutivo, “Deus”,

exprime a garantia de que Deus não seja subordinado ao conceito (e com isso deixe de ser

constitutivo para o ser do mundo). Essa característica já está implicada no fato de considerar a

relação do mundo a Deus como um ser totalmente relacionado. Pois isso significa que o

mundo se deve, em toda sua existência, inteiramente a Deus.

Entretanto, a ideia de uma relação substancial e unilateral, na verdade, não é

propriamente uma novidade, como o próprio autor lembra. Em sua reformulação relacional do

significado bíblico do ser criado do nada, KNAUER remete a uma doutrina difundida na alta

escolástica. Nessa época, afirma, tinha-se uma consciência nítida de que o ser absoluto de

Deus só podia ser salvaguardado pela compreensão do mundo como relação “real”

(= substancial) e unilateral ao seu para-onde. Porém, observa KNAUER criticamente em sua

releitura da tradição escolástica, esta não soube tirar as últimas consequências de sua doutrina

de Deus. Sua especulação teológica estava mais preocupada em resgatar apenas o ser absoluto

de Deus para si próprio do que enxergar sua importância para a compreensão da revelação de

Deus.71

Se o mundo se deve ao seu para-onde inteiramente, então, significa que também está

referido a ele unicamente. A relação do mundo a Deus, portanto, é direta e assim imediata

[unmittelbar] e não passa por outras instâncias intermediárias do tipo demiurgo. O mundo não

depende de Deus e, ao mesmo tempo, de mais outro[s] princípio[s] de seu ser. Numa

ontologia relacional, não é possível pensar algum tipo de mistura entre ser criado e ser divino

(incriado), nem uma pluralidade de termos constitutivos, uma pluralidade de deuses. De fato,

o monoteísmo cristão não é um assunto de fé, e sim a consequência lógica de pensar o mundo

como ser criado por causa da totalidade de seu ser relacionado a ... .

A re-significação do ser criado do nada por meio de uma ontologia relacional

inevitavelmente provoca uma série de questionamentos:

No entanto, habitualmente também teologia hodierna não quer, a custo nenhum, saber alguma coisa de uma relação unilateral real do ser criado a Deus. Já o mero pensamento nisso provoca, de acordo com a minha experiência, incompreensão, depois indignação e fechamento.72

71 Cf. KNAUER. Der Glaube, 171, nota 231.199, nota 282; cf. tb. IDEM. Der Sinn des Wortes „Gott“ im

christlichen Glauben, 324s, e IDEM. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 66. Apesar desse esforço na doutrina de Deus na alta escolástica, esta não a pensou em seu significado de empecilho, sim aparente impedimento de afirmar uma relação real de Deus ao mundo.

72 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott...“, 323; cf. tb. IDEM. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 65.

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72

Ao mesmo tempo, o próprio pensamento relacional, com suas implicações, dirige

questionamentos sérios à concepção substancialista do ser porque lhe nega a capacidade de

pôr mundo e Deus em relação de forma consistente. A ontologia relacional se choca de frente

com a tendência despercebida por muitos teólogos de encaixar Deus conceitualmente em um

sistema a ele abrangente que integra e assim entrega o ser absoluto de Deus, sua

inconcebilidade. Pois isso significa projetar o modelo de relações recíprocas tipicamente

intramundanas à relação do mundo com Deus e assim incorrer num discurso incoerente de

Deus.73 Além disso, também tem, por conseqüência, negar ao discurso de fé a condição

racional de possibilidade de afirmar a incondicionalidade do amor de Deus por nós. Pois este

só é possível ser pronunciado por meio de uma relação real de autocomunicação de Deus ao

mundo. Mas isso pressupõe que o mundo não possa ser concebido como termo constitutivo de

uma relação real de Deus a ele.

Uma questão remete à autonomia do mundo e à liberdade de Deus: como se pode

afirmar ainda autonomia do mundo diante da compreensão de uma dependência total de Deus

assim? E definir Deus como aquele sem quem nada é não faz de Deus pouca coisa? Tal

pergunta provoca logo outra pergunta a respeito da compreensão da onipotência de Deus: A

Bíblia não afirma que para Deus tudo é possível – basta ele querer (Mc 10,27par. e Lc 1,37,

que parecem recordar Gn 18,14). Deus não é delimitado de forma reducionista quanto ao seu

poder divino? E essa segunda pergunta logo provoca mais outra, por sua vez, vinculada à

primeira sobre a existência do mal: se nada daquilo que existe no mundo poderia ser sem

Deus, então, também o mal não poderia ser sem Deus; mas isso não contradiz a bondade

absoluta de Deus? Deus, portanto, ao menos admite ou até quer o mal? Essas questões serão

retomadas no final deste capítulo, em conclusão à concepção consequente que KNAUER tem

de uma analogia unilateral.

3 É POSSÍVEL COMPROVAR O SER CRIADO?

Até este ponto, KNAUER destaca que ele apenas fez o esforço de esclarecer o

significado do “nosso ser criado do nada” em resposta da mensagem cristã à pergunta por

Deus. Foi visto que, somente a partir do mundo como “ser totalmente relacionado a ... / em

total diferença de ...”, é possível dizer quem é “Deus”. Nessa recondução da afirmação da

criaturalidade do mundo ao seu verdadeiro significado por meio da ontologia relacional,

73 Cf. KNAUER. Der Glaube, 68; cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 126. Uma projeção

sempre pressupõe a existência de relações mútuas.

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73

“Deus” é afirmado como Criador por meio do mundo como relação substancial, unilateral e

direta ao seu termo constitutivo, seu para-onde. O para-onde dessa relação real é corretamente

identificado como “Deus”, porque o mundo é seguramente reconhecido no seu “não-poder-

existir-sem-[ele]”. Por isso, Deus é “definido” precisamente como “aquele sem quem nada é”.

Sua transcendência absoluta é salvaguardada porque o termo é uma afirmação sobre o mundo

e não “sobre” Deus. Assim, Deus não é “conceituado”. Querer concluir alguma coisa de Deus

à base desse termo significa voltar-se contra ele.

No entanto, se é assim que o “ser” do mundo e seu “ser criado do nada” são idênticos

e se, ainda mais, o “ser” é objeto de conhecimento próprio da razão humana, conclui-se que

há de ser (necessariamente) possível demonstrar ou “comprovar” essa verdade “natural” da

criaturalidade do mundo como sendo objeto de conhecimento da razão. Trata-se de um

conhecimento natural de Deus porque o ser criado como sendo idêntico ao ser do mundo há

de ser “legível” nele. Por isso, ele se constitui como objeto de conhecimento da razão. E trata-

se de conhecimento natural de Deus porque o mundo existe e, portanto, é conhecido

coerentemente somente enquanto totalmente referido ao seu para-onde, do qual é, ao mesmo

tempo, totalmente diferente. Nossa comunhão com Deus, por sua vez, é objeto de

conhecimento reservado somente à fé.

Na verdade, não se pode querer acolher a concepção teológica de KNAUER apenas da

episteme da fé adentro.74 Ela toda se baseia inseparavelmente na distinção fundamental entre

razão e fé, Lei e Evangelho, natureza e graça. Aqui não se trata de uma ousadia particular de

KNAUER, e sim da audácia do próprio Evangelho de Cristo, que assim se estrutura a si mesmo

por meio da distinção radical entre o que é “do mundo” e o que é “de Deus”.75 Fora de tal

distinção, o amor de Deus por nós não é mais compreensível como incondicional, portanto,

não pode salvar!

O próprio KNAUER alega, antes de tudo, que essa “prova” não representa uma

conclusão lógica da existência do mundo à existência de Deus (que assim acabaria “sob” o

conceito) e sim apenas à dependência total do mundo de seu termo constitutivo. Depois

74 É um valor de experiência da parte de KNAUER no decorrer de seu magistério, confirmado por experiência

própria nossa, que especialmente a prova da criaturalidade do mundo causa mais estranhamento e rejeição do lado de seus críticos. A não-aceitação da prova da criaturalidade acontece mesmo entre aqueles que, a princípio, simpatizam com as reformulações de doutrinas tradicionais singulares como a respeito da eclesiologia, particularmente a questão da autoridade do Magistério. Parece-me que, no fundo, se trata da acusação de KNAUER ser racionalista neste ponto, enquanto com relação à questão da fidedignidade da fé, somente cognoscível como verdadeira na própria fé, sofre suspeita de fideísmo. Cf., p.ex., IDEM. Der Glaube, 377, nota 604.380, nota 610.

75 Cf. as repetidas referências a DH 3015.

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74

menciona que tal “demonstração” só é, de fato, “necessariamente possível”,76 tendo em vista a

vivência da fé. Para tal basta a pressuposição de que não seja possível negar

comprovadamente o ser criado do mundo e, de fato, até hoje isso não ocorreu.77

No entanto, poder comprovar o ser criado do mundo se torna conditio sine qua non de

uma fundamentação consistente da palavra de Deus. Por isso, também não se trata

simplesmente de conduzir tentativas de tornar mais plausível a existência de Deus.

Demonstrações de plausibilidade da existência de Deus diluem o fato de que afirmações com

relação a Deus hão de ser insuperáveis e não podem trabalhar com uma margem de grau de

probabilidade como o insinua um argumento de plausibilidade. Além disso, o objeto de

conhecimento aqui em questão não é Deus, e se ele existe, e sim o mundo em sua dependência

total de seu para-onde, que recebe o nome de Deus por causa do mundo conhecido em seu ser

referido a ele. Com razão, KNAUER formula com todo rigor que “a fé cristã estaria refutada se

alguém pudesse comprovar a não-criaturalidade do mundo ou a não-historicidade de Jesus”.78

É preciso lembrar que o conhecimento natural de Deus não forma o horizonte

abrangente para a mensagem cristã.79 A fé mesma se baseia no ser criado do mundo apenas

para se lançar sobre ele com sua mensagem de revelação de nosso “ser criado em Cristo”. O

“em Cristo” do nosso ser criado, que é a verdadeira originalidade do ser humano em seu ser

acolhido originariamente no amor eterno do Pai ao Filho, requer fé para ser reconhecido como

verdade definitivamente última sobre nossa existência e só chega ao conhecimento se for

anunciado ao mundo. Assim é contestado de antemão que possa haver um tipo de “natureza

76 KNAUER mesmo aplica sua ideia da “possibilidade necessária” propriamente ao diálogo ecumênico como

uma categoria hermenêutica relacional (cf. IDEM. “‚Notwendige Möglichkeit‘ als ökumenische Grundkategorie”. In: ThGl 92 (2002) 48-59). No entanto, na medida em que se trata de uma afirmação da razão, a prova da criaturalidade do mundo “há de ser possível em princípio” (IDEM. Der Geschöpflichkeitsbeweis. Nesse resumo da prova em teses se tem acesso às figuras ilustrativas principais do autor).

77 KNAUER. Unseren Glauben, 29. Cf. tb. IDEM. Der Glaube, 43s. Nesse contexto, o autor alerta ainda, em prevenção a possíveis mal-entendidos e reações de rejeição espontânea, ao grau de abstração desse raciocínio incluindo seu caráter não-habitual.

78 KNAUER. Zu „Gerhard Ebelings Dogmatik des christlichen Glaubens“. Ainda a respeito de tentativas de negar a criaturalidade do mundo o autor continua afirmando que “... a fé não conta com que seja possível conseguir conduzir tais comprovações, e por isso se dispõe sem temor, defrontar-se com todas as tentativas desse gênero, pois está certa de poder respondê-las sempre” (IBID.). Aquele que se põe a negar o ser criado do mundo, supõe a mensagem cristã, não pode mais contar com a razão do seu lado. Essa é a estratégia argumentativa do raciocínio.

79 A esse fato o autor alerta contrariando a EBERHARD JÜNGEL, Gott als Geheimnis der Welt, que parece entender que a fala (luterana) do “Deus oculto” relativize o “Deus revelador” (cf. KNAUER. Der Glaube, 7, nota 77).

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pura” à qual a graça haveria de ser “acrescentada” posteriormente, como se ela existisse

desvinculadamente da natureza (criada) exercendo sobre esta um efeito mágico concernente à

sua salvação.

O ser humano, por conta própria, porém, como já foi constatado, só pode saber de si

apenas essa sua dependência total de seu para-onde. A consequência radical do

reconhecimento de Deus como “aquele sem quem nada é” em função da criaturalidade do

mundo será aprofundada no final deste capítulo. Agora deve ser apresentado, em seus traços

próprios, o raciocínio de KNAUER referente à comprovação do ser criado do mundo.

3.1 Não prova de “Deus” e sim da “criaturalidade do mundo”

Nos escritos dos anos 60, KNAUER ainda chama essa prova de “prova de Deus”

[Gottesbeweis], porém a entende precisamente como prova do ser criado do nada. Assim, já

pelo princípio de sua reflexão, deixa claro que não se trata de uma “prova de Deus” no sentido

das provas clássicas (em sua configuração medieval) da existência de Deus. Seu intento não é

explicar o mundo pelo conceito de Deus, mas por meio de sua dependência total de Deus.

Deus mesmo não pode virar ou se tornar parte de um argumento: “a um mal-entendido desses

da prova de Deus, que contradiz à inconcebilidade absoluta de Deus pressuposta pela fé, há de

se advertir absolutamente” 80

Seria, pois, uma contradição diametral a todo seu esforço anterior de salvaguardar a

incompreensibilidade de Deus se KNAUER quisesse comprovar a existência de Deus agora.

Quem não quiser subordinar Deus (novamente) a algum conceito também não pode permitir

que sua existência possa ser analiticamente concluída de nosso ser criado. Já se aludiu

previamente a que o conceito do “ser” só pode ser atribuído a Deus de forma referente,

assunto a ser aprofundado em seguida. No lugar do termo clássico, KNAUER logo passa a

chamar tal prova de “prova de criaturalidade” [Geschöpflichkeitsbeweis].81

A palavra ‘prova de Deus’ ressoa mal hoje. As tentativas, por exemplo, dos filósofos medievais de provar Deus, desde a “Crítica da razão pura” de KANT (1787) são consideradas superadas.82

80 Cf. KNAUER. Dialektik und Relation, 59. 81 KNAUER. Der Glaube, 43. Além dos artigos já referidos cf. tb. IDEM. Der Geschöpflichkeitsbeweis.

Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/11.html>. Acesso em: 12 out. 2009. 82 KNAUER. Unseren Glauben, 29.

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Sem dúvida, aqui surge espontaneamente a suspeita de que KNAUER, mesmo assim,

quer abrir os túmulos de especulações teológicas em torno das “provas clássicas de Deus”

desde décadas enterradas na poeira da história da teologia. Na realidade e sobretudo da parte

de quem afirma que o discurso da criação e de Deus-Criador desde já seja artigo de fé83 e não

assunto da razão humana, o intento de uma prova – seja qual for sua denominação – provoca

suspeita de querer reanimar a teologia natural clássica da doutrina de Deus. Em contrapartida,

aponta KNAUER, inclusive a afirmação de Deus como Criador do céu e da terra no nosso

Credo não é uma afirmação de fé e sim uma aposição acessível à razão.84 Dizemos de Deus-

Pai no qual cremos que ele é o Criador do mundo o que é pressuposto como um saber natural

de forma relacional.

Enquanto isso, porém, o autor apenas procura fazer entender o que é Tradição

Magisterial.85 E, logo no início, KNAUER re-situa o conhecimento natural de Deus dentro de

sua ontologia relacional. Em vez de pressupor a necessidade de uma “razão suficiente”,

KNAUER pergunta antes pela sua necessidade, pois “já inicia com o problema da pré-

compreensão da realidade”.86

Foi ressaltado antes que “Deus”, em sua inconcebilidade, per definitionem, não é

ponto de partido, nem objeto ou resultado de conclusões nossas.87 E, se o discurso do ser

criado do mundo se torna coerente apenas numa ontologia relacional enquanto relação

substancial e unilateral, também não se pode concluir de Deus à criaturalidade do mundo e

nem do mundo a Deus. Pode ser admitido apenas que se conclua do mundo ao seu ser criado.

Por essa razão, a única proposição a poder ser comprovada é a afirmação do ser criado do

nada do mundo. Objeto de prova, portanto, somente pode ser o ser do mundo, jamais Deus.

83 Assim, por exemplo, afirma LUIS F. LADARIA sem mais: “A criação já é mistério de salvação” (IDEM.

Introdução à Antropologia Teológica. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2002, 86). 84 Cf. KNAUER. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 49s. 85 Cf. a parte I do artigo em que KNAUER aprofunda as afirmações básicas, sobretudo do Concílio Vaticano I,

por vezes de fato ambivalentes: IDEM. „Natürliche Gotteserkenntnis”. 86 KNAUER. Der Glaube, 43. Cf. tb. IBID., 56 e IDEM. Dialektik und Relation, 56-58. Depois de apontar que o

princípio metafísico da causalidade praticamente só era utilizado como uma extrapolação do princípio físico da causalidade, o autor fundamenta a insuficiência de reconduzir o princípio metafísico da causalidade ao princípio da razão suficiente [Prinzip vom zureichenden Grund] que assim não passa de um mero postulado.

87 Cf. acima p. 57.

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3.2 Por que o mundo necessita de uma explicação: Toda realidade mundana representa um “problema de contradição”

Mas por que razão o mundo necessita de uma explicação e com isso de uma prova?

Uma prova tem o objetivo de explicar algo que, em sua descrição, representa um problema de

compreensão. Em que sentido o mundo representa um problema a ser explicado? Um

problema de compreensão que necessita de explicação, segundo KNAUER, somente pode ser

um “problema de contradição” [Widerspruchsproblem].88

Isto significaria dizer que a pergunta por uma “explicação” de um ente [Seiendes] até só pode ser colocada, mas também, então, tem que ser colocada, quando, caso contrario, já a mera descrição do ente referido não poderia mais ser destacada de uma contradição contraditória e assim de uma afirmação falsa.89

Essa pergunta pela necessidade da explicação do ser do mundo como ponto de partida

para a prova de sua criaturalidade, pelo que parece, não foi levantada pelos autores das provas

clássicas da existência de Deus nesses termos. Uma vez, assegura KNAUER, que, em nosso

agir (pensar e falar) cotidiano, sempre pressupomos que este “problema de contradição” já

encontrou sua solução desde o início. Por essa razão, segundo KNAUER, há de se procurar

ativamente por tal problema porque, na experiência cotidiana nossa, ele não nos salta aos

olhos. Precisa de uma “mediação lógica”.90 Outra vez, porque presas numa ontologia

substancialista, essas “provas de Deus” pressupunham a existência do mundo como efeito de

uma causa primária.91

Mas as relações de causa e efeito, antes, aplicam-se apenas às relações entre coisas do

mundo e, depois, em sua “pureza”, esse modelo explicativo dos fenômenos mundanos já é

reconhecido como inadequado pela teoria do sistema. Para KNAUER, o modelo que descreve

(não explica!) adequadamente as relações intramundanas é o pensamento dialético, porque ele

não só reconhece a interdependência relacional das coisas entre si, mas também manifesta

indissoluvelmente seu problema de contradição.92

88 KNAUER. Der Glaube, 44. Em nota (45) o autor identifica seu termo com o da “questionabilidade radical”

[radikale Fraglichkeit] de WILHELM WEISCHEDEL. De acordo com seu uso também na teologia de EBELING (cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 26ss) se designa com ele a experiência da ambiguidade indelével da experiência consigo e com o mundo.

89 KNAUER. Dialektik und Relation, 63. 90 Cf. KNAUER. Der Glaube, 43, nota 43. 91 Cf. KNAUER. Dialektik und Relation, 56ss. 92 Cf. IBID., 69s: “Longe de tornar também obsoleto o conceito cristão de Deus, a dialética é, na nossa

experiência, o ponto de partida de fato para toda prova de Deus” (IBID., 69).

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Também o pensamento dialético, em sua “essência”, não é uma descoberta de HEGEL e

MARX, no caso, e sim conhecido já na escolástica: já TOMÁS DE AQUINO percebeu o mundo

como realidade perpassada de contradições em que contingência e incontingência se

entrelaçam: “pois nada é tão contingente que não teria algo necessário dentro de si”.93 Ao

resgatar essa ideia em TOMÁS, KNAUER assim identifica seu “problema de contradição” que

perpassa o ser do mundo: no mundo existem positividade e negatividade ao mesmo tempo. As

coisas existem e não existem ao mesmo tempo: são “finitas”. Cada pessoa é o que é e não o é

mais no mesmo instante. O mundo assim é sujeito à mudança. Identidade e não-identidade,

ser e não-ser, necessidade e não-necessidade em sua simultaneidade e imbricação

caracterizam o mundo pelo “problema de contradição” inerente a ele.94

A respeito disso, é importante distinguir entre um “problema de contradição” e o fato

de uma contradição real. Pois, nesse ponto, emerge a pergunta o que mesmo diferencia o ser

do mundo de uma contradição contraditória. Suposto que o mundo não pudesse ser explicado

(= descrever livre de contradição), então, a afirmação de qualquer verdade, de qualquer

conhecimento responsável, seria impossível, estariam abertas as portas para a arbitrariedade.

Por essa razão, KNAUER aqui remonta ao princípio da não-contradição como princípio lógico

e ontológico irrefutável.95 Enfim, pretende-se dizer explicando qual é o ser do mundo. A

estratégia argumentativa de KNAUER consiste em comprovar qualquer negação do ser criado

do mundo como uma afirmação sem sentido e em si contraditória:

Criaturalidade pretende ser comprovada em seguida como realmente existente pelo fato de que sua negação, a saber, que o mundo não seja criado, é comprovada como contraditória em si.96

3.3 Explicação do mundo pelo seu ser criado do nada: Duas referências distintas e não-contraditórias

Uma contradição real ou contraditória constaria se, no mundo, existissem positividade

e negatividade ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto [Hinsicht]. A ocorrência simultânea

dos dois aspectos já foi constatada. Para não incorrer numa contradição real, teria que se

93 TOMÁS DE AQUINO. S. th. I q86 a3 c. Apud: KNAUER. Der Glaube, 46, nota 47. Cf. tb. IDEM. Apresentação

PowerPoint, jul. 2009, slide 162. 94 Cf. demonstração detalhada nos exemplos da mudança, da finitude, do conhecimento (consciência) e do

próprio princípio da não-contradição em KNAUER. Der Glaube, 45-48 e IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 154-169.

95 Cf. acima p. 49 deste trabalho. 96 KNAUER. Der Glaube, 43.

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aduzir, agora, ao menos dois aspectos, dois correspondentes respectivos por positividade e

negatividade, distintos entre si. Estas, por sua vez, não poderiam mais formar uma contradição

entre si. Haveriam de valer ao mesmo tempo.

Tais referências, distintas entre si, mas não contraditórias, KNAUER já encontrou

exatamente pela sua interpretação do ser criado do nada do mundo como um “ser totalmente

referido a ...” – como sendo a primeira referência – que é, ao mesmo tempo, um “ser

totalmente diferente de ....” – como sendo a segunda referência. Ambas as referências são

afirmadas ao mesmo tempo e como não-contraditórias entre si. O “ser relacionado a ...”

representa a positividade existente no mundo, identidade e ser. O “ser diferente de ...”

representa a negatividade simultaneamente existente no mundo, não-identidade e não-ser. O

caráter total, real e unilateral dessa relação do mundo ao seu termo constitutivo garante que

essas duas referências (relação e diferença) hão de ser pensadas como simultaneamente

válidas.

O que distingue, então, a explicação do mundo pela sua criaturalidade como um ser

“totalmente relacionado a .../ ser totalmente diferente de ...” de uma afirmação arbitrária

porque contraditória sobre o mundo? É pelo fato de que são aduzidas duas referências

diferentes, mas não contraditórias entre si, ambas simultaneamente válidas para explicar o

“problema de contradição” observado para cada realidade mundana. O raciocínio da prova de

KNAUER – e como critério de sua criticidade é referido por ele mesmo – somente cai por terra

se alguém puder comprovar que uma realidade mundana não forma uma unidade de opostos,

como seria o caso de “ser puro” ou “identidade pura”. Pois isso significaria que o mundo não

se devia mais a outro totalmente senão a si mesmo, pelo que não necessitaria mais de

explicação alguma.

Resumindo, constata-se que o mundo é explicado não por Deus tal qual, e sim pelo seu

próprio ser criado enquanto relação unilateral ao seu termo constitutivo, sem o qual não pode

ser, e que chamamos de Deus. Fundamento e referência constitutiva da fala de Deus assim é,

comprovadamente, o próprio ser do mundo como relação real e unilateral ao seu para-onde.

Qualquer ideia prévia de Deus ou pensamento especulativo a respeito de sua existência pode

ser desmascarado como mera projeção ao que se pretende dizer por “Deus”.

Tal conhecimento relacional de Deus por meio da razão humana não é, portanto, um

conhecimento vago, parcial ou impreciso, e sim absolutamente preciso e pertinente. Ele o é

não apesar de salvaguardar a essencial inconcebilidade de Deus, mas sim justamente por

causa dela. Põe-se, agora, a pergunta pelo que caracteriza a própria fala de Deus dentro dos

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termos de uma ontologia relacional – visto o que foi afirmado no início do capítulo:

obviamente, de Deus não se pode falar da mesma forma como falamos das coisas do mundo.

Como falar de Deus segura e adequadamente, então?

4 FALAR ANÁLOGO DE DEUS: CONSEQUÊNCIA DA COMPREENSÃO RELACIONAL DO SER

De fato, a mensagem cristã, por se referir ao mundo como ser criado do nada em

total dependência de seu para-onde, exclui que se possa falar de Deus como se fala das coisas

do mundo; mas, com isso, ela implica que se pode falar de Deus sim apenas com base no

mundo como um “ser totalmente relacionado a ... / em total diferença de ...”, e isto significa:

de forma referente de acordo com tal “ser” do mundo.97 Mas o reconhecimento de que Deus

não está subordinado a um conceito de nossa linguagem não significa que de Deus somente

podemos dizer o que ele não é? Pois, se o mundo é inteiramente diferente de Deus, se o “ser”

de Deus em nada converge com o ser do mundo, como podemos ainda dizer que Deus é

“Criador”, que é “pessoa” e inteiramente “bom” e que ele criou homem e mulher em

semelhança a si mesmo?

4.1 Exigência indispensável do falar análogo de Deus

Já no primeiro capítulo, foi aludido ao fato de que, na fé, se pode falar de Deus apenas

por meio de parábolas, significa: à base da semelhança, de forma “referente” [hinweisend].98

Na tradição teológica da Igreja, remonta-se ao discurso da “analogia”.99 No entanto, KNAUER

observa que o recurso à analogia na teologia fundamental clássica, como acontece dentro das

categorias de uma ontologia substancialista, não capta a radicalidade de seu sentido relacional

e originário (constitutivo) no ato do conhecimento de Deus perante afirmação de sua

inconcebilidade.

97 Constata-se que há, no uso análogo da linguagem humana a partir de uma ontologia relacional, total

congruência entre ordem lógica e ontológica, entre falar, conhecer, pensar e ser. É essa a razão pela qual KNAUER insiste no uso lógico e ontológico do princípio da não-contradição (cf. KNAUER. Dialektik und Relation, 62 e IBID., nota 8).

98 Cf. KNAUER. Der Glaube, 117. Cf. tb. a conclusão ao capítulo III. As afirmações de fé que tratam da autocomunicação de Deus pressupõem em tudo o que se afirma no campo da razão. Também no campo da fé vale dizer que o conhecimento do estar voltado de Deus a nós segue uma analogia unilateral.

99 E analogia entis (cf. a referência a CORETH, PRZYARA e PUNTEL em KNAUER. Der Glaube, 62, nota 67). O termo é distorcido quando utilizado na concepção substancialista porque projeta a reciprocidade de analogias intramundanas na relação do mundo a Deus. Somente por meio de uma reinterpretação relacional, afirma KNAUER, a analogia entis chega realmente ao seu termo de falar de Deus correspondentemente.

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À primeira vista poderia parecer que a doutrina da analogia da alta escolástica oferecesse, sim, a possibilidade de um conceito do ser abrangendo Deus e mundo ao menos difusamente, [...] . Essa aparência engana; antes, a doutrina da analogia justamente exclui tal conceito em comum do ser definitivamente.100

Em decorrência dessa opinião, muitas vezes, afirma-se que se pode conhecer Deus

apenas parcialmente. Por isso é que se concebe o discurso análogo de forma geral como um

tipo de “mal menor”, de encontrar algum jeito, mesmo se “deficiente”, para poder-se falar de

Deus. Contra tais caricaturas do uso da linguagem humana KNAUER, adverte que

[o] falar análogo nada tem a ver com um modo de fala apenas “vago” ou “aproximativo”, mas é insuperavelmente preciso. A fala análoga com relação a Deus é o modo mais perfeito e profundo do uso de nossa linguagem.101

Além disso, encontra-se frequentemente a opinião de que a fala análoga, designada

nesse contexto de “simbólica”, é entendida nos parâmetros da hermenêutica de significação.

Esta concebe a linguagem como mero sinal em que a coisa designada pela palavra como sinal

ou cifra se encontra fora deste e apenas aponta a ele de forma indicativa. Nessa concepção,

não é possível afirmar a correspondência entre a ordem lógica e ontológica porque, de fato,

trata-se de palavras vazias. Uma palavra – seja qual for – “de Deus”, porém, jamais pode ser

“vazia” porque há de ser entendida como afirmação insuperável por outra maior, como “a

mais carregada” por assim dizer.

Em sua explicação da analogia e de seu “lugar” ou sua “função” no discurso de Deus

desde seu “conhecimento natural”, KNAUER reinterpreta as três vias clássicas da doutrina

escolástica da analogia a partir de sua ontologia relacional. Esta trata da “interrelação”

[Zusammenspiel]102 entre via afirmativa (via affirmativa), via negativa (via negativa) e via da

eminência (via eminentiae). Na concepção substancialista, o discurso análogo, apesar de ser

associado ao ato de conhecimento de Deus, surge como elemento posterior ao ato

cognoscitivo. Numa ontologia relacional, ao contrário, a fala análoga é concebida como

constitutiva para o ato cognoscitivo que é absolutamente idêntico à fala de “Deus”. Por isso,

KNAUER afirma que as três vias clássicas da doutrina da analogia chegam ao seu termo ou a

100 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 2. 101 KNAUER. Der Glaube, 69. 102 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 2.

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sua reta compreensão somente por meio de uma ontologia relacional porque são implicadas

como indispensáveis de antemão na busca da reta compreensão da criaturalidade e sua

comprovação, e não acrescentadas posteriormente à parte.103

Além dessa dissociação entre ato de conhecimento de Deus e ato de fala de Deus, há

uma dissociação entre as três vias análogas na compreensão substancialista porque, antes de

tudo, esta não é capaz de atribuir um sentido único e insuperável à via da eminência.

A aparência de um conceito do ser difusamente em comum, abrangendo a Deus e mundo, surge enquanto se acha erroneamente poder compreender a “via afirmativa” e a “via negativa” por si só. Não poder-se-ia ainda, então, distinguir o conceito de Deus de uma projeção a partir do mundo. A “via affirmativa” e a “via negativa”, na visão da alta escolástica são compreendidas corretamente, porém, apenas à luz da “via eminentiae”.104

Para KNAUER, aqui se trata apenas de tornar explícito o falar análogo de Deus em

coincidência absoluta do conhecer a “Deus” como “aquele sem quem nada é” por meio do

mundo corretamente descrito e explicado como “criado do nada” (ser totalmente relacionado

a ... / em total diferença de ...), e do pensar de Deus como maior do que se pode ser pensar. Se

tal inconcebilidade de Deus é respeitada e salvaguardada somente numa concepção relacional

do ser, também o falar de Deus há de corresponder à particularidade desse conhecimento de

Deus em sua relacionalidade substancial e unilateral. Pois aqui a ordem lógica (do pensar,

conhecer e falar) exprime a ordem ontológica porque a palavra que fala de Deus, como aquele

sem quem nada é, “contém” ou submete ao conceito o ser do mundo que difere do ser de Deus

totalmente, mas assim somente a ele remete.

Como exemplificação de uma compreensão e apresentação corretas das três vias da

analogia – inclusive da unidade que formam –, KNAUER cita das Confissões de SANTO

AGOSTINHO:

Tu, Senhor, fizeste o céu e a terra: Comparados contigo, tu que és belo – pois eles são belos; Porém, não são tão belos, não são nem belos, tu que és bom – pois eles são bons, nem tão bons, nem bons, tu que existes – pois eles existem. nem existem na maneira nem sequer existem.105 como tu existes, tu que és seu Criador.

103 Cf. KNAUER. „Natürliche Gotteserkenntnis”. 104 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 2s. 105 SANTO AGOSTINHO, Confissões, livro 11, cap. 6, n. 4. Apud: KNAUER. Para compreender nossa Fé, 17.

SANTO AGOSTINHO apresenta o mundo como ser criado (1º parágrafo) e em seguida a forma análoga de falar que essa afirmação requer em seu conjunto de semelhança e dessemelhança (2º-4º parágrafo correspondentes às vias afirmativa, negativa e da eminência).

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A positividade do mundo fundamenta a via afirmativa (4.2), a negatividade resulta da

diferença do mundo com relação ao seu termo, a via negativa (4.3). Quanto a Deus, porém, há

de se negar toda finitude e limitação. Por isso, a via da eminência está implicada nas

primeiras duas para ressaltar explicitamente que toda fala de Deus permanece sempre um falar

referente de forma unilateral, salvaguardando assim a inconcebilidade de Deus (4.4).

4.2 Semelhança do mundo com Deus: a via afirmativa

O fundamento e a razão da fala de Deus é o ser do mundo todo e cada coisa nele

enquanto um ser totalmente relacionado ao seu termo constitutivo. A via afirmativa está

baseada no fato de que se pode afirmar semelhança do mundo a Deus apenas porque aquele se

remete a este direta e unicamente. Diz-se de forma referente que o mundo é semelhante a

Deus: à medida que se diz que algo existe, implica-se a afirmação de que Deus “existe”

porque, sem ele, tal coisa nem poderia existir. Se o ser humano se reconhece a si mesmo

como pessoa, pela mesma razão, atribui “ser pessoa” a Deus sem o qual nada seria. Quando se

afirma que tudo que existe está orientado para o bem e representa um “bem” porque fazer o

bem é o “sentido” e a responsabilidade inegável do ser humano, já se implicou, com isso, a

“bondade” de Deus.

No entanto, é óbvio que não se atribui existência, bondade, perfeição ou ser pessoa a

Deus da mesma forma como se os atribui ao ser humano e às coisas do mundo, mas só de

forma referente – já que o “ser” de Deus não se compreende “debaixo” dos nossos conceitos.

Se Deus está para além dos nossos conceitos, mas tudo que pela via afirmativa referimos a ele

a partir do mundo e por razão do ser do mundo, então, também se deve poder explicitar o

caráter unilateral dessa referência (analogia). Dessa maneira, ao atribuir a Deus perfeição,

realidade e bondade etc., ter-se-ia de dizer que Deus é “sobre-perfeição” [Über-

Vollkommenheit, “sobre-realidade” [Über-Wirklichkeit], “sobre-bondade” [Über-Gutheit]

etc.106

Essa indicação procura evitar que se recaia na tentação corriqueira de conceber Deus

como um “ser supremo” ou “supernatural” no sentido de um prolongamento infinito de nosso

ser criatural (natural). Novamente, configurar-se-ia Deus como um pedaço do mundo,

subordinando-o ao nosso conceito do ser, e assim mesclando ou até confundindo criatura com

106 Cf. KNAUER. Der Glaube, 63.

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seu Criador (destituindo a Deus como termo constitutivo e elevar alguma realidade criada ao

status de termo constitutivo, o que implica autocontradição). O que aqui é designado pelo

prefixo “sobre” será explicitado como o sentido da via da eminência em 4.4.

4.3 Dessemelhança do mundo com Deus: a via negativa

Ao mesmo tempo em que a via afirmativa forma a base para um discurso referente ao

termo que constitui o mundo como um ser relacionado a esse seu para-onde – e com isso a

constatação da semelhança do mundo com Deus –, há de se constatar dessemelhança da

mesma forma, portanto, radicalmente. É isso que a tradição teológica do discurso pretende

dizer pela via negativa. O mundo, em nenhum aspecto de seu ser, parece com o ponto de

referência de sua existência, Deus, sem quem não poderia ser.

Tradicionalmente se formam sob a via negativa os opostos por meio dos quais se

pretende dizer que o Criador se diferencia de sua criatura: enquanto o mundo é finito e

mutável, Deus é infinito e imutável; enquanto o ser humano (e todo ser vivo) é mortal, Deus é

imortal. Logo também se enquadra nesses termos o discurso da contingência do ser mundano

e da incontingência do ser divino. A esse respeito, porém, já foi visto que no mundo mesmo

se mesclam contingência e incontingência formando um “problema de contradição” que

somente a concepção relacional do ser do mundo resolve.

Na ontologia relacional, a diferença entre a relação e seu termo constitutivo emerge

indissoluvelmente vinculada ao ser relacionado do mundo. Isto se deve à totalidade com a

qual o ser do mundo imerge de tal forma nesta relação, que esta constitui aquele, precisamente

por causa de seu termo constitutivo com o qual jamais se confunde.

Por essa razão, parece-nos ser correto dizer, no sentido da compreensão de KNAUER,

que a via negativa não é apenas algo como “o outro lado da moeda” do ser totalmente

relacionado do mundo ao seu termo constitutivo. Antes, ocorre que, à medida que se afirma

semelhança, a dessemelhança já está co-dita implicitamente. As duas referências não podem

ser divididas nem confundidas; antes constam como indissoluvelmente imbricadas.107

Consequentemente, também o reforço à via negativa por si só não é capaz de evitar o

perigo de não pensar a diferença entre o mundo e Deus de forma total, insuperável. Uma

“teologia negativa” não está absolvida de antemão da suspeita de subordinar Deus aos

conceitos de nossa linguagem só porque se recusa a usar termos afirmativos em função da

107 Cf. KNAUER. Der Glaube, 66.

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inefabilidade de Deus. KNAUER ressalta que a via negativa só pode existir com a via

afirmativa e ambas hão de ser norteadas pela via eminentiae.108 Aparentemente também aqui

se manifesta a tendência do ser humano de reenquadrar o ser infinito de Deus como um ser

mundano infinitamente extrapolado.

Porém, o ser infinito de Deus, bem como sua imutabilidade, também são afirmados

apenas de forma referente. Dessa maneira, também com relação a esses atributos “negativos”

que procuram dizer o que distingue Deus do mundo, Deus nunca pode ser apreendido “sob”

(ou debaixo de) tais conceitos. Seu ser infinito haveria de ser explicitado em correspondência

à via afirmativa como “sobre-in-finitude” [Über-Un-Endlichkeit] e sua imutabilidade como

“sobre-i-mutabilidade” [Über-Un-Veränderlichkeit].109

4.4 Semelhança e dessemelhança em seu sentido unilateral: a via da eminência

A chave de leitura para a reta compreensão das primeiras duas vias, afirmativa e

negativa, bem como do falar sempre e somente análogo de Deus enquanto tal, é a via da

eminência. Contrário a compreensões corriqueiras na teologia, essa via não é eminente no

sentido de extrapolar a via afirmativa ad infinitum, mas de explicitar e assegurar que as

primeiras duas vias, da semelhança e da dessemelhança do mundo com Deus, sejam

compreendidas realmente de forma referente e por referência exclusivamente unilateral.

Isso quer dizer que, à base (ontológica) do mundo como uma relação (por isso) real,

total e unilateral a ... / em total diferença de ... seu termo constitutivo se afirmam semelhança

e dessemelhança da criação com Deus-Criador. Mas, comparado com Deus, não se pode

afirmar alguma semelhança sequer dele com o mundo, porque uma relação de Deus ao mundo

é impossível de ser afirmada. Reconhecer que a relação do mundo a Deus é unilateral

significa não poder concluir semelhança da parte de Deus, pois isso implicaria anular

posteriormente nosso “ser-criado-do-nada”.

A via da eminência salvaguarda assim a inconcebilidade de Deus porque representa a

unilateralidade do discurso análogo enquanto tal, afirmando que não há analogia alguma de

Deus em comparação com o mundo. É nesse sentido que KNAUER interpreta a formulação do

108 Cf. KNAUER. Welchen Sinn hat das Wort “Gott ...”, 326. Frente à ontologia substancialista, por sua vez, a

teologia negativa tinha que emergir inevitavelmente como uma tentativa de reparo posterior a um erro fundamental (e principalmente irreparável): conceber a doutrina da analogia como acréscimo posterior à prova da existência de Deus (cf. IDEM. Der Glaube, 68). Nesse sentido a via negativa também não pode ser confundida com a via da eminência, como KNAUER observa criticamente com relação a EBELING (cf. IDEM. Verantwortung des Glaubens, 37 e IBID., nota 140).

109 Cf. KNAUER. Der Glaube, 65.

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IV Concílio de Latrão (1215 d.C.) como representação correta do significado da via da

eminência. Este afirma que “não é possível constatar semelhança alguma entre Criador e

criatura sem constatar dessemelhança maior ainda” (DH 806).110 Reconhece-se essa

compreensão também na seguinte afirmação de TOMÁS DE AQUINO:

Mesmo admitindo que, de certa forma, a criatura seja semelhante a Deus, de modo algum, pode ser admitido que Deus seja semelhante à criatura. Pois [...] semelhança mútua apenas pode ser suposta daquilo que corresponde à mesma ordem [do ser].111

Essa analogia assimétrica, que parte do mundo a Deus sem base ontológica de concluir

semelhança da parte de Deus, é garantida pela afirmação de sua dessemelhança cada vez

maior (via da eminência). É ela que preserva a inconcebilidade de Deus no sentido estrito,

fornecendo o critério definitivo de distinguir o conceito de Deus da tradição cristã de qualquer

autoprojeção, “pois uma imagem projetada haveria de estar numa semelhança recíproca com a

sua origem”.112

4.5 Algumas consequências da analogia unilateral referente à fala de Deus

Diante da apresentação das três vias análogas na fala de Deus, pode-se, agora,

perguntar qual delas prevalece enfim. É a via afirmativa porque somente à base de um

reconhecimento do mundo como um “ser referido a ...” se pode justificar alguma afirmação de

Deus? É a via negativa porque, apesar de toda semelhança do mundo a Deus, este jamais se

confunde em seu ser com aquele? Ou é mesmo a via da eminência porque leva a reconhecer

que de Deus podemos falar somente “no modo de sua ausência”?113

Contra a tendência de desvincular o nexo intrínseco entre as três vias análogas,

KNAUER ressalta que apenas uma afirmação de Deus que tem essa estrutura de uma analogia

unilateral é coerente, porque mantém seu fundamento ontológico no mundo em seu ser

totalmente relacionado a ... / em total diferença de ... (= real e unilateral), o para-onde que a

constitui. O sentido da via da eminência é justamente de assegurar tal intelecção. Em resgate

dessa consciência nítida na fala de Deus na alta escolástica, o autor cita, de forma exemplar (e

em resumo), a Suma Teológica de TOMÁS DE AQUINO: 110 KNAUER cita esta formulação sempre nesse contexto como em IDEM. Der Glaube, 68, nota 73, onde também

refere a sua base veterotestamentária como, p. ex., com Is 40,18. 46,15. Cf. também IDEM. Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 320 e IDEM. „Natürliche Gotteserkenntnis“.

111 TOMÁS DE AQUINO, S.th. I q4 a3 ad4. Apud: KNAUER. Der Glaube, 66s, nota 73. 112 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 3. 113 KNAUER. Fundamentaltheologische Erhellung, 188.

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Como Deus se encontra fora de toda a ordem criada e todas as criaturas estão relacionadas a ele, e não o contrário, então se manifesta que as criaturas se relacionam realmente a Deus. Em Deus, porém, não há nenhuma relação real dele às criaturas e sim apenas uma relação pensada [secundum rationem tantum], justamente na medida em que as criaturas se referem a ele.114

A afirmação de uma relação de Deus ao mundo, segundo TOMÁS DE AQUINO, é

justificável somente se concebida como relação pensada, ou então, conceitual [secundum

rationem tantum]. Consequentemente KNAUER formula: “sempre nós compreendemos de

Deus apenas o que é diferente dele, mas que a ele remete”.115 Para além da afirmação de que o

mundo não pode existir sem ele, nada se pode “concluir” de Deus. É próprio da intuição e do

pensar rigoroso de KNAUER de não relativizar jamais a conclusão de que assim é impossível,

no campo da razão humana, conceber uma relação real de Deus ao mundo. Quais as demais

implicações de tal afirmação?

Antes assegura que o mundo, por sua vez, não pode, para além de sua dependência

total de seu para-onde, ser também o termo constitutivo para uma relação de Deus a ele. O

pano de fundo metafísico é a afirmação de que uma relação é constituída somente pelo seu

termo. Isso significaria dizer, nesse caso, que o termo de uma relação real de Deus ao mundo

seria o próprio mundo. Mas, dessa forma, Deus tal qual seria constituído pelo mundo, o qual

passaria a ser o termo constitutivo do ser de Deus. Deus assim, de fato, estaria sujeito a

mudança,116 ao “problema de contradição” que marca o ser do mundo como ser criado do

nada. Novamente, precisar-se-ia procurar um termo constitutivo para ambos, ou recair-se-á na

concepção substancialista na qual o conceito do ser assume esse lugar enganosamente

(erroneamente).

Se pode concluir somente do mundo a sua dependência de Deus, mas não contrariamente por assim dizer de Deus ao mundo. Uma tal dedução do mundo de Deus, com a falta de uma relação real de Deus ao mundo pela qual o mundo seria o termo constitutivo, carece de toda base ontológica.117

114 TOMÁS DE AQUINO, S.th. I q13 a7 c (destaques nossos), Apud: KNAUER. Der Glaube, 76, nota 84; cf. tb.

IDEM. Die chalkedonensische Christologie, 3, onde também cita SANTO TOMÁS. S.th. I q28 al ad3: “Em Deus não há relação real a criaturas, mas nas criaturas há relação real a Deus”.

115 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 313. 116 Cf. KNAUER. Der Glaube, 76 e tb. IDEM. Die chalkedonensische Christologie, 5. 117 KNAUER. Der Glaube, 78.

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Nesse sentido, o termo do ser criado do mundo (não Deus!) é um “conceito lógico

final [último]” [logischer Endbegriff]118 ou “algo como uma estação lógica final” [logische

Endstation].119 Uma ontologia relacional obriga o teólogo a permanecer em seu discurso

sempre do lado do mundo, com “os pés no chão”, por assim dizer. Não lhe é permitido

levantar voo para concluir alguma coisa da parte de Deus querendo deixar assim para trás seu

próprio ser criado. A analogia unilateral não permite, como KNAUER sublinha sempre, que se

argumente com o conceito de Deus, sua inconcebilidade ou seu ser absoluto.

Portanto, o discurso análogo de Deus dentro de uma compreensão relacional do ser do

mundo é a alternativa à subordinação de Deus a um conceito por meio de uma concepção

substancialista. Para esta, não há nenhum problema de afirmar semelhança mútua entre Deus

e mundo. Mas Deus assim passa a ser inevitavelmente “uma realidade mundana alteada ao

infinito”.120 Ao contrário, o discurso análogo unilateral rompe as fronteiras do uso corriqueiro

de nossa linguagem, pois, em nosso discurso de Deus, sempre somos tentados a recair na

tendência de “conceituar” Deus:

Causa dificuldade enorme a nós seres humanos permitir tal rompimento [Aufbrechen] dos limites da linguagem. Preferivelmente gostaríamos de pensar Deus apenas como um ente ao lado de outros. Nós queremos ordená-lo dentro do horizonte de nosso conceito do ser ao invés de, antes, permitir nosso horizonte ser rompido [aufreissen]. Pois nesse caso, os limites de nossa linguagem não precisavam ser rompidas [gesprengt].121

A afirmação de Deus como “sem quem nada é” significa que, desde sempre, nos

encontramos “em suas mãos” de forma insuperável, mesmo se isso não permita concluir seu

estar voltado misericordiosamente a nós. Para além dessa dependência total, não se pode

querer afirmar mais outra coisa com relação à palavra “Deus”. Como isso repercute sobre a

compreensão da onipotência divina, de sua liberdade com relação à do ser humano e da

existência do mal?

Todo o discurso de Deus, por exemplo, no Antigo Testamento, que se costuma chamar

de “antropomórfico”, entende-se agora de outra maneira no falar da razão humana. A

afirmação de que é Deus que criou o mundo tem sua razão, seu fundamento real

(fundamentum in re) no ser substancialmente relacionado do mundo ao seu termo

constitutivo. Também todas as demais afirmações de Deus que sugerem uma intervenção 118 IBID., 68. 119 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 317. 120 KNAUER. Der Glaube, 70. 121 KNAUER. Unseren Glauben, 36; cf. tb. IDEM. Die chalkedonensische Christologie, 1-4.

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[in]direta de Deus no curso da história, como a libertação do povo de Israel do Egito, a

passagem pelo Mar morto etc., especialmente no que concerne à “ira” de Deus, sua vingança

e seus castigos, justificam-se por referir-se à sua onipotência de forma meramente

“potencial”122: como Deus é “todopoderoso”, bem pode causar tanto o bem como o mal – se

assim quiser. Tal pensamento equívoco, que projeta em Deus as nossas próprias fantasias de

poder, é inevitável numa concepção substancialista do ser.

Uma imagem de um Deus raivoso, incalculável, enfim, arbitrário, introduz no conceito

de Deus a mudança e com ela a temporalidade. Ao invés disso, há de se conceber tal discurso

com base real no ser humano que assim se vê posto diante de seu Criador:

Se Deus passa a ser designado de modo temporal a algo que [ele] não era designado antes, então é claro que [ele] somente é designado assim de forma referente; e isto não conforme uma característica de Deus que fosse acrescentada a ele, e somente conforme uma característica daquilo a que Deus passa a ser designado de forma referente. Se o justo passa a ser amigo de Deus, então, aquele muda. Afastado seja, porém, que Deus ame alguém de forma temporal, praticamente com um amor novo, que antes não existia nele. Pois em Deus o passado não é passado e o futuro já aconteceu.123

Numa concepção ontológico-relacional da analogia, atribui-se onipotência a Deus em

consequência do reconhecimento do nosso ser criado em seu ser total e unilateralmente

relacionado: Deus é “absolutamente [schlechthin] em tudo que de fato acontece o

poderoso”.124 Isso vale ser ressaltado, sobretudo, com relação ao mal que acontece no mundo.

Dele também se pode apenas afirmar que não “existiria” sem Deus. Nesse contexto, KNAUER

se refere a Is 45,7: “Eu formo a luz e crio as trevas, asseguro o bem-estar e crio a desgraça:

sim eu, Yahweh, faço tudo isso”, bem como a Mt 5,45: “ele faz nascer o sol igualmente sobre

maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos”. Desse modo, compreende-se a fala bíblica

do “dia da ira” (Rm 2,5) ou da “ira de Deus” (Rm 1,18) em dois aspectos: (1) diante do

Criador, o ser humano há de se conceber em abstração da fé (ou do “lado de fora” dela) como

“criatura perdida” em um mundo “infernal”; e (2) o caminho à comunhão com Deus não pode

passar por cima do discernimento entre bem e mal a custo de não entender o significado da

graça.125

122 Cf. KNAUER. Unseren Glauben, 14s; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 75s. 123 SANTO AGOSTINHO, De Trinitate 5, XVI, 17. Apud: KNAUER. Der Glaube, 76, nota 84. 124 KNAUER. Der Glaube, 75; cf. tb. p. 45, nota 98 deste trabalho. Uma reflexão mais aprofundada se encontra

em IDEM. “Eine andere Antwort auf das ‚Theodizeeproblem‘ – was der Glaube für den Umgang mit dem Leid ausmacht”. In: ThPh 78 (2003) 196-201.

125 Cf. KNAUER. Der Glaube, 80s.118. Mais detalhes em IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 266-275.

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Em consequência disso, há de se confirmar que inclusive o mal não pode ser sem

Deus, sem que, com isso, se possa concluir – a preço de burlar a unilateralidade da relação do

mundo ao seu termo – que Deus quer o mal. Assim, a questão da “teodicéia” há de ser

refutada em seus falsos pressupostos antes que pudesse realmente “afetar” a Deus.126 De

acordo com KNAUER, a questão, de entrada, já é posta erroneamente: não é como Deus pode

“querer” ou “permitir” o mal. Isso sempre supõe algum tipo de intervenção divina para além

de nossa total dependência dele.

Ao contrário dessa subordinação de Deus ao conceito, só se pode constatar de forma

referente que também o mal não pode ser sem ele. Talvez seja mesmo por meio do problema

da teodicéia que a “questionabilidade radical do mundo”127 emerge em sua impossibilidade de

solução a partir do mundo, e em abstração da fé. Pois a questão é, para KNAUER, como lidar

com o mal! E a resposta a tal pergunta já se encontra dada na mensagem cristã embora seja

possível de ser acolhida somente na fé: “Ainda que eu caminhe por vale tenebroso nenhum

mal temerei, pois estás junto a mim; teu bastão e teu cajado me deixam tranquilo” (Sl 23,4).128

Da mesma forma, não se pode mais conceber a liberdade divina na obscuridade de

uma compreensão substancialista. Ela, além disso, só pode compreender a liberdade do ser

humano, com a autonomia do mundo todo, em concorrência com a liberdade de Deus. Numa

concepção relacional do ser, essa oposição é superada:129 a insuperável liberdade de Deus está

garantida pelo reconhecimento de que jamais está posto “debaixo” de algum conceito.

Arbitrariedade é excluída pelo fato de que esse reconhecimento tem sua base real no mundo

como um ser totalmente relacionado a ... / em total diferença de ... . Enquanto liberdade e

126 Cf. KNAUER. Der Glaube, 79-81; cf. tb. IDEM. Unseren Glauben, 150-159; IDEM. „Erlösung aus der

Theodizeefrage”. In: Communitas. Périodique bimestriel: Foyer Catholique Européen, nov. 2004, 16–17. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/30.html>. Acesso em: 13 out. 2009; e IDEM. “Eine andere Antwort auf das ‚Theodizeeproblem‘. Was der Glaube für den Umgang mit dem Leid ausmacht”. In: ThPh 78 (2003) 193-211. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.Knauer/25.html>. Acesso em: 30 out. 2009.

127 Cf. p. 77, nota 202 deste trabalho. 128 Cf. KNAUER. Eine andere Antwort auf das „Theodizeeproblem“, 194, para dar uma das diversas referências

bíblicas aduzidas pelo autor. É uma intuição do autor desta dissertação conceber a doutrina da “opção teocêntrica pelos pobres” da TdL, relida à base da ontologia relacional de KNAUER, como sendo essa resposta de fé em nossos dias. Apesar de KNAUER reconhecer a opção pelos pobres “apenas” como parte integrante da doutrina social da Igreja (cf. IDEM. Glaube befreit zur Option für die Armen. in: MAGDALENA

HOLZTRATTNER (ORG.). Eine vorrangige Option für die Armen im 21. Jahrhundert? Innsbruck: Tyrolia-Verlag, 2005, 37-59. Artigo também disponível em: <www.jesuiten.org/peter.knauer/48.htm>. Acesso em: 13 out. 2009), parece-nos não somente possível como até demandado pelos desafios da evangelização uma leitura teológico-kerygmática, sem desobedecer ao princípio de DH 3015 (objeto de conhecimento da razão não pode ser também objeto de conhecimento da fé). Não seria nada mais (e também nada menos) que uma teologia da cruz pertinentemente reformulada para os dias de hoje.

129 Cf. KNAUER. Der Glaube, 78s.

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dependência entre as realidades intramundanas se comportam inversamente proporcionais,

autonomia e dependência do mundo com relação a Deus são diretamente proporcionais: ao

mundo confere autonomia justamente porque depende de Deus totalmente.130

5. CONCLUSÃO: A PALAVRA “DEUS” COMO OBJEÇÃO MAIOR CONTRA “PALAVRA DE DEUS”

Uma mensagem que levanta a pretensão de verdade de ser palavra de Deus há de

prestar conta, em primeiro lugar, como entende o termo “Deus”, se não quiser ser rechaçada

logo com razão como uma afirmação infundada e assim incompreensível. Isso se impõe como

primeira questão da fundamentação teológica da fé pelo fato de que ela afirma que sua

verdade “não é legível no mundo”, e isso significa não ser evidenciável por meio da razão

humana. Nesse contexto, a própria mensagem desperta para o problema de como falar de

“Deus” se sua própria tradição sempre afirmou sua “inconcebilidade”. A esse problema

linguístico de fundo metafísico a mensagem cristã responde por referência ao “ser criado do

nada” de tudo o que existe enquanto cognoscível pela razão humana: o “mundo”.

No entanto, para se compreender coerentemente o discurso do ser criado, de acordo

com KNAUER, “na medida em que a compreensão prévia do ser humano é assunto da filosofia,

parece que a fé cristã há de levar consigo sua própria filosofia”131 em forma de uma ontologia

relacional. Esta refuta, como inadequado, o modelo substancialista de descrição da realidade

intramundana por meio do “princípio metafísico da causalidade” em sua aplicação à relação

entre mundo e Deus. Por isso, o ser criado do nada é entendido como um “ser totalmente

relacionado a ... / em diferença total de ...” seu “para-onde”. Esse seu “termo constitutivo”

unicamente merece ser designado de “Deus”. Dessa maneira, “Deus” é precisamente definido

como “aquele sem quem nada é” por causa do mundo “não-poder-ser-sem ...” termo

constitutivo.

130 Cf. IBID., 41. Por isso KNAUER observa que sempre se trata de “autonomia relativa”. Com isto não quer dizer

que a autonomia do mundo é relativizada (e assim diminuída), mas que ele é verdadeiramente autônomo apenas no sentido de ser constituído pelo ser referido do mundo totalmente ao seu termo constitutivo. Por conseguinte, Deus não pode mais ser concebido como um “fator singular” no mundo (cf. KNAUER. Fundamentaltheologische Erhellung, 190). Por outro lado, isso impede que autonomia seja associada de alguma forma a arbitrariedade: “Por ‘autonomia da realidade criada’ não se quer dizer que o ser humano possa dar a si mesmo as leis morais a bom gosto. Antes isso significa uma moralidade própria [Eigengesetzlichkeit] das realidades criadas que inabita nelas” (IDEM. Handlungsnetze, 143s). Nesse contexto da modernidade o autor refere ao Vaticano I (DH 3019) e ao Vaticano II (AA 7,2) como reconhecimento da autonomia do mundo pelo Magistério (cf. IDEM. Der Glaube, 320.372.387).

131 Cf. KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 69s; cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 975.

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Tal afirmação se evidencia como objeto de conhecimento da razão porque está sujeita

à comprovação. Nessa prova de criaturalidade, o “problema de contradição” da

interpenetração simultânea de ser e não-ser encontrado em toda a realidade mundana só pode

ser solucionado por aduzir duas referências distintas entre si, que coexistem simultaneamente,

sem se contradizerem novamente. Tais referências apenas se encontram na afirmação do ser

criado do mundo enquanto relação subsistente, que, na totalidade de seu ser relacionado,

difere também e, ao mesmo tempo, totalmente de seu para-onde.

Por conseguinte, falar de Deus a partir do mundo, de acordo com o conhecimento

relacional do ser do mundo, somente é possível por meio de uma analogia unilateral na qual

semelhança e dessemelhança do mundo com Deus só se afirmam à base da impossibilidade de

conclusão, da total dessemelhança “da parte de Deus”. Unicamente assim, pode-se preservar a

inconcebilidade de Deus, que, por isso mesmo, nunca poderá estar “debaixo” de algum

conceito. Afirmar que Deus existe, então, permanece dentro da analogia unilateral. Também o

“ser” é atribuído a Deus apenas de forma referente.

A compreensão relacional de Deus por meio do mundo em seu ser referido àquele sem

quem não pode existir traz consequências graves para o discurso corriqueiro de Deus: por

exemplo, em relação à compreensão de sua onipotência, da existência do mal e do livre-

arbítrio, ou da autonomia do mundo em relação à liberdade de Deus, como ressalta KNAUER.

Pois, uma vez que a dependência do mundo é afirmada insuperavelmente em sua totalidade,

Deus há de ser concebido como de fato “poderoso em tudo” que existe e acontece. Trata-se

sempre de uma onipotência in actu ao invés de meramente “potencial”.

Assim KNAUER reforça, repetidas vezes, em seus escritos, que somente uma

compreensão relacional do ser proíbe simplesmente concluir do mundo a Deus. Muito pelo

contrário, do mundo apenas se pode concluir a sua criaturalidade.

Mas, então, o mundo não é explicado por Deus, como se ele fosse, por assim dizer, a pedra final de nossa própria síntese metafísica, mas ele é somente explicado pela sua própria criaturalidade.132

Pois se, segundo KNAUER com referência a TOMÁS, somente é possível afirmar uma

relação conceitual ou pensada de Deus ao mundo, tal “conhecimento natural de Deus”, dentro

de uma concepção relacional em toda sua unilateralidade, emerge, de repente, como

argumento maior contra o termo “palavra de Deus”.

132 KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 188.

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A intelecção na relação real e unilateral do mundo a Deus como conhecimento de sua

criaturalidade é a “objeção mais fundamental”133 contra a afirmação da comunhão com Deus.

A própria mensagem cristã se expõe, com isso, a um paradoxo não só deliberadamente, mas

também inevitavelmente em função da afirmação dessa mesma comunhão com Deus. Pois ela

só pode ser entendida coerentemente se ela não tomar sua medida em alguma realidade criada.

Doutro modo, não seria mais comunhão com Deus e cairia necessariamente sob suspeita de

autoprojeção.

KNAUER associa tal problema dentro do contexto da história da teologia à questão –

igualmente própria da teologia escolástica134 – de como o axioma do agir uniforme das

pessoas divinas ad extra pode ser conciliado com a função respectivamente particular de cada

uma das pessoas divinas na história da salvação. Pois, segundo Concílio de Florença, é

convicção do Magistério da Igreja que Pai, Filho e Espírito Santo agem como um só princípio

perante a criação (DH 1330s).135 No campo da razão, por conseguinte, não é possível

diferenciar alguma relação real de Deus a Deus em Deus, tampouco uma relação real de Deus

com o mundo. Diante disso, agrava-se mais uma vez a pergunta pela condição de

possibilidade de uma relação real de Deus ao mundo, tal como afirmada pela mensagem

cristã, em sua pretensão de ser palavra de Deus.

Tal fala do ser absoluto de Deus realmente tem algo atormentador. No fundo, [ela] significa: comunhão com Deus primeiramente é tudo, menos autoevidente. Pois nenhuma qualidade criada e com isso nenhum esforço ou desempenho, maior que seja, jamais pode ser suficiente para nos pôr em comunhão com Deus.136

Na verdade, o conceito de Deus como “aquele sem quem nada é”, de um lado, é o

conceito mais “vazio” de Deus. Esse conceito não permite nem sequer vislumbrar a

possibilidade de um estar voltado de Deus ao mundo. No horizonte de nossa razão,

experimentamos o mundo enquanto criado e Deus no modo de sua “ausência”.137 Exatamente

aqui, KNAUER situa a fala do deus absconditus, do “Deus oculto” de LUTERO.138 Por outro

lado, a partir do mundo e com relação a ele, esse conceito de Deus é o mais carregado de

133 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 4. 134 Cf. TOMÁS DE AQUINO. S.th. I q13 a7 c. Apud: KNAUER. Der Glaube, 76, nota 84; cf. tb., p. ex., IDEM.

Teología fundamental hermenéutica, 164. 135 No cap. III/2 será mostrado que o suposto agir divino no mundo designado tradicionalmente como agir para

fora de si, na verdade, é um acolher dentro de si (ad intra Dei). 136 KNAUER. Unseren Glauben, 36s. 137 Cf. KNAUER. Der Glaube, 71. 138 Cf. IBID., nota 77; cf. tb. KNAUER. Eine andere Antwort auf das „Theodizeeproblem“, 207s.

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“ser”, pois nele o ser todo do mundo emerge como constitutivamente remetido a ele. Em cada

realidade mundana singular, pode-se reconhecer seu ser referido a Deus como “Criador” pelo

fato de que nossa realidade nos chama a co-responder a ela. Pois o mundo não é uma

realidade objetiva, neutra a ser conhecida ou não. Sempre somos existencialmente afetados

por ela em nossa consciência. Somos abordados por Deus em nossa consciência no modo de

sua ausência porque é a própria realidade do mundo que nos desafia a humanizarmo-nos com

ela.

Desse modo, já nessa dimensão natural em que se reconhece que todo ser se “deve”

irremediavelmente a Deus, ele merece nossa gratidão e nosso louvor, porém sem expectativa

de algum amparo da parte de Deus. A realidade, no confronto com a proclamação cristã,

assim se apresenta à nossa consciência como “Lei” no sentido de nossa “responsabilidade

ética”.139

No entanto, KNAUER assinala nesse contexto que tal conhecimento de Deus tomado

por si só em nada surge como algo agradável ou benéfico ao ser humano. Pois em conclusão

do acima afirmado, Deus mesmo jamais pode tornar-se objeto de nossa experiência. “Todas as

supostas experiências de Deus, na realidade, sempre são apenas a experiência da profundidade

do próprio ser criado”.140

Abstraindo da fé, o conhecimento de Deus, por meio de sua criaturalidade, deixa o ser

humano literalmente sem esperança e desconfortado. Nesse sentido, idolatração ou fuga do

mundo são tendências consecutivas muito difundidas. Pois cada afirmação de uma relação

real de Deus ao mundo emerge como impossível e inexistente porque, “no fundo

experimentamos Deus a partir do mundo somente no modo de sua ‘ausência’”.141

Pode-se dizer que nisso reflete-se o momento verídico da crítica ateísta da religião.

Reconhecendo-o formula BONHOEFFER: “O Deus que nos deixa viver no mundo sem a

hipótese de trabalho Deus, é o Deus diante do qual estamos constantemente. Diante de e com

139 Cf. KNAUER. Der Glaube, 87.89ss.341ss. Parece que KNAUER descobre nessa afirmação o nexo entre a ideia

da inegável historicidade [Geschichtlichkeit] do ser humano em EBELING e o conhecimento metafísico dessa realidade sem seu ser referido a Deus.

140 KNAUER. „Wort Gottes“ als Grundkategorie. 141 KNAUER. Der Glaube, 47.

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Deus vivemos sem Deus”.142 A partir daí, finalmente surge, com radical veemência, a questão

existencial atribuída a LUTERO, “como eu obtenho um Deus misericordioso?”, como

expressão da consciência da não-trivialidade da comunhão com Deus.143

Acontece que o termo “palavra de Deus” sugere justamente a existência de uma

relação real de Deus ao mundo por meio de uma palavra somente sua. Mas como se pode

afirmar uma relação real de Deus ao mundo na qual não seja o mundo o termo constitutivo

para tal relação a ser pensada como subsistente? Isso não leva a considerar uma relação

anterior de Deus a Deus como única referência constitutiva para uma relação real dele ao

mundo? Ainda assim, como o ser humano pode saber de tal ser abordado por Deus se este não

se tornar humano para transmiti-lo a ele? E finalmente, se uma palavra de Deus só faz sentido

se emergir como palavra humana, como o ser humano pode conhecer acolhendo sua verdade

se esta não é legível no mundo e assim demonstrável pela razão humana? Isso não pressupõe

que tal palavra assim comunicada não só revele a existência de um “nexo divino” no ser

humano, e sim também encerre em si a condição de possibilidade de acolhê-la como

verdadeira?! “Paradoxalmente, será justamente esta dificuldade de compreensão diante da

mensagem cristã que, a um olhar mais preciso, possibilita sua compreensão”.144

Pois a essas questões somente a mensagem cristã pode responder unicamente por

referência ao seu conteúdo. Ela se autoevidencia diante da razão, mas é compreensível como

verdadeira apenas na fé. O problema de fundo de todo falar de Deus é o da mediação entre

Deus e mundo. E, quanto ao discurso da fé, no fundo, trata-se sempre da questão de como

“incompreensibilidade de Deus” e sua “autocomunicação” ao mundo devem ser conciliáveis!

É o que se precisa averiguar no próximo capítulo.

142 BONHOEFFER, DIETRICH. Widerstand und Ergebung. Briefe und Aufzeichnungen aus der Haft herausgegeben

von Eberhard Bethge. 12.ed. Gütersloh: Gütersloher, 1983. Esse texto de BONHOEFFER que cita e interpreta o princípio etsi deus non daretur (de HUGO GROTIUS) se encontra citado de outra edição em KNAUER. Der Glaube, 197, nota 278; cf. tb. IDEM. Eine andere Antwort auf das „Theodizeeproblem“, 208.

143 Cf. KNAUER. Der Glaube, 82. 144 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 5.

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CAPÍTULO III

A “PALAVRA DE DEUS” SE AUTOEVIDENCIA POR MEIO DE SEU CONTEÚDO

TRINITÁRIO – ENCARNATÓRIO – PNEUMATOLÓGICO

INTRODUÇÃO

Ao concluir o capítulo anterior, viu-se que, à primeira vista, a mensagem cristã mesma

parece colocar a sua frente uma pedra de tropeço contra sua própria pretensão de ser

entendida como “palavra de Deus” em um sentido estrito. Pois, em resposta à questão de

quem é “Deus”, constatou-se que nosso conhecimento de Deus se dá no modo de sua ausência

(o deus absconditus) mediante reconhecimento do mundo em sua total dependência dele:

Sempre se experimenta apenas o mundo. De fora da fé voltada para a “palavra de Deus” também em assim chamadas “experiências de Deus” e demais “iluminações” experimenta-se, na realidade, sempre somente a profundidade do próprio ser que justamente não é Deus e sim não pode ser sem ele.1

Com isso, KNAUER afirma não apenas que uma relação real de Deus ao mundo é

completamente ininteligível para a razão; ao mesmo tempo, ele confirma que, dentro dessa

perspectiva criatural, a morte, com seu poder do medo infundado em nós, mantém-se

desconfortavelmente como palavra última sobre a nossa existência.2 As tentativas subjacentes

a muitos discursos aparentemente piedosos de compensar tal desconforto, querendo concluir

alguma certeza sobre o mundo a partir de Deus, hão de ser desconstruídos. Ao mesmo tempo

em que tendem a degradar “o absoluto de Deus” a uma realidade criada (ainda que

“suprema”), correm o risco de burlar o conhecimento do ser criado do nada do mundo em sua

inescapável transitoriedade.3

1 KNAUER. Der Glaube, 71. 2 Cf. KNAUER. Der Glaube, 81. 3 EBELING mesmo afirmou, como relata KNAUER (cf. IDEM. Zu Gerhard Ebelings „Das Wesen des christlichen

Glaubens”), que o reconhecimento da radical historicidade do mundo é, em assunto, objetivamente falando, idêntico ao reconhecimento da criaturalidade do mundo mediante ontologia relacional (cf. IDEM. Verantwortung des Glaubens, 20-46).

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Desse modo, a doutrina do conhecimento natural de Deus assume uma função crítica

no sentido da desmitologização de BULTMANN, uma “desintoxicação da teologia”4 de seus

vícios. Desilude a falsa eloquência sobre Deus (que o coloca como ídolo sob algum conceito).

Reprova sua transposição para a esfera do enigmático, porque assim se nega a possibilidade

de um discurso coerente de Deus (desvinculando-o do mundo). Paradoxalmente, somente

mediante a doutrina relacional da criação, a mensagem cristã consegue se explicar a si mesma

por referência ao seu conteúdo, acessível em sua verdade, contudo exclusivamente na fé.

Isso exige, outra vez, a concentração no termo “palavra de Deus”. Pois não só o

conceito de “Deus” parece opor-se a uma compreensão coerente de palavra de Deus. O

próprio significado de “palavra” surge agora como obstáculo maior de uma compreensão

consistente de “palavra de Deus”. Pois, em sua pretensão de verdade, o termo “palavra de

Deus” implica uma relação real de Deus ao mundo justamente à medida que por “palavra”

não se pode entender outra coisa senão uma palavra humana, comunicação entre seres

humanos.5

E, somente com base no seu “caráter de palavra” [Wortcharakter ou Worthaftigkeit], a

mensagem cristã levanta “pretensão de revelação” [Offenbarungsanspruch].6 Com essa

afirmação, KNAUER critica a pretensão de relativizá-la, desvinculando “palavra” de “Deus”,

ou “ouvir” do “crer”. Não se pode jogar a pretensão de ser palavra de Deus contra a pretensão

de ser palavra de Deus, como parece ser mentalidade bastante difundida, inclusive em meio

de teólogos, como o autor exemplifica mediante afirmação de HEINRICH Fries:

É a palavra que Deus mesmo fala – e como isso é imaginável? -, ou é a palavra autêntica que é falada sobre Deus? Mas, chega a ser expresso suficientemente, no conceito da palavra, que, na fé e na teologia, se trata de atos, de história, de eventos e pessoas?7

4 Assim um aluno do Instituto de Ciências Religiosas (ICRE) da Arquidiocese de Fortaleza intitulou seu

trabalho final na disciplina da teologia fundamental no primeiro semestre de 2004 em reação ao pensamento de KNAUER. Com essa expressão ele captou precisamente o sentido do resgate do conhecimento natural de Deus pela ontologia relacional como conditio sine qua non para uma teologia relacional da revelação.

5 Cf. KNAUER. Was heißt „Wort Gottes“, 9; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 83s. Este aspecto é retomado em 1.3. 6 KNAUER alega que a pretensão não é algo particular do cristianismo, mais próprio de cada religião; só

depende como ela se fundamenta. Cf. IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 182; cf. tb. IDEM. Ein anderer Absolutheitsanspruch.

7 FRIES, HEINRICH. Fundamentaltheologie. Graz-Wien-Köln: Styria, 1985, 154. Apud: KNAUER. Der Glaube, 83, nota 94; cf. tb. IDEM. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 186.

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Em última consequência, o autor supracitado suspende a busca necessária de um

critério seguro para se falar em revelação de Deus. Ele contesta assim que seja possível Deus

se dizer efetivamente ao mundo por uma palavra somente sua. Porém, como foi demonstrado

no capítulo anterior, isso nega Deus em sua inconcebilidade. Em detrimento desta, precisa-se

recorrer a outras evidências como a provas historicistas ou transcendentalistas (que assim

seriam racionalistas) do “fato” da revelação. Procura-se fazer plausível uma revelação de

Deus a partir das próprias conveniências. Mas a palavra “Deus”, ao contrário, só pode ser

introduzida a partir do fato histórico da proclamação presente da mensagem cristã.

Para ser entendida como “Evangelho”, então, a mensagem cristã se explica por si

mesma com referência ao seu conteúdo trinitário (III/2) – encarnatório (III/3) –

pneumatológico (III/4). No entanto, só se entende o nexo intrínseco e coesão interna desse

“tripé dogmático” na teologia relacional de KNAUER, se antes se sabe situá-lo em sua

necessidade [teo]lógica para a compreensão da palavra de Deus (III/1). A partir da fórmula

calcedônica, como critério hermenêutico universal para a teologia, afirma-se um paralelo

estrutural entre a pessoa de Jesus Cristo e as demais afirmações de fé (III/5).

1 AS EXIGÊNCIAS LOGICAMENTE NECESSÁRIAS DE “PALAVRA DE DEUS”

Nem toda palavra que se diz “de Deus” é compreensível enquanto tal. “Uma palavra é

compreensível como ‘palavra de Deus’ somente quando pode ser entendida como

autocomunicação de Deus em palavra co-humana”.8 Por isso, a crucial distinção entre “Lei” e

“Evangelho” se torna critério hermenêutico para compreender palavra de Deus “no sentido

próprio” [im eigentlichen Sinn] (1.1). Seu “caráter de mistério” [Geheimnischarakter] resulta

da impossibilidade de evidenciar sua verdade – nem sequer em sua mera possibilidade – de

que nela o próprio Deus está voltado ao mundo como simples ser humano (1.2). A doutrina da

Trindade há de ser situada no corpo dogmático como condição de possibilidade de fundo que

permite afirmar uma relação real (revelação) de Deus ao mundo (1.3). A encarnação do Filho

é a condição de possibilidade pela qual se entende “palavra de Deus” plena e definitivamente

como comunicação real de que só Deus pode dar e de que somente por meio de uma palavra

humana pode chegar ao conhecimento: seu amor incondicional, o Espírito Santo (1.4). O

envio desse seu Espírito, o Espírito de Cristo, por sua vez, há de ser entendido como condição

de possibilidade para o ser humano acolher a mensagem de Jesus e sua própria pessoa em sua

8 KNAUER. Der Glaube, 279.

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pretensão última de verdade de ser a autocomunicação de Deus originária. Isso, porém, não

seria possível sem que a criatura humana já não se encontrasse acolhida, mesmo sem saber,

desde o início, na relação eterna do Pai ao Filho que é o Espírito Santo (1.5).

1.1 A distinção fundamental entre Lei e Evangelho

Assumindo a “distinção fundamental” de EBELING, KNAUER dá o passo da ontologia

relacional à teologia relacional.9 Já EBELING a concebia como chave hermenêutica principal

para a compreensão de palavra de Deus em superação dos “abusos” (as dissociações referidas

no cap. I) do termo “palavra de Deus”. Trata-se de compreender o Evangelho enquanto

Evangelho, a fé enquanto fé, palavra de Deus naquilo que pretende ser em seu sentido

“próprio”: “autocomunicação de Deus em palavra co-humana”. Contudo, apenas com

referência à Lei, o Evangelho pode se manifestar em seu caráter contraintuitivo às pré-

compreensões do ser humano.

Já à luz da palavra “Deus”, por tudo que a ele remete em total diferença dele, nós nos

sabemos abordados por ele em nossa responsabilidade ética. Por isso, segundo KNAUER, é

pertinente chamá-la de palavra de Deus. Ainda que isso aconteça no modo de sua ausência,

trata-se de “palavra de Deus”, mesmo “no sentido impróprio” [im uneigentlichen Sinn],

porque nela tratamos do mundo enquanto ser criado por Deus.10 Para dar-se a entender como

“Evangelho”, a mensagem cristã precisa referir-se ao reconhecimento da eticidade do ser

humano como seu pressuposto sine qua non.

No reconhecimento da criaturalidade de toda a sua realidade (dever-se totalmente), o

ser humano reconhece, ao mesmo tempo, a exigência ética inegável (dever) de lidar com ela

responsavelmente.11 Mas, somente por meio do confronto com a mensagem cristã – à medida

que esta é pregada adequadamente como “Evangelho” –, o ser humano é capaz de reparar da

existencial ambiguidade na qual se encontra: naturalmente, ele tende a compreender-se e

justificar-se a partir de si mesmo, está inescapavelmente “sob a Lei” (Rm 7,14ss).

9 Cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 52-68. Após apresentar essa distinção fundamental em EBELING,

quem a concebe como o “nervo da teologia” (53), KNAUER demonstra como ela pode se tornar igualmente pertinente na tradição católica mediante prova de compatibilidade com uma reta compreensão da relação entre “natureza” e “graça” (cf. IBID., 60ss).

10 Cf. KNAUER. Der Glaube, 87s. 11 Cf. p. 49 (I/3.2) deste trabalho. A esta altura de sua reflexão KNAUER desenvolve sua ética fundamental a

partir da reinterpretação da máxima ética escolástica, o “princípio do duplo efeito”, em conexão com o imperativo categórico de KANT. Cf. KNAUER. Der Glaube, 91-113 e IDEM. Handlungsnetze. Über das Grundprinzip der Ethik. Frankfurt am Main: Books on demand, 2002.

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Enquanto a “Lei” é o que constitui a realidade criatural como nosso horizonte de

conhecimento, o “Evangelho” é a proclamação-transmissão do ser amado por Deus, que é sua

autocomunicação. O horizonte da Lei é rompido, e o ser humano é habilitado a conceber,

nessa palavra, sua comunhão com Deus como o agir salvífico do Espírito Santo nele.

Apenas essa palavra pode ser chamada de “palavra de Deus” no sentido próprio,

porque somente ela constitui comunhão com Deus. A tal palavra se faz jus somente na fé

como o estar-repleto-do-Espírito-Santo. É autocomunicação de Deus como “evento da

palavra” porque se trata daquilo que somente Deus pode dizer-nos, e à medida que somente

na fé o ser humano pode recebê-la como verdadeira. “Palavra de Deus” assim se torna

“conceito-chave teológico”: 12

O ser abordado por Deus em palavra co-humana é ele mesmo o evento da comunhão com Deus. [...] Dessa maneira, “palavra de Deus” não é somente o falar sobre o amor de Deus para os seres humanos, mas é ela mesma a realização [Vollzug] deste amor.13

A essa altura da reflexão, conhecimento natural de Deus por parte da razão e

afirmação da fé como conhecimento “sobrenatural” de Deus (“revelação”, cf. DH

3004s.3015) parecem, à primeira vista, diametralmente opostos e excludentes.14 Se é verdade

que entre razão e fé não pode haver alguma contradição real (DH 3017), então, a própria

mensagem cristã obriga-se assim a responder, com necessidade lógica, ao questionamento

inevitável da razão crítica de como uma “palavra de Deus” ainda deve ser pensável.

12 Cf. KNAUER. Der Glaube, 88. 13 IBID., 90. 14 É com base nessa “impressão” que se explica a radical oposição que PASCAL faz entre o deus dos filósofos e

o Deus de Abraão, Jacó e Isaac. E baseado no mesmo fato ainda, HEIDEGGER formula que ao deus conhecido pela razão não se pode nem rezar; cf. OLIVEIRA M. A DE /ALMEIDA C. (ORG.). O Deus dos filósofos modernos. Petrópolis: Vozes, 2002, 7-9). E certamente se cultivou na tradição protestante, desde a teologia dialética (KARL BARTH), a essencial conflitividade na qual a pregação cristã situa o que é “obra humana” [Menschenwerk], e assim incapaz de Deus, e o que é “obra de Deus no ser humano”, possível de ser concebida somente à luz da palavra discernente do Evangelho. KNAUER, por sua vez, esclarece que tal contradição só emerge mesmo do lado da razão porque nela uma relação real de Deus ao mundo não é inteligível.

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1.2 Palavra de Deus como mistério

Geralmente, confunde-se a compreensão cristã de mistério com uma dificuldade

lógica, algo enigmático e, por isso, principalmente incompreensível ou inexplicável de forma

consistente.15 Nesse contexto, muitas vezes refere-se à fala de Deus como “mistério” para

refugiar-se ao “silêncio” aparentemente piedoso do “não-se-pode-saber, [mas] tem-que-crer”

(fideísta). “‘Difícil’, porém, um mistério de fé se torna somente onde se insiste mesmo em

despejar o vinho novo da mensagem cristã nos odres velhos”.16

Em contrapartida a essa concepção de fato enigmática e completamente distorcida de

mistério, KNAUER entende por “mistério de fé” (1) uma realidade não-legível no mundo (e por

isso não-dedutível dele) que, por isso, (2) precisa ser “sobredita” à realidade mundana numa

palavra e que, enquanto tal, (3) somente é conhecida como verdadeira na fé.17

Por um mistério de fé, na realidade, se entende um fato [Sachverhalt] que não se pode desde já ler no mundo pela mera razão, mas que vem a ser dado somente por meio da palavra de Deus. Tanto sua possibilidade positiva como sua realidade são reconhecidas somente na fé.18

Trata-se de conceber revelação divina unicamente como autocomunicação de Deus.

No capítulo anterior, já se aludiu ao conceito de Deus como mistério no sentido de sua

inconcebilidade. Isto corresponde ao primeiro critério da definição de mistério acima referida:

Se Deus é incompreensível para o conhecimento natural de Deus e com isso “mistério”, então, sua autocomunicação é, para a fé, mais uma vez “mistério”. Mas em ambos os casos “mistério“ não significa o indizível, mas um fato dizível [worthafter Sachverhalt].19

15 Cf. KNAUER. Vernunft – Naturwissenschaften – christlicher Glaube, 33. O esclarecimento do conceito de

„mistério“ contra sua caricatura como fala ofuscada de Deus é uma constante em todos os escritos de KNAUER.

16 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 7. 17 Cf. KNAUER. Der Glaube, 114. Referindo no contexto a EBERHARD JÜNGEL, Gott als Geheimnis der Welt.

Zur Begründung der Theologie des Gekreuzigten im Streit zwischen Theismus und Atheismus. 5.ed. Tübingen: J.C.B. Mohr, 1986, KNAUER ressalta que justamente sendo assim é próprio do mistério de fé tender à sua manifestação. Ele deseja manifestar-se e, portanto, requer ser proclamado. Cf. IBID., especialmente a nota 140.

18 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 7. 19 KNAUER. Der Glaube, 114. Pode-se associar o uso do termo “caráter de palavra” [Wortcharakter ou

Worthaftigkeit] em KNAUER, aqui novamente implicado, ao da “dizibilidade” [Sagbarkeit] em JÜNGEL com quem compartilha sua compreensão de mistério (cf. IDEM. Gott als Geheimnis der Welt, 307ss).

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À base de “Deus” como mistério no sentido de seu caráter de não-legível no mundo,

na fé se trata do único “mistério fundamental” [Grundgheimnis] de nosso ser abordado por

Deus numa palavra co-humana. Por isso, KNAUER entende os “dogmas fundamentais”

[Grunddogmen], Trindade, encarnação (envio do Filho; Gl 4,4) e o vínculo pneumático (envio

do Espírito Santo; Gl 4,6), e os demais mistérios de fé necessariamente como desdobramento

desse único mistério fundamental da fé.20

Além disso, o autor apresenta esses dogmas não como enigma teológico, mas como

“uma verdade muito simples, compreensível e livre de contradição”.21 Ao invés de propor

uma simplificação ou até relativização da linguagem dogmática e de seu caráter normativo,

KNAUER até radicaliza a compreensão do dogma. Ele situa Trindade, encarnação e envio do

Espírito Santo hermeneuticamente de forma insuperável e indissociável no todo da

fundamentação da fé cristã, igual e unicamente compreensível como “mistério de fé”.

É compatível com o conceito do “mistério de fé”, sim até exigido a partir dele que os mistérios singulares de fé se deixam reconduzir a um único mistério fundamental da fé o qual, naturalmente, apenas assim pode ser crido em sua verdade. Pela recondução dos muitos mistérios de fé a um só nem os muitos mistérios de fé nem este deixam de ser mistérios de fé. Mas na fé a conexão [Zusammenhang] dos muitos mistérios de fé singulares entre si é inteligível como necessária. Não é assim que se crê apenas os mistérios de fé singulares e somente depois sua conexão em mais outro ato de fé. Sua conexão também não consiste em que todos eles estão contidos em uma revelação divina, sendo que seu ficar revelado lhes permaneceria exterior. Ao contrário, todo mistério de fé singular que se acolhe na fé já contém a referência a todos os outros dentro de si, sendo que se fica dependente de receber tudo do ouvir.22

Em que sentido, agora, os mistérios trinitário, encarnatório (= cristológico) e

pneumatológico (= eclesiológico23) representam as condições de possibilidade

[teo]logicamente necessárias pelas quais a mensagem cristã se autoevidencia na fé como

palavra de Deus?

20 IBID., 205; cf. tb. IDEM. Kurze Einführung in den christlichen Glauben, onde designa de „mistério

fundamental“ especificamente a Trindade de Deus porque na fé se trata precisamente de nosso ser acolhido nela. A respeito da lógica das “fórmulas dogmáticas fundamentais” [dogmatische Grundformeln] cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 118-126.

21 KNAUER. Unseren Glauben, 40. 22 KNAUER. Der Glaube, 363. Inclusive, se trata até de um critério para a autoridade (no sentido da ἐξουσία) da

mensagem cristã que está na sua fidedignidade (cf. IBID., 421). Num trecho semelhante consta referência explícita aos três dogmas fundamentais: cf. IDEM. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 74s.

23 E deve-se acrescentar dentro da lógica da abordagem pneumatológica de KNAUER, teologia dos sacramentos, mariologia, ecumenismo e teologia das religiões (cf. III/4).

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1.3 Necessidade da compreensão trinitária

Já foi dito que o termo “palavra de Deus” obviamente implica uma relação real de

Deus ao mundo. A partir disso, emerge primeiro o questionamento da parte da razão crítica:

como deve ser possível Deus estar voltado ao mundo de forma real e subsistente, sem que o

mundo se torne o termo constitutivo de tal relação de Deus? No capítulo anterior (cf. II/4.5),

fundamentou-se, por meio da referência que KNAUER faz a TOMÁS, que o mundo, para além

de sua dependência total de Deus, não pode, por sua vez, servir de base ontológica para uma

relação real de Deus ao mundo. Como escapar dessa aparente aporia?

Se o mundo jamais pode ser a “medida” (no sentido de um termo constitutivo) de uma

relação real de Deus a ele, a única maneira de conceber tal relação, sem contradizer a

divindade de Deus, é a compreensão trinitária de Deus. “Comunhão com Deus pode ser

afirmada de forma definitivamente compreensível apenas como o ser incluso do ser humano

no amor de Deus a um ‘divino em face de’ [göttliches Gegenüber], do Pai ao Filho”.24 Pelo

dogma da Trindade de Deus a mensagem cristã afirma assim a existência de uma relação de

Deus com Deus “anterior à fundação do mundo” (Jo 17,24; Ef 1,4; 1Pd 1,20)25 e na qual o

mundo é acolhido desde o início de sua existência.

E somente uma ontologia relacional pode responder coerentemente à questão de como

a concepção trinitária de Deus não anula ou suspende o conhecimento do Deus único, mas

diferenciado em si de forma relacional. De fato, a mensagem cristã afirma Deus ser três

pessoas em uma só natureza, Pai, Filho e Espírito Santo, sendo um só Deus. A verdade dessa

afirmação, no entanto, só chega ao ser humano por meio da palavra anunciada, e somente na

fé é reconhecida como verdadeira.26 Portanto, a compreensão trinitária de Deus se apresenta

na doutrina da revelação como a condição de possibilidade de uma relação real de Deus ao

mundo que o termo “palavra de Deus” induz.

24 KNAUER. Der Glaube, 119. 25 Referências bíblicas frequentemente citadas por KNAUER nesse contexto: cf. IDEM. Der Glaube, 112 e já em

IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 189. 26 A compreensão do credo niceno-constantinopolitano, por isso, é ato de fé e não resultado da infiltração da

filosofia grega no mistério cristão, como KNAUER demonstra ao explicar o significado do dogma em vínculo estreito com a Escritura (cf. III/2). Pois, na verdade, as fórmulas dogmáticas não são petrificação da linguagem dinâmica e viva de fé das “fórmulas” batismal e doxológica trinitárias neotestamentárias tais como Mt 28,19 e 2Cor 13,13. Ao contrário, aquelas são o sentido destas à medida que a Tradição toda é o sentido da Escritura. Cf. KNAUER. Der Glaube, 253 e tb. IDEM. “Schrift und Überlieferung”. In: Ökumenisches Forum: Grazer Hefte für Ökumene 3 (1980) 31.

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1.4 Necessidade de compreensão encarnatória

Por meio da referência à Trindade de Deus, a mensagem cristã responde que

comunhão com Deus somente se torna dizível se o mundo se encontrar acolhido numa relação

de Deus a Deus, do Pai ao Filho. Como tal relação de Deus ao mundo não é legível no próprio

mundo, ele há de ser “sobredito” a ele. Nesse sentido, a mensagem cristã só pode levantar

uma pretensão de revelação à medida que esta seja compreensível unicamente como

autocomunicação de Deus ao mundo. Mas em que sentido a mensagem cristã pode atribuir a

Deus uma “palavra”, visto que se deve entender por “palavra” sempre e originalmente uma

palavra humana?

Não existe uma palavra caída do céu. Palavra sempre é dita de um ser humano a outro. Palavra, portanto, é, de antemão, palavra humana. Como ainda se pode falar de uma “palavra de Deus”? Então, Deus é um ser humano?27

De fato, a mensagem cristã responde a tal pergunta por meio da doutrina da

encarnação do Filho (Gl 4,4) em Jesus de Nazaré como “palavra de Deus” (Jo 1,14). “A

encarnação do Filho é a condição de possibilidade para poder falar de ‘palavra de Deus’, da

autocomunicação de Deus em uma palavra co-humana, de forma definitivamente sensata

[definitiv sinnvoll]”.28 Não há outra referência legítima para a mensagem cristã afirmar-se

como “palavra de Deus”, senão de tal maneira, que Deus mesmo, enquanto ser humano, se

pronuncie a si mesmo por meio de uma palavra humana ao mundo. Uma relação de

autocomunicação de Deus ao mundo implica, por isso, a “encarnação de Deus” para se tornar

manifesta. Nesse sentido, a Trindade [imanente] também é “a condição de possibilidade de

uma encarnação do Filho para a nossa salvação”.29

Nesse contexto, KNAUER também se refere à Dei Verbum que explicita: “mediante

esta revelação, portanto, o invisível (cf. Cl 1,15; 1T 1,17), levado por seu grande amor, fala

aos homens como a amigos (cf. Ex 33,11; Jo 15,14) e com eles se entretém (cf. Br 3,38) para

convidá-los à comunhão consigo e nela recebê-los” (DV 2).30

27 KNAUER. Was heißt „Wort Gottes“?, 9s. 28 KNAUER. Der Glaube, 135; cf. tb. formulação semelhante: “A fala de ‘palavra de Deus’ somente cessa de ser

problemática sob a pressuposição que Deus mesmo venha ao encontro como ser humano”. KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 187.

29 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 1. 30 Cf. KNAUER. Der Glaube, 125.249. Para as citações de textos do Concílio Vaticano II consultou-se, além da

acima citada tradução portuguesa do DENZINGER-HÜNERMANN, o Compêndio do Vaticano II. 24.ed. Petrópolis: Vozes, 1995.

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O Magistério assim fundamenta, por toda essa constituição dogmática, a afirmação

do caráter de palavra, original da mensagem cristã, e ressaltado por KNAUER:

Não se pode tratar apenas de uma tradução posterior e então certamente insuficiente de uma palavra divina em palavra humana. Antes, o conceito “palavra de Deus” há de ser entendido de forma tal, que em palavra humana seja dito exatamente o que Deus há de dizer a nós seres humanos.31

O fato de a palavra de Deus realmente ser inesgotável não significa, de forma

alguma, que a linguagem humana seja logo imprecisa e seu significado, inevitavelmente

deficitário.32 Deus tem de se tornar ser humano para nos dizer em uma simples palavra

humana o que há de dizer a todos nós. Revelação divina, então, não é possível ser afirmada

sem supor necessariamente a “encarnação de Deus”. Nesse sentido, “revelação” e

“encarnação” têm significado sinônimo, porque se remetem à compreensão da relação real de

Deus ao mundo unicamente como “autocomunicação de Deus” em Jesus de Nazaré como

“mediador e plenitude de toda a revelação” (DV 2).

A afirmação da “necessidade da encarnação” teológica, em função da fundamentação

da fé, por causa da “não-evidenciabilidade” [Nichtausweisbarkeit]33 de nossa comunhão com

Deus nas coisas do mundo, explica-se perante a pretensão de verdade da mensagem cristã.

Essa consideração se deve à afirmação da necessidade teológica, que está fundada na livre

autodoação do Pai ao Filho no Espírito Santo. Perante o reconhecimento de que nenhuma

condição criatural é capaz de ter, por conta própria, comunhão com Deus, “obriga” a fé a falar

em “outra misericórdia”34 que não tem sua medida em alguma qualidade criatural.

31 KNAUER. Der Glaube, 130. 32 Cf. KNAUER. Der Glaube, 130, nota 165, em que o autor refere a essa distinção em reação a uma afirmação

do teólogo HEINRICH BACHT de que a verdade divina, por causa de sua mediação mundana, nunca se obteria por “pureza química” e sim apenas “fundido na escória das formas humanas de expressão” (IBID.). Cf. tb. KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 187.

33 KNAUER. Der Glaube, 138, nota 181. O termo de BULTMANN é referido pelo autor de forma sinônima ao seu termo da “não-legibilidade” [Nichtablesbarkeit] da verdade da fé nas coisas do mundo pela razão humana.

34 Nesses termos responde SANTO ANSELMO (inclusive à questão do “por quê” da encarnação da segunda pessoa divina) em sua obra Cur Deus homo. A pretensão de ANSELMO de demonstrar a necessidade da encarnação sola ratione e remoto Cristo, porém, pressupõe que seus interlocutores (judeus e muçulmanos) compartilhem a possibilidade de comunhão com Deus – assunto não mais da razão e sim da fé como KNAUER alega em e-mail pessoal de 16 fev. 2009. A concepção relacional de ANSELMO em sua coerência interna e sua importância para a teologia contemporânea foi demonstrada por GERHARD GÄDE. „Eine andere Barmherzigkeit”. Zum Verständnis der Erlösungslehre Anselms von Canterbury. Würzburg: Echter, 1989; cf. tb. IDEM. “Wie erlösungsbedürftig ist der Mensch und was kostet seine Erlösung?. Zur Aktualität von ‚Cur Deus homo‘ 900 Jahre später“. In: ERNST, STEPHAN; FRANZ, THOMAS (ORG.). Anselm von Canterbury (1033-1109) und die rationale Rekonstruktion des Glaubens. Würzburg: Echter, 2009, 249-274.

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Contudo, a afirmação da encarnação da segunda autopresença de Deus em Jesus de

Nazaré não implica uma união da realidade divina (incriada) com a humana (criada)? É

precisamente na questão cristológica da mediação entre natureza humana e divina que esta

aparente aporia se põe originalmente em toda sua gravidade. Mas, com tal afirmação,

“somente à primeira vista parece ser explicada uma dificuldade por outra maior ainda”.35 A

mensagem cristã responde com referência à fórmula dogmática do Concílio de Calcedônia, da

“união hipostática” de Jesus Cristo, “uma única pessoa em duas naturezas” (DH 302).

1.5 Necessidade da compreensão pneumática

Em função de poder afirmar, sem contradição, uma relação real de Deus ao mundo, a

mensagem cristã se refere à compreensão trinitária de Deus. O fato de que tal relação real (de

autocomunicação) de Deus não é legível no mundo e, por isso, há de ser “sobredita” a este,

comunicada “de fora” de qualquer qualidade criatural, a mensagem cristã responde por

referência à encarnação do Filho. Nisso surge, de acordo com KNAUER,36 outra questão

correspondente às anteriores, mas nelas já está implicada: como o ser humano pode acolher

uma “palavra de Deus” se esta emerge como simples palavra humana? Se à base do

conhecimento humano, da sua razão, não é possível nem sequer conjeturar a possibilidade de

uma relação real de Deus ao mundo, como o ser humano deve ser capaz de reconhecer a

verdade da pretensão de validade da mensagem cristã? Como saber que, por meio de Jesus,

cognoscível pela razão apenas em sua humanidade como figura histórica, o próprio Deus vem

ao encontro nosso? Como reconhecer em Jesus de Nazaré o “Filho de Deus”, sem que a

condição de possibilidade para isso seja comunicada com a palavra?

De fato, a mensagem cristã, por referir sua constituição contínua ao Verbo encarnado,

afirma, no evento de sua proclamação, acontecer exatamente aquilo de que ela mesma fala: o

envio do Espírito Santo, o Espírito de Cristo. Nesse contexto, KNAUER se refere

explicitamente a Gl 4,4-6 em seu paralelo entre envio do Filho e do Espírito. Pois “ninguém

pode dizer que Jesus é o Senhor a não ser no Espírito Santo” (1Cor 12,3).37 A transmissão da

35 KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 187. 36 Cf. KNAUER. Der Glaube, 152. 37 Cf. IBID., 159.

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fé pela mensagem cristã, por isso, há de ser entendida como a transmissão manifesta do

Espírito Santo. Dessa maneira, constitui-se a Igreja como “evento de transmissão da fé”.38 No

ato da fé, consuma-se seu conteúdo.

No entanto, não se pode tratar de um vínculo divino posteriormente acrescentado à

natureza humana porque, enquanto “acréscimo”, haveria de tomar sua medida na realidade

criatural a que se relaciona. Isso, por sua vez, exige, inevitavelmente, afirmar que o ser

humano, desde o início de sua existência, encontra-se acolhido numa relação de Deus a Deus.

Tal relação justamente é o Espírito Santo que Jesus nos transmite (Jo 20,22s).39

Somente numa ontologia relacional é possível afirmar a união entre criação e Criador

livre de qualquer contradição. Pois a comunhão do ser humano com Deus não tem sua medida

no ser criado da pessoa humana, e sim no fato de que, anterior à sua condição criatural, já se

encontra assumida numa relação real de Deus a Deus. Mas isso se afirma livre de contradição,

para toda a humanidade, apenas a partir de Jesus Cristo. À luz da autocomunicação divina, o

mundo emerge como criado desde o seu início na relação de amor entre o Pai e o Filho, a qual

é o próprio Espírito Santo. Essa verdadeira e original identidade, a nossa filiação divina, só

pode chegar ao nosso conhecimento por meio de uma palavra que não tem sua medida na

condição criatural do ser humano. E somente na fé como o estar-repleto-do-Espírito-Santo –

para nós sempre o Espírito de Cristo (LG 7,7) – a mensagem cristã, de fato, responde a essa

exigência pela referência ao nosso “ser criado em Cristo” (Jo 1,3.10; Ef 2,10; Col 1,16).

Esse é o fundamento ontológico da afirmação teológica que até mesmo o ato de

consonância com a (ou adesão à) fé é, desde o princípio, movido constitutivamente pela graça.

Em decorrência da afirmação do ser “criado em Cristo” de cada ser humano, afirma-se o

“estar repleto do Espírito Santo” da pessoa de fé, tanto quanto a vontade salvífica universal de

Deus (1Tm 2,4 e LG 1). Dessa maneira, consta que a autocomunicação de Deus ao mundo por

meio de sua palavra, como palavra humana na pessoa de Jesus Cristo, “tira o véu” (=

“revela”) da verdadeira condição do mundo, e nele do ser humano. Por isso, KNAUER se refere

à tradição magisterial (do II. Sínodo de Orange; DH 376), que já afirmou contra o

38 “Geschehen der Weitergabe des Glaubens”. KNAUER. Der Glaube, 214.215. Expressões sinônimas

substituem “fé” por “Espírito Santo” ou mesmo por “palavra de Deus”; cf. tb. IDEM. Teología fundamental hermenéutica, onde ele traduz “acontecimento continuo de la transmisión de la palabra de Dios”. Assim o autor demonstra, outra vez, a correlação intrínseca entre Deus, palavra e fé.

39 Chama atenção, nesse sentido, o uso do termo grego παραδίδωμι (transmitir, entregar[-se], confidenciar[-se] a) como fio condutor na obra lucana porque vincula a prática da transmissão da mensagem cristã (Lc 1,2) à vida toda de Jesus (Lc 1,26.35; 4,1.18; 10,21) até sua entrega final a Deus-Pai (Lc 23,46) donde ele vem constituir a Igreja (Lc 24,49; At 1,8; 2,4).

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[semi]pelagianismo, que até mesmo o ato da acolhida da graça há de ser plenamente movido

pela mesma graça. Somente assim, a autocomunicação de Deus permanece, de fato,

compreensível como autocomunicação.

Geralmente, a apresentação da necessidade lógica das afirmações da fé em sua

implicação mútua dentro do campo da fé reforça a suspeita, tanto entre fiéis quanto entre

teólogos e, sobretudo, cientistas da religião, de que se trata de definições autoritárias da parte

do Magistério. Ou se pensa que a liberdade de Deus, ao revelar-se, fica sendo regrada pelo

pensamento humano. Em todo caso, considera-se uma petrificação da linguagem dinâmica da

Bíblia em fórmulas abstratas, frias e distantes da realidade concreta dos fiéis.40

Mas, longe de cair em racionalismo, KNAUER apenas pretende elucidar como os

dogmas fundamentais da fé se implicam mutuamente com necessidade intrínseca e assim

alicerçam a compreensão da fé.

Dogmas fundamentais são esses três: Trindade de Deus (Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, e nós somos acolhidos no amor do Pai ao Filho que é o Espírito Santo), encarnação do Filho (Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano; e assim ele pôde nos revelar numa palavra humana nosso participar de sua relação com Deus) e tornar-se-Igreja do Espírito Santo (o Espírito Santo é um e o mesmo em Cristo e nos cristãos; e assim a Igreja é o evento da transmissão do Espírito Santo na transmissão da Palavra de Deus). Tudo que existe, além disso, como afirmações de fé pode ser reconduzido a este mistério fundamental de nosso participar da relação de Jesus com Deus.41

Em seguida, o autor desenvolve de que maneira essas fórmulas dogmáticas se

garantem enquanto não-contraditórias diante do exame crítico da razão, quando

consequentemente formuladas nos termos da ontologia relacional. Pois ele as situa em sua

relação intrínseca de uma com a outra em desdobramento da afirmação central de nossa

comunhão com Deus no campo da fé. Nesse sentido, dito nos termos magisteriais, trata-se, na

teologia, do uso da “razão iluminada pela fé” (DH 3016) a fim de demonstrar como a palavra

de Deus se autoevidencia pelo seu conteúdo consistentemente. Mas, em sua verdade, as

afirmações de fé são acessíveis – e isso significa dizer em seu vigor soteriológico e existencial

– unicamente nessa mesma fé.

40 Cf. BOFF. A Trindade e a sociedade, 12, que introduz a distinção entre “fé” e “explicação de fé”. Assim

parece contrastar um movimento da “doxologia” (neotestamentária), o louvor, a partir da “experiência-fonte” (11), para a “teologia” através da qual “a fé abriu espaço para a razão” (IBID.). Impõe-se ao leitor a suspeita de que BOFF parece supor a fé ser algo incompreensível em si mesmo. Então, sua elucidação de fora, por auxiliar da razão em uma função do tipo “bengala”, se torna indispensável. Típico para essa postura é dizer que a razão faz “a fé mais crível e apetecível” (IBID.).

41 KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 74s.

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2 TRINDADE DE DEUS: TRÊS PESSOAS NUMA NATUREZA

No início deste capítulo, o mistério trinitário foi situado em sua necessidade teológica

como condição de possibilidade de afirmar uma relação real de Deus ao mundo. A medida de

tal relação há de ser o próprio Deus. Essa reflexão prévia é indispensável em resgate do

caráter soteriológico da mensagem cristã, porque garante a compreensão da total gratuidade

do amor de Deus por nós. Nesse sentido, há de se concluir que a doutrina da Trindade não é

uma doutrina a mais a ser acreditada como é o caso na concepção aditiva da fé; nem

representa algum luxo da teologia cristã ou algum privilégio de reflexão de teólogos

extraordinariamente dotados de inteligência especulativa. Pela referência à Trindade de Deus,

a mensagem cristã simplesmente pretende dizer de que maneira nos podemos saber em

comunhão com Deus real e assim seguramente.

Entretanto, é comum a opinião, entre muitos fiéis, de que o mistério trinitário,

“tradicionalmente [...] designado de ‘mistério de fé no sentido mais estrito’”,42 é um enigma

matemático ou um “quebra-cabeça lógico”.43 Como dizer que Deus é um só Deus em três

pessoas sem que se caia nem em modalismo (sabelianismo e subordinacionismo bem como

seus variantes) nem em triteísmo? E em que sentido a reta compreensão do mistério da

Trindade pode nos afetar em nossa fé existencialmente?

Perante o impasse da dissociação entre natureza divina única e diversidade de pessoas

numa concepção substancialista (2.1), KNAUER reinterpreta o conceito problemático da

“pessoa” de forma relacional (2.2), que antes era o obstáculo maior de compreender a

Trindade de Deus definitivamente, sem incoerências (2.3). A partir da concepção relacional,

compreende-se de fundo a afirmação da identidade entre “Trindade imanente” com a

“Trindade econômica” (2.4).

42 KNAUER. “‚Der vom Vater und vom Sohn ausgeht‘ – zu einer ökumenischen Kontroverse”. In: ThPh 76

(2001) 230. 43 IBID. Em reação contra tal opinião corriqueira exclama o teólogo presbiteriano, SILAS BARBOSA DIAS num

texto postado na internet, citando STEVEN GUTHRIE: “A Trindade é um mistério a ser confessado, não um problema matemático a ser resolvido” Disponível em: <http://web.unifil.br/teologia/sermoes/Igreja%20da%20trindade.doc>. Acesso em: 23 out. 2009.

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2.1 O problema da desarticulação teológica contínua do mistério da Trindade

Até mesmo muitos teólogos parecem capitular diante de uma compreensão clara da

Trindade de Deus sem dar margens a dificuldades lógicas: se não ignoram a necessidade

teológica do discurso trinitário,44 recorrem à imprecisão inevitável de todo discurso de fé por

causa da “insuficiência de nossos conceitos e expressões humanas”.45 Em última

consequência resta refugiar-se ao silêncio perante “augusto mistério”, porque “as palavras

morrem nos lábios” e “os pensamentos obscurecem na mente“.46 Afirmam que se pode apenas

delimitar teórica e, ainda assim, vagamente o discurso trinitário entre os dois extremos ou

posições “heréticas” acima referidas. No fundo, porém, confirmam, com isso que qualquer

discurso teológico-trinitário está inescapavelmente sob suspeita de uma ou de outra heresia

porque não encontram uma alternativa às falsas alternativas.

De acordo com a compreensão de KNAUER, novas buscas de reinterpretação da

doutrina da Trindade percebem a necessidade de resituar o discurso dogmático em geral e o

trinitário em particular.47 No entanto, em seu esforço hermenêutico, parecem permanecer

presos à ontologia substancialista subjacente à concepção neoescolástica. Por essa razão,

segundo KNAUER, até hoje, ainda não se conseguiu resolver satisfatoriamente a articulação

entre o que une em Deus e o que distingue em Deus, de tal forma que o primeiro não

represente mais um fator limitador do segundo:

Na história da teologia, até hoje, se conseguiu apenas, ou explicar a diversidade das pessoas, ou então somente a unicidade de Deus. Mas uma elucidação universalmente reconhecida, como ambas possam ser conciliadas uma com a outra, não foi encontrada ainda.48

Somente numa ontologia relacional, consegue-se revincular o mistério da Trindade à

nossa existência como um discurso, de fato, soteriologicamente ancorado. Na realidade, o

motivo de refletir sobre a Trindade de Deus é sua afirmação na pregação cristã e não alguma

44 Como exemplo por quem negligencia a importância fundamental da doutrina da Trindade para uma

compreensão coerente da fé cristã, KNAUER refere a HANS KÜNG. Christ sein. München: Piper, 1974, para o qual parece ser óbvio de antemão que entre Deus e mundo possam existir relações mútuas sem mais (cf. KNAUER. Der Glaube, 128, nota 164). Nesse caso, não se reconhece que uma relação real de Deus ao mundo só é possível ser afirmada “se esta anteriormente àquela é uma relação eterna de Deus a Deus, do Pai ao Filho então” (IBID., 128).

45 BOFF. A Trindade e a sociedade, 17. 46 IBID., 19. 47 Cf. WERBICK, JÜRGEN. Doutrina da Trindade. In: SCHNEIDER, THEODOR (ORG.). Manual de Dogmática. Vol.

II. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2002, 429s.456s. 48 KNAUER. „Der vom Vater und vom Sohn ausgeht“, 230 e IDEM. Der Glaube, 126.

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exigência filosófico-teórica a priori. O reconhecimento de sua necessidade teológica apenas é

fruto da reflexão sobre a afirmação da mensagem cristã e a partir dela. A exigência de um

discurso trinitário coerente acontece em função da compreensão de nosso ser acolhido na

comunhão com Deus, que, doutro modo, é inarticulável.

2.2 A saída do impasse pela concepção relacional da pessoa divina

A mensagem cristã afirma Deus ser Pai, Filho e Espírito Santo. A fórmula dogmática é

“três pessoas numa natureza”.49 KNAUER compreende tal fórmula dogmática clássica nas

categorias da ontologia relacional analogamente como sendo “três relações [subsistentes]

diferentemente mediadas entre si da realidade divina una a si mesma”.50 Sobretudo o conceito

ocidental de “pessoa” parece resistir mais a uma interpretação relacional daquilo que

distingue em Deus em sua articulação com o que une em Deus. Tanto em SANTO AGOSTINHO

(relatio subsistens) quanto em KARL RAHNER (“modos distintos de subsistência”), as

conotações (sejam do direito romano, sejam da filosofia moderna) do conceito da “pessoa”

causam mal-estar porque parecem impedir de expressar a unicidade de Deus.51

Para KNAUER, “pessoa” – desde a própria experiência do ser humano – significa auto-

determinação, autoconsciência, autoreferência, portanto “autopresença” [Selbstpräsenz],52

porque representa a “capacidade de fazer-se presente a si mesmo, saber de si próprio e dispor

de si mesmo”.53 A compreensão relacional do termo da pessoa aplicado analogamente à

concepção trinitária de Deus implica, por isso mesmo, outro tipo de relação em comparação

49 Parece que muitos remontam essa fórmula originalmente a TERTULIANO, o qual vem sendo recebido até hoje

de forma distorcida como retórico legalista e promotor de uma teologia trinitária estática. Muito ao contrário dessa visão, PRESTIGE resgata o esforço de TERTULIANO, apesar de sua origem ocidental, como último dos apologistas gregos, que buscava garantir a unidade na diversidade por um “monoteísmo orgânico” (cf. PRESTIGE, GEORGE LEONARD. God in Patristic Thought. London: S.P.C.K., 1964, 97-106).

50 IDEM. Der Glaube, 120 (acréscimo em parênteses nosso). 51 Cf. WERBICK. Doutrina da Trindade, 447.473. 52 Inicialmente KNAUER usa o termo “autoposse” [Selbstbesitz]; cf. IDEM. Der Glaube, 120, e IDEM. Unseren

Glauben, 41, e ainda em IDEM. Ein anderer Absolutheitsanspruch. 1994. Mas já em Der Glaube, 120, se encontra a expressão que ser pessoa consiste na “capacidade de fazer-se presente a si mesmo”. O próprio autor menciona que mudou o termo seguindo a sugestão de BARBARA ANDRADE, pois o termo representa mais adequadamente o significado relacional do termo da “pessoa” (cf. IDEM. Teología fundamental hermenêutica, 167, nota 4). “Autoposse” alude demasiadamente ao uso antropocentrista como perversão da conquista do reconhecimento da intocabilidade da dignidade da pessoa pela modernidade.

53 KNAUER. Der Glaube, 120.

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ao “ser totalmente relacionado a ... / em total diferença de ...” do mundo ao seu termo

constitutivo. Em sua autopresença, a pessoa divina pode ser caracterizada assim, segundo

KNAUER, por um “ser relacionado a ... / sem ser diferente de ...” sua própria realidade divina.54

Já a partir do conhecimento natural de Deus, à base da via afirmativa da fala análoga,

foi atribuído a Deus ser “pessoa” por causa do ser humano experimentar-se e reconhecer-se a

si mesmo em seu ser criado (como ser totalmente referido a ...) como “pessoa”.55 Dentro do

discurso da fé, atribuir a Deus ser Pai, ser Filho e ser Espírito Santo, no sentido do “ser

pessoa”, exige uma compreensão relacional dela no sentido do termo da Tradição, da “relação

subsistente” [relatio subsistens]. Pois, de outra maneira, é impossível evitar o triteísmo.56

Ao mesmo tempo, evita-se o modalismo porque, pela concepção da analogia unilateral

no discurso da fé, Deus é designado de Pai, Filho e Espírito Santo desde a economia da

salvação, mas não em um sentido apenas metafórico, e sim análogo, real. Se as três pessoas

divinas não fossem compreendidas como relações subsistentes, seria impossível articular uma

relação real de Deus ao mundo. Pois esta, como foi visto em III/1, somente pode ser afirmada

como relação real de Deus a Deus, na qual o mundo é assumido desde o início de sua

existência.

As três pessoas são três relações, diferentes uma da outra, da única realidade divina a si mesma. O conceito de pessoa aqui não é uma categoria conceitual, superior e universal, mas sim as três maneiras da autopresença divina se distinguirem entre si justamente pelo fato de que a primeira não é mediada, a segunda é mediada pela primeira e a terceira mediada pela primeira e pela segunda ao mesmo tempo.57

2.3 A articulação definitiva da unidade da natureza com a diversidade das pessoas

Em sua interpretação relacional das fontes a respeito do mistério da Trindade, KNAUER

se remete principalmente ao texto do Concílio de Florença (1442; DH 1330s), que supera

oficialmente o cisma entre Igreja oriental e ocidental devido ao filioque (Pai e Filho juntos

espiram o Espírito Santo). Pois o texto conciliar formula uma síntese das tradições oriental e

ocidental a respeito da fórmula trinitária clássica em geral e de seus respectivos conceitos-

54 KNAUER. „Der vom Vater und vom Sohn ausgeht“, 231 (realce do autor) e IDEM. Der Glaube, 120. 55 Enquanto o ser humano é “pessoa de princípio” (a falta de consciência in actu nas horas de sono ou de

doença não contradiz a sua definição de pessoa; cf. KNAUER. „Der vom Vater und vom Sohn ausgeht“, 231). Deus em sua “tripersonalidade” (cf. IDEM. Der Glaube, 120) há de ser designado analogamente como Pai, Filho e Espírito Santo in actu desde toda eternidade de forma eminente.

56 Cf. KNAUER. Der Glaube, 122. 57 KNAUER. „Der vom Vater und vom Sohn ausgeht“, 232.

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chave em particular. Em sua conclusão, o Concílio permite a reconciliação entre ambas as

tradições quanto ao filioque, porque antes põe toda a terminologia trinitária sob viés de uma

hermenêutica relacional quando afirma que

essas três pessoas são um único Deus e não três deuses, pois as três possuem uma única realidade, uma única essência, uma única natureza, uma única divindade, uma única incomensurabilidade, uma única eternidade, e tudo é um onde não se encontra uma oposição de relação [ubi non obviat relationis oppositio]. (DH 1330)

A compreensão trinitária de KNAUER se apresenta, em seguida, como uma exegese

desse texto conciliar visualizado pela figura abaixo. Como exemplificação análoga mais

significativa de sua concepção relacional da Trindade de Deus, ele considera os pronomes

pessoais do “Eu”, do “Tu” e do “Nós” em analogia a Pai, Filho e Espírito Santo.

Figura 5: Modelo relacional da Trindade.

Fonte: KNAUER. Der Glaube, 121 (adaptado).58

De acordo com o Concílio de Florença, o que caracteriza a autopresença de Deus-Pai é

ser “princípio sem princípio”: [principium sine principio] (DH 1331). Isso é uma

interpretação do não-ser-gerado [ingenitus] (DH 1330) do Pai (da propriedade de sua

“inascibilidade”). Segundo KNAUER, o que distingue a autopresença do Pai daquela do Filho e

do Espírito Santo no ser relacionado da única realidade divina a si mesma é não ser mediado

58 Cf. tb. IDEM. Unseren Glauben, 41. O gráfico também se encontra no artigo „Der aus dem Vater und dem

Sohn hervorgeht“. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/17.html>. Acesso em: 23 out. 2009.

Espírito Santo

Pai Filho

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por nenhuma relação (teologicamente) antecedente, mas de mediar (gerar) a segunda pessoa,

o Filho. O pronome “eu” representa justamente isso porque não precisa de outro pronome

para ser compreendido incoativamente como “eu”.59

Assim é próprio do Filho, enquanto “princípio de um princípio” [principium de

principio] (DH 1331), ser mediado somente pelo Pai (em linguagem trinitária clássica: o “ser

gerado” [genitus] do Filho). Essa mediação distingue a segunda autopresença divina enquanto

ser relacionado da única realidade divina a si mesma (e assim é verdadeiro Deus) da

autopresença do Pai e do Espírito Santo, do qual se distingue ainda mais por mediá-lo

(espirar) junto do Pai. O Filho como “o em face do” [Gegenüber] Pai deve a ele tudo que é (e

tem), portanto como segunda autopresença divina. Por essa razão, o pronome “tu” diz

analogamente respeito ao Filho porque pressupõe um “eu” que o precede de forma relacional.

Somente com relação ao “eu” o “tu” existe enquanto “tu”.60

O Espírito Santo, por sua vez, é o que é (e tem) por ser mediado pelo Pai e pelo Filho

conjuntamente (em linguagem trinitária clássica: o “ser espirado” do Espírito Santo), sendo

que o Pai e o Filho são apenas um único princípio do Espírito Santo. E, visto os três, também

só há um único princípio da realidade divina. Como amor entre o Pai e o Filho, o Espírito

Santo também é autopresença na relação da única realidade divina a si mesma. Sua

autopresença, porém, é mediada por Pai e Filho em diferenciação do Pai, que é relação sem

mediação, e do Filho, que é relação por mediação unicamente da parte do Pai.61

Dessa maneira, KNAUER supera o suposto conflito teológico em torno do filioque.

Pois, enquanto único princípio de “processão”, o Espírito Santo é mediado por Pai e Filho

conjuntamente (o que legitima o filioque da tradição ocidental). Mas o Filho apenas “espira” o

Espírito Santo junto ao Pai à medida que ele o tem inteira e exclusivamente do Pai (o que

legitima a fórmula oriental “somente do Pai” e também “por meio do Filho). “Pois, como

[sendo] o amor mútuo entre Pai e Filho, ele procede inteiramente do Pai; e como [sendo] o

amor do Filho para com o Pai, ele também procede inteiramente do Filho. Nisso, o Filho deve

somente ao Pai ser co-princípio do Espírito Santo”.62

59 No gráfico é o círculo primeiro que volta a si mesmo no ponto de partida (representando o que une em Deus,

sua unicidade na trindade). Cf. KNAUER. „Der aus dem Vater und dem Sohn hervorgeht“, 232; cf. tb. IDEM. Unseren Glauben, 41, e IDEM. Der Glaube, 121.

60 No gráfico é o segundo círculo que, saindo do ponto de partida de duas horas, volta a si mesmo apenas mediado pelo círculo que representa a autopresença do Pai.

61 Cf. IDEM. „Der aus demVater und dem Sohn hervorgeht“, 233s e tb. IDEM. Der Glaube, 121, onde o autor diferencia o ser fundamento [Grund: ἀιτία] do Filho para a processão do Espírito Santo do ser fundamento único e último [ἀρχή] da mesma do Pai.

62 IBID.

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Por esse motivo, o Espírito Santo não é simplesmente a multiplicidade de “eu” ou a

soma de um “eu” e um “tu”, como se tratasse de Pai e Filho como “ego” e “alter ego”, e sim

sua união. Pois como ele pressupõe tanto o “eu” quanto o “tu” em seu ser diferentemente

mediado, o Espírito Santo simplesmente é o “estar-junto” [Miteinander] do Pai e Filho e

assim o “nós”: “Somente no ‘Nós’, o ‘Eu’ e o ‘Tu’ e sua relação um ao outro são plenamente

conhecidos”.63

Na doutrina clássica da teologia trinitária, referia-se apenas às chamadas quatro

“relações” entre as pessoas divinas (o gerar / ser gerado o e o espirar / ser espirado) para

distinguir as pessoas divinas entre si, e não também a noção do ingênito do Pai. Mas, como é

característico da concepção substancialista, essas “relações” representavam um “acréscimo”

logicamente posterior à constituição das pessoas, como algo “no meio” delas. Dessa maneira,

a unicidade das três se torna inviável de ser afirmada incorrendo-se no perigo do triteísmo.

Numa ontologia relacional, tudo isso pode ser afirmado sem dificuldade lógica porque

se entende que sempre se trata da relação da única realidade divina a si mesma mediada por

cada qual das três autopresenças divinas diferenciadas de forma real entre si. Nesse sentido,

KNAUER conclui que o termo da “relação” na doutrina tradicional se aplica à Trindade de

Deus apenas improprie [uneigentlich]. Na realidade, são “relacionamentos” [Verhältnisse]

entre as três autopresenças divinas, as quais já são relação em sentido próprio, real e original.

Apenas pela recondução desses quatro relacionamentos às relações diferentemente mediadas entre si da una realidade divina a si mesma, a doutrina da Trindade permite ser formulada de tal forma que não possa mais ser confundida com dificuldades lógicas.64

Nesse sentido, KNAUER interpreta os termos pelos quais tradicionalmente se

caracteriza as propriedades das pessoas divinas (“relações” e “noções”) como aspectos do ser

diferentemente mediado das três autopresenças entre si (e por isso singular a cada

autopresença divina) no relacionar-se da única e mesma realidade divina a si mesma. E,

somente dessa maneira, pode-se realmente afirmar que o Pai está inteiramente no Filho, o

Filho no Pai (Jo 17,21) e os dois no Espírito como este neles de forma relacional. Pois a

63 KNAUER. Unseren Glauben, 42. No gráfico o Espírito Santo é representado pelo terceiro círculo. Enquanto

autopresença se diferencia dos outros dois pelo fato de que “sua linha” segue a do Pai contra o sentido do relógio para, no fim, seguir a do Filho ao retornar ao ponto de partida dos três. Assim é dito que ele é o amor entre o Pai e o Filho.

64 Cf. KNAUER. Der Glaube, 125.

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concepção grega da περιχωρῆσις [pericórese],65 aqui insinuada por KNAUER, não é estática e

sim dinâmica. Isso implica que o relacionar-se diferentemente mediado de uma autopresença

a outra é verdadeira autodoação, entrega total de si a outro enquanto lógica do amor, enquanto

relação da una natureza divina a si mesma.66 Assim, mais uma vez, não há mais perigo de

modalismo (são três relações reais diferentemente mediadas), nem de triteísmo (o são

enquanto relação da realidade divina única a si mesma).

2.4 A articulação definitiva da “Trindade imanente” com a “Trindade econômica”

Com sua compreensão relacional da doutrina trinitária, KNAUER também supera o

problema da dicotomia entre “Trindade imanente” e “econômica” cuja identidade já fora

declarada por KARL RAHNER.67 Quanto à ordem ontológica, a comunhão de Deus com Deus

em Deus (“Trindade imanente”) há de ser pensada como insuperavelmente anterior à nossa

existência e à nossa consciência (Jo 17,24 e Ef 1,4) e, nesse sentido, é “descendente” (Mt

11,27; Jo 3,16 e 1Jo 4,10s). Quanto à ordem epistemológica, contudo, no que diz respeito ao

nosso ser acolhido nessa comunhão do Pai com o Filho no Espírito Santo, revelada pela

encarnação do Filho e pelo envio do Espírito Santo, é sempre “ascendente” (“Trindade

econômica”). Consequentemente, esta há de formar o ponto de partida e de chegada para todo

o discurso trinitário.

Nesse contexto KNAUER ressalta que tal verdade de fé, no fundo, não afirma uma

relação de Deus para fora de si, e sim o contrário: a autocomunicação de Deus ao mundo na

história (suas “missões” tidas como “relationes Dei ad extra”), revela que, na verdade, se trata

de autocomunicação anterior de Deus adentro de Deus (suas “processões” ad intra Dei).68 Por

isso, “imanente” e “econômico” não designam, por assim dizer, um lado interno e outro

65 Em latim circumincessio ou circuminsessio. O termo significa “interpenetração” e expressa a dinâmica

relacional das três autopresenças divinas em seu estar relacionado diferentemente mediadas à única realidade divina.

66 Cf. KNAUER. „Der vom Vater und vom Sohn ausgeht“, 233. O autor vê a ideia da pericórese representada em sua figura da Trindade pelo “fato que o segundo e o terceiro círculo formam, nesse sentido, círculos incompletos, que entram em linhas que coincidem com trechos do primeiro e também do segundo círculo” (IBID.).

67 KNAUER concorda com esta afirmação famosa de RAHNER (cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 119, nota 650). “Mesmo assim a concepção aqui apresentada representa uma alternativa fundamental à de Karl Rahner, na medida em que nele [...] é abstraído completamente da pergunta, em que sentido uma relação real de Deus à criatura é impossível; a meu ver, somente à base desta pergunta, porém, o nexo entre Trindade econômica e imanente pode chegar à sua explanação [Darstellung] plena” (IBID.).

68 Cf. KNAUER. Der Glaube, 129. O autor alega que já antes da famosa afirmação de KARL RAHNER, GERARD

PHILIPS, em artigo publicado em 1948, já corrigiu a doutrina tradicional das relações de Deus “para fora” de si (cf. tb. IDEM. „Der aus dem Vater und dem Sohn hervorgeht“, 234).

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externo de Deus. “Imanente” como “existente em si” aqui, apenas, quer dizer anterioridade

eterna e em abstração da relação de Deus ao mundo.69 Mas ela é afirmada somente em função

do “por nós” do amor do Pai ao Filho (Jo 17,21.23).

A compreensão das relações intratrinitárias pode-se refletir apenas com base no

anúncio histórico da mensagem cristã. O lugar significativo e necessário da doutrina da

Trindade “imanente” na teologia consiste unicamente no fim de “poder afirmar a

autocomunicação de Deus para nós como aquilo que é: o amor de Deus ao mundo não tem no

mundo mesmo sua medida”.70 Enquanto, à luz da razão natural, se conhece a Deus apenas no

modo de sua ausência do mundo, à luz da fé sobrenatural, sabe-se o mundo criado para dentro

do amor eterno entre Pai e Filho que é o Espírito Santo. Sabe-se amparado por Deus “em

Deus”.

Para ressaltar o caráter salvífico do significado da inclusão nossa no amor trinitário de

Deus, KNAUER conta a experiência de uma mãe com seu filhinho que foram visitar a avó do

menino. Ao chegar à casa da avó, ela deixou a criancinha sozinha com um buquê de flores na

frente da porta. Ao abrir a porta, a avó recebe seu neto (apesar de certo mauhumor deste ao

dar as flores com um “taí”) com a mesma alegria com que recebia sua própria filha escondida

do lado da porta.71 No retorno ao amor que a mãe do pequenino recebia anteriormente de sua

própria mãe, esta, a avó, acolhia também seu neto. E este nem estava ciente ainda de que o

amor com que sua mãe o amava já era, na verdade, o amor de sua avó. “E porque sois filhos,

enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai” (Gl 4,6; cf.

tb. Rm 8,15). Nessa condição trinitária de nossa adoção filial, de sermos “filhos no Filho”,

KNAUER situa o sentido da oração cristã: “E nós respondemos ao Pai com um amor que não é

nosso, mas anteriormente parte de seu próprio Filho. Por isso podemos estar certos de

alcançarmos Deus em nossa oração”.72

Quanto ao diálogo com as outras grandes religiões monoteístas, o judaísmo e o islã, a

mensagem cristã defende igualmente o ser absoluto de Deus, reconhecendo a unicidade de

Deus, pois com relação à criação do mundo, as três autopresenças formam “um só princípio e

69 Cf. KNAUER. Der Glaube, 125, nota 159. 70 IBID., 127; cf. tb. IDEM. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 161: ”Somente se Deus é, em si

mesmo, trinitário (“Trindade imanente”) o nosso ser assumido no relacionamento do Filho para com o Pai no Espírito Santo (“Trindade histórico-salvífica, econômica”) é compreensível para a fé. Mas falar da Trindade imanente, por sua vez, só faz sentido em função [por causa] da Trindade econômica”.

71 Cf. KNAUER. Unseren Glauben, 34s. 72 IBID., 39.

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não três princípios” (DH 1330; onde está o Filho está junto o Pai). Mas, ao mesmo tempo, ela

alerta que, ao levantar a “pretensão de revelação”, esta só não contradiz o ser absoluto de

Deus se sua relação ao mundo nela implicada, anterior a esta, for uma “relação intradivina”.73

Longe de cair numa doutrina triteísta, nós falamos assim justamente para preservar o propósito fundamental do Islã, de um lado a unicidade e o ser absoluto de Deus e, do outro, sua misericórdia.74

A compreensão trinitária de Deus, portanto, é concebida por KNAUER como a única

resposta consistente à objeção maior suscitada pela compreensão da palavra “Deus” contra a

afirmação de um estar voltado misericordiosamente de Deus ao mundo. Na verdade, essa

afirmação não se dirige contra as demais religiões. Pelo contrário, ela pretende subsidiá-las a

encontrarem dentro de si a plena compreensão de sua própria verdade. Esta, seja qual for sua

configuração histórico-doutrinária, no fundo, é comum a todas elas e consiste na afirmação de

um amparo redentor último que se garante como certeza insuperável na vida e na morte.75

3 ENCARNAÇÃO DO FILHO: UMA PESSOA EM DUAS NATUREZAS

Para dar-se a entender plena e definitivamente, a mensagem cristã, remonta-se ao

Verbo encarnado. Fé é sempre fé em Jesus Cristo. Portanto, “a mensagem cristã explica seu

próprio surgimento dizendo que o Filho de Deus se tornou ser humano para nos testemunhar o

amor de Deus em palavra co-humana”.76 A partir daí, KNAUER concretiza o caráter

cristocêntrico de sua fórmula breve de fé:

Crer em Jesus Cristo como o Filho de Deus nada mais significa senão junto com ele, e por causa de sua vontade, saber-se infinitamente amado por Deus [...] dever esta compreensão a ele como um ser humano real, portanto, a sua palavra.77

73 KNAUER. Der Glaube, 126. 74 Cf. KNAUER. Dialog mit dem Islam, 2004. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/28.html>.

Acesso em: 7 out. 2009. Nesse artigo, como já antes no posfácio de seu artigo Wort-Gottes-Theologie und Christologie, o autor refere ao exemplo do muçulmano DJA’ S IBN DIRHAM que foi condenado (e queimado) no séc. VIII porque questionou como a pretensão de revelação e a possibilidade de uma revelação divina no Islã podem ser compreendidas perante a pertinente defesa do absoluto de Deus; cf. tb. IDEM. “Fundamentaltheologie im Koran“. In: FZPhTh 55 (2008) 23.

75 Cf. KNAUER. Ein anderer Absolutheitsanspruch. 76 KNAUER. Unseren Glauben, 47. 77 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 158. Esta formulação, por causa do caráter

cristocêntrico da própria fé, se encontra de forma pouco variada em quase todos os escritos de KNAUER e representa assim a versão explicitamente cristológica de sua “fórmula breve da fé cristã” (cf. cap. I, p. 37).

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Jesus, como origem da mensagem cristã, há de ser testemunhado Filho de Deus. Como

consequente união (relação) entre humano e divino em Jesus Cristo, é concebível, sem a

humanidade de Jesus, tornar-se termo constitutivo para a relação da segunda pessoa divina a

ela, senão por união relacional de naturezas (realidades) continuamente distintas?!

Jesus é verdadeiro Deus, porém somente no sentido de sua filiação divina, e não

noutro sentido qualquer. E ele é verdadeiro ser humano, “em tudo igual a nós menos no

pecado” (Hb 4,15). O que significa isso para Jesus e qual sua importância para a compreensão

e fundamentação de nossa fé nele? De acordo com o autor, tudo depende agora de como se

compreende, nesse contexto, a fórmula dogmática cristológica de Calcedônia das “duas

naturezas em uma pessoa”. Contrário à ideia de uma mera junção ou um tipo de

“coexistência” das duas naturezas em uma pessoa, a compreensão relacional da encarnação

supera tal concepção substancialista de uma composição: pois, precisamente na cristologia,

condensa-se o problema geral da mediação entre realidade divina e mundana. “Somente se

também isto se deixa tornar compreensível, tudo em conjunto irá tornar-se compreensível”.78

O amor de Deus por nós não pode ter sua medida em nossa criaturalidade, e sim

somente no próprio Deus. Isso há de ser afirmado com necessidade também daquele que nos

comunicou originalmente essa misericórdia de Deus e que, pelo testemunho de sua pessoa,

nos manifestou nossa própria participação do amor eterno de Deus-Pai a ele como o Filho.

Por conseguinte, a relação de Deus com a humanidade de Jesus não pode tomar sua medida na

natureza humana deste. A existência criatural de Jesus não pode, além disso, ainda formar o

termo constitutivo para a relação de Deus a ele. Como dizer, então, livre de uma contradição,

que Jesus é Deus sem que sua natureza humana seja negada (docetismo) nem “deificada”, no

sentido de se tornar termo constitutivo da afirmação de uma relação real da segunda

autopresença divina ao ser humano Jesus (monofisismo)?

Em KNAUER, o termo “Palavra de Deus” e a “filiação divina de Jesus”

[Gottessohnschaft Jesu] se implicam e se explicam mutuamente: de um lado, o termo “palavra

de Deus” somente se torna definitivamente dizível se Deus vem ao nosso encontro como ser

humano para nos dizer o que há de nos dizer em palavra humana. Pois o próprio termo só faz

sentido, se por palavra logo e originalmente se quer dizer palavra humana. Por outro lado,

afirma que “só se pode falar da filiação divina de Jesus de uma maneira que faz sentido se se

compreende corretamente o significado de ‘palavra de Deus’”.79

78 KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 187. 79 KNAUER. Unseren Glauben, 46.

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A mensagem cristã se remonta a Jesus como sua origem. O Prólogo do Evangelho de

João afirma ele mesmo ser a “palavra de Deus” (Jo 1,1-3) que “se fez carne” (Jo 1,14). Além

da referência ao quarto Evangelho, KNAUER destaca a unicidade de Cristo com as palavras de

SÃO JOÃO DA CRUZ: Por nos dar seu Filho, que “é sua própria palavra, e outra não há”, Deus

“nos disse tudo de uma vez nesta palavra única, e nada mais há para dizer”.80 Como destaque

da insuperabilidade do evento Cristo, KNAUER continua citando JOÃO DA CRUZ: “Quem, por

isso, ainda quisesse interrogar a Deus agora, ou desejar uma visão ou revelação qualquer, não

só cometeria uma tolice, como ofenderia a Deus, por não dirigir os olhos totalmente a

Cristo”.81

No mesmo sentido, refere-se à Constituição dogmática do Concílio Vaticano II sobre a

revelação divina, Dei Verbum, que confirma o termo de a revelação divina ser compreensível

somente “autocomunicação de Deus” por meio de Jesus, que é sua origem e seu fim num

sentido único e insuperável.82 Entretanto, tudo o que a mensagem cristã afirma de Jesus tem

um norte soteriológico: é afirmado em função de nossa própria salvação (Concílio de Nicéia).

Com relação ao anteriormente dito, de forma genérica, sobre a compreensão trinitária

de Deus, sendo condição de possibilidade para o mundo ser “alvo” de uma relação real de

Deus, vale dizer agora de forma análoga de Jesus: a relação da segunda pessoa divina com a

humanidade de Jesus há de tomar sua medida na relação da única realidade divina a si mesma.

Consequentemente, KNAUER afirma, de acordo com a tradição patrística, que o ser humano de

Jesus é “assumido”,83 sim, criado, desde o primeiro momento de sua existência, na segunda

pessoa divina, e isso em sua inteireza.

80 SÃO JOÃO DA CRUZ. Aufstieg zum Berge Karmel. Livro 2. Cap. 22,3.5. Apud: KNAUER. Unseren Glauben, 45. 81 IBID. 82 Cf. o termo communicat em DV 6,1. KNAUER. “Natürliche Gotteserkenntnis”, observa que se trata de uma

complementação ao manifestat no texto citado do Vaticano I (DH 3004 sobre o fato da revelação sobrenatural).

83 KNAUER. Der Glaube, 135, nota 174, refere à fórmula do papa LEO I que afirma Jesus ser criado ao ser assumido na segunda pessoa divina (“ut ipsa adsumptione crearetur”, DH 298).

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Figura 6: Modelo relacional da união hipostática de Jesus Cristo.

Fonte: KNAUER. Der Glaube, 137 (adptado).

Com tal afirmação KNAUER leva a cabo a formulação do assumptione creatur –

creatione assumitur do papa Leo XIII. Nela unem-se a linha “descendente” do Verbum

incarnatum com a linha “ascendente” do assumptus homo,84 não dando margem a uma

contraposição de uma “cristologia de cima” versus outra “de baixo”.85 Tal oposição parece

sugerir a existência prévia e desvinculada das duas naturezas e, com isso, uma separação da

natureza à graça.

Na realidade, a afirmação tradicional de que “a graça pressupõe a natureza” implica a

anterioridade ontológica da graça (linha descendente), mas desemboca numa afirmação

quanto à ordem econômica da salvação: sem existência de uma realidade criada, a graça nada

teria para salvar, e o discurso cristão todo ficaria no ar (linha ascendente). Mas, porque

existimos, só o podemos desde já “assumidos” por completo na relação de Deus a Deus. E nós

só podemos afirmá-lo por referência original a Jesus como o “primogênito” de toda criação

(Cl 1,15) nesse sentido. Portanto, a divindade da segunda autopresença divina somente é

preservada se o ser humano Jesus é concebido como criado, desde o primeiro momento de sua

existência humana, para dentro da pessoa do Filho.

84 Cf. a respeito GONZÁLEZ DE CARDEDAL, OLEGARIO. La entraña del cristianismo. 3.ed. Salamanca:

Secretariado Trinitario, 2001, 86s. O autor remonta a as duas linhas de reflexão refletidas na fórmula citada em carta de LEO MAGNO (DH 290-295) – e que certamente já está implicada no Concílio de Éfeso (431, DH 250s) até a SANTO AGOSTINHO (cf. IBID., 87). Esta fórmula, por sua vez, prepara a compreensão da “união hipostática” do Concílio de Calcedônia.

85 A respeito da contraposição equívoca entre uma cristologia “de cima” (desde a divindade de Cristo) e outra “de baixo” (desde a humanidade de Jesus) cf. tb. KNAUER. Der Glaube, 137.

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Com relação ao “ser pessoa” [Personsein] de Jesus, KNAUER faz a importante

distinção desta de sua “personalidade” [Persönlichkeit] que refere à autopresença humana

(autoconsciência): à luz da fé não é mais a autoprsença humana que constitui a referência

última para o ser pessoa de Jesus e sim, pela sua inserção na segunda autopresença divina, que

é o Filho, o ser Deus é a referência última e definitiva de seu verdadeiro “ser pessoa”. Porém,

em momento algum, este ser humano [Menschsein] de Jesus, conhecido em sua historicidade

pelos seus conterrâneos e reconhecido pelos seus seguidores na fé (Hb 5,7s), é usurpado ou

“anulado” (GS 22: “assumpta, non perempta”) pela segunda autopresença de Deus. No

reconhecimento de Jesus como Filho de Deus, sua “personalidade” individual é

inconfundível, por isso, é preservada e não descaracterizada.

A afirmação da assunção da humanidade de Jesus na segunda pessoa divina desde o

início da existência surge, em conseqüência, como condição de possibilidade de vincular as

afirmações de fé sobe a identidade divina de Jesus Cristo à sua pregação e todo o seu

testemunho de vida. Assim, por exemplo, na experiência da ressurreição, os discípulos

podiam “reconhecer” no Ressuscitado o Crucificado. E só assim podiam afirmá-lo como

Ressuscitado. Mas, o sentido último da afirmação da filiação divina de Jesus, desde o Novo

Testamento, é o “por nós e nossa salvação” (Nicéia) dessa afirmação:

Portanto, somente se fala da filiação divina de Jesus no sentido da mensagem cristã realmente, se se capta que nisso não se trata apenas dele por si só, mas simultaneamente também de nosso próprio relacionamento para com Deus.86

Na história da “cristologia eclesial”, segundo KNAUER, o Concílio de Nicéia (DH

125) foi, no fundo, um concílio trinitário. Por isso, tornou-se primordial interpretar o

testemunho originário da filiação divina de Jesus, no Novo Testamento, no sentido da

“consubstancialidade” de Jesus com Deus-Pai. Esta é a alternativa às tentativas de enquadrar a

relação de Jesus com Deus “sem ranhura” [fugenlos] numa concepção ainda substancialista

do ser do pensamento grego, tal como o representa o arianismo.87

KNAUER se refere ao arianismo como exemplo de uma compreensão mitológica da fé,

em seu equívoco principal ainda hoje muito difundido de abordar a “divindade” do Lógos

pelas categorias de um ser cirado. A conseqüência da falta de distinção total entre natureza

86 KNAUER. Unseren Glauben, 48. 87 O arianismo representa assim uma “má transcendência” a respeito da ideia de Deus como “o absoluto” que

para além da afirmação da dependência de toda criatura de Deu, contraditoriamente enquadra Deus no mesmo horizonte da realidade totalmente dependente dele como criatura (no caso, o Lógos). Cf. KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 160.

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humana (criada) e divina é sua mistura, portanto, uma concepção monofisita de Jesus Cristo

porque é incapaz de salvaguardar a divindade de Deus. O arianismo, no caso, desemboca em

monofisismo porque procura salvar a transcendência de Deus à custa da consubstancialidade

do Logos. É monofisita no sentido de que, na verdade, une duas realidades criadas quando

afirma que o Logos assume o lugar da alma na encarnação.

A concepção de mistura (não-distinção) de realidade divina com a mundana é que

constitui o pensamento mitológico. Isso acontece, segundo BULTMANN, quando se apresenta

uma realidade criada como [se fosse] divina.88 “Até hoje, a história da teologia é uma história

de tentação constante de tal mitologia”.89 A consequência para a compreensão encarnatória de

Deus é que Jesus emerge assim como homem equipado de forças sobre-humanas, como um

tipo “super-homem”. Por causa de sua filiação divina, nessa concepção equívoca de sua

divindade, Jesus seria capaz de suspender as leis da natureza e de chamar os mortos de volta à

vida, de andar em cima d’água etc. No fundo, tal pensar mitológico supõe aqula concepção

meramente potencial da onipotência divina, em consequência da qual Jesus poderia até ter

descido da cruz se assim quisesse.

KNAUER associa tal pensamento subjacente a toda compreensão dos milagres em geral

à “exigência judaica de sinais” [jüdische Zeichenforderung] testemunhada no Novo

Testamento (Mt 16,1-4 par.). O erro cometido aqui é que se toma como medida da atuação

divina em Jesus qualidades criadas, portanto legíveis no mundo. E o que se aduz como “prova

escriturística” é um fundamentalismo sem fundamento na palavra porque “lê” (sempre de

forma interpretativa) de acordo com seus preconceitos e paradoxalmente não olha a

verdadeira “literalidade” da palavra.90

Tudo depende da reta compreensão da “união hipostática” de Jesus Cristo, definida no

Concílio de Calcedônia (DH 302). O “não-misturado” e “não-separado” da fórmula

dogmática básica do Concílio, “uma pessoa em duas naturezas”, torna-se critério para a

retidão, ou “correção” no sentido da fidedignidade, de todas as afirmações de fé. Trata-se de

distinguir o horizonte de nossa realidade humana (natureza humana) da inconcebilidade de

88 Cf. KNAUER. Der Glaube, 137s. Com a definição de BULTMANN de mitológico (cf. IBID., 138 nota 181)

KNAUER também acolhe (junto a EBELING) seu programa de desmitologização para toda a teologia, não apenas como método exegético ou hermenêutico-bíblico, mas como método hermenêutico fundamental (cf. IDEM. Verantwortung, 48s. Já na época (1969), o autor ressalta que a definição de BULTMANN do mitológico, no fundo, é uma definição de uma concepção monofisita da revelação.

89 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 164. 90 Esta observação o autor me fez em um e-mail recente, comentando o uso da expressão “interpretação ao pé

da letra” com relação à interpretação fundamentalista.

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Deus (natureza divina) sem dissociar uma da outra na pessoa de Jesus Cristo. Seu

reconhecimento permite evitar a “perversão da fé em mitologia” ou na “subsunção” de divino

e mundano ao mesmo “horizonte de realidade” [Wirklichkeitshorizont].

“Na fórmula de Calcedônia se trata, antes, de uma desmitologização radical (que não

quer dizer o abolir das expressões míticas, mas sua interpretação no sentido da fé)”.91 As

afirmações de fé só fazem sentido se remetidas à figura do Jesus histórico. Isso, porém, não

quer dizer que tais afirmações elevassem fatos históricos ao nível de assuntos de fé. A

verdade destes continua totalmente distinta daqueles. A divindade de Jesus assim não é

legível na humanidade de Jesus, nem na sua masculinidade, nem em sua estatura, sua cor dos

olhos etc. Nem tampouco seus feitos, considerados em abstração da fé e frequentemente mal-

entendidos como corroboração externa de sua filiação divina e complementar à sua

mensagem, podem, tomados por si só, ser a medida para a verdade de fé. Só à luz de sua

própria mensagem acolhida pela “fé”, também as boas obras de Jesus (At 10,38) se entendem

como “obras feitas em Deus” (Jo 3,21).92

“O aspecto mais importante da doutrina da Calcedônia [...] consiste, no entanto, na

instrução [Anweisung = indicação hermenêutica] de compreender a filiação divina de Jesus

Cristo a partir de sua real condição humana”.93 À base da total igualdade (Hb 4,15a), o que

diferencia Jesus dos demais seres humanos é seu “sem pecado” (Hb 4,15b). Este consiste,

segundo KNAUER, no fato (de fé) de que Jesus não deixou dominar-se pelo medo a respeito de

si próprio durante toda a sua vida. Essa afirmação desconstrói toda imagem da figura de Jesus

como um “super-homem”. Ademais, pela sua compreensão de Deus, fez outros, os que davam

91 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 164. 92 Nessa discussão polêmica, baseada na afirmação de BULTMANN de que para a fé bastaria o mero “que” da

existência de Jesus e desencadeada por aula (1953) e artigo de Ernst KÄSEMANN. „Das Problem des historischen Jesus“. In: ZThK 51 (1954) 125-153 – presumivelmente um grande mal-entendido entre BULTMANN e seus alunos – KNAUER defende BULTMANN no sentido do propósito antes teológico-fundamental do que “cristológico”: no fundo, BULTMANN apenas queria alertar que a humanidade de Jesus não pode se tornar referência constitutiva para a afirmação de seu ser Filho de Deus. Nesse sentido o “Jesus histórico” e o “Cristo da fé” permanecem inconfundivelmente distintos. Ao mesmo tempo, BULTMANN está ciente de que não há “Cristo da fé” sem pressupor a existência humana do “Jesus histórico” como conditio sine qua non do primeiro.

93 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 165 (acréscimo em parênteses nosso).

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“fé” à sua palavra, participarem de sua relação com Deus.94 “Esta experiência da libertação no

ser confrontado de nosso ser humano com o ser humano de Jesus, e portanto, com aquilo que

nele veio à linguagem, encontra sua expressão na confissão de fé nele”.95

Exatamente em virtude dessa libertação nossa, mediada por Jesus por meio de nossa

participação de sua relação com Deus-Pai na fé como o estar repleto de seu Espírito, o

Concílio de Calcedônia formula além da consubstancialidade de Cristo com Deus à medida de

sua filiação divina, também a consubstancialidade conosco à medida de sua humanidade. Tal

“união hipostática” que preserva a “propriedade de cada qual das naturezas” (DH 302), de

acordo com a interpretação do dogma cristológico de Calcedônia por KNAUER, há de ser

concebida por meio dos quatro atributos adverbiais gregos do “sem mistura” (ἀσυγχύτως),

“sem mudança” (ἀτρέπτως), “sem divisão” (ἀδιαρέτως) e “sem separação” (ἀχωρίστως).

Geralmente são entendidos como uma demarcação negativa de extremos a serem

evitados de tal maneira que se supõe poder falar apenas, aproximativamente, de Jesus como

inteiramente humano e inteiramente divino. Acontece, porém, que, em consequência da falta

de uma compreensão relacional desses termos, ou se separa, ou se mistura as duas naturezas.

No entanto, assim comenta KNAUER, os padres conciliares intencionaram formular com “toda

e holística precisão e cautela” (DH 302), portanto de forma insuperável, sem margens de

dúvida, e não de forma incerta ou ainda gradativa.96

Somente em uma concepção ontológico-relacional, chega-se à compreensão

consistente, definitiva e insuperável da compreensão encarnatória de Deus em Jesus Cristo.

Ou o pensamento substancialista não consegue evitar a separação duas naturezas em Jesus

Cristo para salvaguardar a divindade de Deus. Mas, então, encarnação não aconteceu. Ou

inevitavelmente se chega a misturar as duas porque sua conexão estaria baseada no “contato”

senão na identidade material e ao mínimo parcial entre humano e divino. O divino se tornaria

legível na humanidade de Jesus, mensurável e evidenciável.97 Apenas no pensamento

relacional, consegue-se preservar a integridade de cada natureza sem separá-las e concebê-las

unidas sem misturá-las.

94 Porque o poder do medo, do qual Jesus nos liberta, nos impulsiona a anseiarmos pelos “primeiros lugares”,

KNAUER o denomina também de “medo de frustração” [Frustrationsangst]; cf. IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 196.

95 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 165. 96 Cf. KNAUER. Die chalkedonsiche Christologie, 6. 97 O theologoumenon do „segredo messiânico“ do Evangelho de Marcos parece justamente ter a função de

combater a tendência de amarrar a divindade de Jesus na visibilidade de seus feitos. KNAUER mesmo comenta que os próprios Evangelhos parecem defrontar-se com a dificuldade de expressão indubitável em suas narrativas dos milagres (cf. KNAUER. Der Glaube, 272).

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Mas essa proclamação cristã (o “kérygma”) somente é compreendida e realizada

plenamente em sua pretensão quando seu ouvinte se sabe existencialmente envolvido por ela

na relação de Jesus com Deus. O ponto de partida histórico dessa afirmação só pode ser a

própria pregação de Jesus. Por meio de sua mensagem da vinda iminente do Reinado de Deus,

Jesus nos comunicou nosso ser acolhido no amor do Pai a ele, e assim fez-nos participar de

sua relação com Deus-Pai.

O fato de que a vinda do Reino estava irremediavelmente vinculada a sua pessoa

certamente não foi ignorado pelo próprio Jesus (discussão pela consciência messiânica de

Jesus como implicada nos escritos neotestamentários). Mas não é a consciência psicológica de

Jesus que aqui interessa. Pois a verdade da consciência de sua filiação divina só pode ser

acolhida enquanto tal em um ato de fé. Nele a pessoa crente reconhece, ao mesmo tempo, sua

própria inclusão no mesmo ser amado, mediante a segunda autopresença divina.

Esse “evangelho” Jesus testemunhou com a sua vida. Morreu como mártir justamente

porque conquistou seguidores por sua causa. Sua palavra tinha “autoridade” à medida de seu

próprio estar-repleto-do-Espírito-Santo. E sua palavra foi ouvida por aqueles que se tornaram

seus discípulos à medida de “sua fé”, mas enquanto “fé verdadeira” no sentido da autodoação

(o credere in Deum), fundamenta-se coerentemente apenas com referência constitutiva ao

evento da ressurreição de Jesus.

Pela repercussão de sua mensagem, Jesus mesmo podia se certificar da correção de

suas palavras e de sua própria fé, porque nenhum de seus adversários conseguiu refutá-las,

nem podia esquivar-se do confronto com a mensagem e com a pessoa de Jesus sem cair em

contradição consigo próprio: segundo KNAUER, os Evangelhos demonstram como seus

adversários se recusaram a usar sua própria razão.98

Depositar fé em Jesus “por causa de sua palavra” (Lc 5,5), como sendo a origem da fé

cristã, e à qual se precisa recorrer historicamente, significa o mesmo que crer na filiação

divina de Jesus como “unigênito” [μονογενής] do Pai (referente à preexistência no Pai; Jo

3,16.18 e DH 125) e “primogênito” da criação (referente à economia da salvação; Cl 1,15).

Pois não se teria acesso a essa verdade senão originalmente por meio de sua palavra. Nessa fé,

esclarece-se a comunhão com Deus, revelada por ele e estabelecida nele mesmo, como a

participação nossa de sua relação com seu Deus-Pai sendo seu fundamento.

98 Cf. a interpretação de Mc 3,1-6 em KNAUER. Unseren Glauben, 53s e tb. IDEM. Der Glaube, 231. O mesmo

fato é referido em Jo 15,25: “Me odiaram sem razão” (cf. KNAUER. Der Glaube, 348) e em Jo 18,19-23.

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Em Jesus, à luz da fé, nossa verdadeira identidade se torna manifesta como nosso “ser-

criado-em-Cristo”. “E inversamente, esse fato oculto não existiria efetivamente se ele não

implicasse a necessidade de uma encarnação do Filho”.99 Por esse motivo, a referência da

mensagem cristã a Jesus de Nazaré como sua origem necessariamente leva à afirmação de sua

filiação divina. Mas “da filiação divina de Jesus apenas se fala adequadamente quando nisso

se trata de nosso próprio relacionamento com Deus”.100 Tudo aquilo que a mensagem cristã

desde o Novo Testamento afirma de Jesus é em função de nossa inclusão na comunhão eterna

entre o Pai e o Filho, do nosso ser criado em Cristo que afirma. No entanto, para poder dizer

que nós participamos da relação de Jesus com Deus, precisa-se esclarecer em que relação

Jesus está com Deus.

A mensagem cristã há de responder a esse problema em primeiro lugar, a respeito de

quem ela remete sua própria origem: a Jesus de Nazaré. Somente a partir daí, mas, então,

necessariamente a partir daí é que o dogma cristológico (a verdade cristológica do ser humano

Jesus ser criado desde o início de sua existência na segunda autopresença divina que é o

Filho) se torna “critério” ou “chave de leitura” (princípio hermenêutico) para todas as demais

sentenças de fé em virtude da afirmação de nossa própria filiação divina. Esse critério

KNAUER encontra nos dois atributos do “não-misturado” e do “não-separado” da fórmula

calcedônica.

Assim delimitam um espaço indefinido para afirmações consideráveis como

“ortodoxas”. Mas, dessa maneira, parecem já declarar sua capitulação diante do desafio de

dizer, definitiva e claramente, sem margem de dúvida e mal-entendido, como se pode

conceber a comunhão do ser humano com Deus mediante Jesus, o Cristo.

Em segundo lugar, a dificuldade de compreensão diante do dogma calcedônico

frequentemente se deve a uma “confusão linguística de ‘distinguir’ e ‘separar’”101 que, de

modo algum, dizem a mesma coisa. Na cristologia, como em toda a teologia, trata-se de dizer

como realidade divina e humana e/ou mundana estão conectadas, formando uma unidade, sem

que possam ser confundidas nem consideradas desvinculadas. Pelo fato de a maioria dos

teólogos modernos ainda pensar à base de uma ontologia substancialista, aparece-lhes

impossível fundamentar tal verdade dogmática livre de contradições ou margens difusas de

compreensão. No fundo, a história dos dogmas é marcada por essa incapacidade:

99 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 158. 100 KNAUER. Der Glaube, 131. 101 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 7.

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É óbivo que por trás do constante movimento dialético em toda a história dos dogmas e da teologia [...] entre a ênfase na unidade e da ênfase no ser distinto [Unterschiedenheit] de divindade e humanidade esteja um problema não resolvido e possivelmente insolúvel: o problema da mediação entre Deus e ser humano.102

Somente numa ontologia relacional, o que parece formar uma tensão ou até

contradição (pensar a união sem mistura nem manipulação de realidade divina e mundana),

dissolve-se sem dificuldade lógica ou imprecisão de linguagem:

De um lado, é afirmado com razão aqui que o problema da mediação entre Deus e ser humano é o problema determinante de toda a história dos dogmas e da teologia. Também parece, de fato, ser o diagnóstico da história da teologia que unidade e ser distinto de divindade e humanidade são afirmados comumente como estando em uma tensão enigmática uma com a outra. Por outro lado, porém, há de se perguntar se realmente se trata de um “problema possivelmente insolúvel”. Isto não significaria que teologia se torna impossível já no princípio?103

De fato, o que está em jogo, de acordo com KNAUER, é a compreensão tal qual da

mensagem cristã como “palavra de Deus” em sua consistência interna e, também, “externa”

porque a razão crítica não conseguirá comprovar alguma incoerência da mensagem cristã. Se

não fosse possível compreender como Jesus há de ser considerado inteiramente humano e

inteiramente divino, também não seria possível compreender a própria mensagem cristã em

sua pretensão de ser “palavra de Deus” nem o “em Cristo” de nosso ser criado. Pois ela

levanta essa pretensão de verdade a partir do ser Filho de Deus de Jesus, a “palavra de Deus”

enquanto “Logos encarnado” tal qual. E, se não for possível fundamentar a união de

realidades mundana e divina respectivamente como sendo inteiramente distintas, porém,

enquanto distintas inteiramente vinculadas desde a realidade divina como constitutiva,

também não é possível manter de pé a afirmação de nossa comunhão com Deus – o que

equivale à negação de nossa salvação.

Por isso, KNAUER reinterpreta:

(1) Com o “não-confundido” das duas naturezas se exclui qualquer identidade parcial

no sentido de “mistura” (Vermischung) entre ser Deus e ser humano. Sua diferença é total.

Positivamente formulado quer dizer “distinção” – sem implicar logo separação porque se diz

relação.

102 KASPER, WALTER. Jesus der Christus. Mainz: 1974, 283. citado in: KNAUER. Die chalkedonensische

Christologie, 1. 103 IBID., 1. Ao menos assim se constataria, então, que teologia nunca poderá fazer jus a sua pretensão de

fundamentar palavra de Deus coerentemente.

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(2) Pelo “não-mudado” o Concílio ressalta que, com a união hipostática, não

acontece nenhuma modificação da integridade de cada qual das naturezas. Elas permanecem

não-manipuladas em seu ser relacionado porque sua união já existe desde o início da

existência humana de Jesus. Desse modo, Jesus não pode tornar-se “super-homem” por

suposta usurpação da natureza humana pela divina, e assim Deus também não é degradado a

um demiurgo.

(3) O “não-dividio” expressa que a união entre divino e humano não se comporta

como partes em relação a um todo mais abrangente. Tal concepção consegue perceber uma

união de duas realidades diferentes, constituída por meio de sua tangência ou identificação

parcial. A relação entre as naturezas passa a ser algo obsoleto ou, no mínimo, secundário e

não constitutivo para formar sua união. Em equivalência à mistura das duas naturezas, nem o

ser divino nem o humano se salvariam em sua integridade e autonomia. Essa ideia subjacente

à concepção substancialista, outra vez, é inevitavelmente monofisita. Positivamente

formulado significa que as realidades permanentemente distintas formam uma união desde o

princípio, e não uma composição posterior das duas naturezas.104

E (4) o “não-separado” finalmente estabelece que ser divino e ser humano não ficam

isolados, e sim relacionados de tal forma em Jesus Cristo que seu ser Deus seja constitutivo

pela união das duas naturezas e, portanto, o que tudo abrange. Por isso, o ser pessoa de Jesus é

seu ser Filho de Deus, porque, na união hipostática, sua autopresença humana é criada para

dentro da segunda autopresença divina.105

Se, ainda hoje, seus seguidores se sabem em comunhão com Deus, “em confiança a

sua palavra”, isso implica a presença real de Jesus em meio à comunidade cristã (e das

pessoas de “fé”) como eterno mediador de salvação (que consiste em nosso participar de sua

relação com Deus). “Ele é aquele por meio de quem outros seres humanos unicamente

adquirem acesso a Deus”.106 Quer dizer que a fé só é verdadeira no que afirma a respeito do

nosso ser amado por Deus hic et nunc justamente porque Jesus ainda hoje nos faz participar

104 Cf. DH 298 e a referência em nota 342 na p. 121 deste trabalho. 105 Aqui KNAUER refere a TERTULIANO. Adversus Praxeas. ed. Evans, 124, 37ff. Apud: KNAUER, Die

chalkedonensische Christologie, 11, para corroborar sua interpretação: “vemos um duplo estado, não confuso, mas sim conexo, em uma pessoa Jesus é Deus e homem”.

106 KNAUER. Der Glaube, 131.

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de sua relação com Deus. “Por isso, Jesus não é apenas iniciador histórico-espiritual da fé

cristã, senão que esta fé como o fazer parte na sua relação com Deus depende dele

permanentemente”.107

Dessa forma, entende-se que, diante de sua morte de cruz, a afirmação da

ressurreição de Jesus, por sua vez, é sinônima da afirmação de sua filiação divina. A partir

daí, compreende-se que tudo o que a cristologia afirma de Jesus de Nazaré no sentido de sua

filiação divina e em virtude de nossa redenção, além de preexistência do Logos, de

importância redentora de sua cruz, das aparições do Ressurreto, do túmulo vazio e de sua

assunção, sempre e apenas é desdobramento do mistério da encarnação.

4. “TORNAR-SE IGREJA” DO ESPÍRITO SANTO: UMA PESSOA EM MUITAS PESSOAS

Por meio da compreensão encarnatória de Deus, KNAUER estabelece a fórmula

calcedônica como princípio hermenêutico fundamental, desde a cristologia, para toda a

teologia. Em consequência análoga estrita e igualmente necessária, ele concebe a

compreensão pneumatológica de Deus como princípio hermenêutico para a compreensão de

toda a fé como o “estar-repleto-do-Espírito-Santo” em sua eclesialidade irrevogável, em sua

catolicidade verdadeira (LG 8) e em sua infalibilidade insuperável (LG 10). Para o autor, isso

desemboca tanto na afirmação da existência de “fé anônima”108 quanto na da “possibilidade

necessária”109 de constatar publicamente a concordância de todos os fiéis e comunidades

eclesiais nesta mesma e una fé (LG 12), portanto de um tipo de “magistério” em cada Igreja

cristã.110

A encarnação do Filho e o envio do Espírito Santo em função do “tornar-se manifesto”

[Offenbarwerden] de nossa comunhão com Deus, mediante a Igreja como “sacramento

universal de salvação” (LG 48 e GS 45; e tb. LG 1 e o.), não apresentam apenas uma

107 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 158. 108 Cf. KNAUER. Der Glaube, 156. Contrariando, de certa forma, o “cristão anônimo” de RAHNER (cf. IBID., nota

209), KNAUER entende que o “vínculo verdadeiro” entre as pessoas de “boa vontade” é, por assim dizer, preexistente também à sua própria escolha religiosa ou confissão de fé. Somente à luz da fé conscientemente acolhida enquanto “cristã”, e assim na retrospectiva, se manifesta que tudo de verdadeiro bem que é feito só pode ser feito “no Espírito Santo” enquanto “Espírito de Cristo”. O critério é que a pessoa de fato siga sua consciência (cf. IBID., por referência à LG 16).

109 Cf. KNAUER. “‚Notwendige Möglichkeit‘ als ökumenische Grundkategorie”. In: ThGl 92 (2002) 48-59. 110 Além de KNAUER. Der Glaube, 291ss, cf. tb. IDEM. “Das kirchliche Lehramt und der Beistand des Heiligen

Geists. Zur römischen ‚Instruktion der über die krichliche Berufung des Theologen‘”. In: HÜNERMANN, PETER; MIETH, DIETMAR (ORg.). Streitgespräch um Theologie und Lehramt. Die Instruktion über die kirchliche Berufung des Theologen in der Diskussion. Frankfurt am Main: Knecht, 1991, 207–231.

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“analogia não medíocre” [non mediocrem analogiam] (LG 8,1) como também se implicam

mutuamente de forma insuperável. A respeito de tal analogia entre a encarnação do Verbo e o

envio do Espírito Santo à Igreja, KNAUER confirma: “Como [se fala] do ‘tornar-se ser

humano’ [Menschwerdung] do Filho assim poder-se-ia falar como que do ‘tornar-se Igreja do

Espírito Santo’”.111

Pois, somente no ato do acolhimento da palavra, que é o ato da fé, reparamos que a

palavra anunciada significa, ela mesma, o nosso ser acolhido no amor do Pai ao Filho, que é o

Espírito Santo, porque nela mesma acontece do que ela fala. Por essa razão, ter fé é sinônimo

ao “estar-repleto-do-Espírito-Santo”:

A “palavra de Deus” é, como a revelação de nosso ser inserido no amor entre o Pai e o Filho, a transmissão [Mitteilung] do Espírito Santo. Daí que ter fé [Glauben] é possível somente como o estar repleto do Espírito Santo.112

No ato de sua transmissão, acontece o conteúdo transmitido. É palavra que faz o que

diz. Nesse sentido, KNAUER reflete, como ressaltado desde o início deste trabalho, sobre a

identidade entre o ato da fé (fides qua) e seu conteúdo (fides quae).113 Assim, á luz do vínculo

pneumático, há de se notar o caráter intrínseco entre conteúdo e estrutura de transmissão da

fé.

Hermeneuticamente falando, portanto, o evento da Páscoa e o de Pentecostes se situam

da mesma forma e nesta mesma sequência lógica e histórica como o fazem Escritura e

Tradição. Dentro da concepção ontológico-relacional, são compreensíveis como

intrinsecamente relacionados (DV 9s).114 Pois, como se disse antes que a afirmação da

ressurreição é sinônima do reconhecimento da filiação divina de Jesus diante de sua morte de

cruz, a afirmação do envio do Espírito Santo é sinônima do momento fundante da Igreja como

“corpo [místico] de Cristo [ressuscitado]”, como “Povo de Deus”.

Pois o sentido da mensagem que Jesus testemunhou com a sua vida era conquistar

companheiros para a sua causa (a vinda do Reino de Deus por meio de seus sinais). E a causa

consiste em fazer outros participarem de sua relação com Deus. O testemunho pós-pascal e 111 KNAUER. Unseren Glauben, 96; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 157. 112 KNAUER. „Wort Gottes“ als Grundkategorie des Christentums. 113 Cf. IDEM. Der Glaube, 162s. No fundo, o terceiro capítulo da primeira parte de Der Glaube completa a

trilogia intrínseca de Deus – Palavra – Fé que estrutura o livro todo em suas três partes principais. 114 Cf. a reflexão de KNAUER sobre Jo 19 em IDEM. Unseren Glauben, 64-67. O autor comenta teologicamente à

base do substrato exegético do Quarto Evangelho como a comunidade joanina concebe o nascimento da Igreja no pé da cruz (análogo à concepção da elevação de Jesus na cruz corresponde à sua glorificação) pelas palavras de Jesus a sua mãe e ao seu discípulo amado por meio das quais a comunidade vê estabelecidas entre seus membros as mesmas relações que Jesus mantinha com os seus.

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originário de seus discípulos atesta e reflete, nos escritos neotestamentários, esse mesmo

sentido por meio da afirmação de sua ressurreição (At 2,24.32) numa prática de transmissão

desta mensagem. Essa é a razão teológica para KNAUER afirmar que o sentido do testemunho

de Jesus é a Igreja. A referência crucial de KNAUER a 1Cor 12,3 também comprova isso. A

raiz permanente das afirmações pneumatológicas é cristológica, já que o Espírito Santo

sempre e somente nos é cognoscível como “Espírito de Cristo”. E embasado no mesmo

princípio hermenêutico, o autor explica a relação entre Igreja católica romana e as demais

Igrejas cristãs, bem como entre o cristianismo e as demais religiões.115

Nesse intuito, KNAUER concebe o Concílio Vaticano II como referência magisterial e

dogmática fundamental, especialmente o capítulo I da Lumen Gentium, em vínculo com o

decreto sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio. Tendo em vista a história dos concílios

da Igreja, o autor afirma que, somente pelo “evento” Vaticano II, as afirmações ou fórmulas

dogmáticas fundamentais da fé cristã chegam ao seu “fim” definitivo.116 No sentido do que foi

chamado de “tripé dogmático”, pode-se afirmar, de acordo com o autor, que, enquanto Nicéia,

no fundo, foi o concílio trinitário e Calcedônia o concílio cristológico, Vaticano II completou

esse fundamento doutrinal por ter sido um concílio essencialmente pneumatológico.

A fórmula pneumatológica conciliar propriamente dita KNAUER encontra na LG 7,7

segundo a qual o Espírito Santo é “um e o mesmo na cabeça e nos membros”, ou seja, “um só

e o mesmo em Cristo e nos cristãos”.117 Em vista da Igreja como do “evento contínuo da

transmissão do Espírito Santo”, KNAUER põe ao lado das fórmulas dogmáticas de Nicéia e

Calcedônia a formulação pneumatológica “uma pessoa em muitas pessoas”118 do teólogo

alemão HERIBERT MÜHLEN.

115 Na verdade, esta última parte da mensagem cristã autoevidencia-se por meio de seu conteúdo. Isso já implica

a abordagem das estruturas normativas da transmissão. Esta forma a segunda parte na obra principal de KNAUER e não pode ser considerada em detalhes nesta dissertação – por mais interessante e igualmente provocador que seja. Justifica-se essa restrição aqui por referência à própria concepção teológica de KNAUER, lembrando a delimitação de nosso objeto de estudo para esta pesquisa que trata do núcleo de seu pensamento teológico em função de fundamentar a fé. KNAUER mesmo explica em Der Glaube, 20, que “já o conteúdo da mensagem cristã explica em que consiste sua transmissão [Weitergabe] para a acolhida na fé: a transmissão da fé é a comunicação [Mitteilung] do Espírito Santo, e a acolhida crente [glaubend] da mensagem é o estar repleto do Espírito Santo”. Tudo que segue à primeira parte somente se compreende como desdobramento do que já foi apresentado: comunhão com Deus consiste e acontece na prática da entrega de sua Palavra (por isso chama de acordo com EBELING de “Wortgeschehen”), unicamente compreensível na fé como aquilo que é: encarnação da autodoação de Deus-Pai ao Filho que é o Espírito Santo (cf. tb. nota 297 na p. 107 deste trabalho a respeito do significado do termo “παραδίδωμι” no Evangelho de Lucas).

116 Cf. KNAUER. Der Glaube, 154. 117 IBID.; cf. tb. IDEM. Unseren Glauben, 96 e em diversos escritos do autor. 118 MÜHLEN HERIBERT. Una Mystica Persona – Die Kirche als das Mysterium der Identidät des Heiligen

Geistes in Christus und den Christen: Eine Person in vielen Personen. 3.ed. München-Paderborn-Wien: Schöningh, 1968. Apud: KNAUER. Der Glaube, 157.

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Por isso, deve ser apresentado antes em que sentido KNAUER concebe a compreensão

pneumatológica de Deus como terceira e última resposta da mensagem cristã ao

questionamento crítico da razão referindo-se a si mesma, ao seu conteúdo, para tornar-se

compreensível. Pois KNAUER põe a fórmula pneumatológica (“uma pessoa em muitas

pessoas”) ao lado da fórmula trinitária (“três pessoas numa natureza”) e da cristológica (“uma

pessoa em duas naturezas”) como a terceira fórmula dogmática básica.

Se, pela autocomunicação de Deus em Jesus como Filho de Deus, nos é revelada nossa

comunhão com Deus no sentido da participação nossa da relação de Jesus com Deus desde o

início, somente podemos acolher tal afirmação como aquilo que realmente é: o ser abordado

por Deus em sua palavra. No ato do anúncio, a própria condição de possibilidade de acolher

tal palavra como verdadeira, nosso próprio estar-repleto-do-Espírito-Santo comunicado a nós

igualmente por meio dele enquanto espírito de Cristo.

A afirmação do vínculo pneumático no ser humano é (1) ontologicamente necessária,

porque o fato de nossa mera criaturalidade conhecida por meio da razão nunca pode tornar-se

termo constitutivo para a inserção nossa na relação de Jesus com Deus (o nosso “ser criado

em Cristo”). Ao mesmo tempo, é (2) epistemologicamente necessário porque, dentro do nosso

horizonte de realidade criatural, nenhum esforço nosso não somente é incapaz de estabelecer

tal comunhão com Deus, mas também é impossível à razão humana reconhecer em Jesus a

autocomunicação de Deus e, por meio desta, de conhecer em nós o “em Cristo” de nosso ser

criado. Somente em um ato de “obediência” (de “correspondência”) constituído pela palavra

de Deus, que é o ato de fé no sentido da entrega a Deus (credere in Deum), é possível acolher

a “promessa” de nossa identidade última de “filhos de Deus” como, desde sempre, “realizada

em Deus” (cf. figura 7).

Figura 7: Modelo relacional do ser criado em Cristo.

Fonte: KNAUER. Der Glaube, 166 (adaptado).

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Trata-se de reconhecer na expressão do texto conciliar “O Espírito Santo, o mesmo em

Cristo e nos cristãos” (LG 7,7) a afirmação de que comunhão com Deus somente é possível de

tal forma que o amor com que o Pai ama o Filho desde toda eternidade seja o mesmo amor

com o qual nós somos amados desde o início de nossa existência. Pois esse amor justamente é

o próprio Espírito Santo. Em seguida, vinculada à eclesiologia como pneumatologia, KNAUER

desdobra toda a compreensão da teologia da graça, dos sacramentos até duma teologia das

religiões com base na sua concepção ecumênica, o modelo que chama de “interiorismo”.119

Antes, porém, precisa ser ressaltado que a tríplice resposta teológico-dogmática da

mensagem cristã no sentido de sua autoevidenciação por meio de seu conteúdo continua

sendo desdobrada em mais duas partes de sua obra principal Der Glaube kommt vom Hören:

na segunda parte, KNAUER aprofunda as estruturas de transmissão da Palavra de Deus (à base

de Escritura, Tradição e Magistério vivo, cf. DV 9s), enquanto, na terceira, conclui sua

trajetória de fundamentação da fé, examinando a razoabilidade da concordância da fé à

mensagem cristã. Quanto à exposição dos princípios de seu pensamento teológico à base da

ontologia relacional por ele desenvolvida, afirma-se que seja completa e que tudo o mais

apenas é, no sentido do próprio intuito do autor, explicitação e desdobramento daquilo que já

foi resumidamente afirmado, especialmente no primeiro capítulo deste trabalho.

O ser abordado por Deus em sua palavra por meio de uma palavra humana em sua

originalidade reconduzida ao evento Jesus tem sua continuidade na Igreja como “evento de

transmissão continua da autocomunicação de Deus”. Pois a nossa participação na relação de

Jesus com Deus, acolhida como verdadeira na fé, só é possível ser afirmada se há um

fundamento ontológico anterior a esse mesmo ser abordado por Deus.

Em analogia à inserção da natureza humana de Jesus na segunda autopresença divina,

que é o Filho, o restante de toda a humanidade, de acordo com a mensagem cristã, desde o

início de sua existência, é assumido na terceira autopresença divina, que é o Espírito Santo.

Ainda de acordo com os testemunhos neotestamentários, KNAUER chama essa identidade

verdadeira do ser humano de “nosso ser criado em Cristo” (Jo 1,3, Ef 2,10 e Cl 1,16).

Enquanto nosso mero ser criado é conhecido pela razão, o “em Cristo” do nosso ser criado é

119 A respeito de sua proposta alternativa de um “interiorismo” aos modelos exclusivista, inclusivista e pluralista

cf. tb. “Christus in den Religionen: Interiorismus”. In: Freiburger Zeitschrift für Philosophie und Theologie (2004) 237-25. A mesma concepção defende também GERHARD GÄDE (além da obra citada na p. 47, nota 105 cf. IDEM. “Interiorimus. Ein Vorschlag für einen Ausweg aus der religionstheologischen Sackgasse”. In: Theologie der Gegenwart 46 (2003) 14-27. A tradução nossa do artigo para o português, autorizada pelo autor sob título “Interiorismo. Sugestão para uma saída do beco-sem-saída da Teologia das Religiões” foi publicado in: Kairós 4 (2/2007) 309-328; cf. tb. IDEM. Viele Religionen – ein Wort Gottes. Einspruch gegen John Hicks pluralistische Religionstheologie. Gütersloh: Kaiser/Gütersloher, 1998.

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acessível numa palavra unicamente compreensível como autocomunicação divina e pode ser

acolhida enquanto tal (como verdadeira) somente na fé como o estar-repleto-do-Espírito-

Santo.

Nesse sentido, Jesus como palavra viva de Deus (viva vox evangelii – por meio da

proclamação cristã) nos fez original e continuamente participar da natureza divina em dois

sentidos: (1) porque, por meio dele (cruz e ressurreição – mediador de salvação), a nossa

comunhão com Deus ficou manifesta (revelada) definitivamente com certeza inabalável de fé;

(2) porque, por meio dele, ficou manifesta a nossa comunhão com Deus desde o início de

nossa existência, o “em Cristo” do nosso ser criado enquanto verdadeira identidade nossa e

assim fundamento (Cl 1,16) e fim (Jo 1,3) da salvação.

A fé, como sendo o princípio de conhecimento da verdade da palavra de Deus – e isso

significa dizer que se sabe tal palavra realmente ser autocomunicação de Deus –, só é possível

se for (1) constituída por essa mesma palavra que, dessa maneira, a traz consigo e (2) revelar a

verdade ontológica última sobre nós mesmos anteriormente existente, porém até então oculta

(Ef 3,3-9). A razão dessa afirmação se dá em analogia à regra básica da ontologia relacional

tão ressaltada por KNAUER: nenhuma qualidade criatural é suficiente para constituir uma

relação real de Deus a ela. Nem o mundo de forma geral, nem a natureza humana de Jesus em

virtude da “necessidade” de encarnação de Deus, nem mesmo a instituição social da Igreja em

função da manifestação de nossa comunhão com Deus e assim de nossa redenção.

O Filho nos comunica o seu Espírito de junto do Pai (nisso representa para nós o amor

que advém do Pai), que, pela acolhida na fé, faz ressoar em nós o “em Cristo” do nosso ser

criado, trazendo-o ao nosso conhecimento consciente e seguramente. Se é somente pela fé que

podemos conhecer a nossa própria filiação divina como nossa “herança”, necessariamente a fé

há de ser compreendida como o estar repleto do Espírito Santo. A razão disso é o princípio

metafísico escolástico de que uma relação real de reciprocidade só se dá entre seres da mesma

ordem ontológica. Pois, como a natureza humana de Jesus não pode tornar-se termo

constitutivo da relação de Deus a ela, tampouco o pode a nossa natureza humana em vista da

afirmação de nossa comunhão com Deus.

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5 CONCLUSÃO: A FÓRMULA CALCEDÔNICA COMO CHAVE DE LEITURA PARA TODAS AS AFIRMAÇÕES DE FÉ

Se em todas as afirmações de fé se trata da comunhão nossa com Deus, o problema de

fundo dessas afirmações é o da mediação entre Deus e mundo.120 KNAUER vincula a categoria

do “distinguir e pôr-em-relação”, que ele assume de EBELING, como uma “distinção

fundamental” à essência da fórmula calcedônica. “Em todos os dogmas cristãos se trata ao

mesmo tempo da reta distinção e do reto pôr-em-relação de Deus e mundo contra sua mistura

e separação”.121

Segundo o autor, esse problema se cristaliza na cristologia. Pode-se dizer que a

cristologia é a “pedra de toque” para a coerência de todas as sentenças de fé, porque “entre a

mensagem cristã como [sendo] a ‘palavra de Deus’ e a realidade de fé de Jesus como [sendo]

o ‘Filho de Deus’ existe um paralelo estrutural pleno”.122 Ambas têm sempre a mesma

estrutura ontológico-relacional que o próprio Jesus Cristo: ser verdadeiro homem e verdadeiro

Deus, vinculando realidade humana (e mundana) e divina “sem mistura e sem separação” de

tal forma que o horizonte divino é oniabrangente e constitutivo para o mundano a partir do

qual o divino não é legível.123

Finalmente, importa ressaltar que no discurso próprio da fé, da palavra de Deus como

autocomunicação divina em sentido estrito e próprio, não se pode deixar para trás a

criaturalidade do ser humano. À base desta também a analogia unilateral se aplica no campo

da fé como única maneira de falar de Deus coerentemente, preservando sua inconcebilidade.

Nós pudemos determinar o significado da palavra “Deus“ somente a partir da criaturalidade do mundo, portanto, “indicativamente”. Semelhantemente há de ser apresentado o significado da fala de um “amor de Deus” ao ser humano, e com isso de uma comunhão do ser humano com Deus de forma “referente” por uma nova compreensão de si e do mundo da parte do ser humano. Nisso as três vias de conhecimento da doutrina natural de Deus serão retomadas de modo novo. Também no conhecimento sobrenatural de Deus se mantém a analogia unilateral.124

120 Cf. KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 1. Faz-se referência a este artigo de KNAUER aqui durante

este capítulo todo, porque nele o autor torna bem transparente e evidente o vínculo entre cristologia e teologia. Cf. tb. IDEM. Wort-Gottes-Theologie und Christologie. Este artigo retoma a abordagem do artigo anteriormente citado, porém, de forma mais genérica em resumo a toda a concepção teológica de KNAUER posterior à última edição de Der Glaube kommt vom Hören.

121 KNAUER. Die chalkedonsiche Christologie, 12. 122 KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 194. 123 Em seguida se trata de um simples desdobramento de que Jesus Cristo é o Verbo feito carne cujo evento

histórica e soteriologicamente falando continua acontecendo por meio da proclamação atual da mensagem cristã em sua pretensão de ser originalmente e continuamente tal Verbo divino encarnado em palavra humana. Todas essas implicações em resumo de seu pensamento teológico KNAUER publicou no seu artigo Wort-Gottes-Theologie und Christologie acima já referido.

124 KNAUER. Der Glaube, 114.

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Pois, mesmo quando afirmamos a presença real de Deus em todas as coisas, fazemo-lo

sempre analogamente de um jeito que Deus não acabe “sob” algum conceito, confundido-o

com alguma qualidade criatural. Pela via afirmativa, à luz da fé, toda experiência mundana ou

“profana” se torna símbolo da comunhão em que nos encontramos com Deus [desde] sempre.

“Nós não precisamos construir uma imagem fantasiosa adicional do céu, mas podemos

compreender desde já tudo de bom e belo do mundo real como imagem do céu que em si

mesmo não se subordina a nenhum conceito e a nenhuma imagem”.125

E mesmo qualquer experiência negativa que fizermos de vulnerabilidade, de

enfermidade, de dor, injustiça e morte não pode anular ou negar a experiência boa que nos

simboliza que estamos sempre sob o amparo infinito de Deus. Na fé, toda experiência de

desespero perdeu seu espinho de palavra última sobre nossa realidade (Rm 8,35-39). Esse é o

lugar da via negativa no discurso da fé. Mas, seja experiência boa seja ruim, a via da

eminência na fé nos representa que toda experiência nossa apenas permanece análoga

referente à comunhão com Deus, que, enquanto tal, não é legível ou dedutível do caráter

simbólico em si:

Saber-se amado por Deus com um amor no qual Deus está voltado a Deus, portanto, significa em contrapartida a idolatração do mundo ou desespero diante do mundo, poder-se alegrar com tudo de bom no mundo sem agarrar-se a isso a todo custo, e, inversamente, que se pode resistir no sofrimento.126

125 IBID., 117. 126 IBID., 118. Na nota 144, vinculado ao trecho citado, o autor observa que vê nesse fato o sentido do princípio

espiritual inaciano de achar Deus em todas as coisas.

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CONCLUSÃO GERAL

Nesta conclusão ao trabalho no seu todo, retoma-se as questões centrais em sua

abordagem sistemática no decorrer dos três capítulos, a fim de conferir os resultados da

reflexão.

Este trabalho se propôs a compreender a fé cristã por meio do pensamento relacional

de PETER KNAUER. Pensar a fé mediante a concepção ontológico-relacional do autor nos pôs

junto dele na contramão de muitas concepções populares e também teológicas, atualmente e

desde sempre tendencialmente dominantes. Com referência à divisa do “vinho novo em odres

novos” (Mc 2,22), seguimos a intuição de KNAUER de a própria mensagem cristã caminhar na

contramão, porque ela exige para a sua compreensão adequada uma “conversão na pré-

compreensão”. Sem dúvida, o leitor terá percebido como o pensamento de KNAUER embarca

nas águas mais profundas da teologia toda, suscitando uma série de questionamentos. Se

assim for, já se pode estar certo de tê-lo encontrado no lado verso da corrente principal

teológica contemporânea. Pensou-se cumprir assim inicialmente o papel de “intérprete”, que o

autor atribui ao próprio ministro da palavra (fundamentalmente todos os fiéis, cf. LG 10 com

LG 12) e expressa nas palavras de um bispo francês: trata-se de “faire circuler la Parole”.127

No primeiro capítulo, introduziu-se o teólogo e pensador KNAUER, com o objetivo de

delimitar sua proposta hermenêutica fundamental em função de uma consequente teologia-da-

palavra-de-Deus. Em sua concentração na simples e insuperável verdade de fé, que trata da

nossa comunhão com Deus, o autor se contrasta daquelas concepções teológicas que

continuam embebidas de uma compreensão ontológico-substancialista da realidade, donde

acabam inevitavelmente enquadrando Deus nas categorias de nossa pensar corriqueiro. Em

decorrência de tal falácia, cai-se nas dissociações de uma concepção aditiva da fé. Na

realidade, tais teologias, à medida que declaram a verdade da fé na revelação divina, no

fundo, como algo trivialmente compreensível, prejudicam a busca de sua reta compreensão:

“A tentativa de tornar a mensagem cristã ‘plausível’ dentro do quadro da pré-compreensão

previamente encontrada, só pode prestar a ela um serviço pelego [Bärendienst]”.128

127 IBID., 292, nota 457. 128 KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 70; cf. tb. IDEM. Was die öffentliche Prüfung aushalten kann e

IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 928s.

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Procurou-se situar brevemente o autor diante das tendências globais de enfrentar

compreensões que enquadram a fé nos esquemas pós-modernos da abordagem do “fenômeno

religioso”. Com relação à atual confusão epistemológica entre teologia e ciência da religião, o

autor, de forma semelhante como no texto supracitado, alega que é prestar um serviço pelego

porque se pretende fazer teologia apenas “por um interesse a respeito de religião” [Interesse

an Religion] e não “no interesse de sua própria religião” [in ihrem eigenen Interesse].129

Em contrapartida, apresentaram-se previamente as intuições teológicas principais do

autor a partir de sua percepção do caráter problemático da pretensão da mensagem cristã ser

“palavra de Deus”. A fé como o saber-se amado incondicionalmente por Deus só se dá a

entender em sua correlação estreita com a palavra da proclamação na qual Deus vem à palavra

somente. Por causa de na fé se tratar de uma certeza absoluta na vida e na morte, ela não pode

confundir-se com a incerteza existencial do ser humano, que se deve ao seu ser-entregue-na-

morte, nem com suas falsas certezas por ele criadas em compensação do medo a respeito de si

mesmo daí derivante. Pois, desse poder do medo, a fé quer libertar o ser humano para que este

possa ser verdadeiramente humano. Assim, sendo não-legível no mundo, a fé precisa ser

sobredita à realidade mundana, provém, por isso, do “ouvir”.

Em consequência disso, a teologia precisa tomar outro ponto de partida metodológico

em função de uma compreensão coerente da fé. Segundo KNAUER, se não se partir do simples

encontro com a mensagem cristã, incorre-se em becos-sem-saída logo de início do

empreendimento da fundamentação da fé. A mensagem cristã, em função de seu caráter

contraintuitivo, requer ser questionada para se dar a entender. Sua pretensão de verdade é

universalmente acessível. Consequentemente, quem pretende ter “palavra de Deus” há de

explicar primeiro como ele entende o termo “Deus” para depois voltar ao termo e responder

como se pode referir uma palavra a Deus. Os capítulos II e III assim representam a própria

particularidade estrutural da mensagem cristã em sua não-evidência diante da razão e sua

autoevidência apenas na fé.

No segundo capítulo, portanto, levantou-se a pergunta por “Deus”. É a própria

mensagem cristã que problematiza o termo, referindo-se à tradição da inacessibilidade de

Deus. Deus não pode ser subordinado a algum conceito de nossa linguagem. É recorrendo a

SANTO ANSELMO que KNAUER resgata um critério fundamental em todo discurso de Deus:

suas afirmações hão de ser compreendidas em um sentido insuperável, pois Deus há de ser

concebido como maior do que se pode pensar.

129 Cf. KNAUER. Ein anderer Absolutheitsanspruch e tb. IDEM. Der Glaube, 393.

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À base desta intelecção, o autor desenvolve sua ontologia relacional como requisito

filosófico necessário, trazido pela própria mensagem cristã, a fim de salvaguardar a divindade

de Deus. É o que não acontece numa concepção ontológico-substancialista que não pode

evitar de subordinar Deus ao mesmo horizonte do ser do mundo. Para falar de “Deus”

coerentemente, a mensagem cristã nos remete ao mundo do qual afirma ser criado do nada.

Em sua reformulação do significado da criaturalidade do mundo, KNAUER desenvolve sua

compreensão relacional do ser: o mundo é um “ser totalmente relacionado a ... / em total

diferença de ...” seu “para-onde”, que é seu termo constitutivo, Deus. Por tal relação

substancial, unilateral e direta do mundo, Deus é precisamente conhecido como “aquele sem

quem nada é”. De Deus se conhece tudo que é diferente dele, mas se remete somente a ele.

Enquanto afirmação acessível à razão humana, a doutrina da criaturalidade está

submetida à “comprobabilidade” [Beweisbarkeit]. KNAUER não deixa dúvida de que não é

Deus que assim é comprovado em sua existência, e sim o ser criado do mundo. De fato, a

prova tem o maior grau de abstração, porque, pela necessidade de explicar o ser do mundo, há

de se procurar. O problema de contradição encontrado é respondido pela indicação das duas

referências não-contraditórias do total ser relacionado em total diferença do mundo com

relação ao seu para-onde.

Para poder falar de Deus de forma definitivamente consistente, KNAUER resgata a

doutrina escolástica da analogia, que, pela compreensão adequada de suas três vias,

afirmativa, negativa e da eminência, garante a unilateralidade da relação do mundo a Deus.

Diante de simultânea semelhança (relação) e dessemelhança (diferença) da parte do mundo, a

dessemelhança “da parte de Deus” é sempre maior. Tal analogia unilateral tem consequências:

uma relação real de Deus ao mundo há de ser completamente descartada pela razão.

Nessa afirmação consiste todo potencial crítico da ontologia relacional referente,

sobretudo, a concepção teísta, ainda muito difundida em ambiente teológico. Nela está

enraizado também o problema da teodicéia. Ocorre que alguma intervenção “extraordinária”

de Deus no mundo, ou disposição sua diante do mundo, não pode existir, porque o mundo já

se encontra desde antes na total dependência de Deus.

Por essa razão, Deus há de ser concebido como de fato “poderoso em tudo”. À luz da

razão humana, portanto, comunhão com Deus emerge como algo totalmente impossível. Ao

contrário, Deus é conhecido no modo de sua ausência. Abstraído da fé, o mundo assim se

torna de fato imagem do “silêncio” de Deus, do mundo “abandonado” por Deus.

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Diante da constatação de que “Deus” parece ser o maior argumento contra “palavra de

Deus”, voltou-se, no terceiro capítulo, a perguntar a mensagem cristã como ela ainda se

explica. Pois também o termo “palavra” surge agora, e mais ainda, como problemático,

porque parece afirmar uma relação real de Deus ao mundo – antes afirmada como impossível

no horizonte do conhecimento natural de Deus. De acordo com KNAUER, a mensagem cristã

se explica pelo seu próprio conteúdo trinitário-encarnatório-pneumatológico, evidenciando-se,

desse modo, em sua verdade somente no seu próprio campo da fé.

À razão, porém, compete constatar a coerência externa, isto é, a consistência lógica

das afirmações de fé, mesmo não podendo evidenciar sua verdade em seu próprio campo. O

fato que a razão não consegue comprovar a inconsistência da mensagem cristã não é

logicamente o mesmo que comprovar sua coerência que coincide com o reconhecimento de

sua verdade.130 Nesse sentido, apresentou-se as exigências lógicas como sendo implicações

necessárias para a compreensão coerente da mensagem cristã. Sua pretensão de revelação só

se pode fazer mediante seu caráter de palavra como autocomunicação de Deus ao mundo. Só

à base do reconhecimento da Lei a mensagem cristã pode se dar a entender como Evangelho.

Isso exige seu caráter de mistério de fé, pois sua verdade não é legível no mundo. Os dogmas

fundamentais da Igreja hão de ser compreendidos como mistérios de fé num sentido estrito,

porém não de forma acumulativa. Nem um nem outro deve ser confundido com alguma

dificuldade lógica. Qualquer afirmação de fé é mistério em sentido insuperável e, por isso,

sempre “apenas” desdobramento da única verdade simples de nossa comunhão com Deus.

Uma relação real de Deus ao mundo só pode ser afirmada como ser assumido do

mundo numa relação real de Deus com Deus anterior ao mundo. A Trindade de Deus assim é

a condição de possibilidade fundamental de nossa salvação, e só em sentido soteriológico se

torna assunto teológico. Apenas numa concepção relacional compreende-se a co-originalidade

da única natureza divina que se relaciona a si mesma mediante as três autopresenças

diferentemente mediadas entre si, Pai, Filho e Espírito Santo.

A encarnação do Filho em Jesus de Nazaré é a autocomunicação eterna do Pai para

“dentro” do mundo enquanto relação ad intra Dei (e não para fora de si!): “Quem crê em

mim, não é em mim que crê, mas em quem me enviou, e quem me vê, vê aquele que me

enviou” (Jo 12,45). A humanidade de Jesus é assim criada, desde seu início, na segunda

autopresença que é o Filho. Este é o termo constitutivo para o ser pessoa de Jesus e

subsequente união hipostática afirmada pelo Concílio de Calcedônia. Sua fórmula, duas

130 Cf. KNAUER. Der Glaube, 351, nota 557!

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naturezas numa só pessoa, “distintas” e “vinculadas” em linguagem relacional, na realidade, é

entendida por KNAUER como um aviso hermenêutico universal para todas as afirmações que

vinculam mundo e Deus. Se Jesus é em tudo igual a nós menos no pecado, à luz do envio do

Espírito Santo, acolhemos nossa verdadeira condição de “criados em Cristo”, em tudo igual a

ele, menos na ausência do pecado.

O evento da transmissão da palavra é a Igreja, constituída no Espírito Santo, em

analogia ao Verbo encarnado (LG 8,1). O Espírito Santo une os membros do corpo de Cristo

entre si, e com Cristo em si mesmo; ele é uma pessoa em muitas pessoas. Isso acontece

sempre de forma invisível em que seres humanos se unem por amor gratuito. Mas, somente a

fé trazida pela tradição da Igreja faz ver essa realidade que KNAUER designa de “fé

anônima”:131 desse modo, “a fé provém do ouvir, mas leva ao ver”.132

A partir daí, levantam-se duas questões: (1) com relação à própria concepção teológica

do autor: sua pressuposição de formar, com a sua compreensão de fé, uma alternativa às

“falsas alternativas” de racionalismo e fideísmo, por meio do instrumentário hermenêutico de

uma ontologia relacional, realmente consegue fazer jus à fé? E qual seria o critério julgador?

(2) Com relação à teologia latino-americana: assuntos que devem animar um diálogo frutífero

se encontram, a nosso ver, além das insinuações feitas a respeito da crítica teológica de

idolatria e sua desmitologização, no problema da teodicéia em vínculo com a questão da

opção pelos pobres.

(Ad 1) Concorda-se com KNAUER que um critério pela adequação ou justeza de uma

teoria é se ela mesma indica de que modo sua argumentação se distingue de uma estratégia de

imunização. Isso já é prova de uma busca ativa nela mesma por contradições, demonstrando

assim a disponibilidade de responder a quaisquer questionamentos a ela. Essa postura, o autor

identifica com a intenção da própria mensagem cristã, que, em função de seu caráter contra-

intuitivo, requer ser perguntada como ela se entende. A maneira como o autor concebe a

relação entre razão e fé em função da fundamentação da fé nos fornece a resposta.

A mensagem cristã mesma, por meio da teologia, remete-se à autonomia da razão

com todos os seus princípios lógicos, oriundos do princípio da não-contradição, diante da qual

sua verdade há de corresponder, sem que com isso queira dizer que sua verdade seja 131 IBID., 156-159. Como a fé liberta para agirmos simplesmente como seres humanos, relacionando-nos com a

nossa realidade responsavelmente, fé anônima é o mesmo saber-se amado, mesmo se ainda não explicitado. Pois só uma pessoa que se sabe infinitamente amparada pode fazer o que é realmente bom diante de Deus. Só “uma árvore boa dá bons frutos” (Mt 7,17). A relação entre fé e obras, na qual KNAUER segue os parâmetros da compreensão protestante, e pelos quais esclarece a tradição tridentina, poderia formar outro ponto na pauta de um diálogo com o autor na América Latina.

132 IBID., 410.

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evidenciável positivamente no campo da razão.133 Se não se pode fazer jus à mensagem cristã

senão apenas na fé como o estar-repleto-do-Espírito-Santo, então, trata-se de uma mensagem

diante da qual não se pode permanecer numa postura de indiferença. A não-neutralidade da

mensagem cristã, por isso, torna-se igualmente critério de sua fundamentação. Compete à

teologia demonstrar como a palavra de Deus sempre põe seu ouvinte na alternativa

assimétrica entre fé e não-fé. A postura de não-fé não pode contar com a razão do seu lado.

Pelo contrário, tal posição se comprova como inconsistente no próprio campo da razão.

São dois os critérios principais que delimitam a função da razão pela fundamentação

da fé como sendo um “filtro” para ela. KNAUER se refere, nesse contexto, à Constituição Dei

Filius do Vaticano I, especialmente a DH 3017 como a Magna Charta da teologia

fundamental.134 Afirmar a impossibilidade de haver contradição real entre fé e razão é

consequência necessária da compreensão relacional de sua unidade.135

(1) Nada pode ser crido o que pode ser remetido à razão. Assunto da fé é apenas a

autocomunicação de Deus por meio da palavra humana da proclamação da fé, que nos confere

comunhão com ele, nos revela seu amor incondicional.

(2) Nada pode ser crido o que contradiz à razão preservando sua autonomia. Como

não pode ser crido que já é assunto da razão, também não pode ser crido o que contradiz a

razão. Uma palavra inconsistente, contraditória em si, não merece fé porque carece de

qualquer sentido. Só merece fé a palavra compreensível unicamente como autocomunicação

de Deus. Isso também exclui afirmações em si incompreensíveis ou indecisíveis. A

responsabilidade da mensagem cristã consiste justamente no fato de que as objeções contra

ela só podem ser refutadas no próprio campo da razão. Por essa razão, “uma teologia

fundamental hermenêutica apenas está ainda mais interessada na razão do que na fé”.136

133 Cf. IBID., 392ss. 134 Cf. IBID., 323; cf. tb. IDEM. „Potentia Oboedientialis“ e IDEM. Einführung in den Glauben. 135 Cf. DH 3019. 136 KNAUER. Glaubensbegründung heute, 207s. O autor transfere o paradoxo de uma propaganda de uma

empresa aérea em função da segurança: “Nós apenas dedicamos mais atenção ainda ao avião do que aos passageiros”, porque somente assim a empresa serve ao passageiro de verdade, tal qual a teologia com sua atenção à razão serve à fé. O diálogo com as ciências pela presença de cursos públicos de teologia no palco das faculdades públicas (cf. IDEM. Was die öffentliche Prüfung aushalten kann, 19), e enfrentar debates públicos críticos à Igreja, podem servir de exemplos disso.

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