teologia na contramÃo compreender a fÉ cristà … · michael kosubek teologia na contramÃo...
TRANSCRIPT
Michael Kosubek
TEOLOGIA NA CONTRAMÃO
COMPREENDER A FÉ CRISTÃ PELO PENSAR ONTOLÓGICO-RELACIONAL
EM PETER KNAUER SJ
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia Belo Horizonte
2009
Michael Kosubek
TEOLOGIA NA CONTRAMÃO
COMPREENDER A FÉ CRISTÃ PELO PENSAR ONTOLÓGICO-RELACIONAL
EM PETER KNAUER SJ
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Área: Teologia Sistemática. Orientador: Prof. Dr. João Batista Libanio.
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia Belo Horizonte
2009
„Der Zweifler“ Immer wenn uns die Antwort auf eine Frage gefunden schien löste einer von uns an der Wand die Schnur der alten aufgerollten chinesischen Leinwand, so daß sie herabfiele und sichtbar wurde der Mann auf der Bank, der so sehr zweifelte. Ich, sagte er uns bin der Zweifler, ich zweifle, ob die Arbeit gelungen ist, die eure Tage verschlungen hat. Ob, was ihr gesagt, auch schlechter gesagt, noch für einige Wert hätte. Ob ihr es aber gut gesagt und euch nicht etwa auf die Wahrheit verlassen habt dessen, was ihr gesagt habt. Ob es nicht vieldeutig ist, für jeden möglichen Irrtum tragt ihr die Schuld. Es kann auch eindeutig sein und den Widerspruch aus den Dingen entfernen; ist es zu eindeutig? dann ist es unbrauchbar, was ihr sagt. Euer Ding ist dann leblos. Seid ihr wirklich im Fluß des Geschehens? Einverstanden mit allem, was w i r d ? Werdet i h r noch? Wer seid ihr? Zu wem sprecht ihr? Wem nützt es, was ihr da sagt? Und nebenbei: läßt es auch nüchtern? Ist es am Morgen zu lesen? Ist es auch angeknüpft an vorhandenes? Sind die Sätze, die vor euch gesagt sind, benutzt, wenigstens widerlegt? Ist alles belegbar? Durch Erfahrung? Durch welche? Aber vor allem Immer wieder vor allem anderen: Wie handelt man Wenn man euch glaubt, was ihr sagt? Vor allem: Wie handelt man? Nachdenklich betrachteten wir mit Neugier den zweifelnden blauen Mann auf der Leinwand, sahen uns an und begannen von vorne.
Bertolt Brecht (1937)
“O Duvidante” Sempre, quando nos parecia ter sido encontrada a resposta a uma pergunta, um de nós soltou da parede a corda do velho linho enrolado, chinês, para que caísse e se tornasse visível o homem no banco que tanto duvidava. Eu, ele nos disse, sou o duvidante, eu duvido, se o trabalho que consumiu vossos dias logrou. Se, o que vocês dizem, mesmo dito pior, ainda teria valor para alguns. Se vocês, porém, o disseram bem e eventualmente não confiaram na verdade daquilo que vocês disseram. Se não é equívoco, por qualquer erro, vocês levam a culpa. Aquilo também pode ser unívoco e afastar a contradição das coisas; é unívoco demais? Então, é inútil o que vocês dizem. Seu negócio, então, é sem vida. Vocês realmente estão no fluxo do evento? De acordo com tudo que e s t á vindo a ser? V o c ê s ainda estão vindo a ser? Quem são vocês? E, de passagem: Será que isso deixa sóbrio também? É possível lê-lo de manhã? Será que isso está vinculado a algo existente? As frases que são ditas antes de vocês, são utilizadas, ao menos refutadas? É tudo comprovável? Por experiência? Por qual? Mas antes de tudo sempre de novo, antes de tudo o mais: como se age se acredita-se o que vocês dizem? Antes de tudo: como se age? Pensativos observamos com curiosidade o homem duvidante, azul no linho, olhamos para nós e começamos de novo.
Bertolt Brecht (1937)
(tradução de Michael Kosubek)
RESUMO
O tema deste trabalho é a compreensão de fé do teólogo alemão e jesuíta, PETER KNAUER. Sua particularidade consiste num pensar ontológico-relacional. Para Knauer, a teologia cristã há de partir do encontro histórico com a mensagem cristã. Ela pretende ser “palavra de Deus”. Para entender essa pretensão de verdade, faz-se necessário, primeiro, explicar o significado da palavra “Deus”. De acordo com a própria mensagem cristã, Deus é maior de tudo que podemos pensar. Por isso, a única maneira de falar de Deus consiste em compreender que o mundo é incapaz de existir sem ele, o que significa dizer, que é criado. Nós compreendemos de Deus aquilo que, sendo totalmente diferente dele, em toda a sua realidade é relacionado a ele. Tal relação, no entanto, é totalmente unilateral. O mundo não pode ser o termo constitutivo de uma relação de Deus a ele. Essa é a objeção maior contra a possibilidade de uma “palavra de Deus” o que implica numa relação de Deus ao mundo. A própria mensagem cristã responde a esse problema pelo seu conteúdo: o universo é criado no amor eterno entre Pai e Filho que é o Espírito Santo. Pelo fato de esse amor não ter sua medida no mundo, também não pode ser lido nele e, por isso, há de ser “sobredito” a ele. A mensagem cristã refere à encarnação do Filho por ele revelar-nos, em sua palavra humana, a nossa comunhão com Deus. Esta pode ser conhecida somente na fé como o estar repleto do Espírito Santo. Objetivo da fé é libertar o ser humano do poder daquele medo a respeito de si que, senão, é a raiz de toda desumanidade. Nessa compreensão a fé não é composta de partes, mas todos os dogmas apenas explicam o único mistério de nossa comunhão com Deus. No contexto de uma compreensão aditiva da fé, que está subjacente a atuais tendências de efervescência religiosa e falsa secularização, a compreensão relacional de fé de Knauer pode ser importante também para a América Latina. Palavras-chave: Palavra de Deus, ontologia relacional, conhecimento natural de Deus,
analogia, autocomunicação de Deus, fé, razão.
ABSTRACT
The theme of this essay is the understanding of faith of the German Jesuit theologian PETER
KNAUER. His peculiarity is a relational-ontological thinking. For Knauer Christian theology must start from the historical encounter with the Christian message. It claims to be the “word of God”. In order to understand this claim it is first necessary to explain the meaning of the word “God”. According to the Christian message God is greater than whatever we can think. Therefore the only way to know and to speak of God consists in comprehending the world as incapable of existing without him, that’s to say as being created: We comprehend of God that which, while remaining entirely different from him, is in its entire reality related to him. But this relation is unilateral. The world cannot be the constitutive term of a relation of God to it. This is the biggest objection against the possibility of a “word of God” which does imply a relation from God to the world. The Christian message itself replies to that problem by its content: The universe has been created into the eternal love between the Father and the Son which is the Holy Spirit. Because this love does not have its measure in the world it cannot be read in it and therefore has to be said to it. The Christian message refers to the incarnation of the Son for he is revealing us in his human word our communion with God. This can only be acknowledged in faith, our being filled by the Holy Spirit. The aim of faith is to free us from the power of fear for ourselves which would otherwise be the cause of all inhumanity. In this understanding faith isn’t composed piecemeal but all the dogmas explain one unique mystery, our communion with God. In the context of a piecemeal understanding of faith which underlies present religious exuberance as well as false secularization, Knauer’s relational understanding of faith can also be significant for Latin America. Key-words: Word of God, relational Ontology, natural knowledge of God, analogy, auto-
communication of God, faith, reason.
ABREVIATURAS E SIGLAS
AA Decreto Apostolicam Actuositatem do Concílio Vaticano II sobre o apostolado dos leigos
CEBs Comunidades Eclesiais de Base DH Compêndio dos símbolos e declarações de fé e moral
Denzinger - Hünermann DV Constituição Dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II
sobre a Revelação Divina FR Encíclica Fides et Ratio do papa JOÃO PAULO II FThSt Frankfurter Theologische Studien FZPhTh Freiburger Zeitschrift für Philosophie und Theologie GS Constituição pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II
sobre a Igreja no mundo de hoje GuL Geist und Leben IPh Information Philosophie LG Constituição Dogmática Lumen Gentium do Concílio Vaticano II
sobre a Igreja NRT Nouvelle Revue Théologique PT Perspectiva Teológica StZ Stimmen der Zeit ThAk Theologische Akademie ThGl Theologie und Glaube ThPh Theologie und Philosophie TdL Teologia da Libertação ZThK Zeitschrift für Theologie und Kirche
ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Modelo substancialista do ser .............................................................................. 65 Figura 2 Modelo convencional de relação – subsequente à substância ............................. 67 Figura 3 Modelo ontológico-relacional de relação – constitutiva para a substância ......... 68 Figura 4 Modelo relacional do ser do mundo .................................................................... 70 Figura 5 Modelo relacional da Trindade .......................................................................... 113 Figura 6 Modelo relacional da união hipostática de Jesus Cristo .................................... 121 Figura 7 Modelo relacional do ser criado em Cristo do mundo ...................................... 133
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO GERAL ....................................................................................................... 13
CAPÍTULO I
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES: TEOLOGIA FUNDAMENTAL HERMENÊUTICA
COMO TEOLOGIA-DA-PALAVRA-DE-DEUS INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 20 1 APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DE SEU INTENTO TEOLÓGICO ........................ 21 1.1 O teólogo PETER KNAUER e sua obra .............................................................................. 22 1.2 O intento teológico do autor ............................................................................................ 24 1.3 O alcance de sua reflexão teológica como caminho na contramão ................................. 28 1.3.1 A problemática atual de compreensão da fé ............................................................... 29 1.3.2 “Vinho novo em odres novos” .................................................................................... 34 2 “FÓRMULA BREVE DA FÉ CRISTÔ: IMPLICAÇÕES HERMENÊUTICAS
PARA SUA FUNDAMENTAÇÃO .................................................................................. 37 2.1 Primeira implicação: a certeza de fé é o “saber-se amado” ............................................. 38 2.2 Segunda implicação: a fé provém do ouvir (Rm 10,17) .................................................. 40 2.3 Terceira implicação: a fé liberta do poder do medo da morte (Hb 2,15) ........................ 42 3 CONCLUSÃO: RESUMO E PONTO DE PARTIDA METODOLÓGICO PARA A COMPREENSÃO DA FÉ CRISTÃ ................................................................... 46 3.1 Resumo: a correlação “Deus – palavra – fé” .................................................................. 46 3.2 O ponto de partida metodológico .................................................................................... 48
CAPÍTULO II
O SIGNIFICADO DA PALAVRA “DEUS”: RECONHECER O SER CRIADO DO MUNDO
POR MEIO DE UMA CONCEPÇÃO RELACIONAL DO SER INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 51 1 POR QUE A PALAVRA “DEUS” É PROBLEMÁTICA:
A MENSAGEM CRISTÃ AFIRMA DEUS SER INCONCEBÍVEL ............................... 55 2 “SER CRIADO DO NADA” EM RESPOSTA À PERGUNTA POR “DEUS”:
COMPREENSÃO RELACIONAL DO SER ................................................................... 61 2.1 O que quer dizer “ser criado do nada”? ........................................................................... 63 2.2 Explicitando o “ser criado do nada” como relação real, unilateral e direta ..................... 66 3 É POSSÍVEL COMPROVAR O SER CRIADO? ............................................................. 72 3.1 Não prova de “Deus” e sim da “criaturalidade do mundo” ............................................. 75 3.2 Por que o mundo necessita de uma explicação:
Toda realidade mundana representa um “problema de contradição” .............................. 77 3.3 Explicação do mundo pelo seu ser criado do nada: Duas referências distintas e não-contraditórias ............................................................... 78 4 FALAR ANÁLOGO DE DEUS:
CONSEQUÊNCIA DA COMPREENSÃO RELACIONAL DO SER ............................. 80 4.1 Exigência indispensável do falar análogo de Deus ......................................................... 80 4.2 Semelhança do mundo com Deus: a via afirmativa ........................................................ 83 4.3 Dessemelhança do mundo com Deus: a via negativa ..................................................... 84 4.4 Semelhança e dessemelhança em seu sentido unilateral: a via da eminência ................. 85 4.5 Algumas consequências da analogia unilateral referente à fala de Deus ........................ 86 5 CONCLUSÃO: A PALAVRA “DEUS” COMO OBJEÇÃO MAIOR
CONTRA “PALAVRA DE DEUS” .................................................................................. 91
CAPÍTULO III
A “PALAVRA DE DEUS” SE AUTOEVIDENCIA POR MEIO DE SEU CONTEÚDO TRINITÁRIO – ENCARNATÓRIO – PNEUMATOLÓGICO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 96 1 AS EXIGÊNCIAS LOGICAMENTE NECESSÁRIAS DE “PALAVRA DE DEUS” ................................................................................................... 98 1.1 A distinção fundamental entre “Lei” e “Evangelho ........................................................ 99 1.2 Palavra de Deus como mistério ..................................................................................... 101 1.3 Necessidade da compreensão trinitária ......................................................................... 103 1.4 Necessidade da compreensão encarnatória ................................................................... 104 1.5 Necessidade da compreensão pneumática ..................................................................... 106 2 TRINDADE DE DEUS: TRÊS PESSOAS NUMA NATUREZA ................................. 109 2.1 O problema da desarticulação teológica contínua do mistério da Trindade ................. 110 2.2 A saída do impasse pela concepção relacional da pessoa divina .................................. 111 2.3 A articulação definitiva da unidade da natureza com a diversidade das pessoas .......... 112 2.4 A articulação definitiva da “Trindade imanente” com a “Trindade econômica” .......... 116 3 ENCARNAÇÃO DO FILHO:
UMA PESSOA EM DUAS NATUREZAS .................................................................... 118 4 “TORNAR-SE-IGREJA” DO ESPÍRITO SANTO:
UMA PESSOA EM MUITAS PESSOAS ...................................................................... 130 5 CONCLUSÃO: A FÓRMULA CALCEDÔNICA COMO CHAVE DE LEITURA PARA TODAS AS AFIRMAÇÕES DE FÉ ................................................................... 136 CONCLUSÃO GERAL ....................................................................................................... 138 BIBLIOGRAFIA GERAL ................................................................................................... 144
13
INTRODUÇÃO GERAL
Teologia se faz na contramão ou não se faz teologia no sentido próprio da palavra,
Θεòς Λόγος. Essa não é uma exigência em função dos sinais dos nossos tempos tão
profundamente conturbados de hoje. É a condição sine qua non de compreender a mensagem
cristã. Pois ela mesma caminha na contramão de nosso condicionamento humano,
existencialmente como intelectualmente falando. Por essa razão, não é por menos que o termo
usado no título se inspira num livro escrito pelo “mestre” CARLOS MESTERS, bastante
difundido no Brasil, sobre a hermenêutica bíblica na práxis do seguimento de Jesus, “Com
Jesus na contramão”.1
Aqui se busca tirar de certo “incógnito” outro “mestre”2 da teologia contemporânea
com a originalidade de sua contribuição para a reflexão teológica, tanto na Europa como na
América Latina, à base da própria experiência com seu pensamento teológico, tanto como
aluno em Frankfurt/Alemanha quanto como agente de pastoral e docente em Fortaleza/Brasil:
trata-se do padre jesuíta e professor de teologia fundamental emérito PETER KNAUER.
No entender do autor desta dissertação e a partir de que chegou ao seu conhecimento
em torno de produção teológica, o pensamento ontológico-relacional, original de PETER
KNAUER, move-se igualmente na contramão da corrente principal de uma compreensão de fé,
tanto popular quanto intelectual, muito difundida. Seu pensamento é tão “contra-intuitivo”
quanto a própria mensagem cristã pretende ser.
1 Cf. MESTERS, CARLOS. Com Jesus na contramão. São Paulo: Paulinas, 1995. 2 Não se aplica aqui o termo como título, suspeito de uso farisaico especialmente nos ambientes teológico-
eclesiais (Mt 23,7), visto que apenas um é nosso mestre e todos nós somos irmãos (Mt 23,8). Reconhece-se sim que o discípulo não está acima do mestre e certamente deve aquele sofrer o mesmo destino que este (Mt 10,24s). Justifica-se seu uso aqui pelo fato de que se trata de pessoas as quais nos transmitem de forma bem esclarecida “o que olho [algum] não viu, o ouvido [algum] não ouviu e em homem [algum] não emergiu [...]” (1Cor 2,9; nota-se a expressão “ἐπì καρδίαν [...] ἀνέβη” no sentido de que o ser humano não pode inventar o mistério revelado): a nossa própria fé na qual, pela partilha da palavra, representam e tornam presentes o único Mestre.
14
Em sua preocupação teológica primordial com o “fundamento da fé” [Grund des
Glaubens], KNAUER procura, com todo rigor científico, “se dar conta”3 da pretensão de
verdade da mensagem cristã de ser “palavra de Deus” num sentido estrito, há mais de
quarenta anos, visto sua produção teológico-literária acadêmica.
Este trabalho se propõe a apresentar apenas o núcleo do pensamento teológico de
KNAUER para um público brasileiro, não somente acadêmico, nem tampouco apenas “católico
[romano]” ou até meramente “cristão”. De acordo com a intenção própria do autor, trata-se de
um convite para a pessoa interessada em compreender a fé cristã, pondo sua mensagem à
prova de forma crítica. A mensagem cristã se apresenta como “palavra de Deus”.
Entretanto, acontece que o próprio termo “palavra de Deus” é em si problemático, põe
a si mesmo como verdade não trivialmente óbvia sem mais para o ser humano. E o é pela sua
própria pretensão de ser “de Deus”. Se podemos facilmente associar “palavra” à comunicação
humana, já o termo “Deus” necessita de um esclarecimento: o que se entende por Deus, quem
é “Deus”? Em seguida, surge o problema maior ainda de como entender que Deus mesmo fale
com o ser humano e, ainda mais, como ser humano?!
Precisa-se, portanto, problematizar o termo. Essa suspeita, afinal de contas, não chega
à mensagem cristã do lado de fora. Evidentemente, é indispensável hoje problematizar o
conhecimento da fé diante da reviravolta do pensamento moderno (e sua contrarevolta pós-
moderna) que tomou rumo do ateísmo moderno (e do pluralismo religioso “pós-moderno”).
Com isso, o pensamento moderno chega a afirmar a impossibilidade de uma “palavra de
Deus” porque Deus mesmo é declarado “morto”, inexistente, ou apenas um termo sem
sentido, ou ainda indecisível, incompreensível linguisticamente falando, porque não designa
nenhuma realidade mundana.4
3 Cf. KNAUER. PETER. Darse cuenta de nuestra fe. Apresentação PowerPoint. Disponível em:
<http://www.jesuiten.org/peter.knauer/knauer0.html#Download>. Acesso em: 08.10.2009. O autor mesmo designa seu empreendimento de buscar “compreender” [verstehen] a fé coerentemente de “Verantwortung des Glaubens” [responder pela fé] ou simplesmente de “Glaubensbegründung” [fundamentação da fé]. Na intenção de “se dar conta” do fato de que o fundamento da fé se encontra nela mesma (na medida de seu estar referida à palavra de Deus), e não advém de fora dela, dá-se preferência, no português, ao termo “fundamentar” ao invés de “responsabilizar”. Também o termo “compreender” é ambíguo: parece que é a tradução standard de “verstehen”, apesar de sua proximidade etimológica ao termo “begreifen”. Daí que surge certa confusão quando se afirma Deus ser “incompreensível” [unbegreiflich] o que segundo KNAUER justamente não quer dizer impossível de ser compreendido (“unverständlich” ou “unverstehbar”).
4 Uma visão panorâmica do debate filosófico atual foi apresentada por MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA no “mini-curso V: Deus no pensamento contemporâneo” do Simpósio internacional de Filosofia e Teologia da FAJE em 02-04 out. 2007 sobre o tema “Transcendência, Razão e Fé”. Esta dissertação não é o lugar de referir a esse debate; mas talvez a concepção relacional de “Deus” por KNAUER, principalmente no que diz respeito às questões metodológicas prévias à sua abordagem, ajudem a enfrentá-lo a partir da teologia.
15
Em contrapartida, o “retorno do religioso” em época de “pós-modernidade” sugere
aparentemente ser possível, sim, falar de Deus com maior naturalidade e evidência banal (se
não mais pela razão, então por meio do próprio sentimento, da intuição afetuosa). No entanto,
também esses discursos, mais cedo ou mais tarde, hão de responder à pergunta sobre o direito
com que pronunciam o nome de “Deus”.
Ao contrário disso, pertence ao objetivo da própria mensagem cristã se apresentar
como essencialmente “não-[auto]evidente” [nicht-selbstverständlich] diante do conhecimento
humano (sua condição natural de ser criatura), e sim essencialmente “auto-evidente” [selbst-
verständlich]5 a partir de si própria na fé. Pelo seu anúncio, a mensagem mesma traz essa
distinção consigo em função de pretensão de ser a última palavra sobre a nossa existência,
exposta a sua mais profunda ambiguidade, devido ao poder do medo da morte. Por causa de
Jesus e em confiança à sua palavra transmitida a nós pelos seus seguidores até hoje, sabemo-
nos acolhidos no amor eterno de Deus-Pai ao seu Filho, que é o Espírito Santo. Assim somos
libertados para relacionarmo-nos com toda a realidade nossa humanamente. Essa
consideração prévia da especificidade da fé emerge como um aviso hermenêutico no
empreendimento de sua fundamentação.
Nesse sentido, o trabalho se desenvolve metodologicamente a partir da pressuposição
de que já fomos faticamente confrontados com a mensagem cristã: nota-se que ela mesma
quer ser compreendida como o “evento da autocomunicação de Deus”,6 do “ser abordado pela
palavra co-humana de sua transmissão”7 de seu amor incondicional, gratuito por nós.
Contudo, para se dar conta dessa sua pretensão de verdade, metodologicamente falando, há de
se partir, no trabalho de sua fundamentação, do simples encontro histórico com o fim de
investigá-la no que concerne a essa sua pretensão de verdade.
Portanto, a facticidade do confronto histórico com a mensagem cristã é absolutamente
precedente a qualquer pergunta especulativa sobre “Deus”, porque, de fato, tende a não
acertar a questão de “Deus”. Disso resulta que o esforço de compreensão teológica da palavra
de Deus, que é reflexivo, se relaciona de forma inversamente proporcional (está em direção
5 Nota-se o jogo de palavras no alemão: coloquialmente se entende por “selbstverständlich” (literalmente:
“autocompreensível”) uma coisa óbvia, uma verdade trivial. Nesse sentido, a mensagem cristã não é uma verdade que alguém entende por conta própria. Mas aqui KNAUER aplica o termo em seu sentido literal, como uma verdade que só se entende a partir dela mesma. Só ela se explica por meio de seu conteúdo em sua pretensão de ser palavra de Deus.
6 “Geschehen der Selbstmitteilung Gottes”. KNAUER. Der Glaube, 88. 7 “Angesprochensein im mitmenschlichen Wort der Weitergabe”. KNAUER. Der Glaube, 24. O termo
“Angesprochenwerden” que KNAUER usa frequentemente em seus escritos, as traduções espanhola e portuguesa traduzem por “ser abordado” – pelo que se perde o nexo semântico com sua dimensão verbal.
16
contrária) à prática de seu anúncio, bem como ao seu ato de fé correspondente. Mesmo assim,
a reflexão teológica, por sua vez, não deixa de ser ato de fé, igual e unicamente compreensível
como autocomunicação divina.
É por essa razão que o caminho pelo qual a reflexão teológica ganhou importância
existencial para mim, ao mesmo tempo, traça a motivação para esta dissertação:
Embora se tenha assistido às aulas de KNAUER em teologia fundamental (pela primeira
vez no semestre de inverno de 1986/87), seu significado foi se abrindo através de uma semana
de retiro com ele (conforme os exercícios espirituais inacianos), após ter passado um primeiro
ano em Fortaleza em meados de 1988. Daí emergiram questionamentos existenciais de dois
polos: de um lado, o desafio (incorporado desde jovem) de dar conta da própria fé diante da
razão crítica moderna em busca de uma compreensão totalmente livre de contradições
racionais (lógicas): pois uma teologia incapaz de responder com clareza e precisão já não era
mais possível levar adiante. Doutro lado, experimentou-se uma reviravolta no “mundo vivido”
e no “lugar social” que se havia assumido a partir da experiência (acadêmica e pastoral) com a
Teologia da Libertação (TdL) e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em Fortaleza: pois
uma teologia, que não se fizesse a partir dos pobres e excluídos de nossas sociedades, não
merecia mais ser chamada de “evangélica” e, portanto, muito menos de “católica” – por mais
paradoxal que pareça. Por meio da chave de leitura que a teologia de PETER KNAUER nos
oferece, procurou-se conciliar os dois eixos que parecem ser genuínos da mensagem cristã e
não como dois “polos” ou “extremos”, muitas vezes, considerados em tensão recíproca.
Certamente PETER KNAUER não faz “Teologia da Libertação” declaradamente, nem se
consideraria como pertencente a uma teologia tal, muitas vezes, compreendida apenas como
uma corrente de teologia (sobretudo latino-americana) entre tantas outras, ainda mais
considerada “em extinção” por muitos hoje.8 O importante é ver por meio de sua
hermenêutica, que uma teologia que não fosse essencialmente libertadora não prestaria
serviço algum à fé cristã e perderia totalmente seu sentido e seu direito à existência. Pois a
exigência de ser libertadora não é acrescentada de fora à mensagem cristã, mas coincide
inteiramente com sua verdade.
Estruturou-se o trabalho em três capítulos, sendo o primeiro de caráter preliminar e
introdutório, enquanto os outros dois desdobram o núcleo de seu pensamento relacional em
torno da problemática principal do termo “palavra de Deus”, desde já apontada no capítulo I.
8 A tais insinuações reagiu GUSTAVO GUTIÉRREZ em debate (cf. artigo de ROBERTO MALEVAZZI. Disponível
em: <www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=24550>. Acesso em: 8 out. 2009) e entrevista (cf. entrevista feita por LIDIA HUNTER. Disponível em: <www.tierramerica.net/2003/0609/ppreguntas.shtml>. Acesso em: 8 out. 2009).
17
Devido ao estado de desconhecido no Brasil, optou-se por introduzir na pessoa e sua
obra, bem como nas intuições principais do pensamento de KNAUER previamente no capítulo
primeiro. Já de início, procurou-se situar sua teologia-da-palavra na contramão, em meio a
sinais paradoxais de nosso tempo, que se vinculam a uma crise de fé cristã profunda. O autor
pensa contra correntezas de compreensões (e suas respectivas teologias) que consideram a fé
racionalmente enigmática, e sim trivialmente acessível por certas experiências religiosas.
Ainda mais diante de uma teologia fundamental clássica, cujas raízes neoescolásticas ainda
não parecem ter sido extintas, a proposta de KNAUER se apresenta como “vinho novo em
odres novos” (Mc 2,22).
Isso se confirma mediante apresentação das implicações hermenêuticas de sua
compreensão de fé. A fé como o estar-repleto-do-Espírito-Santo nos confere uma certeza
sempre maior do que a morte. Desse modo, a fé quer nos libertar daquele medo da morte que
naturalmente tende a nos desumanizar. Uma certeza absoluta ninguém pode inventar por si
próprio. Depende de recebê-la por outro. Uma palavra tal só pode provir de Deus e somente
na fé pode ser acolhida como verdadeira. A fé, por isso, provém do “ouvir” (Rm 10,17). Em
consequência dessa coesão interna entre Deus, palavra e fé, trama-se o ponto de partida
metodológico para a reflexão de KNAUER e, consequentemente, para este trabalho: a
precedência do encontro histórico com a mensagem cristã que pretende ser “palavra de Deus”.
Quem afirma ser “palavra de Deus”, primeiro, há de prestar conta de quem deve ser
“Deus”. Por isso, o segundo capítulo se debruça sobre a pergunta de como falar de “Deus”
responsavelmente. Isso implica dar-se conta do significado de “Deus” anterior ao ato da fé,
mas introduzido a partir da mensagem cristã. Segundo a tradicional afirmação de sua
“inconcebilidade”, Deus não pode ser subordinado a um conceito de nossa linguagem. A esse
problema da fala de “Deus”, a mensagem cristã responde por referência à doutrina da criação.
KNAUER concebe o “ser criado do nada” do mundo mediante uma ontologia relacional
desenvolvida por ele como ser, que em tudo no que ele se distingue do nada, é “criado”. “Ser
criado” implica, por isso, que o mundo depende de “outro” sem o qual não pode existir. A
mensagem cristã chama tal “para-onde” [Woraufhin] do mundo de “Deus”. À medida que tal
conhecimento de Deus compreende tudo que é diferente dele, é uma afirmação da razão a ser
comprovada. Em superação das “provas clássicas da existência de Deus”, KNAUER conduz
sua “prova da criaturalidade”. O mundo só pode ser explicado pelo seu “ser total e
unilateralmente relacionado a ... / em total diferença de ...” seu termo constitutivo. Enquanto
tal, este nunca pode ser conhecido previamente. Por isso a fala análoga unilateral de “Deus”
como o “para-onde” do ser do mundo se impõe com necessidade.
18
Nisso, o autor reformula as três vias clássicas da analogia escolástica de acordo com o
conhecimento unilateral: só se pode afirmar semelhança do mundo a Deus à medida da
dessemelhança de Deus sempre maior. Em consequência de não poder ser alvo de conclusões,
nem sobre si, nem sobre o mundo, Deus é conhecido à luz da razão apenas no modo de sua
desconfortável ausência como “o poderoso em tudo” que existe. De repente, o significado da
palavra “Deus” se manifesta, à primeira vista, como objeção maior contra a pretensão de a
mensagem cristã ser “palavra de Deus”.
No terceiro capítulo, em um segundo passo, volta-se a questionar a mensagem cristã
como ela responde à aparente aporia de atribuir uma palavra a Deus, pois isso significaria
afirmar uma relação real sua ao mundo, reconhecida como ininteligível no campo da razão.
Nisso, a mensagem cristã se defronta com o problema de que também o termo “palavra”
parece resistir a ser vinculado à palavra “Deus”. A mensagem cristã responde referindo ao seu
conteúdo trinitário-encarnatório-pneumatológico a fim de se explicar a si mesma em sua
pretensão de revelação enquanto “autocomunicação de Deus”. Seu caráter de palavra garante
a compreensibilidade do conteúdo dela como “Evangelho” e “mistério de fé”.
KNAUER apresenta os três dogmas fundamentais como condição de possibilidade
necessária para a compreensão da fé em desdobramento de sua verdade simples. Somente
numa compreensão trinitária, é possível afirmar uma relação real de Deus ao mundo porque
este não pode ser a referência constitutiva de tal relação. O sentido de conceber “três
autopresenças divinas” em sua mediação diferenciada entre si como “relação da única
realidade divina a si mesma”, é preservar o absoluto de Deus em função do ser assumido do
mundo na relação do Pai ao Filho que é o Espírito Santo, comunhão de amor.
Somente a doutrina da encarnação do Filho torna o termo “palavra de Deus”
definitivamente inteligível. Deus emerge como ser humano para se dizer ao mundo, revelando
a nossa verdadeira condição originária de “criados em Cristo” e assim “filhos de Deus”. Se
essa palavra deve ser verdadeira, seu anunciador original há de ser compreendido como
originalmente amado por Deus. Por isso, a mensagem cristã remonta a Jesus de Nazaré
enquanto Verbo encarnado, “uma pessoa em duas naturezas” que nela se relacionam
indissoluvelmente. A compreensão relacional da fórmula calcedônica garante a afirmação
desta “união hipostática”.
Em sua autocomunicação por meio do Filho, Deus envia seu Espírito que vincula
como “uma pessoa em muitas pessoas” os seres humanos entre si e em Cristo a Deus. Tal
“tornar-se Igreja do Espírito Santo” é a condição de possibilidade do ser humano acolher a
palavra por esta transmitida em sua verdade última de nosso “ser criado em Cristo”. À luz da
19
palavra acolhida e assim compreendida, o ser humano não precisa mais idolatrar o mundo
nem desesperar-se com ele, pois toda boa experiência se torna símbolo da presença real de
Deus no mundo, e as experiências ruins perderam seu caráter de representação da ausência do
amparo último de Deus ou de seu “silêncio”.
A pesquisa bibliográfica se estendeu sobre os escritos teológicos do autor à medida
que se teve acesso a eles. Boa parte, e certamente a mais importante, se encontra postada em
sua homepage.9 Outros foram enviados por colegas da Alemanha e também pelo próprio
autor. A literatura secundária, que pensa fielmente conforme o pensamento do autor, é
escassa. Poucos autores pensam dentro do pensamento de KNAUER. A maior parte, porém,
assim é de se temer, não o entendeu e, talvez, por isso, não consiga valorizá-lo. Prova disso
são as vastas referências e discussões nas notas de roda-pé da obra principal de KNAUER, Der
Glaube kommt vom Hören. A consideração desta literatura não podia encontrar seu lugar num
trabalho que investiu todo o esforço numa apresentação pertinente, fiel e compreensível de
seu pensamento ontológico-relacional.
9 Cf. <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/index.html>. Acesso direto ao link com textos do autor,
constantemente atualizado pelo mesmo, e que contém os dados biográficos principais como as demais publicações, inclusive de textos atuais novos, bem como apresentações em formato PowerPoint. Acesso em: 8 out. 2009.
20
CAPÍTULO I
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES: TEOLOGIA FUNDAMENTAL HERMENÊUTICA
COMO TEOLOGIA-DA-PALAVRA
INTRODUÇÃO
Este capítulo tem caráter preliminar pelo fato de apresentar a pessoa e um primeiro
levantamento das questões centrais do pensamento teológico de PETER KNAUER. Pretendem-
se introduzir as “coordenadas” de sua intuição original e contribuição principal para a reflexão
teológica contemporânea sobre a fé cristã. Sem poder entrar em análise mais aprofundada,
baseamo-nos na percepção de uma crise geral da Igreja católica e das Igrejas protestantes
históricas em ambos os contextos, no europeu e no latino-americano, como horizonte de
referência atual. Seguindo uma preocupação primordial de KNAUER com relação à fé cristã,
pode-se afirmar que tal crise, no fundo, é uma crise de fé; e é uma crise de fé precisamente
porque falta reta compreensão da mensagem cristã especialmente aos próprios cristãos.10
Procura-se aqui apenas apontar sua problemática porque se acredita que a abordagem de
KNAUER abra pistas inéditas que permitam realmente responder aos desafios que cristãos
enfrentam cá e lá.
Uma razão para tal procedimento consiste na própria maneira como KNAUER
compreende e pratica teologia:11 em primeiro lugar, há de se apresentar em que consiste a
nossa fé para depois perguntar como se pode entender o que foi afirmado e enfim se debruçar
sobre a questão se ela é capaz de responder a todo tipo de questionamento sem falta. O
objetivo é apresentar a fé por meio de sua referência à sua origem na mensagem cristã. Trata-
se de compreendê-la a partir de sua pretensão de ser “palavra de Deus”.
10 Cf. KNAUER. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 3-5. Essa crise KNAUER identifica particularmente
como crise que sofre o termo “Deus” – e isso desde o início de seu magistério. Cf. IDEM. “Hermeneutische Fundamentaltheologie: Der Glaubenstraktat des Hugo von St. Viktor”. In: FThSt 7 (1971) 67; IDEM. „Potentia oboedentialis” und „übernatürliches Existencial” im Verhältnis zum „Verlangen nach der Gottesschau“. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/49.html>. Acesso em: 22 out. 2009; e IDEM. “Fundamentaltheologie im Koran?”. In: FZPhTh 55 (2008) 144. Se a fé está unicamente orientada a Deus, uma crise em torno da reta compreensão do termo “Deus” há de se articular ou manifestar evidentemente como crise de toda a fé (cf. a respeito sua analogia com os discípulos de Emaús em IDEM. “Einzigartigkeit des Christentums”. In: ThAk 13 (1976) 12).
11 É preocupação metodológica fundamental de KNAUER que se façam perguntas à fé cristã. Só questões que são levantadas podem ser respondidas, porém, importa pô-las numa sequência lógica, portanto, correta, igual à maneira de seguir uma receita para fazer um bolo ou culinária qualquer (cf. a respeito seu exemplo em IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 13s).
21
A outra razão é a experiência de estranheza da parte de quem se confronta com o
pensamento de KNAUER – ainda mais em ambiente de tradição predominantemente católica.
Essa reação, assim é o que se supõe, encontra seu fundamento na especificidade da própria
mensagem cristã quando pregada retamente. Pois ela mesma vem ao encontro do ser humano
na contramão de sua pré-compreensão convencional e corriqueira daquilo que é considerado
“trivialmente autoevidente” [trivial selbstverständlich].12 De antemão, ela exige uma
“conversão na pré-compreensão” [Bekehrung im Vorverständnis],13 sendo essa parte
constitutiva do anúncio cristão.
A introdução sobre a pessoa, a obra e o intento teológico do autor pretende demarcar
as coordenadas de seu pensamento grosso modo (I/1). Um aprofundamento prévio de sua
concepção da fé cristã faz perceber por onde leva seu caminho de compreensão e
fundamentação da fé no caminho da contramão (I/2). Em termos de resumo das intuições
trabalhadas, aponta-se o ponto de partida metodológico em vista dos capítulos seguintes (I/3).
1 APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DE SEU INTENTO TEOLÓGICO
O objetivo desta apresentação prévia da pessoa, da obra e do pensamento de KNAUER
não é apenas informativo. Segundo o próprio autor, não se pode transmitir a fé – e isso inclui
a compreensão dele próprio, mesmo se por vias mais abstratas – senão testemunhando sua
mensagem com a própria pessoa, tal como Jesus o fez originalmente. Antes de a teologia ser
troca de ideias, ela é encontro de pessoas postas em relação pelo Espírito de Cristo. Pode-se
dizer que, no autor e na sua obra, se espelha o caráter não-neutro e assim comprometedor da
mensagem cristã: depois que chegou ao conhecimento, sua pretensão de verdade
simplesmente não pode mais ser ignorada (1.1). Pela introdução preliminar no pensamento do
autor, demarcam-se grosseiramente as coordenadas de sua teologia (1.2). Situam-se melhor
suas intuições na contramão em contraste com determinadas pressuposições ou conveniências
oriundas de certa tradição teológico-clássica e de alguns sinais do nosso tempo (1.3). 12 KNAUER. “‚Neuer Wein in neue Schläuche’: Welches neue Vorverständnis bringt die christliche Botschaft
mit sich?”. in: GUNNEWEG, ANTONIUS HERMANU, JOSEPHUS.; SCHRÖER, HENNING. (ORG.). Standort und Bedeutung der Hermeneutik in der gegenwärtigen Theologie: Die Vorträge des Bonner Hermeneutischen Symposiums 1985. Bonn: Bouvier Verlag Herbert Grundmann, 1986, 64. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/neuerwein.html>. Acesso em: 14 out. 2009. Cf. tb. IDEM. Der Glaube, 82. A respeito do jogo de palavras inerente ao temo cf. IBID., 19 e I/1.3.2 neste trabalho. Todas as traduções dos textos de KNAUER em alemão são da nossa autoria quando não explicitado por referência à respectiva bibliografia.
13 KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 63.70. Mc 2,22 está vinculado ao tema da conversão em Mc 1,15. Esta não é condição prévia, mas parte integrante da mensagem cristã, causando, ao mesmo tempo, reações de inquietação e fascínio em meio aos seus ouvintes (Mc 1,22.27).
22
1.1 O teólogo PETER KNAUER e sua obra
PETER KNAUER (*1935) é padre jesuíta, natural de Berlin (Alemanha) e professor de
teologia fundamental (desde 1969) e de dogmática (de 1978 a 1980), emérito em 2003 pela
“Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen” em Frankfurt am Main
(Alemanha). Desde então, o autor vive em Bruxellas (Bélgica), onde colabora no Foyer
Catholique Européen e no OCIPE (Office Catholique d'Information et d'Initiative pour
l'Europe). Tendo ingressado na Companhia de Jesus em 1953, ordenou-se sacerdote em 1964.
Fez seus estudos de filosofia nos anos 50 em Munique (na Faculdade Filosófica da
Companhia de Jesus, “Berchmannskolleg”, em Pullach) e de teologia nos anos 60 em
Louvaina/Bélgica (Faculdade Teológica da Companhia de Jesus). Em ambos, concluiu com o
grau da “licenciatura”. Em 1969, doutorou-se com uma tese sobre a teologia de GERHARD
EBELING14
na Faculdade Católico-Teológica da “Westfälische Wilhelms-Universität Münster”.
Um de seus (relativamente poucos) livros teológicos foi traduzido para o espanhol, o
português o italiano e o francês.15 Além dele, outros trabalhos e artigos foram traduzidos para
o espanhol sob revisão do autor, mais outro artigo para o português.16 Lecionou sua teologia
em diversos países da América Latina como professor visitante.17 Apesar de tudo isso, a
divulgação e o debate em torno de seu pensamento, até mesmo na Alemanha, até agora, têm
sido lamentavelmente muito fracos. Pois a sua contribuição é importante: quem se deparou
com a sua concepção teológica, e a ela aderiu, mais ainda, pode perceber uma reviravolta no
seu pensamento teológico, capaz de pô-lo da cabeça aos pés.18
14 Cf KNAUER. Verantwortung des Glaubens: Ein Gespräch mit Gerhard Ebeling aus katholischer Sicht.
Frankfurt am Main: Knecht, 1969. KNAUER teve JOHANN BAPTIST METZ como orientador e KARL RAHNER como leitor de sua tese.
15 Trata-se de KNAUER. Unseren Glauben verstehen. Würzburg: Echter, 1986. Cf. IDEM. Para comprender nuestra fé. Palmarín/Mexico, 1989. Tradução de Vanegas Beltrán, Gerardo & Flórez Echevarry, Pedro Antonio (disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/pcnf.pdf>. Acesso em: 8 out. 2009), IDEM. Para compreender nossa fé. São Paulo: Loyola, 1989. Tradução de Attílio Cancian, IDEM. Per comprendere la nostra fede. Roma: Borla, 2006. Tradução de Gerhard Gäd e IDEM. Pour l’intelligence de notre foi. Bruxelles: Lessius, 2009. Tradução de Dieudonné Bembide Tongoy. Uma tradução russa, não impressa, se encontra na homepage do autor.
16 Cf. KNAUER. “Teologia-da-Palavra-de-Deus e Cristologia”. In: Kairós. Revista de Filosofia e Teologia do Instituto teológico-Pastoral do Ceará (ITEP)/Fortaleza-CE, III (2/2006) 255-272. O artigo no original alemão está disponível em:< www.jesuiten.org/peter.knauer/09.html>. Acesso em: 8 out. 2009.
17 KNAUER passou por estadias como professor visitante na Universidad Javeriana de Bogotá (Bolívia), na Pontificia Universidad de Quito e no Seminario Mayor de Guayaquil no Ecuador (1983), na Universidad Iberoamericana em México D.F. (1986, 1989 e 2000) e no Colegio Máximo de San José em San Miguel/Buenos Aires na Argentina (1994). Os dados são acessíveis na homepage do autor sob link acima indicado.
18 Entre os adeptos do pensamento de KNAUER sejam mencionados GERHARD GÄDE (cf. diversas referências a publicações suas neste trabalho), BARBARA ANDRADE (cf. IDEM. “Preámbulo a la teología de Peter Knauer”.
23
Na área da teologia fundamental, ele se debruça sobre “temas candentes” [heisse
Eisen]. Preocupa-se com debates e discursos atuais da teologia contemporânea bem como da
história da teologia.19 KNAUER tem publicações significativas na área da ética fundamental.
Elaborou o princípio ético da Escolástica do “duplo efeito”, como princípio básico de uma
ética fundamental.20 Um terceiro enfoque, e talvez o que mais sustente os demais, KNAUER
desenvolve na área da espiritualidade inaciana.21 Como pano de fundo dessa tripartição de seu
trabalho intelectual, percebe-se profunda preocupação pastoral, inclusive com as pessoas
“pequenas” em seu dia-a-dia. Nisso também se orienta a estruturação da Festschrift em sua
homenagem.22
Esta dissertação, no entanto, se restringe estritamente ao seu pensamento teológico
fundamental em seus escritos explicitamente teológicos, antes de tudo, na sua obra
acadêmico-didática principal “Der Glaube kommt vom Hören”.23 Nela o autor se propõe, com
In Revista Iberoamericana de teología. Ciudad de México 2 (2006) 69-72, e nota 88 neste capítulo) e ROBERT DEINHAMMER (cf. IDEM. Fragliche Wirklichkeit - Fragliches Leben: Philosophische Theologie und Ethik bei Wilhelm Weischedel und Peter Knauer. Würzburg: Echter, 2009.
19 Aos temas específicos que formam a segunda parte de Unseren Glauben verstehen, tais como pecado original, dogmas mariológicos, teodicéia, infalibilidade etc., deve ser acrescentada sua contribuição na teologia das religiões (cf. KNAUER. “Ein anderer Absolutheitsanspruch ohne exklusive oder inklusive Intoleranz“. In: D'SA, FRANCIS X.; MESQUITA, ROQUE (Org.). Hermeneutics of Encounter: Essays in Honour of Gerhard Oberhammer on the Occasion of his 65th Birthday. Vienna: De Nobili Research Library. Vol. XX, 1994, 271-295) e IDEM. “Christus in den Religionen: Interiorismus”. In: FZPhTh (2004) 237-25.
20 Cf. KNAUER. Handlungsnetze: Über das Grundprinzip der Ethik. Frankfurt (Books on Demand GmbH), 2002. Trata-se de um trabalho filosófico de fundamentação ética à base de uma reinterpretação universal do “princípio do duplo efeito” desde sua primeira publicação a respeito (cf. IDEM. “La détermination du bien et du mal moral par le principe du double effet”. In NRT 87 (1965) 356–376; e em alemão: “Das rechtverstandene Prinzip der Doppelwirkung als Grundnorm jeder Gewissensentscheidung“. In: ThGl 57 (1967) 107-133.
21 Isto inclui o interesse primordial na pessoa de SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Assim têm ampla divulgação e repetida edição sua tradução comentada da “Autobiografia” de SANTO INÁCIO (IGNATIUS VON LOYOLA. Bericht des Pilgers. Leipzig: St. Benno, 1990. Traduzido e comentado por Peter Knauer, reditado em 2002 por Echter (Würzburg) com edição última em 2007. Além da tradução comentada e dos “Exercícios espirituais” (IDEM. Geistliche Übungen: Nach dem spanischen Autograph übersetzt von Peter Knauer. Würzburg: Echter, 1998 [5.ed. 2008]) seja mencionada a tradução em dois volumes de, no todo, 400 cartas de SANTO INÁCIO (IDEM. Briefe und Unterweisungen. Deutsche Werkausgabe Band I. Übersetzt von Peter Knauer. Würzburg: Echter, 1993 [Band II, 1998]).
22 Cf. GÄDE, GERHARD (Org.). Hören – Glauben – Denken: Festschrift für Peter Knauer S.J. zur Vollendung seines 70. Lebensjahres. Münster: LIT, 2005. Em seu prefácio, GÄDE apresenta KNAUER de forma pregnante como quem dialoga muito além de sua área da teologia com o mundo todo, pondo pessoas em relação umas com as outras, comprovando assim que KNAUER “não apenas ensina, mas também vive sua teologia: a dignidade do sacerdote não consiste em fazer brilhar a própria dignidade, mas a dos outros” (IBID., 3).
23 Cf. KNAUER. Der Glaube kommt vom Hören. Ökumenische Fundamentaltheologie. 6. ed., Feiburg-Basel-Wien: Herder, 1991. A citação das páginas da obra segue a versão disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/20.html>. Acesso em: 14 out. 2009. Trata-se de uma reorganização consequente e madura de suas ideias já publicadas principalmente em sua tese de doutorado, Verantwortung des Glaubens. Der Glaube é ampliado, sobretudo, pelas estruturas normativas da transmissão da fé (a eclesiologia). As seis edições apresentam, na maior parte, atualizações e reações a críticas e contribuições de outros autores.
24
pretensão análoga ao “Grundkurs des Glaubens” de KARL RAHNER, apresentar a compreensão
sistemática da fé em seu percurso de fundamentação teológica sistematicamente ordenada.
Em três partes principais, KNAUER interpreta o todo da fé cristã em sua unidade e
unicidade de “autocomunicação de Deus na palavra co-humana”24 dentro e à base de sua
tradição católica em diálogo com e por meio da tradição protestante (especificamente
luterana), demonstrando “a correlação estrita de Deus, Palavra e Fé”: “Somente Deus vem ao
encontro na palavra somente à fé somente”.25 Mediante “distinção fundamental” entre “Lei e
“Evangelho” posta em correspondência à terminologia católica de “natureza” e “graça”, o
autor demonstra equivalência formal e material dos significados de “católico” e
“ecumênico”.26
Na primeira parte, KNAUER introduz a ontologia relacional como instrumento e chave
hermenêuticos para um discurso responsável de Deus, desenvolvendo a particularidade
principal da mensagem cristã em sua não- e auto-evidência. Na segunda parte principal, o
autor trata das estruturas da transmissão da fé como “proclamação cristã” [christliche
Verkündigung] em sua historicidade e normatividade, interpretando uma em relação com a
outra. Na terceira parte principal, esta compreensão ontológico-relacional da fé é, por assim
dizer, “testada” em “razoabilidade” [Verantwortbarkeit] diante da razão crítica e concernente
à fidedignidade própria da mensagem cristã.
1.2 O intento teológico do autor
O propósito principal do pensamento teológico de KNAUER é refletir sobre o
“fundamento da fé” [Grund des Glaubens]. Na maioria de seus escritos, mesmo quando
aborda temas mais específicos da teologia em seus diversos artigos, logo se remonta à
pergunta crucial: “No fundo, de que se trata na fé?”.27
24 “Selbstmitteilung Gottes in mitmenschlichem Wort“. KNAUER. Der Glaube, 279. Certamente KNAUER
assume aqui o termo da “Selbstmitteilung” de KARL RAHNER. 25 KNAUER. Der Glaube, 205. 26 Cf. KNAUER. Katholisch = ökumenisch. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/24.html>.
Acesso em: 19 out. 2009. Trata-se da “Abschiedsvorlesung” de KNAUER de seu magistério como professor titular em 07 fev. 2003 em forma de folheto de teses.
27 „Worum geht es im Glauben eigentlich?“. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 15; cf. tb. Der Glaube, 15 e Kurze Einführung in den christlichen Glauben. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/22.html>. Acesso em: 16 out. 2009.
25
Na fé, trata-se da verdade muito simples de nossa comunhão com Deus no sentido de
nossa participação da relação de Jesus com Deus-Pai. A essa comunhão o ser humano não
pode chegar por nenhum esforço próprio. Dela não pode saber por conta própria. Por isso, o
Filho se fez carne para no-la comunicar por meio de simples palavra humana e que somente
na fé por ela constituída é acolhida como verdadeira por nos transmitir o Espírito Santo.
Embora a verdade última de nosso ser humano venha a nós somente de fora, por meio da
proclamação cristã, esta nos revela que já nos encontramos amparados por Deus desde o
início de nossa existência.
É assim que, para KNAUER, “‘palavra de Deus’ é o pressuposto fundamental da fé
cristã”28 pelo fato essa ser a pretensão de verdade da mensagem cristã. “Palavra de Deus”, por
isso, não se restringe apenas à Escritura Sagrada e sim abrange Tradição e Magistério vivo
(cf. DV 9 e 10), bem como toda palavra compreensível à luz da fé como autocomunicação de
Deus. O termo “palavra de Deus” aqui não é considerado como um entre outros conceitos
importantes da fé cristã. Ele é considerado ‘o’ termo que abrange tudo que a mensagem cristã
pretende ser. Unicamente a uma palavra exclusivamente compreensível como palavra de Deus
refere-se a fé cristã.
Para poder ser enxergada e acolhida na fé por ela constituída, a mensagem cristã exige
aquela “conversão na pré-compreensão” porque, em sua pretensão de ser “palavra de Deus”,
consequentemente encerra em si uma dificuldade fundamental de compreensão:
Olhando mais de perto não é, de jeito nenhum, imediatamente auto-evidente que se possa formar o conceito “palavra de Deus”. A junção de “palavra” e “Deus” para “palavra de Deus” vincula fogo e água. Ela soa como uma contradição em si.29
Para dar-se a entender, não apesar, mas por meio dessa aparente aporia, a mensagem
cristã afirma não poder apoiar-se em alguma filosofia ou predisposição do ser humano para
sua verdade senão na sua capacidade de “ouvir”. Pois já o termo “Deus” se recusa a uma
abordagem corriqueira nossa. Em sua pretensão de ser a verdade última sobre o mundo, a
mensagem cristã se explica a si mesma pelo seu conteúdo. Nesse sentido, ela é
completamente “contra-intuitiva”.
28 KNAUER. “Was heißt ‘Wort Gottes’?”. In: GuL 48 (1/1975) 7. 29 KNAUER. Was heißt „Wort Gottes“?, 8.
26
A compreensão “inadequada” [unsachgemäß] da mensagem cristã distorce sua
percepção como “evento da palavra” [Wortgeschehen],30 enquanto “evento da revelação”
[Offenbarungsgeschehen] (DV 2). Dessa maneira, não é mais possível acolhê-la realmente
como aquilo que pretende ser em seu sentido estrito de “palavra de Deus” (1Ts 2,13): pelo
contrário e observando o cenário de pregação nas mais ilustres igrejas [neo]pentecostais bem
como nas próprias comunidades católicas, assim ela passa a ser transmitida como num
“envelope fechado”.31
É contribuição particular de KNAUER perceber e explicitar que a mensagem cristã
requer outro instrumentário filosófico-hermenêutico para sua compreensão adequada. Ela
mesma o traz consigo em forma de uma “ontologia relacional” [relationale Ontologie]. Ela é a
alternativa à tendência própria do ser humano de encaixar Deus num conceito oniabrangente
do “ser”, como é típico de uma concepção “metafísica substancialista” [Substanzmetaphysik]
por meio da qual abordamos nossa própria realidade. Esta “considera o ser-em-si substancial
como realidade básica [grundlegend] e pode pensar relação apenas como subsequente à
substância [...] como mera função da substância”.32
Ao contrário, uma ontologia relacional concebe a relação constitutiva para o ser do
mundo e assim precedente à substância, sendo aquela mesma “substancial”. Somente uma
concepção relacional do ser será capaz de salvaguardar “o absoluto de Deus” [Absolutheit
30 Ou também “evento de proclamação” [Verkündigungsgeschehen]. O termo originário de EBELING remete à
historicidade da mensagem cristã em sua pretensão de ser palavra de Deus: “Das Wesen der Sprache verweist auf Wort als Geschehen”. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 51 e IDEM. Der Glaube, 88, especialmente nota 101. O conceito equivalente e certamente mais dominante em nosso linguajar teológico latino-americano seria “prática” ou mesmo “práxis” de proclamação. Acontece, porém, que a expressão “Geschehen” assume, no caso em EBELING, conscientemente um duplo sentido: trata-se de um evento [Geschehen] ou [Geschehnis] que se torna presente somente por seu vínculo constitutivo ao que se passou [was geschehen ist], a saber, o “evento Jesus”. A expressão mais usada aqui, porém, é a da “evangelização” que usufrui de uma conotação mais abrangente, mas talvez também ambígua devido a uma justaposição equívoca entre “palavra” e “ação”. Por trás dessa dissociação estáa redução da linguagem a um código de sinais cujo designo se encontra fora dele segundo hermenêutica de significação [Signifikationshermeneutik]. Em contrapartida, “palavra de Deus” se entende como “evento” justamente à medida que a realidade pela palavra designada se encontra nela mesma e se realiza propriamente por ela sozinha.
31 KNAUER. Der Glaube, 162 e IDEM. Unseren Glauben, 7. A metáfora sugere que aquilo que está no envelope ainda é a mensagem cristã em sua inteireza, mas que por empecilhos externos a ela o ouvinte da palavra está impedido de compreender e de acolher adequadamente. Assim nunca poderá acolher a fé em sua certeza absoluta porque não pode dispor de um critério seguro que distinga o que é a palavra faticamente pregada de uma mera “autoprojeção humana” [menschliche Selbstprojektion].
32 KNAUER. Der Glaube, 36, nota 32.
27
Gottes].33 À base de uma “ontologia relacional” levada a cabo, KNAUER desenvolve seu
pensamento teológico relacional como teologia fundamental hermenêutica em função de uma
consequente Teologia-da-Palavra-de-Deus.
Trata-se de teologia sempre e apenas como “Teologia-da-Palavra-de-Deus” à medida
que ela compreende a si mesma de acordo com a pretensão da mensagem cristã como
“autocomunicação de Deus”. É teologia fundamental porque ela reflete sobre o fundamento
da fé nossa comunhão com Deus. Ela é teologia fundamental hermenêutica “quando levanta a
pergunta de compreensão [Verstehensfrage] de todos os seus conceitos e os interpreta a partir
de sua conexão [Zusammenhang]”.34 A fé mesma busca compreensão e se explica pelo seu
conteúdo a partir do encontro histórico com a mensagem cristã.
Enfim, essa teologia se entende como ciência porque busca apresentar a fé cristã em
linguagem simples, de forma coerente e sistematizada inclusive diante das demais ciências.
Por meio do diálogo com elas, procura responder a questionamentos em seu respectivo campo
próprio de conhecimento.35 Assim pretende facilitar uma reta compreensão da fé, municiando
a Igreja, enquanto tal, e a cada um dos fiéis na sua missão de evangelizar, bem como dar
auxílio para a fé de cada fiel poder tornar-se cada vez mais adulta.
Sua chave de leitura universal, no que diz respeito ao problema crucial da mediação
entre mundo e Deus, KNAUER encontra no dogma cristológico da Calcedônia ampliando-o em
função de todas as proposições de fé e todo pensar teológico36: sua fórmula resumida no “não
separado” e “não misturado” das naturezas humana e divina na una pessoa de Jesus Cristo o
autor compreende de forma relacional como um “distinguir e pôr-em-relação”
[unterscheidendes In-Beziehung-Setzen].37
33 O capítulo II inteiro se dedica ao aprofundamento dessa concepção relacional do ser. A elaboração dela é
fruto do pensamento original de KNAUER em sua busca de compreender a mensagem cristã consistentemente (o que quer dizer sempre: como ela mesma pretende ser entendida) ainda anterior à defesa de sua tese doutoral. Cf. KNAUER. “Dialektik und Relation: Die Einsicht in das metaphysische Kausalitätsprinzip im Gottesbeweis“. In: ThPh 41 (1966) 54-74.
34 KNAUER. „Glaubensbegründung heute. Der Umbau der Fundamentaltheologie”. In: StZ 59 (3/1984) 204. 35 Cf. KNAUER. Der Glaube, 15 e IDEM. “Was die öffentliche Prüfung aushalten kann: Christlicher Glaube,
Vernunft und theologische Wissenschaft – ein Plädoyer gegen ihre Karikaturen”. In: Frankfurter Rundschau, 3 ago. 1999, 19.
36 Cf. especificamente seu artigo „Die chalkedonensische Christologie als Kriterium für jedes christliche Glaubensverständnis“. In: ThPh 60 (1985) 1-15. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/39.html>. Acesso em: 9 out. 2009.
37 Esta categoria de pensar, KNAUER adota expressamente de GERHARD EBELING (cf. KNAUER. “Zu Gerhard Ebelings ‚Dogmatik des christlichen Glaubens‘. ‚Fundamentalunterscheidung‘ und ‚Lebensbezug‘ als theologische Grundkategorien”. In: StZ 59 [3/1984], 393), e a desdobra exemplarmente em seu artigo supracitado, Die chalkedonensische Christologie.
28
Por isso, o autor considera como tarefa própria da teologia fundamental intermediar,
traduzir interpretativamente, as diversas linguagens teológicas (os diversos jogos linguístico-
teológicos), tendo elaborado sua teologia fundamental como uma “gramática” para a fé
cristã.38 Por conseguinte, o trabalho se propõe a expor as regras lingüístico-hermenêuticas de
falar de Deus coerentemente a partir dele mesmo no sentido em que KNAUER as apresenta
com todo rigor, “numa lógica férrea”.39
Nesse sentido, trata-se de uma “meta-linguagem” que tem a pretensão de explicitar o
que “fica por baixo”40 (no fundo) das mais diversas linguagens de fé (sempre suposto que
sejam compreensíveis unicamente como palavra de Deus). Caso contrário, não se trataria mais
de linguagem de “fé”.41 Assim é tarefa da teologia dar conta da mensagem cristã em sua
pretensão de ser palavra de Deus, de deixar o Evangelho dar-se a entender unicamente como
Evangelho. Para tal fim, a mensagem cristã pede ser ouvida justamente porque pretende dizer
a última palavra sobre a existência do ser humano. Nisso ela requer de seu ouvinte uma
mudança radical de seu ponto de vista que abrange toda a compreensão que este tem de sua
existência, do mundo e de Deus.
1.3 O alcance de sua reflexão teológica como caminho na contramão
Em todos os seus escritos, KNAUER não cansa de ressaltar, logo de início, que o erro
principal e muito difundido na compreensão da fé é partir da pressuposição de que se trate de
uma verdade óbvia, naturalmente evidenciável. Tarefa da teologia seria apenas de tornar a fé
mais e mais “plausível” [glaubwürdig] por meio de seus argumentos racionais. Em
38 Cf. KNAUER. Der Glaube, 9. O teólogo, nesse sentido, passa a ser um “intérpete” [Dolmetscher] crítico entre
linguagens teológicas diferentes que parecem contrariar-se (cf. IBID.). 39 TABORDA, FRANCISCO. Recensão de KNAUER, PETER. Para compreender nossa fé. São Paulo: Loyola, 1989.
In: PT 36 (6/1991) 406. TABORDA refere o termo especificamente à concepção da transcendência de Deus em KNAUER, mas reforça que “toda exposição consiste em levar tais princípios a suas últimas consequências na exposição das verdades da fé cristã” (IBID., 407).
40 Exatamente assim é que KNAUER, em outro contexto (cf. IDEM. Unseren Glauben, 62), “traduz” o termo grego hypomoné [ὑπομονή] por esperança. Nesse sentido é que se trata de o cristão cumprir a pro-vocação de 1Pd 3,15, dada pela própria mensagem cristã, de, quando questionado, “dar razão de sua esperança”, termo quase técnico pela autocompreensão de qualquer teologia fundamental (cf., p. ex., LIBANIO, JOÃO BATISTA; MURAD, AFONSO. Introdução à teologia. Perfil, enfoques, tarefas. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2001, 69.
41 No entanto, é inegável que tal meta-linguagem da fé só pode ser compreendida por sua vez como linguagem de fé. Mas enquanto linguagem de fé se encontra ao lado de todos os demais discursos de fé, ou seja, ela não pode se imunizar de seu caráter histórico concreto. Portanto, admite-se que não há escapatória das condições hermenêuticas de qualquer jogo de linguagem. Como ainda manter em pé a pretensão de ser uma linguagem universal de fé, capaz de expor as regras gramaticais de qualquer discurso de fé e intermediar hermeneuticamente [dolmetschen] entre elas? Trata-se de um círculo hermenêutico, não de uma tautologia. Isso significa dizer que uma meta-linguagem da fé também se submete aos critérios pelos quais sujeita as demais linguagens de fé a uma revisão crítica, a fim de poderem ser compreendidas como palavra de Deus.
29
contrapartida, KNAUER se remete à própria mensagem cristã que contesta poder ser
compreendida ordinariamente como uma verdade trivial. Contrário a mera “plausibilidade” no
sentido de uma “credibilidade trivial” [Glaubwürdigkeit], própria de cosmovisão qualquer, a
mensagem cristã reclama para si aquela “fidedignidade” [Glaubens-Würdigkeit] que consiste
no estar-repleto-do-Espírito-Santo. Por conseguinte, tanto diante de certa tradição clássica de
teologia quanto perante o “fenômeno religioso” hoje e da maneira como é refletido, o autor se
põe junto à mensagem cristã no caminho da contramão.
1.3.1 A problemática atual de compreensão da fé
Aqui não se trata de analisar a complexidade da situação que o cristianismo enfrenta
em época designada de pós-moderna. Também KNAUER não se demora em
“contextualizações” de sua reflexão teológica. No entanto, longe de ignorar os sinais dos
tempos atuais, o autor logo se debruça em seus escritos sobre as questões de fundo, seja no
campo ético,42 seja no campo da teologia.
Nesse intuito, KNAUER trabalha com a hipótese de que a atual crise do cristianismo, no
fundo, reflete uma crise de fé. De um lado, tal crise há de ser enfrentada desde suas raízes na
tradição particularmente católica e, do outro, perante o atual fenômeno religioso em que se
enraíza a crise do cristianismo.
1. Trata-se de concepções equívocas da fé cristã que circulam no meio dos cristãos até
hoje. Estas continuam sendo divulgadas por manuais e práticas de catequese, fruto de uma
tradição teológica ainda neoescolástica e não-superada em tempos pós-conciliares – apesar de
todo esforço feito no e depois do Concílio Vaticano II.
42 Para além da fundamentação de uma máxima ética universal, manifesta-se a profunda preocupação do autor
com a questão da justiça em suas micro- e macroestruturas: Muito antes de a atenção pública virar à monetarização do mercado, KNAUER estudou e acabou divulgando a “teoria do dinheiro” [Geldtheorie] de DIETER SUHR como uma saída completamente inconvencional (na contramão!) do problema estrutural do desemprego e da distribuição injusta de poderes financeiros enquanto mais um problema de falta de intermediação (cf. KNAUER. “Unser liebes Geld: Aktuelle Überlegungen zu einem Systemfehler”. In: Orientierung 73 (2009) 41-44, e outros artigos a respeito, inclusive em espanhol, em sua homepage).
30
KNAUER identifica tais problemas na compreensão e apresentação distorcidas e
distorcentes da fé cristã com a concepção da “teologia fundamental clássica”,43 como ela
entende, por exemplo, a doutrina das praeambula fidei (prelúdios da fé).44 Seu resultado é
uma concepção da fé cristã que o autor designa de “aditiva” e que parece emergir em
conseqüência da compreensão clássica da fé cristã:
Nessa compreensão clássica da fé, se pressupõe ser acessível à razão anterior ao
consentimento à fé (1) que Deus existe (e que sua existência é demonstrável), (2) que Deus
pode revelar-se (e que essa possibilidade seja demonstrável) e (3) que o ser humano há de crer
obrigatoriamente no que é apresentado como assunto de fé; caso contrário, rejeitaria, por
exercício de seu “livre-arbítrio”, a oferta de Deus à salvação.
Em consequência de tais pressuposições, essa concepção puramente formal da fé (1)
compreende Deus como uma realidade apenas complementar, em acréscimo àquilo que o ser
humano consegue conhecer e realizar por conta própria; (2) dicotomiza a compreensão da
revelação de Deus separando o ato da revelação de seu conteúdo; (3) fragmenta a fé pela
mesma dicotomização entre o ato da fé (fides qua) e seu conteúdo (fides quae). Por final, seja
o ato, como o conteúdo, tanto da revelação quanto da fé, é dicotomizado em si mesmo.
Pressupõe-se, com referência à onipotência de Deus e com maior evidência, ser possível ele
se revelar quando e onde e por meio de que quiser em diversos atos singulares e desconexos
entre si. Da mesma forma, concebe-se a própria fé como um aglomerado de uma
multiplicidade de dogmas e doutrinas difíceis. Além de se achar que se trate de verdades
muito complexas e em princípio incompreensíveis, pensa-se que hajam de ser somados a fim
de que se obtenha a fé completa ou inteira. Essa posição de uma fé composta de partes, seja
revestida de espírito neoescolástico (indoutrinariamente “de cima”, fechado ao mundo), seja
de espírito do aggiornamento (dialogicamente “de baixo”, aberto ao mundo), no fundo,
representa uma posição racionalista porque consequência da pressuposição de poder
“comprovar a verdade da fé direta ou ao menos indiretamente por razões da razão ou de
remontá-la a razões da razão”.45
43 Exemplarmente KNAUER cita a obra de LANG, ALBERT. Fundamentaltheologie. 4.ed. München: Hueber,
1967. Por referência a ele, KNAUER caricatura compreensões equívocas da fé muito difundidas ainda hoje, em meio ao povo cristão simples, tanto quanto à comunidade teológico-acadêmica. De forma mais direta contraria sua posição à teologia clássica em seu artigo “Fundamentaltheologische Erhellung der Glaubensproblematik”. In: TÜRK, HANS JOACHIM (ORG). Glaube – Unglaube. Mainz: Grünewald, 1971, 183-197; cf. tb. IDEM. Glaubensbegründung heute, 200-208, e antes em sua tese doutoral.
44 Cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 1-13; cf. tb. IDEM. Der Glaube; 336s e sua abordagem em IDEM. „Potentia oboedientialis“ und „übernatürliches Existential“ im Verhältnis zum „Verlangen nach der Gottesschau“. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/49.html>. Acesso em: 19 out. 2009.
45 KNAUER. Der Glaube, 376; cf. tb. IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 185.
31
Em suma, nela se concebe Deus como um pedaço de realidade mundana e sua graça
como uma força mágica “supranatural” para auxiliar o ser humano no que já pode alcançar
por conta própria: elevar-se à comunhão com Deus por mérito próprio. A revelação divina
assim se torna, no fundo, obsoleta. O Evangelho não é pregado e entendido de acordo com sua
autocompreensão de “Evangelho”, e sim pregado como uma “Lei” suprema. O cristianismo
acaba em moralismo porque se prescindiu da mensagem cristã em sua pretensão de ser
“palavra de Deus” no sentido estrito do termo. Isso leva à fragmentação da palavra de Deus:
ou se a compreende limitada demais para Deus se dizer nela ao mundo ou se a entende ampla
demais para deixá-la ser literalmente humana. Deve-se entender “palavra” apenas em um
sentido “figurado”.46 Mais ainda: joga-se “palavra” contra “ação” por reduzir a palavra à sua
“função” de significar coisas fora dela: “Mais que buscar frases, nas quais Jesus mostra sua
consciência de Filho [...], devemos nos fixar nas suas atitudes”.47
A “fé” emerge aqui como resultado de uma série de dissociações devido a falsos
pressupostos. Sua recomposição posterior, porém, leva à mistura entre mundo e Deus,
natureza e graça, razão e fé. Pois “o conteúdo da mensagem cristã não tem a estrutura de um
todo aditivamente composto de partes. Em cada afirmação singular de fé, ao contrário, é
implicado o todo da fé que consiste em nossa comunhão com Deus”.48
2. Além dessa bagagem advinda de tradições teológicas, segundo KNAUER, ainda não
superadas, encontra-se esta problemática de compreensão da fé potenciada por mecanismos e
dinâmicas próprios das sociedades pós-modernas, especialmente no que diz respeito à
situação da religião em geral e do cristianismo em específico.
Há duas tendências que aparentemente se contrariam tanto no contexto europeu quanto
no latino-americano (porém, com gravidade ainda invertida), mas, no fundo, incorrem no
mesmo dilema: de um lado, o mundo globalizado levou ao fenômeno universalmente presente
de um pluralismo religioso que tem suas configurações regionais daquilo que se chamou de
“retorno do sagrado” ou do religioso.49 Em contrapartida, mas simultaneamente, constata-se,
46 Cf. KNAUER. “‚Wort Gottes‘ Grundkategorie des Christentums. in: Lebendiges Zeugnis 47 (1992). Acesso ao
texto digital disponibilizado pelo autor. 47 BOFF, LEONARDO. A Trindade e a Sociedade. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1987, 46. E logo em seguida reafirma:
“Mais que por palavras, é pelas ações de Jesus e na sua gesta libertadora que se revela o Espírito Santo” (IBID., 47). A ainda hoje essa opinião do autor é generalizável entre muitos cristãos e teólogos.
48 KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 76; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 18. 49 A literatura é vasta. Para se obter uma visão geral dos diversos movimentos religiosos no cenário brasileiro
cf. LIBANIO, JOÃO BATISTA. Religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002 e IDEM. Pluralismo Cultural e Religioso. In: AMERINDIA (Org.). V Conferência de Aparecida. Renascer de uma esperança. São Paulo: Paulinas, 2008, 73-78.
32
inclusive estatisticamente, na América Latina, crescente secularização de diversas esferas
públicas e privadas da vida societária cada vez mais fragmentada em termos de coesão
social.50
Tal efervescência de vivências religiosas e pseudoreligiosas51 invadiu até os ambientes
mais “conservadores” de um catolicismo tradicional pela sua prática individualista e
comercial (seguindo a lógica do mercado neoliberal) de confeccionar para si mesmo sua
própria “religião”, como um retalho de roupas diversas.52 Mas a médio prazo, tal prática leva
(como já levou) à “desinstitucionalização” da religião. Esta se manifesta na flutuação de fiéis
e crentes entre as mais diversas igrejas ditas “cristãs” em uma espécie de “teste de
degustação” do sentimento religioso, especialmente nas periferias das “megalópoles”
urbanas.53
O passo final é a desistência, primeiro de alguma prática religiosa, e depois da própria
crença, degradada à mera visão de mundo. Parece que a (ainda) atual efervescência de
sentimentos religioso, ou “reencantamento do mundo” (em contrapartida ao processo
moderno do “desencantamento do mundo” observado por MAX WEBER), de um clima mais
mistérico do que místico, mais sacral (cúltico) do que sagrado está, aos poucos, incorrendo na
suspensão de si mesma. Tal fenômeno de “secularização” (no sentido de desaparecimento de
manifestações religiosas na vida pública e também privada das pessoas) se mescla com o
deslocamento desses sentimentos “religiosos” para outros semelhantes tidos como “pseudo-
religiosos”, bem como a substituição do culto religioso e eclesial por eventos seculares, mas
“com ar” de sagrado enquanto “fascinante e atemorizante”.54
50 Cf. a análise de conjuntura no Documento 71 (CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no
Brasil. 2003-2006. 6.ed. São Paulo: Paulinas, 2003) n. 44-62, especialmente n.57 em que se constata ser novidade no Brasil pessoas se assumirem publicamente serem “sem religião”, bem como os dados estatísticos do senso de 2000 na nota 9.
51 KNAUER. Vernunft – Naturwissenschaften – christlicher Glaube, 37s; cf. tb. TÜRK, ECKHARD. „Gute Religion – schlechte Religion. Apologetik im Interesse der Religion und des Menschen“. In: GÄDE, GERHARD (ORG.). Hören – Glauben – Denken, 163-186. Em seu artigo o autor confronta as pretensões de verdade das religiões mundiais com o pluralismo e indiferentismo religiosos em época pós-moderna. Contra a postura e prática difundidas de um consumismo religioso em que a religião “boa” é aquela “tolerante” e dogmaticamente flexível, e a religião “má” a que não deixa de levantar pretensão de verdade única e última (163-166). Da observação que força-motora de movimentos de reforma em toda religião era a busca de critérios de distinguir entre verdadeira e falsa religião, o autor nomeia com referência a KNAUER como critério a insuperabilidade [Unüberbietbarkeit] (167).
52 Nesse contexto a sociologia trabalha com termos como geração patchwork (colcha de retalhos); cf. FERCHHOFF, WILFRIED; NEUBAUER, GEORG. Patchwork-Jugend. Eine Einführung in postmoderne Sichtweisen. Opladen: Leske + Budrich, 1997.
53 Doc. 71, n. 50. 54 Cf. a definição do sagrado de RUDOLF OTTO. Já existem estudos sociológicos comparativos, analisando os
jogos de futebol, os eventos esportivos de grande escala, shows de abertura de jogos olímpicos etc. (cf.
33
Dessa maneira, a questão da fé e sua compreensão é cada vez mais deslocada para a
esfera do privado, do individual. Ela se torna uma questão de bom (ou mau) gosto,
encontrando seu reflexo numa “teologia da prosperidade”, que se manifesta como variação de
uma “teologia da retribuição”.55 Consequentemente, a teologia suspende o senso crítico do
esforço intelectual de compreensão. Ao contrário disso, KNAUER entende que “ela [a
mensagem cristã] está preparada para se defrontar com qualquer provação e responder-lhe.
Justamente por isso, ela desenvolve uma teologia fundamental”.56
Especialmente no campo do estudo da teologia das religiões o confronto com tais
concepções de fé, de Deus e de religião com sua inegável pretensão de revelação se torna
agudo. E a reação da instituição eclesiástica, no caso da Igreja Católica, também não tarda: o
medo de relativismos, de dissolução dos dogmas, do perigo de confundir a fé dos fiéis, enfim,
a preocupação com a desintegração de seu rebanho por causa da difusão de uma nova
insegurança teológica (e eclesiástica), tem a tendência de voltar a domesticar a pesquisa
teológica restringindo-a ao papel de “serva do Magistério”.
Parece-lhes possível crer sem compreender. E mais ainda: acham que qualquer
tentativa de refletir a fé significa racionalizá-la, desmistificá-la até. Muitos vivem sua fé hoje
de forma melodramática, puramente emocional e sentimentalista, por meio de missas-shows,
de encontros de oração como grandes espetáculos de curas milagrosas e falas em línguas.
Nisso, certos movimentos no seio da Igreja católica parecem confundir-se com a prática
religiosa das igrejas pentecostais e neopentecostais. O “queremos Deus” ou “queremos ver
Jesus” muito se explicita num “querer sentir Deus”.
Essa concepção de fé tende a ser fideísta porque apodicticamente “se dispõe a
responder pela fé apenas dentro do círculo dos fiéis, e não também perante não-fiéis”.57
Contra a busca de fundamentar a “certeza da fé” [Glaubensgewissheit] na suposta força de um
sentimento religioso, KNAUER afirma: “É verdade que muitos consideram toda religião como
MARDONES, JOSÉ MARIA. Para comprender las nuevas formas de la religión. La reconfiguración postcristiana de la religión. Estella: Verbo Divino, 1994.
55 Doc 71, n. 55. Cf. tb. o diagnóstico dessa situação em RUBIO, ALFONSO GARCÍA. Elementos de Antropologia Teológica. Salvação cristã: salvos de quê e para quê?. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2004, 17-21. RUBIO nota “que se deu nos seminários, nas duas últimas décadas, certa desvalorização da vida intelectual, uma tendência para desenvolver um tipo de formação pouco exigente nos estudos teológicos (e filosóficos). Parece-me que se dá uma aliança, ao menos em parte, com as tendências antiintelectuais presentes na pós-modernidade, voltando-se para a expressividade corporal, emocional [...] pouco importando a coerência do conteúdo, ou, mesmo, a fidelidade à proposta evangélica” (IBID., 20).
56 KNAUER. Gaubensbegründung heute, 200. A esta tentação pós-moderna, KNAUER responde claramente que “se pode pensar sem crer, mas não se pode crer sem pensar” (cf. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 7). A fé dá o que pensar, precisamente porque sua verdade não é uma banalidade.
57 KNAUER. Der Glaube, 379.
34
coisa da emoção [Gefühlssache]. Mas essa não é a autocompreensão da mensagem cristã. Ela
quer ser percebida como verdadeira e confiável [verlässlich]. Mas, então, há de se perguntar
evidentemente se sua pretensão de verdade tem razão”.58
Tanto a posição racionalista quanto a fideísta foram condenadas pela Igreja no
Concílio Vaticano I. Contra o racionalismo, a Igreja reafirma a doutrina sobre os mysteria
stricto sensu (cf. DH 3015) e profere anátema contra quem “disser que na revelação divina
não há nenhum mistério verdadeiro e propriamente dito, mas que todos os dogmas da fé
podem ser compreendidos e demonstrados pela razão” (DH 3041).59 Contra o fideísmo, ela
adverte que o consentimento com a fé “absolutamente não seja um movimento cego da alma”
(DH 3010).60 Alguns teólogos reconhecem o desafio, mas procuram o caminho do meio que
se preocupa apenas de não cair nem num nem noutro extremo. KNAUER, em contrapartida,
apresenta sua compreensão da fé como alternativa a essas [falsas] alternativas61 que faz jus à
“pretensão de verdade” [Wahrheitsanspruch] da mensagem cristã. Para sua reta compreensão,
porém, a mensagem cristã exige uma reviravolta também no pensar.
1.3.2 “Vinho novo em odres novos”
Diante da situação acima referida das dissociações entre mundo e Deus, ato e conteúdo
de revelação e fé, bem como de mescla de efervescência religiosa em meio a tendências
secularizantes, a pergunta primordial de KNAUER com relação ao que se trata na fé cristã no
fundo é mais atual do que nunca: É a pergunta pelo que constitui a fé cristã como “fé”62 em
um sentido último e insuperável e, por isso, de pretensão de verdade única e absoluta. É uma
reivindicação da fé à teologia para “dar razão a sua esperança” (1Pd 3,15), tornar o anúncio
cristão “compreensível e comprometedor”,63 não uma compreensão qualquer, não uma
58 KNAUER. Glaubensbegründung heute, 200. 59 Cf. KNAUER. Der Glaube, 376. O autor refere ainda a DH 3028.3032 60 Cf. IBID., 379. No contexto o autor refere também a DH 3033. 61 Cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, IV. Essa dificuldade de escapar realmente de racionalismo e
fideísmo “sem justamente cair numa mistura desgraçada [heillos] de ambos” o autor chama de “crux theologorum” (IBID.).
62 A respeito da fé como obra de Deus em nós e como fé “própria” do ser humano, ou seja, a fé vivida pelo ser humano, cf. KNAUER. Der Glaube, 188ss.
63 KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 15. KNAUER cita EBELING em sua expressão mais típica pelo empreendimento da fundamentação da fé.
35
compreensão construída a partir dos nossos preconceitos (nossa concepção prévia do mundo,
de Deus) e das nossas certezas, mas uma compreensão buscada a partir daquilo que faz da fé
ser fé, uma certeza inabalável.
A intuição principal de KNAUER a esse respeito é considerar como “essência da fé
cristã” o fato de que “nenhuma qualidade criada enquanto tal é suficiente para outorgar
comunhão com Deus”64 sendo esta “intelecção” [Einsicht] “a chave para toda teologia”.65 Tal
afirmação se dirige contra a ideia do homo religiosus segundo a qual cada ser humano é capaz
de “experiência de Deus”,66 seja por esforço ético, seja intelectual. Consequentemente ele
fundamenta teologicamente a “estrutura” peculiar da fé na pretensão problemática da
mensagem cristã de ser “palavra de Deus”. Por causa da tendência natural de o ser humano
enquadrar Deus em seus esquemas de concepção da realidade mundana, a mensagem cristã
exige uma inversão total dessa compreensão prévia.
O ser humano, a partir de si mesmo, tem, principalmente, a tendência de pensar de Deus como das coisas do mundo. Isto vale independentemente se se aceite ou rejeite a existência de Deus no sentido de um “ser supremo”. Ou se busca concluir do mundo a Deus através de um princípio cognitivo que abrange mundo e Deus, e assim já rompe com a incompreensibilidade de Deus. Ou se imagina Deus como uma projeção humana e rejeita sua existência. O erro de fundo é o mesmo. Coisa correspondente vale dizer da forma como o ser humano geralmente pensa uma revelação a partir de si mesmo: Deus é todo-poderoso e pode comunicar qualquer coisa.67
Por isso, o ser humano não enxerga, por conta própria, em que consiste o “novo” da
mensagem cristã porque a coloca na categoria “velha” do trivialmente compreensível.
Nesse sentido a mensagem cristã é mal-entendida como “trivialmente autoevidente”. “Trivialmente autoevidente” é aquilo que alguém entende sem problema por conta própria [von selber]. [...] Nesse olhar nem se precisa da Trindade divina nem da encarnação do Filho para o evento da revelação; e também não é inteligível porque a aceitação da revelação deve ser compreendida como uma graça que transcende todas as possibilidades meramente naturais.68
64 KNAUER. Der Glaube, 179. 65 KNAUER. “Der Heilige Geist – Garant der Wahrheit und Einheit”. In: Materialdienst des
Konfessionskundlichen Instituts Bensheim 30 (Caderno especial 10/1979) 5. 66 Cf. KNAUER. Der Glaube, 71s. 67 KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 68. 68 IBID., 69.
36
Pela sua proclamação histórica, a própria mensagem cristã alerta o ser humano para o
fato de que a comunhão com Deus, que pretende transmitir, é uma verdade trivialmente “não-
[auto]evidente”. Só a mensagem cristã consegue explicar-se de forma compreensível contra
questionamentos, mas, em sua verdade ela se evidencia a si mesma apenas na acolhida da fé.69
O aviso hermenêutico de colocar “vinho novo em odres novos” (Mc 2,22), para
KNAUER, é intercambiável com o aviso hermenêutico da distinção fundamental
epistemológica entre “Lei” e “Evangelho”, “Natureza” e “Graça”. A distinção entre lei e
Evangelho, natureza e Graça se compreende como palavra própria de Deus por nós e em
contrapartida ao que o ser humano pode saber por conta própria. Isso acontece com relação à
mensagem cristã por meio de todo posicionamento que a rejeita “sem razão”, procura
permanecer indeciso diante dela ou concorda com ela de forma racionalista ou fideísta.
O ser humano, que mergulha nas incertezas de sua existência, ansiando por encontrar
“sentido último” em sua vida, no anúncio cristão, é confrontado com uma palavra que
desconstrói consequentemente todas as ilusões de “chegar lá” por conta própria. Dela não
pode se esquivar a custo de se negar a si mesmo.
A natureza do ser humano clama pelo sobrenatural. Seria mesmo anatural se a natureza humana encontrasse satisfação em si mesma. Mas, ao mesmo tempo, a natureza do ser humano impede o passo para dentro do sobrenatural.70
Pois remetido ao ser abordado em sua consciência (“Lei”) por meio da mensagem
cristã, encontra-se em conflito consigo mesmo e em sua realidade. Quando reconhece sua
necessidade de perdão, sem mesmo poder proferir a si mesmo tal palavra, já a acolheu como
Boa Nova (“Evangelho”).
No ato da escuta confiante dessa palavra realiza-se o que ela revela: o ser amparado do
ser humano na comunhão com Deus desde o início de sua existência. Aprender na reflexão a
delinear essa distinção em seu estar vinculado indissociavelmente é saborear o vinho novo na
contramão das conveniências do nosso pensar.
69 Cf. KNAUER. Der Glaube, 19. O jogo de palavras em torno do termo “selbstverständlich” se dá pela
conotação cotidiana de algo ser óbvio e pela conotação literal que significa compreensível através de si mesmo. Cf. tb. p. 15 e respectiva nota 5 da introdução geral a este trabalho.
70 EBELING, GERHARD. “Der hermeneutische Ort der Gotteslehre bei Petrus Lombardus und Thomas von Aquin“. In: ZThK 61 (1964) 324. Apud: KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 6.
37
Pela “palavra de Deus” o ser humano é posto na decisão ou de se compreender em contradição com a sua verdadeira realidade a partir de si mesmo [...], ou, então, de considerar-se [ser] criado “em Cristo” a partir da “palavra de Deus”. No primeiro caso o ser humano abusa da liberdade conferida a ele em função de sua criaturalidade tal qual. No segundo caso se decide na liberdade no Espírito Santo conferida a ele a partir da autocomunicação de Deus. Portanto, não existe uma liberdade neutra anterior ao ser agraciado.71
Tal demarcação prévia da especificidade da palavra de Deus no caminho da contramão
tem implicações a serem explicitadas com relação à fé nela fundada.
2 “FÓRMULA BREVE DA FÉ CRISTÔ: IMPLICAÇÕES HERMENÊUTICAS PARA SUA FUNDAMENTAÇÃO
A apresentação das coordenadas da intuição teológica própria de KNAUER acima teve
caráter apenas introdutório. No entanto, já vislumbrou o rumo de sua abordagem. Antes de
entrar no desdobramento detalhado do significado de palavra de Deus a partir de sua
problemática resumidamente apresentada acima, KNAUER geralmente coloca no início de seus
escritos um “tipo de fórmula breve [Kurzformel] da fé que indica o distintivo cristão
[unterscheidend Christliche]”:72
Crer em Jesus como Filho de Deus significa, por causa de sua palavra humana, saber-se a si mesmo e o mundo todo acolhidos no amor eterno do Pai a ele. O Filho de Deus se fez ser humano para nos tornar certos desse amor por sua palavra humana como palavra de Deus.73
Geralmente suas “fórmulas breves” implicam resumidamente três aspectos
fundamentais da fé como evento da palavra indissociável: o conteúdo da fé como saber-se
incondicionalmente amado por Deus no sentido do ser acolhido no amor eterno entre Pai e
Filho que é o Espírito Santo (2.1); o devir da fé por uma tradição de transmissão que remonta
71 KNAUER. Der Glaube, 191s. 72 KNAUER. Einzigartigkeit des Christentums, 1976, 11. 73 KNAUER. Was die öffentliche Prüfung aushalten kann, 19. Em sua diversidade, as formulações desdobram
inicialmente o que significa estar em comunhão com Deus: KNAUER. Einzigartigkeit des Christentums, 1976, 12; IDEM. “‚Natürliche Gotteserkenntnis’?”. In: JÜNGEL, EBERHARD; WALLMANN, JOHANNES; WERBECK, WILFRID (ORG.). Verifikationen: Festschrift für Gerhard Ebeling zum 70. Geburtstag. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1982, 275–294 (disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/41.html>. Acesso em: 14 out. 2009.); IDEM. Glaubensbegründung heute, 200; IDEM. Unseren Glauben verstehen, 7; IDEM. “Zu Gerhard Ebelings ‚Das Wesen des christlichen Glaubens‘ (1959)”. In: DELGADO, MARIANO (Org.). Das Christentum der Theologen im 20. Jahrhundert: Vom „Wesen des Christentums“ zu den „Kurzformeln des christlichen Glaubens“. Stuttgart-Berlin-Köln, 2000, 74-83. Como um resumo programático de fundamentar a fé pela teologia se encontra em IDEM. Der Heilige Geist – Garant der Wahrheit und Einheit, 4. KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 68.
38
originalmente à mensagem e à pessoa de Jesus de Nazaré (2.2); a finalidade da fé que consiste
na libertação do poder do medo pela própria vida por causa de seu “ser-entregue-à-morte”,
necessitando de redenção (2.3).
Em Unseren Glauben verstehen, entretanto, o autor apresenta de entrada uma
experiência pessoal que se poderia chamar de “fórmula breve narrativa” da fé: em um hospital
na Alemanha, observou um menino de aproximadamente cinco anos sendo levado à sala de
cirurgia em companhia de sua mãe. Antes de entrar na sala sozinho, os dois conversando, o
menino se dirige a sua mãe com estas palavras: “Ó mãe, mas Deus está sempre comigo não
é?”.74 O autor mesmo comenta:
Essa palavra singela me impressionou naquela época. Pois ela resume da maneira mais simples de que se trata na fé cristã. Esta fé é tão simples que até uma criança em sua menoridade pode expressá-la. Naturalmente podem-se escrever livros extensos sobre a fé cristã. Todavia, com isso apenas se pode desdobrar o que já se encontra plenamente resumido na palavra da criança. Todas as afirmações singulares de fé apenas podem explanar o que já está expresso na palavra da criança.75
Antes de se perguntar como se pode entender a fé e sua mensagem, há de se tomar
conhecimento do que ela implica basicamente. Aqui não se pretende romper a sequência
lógica da abordagem de KNAUER que o leva da pergunta por Deus à sua palavra para chegar à
fundamentação da fé a partir do encontro histórico com a mensagem cristã. Procuramos, sim,
aprofundar previamente as implicações básicas da afirmação de que, por meio da fé em Jesus
Cristo, estamos em comunhão com Deus.76
2.1 Primeira implicação: a certeza de fé é o “saber-se amado”
De acordo com KNAUER, a criança captou muito bem que na fé cristã se trata de uma
verdade [muito] simples: acreditamos que Deus está sempre conosco. Por isso, ter fé significa
simplesmente “saber-se amado [incondicionalmente] por Deus”.77 É uma verdade simples
porque uma criança já pode “sabê-la” e até expressá-la.78 A criança, como qualquer ser
74 “Du Mutti, der liebe Gott ist doch immer bei mir?”. IDEM. Unseren Glauben, 11. 75 IBID. 76 Nesse sentido a reflexão seguinte se baseia no desdobramento da frase da criança por KNAUER no primeiro
capítulo de Unseren Glauben verstehen (11-19) – no que diz respeito às três implicações acima aduzidas. 77 “Sich-von-Gott-[unbedingt]-geliebt-Wissen”. KNAUER. Der Glaube, 129. Esta expressão concorda com a de
EBELING. Cf. KNAUER. Zu Gerhard Ebelings „Das Wesen des christlichen Glaubens“. 78 Tal simplicidade não se confunde com ingenuidade. Quando não refletida, a fé pode, de fato, além de
simples, também ser ingênua. LEONARDO BOFF a chama de “fé tranquila” (cf. IDEM. Jesus Cristo Libertador. 12.ed. Petrópolis: Vozes, 1988, 196s. No caso da criança, a fé espontânea e ingenuamente vivida é
39
humano, “sabe”-se amada quando confia no carinho e nas “declarações de amor” que as
pessoas, antes de tudo seus pais, lhe fazem. Se confiamos que Deus está sempre conosco, é
porque a fé nos dá uma certeza inabalável, maior do que a certeza da própria morte: “Quem
nos separará do amor de Cristo? [...] Pois estou convencido de que nem a morte nem a vida
[...] nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus manifestado em Cristo
Jesus, nosso Senhor” (Rm 8,35.38s).
Não existe coisa maior do que a comunhão com Deus que nos proporciona tal certeza.
Por isso, a fé sempre é insuperável, é uma certeza última que relativiza a morte como certeza
doravante apenas “penúltima”. Por causa de a fé ser verdade simples e insuperável, nada se
pode acrescentar a ela, nada tirar dela. Apenas se pode desdobrá-la, aprofundá-la, assimilá-la
cada vez mais conscientemente. Pois, se pudéssemos concluir de nossa realidade, por conta
própria, o amor de Deus por nós, esse amor não seria mais incondicional, e em Deus não se
poderia confiar mais do que em nós mesmos. Salvação se tornaria pura ilusão. A fé não
passaria de uma certeza automanufaturada, autojustificativa, ambígua em si mesma, incapaz
de nos amparar sempre.
Portanto, nós mesmos não podemos ser a “medida” do amor de Deus por nós. Dizer
que somos amados “sem medida” somente é possível como “participação da relação de Jesus
com Deus”,79 o que significa dizer: numa compreensão trinitária de Deus. O amor com que o
humano Jesus se sabia amado por Deus, por sua vez, é o amor com que o Pai, desde toda
eternidade, está voltado ao seu Filho. Esse amor é o Espírito Santo. Pelo seu testemunho, por
causa de sua palavra, Jesus constitui as condições em nós de acolhê-la ao nos transmitir nela o
seu Espírito. Por essa razão, a fé como o saber-se amado por Deus só é compreensível como o
“estar-repleto-do-Espírito-Santo” [Vom-Heiligen-Geist-Erfülltsein].80
Somente assim, a fé constitui um “saber” em contraste e como alternativa a uma
certeza meramente racional (cognitiva) ou emocional (psíquica), sempre incerta de si mesma
porque própria do ser humano em sua condição de profunda ambiguidade. Se quiséssemos
determinar a nossa fé pelo “sentir-se amado”, já estaríamos perdidos em nossos anseios e
medos, abandonados nos momentos de dúvida. No exemplo da criança acima referida,
contagiante. No caso de um adulto em quem essa fé não cresce de acordo com seu entendimento das coisas de forma geral, pode ser prejudicial para o próprio testemunho dessa fé que se torna inaceitável para as demais pessoas quando começam a questioná-la.
79 “Der christliche Glaube ist das Anteilhaben am Gottesverhältnis Jesu”. KNAUER. Der Glaube, 19. 80 KNAUER. Der Glaube, 20. A expressão própria do evangelho de Lucas (Lc 4,1.14.18. 10,21.23,46 [Sl 31,6] e
At 2,4) leva a entender como Páscoa e Pentecostes se interpretam mutuamente e emerge como expressão padrão nos escritos de KNAUER.
40
KNAUER entende que a criança não queria dizer que contava logo com o bom êxito da cirurgia
– em contrapartida a uma “teologia da prosperidade”.81 Pelo contrário, independentemente de
que ia acontecer com ela e além do medo que ela certamente sentia, Deus a amparava com um
amor sempre maior, inclusive mais forte do que a morte.
2.2 Segunda implicação: a fé provém do ouvir (Rm 10,17)
Se a certeza da fé deve ser realmente inabalável (e só assim será de Deus), não
podemos tê-la a partir de nós mesmos como uma convicção primordialmente pessoal ou
subjetiva apenas. A certeza propriamente nossa é a de nossa morte. Com fundamento em
nossa existência, uma certeza maior do que essa não pode ser inventada a custo de ser mera
fantasia ou projeção de anseio nosso. Por essa razão, a fé com sua certeza há de vir de
“outro”, de fora da realidade a nós acessível por conta própria (extra nos).82
É constitutivo para a fé advir de uma tradição de transmissão histórica (a Igreja), por
meio de simples comunicação humana (1Jo 1,1-3). Ela só pode ser trazida por uma mensagem
que se entende como autocomunicação [do amor] de Deus por nós (pro nobis), sempre,
contudo, por meio de sua transmissão enquanto palavra humana. No exemplo referido, a
criança diante da cirurgia, para se “certificar” de sua fé, precisava se remeter à mãe da qual a
recebeu certamente.
A única maneira pela qual podemos confirmar que a certeza de nossa fé seja realmente
“fé”, e não ficção, é o “outro” do qual recebemos a nossa fé. Por essa razão, ninguém pode ter
a sua própria fé sem estar integrado na comunidade dos que assim creem: como o estar-
repleto-do-Espírito-Santo a fé de cada pessoa é fruto da Igreja em sua missão evangelizadora
como “evento contínuo da transmissão do Espírito Santo”.83
81 Esta, por sua vez, haveria de ser associada à mentalidade farisaica da “exigência de sinais judaica” [jüdische
Zeichenforderung] (cf. KNAUER. Der Glaube, 272), que corresponde essencialmente à compreensão de “milagre” da parte de muitos cristãos (cf. IBID., 367).
82 Isso não vale dizer apenas de indivíduo em indivíduo. Também o coletivo de toda a humanidade junto não pode, com fundamento na razão, concluir da realidade por ela conhecida a uma certeza maior que sua finitude relativa (saber-se-entregue-à-morte) e por isso sempre ambígua. Para KNAUER, o sentido do sacerdócio ministerial está embasado neste fato: ele representa em pessoa de Cristo-cabeça que a fé de toda a comunidade, de todo o corpo de Cristo (inclusive seus sacerdotes) sempre e somente provém do “ouvir” (cf. KNAUER. Unseren Glauben verstehen, 191-195).
83 Cf. o desdobramento do conteúdo pneumatológico da mensagem cristã pelo viés eclesiológico no cap. III/4 deste trabalho.
41
Por isso, o cristão precisa do cristão que lhe diz a palavra de Deus, ele precisa dele sempre de novo quando ele fica incerto e desanimado; pois a partir de si próprio não pode ajudar a si mesmo sem burlar a verdade. Ele precisa do irmão como portador e proclamador da divina palavra de salvação. Ele precisa do irmão somente por causa de Jesus Cristo. O Cristo no próprio coração é mais fraco do que o Cristo na Palavra do irmão; aquele é incerto, este é certo.84
A iniciativa para a fé não emana da pessoa por sua conta própria, sempre há de se
remeter a outro – em sua origem à pessoa de Jesus. A dependência de uma tradição que se
remonta a Jesus como sua origem é constitutiva para a fé. A mediação de sua verdade se dá
pela história, precisamente pela linguagem humana. Esse é o sentido de Rm 10,17a: “A fé
[provém] do ouvir”.
Entretanto, a mensagem cristã enquanto palavra humana não é apenas veículo de uma
verdade que não se funda nela. Jesus não foi apenas mediador histórico, mero informante da
mensagem da vinda iminente do Reino de Deus em meio de nós. A história humana não é
apenas o palco da revelação divina que nos tira do meio dela para outros fins à parte da
história, para além da palavra. A mensagem cristã remonta a Jesus como sua origem porque
nos dá testemunho de sua filiação divina.
Isso significa dizer que a mensagem cristã se compreende como palavra de Deus
porque é o próprio Cristo que nos interpela por meio do anúncio cristão, sendo ele mesmo
“palavra de Deus” (Jo 1,1), ele mesmo fundamento, mediador e fim da fé (DV 2). Por essa
razão, Rm 10,17b termina afirmando “o ouvir, porém, [provém] da palavra de Cristo”. O ato
da fé que deriva de sua transmissão e o conteúdo pelo seu anúncio transmitido (e somente
neste mesmo ato de fé fielmente [glaubend] acolhido), por isso, não podem ser dissociados.
“O que significa ter fé, somente a partir de Jesus, é definitivamente compreensível. Pois crer
em Jesus significa participar de sua comunhão com Deus”.85
A transmissão da fé “em forma de palavra” (Hb 2,3) é a base segura que garante sua
distinção de outras vias ou supostas fontes de fé como comumente se refere a visões, sonhos
ou intuições, ao desejo [natural] pela felicidade, ou à ardente busca do sentido último de nossa
vida. Essas vias de suposta revelação divina ou de acesso a Deus não são “fontes” fidedignas,
porque não podem ser distintas indubitavelmente de uma invenção nossa.
84 BONHOEFFER, DIETRICH. Gemeinsames Leben. 15.ed. München, 1976, 14. Apud: KNAUER. Unseren Glauben,
134 (grifo nosso). 85 KNAUER. Unseren Glauben, 138.
42
Unicamente uma palavra da qual se depende em recebê-la por meio de outro,
paradoxalmente, é digna de confiança incondicional. “Somente pelo filtro da associação
[Zuordnung] mútua de crer e ouvir somente passa a mensagem cristã não-distorcida
[unverfälscht]”.86 Apenas desse modo, o anúncio cristão pode nos afetar em nossa existência
histórica.
2.3 Terceira implicação: a fé liberta do poder do medo da morte (Hb 2,15)
É finalidade da fé nos libertar da raiz de toda desumanidade. Só quando se
compreende o seu verdadeiro sentido libertador, a fé pode salvar por meio da certeza absoluta
de nossa comunhão com Deus. A verdade do significado libertador da fé, porém, só na fé
mesma se encontra. Mas, já de antemão, há de ser acessível ao ouvinte da palavra o
conhecimento da alternativa. É tarefa da proclamação cristã anunciar o Evangelho de tal
forma que surja esta alternativa ainda anterior à acolhida da fé. Quando pregada
adequadamente, a mensagem cristã leva o ser humano ao confronto consigo mesmo,
conscientizando-o primeiro de sua ambiguidade e incerteza, de sua vulnerabilidade e
fragilidade existenciais.
Essa condição existencial humana, que é sua condição criatural, segundo KNAUER,
culmina, de acordo com Rm 5,12, no seu “ser-entregue-à-morte” [Todesverfallenheit].87 É o
pano de fundo antropológico da afirmação de que a fé provém do ouvir e não é mesmo algo
inato ao ser humano. Abstraído da fé, da qual só pode saber por meio do anúncio e cuja
certeza só sabe quando a acolhe, o ser humano permanece preso às garras de uma existencial
incerteza devido ao saber-se entregue à morte. Pois voltado para si só, sua única certeza
absolutamente certa é que há de morrer um dia. Nesse sentido, a tradição protestante concebe
86 KNAUER. Der Glaube, 19. 87 Cf. KNAUER. “Erbsünde als Todesverfallenheit. Eine Deutung von Rom 5,12 aus dem Vergleich mit Hebr
2,14f”. In: ThGl 58 (1968) 153-158. Nesse artigo, o autor relê Rm 5,12 à luz de Hb 2,14s para desconstruir uma tradição equívoca de compreensão do pecado original que, desde o Concílio de Trento (DH 1512), se apóia também em Rm 5,12. Ele vê no pecado de Adão a causa hereditária da morte e da pecaminosidade de toda humanidade. O autor levanta a hipótese de que “a transmissão do pecado original seria idêntica com a própria transmissão do ser-entregue-à-morte, de tal forma que, estritamente entendido, o pecado original no versículo 12 é designado com a palavra θάνατος. Trata-se de um ser-entregue-à-morte que exclui qualquer motivo de esperança” (IBID., 155). Em seguida, KNAUER fundamenta sua hipótese pela interpretação de Hb 2,15: Hebreus fala da humanidade enquanto tal que se encontra em uma situação coletiva e duradoura, que “assim precede como um existencial a todos os atos pessoais próprios” (IBID.). Por causa desse “existencial”, o ser humano se encontra em uma situação coercitiva que continua vigorando em cada ato de pecado enquanto sua escravização (sempre reposta de novo). O “vínculo ôntico” entre a “situação coercitiva” e o “ser-entregue-à-morte” por meio do “medo da morte” é explicado pela consciência que o ser humano, mediante o pecado singular, toma da morte como certeza última na sua vida. O medo da morte exerce um poder sobre o ser humano que o deixa sem esperança.
43
o ser humano, visto à parte da fé, inteiramente pecador. E, nesse mesmo sentido, KNAUER
reinterpreta a doutrina do “pecado original” como sendo, por assim dizer, o “existencial
natural” pelo fato de que a fé não é inata.
A doutrina do “pecado original” é na, realidade, apenas o lado reverso de uma verdade muito simples e provavelmente inteligível para cada um: a fé não é inata [...] Inato apenas é a própria existência em sua vulnerabilidade e transitoriedade. Ela é entregue à morte.88
Isso infunde nele o medo da morte. A partir de si mesmo, o ser humano tende a viver
dominado pelo poder do medo da morte, em “estado de servidão, pelo medo [φόβος] da
morte” (Hb 2,15). Este pode manifestar-se em diversos medos89 que o ser humano tem pela
sua vida. Tal “medo a respeito de si mesmo” [Angst um sich selbst]90 o leva a agir
desumanamente porque o faz se agarrar àquilo que lhe parece prometer preservar sua vida a
qualquer custo. Assim o ser humano se torna chantageável:
Quem somente conhece esse seu ser-entregue-à-morte vive do medo a respeito de si mesmo e busca assegurar-se a todo custo. Esse medo, no entanto, é a raiz de todo egoísmo e de toda desumanidade, de tudo aquilo que se chama em linguagem religiosa de “pecado” [...] Esse medo da morte determina a vida toda do ser humano do início até o fim e se encontra anterior à sua culpa pessoal.91
O medo também pode permanecer “latente” e inconsciente até o momento em que for
retirado da pessoa aquilo em que buscou assegurar sua existência. A tais autoilusões
correspondem, no nível social, as ideologias, sejam de cunho político, religioso, ou seja, de
88 KNAUER. Unseren Glauben, 136. Aqui parece ser propagada uma antropologia cristã muito pessimista que
assim estaria em contraste direto com a euforia religiosa hodierna quanto à capacidade natural do ser humano de chegar a Deus (“muitas crenças e pouca libertação” [LIBANIO] – e menos compreensão ainda). Na verdade, a concepção do homem aqui apresentada é profundamente bíblica, pois especialmente o Antigo Testamento apresenta o ser humano em toda sua ambiguidade e contradição consigo próprio, que resulta na sua tendência de autojustificação [Selbstrechtfertigung], como KNAUER exemplifica, refletindo sobre a história da vinha de Nabot em 1Rs 21,1-16 (cf. IDEM. Unseren Glauben, 123s). Ao mesmo tempo, a pregação cristã adequada demonstra que a consciência humana é inextinguível (cf. IBID., 124s e Rm 7,14-24) o que põe o ser humano diante de Deus em toda sua radical necessidade de redenção [Erlösungsbedürftigkeit]. Para aprofundar uma releitura da doutrina do pecado original na linha do pensamento relacional cf. ANDRADE, BARBARA. Pecado original ... ou graça do pecado?. São Paulo: Paulus, 2007.
89 KNAUER diferencia no conceito do medo [Angst] (1) uma função positiva de alerta a perigos e (2) sua perversão quando o medo pela própria vida passa a dominar o pensar e agir do ser humano. (cf. KNAUER. Der Glaube, 22.
90 Trata-se do medo que o ser humano tem em torno de sua própria pessoa, pela sua vida. Tanto nas referidas edições em espanhol e português de Unseren Glauben traduzem “miedo por si [uno] mesmo” e “angústia” ou “temor por si mesmo” (cf. IDEM. Para comprender nuestra fe, 152, e IDEM. Para compreender nossa fé, 123.
91 KNAUER. Unseren Glauben, 136s. O autor aqui menciona o exemplo das ditaduras que são “correntes de desencadeamento de chantagem” [Kettenreaktionen der Erpressung]; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 23.
44
cunho econômico. São os falsos ídolos e messianismos de hoje.92 Enquanto nos tranquilizam
diante dos perigos globais que enfrentamos, cimentam a alienação do ser humano. Assim
utilizam sutilmente o poder do medo, que o ser humano tem pela própria vida, a favor
daqueles que, também iludidos, se beneficiam à custa dos demais.93
Em consequência disso, o ser humano se enrosca em si mesmo. Tal autoinsistência
“tem a estrutura de morte e de sua camuflagem por mentira e novamente de morte para que a
mentira não seja descoberta”.94 Toda violência é fruto desse círculo vicioso que leva a
autojustificação de tal forma que sempre se acusa o outro (Gn 3,9-13 e Mt 12,24-27). Pela
pregação cristã, esse dinamismo não é desculpado, mas desmascarado. Não se trata de um
apelo meramente moral,95 mas sim de recordar ao ser humano a sua capacidade de distinguir o
bem do mal (sua “responsabilidade ética” [sittliche Ansprechbarkeit]). Esse é o “nexo”
[Anknüpfungspunkt] que a mensagem cristã pressupõe no ser humano e sem o qual ela e a fé
não poderiam ser entendidas em sua pretensão libertadora.
No ser dominado pelo poder do medo da morte consiste a “necessidade de redenção”
[Erlösungsbedürftigkeit], do ser humano. Pois, por si só, ele não pode chegar a uma certeza
maior que sua própria morte:
A redenção de um tal ser-entregue-à-morte sem esperança, segundo a carta aos Hebreus, consiste na mudança radical de sentido da morte inaugurada por Cristo à fé, tal como somente é possível para Deus. Pela morte de Cristo a morte deixou de ser aquele muro escuro que separa o homem de Deus. Desse modo, para a fé, não é mais a morte a palavra última e definitiva sobre o ser humano, e sim Deus. A fé como a autocomunicação de Deus é uma nova certeza que ela mesma relativiza a certeza incondicional da morte, e por isso também liberta da coerção de buscar realização terrena a absolutamente qualquer custo. Doravante pecado só é possível por abstração da fé.96
92 Cf. ROSSI, LUIZ ALEXANDRE S. Messianismo e modernidade. Repensando o messianismo a partir das vítimas.
São Paulo: Paulus, 2002; cf. tb. KNAUER. Die Dollaraufschrift. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/greenback.pdf>. Acesso em: 19 out. 2009, e IDEM. Der Glaube, 23. O autor, nesse contexto, faz referência à interpretação de Lutero ao primeiro mandamento.
93 Cf. FREIRE, PAULO. Pedagogia do oprimido. 5.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, 29-31. Além da pertinência básica da análise antropológica de FREIRE da situação de injustiça social ainda hoje, o autor impressiona por muitos paralelos por assim dizer “anônimos” a uma teologia-da-palavra (cf. KOSUBEK, MICHAEL. Mit Armen Von Gott reden: Befreiende Evangelisierung in Fortaleza und im Kaiserlei. Monografia de graduação. Entegue à Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen, Fankfurt a.M./Alemanha em nov. 1993 [não publicada]).
94 KNAUER. Der Glaube, 22. O autor cita Jo 8,44 no contexto. 95 Cf. IDEM. Unseren Glauben, 137. 96 KNAUER. Erbsünde als Todesverfallenheit, 156.
45
O confronto com a mensagem cristã por meio da prática de sua proclamação (na sua
dimensão profética) tem a força de desiludir o ser humano, desvendar suas máscaras de medo
porque sua palavra transmite uma certeza maior do que a morte. É importante diferenciar bem
com KNAUER em que consiste de fato essa libertação: somos libertados do poder do medo a
respeito de nós próprios, porque a “fé não tira o medo, mas o destitui de poder
[entmachtet]”;97 ele deixa de ter domínio sobre nós. Essa afirmação, no entanto, exige como
seu pressuposto que Deus seja, de fato, “o poderoso em tudo”.98 Dessa maneira a mensagem
cristã pretende nos levar à nossa verdadeira humanidade que consiste em “fazer jus à
realidade” agindo de acordo com suas exigências, o que é mediado pela nossa consciência.99
Mas isso não quer logo dizer que deixamos de sentir medo como mostra a experiência
do autor com a criança. Se a fé nos capacita e assim encoraja a agir humanamente, então, em
meio a um ambiente marcado pela injustiça, tal engajamento em favor da justiça pode
acarretar até mais medo do que se sentia antes:
É possível que um cristão seja ameaçado justamente por causa de sua liberdade de tal forma que talvez seja metido em medo mais do que outros. Mas a fé, então, é uma certeza ainda maior que faz persistir. Assim, a fé destitui o medo; a ele não confere mais a última palavra. A fé faz “preparar-se para o medo” [angsbereit]. Tem-se a coragem de se expor a situações que causam medo.100
Em todo caso, na fé a morte deixa de dizer a última palavra sobre a nossa existência.
Esta emerge, então, em sua verdadeira originalidade que consiste no nosso ser assumido no
amor do Pai ao Filho que é o Espírito Santo, nosso “ser criado em Cristo”, desde o início de
nossa vida. Para preservar sua incondicionalidade, esse “saber-se amado” há de ser
comunicado ao ser humano de fora do mundo, há de ser “sobredito” [dazugesagt]101 a ele por
meio de uma palavra cuja verdade não se confunda com as certezas sempre ambíguas ou
penúltimas e que tem sua medida sempre e apenas no próprio mundo.
97 KNAUER. Kurze Einfürung in den christlichen Glauben. 98 “Der in allem Mächtige“. KNAUER. Der Glaube, 32 e IDEM. Unseren Glauben, 14. O termo é básico e ocorre
sempre, também na forma adverbial, porque se distingue de uma compreensão meramente potencial da onipotência divina. Seu significado se entende somente numa concepção relacional (cf. cap. II/4.5).
99 Cf. KNAUER. Der Glaube, 88; cf. tb. IDEM. Kurze Einführung in den christlichen Glauben. 100 KNAUER. Unseren Glauben, 137. 101 KNAUER. Der Glaube, 207; cf. tb. IDEM. Kurze Einführung in den christlichen Glauben. O termo é utilizado
pelo autor no sentido da Palavra de Deus advir ao ser humano “de fora” de sua condição criatural (cf. IDEM. Der Glaube, 224) e justamente não no sentido de um “acrescentar para completar” como é seu uso coloquial. Pois não se pode afirmar de um lado “que a fé advém de fora de nós” (IDEM. Unseren Glauben, 13) sem que houvesse a condição ontológica anterior de poder ecoar (ser ouvido no sentido de ser acolhido) dentro do ser humano pelo fato (de fé) de seu “ser criado em Cristo”.
46
3 CONCLUSÃO: RESUMO E PONTO DE PARTIDA METODOLÓGICO PARA A COMPREENSÃO DA FÉ CRISTÃ
À guisa de resumo, apresenta-se, antes, a correlação intrínseca de Deus, palavra e fé
bastante ressaltada na obra de KNAUER (3.1). Dessa correlação resulta o ponto de partida para
a compreensão sistemática da fé pelo qual o autor define praticamente toda a questão
metodológica de uma maneira muito simples (3.2).
3.1 Resumo: a correlação “Deus – palavra – fé”
Introduzimos o autor como um teólogo na contramão da teologia fundamental clássica
e de uma tendência forte na teologia contemporânea que, em sua reflexão, parte da
experiência religiosa como referência para saber de Deus. Ao contrário delas, KNAUER
concebe, como categoria fundamental na compreensão da fé, a mensagem cristã em sua
afirmação de ser “palavra de Deus”. Mais ainda, é intuição própria do autor considerar a
mensagem cristã sempre e principalmente (porque epistemologicamente) no caminho da
contramão da “autocompreensão” [Selbstverständnis] convencional do ser humano. Em sua
pretensão de ser literalmente “palavra” que vem “de Deus” (porque afirma que somente nela
Deus vem à palavra), ela vê a si mesma como o “vinho novo”. Este, para ser preservado
naquilo que pretende ser enquanto autocomunicação de Deus, exige “odres novos”, uma
“conversão da pré-compreensão” humana. Tal compreensão nova a mensagem cristã mesma
traz consigo.
Esta pré-compreensão, assim é de se temer, desde sempre representa um dos obstáculos maiores para a compreensibilidade [Verstehbarkeit] e a transmissão da fé cristã. A história da recepção do cristianismo emerge em grande parte como a história da tentativa de sempre de novo despejar o vinho novo nos odres velhos, custe o que custar. [...] Mas na fé em Jesus Cristo se trata de conversão que abrange tudo, também a própria pré-compreensão. Somente a partir daí a mensagem cristã pode ter efeito redentor e libertador.102
No intuito de familiarizar o leitor previamente com a compreensão que KNAUER tem
da fé cristã de forma geral, procurou-se vislumbrar algumas implicações principais. Na fé se
trata do ser incondicional e assim gratuitamente amado por Deus. Por isso, sua certeza
[Gewissheit] de destituir de poder o medo da morte não pode ter sua “medida” na condição
humana e na do mundo em sua principal “questionabilidade” [Fraglichkeit]. Uma certeza
102 KNAUER. „Wort Gottes” als Grundkategorie.
47
absoluta não pode ser “legível no mundo” [an der Welt ablesbar].103 Ninguém a pode ter a
partir de si mesma ou inventar por conta própria. Ela precisa ser comunicada em uma palavra.
Ela provém do “ouvir”.
Que na fé se trata unicamente de nossa comunhão com Deus só é compreensível se,
antes, este vier à linguagem por meio da proclamação da mensagem cristã que se afirma como
palavra de Deus. “Mas só pelo fato de que esta mensagem faz tal afirmação ainda não é
conhecida sua verdade”104 – justamente porque a mensagem mesma alega não ser trivialmente
[auto]evidente. Por outro lado, “se esta palavra é verdadeira, só se pode tratar de uma palavra
de Deus”.105 Essa afirmação repõe a problemática do termo: quem deve ser “Deus”?
Essa pergunta por “Deus”, por sua vez, também não pode ser respondida previamente
por referência sem mais ao que emerge como trivialmente evidente ao ser humano. Por conta
própria, o ser humano só chega a uma caricatura de Deus, nunca a Deus. Se a certeza
inabalável da fé só pode ser garantida por referência desta a Deus, então, em Deus há de se
tratar de uma realidade que seja inconfundível com a realidade mundana. De fato, a
mensagem cristã afirma Deus ser “incompreensível”.106 Então, também a questão de Deus,
apesar da mensagem cristã pressupor ser objeto da razão, não pode ser respondida
coerentemente senão por uma ontologia relacional, unicamente capaz de salvaguardar tal
“incompreensibilidade” de Deus. Parece que de Deus só se pode falar corretamente à medida
que ele vier à palavra, fizer-se linguagem. Daí que surge a pergunta como atribuir uma
palavra a Deus se este não pode ser confundido com uma realidade mundana? De fato, a
mensagem cristã afirma uma relação de Deus ao mundo por referência a uma relação anterior,
eterna, de Deus a Deus, do Pai ao Filho na qual o mundo é assumido.
Em todo caso se manifesta previamente a correlação intrínseca entre Deus, palavra e fé
pelo fato de que nem Deus, nem a palavra enquanto sua, e nem a fé se evidenciam por aquilo
que o ser humano pode saber por conta própria. Daí surge a pergunta como evitar o fideísmo
se a fé parece implicar não ter pressuposto algum acessível à razão humana?
103 KNAUER. Der Glaube, 331; cf. tb. IDEM. Unseren Glauben, 29. 104 IBID., 26 nota 14. 105 GÄDE, GERHARD. Christus in den Religionen. Der christliche Glaube und die Wahrheit der Religionen.
Paderborn: Schöningh, 2003, 109. Em sua abordagem, fiel ao pensamento de KNAUER, o autor parte na apresentação da correlação intrínseca com a sequência Fé – Palavra – Deus, para chegar à sequência Deus – Palavra – Fé, como KNAUER a apresenta de acordo com EBELING (cf. KNAUER. Der Glaube, 205ss). De qualquer jeito, importa ressaltar que o ponto de partida não é a fé em sua certeza pela comunhão com Deus, e sim a palavra da transmissão da fé em sua dimensão histórica, portanto, acessível à razão.
106 Disso resulta, para KNAUER (com referência a SANTO ANSELMO), uma “regra fundamental” nas afirmações de Deus: elas hão de ser compreensíveis num sentido “insuperável” [unüberbietbar] (cf. IDEM. Der Glaube, 18). Ela é apresentada como critério com mais detalhe no cap. II/1.
48
3.2 O ponto de partida metodológico
Somente na fé a fé pode ser acolhida em sua verdade de o ser humano saber-se amado
por Deus. “Em contrapartida, a fé deixa de ser fé quando sua verdade pode ser conhecida
diferentemente do que somente pela fé”.107 Mas o que diferencia a fé de uma ilusão ou
projeção (e assim da acusação de fideísmo) é que a fé só pode ser salvaguardada nesta sua
particularidade porque se refere à palavra (e assim ao “ouvir”) pela qual é mediada e na qual
refere a Deus. KNAUER descarta, logo de início, a opinião de que “se possa, por meio da mera
razão, filosofar-se para dentro da fé”.108
Se, dessa forma, qualquer via apriorística é excluída para o conhecimento de sua
verdade como ponto de partida para a compreensão da fé, há de se remontar simplesmente à
via aposteriori que é o encontro histórico com a mensagem cristã. Este ponto de partida é
aposteriori porque parte de um dado inteiramente acessível à razão: a historicidade da
mensagem cristã em sua afirmação de ser palavra de Deus. Isso significa dizer também que,
como conditio sine qua non para a sua “razoabilidade” [Vernunftgemäßheit] com a razão
humana, ela refere ao seu caráter histórico de transmissão da fé.
Toda tentativa de entender a fé a partir de uma iniciativa propriamente humana, no
sentido de um esforço anterior à escuta da mensagem cristã, apenas confirma o ser humano
em sua tendência de enquadrar todas as coisas em seu próprio horizonte de conhecimento.
Essa realidade, que abrange o próprio processo de compreender a fé, somente por meio do
confronto com a mensagem cristã, vem à tona. E, somente na retrospectiva da acolhida da
palavra na fé, sua alternativa é conhecida como verdadeira.
Por conseguinte, também o ponto de partida metodológico, unicamente adequado para
a reflexão teológica, há de ser a consideração da mensagem cristã a partir de sua facticidade
histórica que é a prática de sua proclamação. Assim, KNAUER explica que a tentativa de
107 KNAUER. Verantwortung des Glaubens, V. As diversas objeções contra o pensamento relacional de KNAUER,
assim nos parece, se concentram na contestação da particular fidedignidade da fé destacada, levada a cabo por ele, e daí da relação assimétrica da fé com a razão, porque esta não consegue evidenciar a verdade da fé no seu campo enquanto a fé pretende abrangê-la como palavra última, declarando que isso já é assunto de fé. Isso logo se manifestou mediante debate público entre WALTER KERN e KNAUER por ocasião da recensão de KERN da tese doutoral de KNAUER e de sua contra-resposta: KERN, WALTER; KNAUER, PETER. “Zur Frage der Glaubwürdigkeit der christlichen Offenbarung. Eine Diskussion zwischen Walter Kern SJ, Insbruck und Peter Knauer SJ, Frankfurt/M.”. In: ZKTh (1971) 418-436 (recensão de KERN: 418-428; resposta de KNAUER: 429-436). As acusações são diversas (fideísmo, aporia por argumentação tautológica, abstração da realidade etc.). KNAUER mesmo reconduz as reações por vezes polêmicas e raivosas em debates à indisponibilidade desses teólogos de revisar criticamente seu próprio discurso (cf. IDEM. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 65.
108 KNAUER. Fundamentaltheologische Erhellung, 183.
49
elucidar a mensagem cristã a outra pessoa há de começar por demonstrar que o ponto de
partida não é o outro sem mais, e sim apenas porque é um desde já interpelado pela
mensagem cristã.
Assim vale dizer que toda teologia cristã e particularmente a teologia fundamental pode começar adequadamente [sachgemäß] somente pelo fato de que se é confrontado faticamente desde já com o anúncio cristão. Qualquer outra tentativa significaria a programação prévia de mal-entendidos.
109
Por meio do encontro histórico com a mensagem cristã, seu interlocutor é confrontado
com sua pretensão de verdade de ser palavra de Deus. De acordo com KNAUER, isso requer de
seu ouvinte, como pressuposto metodológico, apenas a capacidade de linguagem, de “ouvir”:
“Do lado da razão apenas se pressupõe que não possam ser admitidas contradições lógicas
quaisquer”.110 Por “razão” KNAUER entende justamente o “trato [Umgang] responsável com a
própria realidade no sentido mais abrangente”,111 contrariando assim uma compreensão
reducionista porque só cognitivista.
No sentido da ciência, isso implica princípios do pensar como o da não-contradição
que, por natureza, levantam pretensão de validade universal. Mas, em artigo recente, KNAUER
alega “a pretensão de universalidade da razão consiste menos em quaisquer princípios
universais do pensar do que antes primeiramente no fato de que universalmente para seu uso
são necessários atenção e cautela”.112
Os demais pressupostos para a fé na razão humana, numa doutrina das praeambula
fidei reformulada, como KNAUER explicita no reconhecimento da criaturalidade do ser
humano e sua “responsabilidade ética”,113 não formam aqui o ponto de partida para a
compreensão da fé. Apesar de serem acessíveis à razão independentemente da fé, são
compreendidos enquanto tais apenas em subsequência ao encontro com a mensagem cristã.
Pressupõe-se, em resumo, apenas o fato de ter sido confrontado com a mensagem
cristã à qual apenas se pode dirigir a pergunta de compreensão se se aceita previamente a
exigência da lógica formal vinculada à linguagem humana: não se admite proferimentos
autocontraditórios. Dessa maneira, o autor reforça o caráter universal da proclamação da
109 KNAUER. „Natürliche Gotteserkenntnis” (grifo do autor). 110 KNAUER. Der Glaube, 17. 111 KNAUER. Was die öffentliche Prüfung aushalten kann, 19. Trata-se, nesse contexto sempre da “razão natural”
[natürliche Vernunft] ou “mera razão” [blosse Vernunft] à medida que KNAUER refere ao conhecimento dela em abstração do conhecimento da fé.
112 KNAUER. “Vernunft – Naturwissenschaften – christlicher Glaube“. In: Studia Bobolanum 4 (2008) 21. 113 Cf. KNAUER. Der Glaube, 337.
50
mensagem cristã, que, em função da salvação de todos, pede ouvido a todos.
Metodologicamente falando, isso significa dizer que KNAUER se põe na perspectiva de quem
se defronta com a mensagem cristã pela primeira vez.114 O autor ainda ressalta que, em função
da compreensibilidade universal da fé, é requisito para o teólogo usar uma linguagem simples.
O desenvolvimento sistemático da compreensão da fé se volta, portanto, ao termo
“palavra de Deus”, apontado como em si problemático senão contraditório. “Palavra” e
“Deus” surgem como categorias aparentemente incompatíveis. Como é a própria mensagem
cristã que provoca essa percepção quando retamente apresentada, os passos metodológicos
seguem sua exigência de compreensão: quem diz ter palavra de Deus há de se dar conta antes
de quem deve ser “Deus” do qual pretende ter uma palavra (cap. II). Somente depois, levanta-
se a pergunta: como se pode atribuir uma “palavra” a Deus (cap. III).
114 Já SANTO ANSELMO desenvolve, no Proslogion e também em Cur Deus homo, sua argumentação sola
ratione a partir da perspectiva de um ateu fictício. GÄDE, GERHARD. “Die Rolle der ‚ratio‘ bei der Glaubensveratwortung im Denken Anselms von Canterbury”. In: BROSE, THOMAS (Org.). Religionsphilosophie. Europäische Denker zwischen philosophischer Theologie und Religionskritik. Würzburg: Echter, 9-36, mostra por referência ao debate com GAUNILO DE MARMOUTIERS que ANSELMO assim encarou a possibilidade de pensar a não-existência de Deus de forma consequente e metódica por remontar ao método dialógico inclusive. Knauer diferencia mais ainda entre “três tempos” quanto à condição previa do ser humano (1) antes de ser confrontado com a mensagem cristã, (2) antes de concordar com a fé e (3) depois de acolher a fé como verdadeira (cf. IDEM. Der Glaube, 341ss, especialmente 344).
51
CAPÍTULO II
O SIGNIFICADO DA PALAVRA “DEUS”: RECONHECER O SER CRIADO DO MUNDO
POR MEIO DE UMA CONCEPÇÃO RELACIONAL DO SER
INTRODUÇÃO
No intuito de ser entendida – e isso significa sempre de forma coerente e assim
responsável –, a fé se remete à mensagem cristã como seu fundamento. Esta só pode ser
fundementada perante e em consonância com a razão mesmo se não se evidencia nela, nem
sequer pode ser projetada por ela. Também na epocalidade moderna e pós-moderna “razão”
sempre quer dizer “razão autônoma” e por isso crítica.1 Em todo caso, sempre há de se partir
do evento histórico da proclamação cristã. Pelo confronto fático com ela, toma-se
conhecimento (empiricamente constatável) de sua pretensão de verdade que é de ser palavra
de Deus. Doravante, entender a fé significa fundamentar tal pretensão de validade. Quem
afirma ter uma palavra que vem de Deus, consequentemente, há de prestar conta
primeiramente de como entende o termo “Deus”.
Em contrapartida à tendência própria (“inata”) do ser humano de enquadrar o termo
“Deus” nas categorias de compreensão que lhe são próprias (as da linguagem humana em seu
uso referente à sua realidade mundana), a mensagem cristã alerta para o fato de que Deus é
“incompreensível”. Falar de Deus “coerente” ou “adequadamente”2 rompe os nossos
1 Cf. a respeito das razões de fundo do surgimento da “razão moderna” sempre referida de forma
representativa à Crítica da razão pura de IMMANUEL KANT e que também formam a plataforma para a teologia moderna OLIVEIRA, MANFREDO ARAÚJO DE. Filosofia transcendental e Religião. Ensaio sobre a Filosofia da Religião em Karl Rahner. São Paulo: Loyola, 1984, 9s e todo o cap. I dessa obra. Prescindimos, neste trabalho, de uma apresentação mais explícita de toda a reviravolta antropocêntrica da modernidade que deslocou o pensamento sobre Deus do cosmo à subjetividade, porque nada de novo acrescenta à problemática da “questão de Deus” da forma como é levantada por KNAUER. Este contempla em sua crítica ao pensamento metafísico-substancialista todas as abordagens incapazes de dar conta da palavra “Deus” por partirem de pressupostos falsos. Entretanto, parece-nos que os dois autores estão de acordo quanto ao reconhecimento da autonomia da razão humana como instância última de juízo e de conhecimento próprios do ser humano. Cf. KNAUER. Der Glaube, 386ss, especialmente 387, nota 619 e 391, nota 624. Cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 933.968. Nesse contexto, cabe lembrar que o ateísmo moderno para KNAUER não forma uma referência quase que apologética como teologia latino-americana frequentemente supunha ser o “horizonte” das discussões da teologia européia. Antes, KNAUER vê no fenômeno do ateísmo um espelho crítico para todas aquelas caricaturas de Deus que o próprio cristianismo, ao longo de sua história, criou (cf. sua referência a GS 19 em Der Glaube, 71, nota 78).
2 Os dois termos são cambiáveis porque “adequado” (sachgemäß) para KNAUER não quer dizer “mais ou menos cabível”, mas precisamente “livre de contradição” e assim “de acordo com a pretensão de verdade” da mensagem crista (não evidente à razão, autoevidente na fé) em função da fundamentação da fé. Neste contexto é unicamente “adequado” (1) levantar a “pergunta por Deus” no contexto da proclamação cristã histórica e (2) como questão primeira a ser feita em função da compreensão de “palavra de Deus” (cf., p. ex.,
52
esquemas de compreensão. Como já assinalado no capítulo anterior, esta exige uma conversão
também no pensar (Mc 2,22). Ela se manifesta numa concepção relacional do ser que introduz
um uso inédito da linguagem humana.3
Parece evidente que “de Deus” não se pode falar da mesma forma como se fala das
coisas do mundo. Pois aparentemente as religiões, ao venerar cada qual o seu “deus”,
concebem-no como uma realidade suprema, superior à nossa, que ultrapassa nossa capacidade
de apreensão.4 Isso, porém, geralmente serve de pretexto para não se defrontar com o
problema de como falar de Deus coerentemente, o problema da “inconcebilidade” de Deus.
Ou logo se faz referência à possibilidade de revelação ou se procura esquivar do confronto
alegando que se trate de “mistério”.5
Por essa razão, o ponto de partida metodológico para a fundamentação da mensagem
cristã há de ser o simples encontro histórico com ela. Enfim, é ela mesma que adverte que sua
verdade, a autocomunicação de Deus por meio de uma palavra humana, seja trivialmente
compreensível ou evidenciável pela razão humana em seu próprio horizonte de conhecimento.
Quaisquer outras concepções metodológicas de se iniciar a fundamentação teológica são
comprovadamente secundárias e se justificam apenas em consequência daquela aqui
apresentada.6
IDEM. Hermeneutische Fundamentaltheologie, 73; IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 182; IDEM. Der Heilige Geist – Garant der Wahrheit und Einheit, 3; cf. tb. IDEM. „Natürliche Gotteserkenntnis”, e IDEM. Der Glaube, 20).
3 A respeito do discurso análogo cf. II/4. Desde já seja esclarecido que não basta apenas constatar que a linguagem da fé é sempre analógica. Há de se compreender o discurso análogo “adequadamente” de forma relacional e não como uma fala inevitavelmente insuficiente e parcial de Deus como nos advém desde a “teologia fundamental clássica” (cf. KNAUER. Hermeneutische Fundamentaltheologie, 73).
4 Cf. KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 313. Há de se distinguir entre o que denominamos de “Deus” e o que pode apenas ser o nome por um ídolo, pois “nem tudo que se denomina de ‘deus’ é Deus” (KNAUER. Dollaraufschrift. Disponível em: <www.jesuiten.org/peter.knauer/greenback.pdf>. Acesso em: 26 out. 2009). Nesse sentido “deus” é uma “fórmula vazia” [Leerformel]. Com referência a LUTERO (seu comentário ao primeiro mandamento do Decálogo em seu “Catecismo Maior” de 1529) e EBELING (cf. tb. KNAUER. Der Glaube, 90, nota 105), o autor explica que é inevitável cada um ter seu ‘deus’. Por um ‘deus’ se entende aquilo a que se agarra a todo custo, e a que se refugia em situação de emergência, porque dele se espera proteção ou garantia existenciais. O critério de uma fala coerente de Deus coincide com o critério de distinção entre “Deus” e “deus” (um mero ídolo). Nesse ponto consiste um elo de diálogo com a teologia latino-americana a respeito de sua reflexão sobre idolatria, mesmo se alguns de seus representantes não vinculam os dois eixos (cf., p.ex., GUTIÉRREZ, GUSTAVO. O Deus da vida. São Paulo: Loyola, 75).
5 Cf. KNAUER. Hermeneutische Fundamentaltheologie, 73s. Quanto à concepção corriqueira de mistério como algo incompreensível, até enigmático, é o oposto da compreensão cristã de mistério tal como KNAUER a apresenta referindo também a JÜNGEL, EBERHARD, Gott als Geheimnis der Welt, 341. Apud: KNAUER. Der Glaube, 114 e III/1 deste trabalho.
6 Cf. a crítica de KNAUER à teologia fundamental clássica com sua concepção da doutrina das praeambula fidei (à base de seu consentimento com a crítica de EBELING) em IDEM. Verantwortung des Glaubens, 1-4.
53
Através deste começo gostaria de contradizer à opinião que uma teologia fundamental haja de principiar adequadamente com o fato que o ser humano pergunta por uma explicação do mundo a partir de si mesmo e nisso se defronta com Deus, e então chegue a pensar que esse Deus possa ter se revelado e por isso seja necessário olhar por uma eventual revelação.7
KNAUER alega, por referência à teologia fundamental clássica, que (ainda hoje)
geralmente se entra na reflexão teológica logo “com o pé esquerdo” ou irreparavelmente
errado, pressupondo, de alguma forma, a evidência do fato ou da possibilidade de uma
revelação divina. Supõe-se que uma vez evidenciada a existência de Deus, a possibilidade,
plausibilidade ou até a probabilidade de Deus se revelar não seria mais negável.8
Desse jeito, porém, logo se comprometeu todo projeto de fundamentação teológica da
fé daí em diante, porque já se corromperam “razoabilidade” [Vernunftgemäßheit] e
“fidedignidade” [Glaubenswürdigkeit] da própria mensagem cristã: para que Deus precisaria
se revelar ainda, se o ser humano já pode chegar a conhecer tal possibilidade por conta
própria? Ao contrário, o ponto de partida histórico,9 averiguável pela razão, é a única garantia
de a mensagem cristã poder dar conta da particularidade de sua verdade que é mediada pela
história, pela linguagem humana, mas não se origina nela. Pois, já a palavra “Deus”, de
imediato, não corresponde a nenhuma experiência empiricamente comprovável. E, caso isso
seja afirmado mesmo assim, a própria mensagem cristã recorre à razão humana para contestá-
lo. Daí que surge com necessidade lógica a primeira pergunta a ser tratada: o significado da
palavra “Deus”.
Esta pergunta há de ser logicamente colocada antes do que aquela donde o outro sabe que ele realmente tem palavra de Deus. E ela há de preceder à pergunta pela existência desse Deus. Pois antes que eu possa perguntar se Deus de fato existe, tenho que chegar a um acordo sobre quem ele deve ser. Portanto, irei interrogar primordialmente a mensagem cristã mesma pela sua compreensão de Deus.10
7 KNAUER. Der Heilige Geist – Garant der Wahrheit und Einheit, 3. Nesse sentido, começar a fundamentação
da fé pela pergunta por quem é “Deus” é consequência da percepção de KNAUER que é constitutivo para a pertinência desta pergunta, bem como para sua resposta “adequada” o evento histórico da proclamação da mensagem cristã com sua pretensão de revelação.
8 KNAUER. Glaubensbegründung heute, 202s. 9 Nisso KNAUER defende uma metodologia consequentemente aposteriori. Para tal, o autor se inspira na
importância da “historicidade” [Geschichtlichkeit] da fé em EBELING. A mensagem cristã está irremediavelmente referida à existência concreta do ser humano e de sua realidade mundana, de tal forma que não lhe é permitido partir de algum outro pressuposto.
10 KNAUER. „Wort Gottes“ als Grundkategorie des Christentums. A citação é paradigmática pela abordagem de KNAUER ao respeito. E igualmente notória é a resistência de tantos interlocutores que ignoram a anterioridade lógica desta pergunta de partida de toda fundamentação.
54
Aqui vale ressaltar, em analogia ao anteriormente dito sobre o ponto de partida geral
da reflexão teológica fundamental (cap. I), que primordialmente o termo “Deus” escapa de
uma acepção trivial. Também no decorrer da fundamentação da palavra de Deus diante do
“fórum” da razão humana, a mensagem cristã reclama ser perguntada antes de se projetar nela
as categorias nossas, sejam elas antropológicas, históricas ou filosóficas. Estas são sempre e
inescapavelmente “pré-conceitos” que moldam nossas “pré-compreensões”. Estas enquadram
a mensagem cristã em horizontes hermenêuticos rompidos por ela desde seu princípio. Por
essa razão, segundo KNAUER, somente se levanta a pergunta por “Deus” de forma adequada à
medida do ser confrontado com a mensagem cristã (sua pretensão de verdade), pois “a uma
imagem clarificada [geläutert] de Deus originalmente se chegou apenas por meio da
revelação”.11
O esforço intelectual requerido em seguida acontece em função da distinção
fundamental de “uma ordem dupla de conhecimento”, razão natural e fé divina, como
KNAUER explicita noutro contexto referindo ao Vaticano I (DH 3015).12 O Concílio afirma
que as duas não se distinguem apenas no “princípio” de conhecimento e sim também no seu
“objeto”. Enquanto a razão está voltada à realidade do mundo em sua criaturalidade natural, a
fé (por confiar no sentido da auoentrega constituída por Deus e por isso sobrenatural) chega a
conhecer a autocomunicação de Deus a este mesmo mundo, “para crermos mistérios
encobertos em Deus, os quais não chegariam ao conhecimento se não fossem revelados” (DH
3015).
Antecipa-se sua referência aqui para alertar sobre a distinção fundamental
correspondente entre a fala da palavra “Deus” e da fala de “palavra de Deus”. A primeira
acontece em função da segunda e é por ela pressuposta: sem esclarecer como a mensagem
cristã entende o termo “Deus”, é impossível conceber sua pretensão de verdade própria de
“palavra de Deus”. Pois ocorre que já a palavra “Deus” encerra em si aparente impedimento
de seu uso coerente que é a afirmação escriturística e tradicional de sua “inconcebilidade”
11 KNAUER. Dialektik und Relation, 54. Na nota de rodapé n. 1 o autor interpreta o texto do Vaticano I a
respeito da necessidade da revelação (DH 3005) nesse sentido: chegar ao conhecimento da existência de Deus junto a outras verdades metafísicas não é principalmente inacessível à razão, “mas de fato não podiam ser alcançadas sem influência da revelação”. Cf. tb. IDEM. Welchen Sinn hat das Wort “Gott“ im christlichen Glauben?, 322. Nota-se que o termo “revelação“ aqui é empregado no sentido da mera facticidade da pregação cristã e não no sentido do reconhecimento de sua verdade de ser revelação divina! Nos escritos posteriores KNAUER fala quase exclusivamente da pregação ou proclamação cristã, remetendo ao seu caráter histórico perceptível independentemente da fé.
12 Cf. KNAUER. Der Glaube, 361, no contexto da abordagem sobre a significância de milagres para a corroboração da fé; cf. tb. IBID. 141. 211; com mais detalhes em IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 856-858.
55
(II/1). Em resposta, a própria mensagem cristã se refere à ordem do conhecimento da razão
natural, no sentido do reconhecimento de toda realidade nossa em seu ser criado,
compreensível de forma consistente somente por meio de uma concepção relacional do ser
(II/2). Enquanto afirmação da razão, essa há de ser principalmente comprovável. Pois apenas
depois de entender a proposição da criaturalidade do mundo em seu ser referido a Deus, pode-
se perguntar pela necessidade de explicar o mundo (II/3).13 A reformulação do significado do
nosso ser criado em resposta a quem é Deus pela “ontologia relacional” implica o uso análogo
da linguagem humana de forma correspondentemente inédita, uma analogia
consequentemente unilateral (II/4). Como resultado do itinerário reflexivo na contramão da
corrente principal da teologia (não só) contemporânea, consta a conclusão mais provocativa
ainda, de que tal conhecimento de “Deus” por meio da razão humana, na verdade, emerge, à
primeira vista, como argumento maior contra a fala de “palavra de Deus”. Mesmo se tal
constatação não seja confortável, porque Deus é conhecido apenas no modo de sua ausência, a
mensagem cristã há de pressupor todo esse horizonte criatural para poder explicar-se à base
deste como “Evangelho”, o ser abordado do ser humano amorosamente por Deus por meio de
sua palavra (II/5).
1 PORQUE A PALAVRA “DEUS” É PROBLEMÁTICA: A MENSAGEM CRISTÃ AFIRMA DEUS SER INCONCEBÍVEL
Antes mesmo de tratar da questão se Deus existe e como se pode ter uma palavra
dele, é preciso que se esclareça o que a mensagem cristã entende pelo conceito “Deus”.
“Seria, na sequência do pensar, um erro grave que tudo escurece se se quisesse perguntar
primeiro se ele [Deus] de fato existe”.14 Um conceito de Deus é necessário em função da
razoabilidade da palavra de Deus. Isso significa dizer que, anterior à acolhida da mensagem
13 Essa “tese da criaturalidade” de KNAUER, especialmente a afirmação de que é comprovável, se tornou no
decorrer de seu magistério a que mais provocou rejeição, inclusive bastante polêmica, na comunidade acadêmica teológica. No entanto, para ela, o autor refere-se explicitamente à afirmação do CONCÍLIO
VATICANO I (DH 3004): “A mesma santa mãe Igreja mantém e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido seguramente pela luz da razão natural e por meio das coisas criadas; ‘pois o invisível nele é concebido pelo intelecto desde a criação do mundo por tudo que é feito’ [Rm 1,20]” (tradução nossa sob consulta da tradução portuguesa do DENZINGER-HÜNERMANN: cf. DENZINGER, HEINRICH. Compendio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. Tradução, com base na 40.ed. alemã (2005), aos cuidados de PETER HÜNERMANN, por Jose Marino Luz e Johan Konings. São Paulo: Loyola, 2007. Cf. tb. KNAUER. Der Glaube, 28.
14 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbestimmung „Gott ...“, 313.
56
cristã pela fé, ela deve prestar conta do significado do termo “Deus”. Se isso não fosse
possível de forma consistente, a fé já não mereceria mais credibilidade nenhuma, e a busca de
fundamentá-la já haveria de ser abortada nesse ponto.
Não se pode pretender falar de “Deus” sem ter clareza do significado do termo. E ter
clareza do termo exige poder compreender seu sentido anterior à acolhida crente da fé, a
“adesão à fé” [Glaubenszustimmung]. Sem resposta “todo falar piedoso a mais fica solto no
ar”.15 É dessa maneira que a teologia, na compreensão da questão de “Deus”, encontra-se
diante de um dilema.16
Mais uma vez há de se ressaltar com KNAUER que é a própria mensagem cristã que
problematiza o termo “Deus”.17 Pois, no interior de sua tradição escriturística e magisterial,
sempre se defendeu que Deus “habita uma luz inacessível” (1Tm 6,16), que “ninguém jamais
viu Deus” (Jo 1,18 e o.), que, por isso, é “incompreensível” – o que quer dizer
“inconcebível”,18 e até “inefável”.19 Toda tradição judaico-cristã, inclusive no Novo
Testamento, na patrística e na escolástica (ao menos), sempre se preocupou em preservar o ser
absoluto de Deus de forma mais explícita. Considerar Deus como inconcebível significa para
KNAUER que ele não pode ser subordinado, submetido ou “sujeito” às categorias (sempre
linguísticas, por isso conceituais) pelas quais abordamos a nossa realidade: “Deus [...] não se 15 KNAUER. “Wort Gottes” als Grundkategorie, 276. 16 Nas publicações teológicas mais recentes constata-se certa percepção do problema metodológico-
epistemológico, mas que não é levada a cabo no desenvolvimento da reflexão teológica como, p.ex., em RUBIO, ALFONSO GARCÍA, Elementos de Antropologia Teológica. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2004, 41: “Deus não pode ser medido ou definido mediante os nossos conceitos e imagens!”. No entanto, esta pista aberta pelo autor logo é deixada de lado ao ater-se apenas ao “conceito cristão” que, segundo ele, supõe a evidência da autorevelação de Deus em Jesus Cristo.
17 A teologia levanta a “questão de Deus” a partir do confronto fático com a mensagem cristã no contexto de sua pretensão de verdade de ser palavra de Deus. Isto leva à crítica da especulação filosófica sobre Deus (cf. KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 70), seja no âmbito teológico seja propriamente filosófico. Essa crítica, longe de ignorar sua importância, consiste basicamente em contestar (1) que a filosofia possa ter, por conta própria, a última palavra de Deus e assim (2) responder definitivamente às questões últimas a respeito do mundo e do ser humano (cf. IDEM. Verantwortung des Glaubens, 136s). À parte do confronto com a mensagem cristã a pergunta por Deus não pode ser levantada coerentemente a não ser no sentido de sua “questionabilidade” (IBID., 27).
18 Em seguida, traduz-se o termo “unbegreiflich” por “inconcebível”, para vinculá-lo à raiz etimológica de “conceito” [Begriff] e evitar o mal-entendido de “incompreensível” no sentido de que seria impossível entender o termo “Deus”. KNAUER aqui pode jogar com as palavras quando levanta a questão como se pode ter um “conceito” de Deus se ele é considerado “inconcebível”, pois ambos os termos têm a mesma raiz. Com isso refere ao paradoxo de se precisar de um conceito de Deus embora Deus mesmo não possa ser submetido a nenhum conceito.
19 Assim já consta no IV CONCÍLIO DE LATRÃO (DH 800) e na Constituição dogmática Dei Filius do CONCÍLIO
VATICANO I sobre o Deus-Criador. Após referir aos seus atributos enquanto ser uno, simples e imutável se formula que ele “é para ser anunciado como sendo diferente do mundo quanto ao objeto [res] e à essência, em si e por si beatíssimo, e inefavelmente soberano sobre tudo que está fora dele e [é] possível de ser pensado” [et super omnia, quae praeter ipsum sunt et concipi possunt, ineffabiliter excelsus]”. DH 3001, grifo nosso).
57
subordina ao[s] [nossos] conceito[s]”.20 Subordinar alguma coisa ao seu conceito significa
abrangê-la e apreendê-la por meio da linguagem de tal forma que daí se pode investigar tais
realidades para analisá-las e tirar conclusões sobre suas características e suas relações mútuas.
Nesse sentido, Deus é, de fato, “incompreensível” porque não é apreensível por algum
conceito.21
O ser humano adquire conhecimento sobre sua realidade, seu “ser”, à medida que ele a
conceitua, situa-a dentro de seu horizonte linguístico, a põe diante de si, a “objetiva”. “Deus”,
porém, simplesmente não pode ser “nem ponto de partida, nem objeto, nem resultado de
conclusões”.22 Isso não é uma questão de método, e sim de princípio. Pois, se fosse possível
concluir do nosso conhecimento o que quer dizer “Deus”, este se tornaria parte de nossa
realidade. Seu “ser” convergiria com o ser do mundo de alguma maneira, ao menos seria
subsumido ao nosso conceito de ser em detrimento à sua inconcebilidade.
Acontece, no entanto, que, para poder dizer quem é “Deus”, precisa-se de um
conceito. O teólogo não pode esquivar-se do problema evitando o esforço em torno do
conceito.23 Não pode “queimar etapas” desviando ou amenizando a radicalidade da questão. É
o que acontece, por exemplo, quando se diz que nosso conhecimento de Deus é apenas
20 KNAUER. Der Glaube, 28.59. Literalmente haveria de se traduzir a expressão “Gott fällt nicht unter [unsere]
Begriffe” por “Deus não cai debaixo de [nossos] conceitos” como consta na tradução espanhola: “El mismo no ‘cae bajo’ nuestras categorías de la realidad”; IDEM. Para comprender nuestra fé, 33; cf. tb. IBID., 40 e 50 e IDEM. Teología fundamental hermenêutica, 161ss: “Dios no ‘cae bajo’ nuestros conceptos”. O termo concretiza a definição anselmiana e se visualiza na figura 1 na p. 65.
21 Nesse sentido Deus não é “conceituável”. Mas também não se pode simplesmente afirmar sua “inconceitualidade” sem incorrer no mesmo perigo de mal-entender o termo como o da “incompreensibilidade” (cf. p. 13, nota 3 da introdução geral a este trabalho).
22 KNAUER. Fundamentaltheologie im Koran, 12, nota 5 e IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 38. No contexto KNAUER defende ANSELMO do mal-entendido de que ele pretenderia concluir de sua definição de Deus a sua existência, quando é justamente isto que ANSELMO refuta.
23 A conclusão de LUDWIG WITTGENSTEIN, “do que não se pode falar, há de se calar” (IDEM. Tractatus Logico-philosophicus. 3.ed. Londres: Routlege, 1960,188. Apud: KNAUER. Der Glaube, 27, nota 17), a respeito da fala da inconcebilidade de Deus não se impõe. Tampouco o comentário de HANS ALBERT a WITTGENSTEIN de que sua afirmação acaba liberando um falar arbitrário de Deus (cf. IDEM. Traktat über kritische Vernunft. 3.ed. Tübingen: Mohr, 1975, 11. Apud: KNAUER. Der Glaube, 27, nota 17). KNAUER mesmo acolhe no racionalismo crítico de ALBERT sua busca ativa por contradições em qualquer afirmação. A pretensão universal de “validade do princípio metódico da contradição excluída” (KNAUER. Theologische Gedanken zum kritischen Rationalismus. in: IPh (2/ 1976) 2), o próprio ALBERT não pode negar. Mas à acusação de ALBERT, de que a teologia, como qualquer iniciativa de fundamentação última, não resista ao “trilema de Münchhausen”, e assim seja uma “tabuização” no sentido de uma “estratégia de imunização” diante de críticas, KNAUER responde que a teologia se propõe a responder a todas as acusações no campo da própria razão, e assim até defende o emprego da razão crítica (cf. IBID., 4 e tb. IDEM. Der Glaube, 43, nota 43).
58
parcial. Mas em Deus não pode haver partes.24 Ou se afirma que nosso conhecimento de Deus
é apenas aproximativo. No entanto, a inconcebilidade de Deus não pode ser simplesmente
diminuída.25
Na pior das hipóteses, cai-se numa postura fideísta ao se afirmar que Deus é
incompreensível porque é “mistério”, ou que logo exige um ato de fé. A essa opinião hoje se
vincula cada vez mais uma posição subjetivista que rejeita qualquer conhecimento cognitivo
ou “racional” de Deus. Dessa maneira, conhecimento de Deus deixa de ser mediado pela
linguagem humana para se basear em determinadas “experiências”, “emoções” ou
“percepções” inefáveis. Mas Deus não é “experimentável” como qualquer experiência nossa.
Tais afirmações, geralmente pronunciadas por motivos de piedade, acabam causando o
contrário: diluem a afirmação radical da “inconcebilidade” de Deus, supondo algum tipo de
deficiência em nossa linguagem quando se trata de falar de Deus. Mas, no discurso de Deus,
não pode haver meio-termos. Por isso, tais suposições não resistem ao questionamento da
razão, porque não são capazes de indicar um critério refutável de validade de sua verdade ou
fonte de conhecimento.26 Nesse contexto, KNAUER situa a crítica da religião pelo ateísmo
moderno em sua pertinência de desmascarar discursos falsamente piedosos porque falam
equivocadamente de Deus. Mas, dessa justamente maneira, não são mais compreensíveis
como fala de “Deus”. “Pois diante de como se fala de Deus se decide se realmente é de Deus
que se fala”.27
Mas como, então, se pode obter um conceito de “Deus” se Deus não é subordinável a
um conceito? A resposta a essa questão só pode ser dada de forma consistente, segundo
KNAUER, por meio de uma concepção relacional do ser que de Deus apenas conhece o que é
diferente dele, mas que a ele remete constitutivamente. Para isso, ele resgata a doutrina da
criação mediante a intuição de SANTO ANSELMO em sua busca de um pensar coerente de
24 Cf. KNAUER. Unseren Glauben, 22. 25 Cf. KNAUER. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 45. 26 Para KNAUER, indicar uma alternativa, através da qual o próprio argumento pode ser refutado, é critério de
que não se trata de uma “estratégia de imunização” diante de crítica qualquer. A ela o autor recorre quanto à sua prova da criaturalidade (cf. II/3), mas se torna o argumento dele contra acusação de fideísmo (cf. IDEM. Der Glaube, 354).
27 EBELING, GERHARD. Wort und Glaube. 3.ed. Tübingen, 1968, 374. Apud: KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 17 (grifo do autor). Em sua tese doutoral, KNAUER trabalha de acordo com EBELING os abusos na fala de Deus que desembocam em discurso idolátrico, associando a fala pseudopiedosa ao discurso ateísta, porque “ambas deixam o mundo ser a-teísta [gottlos] e Deus sem [referência ao] mundo [weltlos]” (IBID., 19).
59
Deus, sobretudo mediante sua obra Proslogion.28 Também ela implica uma concepção
relacional do ser porque ANSELMO mostra que negar a existência de Deus leva a uma
afirmação que anula a si mesma.29 Desse modo, ele “define” Deus antes como “quem nada
maior pode ser pensado”.30 Contrário ao que talvez possa implicar, isso não significa que
Deus realmente seja o ser maior possível de ser pensado pela razão humana (a imagem
errônea de um “ser supremo”). Não existe um horizonte ôntico que abrangesse Deus e o
mundo sem conceituar Deus inevitavelmente pelo mesmo conceito do ser do mundo (cf.
figura 1 na p. 65).
Ao contrário, KNAUER entende que ANSELMO nada mais quer dizer com isso de que
“Deus e mundo juntos não podem ser mais do que Deus”31 porque, com relação a Deus, nada
maior pode ser pensado – o que seria o caso de um conceito do ser que abrangesse Deus e o
mundo. O problema de fundo aqui em jogo é de como articular “mundo” e “Deus” em sua
28 Cf. KNAUER. Der Glaube, 18 (especialmente nota 5), 22ss e 59s. O autor vincula a importância do
pensamento anselmiano de Deus ao seu próprio pensamento pelo fato da descoberta que todas as afirmações de Deus hão de ser construídas e consideradas como insuperáveis – ou não são proposições que falam de Deus. Há duas razões para isto: (1) porque se fala de Deus apenas quando alguma coisa está referida somente a ele, de forma constitutiva, e não também a outra coisa e (2) porque somente proposições dessa característica não subordinam Deus ao conceito, e sim exigem que seja definido como “maior do que se pode pensar”. Este theologoumenon que, no entanto, é de natureza filosófica, desconstrói definitivamente todas as tentativas de conceber Deus previamente como um ser cognoscível à parte da afirmação do nosso ser criado. Por isso ele é destacado aqui logo no início do capítulo. Doravante, quem busca pensar de Deus retamente só encontra saída para um discurso coerente de Deus numa concepção relacional do ser, porque não pode mais situar Deus na esfera do conhecimento de nossa realidade abrangida pelos nossos conceitos. A totalidade da diferença ou distinção formal e material entre ser do mundo e um suposto ser de Deus é afirmada pelo Concílio Vaticano I (cf. DH 3015).
29 Cf. cap. I, p. 49s e o artigo referido na nota 114 deste trabalho, GÄDE, GERHARD. Die Rolle der Ratio, 9–36. Cf. tb. A introdução de KURT FLASCH à disputa de ANSELMO com GAUNILO onde aplica o argumento in: MOJSISCH, BURKHARD (ORG.). Kann Gottes Nicht-Sein gedacht werden?. Die Kontroverse zwischen Anselm von Canterbury und Gaunilo von Marmoutiers. Kempten: excertpta classica, 1989, 7-48. Em sua introdução (IBID., 7-48), KURT FLASCH resume o famoso “argumento ontológico” (KANT) em sua ousadia de comprovar a autocontradição da afirmação de que Deus não existe (pois para contestar a afirmação da existência de Deus há de se supor uma ideia de quem é Deus, ou seja, sempre se supõe necessariamente um ser para além do qual nada maior pode ser pensado). A suspeita de racionalismo na recepção do argumento de ANSELMO levou, na modernidade, a uma estilização religiosa ou re-interpretação fideísta (“religiöse Stilisierung” e “fideistische Anselm-Umdeutung”, IBID., 12s; o autor refere explicitamente a KARL BARTH e ANSELM
STOLZ). 30 “Quo nihil maius cogitari possit”. SANTO ANSELMO DE CANTUÁRIA, Proslogion. n. 2. Apud: KNAUER. Der
Glaube, 18, nota 5. Essa afirmação tornou-se referência padrão quando se fala da definição anselmiana de Deus na comunidade teológica. KNAUER. Der Glaube, 59, a chama de “ainda imperfeita” [noch unvollkommen]. Para ele trata-se nessa definição de ANSELMO de uma afirmação sobre o mundo em relação a Deus e não em abstração da realidade mundana (cf. IBID., 59s). Embora ANSELMO propriamente não desenvolva explicitamente uma ontologia relacional, somente através dela pode ser coerentemente compreendido. Pois sua argumentação estritamente lógica no debate com GAUNILO DE MARMOUTIERS, que o não-ser de Deus é necessariamente impensável, só faz sentido se tem seu fundamento ontológico no ser do mundo que não pode ser pensado sem constitutivamente ser referido a Deus. Nesse sentido, alega KNAUER, ANSELMO não define conceitos, mas fornece avisos hermenêuticos para pensar corretamente com relação a Deus (cf. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 188-191).
31 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott“ ..., 320.
60
diferença e em seu nexo um com outro, sem que “Deus” seja concebido como realidade
previamente (e assim independentemente do mundo) concebível. É, segundo KNAUER, a
questão básica de toda a teologia.
Na concepção convencional substancialista, pensa-se o nexo entre realidade mundana
e divina como campos no mínimo tangentes ou até parcialmente congruentes. Em
consequência do pensamento metafísico-substancialista, (1) criaturalidade só pode ser
pensada como atributo acrescentado ao ser do mundo (cf. em baixo), e (2) Deus e mundo só
podem ser pensados de forma aditiva como um “a mais” (= o conceito do ser) do que Deus
sozinho. “E o mundo pode [...] não ser pensado de uma maneira que ele é acrescentado a Deus
aditivamente, como se Deus e mundo juntos fossem mais do que Deus sozinho”.32
Aqui, porém, se parte com ANSELMO da distinção fundamental e insuperável entre as
duas realidades de tal forma que somente “Deus” há de ser considerado mais fundamental
ainda. Pois, como nada maior que Deus pode ser pensado, este não se subordina aos conceitos
pelos quais compreendemos a realidade mundana. Sendo assim, na verdade, ANSELMO não
faz uma afirmação sobre Deus, e sim sobre o mundo na totalidade de seu ser. Este, de fato,
pode ser pensado, porém não sem referir-se a Deus em todo seu ser.
No entanto, somente pela explicitação dessa compreensão que ANSELMO dá em
Proslogion n. 15, situa-se Deus consequentemente para além do horizonte do ser e do pensar
da razão humana (e assim longe de toda tentativa de “conceituar” Deus): em contexto de
oração aí afirma que Deus não é somente além de quem nada maior pode ser pensado, e sim é
“maior que se pode pensar”.33 Aqui também vale ressaltar que, contrário ao que se possa
concluir, isso não quer dizer que seja impossível pensar “Deus” de forma alguma e com isso
não ter conhecimento consistente de Deus.
Em contrapartida, KNAUER interpreta essa precisão da definição anselmiana de Deus
no sentido (1) de verdadeira e única preservação possível da transcendência absoluta de Deus,
porque Deus não pode ser captado ou apreendido em nenhum conceito (ele não está “sob”
algum conceito) e (2) que, por isso mesmo, de Deus somente se pode falar num sentido
32 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 8. 33 “Quiddam maius quam cogitari possit”. ANSELMO, Proslogion, n. 15. Apud: KNAUER. Der Glaube, 18 e 59.
Também a Encíclica Fides et Ratio de João Paulo II cita a frase, inclusive em seu contexto maior (cf. FR 14).
61
insuperável. Todas as afirmações, tanto na filosofia quanto na teologia, têm essa estrutura da
“insuperabilidade” [Unüberbietbarkeit], hão de falar de forma referente a Deus num sentido
último, por afirmações que não podem ser mais superadas por outras maiores.34
Surge daí a pergunta de como se pode ainda falar de Deus então? De que maneira há
de se falar de Deus se este não pode ser ponto de partida, nem resultado de nossas
especulações racionais? Ora, se não se pode falar de Deus “a partir de Deus”, é óbvio que se
há de falar de Deus “a partir do mundo”. Mas como isso deve ser viável se Deus (1) não
emerge como objeto, se não é objetivável e se (2), com essa definição anselmiana, não se
pode mais admitir nenhuma mistura entre o ser do mundo e o ser de Deus?35
2 “SER CRIADO DO NADA” EM RESPOSTA À PERGUNTA POR “DEUS”: COMPREENSÃO RELACIONAL DO SER
Novamente, KNAUER remete à própria mensagem cristã para dela obter uma resposta.
E novamente esta adverte o ser humano de que ele não pode partir de nenhuma concepção
prévia, de nenhum pressuposto lógico sobre Deus,36 caso não queira incorrer em contradição
consigo mesmo. Pois a mensagem cristã justamente não requer do ser humano uma adesão
cega à fé como um tipo de “salto” para dentro da graça que se equipara a um pulo de cima de
uma rocha sem saber em que se vai bater. Dessa forma, a adesão à fé careceria de qualquer
plataforma responsável.
Além disso, a fé perderia a possibilidade de ser distinta de pseudofé ou superstição,
que, como todas as concepções equívocas de Deus, “sempre são apenas autoprojeções
[Selbstprojektionen] humanas e [que] desembocam em idolatração ou deificação do mundo
[Weltvergötterung]”.37 Trata-se de confundir alguma realidade própria nossa com que se
supõe ser “Deus” (Sb 13,2-4).38
34 Cf. KNAUER. Der Glaube, 18 e IDEM. Unseren Glauben, 22. Cf. tb. a explicação da figura da insuperabilidade
em: IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 194. Sobre o discurso análogo aqui insinuado cf. II/4. 35 Na realidade, ANSELMO forma aqui uma plataforma de diálogo com a religião judaica e muçulmana que com
seu monoteísmo monolítico reforçam justamente o resgate do ser absoluto de Deus. Por outro lado, ANSELMO radicaliza a relação entre mundo e Deus sem incorrer no perigo de separar o mundo de Deus. Pois seu intuito é justamente afirmar que não é possível pensar o mundo sem Deus (cf. nota 143 na p. 59 deste trabalho).
36 Cf. KNAUER. Der Sinn des Wortes „Gott“ im christlichen Glauben, 326. 37 KNAUER. Unseren Glauben, 21.28 e IDEM. Der Glaube, 90. Cf. também nota 118 na p. 52 deste trabalho. 38 A referência ao livro da Sabedoria sustenta a constante referência que KNAUER faz à essa ilusão do ser
humano da qual somente a fé liberta (cf., p. ex., IDEM. Unseren Glauben, 28). Esta concepção irracional de Deus se deve à inclinação própria do ser humano de se agarrar a qualquer coisa deste mundo – seja por fascínio (Sb 13,3), seja por assombração (Sb 13,4) – para compensar o medo da morte, que assim exerce seu domínio sobre o ser humano, levando-o à prática da injustiça. Nisso consiste mais uma ponte de diálogo entre
62
Portanto, a fé pressupõe “que já com a razão natural se possa entender o significado da
palavra ‘Deus’” porque “a fé apenas se refere à palavra de Deus, [ao] nosso ser abordado por
Deus e com isso [à] nossa comunhão com Deus”.39 Para falar de Deus, eis o paradoxo, não se
pode pressupor nenhum conceito prévio. Enquanto isso, a mensagem cristã, por sua vez,
remonta ao nosso “ser criado do nada”, à nossa “criaturalidade” [Geschöpflichkeit] como
“via” do conhecimento de Deus. Para dizer quem é Deus, “não podemos como que deixar
para trás nosso ser criado ao concluir do nosso ser criado a Deus, mas temos de ficar, por
assim dizer, sempre “no carpete” de nosso ser criado. Não há uma ‘elevação’ a Deus”.40
Isso sempre acontece quando se inverte a ordem do pensar de Deus pressupondo a
necessidade de antes evidenciar ou tornar previamente “plausível” a existência de Deus:
Somente no chão de um pensamento de Deus filosoficamente demonstrado pode-se fazer plausível que o mundo e sua peculiaridade mais profunda, junto a toda a humanidade, há de ser compreendida como criação, e somente sob este pressuposto há boas razões, então, que Deus aja continuamente na história do mundo e da humanidade.41
Acontece, porém, que “nós não sabemos primeiro quem é Deus para depois poder
dizer que é ele quem também criou o mundo”.42
Enquanto isso, justamente ao referir ao mundo como ser criado por Deus, emerge uma
compreensão bastante mitologizada ainda: não é exatamente pelo discurso da criação que se
fala de Deus de forma antropomórfica, tal como se ele fizesse parte do mundo, um ser
superior ao ser humano, mas, ainda assim, semelhante à sua criatura. E não é isso mesmo que
Gn 1,26 afirma – que somos criados “à sua semelhança”?!
o pensamento de KNAUER e a TdL que ressalta enfaticamente o problema da injustiça [social] ser, no fundo, expressão de uma prática idolátrica (cf. ASSMANN, HUGO & HINKELAMMERT, FRANS-JOSEF. A idolatria do mercado. Petrópolis: Vozes, 1989; SUNG, JUNG MO. Teologia & Economia. Repensando a teologia da libertação e utopias. Petrópolis: Vozes, 1994; e ROSSI, LUIZ ALEXANDRE SOLANO. Messianismo e modernidade. Repensando o messianismo a partir das vítimas. São Paulo: Paulus, 2002. Assim se supera a falsa justaposição frequentemente feita entre idolatria e ateísmo moderno, sendo o primeiro problema próprio do “Terceiro Mundo”, enquanto o segundo expressa supostamente a problemática específica do “Primeiro Mundo”. A “pós-modernidade”, na qual se fundiram globalização econômica e cultural com o retorno do religioso e certo neopaganismo, tornou este nexo mais óbvio ainda.
39 KNAUER. Unseren Glauben, 21. 40 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 315s. 41 PANNENBERG, WOLFHART. “Eine philosophisch-historische Hermeneutik des Christentums”. in: NEUNER,
PETER; WAGNER, HARALD (ORG.). Verantwortung für den Glauben. Beiträge zur Fundamentaltheologie und Ökumenik (Festschrift Heinrich Fries). Freiburg-Basel-Wien: Herder, 1992, 40. Apud: KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ..., 313. Cf. tb. a resenha de KNAUER a este artigo de PANNENBERG in ThPh 69 (1994) 308-310.
42 KNAUER. Der Glaube, 41, e parecido em IDEM. Unseren Glauben, 28.
63
Por essa razão, KNAUER problematiza antes os termos em questão: qual é, a partir da
mensagem cristã, o verdadeiro sentido da afirmação de que “o mundo é criado do nada”? O
discurso cristão do [nosso] ser criado do nada só se compreende coerentemente por meio de
uma “ontologia relacional” (2.1). Segundo KNAUER, é próprio da ontologia relacional contar
com a possibilidade de haver uma relação constitutiva para uma substância.43 Tal concepção
relacional do ser, no entanto, só se aplica ao mundo em seu ser relacionado a Deus (2.2).
Dessa forma, o pensamento ontológico-relacional assume aqui também função de
“desmitologização” [Entmythologisierung]44 dos discursos míticos da criação muito
difundidos especialmente em ambiente católico.
2.1 O que quer dizer “ser criado do nada”?
Para falar de Deus, a mensagem cristã, desde toda sua herança judaica, remete ao
discurso da criação, fala do mundo como ser criado por Deus – e ser criado “de nenhum ente”
(2Mc 7,28). E ela pressupõe que o ser criado é objeto de conhecimento próprio da razão
humana – mesmo se tal conhecimento emerge como consistente em si apenas por meio do
confronto com ela: “De fato, desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, tais
como o seu poder eterno e sua divindade, podem ser contempladas, por meio da inteligência,
nas obras que ele realizou” (Rm 1,20).45
Mas, o que a expressão “ser criado do nada” quer dizer mesmo, sem que se incorra
em nenhum equívoco daqueles acima referidos? Pois, de imediato, tanto o termo do “nada”
como o do “ser criado” causam dificuldades de compreensão racional (coerente/lógica)
referente a Deus. Logo podem desembocar em concepções criacionistas46 que inevitavelmente
43 IBID., 36, especialmente nota 32. O autor não usa o termo de forma inflacionária, antes prefere sua distinção
ao pensamento convencional de uma “metafísica substancial” [Substanzmetaphysik]. 44 Toda afirmação que subordina Deus ao conceito mistura Deus e mundo. É isso que BULTMANN define como
“mitológico”. Nesse sentido, seu método da “desmitologização” não é apenas hermenêutico-bíblico e sim hermenêutico-fundamental. É recebido por KNAUER seguindo EBELING nesse sentido amplo: “A possibilidade e necessidade de tal desmitologização é mesmo idêntica à possibilidade e necessidade de teologia em geral” (KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 49; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 138, nota181).
45 Enquanto São Paulo parece se inspirar em Sb 13,1s (“são naturalmente insensatos todos os homens que ignoram a Deus e que, através dos bens visíveis, não chegam a reconhecer Aquele que existe”) é o já citado texto do CONCÍLIO VATICANO I, DH 3004 (cf. nota 127 na p. 55 deste trabalho).
46 O criacionismo concebe Deus como causa eficaz [Wirkursache] direta (“física”) do mundo (cf. a argumentação de KNAUER até mesmo contra a pertinência do princípio metafísico da causalidade como explicação do mundo por Deus nas provas clássicas da existência de Deus em IDEM. Dialektik und Relation, 56-64). Pela influência do ex-presidente dos EUA, W. Bush, a concepção criaconista e neocriacionista do “planejamento/design inteligente” [intelligent design] de explicar o mundo retornou a ser assunto em sala de aula da educação escolar nos EUA e até no Brasil (cf.
64
entram em choque com as hipóteses e os modelos científicos da origem e da evolução do
universo pelas ciências da natureza (como a astronomia, a física quântica e a matemática).
São tentativas de deduzir o mundo de Deus o qual acaba numa “fórmula geral de explicação
do mundo” [Weltformel]. Ver-se-á, em seguida, que “uma dedução tal carece de qualquer
base ontológica”.47
Para a mensagem cristã, ambos os modelos, tanto o criacionsimo quanto o
evolucionismo não formam uma alternativa porque partem de pressupostos falsos: o
criacionismo porque reduz Deus a uma causa mundana (mesmo se “última”) num modelo
pretensamente científico, enquanto o evolucionismo confunde o início do mundo com o
princípio metafísico do ser do mundo inclusive na busca de uma “fórmula universal e
explicativa do mundo”. E mesmo se a astrofísica puder comprovar um dia que o universo
carece de um início temporal, ou a bioquímica que o surgimento da vida orgânica é produto
do acaso, o que vale dizer, alega KNAUER, é que “tudo isso não pode ser sem Deus”.48
Antes é o conceito “do nada” que emerge como algo inimaginável, pois o nada “é” o
que não existe – uma contradição em si. Além disso, sugere-se um momento (temporal) no
qual “nada” existia ainda e depois “algo” veio a existir. Assim, Deus apenas teria criado o
início do mundo para depois deixá-lo tomar conta de si mesmo. Essa é a concepção deísta da
criação que concebe Deus como um relojoeiro que apenas dá o “ponta-pé” para a existência
do mundo o qual continua “funcionando” independentemente de Deus.49 Ou então,
espontaneamente, associa-se um “espaço” vazio – já não seria mais “nada” (!) – no qual Deus
coloca “do nada” (entendido como “de nenhuma matéria”) suas criaturas.
Em contrapartida, KNAUER sugere compreender o termo de forma muito mais
radical.50 “Ser criado do nada” quer dizer que em tudo aquilo, em todos os aspectos de seu
ser, em que o mundo se distingue do “nada” (do não-ser51), ele é criado. Por isso, ele substitui
o “do nada” pela expressão positiva de “inteiramente” ou “totalmente” [restlos]: Daí que
<http://www.comciencia.br/200407/reportagens/10.shtml>. Acesso em 10 out. 2009) – obviamente para combater ou sobrepujar modelos evolucionistas.
47 KNAUER. Zu Gerhard Ebelings „Das Wesen des christlichen Glaubens“; cf. também IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 188. O erro comum de todas essas concepções equívocas é de argumentar com o conceito de Deus (cf. em baixo p. 88).
48 KNAUER. Unseren Glauben, 26 49 Cf. IDEM. Der Glaube, 73s. 50 Em seguida cf. KNAUER. Unseren Glauben, 25. 51 Parece ser mesmo esse o sentido pressuposto na afirmação de conforto que a mãe quer dar ao seu filho a ser
martirizado em 2Mc 7,28. Pois somente se pode saber sempre nas mãos de Deus se nossa dependência dele for total, que nos devemos a ele completamente em toda a nossa existência.
65
“somos ‘totalmente’ criados”.52 Ser criado é sempre ser criado do nada. “Ser” e “ser criado”,
por isso, são idênticos, são “uma e a mesma coisa”.53 O “ser criado” não é acrescentado ao ser
do mundo como um acidente à sua substância. “[Se] pudéssemos suspender nosso ser criado,
nada sobraria de nós”,54 mais nada “restaria” do nosso ser. O “totalmente” sempre se refere a
cada realidade concreta em sua dependência total de Deus.
Isto, no sentido da Bíblia, quer dizer ‘ser criado do nada’. Em tudo em que ele [o mundo] se distingue do nada, ele depende de Deus. Deus mesmo está acima de todo tempo; sua eternidade não despedaça em diferentes momentos temporais.55
Depois, também o termo “criação” apresenta dificuldade de compreensão por insinuar
que se trate de uma intervenção de Deus, ou de um processo de “emanação” ou “produção”56
do mundo do ser de Deus, implicando uma relação do tipo causa-efeito.57 Tal imaginação
supõe que o ser de Deus e o ser do mundo convirjam ou se identifiquem ou, ainda, que
tangem em algum sentido ou parcialmente. Mas, dessa forma, iríamos subordinar Deus ao
mesmo conceito do ser do mundo (cf. figura 1). O ser infinito de Deus misturar-se-ia assim
com o ser finito do mundo. Deus deixaria de ser Deus e tornar-se-ia parte do mundo.
Figura 1: Concepção substancialista do ser.
Fonte: KNAUER. Der Glaube, 63 (adaptado). 52 KNAUER. Der Glaube, 25. Em alemão KNAUER utiliza o termo adverbial “restlos” (sem algum resíduo) para
dizer “inteiramente”. Associa-se com isso que o ser criado não é apenas uma entre outras características de nossa existência e sim constitutivo para ela. KNAUER costuma dar o exemplo da árvore que é árvore “sem sobra” exatamente à medida que é criada e fora disso não é (cf. IDEM. Unseren Glauben, 25). Parece que em muitos discursos teológicos e pastorais sobre a criação tende-se a negligenciar ou não tirar a consequência radical – e assim existencial! – dessa afirmação.
53 KNAUER. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 85. 54 KNAUER. Eine Alternative zu „Gott ...“, 314. 55 KNAUER. Der Glaube, 27. 56 Assim até TOMÁS DE AQUINO formula: “Criação é o produzir [productio] de uma coisa no sentido de sua
realidade toda.” (S.th. I q65 a4 c). E ainda: “O emanar [emanatio] de todo o ser de uma causa abrangente, a qual é Deus [...] designamos com o nome ‘criação’.” (S.th. I q45 al c). Apud: KNAUER. Der Glaube, 31, notas 22 e 23 respectivamente. As citações apenas pretendem demonstrar que, também na alta escolástica, formulações relacionais se misturavam com expressões substancialistas.
57 Cf. KNAUER. Dialektik und Relation, 56ss.
66
Mas a relação entre mundo e Deus não é a de uma parte com seu todo, e sim de uma
relação unilateral com seu termo.
A concepção substancialista, ao contrário, introduz variabilidade e mudança no
conceito de “Deus”, a quem a Tradição sempre entendeu como eterno e imutável (DH 3001),
“no qual não há mudança nem sombra de variação” (Tg 1,17). Significa dizer que a
mensagem cristã atribui a Deus as características que o distinguem do nosso ser totalmente.
Nosso pensar sempre se move dentro das categorias de tempo e espaço. A mensagem cristã,
ao dizer que Deus é inconcebível, exige uma concepção de Deus para além dessas categorias
como foi explicitado em cima por referência a SANTO ANSELMO.
Diante dessas incoerências no discurso da criação, KNAUER avalia teologicamente as
duas narrativas da criação em Gn 1,1-2,4a.2,4b-25 naquilo que querem dizer, no fundo, sobre
a nossa realidade.58 Alistando tudo o que existe (aquilo que tinha chegado ao conhecimento
dos autores em sua época e circunstância peculiar) em ordens diferentes, até opostas, ambas
concluem que nada daquilo poderia existir sem Deus.59 Tudo o que existe e acontece está
irremediavelmente referido a Deus, remete a ele de forma constitutiva. Por conseqüência,
KNAUER define Deus como “aquele sem quem nada é”, portanto, necessariamente, “poderoso
em tudo” que acontece.
2.2 Explicitando o “ser criado do nada” como relação real, unilateral e direta
KNAUER pensa o ser criado justamente de forma inversa do que muitos cristãos foram
acostumados a se imaginar por causa de uma tradição catequética do mero reproduzir e
decorar, de esquema “pergunta e resposta”, e não de uma catequese compreensiva. E, de
forma mais camuflada e intelectualizada, também em nível teológico geralmente se parte de
concepções da criação que supõem algum tipo de agir divino ou “iniciativa divina”, sem se
58 Cf. KNAUER. Unseren Glauben, 23. Aqui o autor permite um acesso didaticamente mais fácil à dificuldade
de compreensão em questão. Ao constatar a contradição óbvia entre as duas narrações pela inversão da ordem ou sequência das coisas criadas, pergunta-se como se haveria de narrar a criação hoje. Nisso alega que a ordem que se dá depende do próprio ponto de vista do narrador dentro do seu contexto, mas de um ou de outro jeito iria alistar tudo de que sabe que existe para dizer que está referido a Deus de forma constitutiva: sem ele, não poderia existir. Cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 55-72. Nela, KNAUER aprofunda numa análise estrutural em estilo de contemplação exegética as narrativas da criação no livro de Gênesis, justamente para concluir que o sentido teológico dos textos é afirmar que tudo que existe é “razão de nosso falar de Deus” (IBID., slide 73).
59 É interessante observar que repassada a pergunta do “Gedankenexperiment” aos alunos (cf. KNAUER. Unseren Glauben, 23) na disciplina da teologia fundamental em Fortaleza (antes de ler o texto!), sobre como eles iriam proceder se tivessem que fazer um “relato da criação”, todos procederam mais ou menos deste modo: cada um enumerava as coisas do mundo em ordem correspondente à sua percepção para depois dizer: “foi Deus que fez tudo isso” ou “não existiria se não fosse Deus”.
67
dar conta de que isso exige um conhecimento prévio de Deus. Mas, para preservar o ser
absoluto de Deus, jamais se pode partir de Deus para entender o discurso da criação. Portanto,
não é partindo do Criador que se chega à afirmação de nosso ser criado, e sim o inverso:
partindo de nossa realidade, conclui-se ao seu ser criado para assim chegar a reconhecer seu
Criador como “aquele sem quem nada é”.
Para ter um acesso mais fácil à compreensão relacional que KNAUER desenvolve
explicitamente em seguida, basta contemplar as implicações no próprio conceito do ser
criado: a da diferença entre criatura e criador e a da relação da criatura ao Criador, uma
relação de “dependência” e de dependência “total” como já visto em cima. Essa relação,
agora, não pode partir de Deus porque não há possibilidade de um conhecimento a priori de
Deus. Se Deus há de ser situado para além dos nossos conceitos a relação, por meio da qual se
afirma ter conhecimento de Deus como criador, tal relação há de ser concebida
consequentemente a partir do mundo e exige reconhecimento de diferença total entre criatura
e Criador.
No esforço de compreender as realidades mundanas em suas relações sempre
reconhecemos sua reciprocidade, pois pressupõem, desde já, a existência das coisas em si
mesmas. Isso significa dizer que “naturalmente” se trabalha com uma concepção metafísico-
substancial do ser com relação ao conhecimento da realidade mundana em suas características
próprias. Tal “metafísica substancial” [Substanzmetaphysik] ou “ontologia substancial”
[Substanzontologie] pressupõe a existência prévia das coisas para depois pô-las em relação
uma com a outra, seja qual for a complexidade da realidade analisada (cf. figura 2).
Figura 2: Modelo convencional de relação – subsequente à substância.
Fonte: KNAUER. Der Glaube, 35.
Mas essa concepção do ser não serve para ser aplicada à relação “entre” o mundo e
“Deus” porque não se pode partir de alguma realidade divina previamente dada (e conhecida)
à afirmação do nosso ser criado por tal “Deus”, na qual a relação é concebida como algo “em
meio” a mundo e Deus. Consequentemente há de se ficar do lado do mundo e concebê-lo
coincidente com a referência que o mundo faz a quem não pode ser conhecido previamente,
senão por meio de tal relação ôntica (cf. figura 3).
Figura 3: Modelo ontológico
Fonte: KNAUER. Der Glaube
Nesse caso, é a relação
ontológico. Ser e ser relacionado fundem em
não pode existir “nada”. Trata
ou “subsistente”.
Pela “ontologia relacional”deve atribuiao abstrair da substância subjacente a ele, de tal formadevem ser preferidas de afirmações de essência. Antes se trata de uma relacionalidade que precede à sdo mundo a Deus não é nada com seu portador, o mundo mesmo
Por essa razão, “ser” e “ser criado” do mundo hão de coincidir. O “do nada” só
significa que tal identidade entre ser e ser relacionado do mundo é total. O mundo
totalidade, só pode ser pensado dessa forma, como um ser totalmente relacionado a “Outr
ao qual se deve inteiramente
dessa maneira pode-se falar de Deus e, ao mesmo tempo, salvaguardar sua inconcebilidade.
Com a fala de um “ser criado do nada” é fundamentada uma ontologia relacional segundo a qual não há relação apenas como algo acrescentado a uma substâncialimitagênero está, antes, noutro modo de relação. Ser criado é uma relação que constitui a substância do criado e assim [é relação] “subsistente”. A substância do mundo é compreendida dianele. A mensagem cristã traz essa prénão é possível, fazer jus à mensagem cristã dentro de uma préapenas conhece relação posterior à subnada” somente numa ontologia relacional se compreende realmente. E sem o reconhecimento de nosso ser criado, todas as demais afirmações referentes a Deus perdem todo sentido.
60 KNAUER. „Natürliche Gotteserkenntnis“61 A fala muito difundida de Deus como o “totalmente Outro” nesse contexto ignora que, anterior à afirmação
de um ser relacionado, não é possível conceber algum “outro” em diferença total de si (cf. a crítica de KNAUER à doutrina de Deus em Glaubens”). Além disso, ainda assim, não seria possível conceber Deus como “outro” no sentido de um “em face de” [Gegenüber].
62 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „
Modelo ontológico-relacional da relação – constitutiva para a substância.
Der Glaube, 35.
e caso, é a relação que confere ser a alguma coisa, constituindo seu
Ser e ser relacionado fundem em uma coisa só. São idênticos. Fora de tal relação
Trata-se de uma relação carregada de ser, uma
Pela “ontologia relacional” aqui reivindicada, portanto, não se quer dizer que se deve atribuir importância dominante a um conceito de relação posterior à substância ao abstrair da substância subjacente a ele, de tal forma,devem ser preferidas de afirmações de essência. Antes se trata de uma relacionalidade que precede à substância onticamente e sódo mundo a Deus não é nada entre o mundo e Deus, mas é completamente idênticocom seu portador, o mundo mesmo.60
Por essa razão, “ser” e “ser criado” do mundo hão de coincidir. O “do nada” só
que tal identidade entre ser e ser relacionado do mundo é total. O mundo
só pode ser pensado dessa forma, como um ser totalmente relacionado a “Outr
ao qual se deve inteiramente e do qual, ao mesmo tempo, se distingue totalmente.
se falar de Deus e, ao mesmo tempo, salvaguardar sua inconcebilidade.
Com a fala de um “ser criado do nada” é fundamentada uma ontologia relacional segundo a qual não há relação apenas como algo acrescentado a uma substâncialimitante de sua autonomia [Selbständigkeit]. À base de todas as relações desse gênero está, antes, noutro modo de relação. Ser criado é uma relação que constitui a substância do criado e assim [é relação] “subsistente”. A substância do mundo é compreendida diante de Deus como identificando-se [aufgehend] ele. A mensagem cristã traz essa pré-compreensão nova consigo. A meu entender, não é possível, fazer jus à mensagem cristã dentro de uma préapenas conhece relação posterior à substância. Pois já a expressão “ser criado do nada” somente numa ontologia relacional se compreende realmente. E sem o reconhecimento de nosso ser criado, todas as demais afirmações referentes a Deus perdem todo sentido.62
„Natürliche Gotteserkenntnis“ (grifo do autor).
A fala muito difundida de Deus como o “totalmente Outro” nesse contexto ignora que, anterior à afirmação de um ser relacionado, não é possível conceber algum “outro” em diferença total de si (cf. a crítica de
à doutrina de Deus em EBELING: IDEM. Zu Gerhard Ebelings „Dogmatik des christlichen Além disso, ainda assim, não seria possível conceber Deus como “outro” no sentido de um “em
Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 315.
68
constitutiva para a substância.
, constituindo seu status
uma coisa só. São idênticos. Fora de tal relação,
se de uma relação carregada de ser, uma “relação substancial”
, portanto, não se quer dizer que se r importância dominante a um conceito de relação posterior à substância
que descrições de função devem ser preferidas de afirmações de essência. Antes se trata de uma
só assim a funda. A relação o mundo e Deus, mas é completamente idêntico
Por essa razão, “ser” e “ser criado” do mundo hão de coincidir. O “do nada” só
que tal identidade entre ser e ser relacionado do mundo é total. O mundo, em sua
só pode ser pensado dessa forma, como um ser totalmente relacionado a “Outro”61
e do qual, ao mesmo tempo, se distingue totalmente. Somente
se falar de Deus e, ao mesmo tempo, salvaguardar sua inconcebilidade.
Com a fala de um “ser criado do nada” é fundamentada uma ontologia relacional segundo a qual não há relação apenas como algo acrescentado a uma substância
nte de sua autonomia [Selbständigkeit]. À base de todas as relações desse gênero está, antes, noutro modo de relação. Ser criado é uma relação que constitui a substância do criado e assim [é relação] “subsistente”. A substância do mundo é
[aufgehend] com a relação a compreensão nova consigo. A meu entender,
não é possível, fazer jus à mensagem cristã dentro de uma pré-compreensão que stância. Pois já a expressão “ser criado do
nada” somente numa ontologia relacional se compreende realmente. E sem o reconhecimento de nosso ser criado, todas as demais afirmações referentes a Deus
A fala muito difundida de Deus como o “totalmente Outro” nesse contexto ignora que, anterior à afirmação de um ser relacionado, não é possível conceber algum “outro” em diferença total de si (cf. a crítica de
Gerhard Ebelings „Dogmatik des christlichen Além disso, ainda assim, não seria possível conceber Deus como “outro” no sentido de um “em
69
Por conseguinte, KNAUER traduz o “ser criado do nada” do mundo pelo termo do “ser
totalmente relacionado a ... / em total diferença de ...”.63 Com os pontinhos, o autor pretende
expressar que o “para-onde” do ser relacionado do mundo não é previamente conhecido, e sim
somente por meio do ser do mundo que em seu ser relacionado remete somente e
constitutivamente ao seu termo.64 Dele só se pode afirmar que é o “para-onde”, ou terminus
ad quem [termo para o qual”]65 ao qual o mundo está referido e sem o qual não poderia
existir. Pois “... como realidade permanecendo totalmente diferente do para-onde da relação, o
[ser] relacionando-se não pode ser, absolutamente, sem seu para-onde”.66 Por isso tal “para-
onde” é o “termo constitutivo” do mundo porque seu “ser relacionado totalmente a ... / em sua
total diferença de ...”, significa exatamente “não poder ser sem”.67
Mas, enquanto normalmente uma relação é conhecida quando antes se conhece seu
para-onde, nesse caso conhece-se o para-onde somente quando se conhece a relação –
precisamente porque, e à medida que, ela é idêntica ao seu “suporte” [Träger]. Dessa forma, a
afirmação do ser criado do nada não é simplesmente uma afirmação sobre a existência do
mundo, e sim sobre a existência do mundo em seu “ser totalmente referido a ... / em total
diferença de ...”, pois se trata de uma relação determinada pelo seu próprio ser referido a, sem
conhecimento prévio de seu termo:
Por exemplo, a palavra ‘meu’ significa que algo pertence a um ‘eu’. Sem um eu não se poderia ter um ‘meu’. Um livro que pertence a mim deixaria de pertencer a mim se eu não existisse mais. Mas mesmo assim ainda sobraria ao menos como um livro, então, sem dono. A relação do ser criado, ao contrário, não se acrescentaria ao ser do mundo, mas seria idêntica com ele [...] Essa relação do ser criado é, então, cheio de toda a realidade do mundo e uma relação em si determinada ainda antes da gente saber por qual para-onde é constituída.68
63 “Restloses Bezogensein auf ... / in restloser Verschiedenheit von ...“. KNAUER. Der Glaube, 27. 64 Cf. KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott...“, 314. 65 KNAUER. Der Glaube, 33, nota 29. Pela referência a esses conceitos da alta escolástica, KNAUER resgata a
nítida consciência da unilateralidade da relação de todo ser criado a Deus por parte de seus representantes mais destacados.
66 IBID., 36. 67 “Pelo conceito do ser totalmente relacionado se quer dizer aqui que algo funde completamente no ‘não poder
ser sem ...’”. KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott...“, 315. Quanto ao conceito do “termo”: “Uma relação é principalmente constituída enquanto relação pelo seu termo, e sem ele ela não é relação” (IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 188).
68 KNAUER. Vernunft – Naturwissenschaften – christlicher Glaube, 24s. Cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 87-89.
70
Por causa da determinação ontológica dessa relação pelo ser referido do mundo ao seu
termo constitutivo, Deus é reconhecido como Deus-Criador. Essa afirmação é uma afirmação
da razão e, enquanto tal, não necessita o recurso à mensagem cristã. Contudo, tal
compreensão relacional do mundo vem a ser provocada a partir do anúncio da mensagem
cristã que a traz consigo.
Em consequência disso, há de se afirmar que todas as demais concepções de Deus
como Criador chegam ao seu termo somente por meio dessa concepção relacional, que a
mensagem cristã pressupõe, para dar a entender quem é “Deus” de quem ela fala.69 Tanto a
compreensão da criaturalidade do mundo, por meio de uma ontologia relacional, quanto a
crítica de outras concepções de criação, cujo erro consiste em recorrer a uma ontologia
substancial, hão de ser necessariamente comprováveis.
Nessa concepção relacional do ser do mundo, sobressai-se seu caráter unilateral. O
próprio autor não deixa de insistir, em todos os seus escritos, em que a relação do mundo a
Deus, de fato, é substancialmente diferente e única (cf. figura 4 em baixo):
Um “ser totalmente relacionado a ... / em total diferença de ...”, contrário a todas as relações intramundanas que sempre incluem alguma reciprocidade, significa, segundo seu conceito, uma relação completamente unilateral.70
Figura 4: Modelo relacional do ser do mundo.
Fonte: KNAUER. Der Glaube, 41 (adaptado). 69 Assim, KNAUER critica, de forma diferenciada, outros modelos de criação, isto é, configurações da relação de
criatura para Criador, resgatando de cada qual seu núcleo de verdade: assim, (1) do “ateísmo” reconhece em sua negação da existência de Deus que este não pode fazer parte do mundo (e que por isso ao mundo confere total autonomia), (2) do “panteísmo” resgata a afirmação de que tudo tem a ver com Deus, o que, porém, não quer dizer logo que tudo “é” Deus, (3) ao “deísmo” dá razão no sentido de que o mundo existe referido a Deus desde seu princípio, mas não somente em referência a um imaginado início temporal (pois mesmo se o universo for infinito em espaço e tempo, não poderia existir por si mesmo, e sim somente em total dependência de outro em cada aspecto e momento de seu existir) e (4) com relação a um “teísmo” filosófico muito difundido em ambiente teológico, salvaguarda sua intuição que o mundo sempre está nas mãos de Deus, no entanto o está de forma total. Este fato contesta a frequente suposição de que se deve contar com intervenções divinas singulares no sentido de interromperem a autonomia relativa do mundo. Cf. IDEM. Der Glaube, 70SS; cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 206-210.
70 KNAUER. „Natürliche Gotteserkenntnis”.
71
A unilateralidade do ser relacionado do mundo ao seu termo constitutivo, “Deus”,
exprime a garantia de que Deus não seja subordinado ao conceito (e com isso deixe de ser
constitutivo para o ser do mundo). Essa característica já está implicada no fato de considerar a
relação do mundo a Deus como um ser totalmente relacionado. Pois isso significa que o
mundo se deve, em toda sua existência, inteiramente a Deus.
Entretanto, a ideia de uma relação substancial e unilateral, na verdade, não é
propriamente uma novidade, como o próprio autor lembra. Em sua reformulação relacional do
significado bíblico do ser criado do nada, KNAUER remete a uma doutrina difundida na alta
escolástica. Nessa época, afirma, tinha-se uma consciência nítida de que o ser absoluto de
Deus só podia ser salvaguardado pela compreensão do mundo como relação “real”
(= substancial) e unilateral ao seu para-onde. Porém, observa KNAUER criticamente em sua
releitura da tradição escolástica, esta não soube tirar as últimas consequências de sua doutrina
de Deus. Sua especulação teológica estava mais preocupada em resgatar apenas o ser absoluto
de Deus para si próprio do que enxergar sua importância para a compreensão da revelação de
Deus.71
Se o mundo se deve ao seu para-onde inteiramente, então, significa que também está
referido a ele unicamente. A relação do mundo a Deus, portanto, é direta e assim imediata
[unmittelbar] e não passa por outras instâncias intermediárias do tipo demiurgo. O mundo não
depende de Deus e, ao mesmo tempo, de mais outro[s] princípio[s] de seu ser. Numa
ontologia relacional, não é possível pensar algum tipo de mistura entre ser criado e ser divino
(incriado), nem uma pluralidade de termos constitutivos, uma pluralidade de deuses. De fato,
o monoteísmo cristão não é um assunto de fé, e sim a consequência lógica de pensar o mundo
como ser criado por causa da totalidade de seu ser relacionado a ... .
A re-significação do ser criado do nada por meio de uma ontologia relacional
inevitavelmente provoca uma série de questionamentos:
No entanto, habitualmente também teologia hodierna não quer, a custo nenhum, saber alguma coisa de uma relação unilateral real do ser criado a Deus. Já o mero pensamento nisso provoca, de acordo com a minha experiência, incompreensão, depois indignação e fechamento.72
71 Cf. KNAUER. Der Glaube, 171, nota 231.199, nota 282; cf. tb. IDEM. Der Sinn des Wortes „Gott“ im
christlichen Glauben, 324s, e IDEM. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 66. Apesar desse esforço na doutrina de Deus na alta escolástica, esta não a pensou em seu significado de empecilho, sim aparente impedimento de afirmar uma relação real de Deus ao mundo.
72 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott...“, 323; cf. tb. IDEM. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 65.
72
Ao mesmo tempo, o próprio pensamento relacional, com suas implicações, dirige
questionamentos sérios à concepção substancialista do ser porque lhe nega a capacidade de
pôr mundo e Deus em relação de forma consistente. A ontologia relacional se choca de frente
com a tendência despercebida por muitos teólogos de encaixar Deus conceitualmente em um
sistema a ele abrangente que integra e assim entrega o ser absoluto de Deus, sua
inconcebilidade. Pois isso significa projetar o modelo de relações recíprocas tipicamente
intramundanas à relação do mundo com Deus e assim incorrer num discurso incoerente de
Deus.73 Além disso, também tem, por conseqüência, negar ao discurso de fé a condição
racional de possibilidade de afirmar a incondicionalidade do amor de Deus por nós. Pois este
só é possível ser pronunciado por meio de uma relação real de autocomunicação de Deus ao
mundo. Mas isso pressupõe que o mundo não possa ser concebido como termo constitutivo de
uma relação real de Deus a ele.
Uma questão remete à autonomia do mundo e à liberdade de Deus: como se pode
afirmar ainda autonomia do mundo diante da compreensão de uma dependência total de Deus
assim? E definir Deus como aquele sem quem nada é não faz de Deus pouca coisa? Tal
pergunta provoca logo outra pergunta a respeito da compreensão da onipotência de Deus: A
Bíblia não afirma que para Deus tudo é possível – basta ele querer (Mc 10,27par. e Lc 1,37,
que parecem recordar Gn 18,14). Deus não é delimitado de forma reducionista quanto ao seu
poder divino? E essa segunda pergunta logo provoca mais outra, por sua vez, vinculada à
primeira sobre a existência do mal: se nada daquilo que existe no mundo poderia ser sem
Deus, então, também o mal não poderia ser sem Deus; mas isso não contradiz a bondade
absoluta de Deus? Deus, portanto, ao menos admite ou até quer o mal? Essas questões serão
retomadas no final deste capítulo, em conclusão à concepção consequente que KNAUER tem
de uma analogia unilateral.
3 É POSSÍVEL COMPROVAR O SER CRIADO?
Até este ponto, KNAUER destaca que ele apenas fez o esforço de esclarecer o
significado do “nosso ser criado do nada” em resposta da mensagem cristã à pergunta por
Deus. Foi visto que, somente a partir do mundo como “ser totalmente relacionado a ... / em
total diferença de ...”, é possível dizer quem é “Deus”. Nessa recondução da afirmação da
criaturalidade do mundo ao seu verdadeiro significado por meio da ontologia relacional,
73 Cf. KNAUER. Der Glaube, 68; cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 126. Uma projeção
sempre pressupõe a existência de relações mútuas.
73
“Deus” é afirmado como Criador por meio do mundo como relação substancial, unilateral e
direta ao seu termo constitutivo, seu para-onde. O para-onde dessa relação real é corretamente
identificado como “Deus”, porque o mundo é seguramente reconhecido no seu “não-poder-
existir-sem-[ele]”. Por isso, Deus é “definido” precisamente como “aquele sem quem nada é”.
Sua transcendência absoluta é salvaguardada porque o termo é uma afirmação sobre o mundo
e não “sobre” Deus. Assim, Deus não é “conceituado”. Querer concluir alguma coisa de Deus
à base desse termo significa voltar-se contra ele.
No entanto, se é assim que o “ser” do mundo e seu “ser criado do nada” são idênticos
e se, ainda mais, o “ser” é objeto de conhecimento próprio da razão humana, conclui-se que
há de ser (necessariamente) possível demonstrar ou “comprovar” essa verdade “natural” da
criaturalidade do mundo como sendo objeto de conhecimento da razão. Trata-se de um
conhecimento natural de Deus porque o ser criado como sendo idêntico ao ser do mundo há
de ser “legível” nele. Por isso, ele se constitui como objeto de conhecimento da razão. E trata-
se de conhecimento natural de Deus porque o mundo existe e, portanto, é conhecido
coerentemente somente enquanto totalmente referido ao seu para-onde, do qual é, ao mesmo
tempo, totalmente diferente. Nossa comunhão com Deus, por sua vez, é objeto de
conhecimento reservado somente à fé.
Na verdade, não se pode querer acolher a concepção teológica de KNAUER apenas da
episteme da fé adentro.74 Ela toda se baseia inseparavelmente na distinção fundamental entre
razão e fé, Lei e Evangelho, natureza e graça. Aqui não se trata de uma ousadia particular de
KNAUER, e sim da audácia do próprio Evangelho de Cristo, que assim se estrutura a si mesmo
por meio da distinção radical entre o que é “do mundo” e o que é “de Deus”.75 Fora de tal
distinção, o amor de Deus por nós não é mais compreensível como incondicional, portanto,
não pode salvar!
O próprio KNAUER alega, antes de tudo, que essa “prova” não representa uma
conclusão lógica da existência do mundo à existência de Deus (que assim acabaria “sob” o
conceito) e sim apenas à dependência total do mundo de seu termo constitutivo. Depois
74 É um valor de experiência da parte de KNAUER no decorrer de seu magistério, confirmado por experiência
própria nossa, que especialmente a prova da criaturalidade do mundo causa mais estranhamento e rejeição do lado de seus críticos. A não-aceitação da prova da criaturalidade acontece mesmo entre aqueles que, a princípio, simpatizam com as reformulações de doutrinas tradicionais singulares como a respeito da eclesiologia, particularmente a questão da autoridade do Magistério. Parece-me que, no fundo, se trata da acusação de KNAUER ser racionalista neste ponto, enquanto com relação à questão da fidedignidade da fé, somente cognoscível como verdadeira na própria fé, sofre suspeita de fideísmo. Cf., p.ex., IDEM. Der Glaube, 377, nota 604.380, nota 610.
75 Cf. as repetidas referências a DH 3015.
74
menciona que tal “demonstração” só é, de fato, “necessariamente possível”,76 tendo em vista a
vivência da fé. Para tal basta a pressuposição de que não seja possível negar
comprovadamente o ser criado do mundo e, de fato, até hoje isso não ocorreu.77
No entanto, poder comprovar o ser criado do mundo se torna conditio sine qua non de
uma fundamentação consistente da palavra de Deus. Por isso, também não se trata
simplesmente de conduzir tentativas de tornar mais plausível a existência de Deus.
Demonstrações de plausibilidade da existência de Deus diluem o fato de que afirmações com
relação a Deus hão de ser insuperáveis e não podem trabalhar com uma margem de grau de
probabilidade como o insinua um argumento de plausibilidade. Além disso, o objeto de
conhecimento aqui em questão não é Deus, e se ele existe, e sim o mundo em sua dependência
total de seu para-onde, que recebe o nome de Deus por causa do mundo conhecido em seu ser
referido a ele. Com razão, KNAUER formula com todo rigor que “a fé cristã estaria refutada se
alguém pudesse comprovar a não-criaturalidade do mundo ou a não-historicidade de Jesus”.78
É preciso lembrar que o conhecimento natural de Deus não forma o horizonte
abrangente para a mensagem cristã.79 A fé mesma se baseia no ser criado do mundo apenas
para se lançar sobre ele com sua mensagem de revelação de nosso “ser criado em Cristo”. O
“em Cristo” do nosso ser criado, que é a verdadeira originalidade do ser humano em seu ser
acolhido originariamente no amor eterno do Pai ao Filho, requer fé para ser reconhecido como
verdade definitivamente última sobre nossa existência e só chega ao conhecimento se for
anunciado ao mundo. Assim é contestado de antemão que possa haver um tipo de “natureza
76 KNAUER mesmo aplica sua ideia da “possibilidade necessária” propriamente ao diálogo ecumênico como
uma categoria hermenêutica relacional (cf. IDEM. “‚Notwendige Möglichkeit‘ als ökumenische Grundkategorie”. In: ThGl 92 (2002) 48-59). No entanto, na medida em que se trata de uma afirmação da razão, a prova da criaturalidade do mundo “há de ser possível em princípio” (IDEM. Der Geschöpflichkeitsbeweis. Nesse resumo da prova em teses se tem acesso às figuras ilustrativas principais do autor).
77 KNAUER. Unseren Glauben, 29. Cf. tb. IDEM. Der Glaube, 43s. Nesse contexto, o autor alerta ainda, em prevenção a possíveis mal-entendidos e reações de rejeição espontânea, ao grau de abstração desse raciocínio incluindo seu caráter não-habitual.
78 KNAUER. Zu „Gerhard Ebelings Dogmatik des christlichen Glaubens“. Ainda a respeito de tentativas de negar a criaturalidade do mundo o autor continua afirmando que “... a fé não conta com que seja possível conseguir conduzir tais comprovações, e por isso se dispõe sem temor, defrontar-se com todas as tentativas desse gênero, pois está certa de poder respondê-las sempre” (IBID.). Aquele que se põe a negar o ser criado do mundo, supõe a mensagem cristã, não pode mais contar com a razão do seu lado. Essa é a estratégia argumentativa do raciocínio.
79 A esse fato o autor alerta contrariando a EBERHARD JÜNGEL, Gott als Geheimnis der Welt, que parece entender que a fala (luterana) do “Deus oculto” relativize o “Deus revelador” (cf. KNAUER. Der Glaube, 7, nota 77).
75
pura” à qual a graça haveria de ser “acrescentada” posteriormente, como se ela existisse
desvinculadamente da natureza (criada) exercendo sobre esta um efeito mágico concernente à
sua salvação.
O ser humano, por conta própria, porém, como já foi constatado, só pode saber de si
apenas essa sua dependência total de seu para-onde. A consequência radical do
reconhecimento de Deus como “aquele sem quem nada é” em função da criaturalidade do
mundo será aprofundada no final deste capítulo. Agora deve ser apresentado, em seus traços
próprios, o raciocínio de KNAUER referente à comprovação do ser criado do mundo.
3.1 Não prova de “Deus” e sim da “criaturalidade do mundo”
Nos escritos dos anos 60, KNAUER ainda chama essa prova de “prova de Deus”
[Gottesbeweis], porém a entende precisamente como prova do ser criado do nada. Assim, já
pelo princípio de sua reflexão, deixa claro que não se trata de uma “prova de Deus” no sentido
das provas clássicas (em sua configuração medieval) da existência de Deus. Seu intento não é
explicar o mundo pelo conceito de Deus, mas por meio de sua dependência total de Deus.
Deus mesmo não pode virar ou se tornar parte de um argumento: “a um mal-entendido desses
da prova de Deus, que contradiz à inconcebilidade absoluta de Deus pressuposta pela fé, há de
se advertir absolutamente” 80
Seria, pois, uma contradição diametral a todo seu esforço anterior de salvaguardar a
incompreensibilidade de Deus se KNAUER quisesse comprovar a existência de Deus agora.
Quem não quiser subordinar Deus (novamente) a algum conceito também não pode permitir
que sua existência possa ser analiticamente concluída de nosso ser criado. Já se aludiu
previamente a que o conceito do “ser” só pode ser atribuído a Deus de forma referente,
assunto a ser aprofundado em seguida. No lugar do termo clássico, KNAUER logo passa a
chamar tal prova de “prova de criaturalidade” [Geschöpflichkeitsbeweis].81
A palavra ‘prova de Deus’ ressoa mal hoje. As tentativas, por exemplo, dos filósofos medievais de provar Deus, desde a “Crítica da razão pura” de KANT (1787) são consideradas superadas.82
80 Cf. KNAUER. Dialektik und Relation, 59. 81 KNAUER. Der Glaube, 43. Além dos artigos já referidos cf. tb. IDEM. Der Geschöpflichkeitsbeweis.
Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/11.html>. Acesso em: 12 out. 2009. 82 KNAUER. Unseren Glauben, 29.
76
Sem dúvida, aqui surge espontaneamente a suspeita de que KNAUER, mesmo assim,
quer abrir os túmulos de especulações teológicas em torno das “provas clássicas de Deus”
desde décadas enterradas na poeira da história da teologia. Na realidade e sobretudo da parte
de quem afirma que o discurso da criação e de Deus-Criador desde já seja artigo de fé83 e não
assunto da razão humana, o intento de uma prova – seja qual for sua denominação – provoca
suspeita de querer reanimar a teologia natural clássica da doutrina de Deus. Em contrapartida,
aponta KNAUER, inclusive a afirmação de Deus como Criador do céu e da terra no nosso
Credo não é uma afirmação de fé e sim uma aposição acessível à razão.84 Dizemos de Deus-
Pai no qual cremos que ele é o Criador do mundo o que é pressuposto como um saber natural
de forma relacional.
Enquanto isso, porém, o autor apenas procura fazer entender o que é Tradição
Magisterial.85 E, logo no início, KNAUER re-situa o conhecimento natural de Deus dentro de
sua ontologia relacional. Em vez de pressupor a necessidade de uma “razão suficiente”,
KNAUER pergunta antes pela sua necessidade, pois “já inicia com o problema da pré-
compreensão da realidade”.86
Foi ressaltado antes que “Deus”, em sua inconcebilidade, per definitionem, não é
ponto de partido, nem objeto ou resultado de conclusões nossas.87 E, se o discurso do ser
criado do mundo se torna coerente apenas numa ontologia relacional enquanto relação
substancial e unilateral, também não se pode concluir de Deus à criaturalidade do mundo e
nem do mundo a Deus. Pode ser admitido apenas que se conclua do mundo ao seu ser criado.
Por essa razão, a única proposição a poder ser comprovada é a afirmação do ser criado do
nada do mundo. Objeto de prova, portanto, somente pode ser o ser do mundo, jamais Deus.
83 Assim, por exemplo, afirma LUIS F. LADARIA sem mais: “A criação já é mistério de salvação” (IDEM.
Introdução à Antropologia Teológica. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2002, 86). 84 Cf. KNAUER. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 49s. 85 Cf. a parte I do artigo em que KNAUER aprofunda as afirmações básicas, sobretudo do Concílio Vaticano I,
por vezes de fato ambivalentes: IDEM. „Natürliche Gotteserkenntnis”. 86 KNAUER. Der Glaube, 43. Cf. tb. IBID., 56 e IDEM. Dialektik und Relation, 56-58. Depois de apontar que o
princípio metafísico da causalidade praticamente só era utilizado como uma extrapolação do princípio físico da causalidade, o autor fundamenta a insuficiência de reconduzir o princípio metafísico da causalidade ao princípio da razão suficiente [Prinzip vom zureichenden Grund] que assim não passa de um mero postulado.
87 Cf. acima p. 57.
77
3.2 Por que o mundo necessita de uma explicação: Toda realidade mundana representa um “problema de contradição”
Mas por que razão o mundo necessita de uma explicação e com isso de uma prova?
Uma prova tem o objetivo de explicar algo que, em sua descrição, representa um problema de
compreensão. Em que sentido o mundo representa um problema a ser explicado? Um
problema de compreensão que necessita de explicação, segundo KNAUER, somente pode ser
um “problema de contradição” [Widerspruchsproblem].88
Isto significaria dizer que a pergunta por uma “explicação” de um ente [Seiendes] até só pode ser colocada, mas também, então, tem que ser colocada, quando, caso contrario, já a mera descrição do ente referido não poderia mais ser destacada de uma contradição contraditória e assim de uma afirmação falsa.89
Essa pergunta pela necessidade da explicação do ser do mundo como ponto de partida
para a prova de sua criaturalidade, pelo que parece, não foi levantada pelos autores das provas
clássicas da existência de Deus nesses termos. Uma vez, assegura KNAUER, que, em nosso
agir (pensar e falar) cotidiano, sempre pressupomos que este “problema de contradição” já
encontrou sua solução desde o início. Por essa razão, segundo KNAUER, há de se procurar
ativamente por tal problema porque, na experiência cotidiana nossa, ele não nos salta aos
olhos. Precisa de uma “mediação lógica”.90 Outra vez, porque presas numa ontologia
substancialista, essas “provas de Deus” pressupunham a existência do mundo como efeito de
uma causa primária.91
Mas as relações de causa e efeito, antes, aplicam-se apenas às relações entre coisas do
mundo e, depois, em sua “pureza”, esse modelo explicativo dos fenômenos mundanos já é
reconhecido como inadequado pela teoria do sistema. Para KNAUER, o modelo que descreve
(não explica!) adequadamente as relações intramundanas é o pensamento dialético, porque ele
não só reconhece a interdependência relacional das coisas entre si, mas também manifesta
indissoluvelmente seu problema de contradição.92
88 KNAUER. Der Glaube, 44. Em nota (45) o autor identifica seu termo com o da “questionabilidade radical”
[radikale Fraglichkeit] de WILHELM WEISCHEDEL. De acordo com seu uso também na teologia de EBELING (cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 26ss) se designa com ele a experiência da ambiguidade indelével da experiência consigo e com o mundo.
89 KNAUER. Dialektik und Relation, 63. 90 Cf. KNAUER. Der Glaube, 43, nota 43. 91 Cf. KNAUER. Dialektik und Relation, 56ss. 92 Cf. IBID., 69s: “Longe de tornar também obsoleto o conceito cristão de Deus, a dialética é, na nossa
experiência, o ponto de partida de fato para toda prova de Deus” (IBID., 69).
78
Também o pensamento dialético, em sua “essência”, não é uma descoberta de HEGEL e
MARX, no caso, e sim conhecido já na escolástica: já TOMÁS DE AQUINO percebeu o mundo
como realidade perpassada de contradições em que contingência e incontingência se
entrelaçam: “pois nada é tão contingente que não teria algo necessário dentro de si”.93 Ao
resgatar essa ideia em TOMÁS, KNAUER assim identifica seu “problema de contradição” que
perpassa o ser do mundo: no mundo existem positividade e negatividade ao mesmo tempo. As
coisas existem e não existem ao mesmo tempo: são “finitas”. Cada pessoa é o que é e não o é
mais no mesmo instante. O mundo assim é sujeito à mudança. Identidade e não-identidade,
ser e não-ser, necessidade e não-necessidade em sua simultaneidade e imbricação
caracterizam o mundo pelo “problema de contradição” inerente a ele.94
A respeito disso, é importante distinguir entre um “problema de contradição” e o fato
de uma contradição real. Pois, nesse ponto, emerge a pergunta o que mesmo diferencia o ser
do mundo de uma contradição contraditória. Suposto que o mundo não pudesse ser explicado
(= descrever livre de contradição), então, a afirmação de qualquer verdade, de qualquer
conhecimento responsável, seria impossível, estariam abertas as portas para a arbitrariedade.
Por essa razão, KNAUER aqui remonta ao princípio da não-contradição como princípio lógico
e ontológico irrefutável.95 Enfim, pretende-se dizer explicando qual é o ser do mundo. A
estratégia argumentativa de KNAUER consiste em comprovar qualquer negação do ser criado
do mundo como uma afirmação sem sentido e em si contraditória:
Criaturalidade pretende ser comprovada em seguida como realmente existente pelo fato de que sua negação, a saber, que o mundo não seja criado, é comprovada como contraditória em si.96
3.3 Explicação do mundo pelo seu ser criado do nada: Duas referências distintas e não-contraditórias
Uma contradição real ou contraditória constaria se, no mundo, existissem positividade
e negatividade ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto [Hinsicht]. A ocorrência simultânea
dos dois aspectos já foi constatada. Para não incorrer numa contradição real, teria que se
93 TOMÁS DE AQUINO. S. th. I q86 a3 c. Apud: KNAUER. Der Glaube, 46, nota 47. Cf. tb. IDEM. Apresentação
PowerPoint, jul. 2009, slide 162. 94 Cf. demonstração detalhada nos exemplos da mudança, da finitude, do conhecimento (consciência) e do
próprio princípio da não-contradição em KNAUER. Der Glaube, 45-48 e IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 154-169.
95 Cf. acima p. 49 deste trabalho. 96 KNAUER. Der Glaube, 43.
79
aduzir, agora, ao menos dois aspectos, dois correspondentes respectivos por positividade e
negatividade, distintos entre si. Estas, por sua vez, não poderiam mais formar uma contradição
entre si. Haveriam de valer ao mesmo tempo.
Tais referências, distintas entre si, mas não contraditórias, KNAUER já encontrou
exatamente pela sua interpretação do ser criado do nada do mundo como um “ser totalmente
referido a ...” – como sendo a primeira referência – que é, ao mesmo tempo, um “ser
totalmente diferente de ....” – como sendo a segunda referência. Ambas as referências são
afirmadas ao mesmo tempo e como não-contraditórias entre si. O “ser relacionado a ...”
representa a positividade existente no mundo, identidade e ser. O “ser diferente de ...”
representa a negatividade simultaneamente existente no mundo, não-identidade e não-ser. O
caráter total, real e unilateral dessa relação do mundo ao seu termo constitutivo garante que
essas duas referências (relação e diferença) hão de ser pensadas como simultaneamente
válidas.
O que distingue, então, a explicação do mundo pela sua criaturalidade como um ser
“totalmente relacionado a .../ ser totalmente diferente de ...” de uma afirmação arbitrária
porque contraditória sobre o mundo? É pelo fato de que são aduzidas duas referências
diferentes, mas não contraditórias entre si, ambas simultaneamente válidas para explicar o
“problema de contradição” observado para cada realidade mundana. O raciocínio da prova de
KNAUER – e como critério de sua criticidade é referido por ele mesmo – somente cai por terra
se alguém puder comprovar que uma realidade mundana não forma uma unidade de opostos,
como seria o caso de “ser puro” ou “identidade pura”. Pois isso significaria que o mundo não
se devia mais a outro totalmente senão a si mesmo, pelo que não necessitaria mais de
explicação alguma.
Resumindo, constata-se que o mundo é explicado não por Deus tal qual, e sim pelo seu
próprio ser criado enquanto relação unilateral ao seu termo constitutivo, sem o qual não pode
ser, e que chamamos de Deus. Fundamento e referência constitutiva da fala de Deus assim é,
comprovadamente, o próprio ser do mundo como relação real e unilateral ao seu para-onde.
Qualquer ideia prévia de Deus ou pensamento especulativo a respeito de sua existência pode
ser desmascarado como mera projeção ao que se pretende dizer por “Deus”.
Tal conhecimento relacional de Deus por meio da razão humana não é, portanto, um
conhecimento vago, parcial ou impreciso, e sim absolutamente preciso e pertinente. Ele o é
não apesar de salvaguardar a essencial inconcebilidade de Deus, mas sim justamente por
causa dela. Põe-se, agora, a pergunta pelo que caracteriza a própria fala de Deus dentro dos
80
termos de uma ontologia relacional – visto o que foi afirmado no início do capítulo:
obviamente, de Deus não se pode falar da mesma forma como falamos das coisas do mundo.
Como falar de Deus segura e adequadamente, então?
4 FALAR ANÁLOGO DE DEUS: CONSEQUÊNCIA DA COMPREENSÃO RELACIONAL DO SER
De fato, a mensagem cristã, por se referir ao mundo como ser criado do nada em
total dependência de seu para-onde, exclui que se possa falar de Deus como se fala das coisas
do mundo; mas, com isso, ela implica que se pode falar de Deus sim apenas com base no
mundo como um “ser totalmente relacionado a ... / em total diferença de ...”, e isto significa:
de forma referente de acordo com tal “ser” do mundo.97 Mas o reconhecimento de que Deus
não está subordinado a um conceito de nossa linguagem não significa que de Deus somente
podemos dizer o que ele não é? Pois, se o mundo é inteiramente diferente de Deus, se o “ser”
de Deus em nada converge com o ser do mundo, como podemos ainda dizer que Deus é
“Criador”, que é “pessoa” e inteiramente “bom” e que ele criou homem e mulher em
semelhança a si mesmo?
4.1 Exigência indispensável do falar análogo de Deus
Já no primeiro capítulo, foi aludido ao fato de que, na fé, se pode falar de Deus apenas
por meio de parábolas, significa: à base da semelhança, de forma “referente” [hinweisend].98
Na tradição teológica da Igreja, remonta-se ao discurso da “analogia”.99 No entanto, KNAUER
observa que o recurso à analogia na teologia fundamental clássica, como acontece dentro das
categorias de uma ontologia substancialista, não capta a radicalidade de seu sentido relacional
e originário (constitutivo) no ato do conhecimento de Deus perante afirmação de sua
inconcebilidade.
97 Constata-se que há, no uso análogo da linguagem humana a partir de uma ontologia relacional, total
congruência entre ordem lógica e ontológica, entre falar, conhecer, pensar e ser. É essa a razão pela qual KNAUER insiste no uso lógico e ontológico do princípio da não-contradição (cf. KNAUER. Dialektik und Relation, 62 e IBID., nota 8).
98 Cf. KNAUER. Der Glaube, 117. Cf. tb. a conclusão ao capítulo III. As afirmações de fé que tratam da autocomunicação de Deus pressupõem em tudo o que se afirma no campo da razão. Também no campo da fé vale dizer que o conhecimento do estar voltado de Deus a nós segue uma analogia unilateral.
99 E analogia entis (cf. a referência a CORETH, PRZYARA e PUNTEL em KNAUER. Der Glaube, 62, nota 67). O termo é distorcido quando utilizado na concepção substancialista porque projeta a reciprocidade de analogias intramundanas na relação do mundo a Deus. Somente por meio de uma reinterpretação relacional, afirma KNAUER, a analogia entis chega realmente ao seu termo de falar de Deus correspondentemente.
81
À primeira vista poderia parecer que a doutrina da analogia da alta escolástica oferecesse, sim, a possibilidade de um conceito do ser abrangendo Deus e mundo ao menos difusamente, [...] . Essa aparência engana; antes, a doutrina da analogia justamente exclui tal conceito em comum do ser definitivamente.100
Em decorrência dessa opinião, muitas vezes, afirma-se que se pode conhecer Deus
apenas parcialmente. Por isso é que se concebe o discurso análogo de forma geral como um
tipo de “mal menor”, de encontrar algum jeito, mesmo se “deficiente”, para poder-se falar de
Deus. Contra tais caricaturas do uso da linguagem humana KNAUER, adverte que
[o] falar análogo nada tem a ver com um modo de fala apenas “vago” ou “aproximativo”, mas é insuperavelmente preciso. A fala análoga com relação a Deus é o modo mais perfeito e profundo do uso de nossa linguagem.101
Além disso, encontra-se frequentemente a opinião de que a fala análoga, designada
nesse contexto de “simbólica”, é entendida nos parâmetros da hermenêutica de significação.
Esta concebe a linguagem como mero sinal em que a coisa designada pela palavra como sinal
ou cifra se encontra fora deste e apenas aponta a ele de forma indicativa. Nessa concepção,
não é possível afirmar a correspondência entre a ordem lógica e ontológica porque, de fato,
trata-se de palavras vazias. Uma palavra – seja qual for – “de Deus”, porém, jamais pode ser
“vazia” porque há de ser entendida como afirmação insuperável por outra maior, como “a
mais carregada” por assim dizer.
Em sua explicação da analogia e de seu “lugar” ou sua “função” no discurso de Deus
desde seu “conhecimento natural”, KNAUER reinterpreta as três vias clássicas da doutrina
escolástica da analogia a partir de sua ontologia relacional. Esta trata da “interrelação”
[Zusammenspiel]102 entre via afirmativa (via affirmativa), via negativa (via negativa) e via da
eminência (via eminentiae). Na concepção substancialista, o discurso análogo, apesar de ser
associado ao ato de conhecimento de Deus, surge como elemento posterior ao ato
cognoscitivo. Numa ontologia relacional, ao contrário, a fala análoga é concebida como
constitutiva para o ato cognoscitivo que é absolutamente idêntico à fala de “Deus”. Por isso,
KNAUER afirma que as três vias clássicas da doutrina da analogia chegam ao seu termo ou a
100 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 2. 101 KNAUER. Der Glaube, 69. 102 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 2.
82
sua reta compreensão somente por meio de uma ontologia relacional porque são implicadas
como indispensáveis de antemão na busca da reta compreensão da criaturalidade e sua
comprovação, e não acrescentadas posteriormente à parte.103
Além dessa dissociação entre ato de conhecimento de Deus e ato de fala de Deus, há
uma dissociação entre as três vias análogas na compreensão substancialista porque, antes de
tudo, esta não é capaz de atribuir um sentido único e insuperável à via da eminência.
A aparência de um conceito do ser difusamente em comum, abrangendo a Deus e mundo, surge enquanto se acha erroneamente poder compreender a “via afirmativa” e a “via negativa” por si só. Não poder-se-ia ainda, então, distinguir o conceito de Deus de uma projeção a partir do mundo. A “via affirmativa” e a “via negativa”, na visão da alta escolástica são compreendidas corretamente, porém, apenas à luz da “via eminentiae”.104
Para KNAUER, aqui se trata apenas de tornar explícito o falar análogo de Deus em
coincidência absoluta do conhecer a “Deus” como “aquele sem quem nada é” por meio do
mundo corretamente descrito e explicado como “criado do nada” (ser totalmente relacionado
a ... / em total diferença de ...), e do pensar de Deus como maior do que se pode ser pensar. Se
tal inconcebilidade de Deus é respeitada e salvaguardada somente numa concepção relacional
do ser, também o falar de Deus há de corresponder à particularidade desse conhecimento de
Deus em sua relacionalidade substancial e unilateral. Pois aqui a ordem lógica (do pensar,
conhecer e falar) exprime a ordem ontológica porque a palavra que fala de Deus, como aquele
sem quem nada é, “contém” ou submete ao conceito o ser do mundo que difere do ser de Deus
totalmente, mas assim somente a ele remete.
Como exemplificação de uma compreensão e apresentação corretas das três vias da
analogia – inclusive da unidade que formam –, KNAUER cita das Confissões de SANTO
AGOSTINHO:
Tu, Senhor, fizeste o céu e a terra: Comparados contigo, tu que és belo – pois eles são belos; Porém, não são tão belos, não são nem belos, tu que és bom – pois eles são bons, nem tão bons, nem bons, tu que existes – pois eles existem. nem existem na maneira nem sequer existem.105 como tu existes, tu que és seu Criador.
103 Cf. KNAUER. „Natürliche Gotteserkenntnis”. 104 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 2s. 105 SANTO AGOSTINHO, Confissões, livro 11, cap. 6, n. 4. Apud: KNAUER. Para compreender nossa Fé, 17.
SANTO AGOSTINHO apresenta o mundo como ser criado (1º parágrafo) e em seguida a forma análoga de falar que essa afirmação requer em seu conjunto de semelhança e dessemelhança (2º-4º parágrafo correspondentes às vias afirmativa, negativa e da eminência).
83
A positividade do mundo fundamenta a via afirmativa (4.2), a negatividade resulta da
diferença do mundo com relação ao seu termo, a via negativa (4.3). Quanto a Deus, porém, há
de se negar toda finitude e limitação. Por isso, a via da eminência está implicada nas
primeiras duas para ressaltar explicitamente que toda fala de Deus permanece sempre um falar
referente de forma unilateral, salvaguardando assim a inconcebilidade de Deus (4.4).
4.2 Semelhança do mundo com Deus: a via afirmativa
O fundamento e a razão da fala de Deus é o ser do mundo todo e cada coisa nele
enquanto um ser totalmente relacionado ao seu termo constitutivo. A via afirmativa está
baseada no fato de que se pode afirmar semelhança do mundo a Deus apenas porque aquele se
remete a este direta e unicamente. Diz-se de forma referente que o mundo é semelhante a
Deus: à medida que se diz que algo existe, implica-se a afirmação de que Deus “existe”
porque, sem ele, tal coisa nem poderia existir. Se o ser humano se reconhece a si mesmo
como pessoa, pela mesma razão, atribui “ser pessoa” a Deus sem o qual nada seria. Quando se
afirma que tudo que existe está orientado para o bem e representa um “bem” porque fazer o
bem é o “sentido” e a responsabilidade inegável do ser humano, já se implicou, com isso, a
“bondade” de Deus.
No entanto, é óbvio que não se atribui existência, bondade, perfeição ou ser pessoa a
Deus da mesma forma como se os atribui ao ser humano e às coisas do mundo, mas só de
forma referente – já que o “ser” de Deus não se compreende “debaixo” dos nossos conceitos.
Se Deus está para além dos nossos conceitos, mas tudo que pela via afirmativa referimos a ele
a partir do mundo e por razão do ser do mundo, então, também se deve poder explicitar o
caráter unilateral dessa referência (analogia). Dessa maneira, ao atribuir a Deus perfeição,
realidade e bondade etc., ter-se-ia de dizer que Deus é “sobre-perfeição” [Über-
Vollkommenheit, “sobre-realidade” [Über-Wirklichkeit], “sobre-bondade” [Über-Gutheit]
etc.106
Essa indicação procura evitar que se recaia na tentação corriqueira de conceber Deus
como um “ser supremo” ou “supernatural” no sentido de um prolongamento infinito de nosso
ser criatural (natural). Novamente, configurar-se-ia Deus como um pedaço do mundo,
subordinando-o ao nosso conceito do ser, e assim mesclando ou até confundindo criatura com
106 Cf. KNAUER. Der Glaube, 63.
84
seu Criador (destituindo a Deus como termo constitutivo e elevar alguma realidade criada ao
status de termo constitutivo, o que implica autocontradição). O que aqui é designado pelo
prefixo “sobre” será explicitado como o sentido da via da eminência em 4.4.
4.3 Dessemelhança do mundo com Deus: a via negativa
Ao mesmo tempo em que a via afirmativa forma a base para um discurso referente ao
termo que constitui o mundo como um ser relacionado a esse seu para-onde – e com isso a
constatação da semelhança do mundo com Deus –, há de se constatar dessemelhança da
mesma forma, portanto, radicalmente. É isso que a tradição teológica do discurso pretende
dizer pela via negativa. O mundo, em nenhum aspecto de seu ser, parece com o ponto de
referência de sua existência, Deus, sem quem não poderia ser.
Tradicionalmente se formam sob a via negativa os opostos por meio dos quais se
pretende dizer que o Criador se diferencia de sua criatura: enquanto o mundo é finito e
mutável, Deus é infinito e imutável; enquanto o ser humano (e todo ser vivo) é mortal, Deus é
imortal. Logo também se enquadra nesses termos o discurso da contingência do ser mundano
e da incontingência do ser divino. A esse respeito, porém, já foi visto que no mundo mesmo
se mesclam contingência e incontingência formando um “problema de contradição” que
somente a concepção relacional do ser do mundo resolve.
Na ontologia relacional, a diferença entre a relação e seu termo constitutivo emerge
indissoluvelmente vinculada ao ser relacionado do mundo. Isto se deve à totalidade com a
qual o ser do mundo imerge de tal forma nesta relação, que esta constitui aquele, precisamente
por causa de seu termo constitutivo com o qual jamais se confunde.
Por essa razão, parece-nos ser correto dizer, no sentido da compreensão de KNAUER,
que a via negativa não é apenas algo como “o outro lado da moeda” do ser totalmente
relacionado do mundo ao seu termo constitutivo. Antes, ocorre que, à medida que se afirma
semelhança, a dessemelhança já está co-dita implicitamente. As duas referências não podem
ser divididas nem confundidas; antes constam como indissoluvelmente imbricadas.107
Consequentemente, também o reforço à via negativa por si só não é capaz de evitar o
perigo de não pensar a diferença entre o mundo e Deus de forma total, insuperável. Uma
“teologia negativa” não está absolvida de antemão da suspeita de subordinar Deus aos
conceitos de nossa linguagem só porque se recusa a usar termos afirmativos em função da
107 Cf. KNAUER. Der Glaube, 66.
85
inefabilidade de Deus. KNAUER ressalta que a via negativa só pode existir com a via
afirmativa e ambas hão de ser norteadas pela via eminentiae.108 Aparentemente também aqui
se manifesta a tendência do ser humano de reenquadrar o ser infinito de Deus como um ser
mundano infinitamente extrapolado.
Porém, o ser infinito de Deus, bem como sua imutabilidade, também são afirmados
apenas de forma referente. Dessa maneira, também com relação a esses atributos “negativos”
que procuram dizer o que distingue Deus do mundo, Deus nunca pode ser apreendido “sob”
(ou debaixo de) tais conceitos. Seu ser infinito haveria de ser explicitado em correspondência
à via afirmativa como “sobre-in-finitude” [Über-Un-Endlichkeit] e sua imutabilidade como
“sobre-i-mutabilidade” [Über-Un-Veränderlichkeit].109
4.4 Semelhança e dessemelhança em seu sentido unilateral: a via da eminência
A chave de leitura para a reta compreensão das primeiras duas vias, afirmativa e
negativa, bem como do falar sempre e somente análogo de Deus enquanto tal, é a via da
eminência. Contrário a compreensões corriqueiras na teologia, essa via não é eminente no
sentido de extrapolar a via afirmativa ad infinitum, mas de explicitar e assegurar que as
primeiras duas vias, da semelhança e da dessemelhança do mundo com Deus, sejam
compreendidas realmente de forma referente e por referência exclusivamente unilateral.
Isso quer dizer que, à base (ontológica) do mundo como uma relação (por isso) real,
total e unilateral a ... / em total diferença de ... seu termo constitutivo se afirmam semelhança
e dessemelhança da criação com Deus-Criador. Mas, comparado com Deus, não se pode
afirmar alguma semelhança sequer dele com o mundo, porque uma relação de Deus ao mundo
é impossível de ser afirmada. Reconhecer que a relação do mundo a Deus é unilateral
significa não poder concluir semelhança da parte de Deus, pois isso implicaria anular
posteriormente nosso “ser-criado-do-nada”.
A via da eminência salvaguarda assim a inconcebilidade de Deus porque representa a
unilateralidade do discurso análogo enquanto tal, afirmando que não há analogia alguma de
Deus em comparação com o mundo. É nesse sentido que KNAUER interpreta a formulação do
108 Cf. KNAUER. Welchen Sinn hat das Wort “Gott ...”, 326. Frente à ontologia substancialista, por sua vez, a
teologia negativa tinha que emergir inevitavelmente como uma tentativa de reparo posterior a um erro fundamental (e principalmente irreparável): conceber a doutrina da analogia como acréscimo posterior à prova da existência de Deus (cf. IDEM. Der Glaube, 68). Nesse sentido a via negativa também não pode ser confundida com a via da eminência, como KNAUER observa criticamente com relação a EBELING (cf. IDEM. Verantwortung des Glaubens, 37 e IBID., nota 140).
109 Cf. KNAUER. Der Glaube, 65.
86
IV Concílio de Latrão (1215 d.C.) como representação correta do significado da via da
eminência. Este afirma que “não é possível constatar semelhança alguma entre Criador e
criatura sem constatar dessemelhança maior ainda” (DH 806).110 Reconhece-se essa
compreensão também na seguinte afirmação de TOMÁS DE AQUINO:
Mesmo admitindo que, de certa forma, a criatura seja semelhante a Deus, de modo algum, pode ser admitido que Deus seja semelhante à criatura. Pois [...] semelhança mútua apenas pode ser suposta daquilo que corresponde à mesma ordem [do ser].111
Essa analogia assimétrica, que parte do mundo a Deus sem base ontológica de concluir
semelhança da parte de Deus, é garantida pela afirmação de sua dessemelhança cada vez
maior (via da eminência). É ela que preserva a inconcebilidade de Deus no sentido estrito,
fornecendo o critério definitivo de distinguir o conceito de Deus da tradição cristã de qualquer
autoprojeção, “pois uma imagem projetada haveria de estar numa semelhança recíproca com a
sua origem”.112
4.5 Algumas consequências da analogia unilateral referente à fala de Deus
Diante da apresentação das três vias análogas na fala de Deus, pode-se, agora,
perguntar qual delas prevalece enfim. É a via afirmativa porque somente à base de um
reconhecimento do mundo como um “ser referido a ...” se pode justificar alguma afirmação de
Deus? É a via negativa porque, apesar de toda semelhança do mundo a Deus, este jamais se
confunde em seu ser com aquele? Ou é mesmo a via da eminência porque leva a reconhecer
que de Deus podemos falar somente “no modo de sua ausência”?113
Contra a tendência de desvincular o nexo intrínseco entre as três vias análogas,
KNAUER ressalta que apenas uma afirmação de Deus que tem essa estrutura de uma analogia
unilateral é coerente, porque mantém seu fundamento ontológico no mundo em seu ser
totalmente relacionado a ... / em total diferença de ... (= real e unilateral), o para-onde que a
constitui. O sentido da via da eminência é justamente de assegurar tal intelecção. Em resgate
dessa consciência nítida na fala de Deus na alta escolástica, o autor cita, de forma exemplar (e
em resumo), a Suma Teológica de TOMÁS DE AQUINO: 110 KNAUER cita esta formulação sempre nesse contexto como em IDEM. Der Glaube, 68, nota 73, onde também
refere a sua base veterotestamentária como, p. ex., com Is 40,18. 46,15. Cf. também IDEM. Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 320 e IDEM. „Natürliche Gotteserkenntnis“.
111 TOMÁS DE AQUINO, S.th. I q4 a3 ad4. Apud: KNAUER. Der Glaube, 66s, nota 73. 112 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 3. 113 KNAUER. Fundamentaltheologische Erhellung, 188.
87
Como Deus se encontra fora de toda a ordem criada e todas as criaturas estão relacionadas a ele, e não o contrário, então se manifesta que as criaturas se relacionam realmente a Deus. Em Deus, porém, não há nenhuma relação real dele às criaturas e sim apenas uma relação pensada [secundum rationem tantum], justamente na medida em que as criaturas se referem a ele.114
A afirmação de uma relação de Deus ao mundo, segundo TOMÁS DE AQUINO, é
justificável somente se concebida como relação pensada, ou então, conceitual [secundum
rationem tantum]. Consequentemente KNAUER formula: “sempre nós compreendemos de
Deus apenas o que é diferente dele, mas que a ele remete”.115 Para além da afirmação de que o
mundo não pode existir sem ele, nada se pode “concluir” de Deus. É próprio da intuição e do
pensar rigoroso de KNAUER de não relativizar jamais a conclusão de que assim é impossível,
no campo da razão humana, conceber uma relação real de Deus ao mundo. Quais as demais
implicações de tal afirmação?
Antes assegura que o mundo, por sua vez, não pode, para além de sua dependência
total de seu para-onde, ser também o termo constitutivo para uma relação de Deus a ele. O
pano de fundo metafísico é a afirmação de que uma relação é constituída somente pelo seu
termo. Isso significaria dizer, nesse caso, que o termo de uma relação real de Deus ao mundo
seria o próprio mundo. Mas, dessa forma, Deus tal qual seria constituído pelo mundo, o qual
passaria a ser o termo constitutivo do ser de Deus. Deus assim, de fato, estaria sujeito a
mudança,116 ao “problema de contradição” que marca o ser do mundo como ser criado do
nada. Novamente, precisar-se-ia procurar um termo constitutivo para ambos, ou recair-se-á na
concepção substancialista na qual o conceito do ser assume esse lugar enganosamente
(erroneamente).
Se pode concluir somente do mundo a sua dependência de Deus, mas não contrariamente por assim dizer de Deus ao mundo. Uma tal dedução do mundo de Deus, com a falta de uma relação real de Deus ao mundo pela qual o mundo seria o termo constitutivo, carece de toda base ontológica.117
114 TOMÁS DE AQUINO, S.th. I q13 a7 c (destaques nossos), Apud: KNAUER. Der Glaube, 76, nota 84; cf. tb.
IDEM. Die chalkedonensische Christologie, 3, onde também cita SANTO TOMÁS. S.th. I q28 al ad3: “Em Deus não há relação real a criaturas, mas nas criaturas há relação real a Deus”.
115 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 313. 116 Cf. KNAUER. Der Glaube, 76 e tb. IDEM. Die chalkedonensische Christologie, 5. 117 KNAUER. Der Glaube, 78.
88
Nesse sentido, o termo do ser criado do mundo (não Deus!) é um “conceito lógico
final [último]” [logischer Endbegriff]118 ou “algo como uma estação lógica final” [logische
Endstation].119 Uma ontologia relacional obriga o teólogo a permanecer em seu discurso
sempre do lado do mundo, com “os pés no chão”, por assim dizer. Não lhe é permitido
levantar voo para concluir alguma coisa da parte de Deus querendo deixar assim para trás seu
próprio ser criado. A analogia unilateral não permite, como KNAUER sublinha sempre, que se
argumente com o conceito de Deus, sua inconcebilidade ou seu ser absoluto.
Portanto, o discurso análogo de Deus dentro de uma compreensão relacional do ser do
mundo é a alternativa à subordinação de Deus a um conceito por meio de uma concepção
substancialista. Para esta, não há nenhum problema de afirmar semelhança mútua entre Deus
e mundo. Mas Deus assim passa a ser inevitavelmente “uma realidade mundana alteada ao
infinito”.120 Ao contrário, o discurso análogo unilateral rompe as fronteiras do uso corriqueiro
de nossa linguagem, pois, em nosso discurso de Deus, sempre somos tentados a recair na
tendência de “conceituar” Deus:
Causa dificuldade enorme a nós seres humanos permitir tal rompimento [Aufbrechen] dos limites da linguagem. Preferivelmente gostaríamos de pensar Deus apenas como um ente ao lado de outros. Nós queremos ordená-lo dentro do horizonte de nosso conceito do ser ao invés de, antes, permitir nosso horizonte ser rompido [aufreissen]. Pois nesse caso, os limites de nossa linguagem não precisavam ser rompidas [gesprengt].121
A afirmação de Deus como “sem quem nada é” significa que, desde sempre, nos
encontramos “em suas mãos” de forma insuperável, mesmo se isso não permita concluir seu
estar voltado misericordiosamente a nós. Para além dessa dependência total, não se pode
querer afirmar mais outra coisa com relação à palavra “Deus”. Como isso repercute sobre a
compreensão da onipotência divina, de sua liberdade com relação à do ser humano e da
existência do mal?
Todo o discurso de Deus, por exemplo, no Antigo Testamento, que se costuma chamar
de “antropomórfico”, entende-se agora de outra maneira no falar da razão humana. A
afirmação de que é Deus que criou o mundo tem sua razão, seu fundamento real
(fundamentum in re) no ser substancialmente relacionado do mundo ao seu termo
constitutivo. Também todas as demais afirmações de Deus que sugerem uma intervenção 118 IBID., 68. 119 KNAUER. Eine Alternative zu der Begriffsbildung „Gott ...“, 317. 120 KNAUER. Der Glaube, 70. 121 KNAUER. Unseren Glauben, 36; cf. tb. IDEM. Die chalkedonensische Christologie, 1-4.
89
[in]direta de Deus no curso da história, como a libertação do povo de Israel do Egito, a
passagem pelo Mar morto etc., especialmente no que concerne à “ira” de Deus, sua vingança
e seus castigos, justificam-se por referir-se à sua onipotência de forma meramente
“potencial”122: como Deus é “todopoderoso”, bem pode causar tanto o bem como o mal – se
assim quiser. Tal pensamento equívoco, que projeta em Deus as nossas próprias fantasias de
poder, é inevitável numa concepção substancialista do ser.
Uma imagem de um Deus raivoso, incalculável, enfim, arbitrário, introduz no conceito
de Deus a mudança e com ela a temporalidade. Ao invés disso, há de se conceber tal discurso
com base real no ser humano que assim se vê posto diante de seu Criador:
Se Deus passa a ser designado de modo temporal a algo que [ele] não era designado antes, então é claro que [ele] somente é designado assim de forma referente; e isto não conforme uma característica de Deus que fosse acrescentada a ele, e somente conforme uma característica daquilo a que Deus passa a ser designado de forma referente. Se o justo passa a ser amigo de Deus, então, aquele muda. Afastado seja, porém, que Deus ame alguém de forma temporal, praticamente com um amor novo, que antes não existia nele. Pois em Deus o passado não é passado e o futuro já aconteceu.123
Numa concepção ontológico-relacional da analogia, atribui-se onipotência a Deus em
consequência do reconhecimento do nosso ser criado em seu ser total e unilateralmente
relacionado: Deus é “absolutamente [schlechthin] em tudo que de fato acontece o
poderoso”.124 Isso vale ser ressaltado, sobretudo, com relação ao mal que acontece no mundo.
Dele também se pode apenas afirmar que não “existiria” sem Deus. Nesse contexto, KNAUER
se refere a Is 45,7: “Eu formo a luz e crio as trevas, asseguro o bem-estar e crio a desgraça:
sim eu, Yahweh, faço tudo isso”, bem como a Mt 5,45: “ele faz nascer o sol igualmente sobre
maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos”. Desse modo, compreende-se a fala bíblica
do “dia da ira” (Rm 2,5) ou da “ira de Deus” (Rm 1,18) em dois aspectos: (1) diante do
Criador, o ser humano há de se conceber em abstração da fé (ou do “lado de fora” dela) como
“criatura perdida” em um mundo “infernal”; e (2) o caminho à comunhão com Deus não pode
passar por cima do discernimento entre bem e mal a custo de não entender o significado da
graça.125
122 Cf. KNAUER. Unseren Glauben, 14s; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 75s. 123 SANTO AGOSTINHO, De Trinitate 5, XVI, 17. Apud: KNAUER. Der Glaube, 76, nota 84. 124 KNAUER. Der Glaube, 75; cf. tb. p. 45, nota 98 deste trabalho. Uma reflexão mais aprofundada se encontra
em IDEM. “Eine andere Antwort auf das ‚Theodizeeproblem‘ – was der Glaube für den Umgang mit dem Leid ausmacht”. In: ThPh 78 (2003) 196-201.
125 Cf. KNAUER. Der Glaube, 80s.118. Mais detalhes em IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slides 266-275.
90
Em consequência disso, há de se confirmar que inclusive o mal não pode ser sem
Deus, sem que, com isso, se possa concluir – a preço de burlar a unilateralidade da relação do
mundo ao seu termo – que Deus quer o mal. Assim, a questão da “teodicéia” há de ser
refutada em seus falsos pressupostos antes que pudesse realmente “afetar” a Deus.126 De
acordo com KNAUER, a questão, de entrada, já é posta erroneamente: não é como Deus pode
“querer” ou “permitir” o mal. Isso sempre supõe algum tipo de intervenção divina para além
de nossa total dependência dele.
Ao contrário dessa subordinação de Deus ao conceito, só se pode constatar de forma
referente que também o mal não pode ser sem ele. Talvez seja mesmo por meio do problema
da teodicéia que a “questionabilidade radical do mundo”127 emerge em sua impossibilidade de
solução a partir do mundo, e em abstração da fé. Pois a questão é, para KNAUER, como lidar
com o mal! E a resposta a tal pergunta já se encontra dada na mensagem cristã embora seja
possível de ser acolhida somente na fé: “Ainda que eu caminhe por vale tenebroso nenhum
mal temerei, pois estás junto a mim; teu bastão e teu cajado me deixam tranquilo” (Sl 23,4).128
Da mesma forma, não se pode mais conceber a liberdade divina na obscuridade de
uma compreensão substancialista. Ela, além disso, só pode compreender a liberdade do ser
humano, com a autonomia do mundo todo, em concorrência com a liberdade de Deus. Numa
concepção relacional do ser, essa oposição é superada:129 a insuperável liberdade de Deus está
garantida pelo reconhecimento de que jamais está posto “debaixo” de algum conceito.
Arbitrariedade é excluída pelo fato de que esse reconhecimento tem sua base real no mundo
como um ser totalmente relacionado a ... / em total diferença de ... . Enquanto liberdade e
126 Cf. KNAUER. Der Glaube, 79-81; cf. tb. IDEM. Unseren Glauben, 150-159; IDEM. „Erlösung aus der
Theodizeefrage”. In: Communitas. Périodique bimestriel: Foyer Catholique Européen, nov. 2004, 16–17. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/30.html>. Acesso em: 13 out. 2009; e IDEM. “Eine andere Antwort auf das ‚Theodizeeproblem‘. Was der Glaube für den Umgang mit dem Leid ausmacht”. In: ThPh 78 (2003) 193-211. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.Knauer/25.html>. Acesso em: 30 out. 2009.
127 Cf. p. 77, nota 202 deste trabalho. 128 Cf. KNAUER. Eine andere Antwort auf das „Theodizeeproblem“, 194, para dar uma das diversas referências
bíblicas aduzidas pelo autor. É uma intuição do autor desta dissertação conceber a doutrina da “opção teocêntrica pelos pobres” da TdL, relida à base da ontologia relacional de KNAUER, como sendo essa resposta de fé em nossos dias. Apesar de KNAUER reconhecer a opção pelos pobres “apenas” como parte integrante da doutrina social da Igreja (cf. IDEM. Glaube befreit zur Option für die Armen. in: MAGDALENA
HOLZTRATTNER (ORG.). Eine vorrangige Option für die Armen im 21. Jahrhundert? Innsbruck: Tyrolia-Verlag, 2005, 37-59. Artigo também disponível em: <www.jesuiten.org/peter.knauer/48.htm>. Acesso em: 13 out. 2009), parece-nos não somente possível como até demandado pelos desafios da evangelização uma leitura teológico-kerygmática, sem desobedecer ao princípio de DH 3015 (objeto de conhecimento da razão não pode ser também objeto de conhecimento da fé). Não seria nada mais (e também nada menos) que uma teologia da cruz pertinentemente reformulada para os dias de hoje.
129 Cf. KNAUER. Der Glaube, 78s.
91
dependência entre as realidades intramundanas se comportam inversamente proporcionais,
autonomia e dependência do mundo com relação a Deus são diretamente proporcionais: ao
mundo confere autonomia justamente porque depende de Deus totalmente.130
5. CONCLUSÃO: A PALAVRA “DEUS” COMO OBJEÇÃO MAIOR CONTRA “PALAVRA DE DEUS”
Uma mensagem que levanta a pretensão de verdade de ser palavra de Deus há de
prestar conta, em primeiro lugar, como entende o termo “Deus”, se não quiser ser rechaçada
logo com razão como uma afirmação infundada e assim incompreensível. Isso se impõe como
primeira questão da fundamentação teológica da fé pelo fato de que ela afirma que sua
verdade “não é legível no mundo”, e isso significa não ser evidenciável por meio da razão
humana. Nesse contexto, a própria mensagem desperta para o problema de como falar de
“Deus” se sua própria tradição sempre afirmou sua “inconcebilidade”. A esse problema
linguístico de fundo metafísico a mensagem cristã responde por referência ao “ser criado do
nada” de tudo o que existe enquanto cognoscível pela razão humana: o “mundo”.
No entanto, para se compreender coerentemente o discurso do ser criado, de acordo
com KNAUER, “na medida em que a compreensão prévia do ser humano é assunto da filosofia,
parece que a fé cristã há de levar consigo sua própria filosofia”131 em forma de uma ontologia
relacional. Esta refuta, como inadequado, o modelo substancialista de descrição da realidade
intramundana por meio do “princípio metafísico da causalidade” em sua aplicação à relação
entre mundo e Deus. Por isso, o ser criado do nada é entendido como um “ser totalmente
relacionado a ... / em diferença total de ...” seu “para-onde”. Esse seu “termo constitutivo”
unicamente merece ser designado de “Deus”. Dessa maneira, “Deus” é precisamente definido
como “aquele sem quem nada é” por causa do mundo “não-poder-ser-sem ...” termo
constitutivo.
130 Cf. IBID., 41. Por isso KNAUER observa que sempre se trata de “autonomia relativa”. Com isto não quer dizer
que a autonomia do mundo é relativizada (e assim diminuída), mas que ele é verdadeiramente autônomo apenas no sentido de ser constituído pelo ser referido do mundo totalmente ao seu termo constitutivo. Por conseguinte, Deus não pode mais ser concebido como um “fator singular” no mundo (cf. KNAUER. Fundamentaltheologische Erhellung, 190). Por outro lado, isso impede que autonomia seja associada de alguma forma a arbitrariedade: “Por ‘autonomia da realidade criada’ não se quer dizer que o ser humano possa dar a si mesmo as leis morais a bom gosto. Antes isso significa uma moralidade própria [Eigengesetzlichkeit] das realidades criadas que inabita nelas” (IDEM. Handlungsnetze, 143s). Nesse contexto da modernidade o autor refere ao Vaticano I (DH 3019) e ao Vaticano II (AA 7,2) como reconhecimento da autonomia do mundo pelo Magistério (cf. IDEM. Der Glaube, 320.372.387).
131 Cf. KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 69s; cf. tb. IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 975.
92
Tal afirmação se evidencia como objeto de conhecimento da razão porque está sujeita
à comprovação. Nessa prova de criaturalidade, o “problema de contradição” da
interpenetração simultânea de ser e não-ser encontrado em toda a realidade mundana só pode
ser solucionado por aduzir duas referências distintas entre si, que coexistem simultaneamente,
sem se contradizerem novamente. Tais referências apenas se encontram na afirmação do ser
criado do mundo enquanto relação subsistente, que, na totalidade de seu ser relacionado,
difere também e, ao mesmo tempo, totalmente de seu para-onde.
Por conseguinte, falar de Deus a partir do mundo, de acordo com o conhecimento
relacional do ser do mundo, somente é possível por meio de uma analogia unilateral na qual
semelhança e dessemelhança do mundo com Deus só se afirmam à base da impossibilidade de
conclusão, da total dessemelhança “da parte de Deus”. Unicamente assim, pode-se preservar a
inconcebilidade de Deus, que, por isso mesmo, nunca poderá estar “debaixo” de algum
conceito. Afirmar que Deus existe, então, permanece dentro da analogia unilateral. Também o
“ser” é atribuído a Deus apenas de forma referente.
A compreensão relacional de Deus por meio do mundo em seu ser referido àquele sem
quem não pode existir traz consequências graves para o discurso corriqueiro de Deus: por
exemplo, em relação à compreensão de sua onipotência, da existência do mal e do livre-
arbítrio, ou da autonomia do mundo em relação à liberdade de Deus, como ressalta KNAUER.
Pois, uma vez que a dependência do mundo é afirmada insuperavelmente em sua totalidade,
Deus há de ser concebido como de fato “poderoso em tudo” que existe e acontece. Trata-se
sempre de uma onipotência in actu ao invés de meramente “potencial”.
Assim KNAUER reforça, repetidas vezes, em seus escritos, que somente uma
compreensão relacional do ser proíbe simplesmente concluir do mundo a Deus. Muito pelo
contrário, do mundo apenas se pode concluir a sua criaturalidade.
Mas, então, o mundo não é explicado por Deus, como se ele fosse, por assim dizer, a pedra final de nossa própria síntese metafísica, mas ele é somente explicado pela sua própria criaturalidade.132
Pois se, segundo KNAUER com referência a TOMÁS, somente é possível afirmar uma
relação conceitual ou pensada de Deus ao mundo, tal “conhecimento natural de Deus”, dentro
de uma concepção relacional em toda sua unilateralidade, emerge, de repente, como
argumento maior contra o termo “palavra de Deus”.
132 KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 188.
93
A intelecção na relação real e unilateral do mundo a Deus como conhecimento de sua
criaturalidade é a “objeção mais fundamental”133 contra a afirmação da comunhão com Deus.
A própria mensagem cristã se expõe, com isso, a um paradoxo não só deliberadamente, mas
também inevitavelmente em função da afirmação dessa mesma comunhão com Deus. Pois ela
só pode ser entendida coerentemente se ela não tomar sua medida em alguma realidade criada.
Doutro modo, não seria mais comunhão com Deus e cairia necessariamente sob suspeita de
autoprojeção.
KNAUER associa tal problema dentro do contexto da história da teologia à questão –
igualmente própria da teologia escolástica134 – de como o axioma do agir uniforme das
pessoas divinas ad extra pode ser conciliado com a função respectivamente particular de cada
uma das pessoas divinas na história da salvação. Pois, segundo Concílio de Florença, é
convicção do Magistério da Igreja que Pai, Filho e Espírito Santo agem como um só princípio
perante a criação (DH 1330s).135 No campo da razão, por conseguinte, não é possível
diferenciar alguma relação real de Deus a Deus em Deus, tampouco uma relação real de Deus
com o mundo. Diante disso, agrava-se mais uma vez a pergunta pela condição de
possibilidade de uma relação real de Deus ao mundo, tal como afirmada pela mensagem
cristã, em sua pretensão de ser palavra de Deus.
Tal fala do ser absoluto de Deus realmente tem algo atormentador. No fundo, [ela] significa: comunhão com Deus primeiramente é tudo, menos autoevidente. Pois nenhuma qualidade criada e com isso nenhum esforço ou desempenho, maior que seja, jamais pode ser suficiente para nos pôr em comunhão com Deus.136
Na verdade, o conceito de Deus como “aquele sem quem nada é”, de um lado, é o
conceito mais “vazio” de Deus. Esse conceito não permite nem sequer vislumbrar a
possibilidade de um estar voltado de Deus ao mundo. No horizonte de nossa razão,
experimentamos o mundo enquanto criado e Deus no modo de sua “ausência”.137 Exatamente
aqui, KNAUER situa a fala do deus absconditus, do “Deus oculto” de LUTERO.138 Por outro
lado, a partir do mundo e com relação a ele, esse conceito de Deus é o mais carregado de
133 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 4. 134 Cf. TOMÁS DE AQUINO. S.th. I q13 a7 c. Apud: KNAUER. Der Glaube, 76, nota 84; cf. tb., p. ex., IDEM.
Teología fundamental hermenéutica, 164. 135 No cap. III/2 será mostrado que o suposto agir divino no mundo designado tradicionalmente como agir para
fora de si, na verdade, é um acolher dentro de si (ad intra Dei). 136 KNAUER. Unseren Glauben, 36s. 137 Cf. KNAUER. Der Glaube, 71. 138 Cf. IBID., nota 77; cf. tb. KNAUER. Eine andere Antwort auf das „Theodizeeproblem“, 207s.
94
“ser”, pois nele o ser todo do mundo emerge como constitutivamente remetido a ele. Em cada
realidade mundana singular, pode-se reconhecer seu ser referido a Deus como “Criador” pelo
fato de que nossa realidade nos chama a co-responder a ela. Pois o mundo não é uma
realidade objetiva, neutra a ser conhecida ou não. Sempre somos existencialmente afetados
por ela em nossa consciência. Somos abordados por Deus em nossa consciência no modo de
sua ausência porque é a própria realidade do mundo que nos desafia a humanizarmo-nos com
ela.
Desse modo, já nessa dimensão natural em que se reconhece que todo ser se “deve”
irremediavelmente a Deus, ele merece nossa gratidão e nosso louvor, porém sem expectativa
de algum amparo da parte de Deus. A realidade, no confronto com a proclamação cristã,
assim se apresenta à nossa consciência como “Lei” no sentido de nossa “responsabilidade
ética”.139
No entanto, KNAUER assinala nesse contexto que tal conhecimento de Deus tomado
por si só em nada surge como algo agradável ou benéfico ao ser humano. Pois em conclusão
do acima afirmado, Deus mesmo jamais pode tornar-se objeto de nossa experiência. “Todas as
supostas experiências de Deus, na realidade, sempre são apenas a experiência da profundidade
do próprio ser criado”.140
Abstraindo da fé, o conhecimento de Deus, por meio de sua criaturalidade, deixa o ser
humano literalmente sem esperança e desconfortado. Nesse sentido, idolatração ou fuga do
mundo são tendências consecutivas muito difundidas. Pois cada afirmação de uma relação
real de Deus ao mundo emerge como impossível e inexistente porque, “no fundo
experimentamos Deus a partir do mundo somente no modo de sua ‘ausência’”.141
Pode-se dizer que nisso reflete-se o momento verídico da crítica ateísta da religião.
Reconhecendo-o formula BONHOEFFER: “O Deus que nos deixa viver no mundo sem a
hipótese de trabalho Deus, é o Deus diante do qual estamos constantemente. Diante de e com
139 Cf. KNAUER. Der Glaube, 87.89ss.341ss. Parece que KNAUER descobre nessa afirmação o nexo entre a ideia
da inegável historicidade [Geschichtlichkeit] do ser humano em EBELING e o conhecimento metafísico dessa realidade sem seu ser referido a Deus.
140 KNAUER. „Wort Gottes“ als Grundkategorie. 141 KNAUER. Der Glaube, 47.
95
Deus vivemos sem Deus”.142 A partir daí, finalmente surge, com radical veemência, a questão
existencial atribuída a LUTERO, “como eu obtenho um Deus misericordioso?”, como
expressão da consciência da não-trivialidade da comunhão com Deus.143
Acontece que o termo “palavra de Deus” sugere justamente a existência de uma
relação real de Deus ao mundo por meio de uma palavra somente sua. Mas como se pode
afirmar uma relação real de Deus ao mundo na qual não seja o mundo o termo constitutivo
para tal relação a ser pensada como subsistente? Isso não leva a considerar uma relação
anterior de Deus a Deus como única referência constitutiva para uma relação real dele ao
mundo? Ainda assim, como o ser humano pode saber de tal ser abordado por Deus se este não
se tornar humano para transmiti-lo a ele? E finalmente, se uma palavra de Deus só faz sentido
se emergir como palavra humana, como o ser humano pode conhecer acolhendo sua verdade
se esta não é legível no mundo e assim demonstrável pela razão humana? Isso não pressupõe
que tal palavra assim comunicada não só revele a existência de um “nexo divino” no ser
humano, e sim também encerre em si a condição de possibilidade de acolhê-la como
verdadeira?! “Paradoxalmente, será justamente esta dificuldade de compreensão diante da
mensagem cristã que, a um olhar mais preciso, possibilita sua compreensão”.144
Pois a essas questões somente a mensagem cristã pode responder unicamente por
referência ao seu conteúdo. Ela se autoevidencia diante da razão, mas é compreensível como
verdadeira apenas na fé. O problema de fundo de todo falar de Deus é o da mediação entre
Deus e mundo. E, quanto ao discurso da fé, no fundo, trata-se sempre da questão de como
“incompreensibilidade de Deus” e sua “autocomunicação” ao mundo devem ser conciliáveis!
É o que se precisa averiguar no próximo capítulo.
142 BONHOEFFER, DIETRICH. Widerstand und Ergebung. Briefe und Aufzeichnungen aus der Haft herausgegeben
von Eberhard Bethge. 12.ed. Gütersloh: Gütersloher, 1983. Esse texto de BONHOEFFER que cita e interpreta o princípio etsi deus non daretur (de HUGO GROTIUS) se encontra citado de outra edição em KNAUER. Der Glaube, 197, nota 278; cf. tb. IDEM. Eine andere Antwort auf das „Theodizeeproblem“, 208.
143 Cf. KNAUER. Der Glaube, 82. 144 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 5.
96
CAPÍTULO III
A “PALAVRA DE DEUS” SE AUTOEVIDENCIA POR MEIO DE SEU CONTEÚDO
TRINITÁRIO – ENCARNATÓRIO – PNEUMATOLÓGICO
INTRODUÇÃO
Ao concluir o capítulo anterior, viu-se que, à primeira vista, a mensagem cristã mesma
parece colocar a sua frente uma pedra de tropeço contra sua própria pretensão de ser
entendida como “palavra de Deus” em um sentido estrito. Pois, em resposta à questão de
quem é “Deus”, constatou-se que nosso conhecimento de Deus se dá no modo de sua ausência
(o deus absconditus) mediante reconhecimento do mundo em sua total dependência dele:
Sempre se experimenta apenas o mundo. De fora da fé voltada para a “palavra de Deus” também em assim chamadas “experiências de Deus” e demais “iluminações” experimenta-se, na realidade, sempre somente a profundidade do próprio ser que justamente não é Deus e sim não pode ser sem ele.1
Com isso, KNAUER afirma não apenas que uma relação real de Deus ao mundo é
completamente ininteligível para a razão; ao mesmo tempo, ele confirma que, dentro dessa
perspectiva criatural, a morte, com seu poder do medo infundado em nós, mantém-se
desconfortavelmente como palavra última sobre a nossa existência.2 As tentativas subjacentes
a muitos discursos aparentemente piedosos de compensar tal desconforto, querendo concluir
alguma certeza sobre o mundo a partir de Deus, hão de ser desconstruídos. Ao mesmo tempo
em que tendem a degradar “o absoluto de Deus” a uma realidade criada (ainda que
“suprema”), correm o risco de burlar o conhecimento do ser criado do nada do mundo em sua
inescapável transitoriedade.3
1 KNAUER. Der Glaube, 71. 2 Cf. KNAUER. Der Glaube, 81. 3 EBELING mesmo afirmou, como relata KNAUER (cf. IDEM. Zu Gerhard Ebelings „Das Wesen des christlichen
Glaubens”), que o reconhecimento da radical historicidade do mundo é, em assunto, objetivamente falando, idêntico ao reconhecimento da criaturalidade do mundo mediante ontologia relacional (cf. IDEM. Verantwortung des Glaubens, 20-46).
97
Desse modo, a doutrina do conhecimento natural de Deus assume uma função crítica
no sentido da desmitologização de BULTMANN, uma “desintoxicação da teologia”4 de seus
vícios. Desilude a falsa eloquência sobre Deus (que o coloca como ídolo sob algum conceito).
Reprova sua transposição para a esfera do enigmático, porque assim se nega a possibilidade
de um discurso coerente de Deus (desvinculando-o do mundo). Paradoxalmente, somente
mediante a doutrina relacional da criação, a mensagem cristã consegue se explicar a si mesma
por referência ao seu conteúdo, acessível em sua verdade, contudo exclusivamente na fé.
Isso exige, outra vez, a concentração no termo “palavra de Deus”. Pois não só o
conceito de “Deus” parece opor-se a uma compreensão coerente de palavra de Deus. O
próprio significado de “palavra” surge agora como obstáculo maior de uma compreensão
consistente de “palavra de Deus”. Pois, em sua pretensão de verdade, o termo “palavra de
Deus” implica uma relação real de Deus ao mundo justamente à medida que por “palavra”
não se pode entender outra coisa senão uma palavra humana, comunicação entre seres
humanos.5
E, somente com base no seu “caráter de palavra” [Wortcharakter ou Worthaftigkeit], a
mensagem cristã levanta “pretensão de revelação” [Offenbarungsanspruch].6 Com essa
afirmação, KNAUER critica a pretensão de relativizá-la, desvinculando “palavra” de “Deus”,
ou “ouvir” do “crer”. Não se pode jogar a pretensão de ser palavra de Deus contra a pretensão
de ser palavra de Deus, como parece ser mentalidade bastante difundida, inclusive em meio
de teólogos, como o autor exemplifica mediante afirmação de HEINRICH Fries:
É a palavra que Deus mesmo fala – e como isso é imaginável? -, ou é a palavra autêntica que é falada sobre Deus? Mas, chega a ser expresso suficientemente, no conceito da palavra, que, na fé e na teologia, se trata de atos, de história, de eventos e pessoas?7
4 Assim um aluno do Instituto de Ciências Religiosas (ICRE) da Arquidiocese de Fortaleza intitulou seu
trabalho final na disciplina da teologia fundamental no primeiro semestre de 2004 em reação ao pensamento de KNAUER. Com essa expressão ele captou precisamente o sentido do resgate do conhecimento natural de Deus pela ontologia relacional como conditio sine qua non para uma teologia relacional da revelação.
5 Cf. KNAUER. Was heißt „Wort Gottes“, 9; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 83s. Este aspecto é retomado em 1.3. 6 KNAUER alega que a pretensão não é algo particular do cristianismo, mais próprio de cada religião; só
depende como ela se fundamenta. Cf. IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 182; cf. tb. IDEM. Ein anderer Absolutheitsanspruch.
7 FRIES, HEINRICH. Fundamentaltheologie. Graz-Wien-Köln: Styria, 1985, 154. Apud: KNAUER. Der Glaube, 83, nota 94; cf. tb. IDEM. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 186.
98
Em última consequência, o autor supracitado suspende a busca necessária de um
critério seguro para se falar em revelação de Deus. Ele contesta assim que seja possível Deus
se dizer efetivamente ao mundo por uma palavra somente sua. Porém, como foi demonstrado
no capítulo anterior, isso nega Deus em sua inconcebilidade. Em detrimento desta, precisa-se
recorrer a outras evidências como a provas historicistas ou transcendentalistas (que assim
seriam racionalistas) do “fato” da revelação. Procura-se fazer plausível uma revelação de
Deus a partir das próprias conveniências. Mas a palavra “Deus”, ao contrário, só pode ser
introduzida a partir do fato histórico da proclamação presente da mensagem cristã.
Para ser entendida como “Evangelho”, então, a mensagem cristã se explica por si
mesma com referência ao seu conteúdo trinitário (III/2) – encarnatório (III/3) –
pneumatológico (III/4). No entanto, só se entende o nexo intrínseco e coesão interna desse
“tripé dogmático” na teologia relacional de KNAUER, se antes se sabe situá-lo em sua
necessidade [teo]lógica para a compreensão da palavra de Deus (III/1). A partir da fórmula
calcedônica, como critério hermenêutico universal para a teologia, afirma-se um paralelo
estrutural entre a pessoa de Jesus Cristo e as demais afirmações de fé (III/5).
1 AS EXIGÊNCIAS LOGICAMENTE NECESSÁRIAS DE “PALAVRA DE DEUS”
Nem toda palavra que se diz “de Deus” é compreensível enquanto tal. “Uma palavra é
compreensível como ‘palavra de Deus’ somente quando pode ser entendida como
autocomunicação de Deus em palavra co-humana”.8 Por isso, a crucial distinção entre “Lei” e
“Evangelho” se torna critério hermenêutico para compreender palavra de Deus “no sentido
próprio” [im eigentlichen Sinn] (1.1). Seu “caráter de mistério” [Geheimnischarakter] resulta
da impossibilidade de evidenciar sua verdade – nem sequer em sua mera possibilidade – de
que nela o próprio Deus está voltado ao mundo como simples ser humano (1.2). A doutrina da
Trindade há de ser situada no corpo dogmático como condição de possibilidade de fundo que
permite afirmar uma relação real (revelação) de Deus ao mundo (1.3). A encarnação do Filho
é a condição de possibilidade pela qual se entende “palavra de Deus” plena e definitivamente
como comunicação real de que só Deus pode dar e de que somente por meio de uma palavra
humana pode chegar ao conhecimento: seu amor incondicional, o Espírito Santo (1.4). O
envio desse seu Espírito, o Espírito de Cristo, por sua vez, há de ser entendido como condição
de possibilidade para o ser humano acolher a mensagem de Jesus e sua própria pessoa em sua
8 KNAUER. Der Glaube, 279.
99
pretensão última de verdade de ser a autocomunicação de Deus originária. Isso, porém, não
seria possível sem que a criatura humana já não se encontrasse acolhida, mesmo sem saber,
desde o início, na relação eterna do Pai ao Filho que é o Espírito Santo (1.5).
1.1 A distinção fundamental entre Lei e Evangelho
Assumindo a “distinção fundamental” de EBELING, KNAUER dá o passo da ontologia
relacional à teologia relacional.9 Já EBELING a concebia como chave hermenêutica principal
para a compreensão de palavra de Deus em superação dos “abusos” (as dissociações referidas
no cap. I) do termo “palavra de Deus”. Trata-se de compreender o Evangelho enquanto
Evangelho, a fé enquanto fé, palavra de Deus naquilo que pretende ser em seu sentido
“próprio”: “autocomunicação de Deus em palavra co-humana”. Contudo, apenas com
referência à Lei, o Evangelho pode se manifestar em seu caráter contraintuitivo às pré-
compreensões do ser humano.
Já à luz da palavra “Deus”, por tudo que a ele remete em total diferença dele, nós nos
sabemos abordados por ele em nossa responsabilidade ética. Por isso, segundo KNAUER, é
pertinente chamá-la de palavra de Deus. Ainda que isso aconteça no modo de sua ausência,
trata-se de “palavra de Deus”, mesmo “no sentido impróprio” [im uneigentlichen Sinn],
porque nela tratamos do mundo enquanto ser criado por Deus.10 Para dar-se a entender como
“Evangelho”, a mensagem cristã precisa referir-se ao reconhecimento da eticidade do ser
humano como seu pressuposto sine qua non.
No reconhecimento da criaturalidade de toda a sua realidade (dever-se totalmente), o
ser humano reconhece, ao mesmo tempo, a exigência ética inegável (dever) de lidar com ela
responsavelmente.11 Mas, somente por meio do confronto com a mensagem cristã – à medida
que esta é pregada adequadamente como “Evangelho” –, o ser humano é capaz de reparar da
existencial ambiguidade na qual se encontra: naturalmente, ele tende a compreender-se e
justificar-se a partir de si mesmo, está inescapavelmente “sob a Lei” (Rm 7,14ss).
9 Cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 52-68. Após apresentar essa distinção fundamental em EBELING,
quem a concebe como o “nervo da teologia” (53), KNAUER demonstra como ela pode se tornar igualmente pertinente na tradição católica mediante prova de compatibilidade com uma reta compreensão da relação entre “natureza” e “graça” (cf. IBID., 60ss).
10 Cf. KNAUER. Der Glaube, 87s. 11 Cf. p. 49 (I/3.2) deste trabalho. A esta altura de sua reflexão KNAUER desenvolve sua ética fundamental a
partir da reinterpretação da máxima ética escolástica, o “princípio do duplo efeito”, em conexão com o imperativo categórico de KANT. Cf. KNAUER. Der Glaube, 91-113 e IDEM. Handlungsnetze. Über das Grundprinzip der Ethik. Frankfurt am Main: Books on demand, 2002.
100
Enquanto a “Lei” é o que constitui a realidade criatural como nosso horizonte de
conhecimento, o “Evangelho” é a proclamação-transmissão do ser amado por Deus, que é sua
autocomunicação. O horizonte da Lei é rompido, e o ser humano é habilitado a conceber,
nessa palavra, sua comunhão com Deus como o agir salvífico do Espírito Santo nele.
Apenas essa palavra pode ser chamada de “palavra de Deus” no sentido próprio,
porque somente ela constitui comunhão com Deus. A tal palavra se faz jus somente na fé
como o estar-repleto-do-Espírito-Santo. É autocomunicação de Deus como “evento da
palavra” porque se trata daquilo que somente Deus pode dizer-nos, e à medida que somente
na fé o ser humano pode recebê-la como verdadeira. “Palavra de Deus” assim se torna
“conceito-chave teológico”: 12
O ser abordado por Deus em palavra co-humana é ele mesmo o evento da comunhão com Deus. [...] Dessa maneira, “palavra de Deus” não é somente o falar sobre o amor de Deus para os seres humanos, mas é ela mesma a realização [Vollzug] deste amor.13
A essa altura da reflexão, conhecimento natural de Deus por parte da razão e
afirmação da fé como conhecimento “sobrenatural” de Deus (“revelação”, cf. DH
3004s.3015) parecem, à primeira vista, diametralmente opostos e excludentes.14 Se é verdade
que entre razão e fé não pode haver alguma contradição real (DH 3017), então, a própria
mensagem cristã obriga-se assim a responder, com necessidade lógica, ao questionamento
inevitável da razão crítica de como uma “palavra de Deus” ainda deve ser pensável.
12 Cf. KNAUER. Der Glaube, 88. 13 IBID., 90. 14 É com base nessa “impressão” que se explica a radical oposição que PASCAL faz entre o deus dos filósofos e
o Deus de Abraão, Jacó e Isaac. E baseado no mesmo fato ainda, HEIDEGGER formula que ao deus conhecido pela razão não se pode nem rezar; cf. OLIVEIRA M. A DE /ALMEIDA C. (ORG.). O Deus dos filósofos modernos. Petrópolis: Vozes, 2002, 7-9). E certamente se cultivou na tradição protestante, desde a teologia dialética (KARL BARTH), a essencial conflitividade na qual a pregação cristã situa o que é “obra humana” [Menschenwerk], e assim incapaz de Deus, e o que é “obra de Deus no ser humano”, possível de ser concebida somente à luz da palavra discernente do Evangelho. KNAUER, por sua vez, esclarece que tal contradição só emerge mesmo do lado da razão porque nela uma relação real de Deus ao mundo não é inteligível.
101
1.2 Palavra de Deus como mistério
Geralmente, confunde-se a compreensão cristã de mistério com uma dificuldade
lógica, algo enigmático e, por isso, principalmente incompreensível ou inexplicável de forma
consistente.15 Nesse contexto, muitas vezes refere-se à fala de Deus como “mistério” para
refugiar-se ao “silêncio” aparentemente piedoso do “não-se-pode-saber, [mas] tem-que-crer”
(fideísta). “‘Difícil’, porém, um mistério de fé se torna somente onde se insiste mesmo em
despejar o vinho novo da mensagem cristã nos odres velhos”.16
Em contrapartida a essa concepção de fato enigmática e completamente distorcida de
mistério, KNAUER entende por “mistério de fé” (1) uma realidade não-legível no mundo (e por
isso não-dedutível dele) que, por isso, (2) precisa ser “sobredita” à realidade mundana numa
palavra e que, enquanto tal, (3) somente é conhecida como verdadeira na fé.17
Por um mistério de fé, na realidade, se entende um fato [Sachverhalt] que não se pode desde já ler no mundo pela mera razão, mas que vem a ser dado somente por meio da palavra de Deus. Tanto sua possibilidade positiva como sua realidade são reconhecidas somente na fé.18
Trata-se de conceber revelação divina unicamente como autocomunicação de Deus.
No capítulo anterior, já se aludiu ao conceito de Deus como mistério no sentido de sua
inconcebilidade. Isto corresponde ao primeiro critério da definição de mistério acima referida:
Se Deus é incompreensível para o conhecimento natural de Deus e com isso “mistério”, então, sua autocomunicação é, para a fé, mais uma vez “mistério”. Mas em ambos os casos “mistério“ não significa o indizível, mas um fato dizível [worthafter Sachverhalt].19
15 Cf. KNAUER. Vernunft – Naturwissenschaften – christlicher Glaube, 33. O esclarecimento do conceito de
„mistério“ contra sua caricatura como fala ofuscada de Deus é uma constante em todos os escritos de KNAUER.
16 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 7. 17 Cf. KNAUER. Der Glaube, 114. Referindo no contexto a EBERHARD JÜNGEL, Gott als Geheimnis der Welt.
Zur Begründung der Theologie des Gekreuzigten im Streit zwischen Theismus und Atheismus. 5.ed. Tübingen: J.C.B. Mohr, 1986, KNAUER ressalta que justamente sendo assim é próprio do mistério de fé tender à sua manifestação. Ele deseja manifestar-se e, portanto, requer ser proclamado. Cf. IBID., especialmente a nota 140.
18 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 7. 19 KNAUER. Der Glaube, 114. Pode-se associar o uso do termo “caráter de palavra” [Wortcharakter ou
Worthaftigkeit] em KNAUER, aqui novamente implicado, ao da “dizibilidade” [Sagbarkeit] em JÜNGEL com quem compartilha sua compreensão de mistério (cf. IDEM. Gott als Geheimnis der Welt, 307ss).
102
À base de “Deus” como mistério no sentido de seu caráter de não-legível no mundo,
na fé se trata do único “mistério fundamental” [Grundgheimnis] de nosso ser abordado por
Deus numa palavra co-humana. Por isso, KNAUER entende os “dogmas fundamentais”
[Grunddogmen], Trindade, encarnação (envio do Filho; Gl 4,4) e o vínculo pneumático (envio
do Espírito Santo; Gl 4,6), e os demais mistérios de fé necessariamente como desdobramento
desse único mistério fundamental da fé.20
Além disso, o autor apresenta esses dogmas não como enigma teológico, mas como
“uma verdade muito simples, compreensível e livre de contradição”.21 Ao invés de propor
uma simplificação ou até relativização da linguagem dogmática e de seu caráter normativo,
KNAUER até radicaliza a compreensão do dogma. Ele situa Trindade, encarnação e envio do
Espírito Santo hermeneuticamente de forma insuperável e indissociável no todo da
fundamentação da fé cristã, igual e unicamente compreensível como “mistério de fé”.
É compatível com o conceito do “mistério de fé”, sim até exigido a partir dele que os mistérios singulares de fé se deixam reconduzir a um único mistério fundamental da fé o qual, naturalmente, apenas assim pode ser crido em sua verdade. Pela recondução dos muitos mistérios de fé a um só nem os muitos mistérios de fé nem este deixam de ser mistérios de fé. Mas na fé a conexão [Zusammenhang] dos muitos mistérios de fé singulares entre si é inteligível como necessária. Não é assim que se crê apenas os mistérios de fé singulares e somente depois sua conexão em mais outro ato de fé. Sua conexão também não consiste em que todos eles estão contidos em uma revelação divina, sendo que seu ficar revelado lhes permaneceria exterior. Ao contrário, todo mistério de fé singular que se acolhe na fé já contém a referência a todos os outros dentro de si, sendo que se fica dependente de receber tudo do ouvir.22
Em que sentido, agora, os mistérios trinitário, encarnatório (= cristológico) e
pneumatológico (= eclesiológico23) representam as condições de possibilidade
[teo]logicamente necessárias pelas quais a mensagem cristã se autoevidencia na fé como
palavra de Deus?
20 IBID., 205; cf. tb. IDEM. Kurze Einführung in den christlichen Glauben, onde designa de „mistério
fundamental“ especificamente a Trindade de Deus porque na fé se trata precisamente de nosso ser acolhido nela. A respeito da lógica das “fórmulas dogmáticas fundamentais” [dogmatische Grundformeln] cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 118-126.
21 KNAUER. Unseren Glauben, 40. 22 KNAUER. Der Glaube, 363. Inclusive, se trata até de um critério para a autoridade (no sentido da ἐξουσία) da
mensagem cristã que está na sua fidedignidade (cf. IBID., 421). Num trecho semelhante consta referência explícita aos três dogmas fundamentais: cf. IDEM. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 74s.
23 E deve-se acrescentar dentro da lógica da abordagem pneumatológica de KNAUER, teologia dos sacramentos, mariologia, ecumenismo e teologia das religiões (cf. III/4).
103
1.3 Necessidade da compreensão trinitária
Já foi dito que o termo “palavra de Deus” obviamente implica uma relação real de
Deus ao mundo. A partir disso, emerge primeiro o questionamento da parte da razão crítica:
como deve ser possível Deus estar voltado ao mundo de forma real e subsistente, sem que o
mundo se torne o termo constitutivo de tal relação de Deus? No capítulo anterior (cf. II/4.5),
fundamentou-se, por meio da referência que KNAUER faz a TOMÁS, que o mundo, para além
de sua dependência total de Deus, não pode, por sua vez, servir de base ontológica para uma
relação real de Deus ao mundo. Como escapar dessa aparente aporia?
Se o mundo jamais pode ser a “medida” (no sentido de um termo constitutivo) de uma
relação real de Deus a ele, a única maneira de conceber tal relação, sem contradizer a
divindade de Deus, é a compreensão trinitária de Deus. “Comunhão com Deus pode ser
afirmada de forma definitivamente compreensível apenas como o ser incluso do ser humano
no amor de Deus a um ‘divino em face de’ [göttliches Gegenüber], do Pai ao Filho”.24 Pelo
dogma da Trindade de Deus a mensagem cristã afirma assim a existência de uma relação de
Deus com Deus “anterior à fundação do mundo” (Jo 17,24; Ef 1,4; 1Pd 1,20)25 e na qual o
mundo é acolhido desde o início de sua existência.
E somente uma ontologia relacional pode responder coerentemente à questão de como
a concepção trinitária de Deus não anula ou suspende o conhecimento do Deus único, mas
diferenciado em si de forma relacional. De fato, a mensagem cristã afirma Deus ser três
pessoas em uma só natureza, Pai, Filho e Espírito Santo, sendo um só Deus. A verdade dessa
afirmação, no entanto, só chega ao ser humano por meio da palavra anunciada, e somente na
fé é reconhecida como verdadeira.26 Portanto, a compreensão trinitária de Deus se apresenta
na doutrina da revelação como a condição de possibilidade de uma relação real de Deus ao
mundo que o termo “palavra de Deus” induz.
24 KNAUER. Der Glaube, 119. 25 Referências bíblicas frequentemente citadas por KNAUER nesse contexto: cf. IDEM. Der Glaube, 112 e já em
IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 189. 26 A compreensão do credo niceno-constantinopolitano, por isso, é ato de fé e não resultado da infiltração da
filosofia grega no mistério cristão, como KNAUER demonstra ao explicar o significado do dogma em vínculo estreito com a Escritura (cf. III/2). Pois, na verdade, as fórmulas dogmáticas não são petrificação da linguagem dinâmica e viva de fé das “fórmulas” batismal e doxológica trinitárias neotestamentárias tais como Mt 28,19 e 2Cor 13,13. Ao contrário, aquelas são o sentido destas à medida que a Tradição toda é o sentido da Escritura. Cf. KNAUER. Der Glaube, 253 e tb. IDEM. “Schrift und Überlieferung”. In: Ökumenisches Forum: Grazer Hefte für Ökumene 3 (1980) 31.
104
1.4 Necessidade de compreensão encarnatória
Por meio da referência à Trindade de Deus, a mensagem cristã responde que
comunhão com Deus somente se torna dizível se o mundo se encontrar acolhido numa relação
de Deus a Deus, do Pai ao Filho. Como tal relação de Deus ao mundo não é legível no próprio
mundo, ele há de ser “sobredito” a ele. Nesse sentido, a mensagem cristã só pode levantar
uma pretensão de revelação à medida que esta seja compreensível unicamente como
autocomunicação de Deus ao mundo. Mas em que sentido a mensagem cristã pode atribuir a
Deus uma “palavra”, visto que se deve entender por “palavra” sempre e originalmente uma
palavra humana?
Não existe uma palavra caída do céu. Palavra sempre é dita de um ser humano a outro. Palavra, portanto, é, de antemão, palavra humana. Como ainda se pode falar de uma “palavra de Deus”? Então, Deus é um ser humano?27
De fato, a mensagem cristã responde a tal pergunta por meio da doutrina da
encarnação do Filho (Gl 4,4) em Jesus de Nazaré como “palavra de Deus” (Jo 1,14). “A
encarnação do Filho é a condição de possibilidade para poder falar de ‘palavra de Deus’, da
autocomunicação de Deus em uma palavra co-humana, de forma definitivamente sensata
[definitiv sinnvoll]”.28 Não há outra referência legítima para a mensagem cristã afirmar-se
como “palavra de Deus”, senão de tal maneira, que Deus mesmo, enquanto ser humano, se
pronuncie a si mesmo por meio de uma palavra humana ao mundo. Uma relação de
autocomunicação de Deus ao mundo implica, por isso, a “encarnação de Deus” para se tornar
manifesta. Nesse sentido, a Trindade [imanente] também é “a condição de possibilidade de
uma encarnação do Filho para a nossa salvação”.29
Nesse contexto, KNAUER também se refere à Dei Verbum que explicita: “mediante
esta revelação, portanto, o invisível (cf. Cl 1,15; 1T 1,17), levado por seu grande amor, fala
aos homens como a amigos (cf. Ex 33,11; Jo 15,14) e com eles se entretém (cf. Br 3,38) para
convidá-los à comunhão consigo e nela recebê-los” (DV 2).30
27 KNAUER. Was heißt „Wort Gottes“?, 9s. 28 KNAUER. Der Glaube, 135; cf. tb. formulação semelhante: “A fala de ‘palavra de Deus’ somente cessa de ser
problemática sob a pressuposição que Deus mesmo venha ao encontro como ser humano”. KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 187.
29 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 1. 30 Cf. KNAUER. Der Glaube, 125.249. Para as citações de textos do Concílio Vaticano II consultou-se, além da
acima citada tradução portuguesa do DENZINGER-HÜNERMANN, o Compêndio do Vaticano II. 24.ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
105
O Magistério assim fundamenta, por toda essa constituição dogmática, a afirmação
do caráter de palavra, original da mensagem cristã, e ressaltado por KNAUER:
Não se pode tratar apenas de uma tradução posterior e então certamente insuficiente de uma palavra divina em palavra humana. Antes, o conceito “palavra de Deus” há de ser entendido de forma tal, que em palavra humana seja dito exatamente o que Deus há de dizer a nós seres humanos.31
O fato de a palavra de Deus realmente ser inesgotável não significa, de forma
alguma, que a linguagem humana seja logo imprecisa e seu significado, inevitavelmente
deficitário.32 Deus tem de se tornar ser humano para nos dizer em uma simples palavra
humana o que há de dizer a todos nós. Revelação divina, então, não é possível ser afirmada
sem supor necessariamente a “encarnação de Deus”. Nesse sentido, “revelação” e
“encarnação” têm significado sinônimo, porque se remetem à compreensão da relação real de
Deus ao mundo unicamente como “autocomunicação de Deus” em Jesus de Nazaré como
“mediador e plenitude de toda a revelação” (DV 2).
A afirmação da “necessidade da encarnação” teológica, em função da fundamentação
da fé, por causa da “não-evidenciabilidade” [Nichtausweisbarkeit]33 de nossa comunhão com
Deus nas coisas do mundo, explica-se perante a pretensão de verdade da mensagem cristã.
Essa consideração se deve à afirmação da necessidade teológica, que está fundada na livre
autodoação do Pai ao Filho no Espírito Santo. Perante o reconhecimento de que nenhuma
condição criatural é capaz de ter, por conta própria, comunhão com Deus, “obriga” a fé a falar
em “outra misericórdia”34 que não tem sua medida em alguma qualidade criatural.
31 KNAUER. Der Glaube, 130. 32 Cf. KNAUER. Der Glaube, 130, nota 165, em que o autor refere a essa distinção em reação a uma afirmação
do teólogo HEINRICH BACHT de que a verdade divina, por causa de sua mediação mundana, nunca se obteria por “pureza química” e sim apenas “fundido na escória das formas humanas de expressão” (IBID.). Cf. tb. KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 187.
33 KNAUER. Der Glaube, 138, nota 181. O termo de BULTMANN é referido pelo autor de forma sinônima ao seu termo da “não-legibilidade” [Nichtablesbarkeit] da verdade da fé nas coisas do mundo pela razão humana.
34 Nesses termos responde SANTO ANSELMO (inclusive à questão do “por quê” da encarnação da segunda pessoa divina) em sua obra Cur Deus homo. A pretensão de ANSELMO de demonstrar a necessidade da encarnação sola ratione e remoto Cristo, porém, pressupõe que seus interlocutores (judeus e muçulmanos) compartilhem a possibilidade de comunhão com Deus – assunto não mais da razão e sim da fé como KNAUER alega em e-mail pessoal de 16 fev. 2009. A concepção relacional de ANSELMO em sua coerência interna e sua importância para a teologia contemporânea foi demonstrada por GERHARD GÄDE. „Eine andere Barmherzigkeit”. Zum Verständnis der Erlösungslehre Anselms von Canterbury. Würzburg: Echter, 1989; cf. tb. IDEM. “Wie erlösungsbedürftig ist der Mensch und was kostet seine Erlösung?. Zur Aktualität von ‚Cur Deus homo‘ 900 Jahre später“. In: ERNST, STEPHAN; FRANZ, THOMAS (ORG.). Anselm von Canterbury (1033-1109) und die rationale Rekonstruktion des Glaubens. Würzburg: Echter, 2009, 249-274.
106
Contudo, a afirmação da encarnação da segunda autopresença de Deus em Jesus de
Nazaré não implica uma união da realidade divina (incriada) com a humana (criada)? É
precisamente na questão cristológica da mediação entre natureza humana e divina que esta
aparente aporia se põe originalmente em toda sua gravidade. Mas, com tal afirmação,
“somente à primeira vista parece ser explicada uma dificuldade por outra maior ainda”.35 A
mensagem cristã responde com referência à fórmula dogmática do Concílio de Calcedônia, da
“união hipostática” de Jesus Cristo, “uma única pessoa em duas naturezas” (DH 302).
1.5 Necessidade da compreensão pneumática
Em função de poder afirmar, sem contradição, uma relação real de Deus ao mundo, a
mensagem cristã se refere à compreensão trinitária de Deus. O fato de que tal relação real (de
autocomunicação) de Deus não é legível no mundo e, por isso, há de ser “sobredita” a este,
comunicada “de fora” de qualquer qualidade criatural, a mensagem cristã responde por
referência à encarnação do Filho. Nisso surge, de acordo com KNAUER,36 outra questão
correspondente às anteriores, mas nelas já está implicada: como o ser humano pode acolher
uma “palavra de Deus” se esta emerge como simples palavra humana? Se à base do
conhecimento humano, da sua razão, não é possível nem sequer conjeturar a possibilidade de
uma relação real de Deus ao mundo, como o ser humano deve ser capaz de reconhecer a
verdade da pretensão de validade da mensagem cristã? Como saber que, por meio de Jesus,
cognoscível pela razão apenas em sua humanidade como figura histórica, o próprio Deus vem
ao encontro nosso? Como reconhecer em Jesus de Nazaré o “Filho de Deus”, sem que a
condição de possibilidade para isso seja comunicada com a palavra?
De fato, a mensagem cristã, por referir sua constituição contínua ao Verbo encarnado,
afirma, no evento de sua proclamação, acontecer exatamente aquilo de que ela mesma fala: o
envio do Espírito Santo, o Espírito de Cristo. Nesse contexto, KNAUER se refere
explicitamente a Gl 4,4-6 em seu paralelo entre envio do Filho e do Espírito. Pois “ninguém
pode dizer que Jesus é o Senhor a não ser no Espírito Santo” (1Cor 12,3).37 A transmissão da
35 KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 187. 36 Cf. KNAUER. Der Glaube, 152. 37 Cf. IBID., 159.
107
fé pela mensagem cristã, por isso, há de ser entendida como a transmissão manifesta do
Espírito Santo. Dessa maneira, constitui-se a Igreja como “evento de transmissão da fé”.38 No
ato da fé, consuma-se seu conteúdo.
No entanto, não se pode tratar de um vínculo divino posteriormente acrescentado à
natureza humana porque, enquanto “acréscimo”, haveria de tomar sua medida na realidade
criatural a que se relaciona. Isso, por sua vez, exige, inevitavelmente, afirmar que o ser
humano, desde o início de sua existência, encontra-se acolhido numa relação de Deus a Deus.
Tal relação justamente é o Espírito Santo que Jesus nos transmite (Jo 20,22s).39
Somente numa ontologia relacional é possível afirmar a união entre criação e Criador
livre de qualquer contradição. Pois a comunhão do ser humano com Deus não tem sua medida
no ser criado da pessoa humana, e sim no fato de que, anterior à sua condição criatural, já se
encontra assumida numa relação real de Deus a Deus. Mas isso se afirma livre de contradição,
para toda a humanidade, apenas a partir de Jesus Cristo. À luz da autocomunicação divina, o
mundo emerge como criado desde o seu início na relação de amor entre o Pai e o Filho, a qual
é o próprio Espírito Santo. Essa verdadeira e original identidade, a nossa filiação divina, só
pode chegar ao nosso conhecimento por meio de uma palavra que não tem sua medida na
condição criatural do ser humano. E somente na fé como o estar-repleto-do-Espírito-Santo –
para nós sempre o Espírito de Cristo (LG 7,7) – a mensagem cristã, de fato, responde a essa
exigência pela referência ao nosso “ser criado em Cristo” (Jo 1,3.10; Ef 2,10; Col 1,16).
Esse é o fundamento ontológico da afirmação teológica que até mesmo o ato de
consonância com a (ou adesão à) fé é, desde o princípio, movido constitutivamente pela graça.
Em decorrência da afirmação do ser “criado em Cristo” de cada ser humano, afirma-se o
“estar repleto do Espírito Santo” da pessoa de fé, tanto quanto a vontade salvífica universal de
Deus (1Tm 2,4 e LG 1). Dessa maneira, consta que a autocomunicação de Deus ao mundo por
meio de sua palavra, como palavra humana na pessoa de Jesus Cristo, “tira o véu” (=
“revela”) da verdadeira condição do mundo, e nele do ser humano. Por isso, KNAUER se refere
à tradição magisterial (do II. Sínodo de Orange; DH 376), que já afirmou contra o
38 “Geschehen der Weitergabe des Glaubens”. KNAUER. Der Glaube, 214.215. Expressões sinônimas
substituem “fé” por “Espírito Santo” ou mesmo por “palavra de Deus”; cf. tb. IDEM. Teología fundamental hermenéutica, onde ele traduz “acontecimento continuo de la transmisión de la palabra de Dios”. Assim o autor demonstra, outra vez, a correlação intrínseca entre Deus, palavra e fé.
39 Chama atenção, nesse sentido, o uso do termo grego παραδίδωμι (transmitir, entregar[-se], confidenciar[-se] a) como fio condutor na obra lucana porque vincula a prática da transmissão da mensagem cristã (Lc 1,2) à vida toda de Jesus (Lc 1,26.35; 4,1.18; 10,21) até sua entrega final a Deus-Pai (Lc 23,46) donde ele vem constituir a Igreja (Lc 24,49; At 1,8; 2,4).
108
[semi]pelagianismo, que até mesmo o ato da acolhida da graça há de ser plenamente movido
pela mesma graça. Somente assim, a autocomunicação de Deus permanece, de fato,
compreensível como autocomunicação.
Geralmente, a apresentação da necessidade lógica das afirmações da fé em sua
implicação mútua dentro do campo da fé reforça a suspeita, tanto entre fiéis quanto entre
teólogos e, sobretudo, cientistas da religião, de que se trata de definições autoritárias da parte
do Magistério. Ou se pensa que a liberdade de Deus, ao revelar-se, fica sendo regrada pelo
pensamento humano. Em todo caso, considera-se uma petrificação da linguagem dinâmica da
Bíblia em fórmulas abstratas, frias e distantes da realidade concreta dos fiéis.40
Mas, longe de cair em racionalismo, KNAUER apenas pretende elucidar como os
dogmas fundamentais da fé se implicam mutuamente com necessidade intrínseca e assim
alicerçam a compreensão da fé.
Dogmas fundamentais são esses três: Trindade de Deus (Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, e nós somos acolhidos no amor do Pai ao Filho que é o Espírito Santo), encarnação do Filho (Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano; e assim ele pôde nos revelar numa palavra humana nosso participar de sua relação com Deus) e tornar-se-Igreja do Espírito Santo (o Espírito Santo é um e o mesmo em Cristo e nos cristãos; e assim a Igreja é o evento da transmissão do Espírito Santo na transmissão da Palavra de Deus). Tudo que existe, além disso, como afirmações de fé pode ser reconduzido a este mistério fundamental de nosso participar da relação de Jesus com Deus.41
Em seguida, o autor desenvolve de que maneira essas fórmulas dogmáticas se
garantem enquanto não-contraditórias diante do exame crítico da razão, quando
consequentemente formuladas nos termos da ontologia relacional. Pois ele as situa em sua
relação intrínseca de uma com a outra em desdobramento da afirmação central de nossa
comunhão com Deus no campo da fé. Nesse sentido, dito nos termos magisteriais, trata-se, na
teologia, do uso da “razão iluminada pela fé” (DH 3016) a fim de demonstrar como a palavra
de Deus se autoevidencia pelo seu conteúdo consistentemente. Mas, em sua verdade, as
afirmações de fé são acessíveis – e isso significa dizer em seu vigor soteriológico e existencial
– unicamente nessa mesma fé.
40 Cf. BOFF. A Trindade e a sociedade, 12, que introduz a distinção entre “fé” e “explicação de fé”. Assim
parece contrastar um movimento da “doxologia” (neotestamentária), o louvor, a partir da “experiência-fonte” (11), para a “teologia” através da qual “a fé abriu espaço para a razão” (IBID.). Impõe-se ao leitor a suspeita de que BOFF parece supor a fé ser algo incompreensível em si mesmo. Então, sua elucidação de fora, por auxiliar da razão em uma função do tipo “bengala”, se torna indispensável. Típico para essa postura é dizer que a razão faz “a fé mais crível e apetecível” (IBID.).
41 KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 74s.
109
2 TRINDADE DE DEUS: TRÊS PESSOAS NUMA NATUREZA
No início deste capítulo, o mistério trinitário foi situado em sua necessidade teológica
como condição de possibilidade de afirmar uma relação real de Deus ao mundo. A medida de
tal relação há de ser o próprio Deus. Essa reflexão prévia é indispensável em resgate do
caráter soteriológico da mensagem cristã, porque garante a compreensão da total gratuidade
do amor de Deus por nós. Nesse sentido, há de se concluir que a doutrina da Trindade não é
uma doutrina a mais a ser acreditada como é o caso na concepção aditiva da fé; nem
representa algum luxo da teologia cristã ou algum privilégio de reflexão de teólogos
extraordinariamente dotados de inteligência especulativa. Pela referência à Trindade de Deus,
a mensagem cristã simplesmente pretende dizer de que maneira nos podemos saber em
comunhão com Deus real e assim seguramente.
Entretanto, é comum a opinião, entre muitos fiéis, de que o mistério trinitário,
“tradicionalmente [...] designado de ‘mistério de fé no sentido mais estrito’”,42 é um enigma
matemático ou um “quebra-cabeça lógico”.43 Como dizer que Deus é um só Deus em três
pessoas sem que se caia nem em modalismo (sabelianismo e subordinacionismo bem como
seus variantes) nem em triteísmo? E em que sentido a reta compreensão do mistério da
Trindade pode nos afetar em nossa fé existencialmente?
Perante o impasse da dissociação entre natureza divina única e diversidade de pessoas
numa concepção substancialista (2.1), KNAUER reinterpreta o conceito problemático da
“pessoa” de forma relacional (2.2), que antes era o obstáculo maior de compreender a
Trindade de Deus definitivamente, sem incoerências (2.3). A partir da concepção relacional,
compreende-se de fundo a afirmação da identidade entre “Trindade imanente” com a
“Trindade econômica” (2.4).
42 KNAUER. “‚Der vom Vater und vom Sohn ausgeht‘ – zu einer ökumenischen Kontroverse”. In: ThPh 76
(2001) 230. 43 IBID. Em reação contra tal opinião corriqueira exclama o teólogo presbiteriano, SILAS BARBOSA DIAS num
texto postado na internet, citando STEVEN GUTHRIE: “A Trindade é um mistério a ser confessado, não um problema matemático a ser resolvido” Disponível em: <http://web.unifil.br/teologia/sermoes/Igreja%20da%20trindade.doc>. Acesso em: 23 out. 2009.
110
2.1 O problema da desarticulação teológica contínua do mistério da Trindade
Até mesmo muitos teólogos parecem capitular diante de uma compreensão clara da
Trindade de Deus sem dar margens a dificuldades lógicas: se não ignoram a necessidade
teológica do discurso trinitário,44 recorrem à imprecisão inevitável de todo discurso de fé por
causa da “insuficiência de nossos conceitos e expressões humanas”.45 Em última
consequência resta refugiar-se ao silêncio perante “augusto mistério”, porque “as palavras
morrem nos lábios” e “os pensamentos obscurecem na mente“.46 Afirmam que se pode apenas
delimitar teórica e, ainda assim, vagamente o discurso trinitário entre os dois extremos ou
posições “heréticas” acima referidas. No fundo, porém, confirmam, com isso que qualquer
discurso teológico-trinitário está inescapavelmente sob suspeita de uma ou de outra heresia
porque não encontram uma alternativa às falsas alternativas.
De acordo com a compreensão de KNAUER, novas buscas de reinterpretação da
doutrina da Trindade percebem a necessidade de resituar o discurso dogmático em geral e o
trinitário em particular.47 No entanto, em seu esforço hermenêutico, parecem permanecer
presos à ontologia substancialista subjacente à concepção neoescolástica. Por essa razão,
segundo KNAUER, até hoje, ainda não se conseguiu resolver satisfatoriamente a articulação
entre o que une em Deus e o que distingue em Deus, de tal forma que o primeiro não
represente mais um fator limitador do segundo:
Na história da teologia, até hoje, se conseguiu apenas, ou explicar a diversidade das pessoas, ou então somente a unicidade de Deus. Mas uma elucidação universalmente reconhecida, como ambas possam ser conciliadas uma com a outra, não foi encontrada ainda.48
Somente numa ontologia relacional, consegue-se revincular o mistério da Trindade à
nossa existência como um discurso, de fato, soteriologicamente ancorado. Na realidade, o
motivo de refletir sobre a Trindade de Deus é sua afirmação na pregação cristã e não alguma
44 Como exemplo por quem negligencia a importância fundamental da doutrina da Trindade para uma
compreensão coerente da fé cristã, KNAUER refere a HANS KÜNG. Christ sein. München: Piper, 1974, para o qual parece ser óbvio de antemão que entre Deus e mundo possam existir relações mútuas sem mais (cf. KNAUER. Der Glaube, 128, nota 164). Nesse caso, não se reconhece que uma relação real de Deus ao mundo só é possível ser afirmada “se esta anteriormente àquela é uma relação eterna de Deus a Deus, do Pai ao Filho então” (IBID., 128).
45 BOFF. A Trindade e a sociedade, 17. 46 IBID., 19. 47 Cf. WERBICK, JÜRGEN. Doutrina da Trindade. In: SCHNEIDER, THEODOR (ORG.). Manual de Dogmática. Vol.
II. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2002, 429s.456s. 48 KNAUER. „Der vom Vater und vom Sohn ausgeht“, 230 e IDEM. Der Glaube, 126.
111
exigência filosófico-teórica a priori. O reconhecimento de sua necessidade teológica apenas é
fruto da reflexão sobre a afirmação da mensagem cristã e a partir dela. A exigência de um
discurso trinitário coerente acontece em função da compreensão de nosso ser acolhido na
comunhão com Deus, que, doutro modo, é inarticulável.
2.2 A saída do impasse pela concepção relacional da pessoa divina
A mensagem cristã afirma Deus ser Pai, Filho e Espírito Santo. A fórmula dogmática é
“três pessoas numa natureza”.49 KNAUER compreende tal fórmula dogmática clássica nas
categorias da ontologia relacional analogamente como sendo “três relações [subsistentes]
diferentemente mediadas entre si da realidade divina una a si mesma”.50 Sobretudo o conceito
ocidental de “pessoa” parece resistir mais a uma interpretação relacional daquilo que
distingue em Deus em sua articulação com o que une em Deus. Tanto em SANTO AGOSTINHO
(relatio subsistens) quanto em KARL RAHNER (“modos distintos de subsistência”), as
conotações (sejam do direito romano, sejam da filosofia moderna) do conceito da “pessoa”
causam mal-estar porque parecem impedir de expressar a unicidade de Deus.51
Para KNAUER, “pessoa” – desde a própria experiência do ser humano – significa auto-
determinação, autoconsciência, autoreferência, portanto “autopresença” [Selbstpräsenz],52
porque representa a “capacidade de fazer-se presente a si mesmo, saber de si próprio e dispor
de si mesmo”.53 A compreensão relacional do termo da pessoa aplicado analogamente à
concepção trinitária de Deus implica, por isso mesmo, outro tipo de relação em comparação
49 Parece que muitos remontam essa fórmula originalmente a TERTULIANO, o qual vem sendo recebido até hoje
de forma distorcida como retórico legalista e promotor de uma teologia trinitária estática. Muito ao contrário dessa visão, PRESTIGE resgata o esforço de TERTULIANO, apesar de sua origem ocidental, como último dos apologistas gregos, que buscava garantir a unidade na diversidade por um “monoteísmo orgânico” (cf. PRESTIGE, GEORGE LEONARD. God in Patristic Thought. London: S.P.C.K., 1964, 97-106).
50 IDEM. Der Glaube, 120 (acréscimo em parênteses nosso). 51 Cf. WERBICK. Doutrina da Trindade, 447.473. 52 Inicialmente KNAUER usa o termo “autoposse” [Selbstbesitz]; cf. IDEM. Der Glaube, 120, e IDEM. Unseren
Glauben, 41, e ainda em IDEM. Ein anderer Absolutheitsanspruch. 1994. Mas já em Der Glaube, 120, se encontra a expressão que ser pessoa consiste na “capacidade de fazer-se presente a si mesmo”. O próprio autor menciona que mudou o termo seguindo a sugestão de BARBARA ANDRADE, pois o termo representa mais adequadamente o significado relacional do termo da “pessoa” (cf. IDEM. Teología fundamental hermenêutica, 167, nota 4). “Autoposse” alude demasiadamente ao uso antropocentrista como perversão da conquista do reconhecimento da intocabilidade da dignidade da pessoa pela modernidade.
53 KNAUER. Der Glaube, 120.
112
ao “ser totalmente relacionado a ... / em total diferença de ...” do mundo ao seu termo
constitutivo. Em sua autopresença, a pessoa divina pode ser caracterizada assim, segundo
KNAUER, por um “ser relacionado a ... / sem ser diferente de ...” sua própria realidade divina.54
Já a partir do conhecimento natural de Deus, à base da via afirmativa da fala análoga,
foi atribuído a Deus ser “pessoa” por causa do ser humano experimentar-se e reconhecer-se a
si mesmo em seu ser criado (como ser totalmente referido a ...) como “pessoa”.55 Dentro do
discurso da fé, atribuir a Deus ser Pai, ser Filho e ser Espírito Santo, no sentido do “ser
pessoa”, exige uma compreensão relacional dela no sentido do termo da Tradição, da “relação
subsistente” [relatio subsistens]. Pois, de outra maneira, é impossível evitar o triteísmo.56
Ao mesmo tempo, evita-se o modalismo porque, pela concepção da analogia unilateral
no discurso da fé, Deus é designado de Pai, Filho e Espírito Santo desde a economia da
salvação, mas não em um sentido apenas metafórico, e sim análogo, real. Se as três pessoas
divinas não fossem compreendidas como relações subsistentes, seria impossível articular uma
relação real de Deus ao mundo. Pois esta, como foi visto em III/1, somente pode ser afirmada
como relação real de Deus a Deus, na qual o mundo é assumido desde o início de sua
existência.
As três pessoas são três relações, diferentes uma da outra, da única realidade divina a si mesma. O conceito de pessoa aqui não é uma categoria conceitual, superior e universal, mas sim as três maneiras da autopresença divina se distinguirem entre si justamente pelo fato de que a primeira não é mediada, a segunda é mediada pela primeira e a terceira mediada pela primeira e pela segunda ao mesmo tempo.57
2.3 A articulação definitiva da unidade da natureza com a diversidade das pessoas
Em sua interpretação relacional das fontes a respeito do mistério da Trindade, KNAUER
se remete principalmente ao texto do Concílio de Florença (1442; DH 1330s), que supera
oficialmente o cisma entre Igreja oriental e ocidental devido ao filioque (Pai e Filho juntos
espiram o Espírito Santo). Pois o texto conciliar formula uma síntese das tradições oriental e
ocidental a respeito da fórmula trinitária clássica em geral e de seus respectivos conceitos-
54 KNAUER. „Der vom Vater und vom Sohn ausgeht“, 231 (realce do autor) e IDEM. Der Glaube, 120. 55 Enquanto o ser humano é “pessoa de princípio” (a falta de consciência in actu nas horas de sono ou de
doença não contradiz a sua definição de pessoa; cf. KNAUER. „Der vom Vater und vom Sohn ausgeht“, 231). Deus em sua “tripersonalidade” (cf. IDEM. Der Glaube, 120) há de ser designado analogamente como Pai, Filho e Espírito Santo in actu desde toda eternidade de forma eminente.
56 Cf. KNAUER. Der Glaube, 122. 57 KNAUER. „Der vom Vater und vom Sohn ausgeht“, 232.
113
chave em particular. Em sua conclusão, o Concílio permite a reconciliação entre ambas as
tradições quanto ao filioque, porque antes põe toda a terminologia trinitária sob viés de uma
hermenêutica relacional quando afirma que
essas três pessoas são um único Deus e não três deuses, pois as três possuem uma única realidade, uma única essência, uma única natureza, uma única divindade, uma única incomensurabilidade, uma única eternidade, e tudo é um onde não se encontra uma oposição de relação [ubi non obviat relationis oppositio]. (DH 1330)
A compreensão trinitária de KNAUER se apresenta, em seguida, como uma exegese
desse texto conciliar visualizado pela figura abaixo. Como exemplificação análoga mais
significativa de sua concepção relacional da Trindade de Deus, ele considera os pronomes
pessoais do “Eu”, do “Tu” e do “Nós” em analogia a Pai, Filho e Espírito Santo.
Figura 5: Modelo relacional da Trindade.
Fonte: KNAUER. Der Glaube, 121 (adaptado).58
De acordo com o Concílio de Florença, o que caracteriza a autopresença de Deus-Pai é
ser “princípio sem princípio”: [principium sine principio] (DH 1331). Isso é uma
interpretação do não-ser-gerado [ingenitus] (DH 1330) do Pai (da propriedade de sua
“inascibilidade”). Segundo KNAUER, o que distingue a autopresença do Pai daquela do Filho e
do Espírito Santo no ser relacionado da única realidade divina a si mesma é não ser mediado
58 Cf. tb. IDEM. Unseren Glauben, 41. O gráfico também se encontra no artigo „Der aus dem Vater und dem
Sohn hervorgeht“. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/17.html>. Acesso em: 23 out. 2009.
Espírito Santo
Pai Filho
114
por nenhuma relação (teologicamente) antecedente, mas de mediar (gerar) a segunda pessoa,
o Filho. O pronome “eu” representa justamente isso porque não precisa de outro pronome
para ser compreendido incoativamente como “eu”.59
Assim é próprio do Filho, enquanto “princípio de um princípio” [principium de
principio] (DH 1331), ser mediado somente pelo Pai (em linguagem trinitária clássica: o “ser
gerado” [genitus] do Filho). Essa mediação distingue a segunda autopresença divina enquanto
ser relacionado da única realidade divina a si mesma (e assim é verdadeiro Deus) da
autopresença do Pai e do Espírito Santo, do qual se distingue ainda mais por mediá-lo
(espirar) junto do Pai. O Filho como “o em face do” [Gegenüber] Pai deve a ele tudo que é (e
tem), portanto como segunda autopresença divina. Por essa razão, o pronome “tu” diz
analogamente respeito ao Filho porque pressupõe um “eu” que o precede de forma relacional.
Somente com relação ao “eu” o “tu” existe enquanto “tu”.60
O Espírito Santo, por sua vez, é o que é (e tem) por ser mediado pelo Pai e pelo Filho
conjuntamente (em linguagem trinitária clássica: o “ser espirado” do Espírito Santo), sendo
que o Pai e o Filho são apenas um único princípio do Espírito Santo. E, visto os três, também
só há um único princípio da realidade divina. Como amor entre o Pai e o Filho, o Espírito
Santo também é autopresença na relação da única realidade divina a si mesma. Sua
autopresença, porém, é mediada por Pai e Filho em diferenciação do Pai, que é relação sem
mediação, e do Filho, que é relação por mediação unicamente da parte do Pai.61
Dessa maneira, KNAUER supera o suposto conflito teológico em torno do filioque.
Pois, enquanto único princípio de “processão”, o Espírito Santo é mediado por Pai e Filho
conjuntamente (o que legitima o filioque da tradição ocidental). Mas o Filho apenas “espira” o
Espírito Santo junto ao Pai à medida que ele o tem inteira e exclusivamente do Pai (o que
legitima a fórmula oriental “somente do Pai” e também “por meio do Filho). “Pois, como
[sendo] o amor mútuo entre Pai e Filho, ele procede inteiramente do Pai; e como [sendo] o
amor do Filho para com o Pai, ele também procede inteiramente do Filho. Nisso, o Filho deve
somente ao Pai ser co-princípio do Espírito Santo”.62
59 No gráfico é o círculo primeiro que volta a si mesmo no ponto de partida (representando o que une em Deus,
sua unicidade na trindade). Cf. KNAUER. „Der aus dem Vater und dem Sohn hervorgeht“, 232; cf. tb. IDEM. Unseren Glauben, 41, e IDEM. Der Glaube, 121.
60 No gráfico é o segundo círculo que, saindo do ponto de partida de duas horas, volta a si mesmo apenas mediado pelo círculo que representa a autopresença do Pai.
61 Cf. IDEM. „Der aus demVater und dem Sohn hervorgeht“, 233s e tb. IDEM. Der Glaube, 121, onde o autor diferencia o ser fundamento [Grund: ἀιτία] do Filho para a processão do Espírito Santo do ser fundamento único e último [ἀρχή] da mesma do Pai.
62 IBID.
115
Por esse motivo, o Espírito Santo não é simplesmente a multiplicidade de “eu” ou a
soma de um “eu” e um “tu”, como se tratasse de Pai e Filho como “ego” e “alter ego”, e sim
sua união. Pois como ele pressupõe tanto o “eu” quanto o “tu” em seu ser diferentemente
mediado, o Espírito Santo simplesmente é o “estar-junto” [Miteinander] do Pai e Filho e
assim o “nós”: “Somente no ‘Nós’, o ‘Eu’ e o ‘Tu’ e sua relação um ao outro são plenamente
conhecidos”.63
Na doutrina clássica da teologia trinitária, referia-se apenas às chamadas quatro
“relações” entre as pessoas divinas (o gerar / ser gerado o e o espirar / ser espirado) para
distinguir as pessoas divinas entre si, e não também a noção do ingênito do Pai. Mas, como é
característico da concepção substancialista, essas “relações” representavam um “acréscimo”
logicamente posterior à constituição das pessoas, como algo “no meio” delas. Dessa maneira,
a unicidade das três se torna inviável de ser afirmada incorrendo-se no perigo do triteísmo.
Numa ontologia relacional, tudo isso pode ser afirmado sem dificuldade lógica porque
se entende que sempre se trata da relação da única realidade divina a si mesma mediada por
cada qual das três autopresenças divinas diferenciadas de forma real entre si. Nesse sentido,
KNAUER conclui que o termo da “relação” na doutrina tradicional se aplica à Trindade de
Deus apenas improprie [uneigentlich]. Na realidade, são “relacionamentos” [Verhältnisse]
entre as três autopresenças divinas, as quais já são relação em sentido próprio, real e original.
Apenas pela recondução desses quatro relacionamentos às relações diferentemente mediadas entre si da una realidade divina a si mesma, a doutrina da Trindade permite ser formulada de tal forma que não possa mais ser confundida com dificuldades lógicas.64
Nesse sentido, KNAUER interpreta os termos pelos quais tradicionalmente se
caracteriza as propriedades das pessoas divinas (“relações” e “noções”) como aspectos do ser
diferentemente mediado das três autopresenças entre si (e por isso singular a cada
autopresença divina) no relacionar-se da única e mesma realidade divina a si mesma. E,
somente dessa maneira, pode-se realmente afirmar que o Pai está inteiramente no Filho, o
Filho no Pai (Jo 17,21) e os dois no Espírito como este neles de forma relacional. Pois a
63 KNAUER. Unseren Glauben, 42. No gráfico o Espírito Santo é representado pelo terceiro círculo. Enquanto
autopresença se diferencia dos outros dois pelo fato de que “sua linha” segue a do Pai contra o sentido do relógio para, no fim, seguir a do Filho ao retornar ao ponto de partida dos três. Assim é dito que ele é o amor entre o Pai e o Filho.
64 Cf. KNAUER. Der Glaube, 125.
116
concepção grega da περιχωρῆσις [pericórese],65 aqui insinuada por KNAUER, não é estática e
sim dinâmica. Isso implica que o relacionar-se diferentemente mediado de uma autopresença
a outra é verdadeira autodoação, entrega total de si a outro enquanto lógica do amor, enquanto
relação da una natureza divina a si mesma.66 Assim, mais uma vez, não há mais perigo de
modalismo (são três relações reais diferentemente mediadas), nem de triteísmo (o são
enquanto relação da realidade divina única a si mesma).
2.4 A articulação definitiva da “Trindade imanente” com a “Trindade econômica”
Com sua compreensão relacional da doutrina trinitária, KNAUER também supera o
problema da dicotomia entre “Trindade imanente” e “econômica” cuja identidade já fora
declarada por KARL RAHNER.67 Quanto à ordem ontológica, a comunhão de Deus com Deus
em Deus (“Trindade imanente”) há de ser pensada como insuperavelmente anterior à nossa
existência e à nossa consciência (Jo 17,24 e Ef 1,4) e, nesse sentido, é “descendente” (Mt
11,27; Jo 3,16 e 1Jo 4,10s). Quanto à ordem epistemológica, contudo, no que diz respeito ao
nosso ser acolhido nessa comunhão do Pai com o Filho no Espírito Santo, revelada pela
encarnação do Filho e pelo envio do Espírito Santo, é sempre “ascendente” (“Trindade
econômica”). Consequentemente, esta há de formar o ponto de partida e de chegada para todo
o discurso trinitário.
Nesse contexto KNAUER ressalta que tal verdade de fé, no fundo, não afirma uma
relação de Deus para fora de si, e sim o contrário: a autocomunicação de Deus ao mundo na
história (suas “missões” tidas como “relationes Dei ad extra”), revela que, na verdade, se trata
de autocomunicação anterior de Deus adentro de Deus (suas “processões” ad intra Dei).68 Por
isso, “imanente” e “econômico” não designam, por assim dizer, um lado interno e outro
65 Em latim circumincessio ou circuminsessio. O termo significa “interpenetração” e expressa a dinâmica
relacional das três autopresenças divinas em seu estar relacionado diferentemente mediadas à única realidade divina.
66 Cf. KNAUER. „Der vom Vater und vom Sohn ausgeht“, 233. O autor vê a ideia da pericórese representada em sua figura da Trindade pelo “fato que o segundo e o terceiro círculo formam, nesse sentido, círculos incompletos, que entram em linhas que coincidem com trechos do primeiro e também do segundo círculo” (IBID.).
67 KNAUER concorda com esta afirmação famosa de RAHNER (cf. KNAUER. Verantwortung des Glaubens, 119, nota 650). “Mesmo assim a concepção aqui apresentada representa uma alternativa fundamental à de Karl Rahner, na medida em que nele [...] é abstraído completamente da pergunta, em que sentido uma relação real de Deus à criatura é impossível; a meu ver, somente à base desta pergunta, porém, o nexo entre Trindade econômica e imanente pode chegar à sua explanação [Darstellung] plena” (IBID.).
68 Cf. KNAUER. Der Glaube, 129. O autor alega que já antes da famosa afirmação de KARL RAHNER, GERARD
PHILIPS, em artigo publicado em 1948, já corrigiu a doutrina tradicional das relações de Deus “para fora” de si (cf. tb. IDEM. „Der aus dem Vater und dem Sohn hervorgeht“, 234).
117
externo de Deus. “Imanente” como “existente em si” aqui, apenas, quer dizer anterioridade
eterna e em abstração da relação de Deus ao mundo.69 Mas ela é afirmada somente em função
do “por nós” do amor do Pai ao Filho (Jo 17,21.23).
A compreensão das relações intratrinitárias pode-se refletir apenas com base no
anúncio histórico da mensagem cristã. O lugar significativo e necessário da doutrina da
Trindade “imanente” na teologia consiste unicamente no fim de “poder afirmar a
autocomunicação de Deus para nós como aquilo que é: o amor de Deus ao mundo não tem no
mundo mesmo sua medida”.70 Enquanto, à luz da razão natural, se conhece a Deus apenas no
modo de sua ausência do mundo, à luz da fé sobrenatural, sabe-se o mundo criado para dentro
do amor eterno entre Pai e Filho que é o Espírito Santo. Sabe-se amparado por Deus “em
Deus”.
Para ressaltar o caráter salvífico do significado da inclusão nossa no amor trinitário de
Deus, KNAUER conta a experiência de uma mãe com seu filhinho que foram visitar a avó do
menino. Ao chegar à casa da avó, ela deixou a criancinha sozinha com um buquê de flores na
frente da porta. Ao abrir a porta, a avó recebe seu neto (apesar de certo mauhumor deste ao
dar as flores com um “taí”) com a mesma alegria com que recebia sua própria filha escondida
do lado da porta.71 No retorno ao amor que a mãe do pequenino recebia anteriormente de sua
própria mãe, esta, a avó, acolhia também seu neto. E este nem estava ciente ainda de que o
amor com que sua mãe o amava já era, na verdade, o amor de sua avó. “E porque sois filhos,
enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai” (Gl 4,6; cf.
tb. Rm 8,15). Nessa condição trinitária de nossa adoção filial, de sermos “filhos no Filho”,
KNAUER situa o sentido da oração cristã: “E nós respondemos ao Pai com um amor que não é
nosso, mas anteriormente parte de seu próprio Filho. Por isso podemos estar certos de
alcançarmos Deus em nossa oração”.72
Quanto ao diálogo com as outras grandes religiões monoteístas, o judaísmo e o islã, a
mensagem cristã defende igualmente o ser absoluto de Deus, reconhecendo a unicidade de
Deus, pois com relação à criação do mundo, as três autopresenças formam “um só princípio e
69 Cf. KNAUER. Der Glaube, 125, nota 159. 70 IBID., 127; cf. tb. IDEM. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 161: ”Somente se Deus é, em si
mesmo, trinitário (“Trindade imanente”) o nosso ser assumido no relacionamento do Filho para com o Pai no Espírito Santo (“Trindade histórico-salvífica, econômica”) é compreensível para a fé. Mas falar da Trindade imanente, por sua vez, só faz sentido em função [por causa] da Trindade econômica”.
71 Cf. KNAUER. Unseren Glauben, 34s. 72 IBID., 39.
118
não três princípios” (DH 1330; onde está o Filho está junto o Pai). Mas, ao mesmo tempo, ela
alerta que, ao levantar a “pretensão de revelação”, esta só não contradiz o ser absoluto de
Deus se sua relação ao mundo nela implicada, anterior a esta, for uma “relação intradivina”.73
Longe de cair numa doutrina triteísta, nós falamos assim justamente para preservar o propósito fundamental do Islã, de um lado a unicidade e o ser absoluto de Deus e, do outro, sua misericórdia.74
A compreensão trinitária de Deus, portanto, é concebida por KNAUER como a única
resposta consistente à objeção maior suscitada pela compreensão da palavra “Deus” contra a
afirmação de um estar voltado misericordiosamente de Deus ao mundo. Na verdade, essa
afirmação não se dirige contra as demais religiões. Pelo contrário, ela pretende subsidiá-las a
encontrarem dentro de si a plena compreensão de sua própria verdade. Esta, seja qual for sua
configuração histórico-doutrinária, no fundo, é comum a todas elas e consiste na afirmação de
um amparo redentor último que se garante como certeza insuperável na vida e na morte.75
3 ENCARNAÇÃO DO FILHO: UMA PESSOA EM DUAS NATUREZAS
Para dar-se a entender plena e definitivamente, a mensagem cristã, remonta-se ao
Verbo encarnado. Fé é sempre fé em Jesus Cristo. Portanto, “a mensagem cristã explica seu
próprio surgimento dizendo que o Filho de Deus se tornou ser humano para nos testemunhar o
amor de Deus em palavra co-humana”.76 A partir daí, KNAUER concretiza o caráter
cristocêntrico de sua fórmula breve de fé:
Crer em Jesus Cristo como o Filho de Deus nada mais significa senão junto com ele, e por causa de sua vontade, saber-se infinitamente amado por Deus [...] dever esta compreensão a ele como um ser humano real, portanto, a sua palavra.77
73 KNAUER. Der Glaube, 126. 74 Cf. KNAUER. Dialog mit dem Islam, 2004. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/28.html>.
Acesso em: 7 out. 2009. Nesse artigo, como já antes no posfácio de seu artigo Wort-Gottes-Theologie und Christologie, o autor refere ao exemplo do muçulmano DJA’ S IBN DIRHAM que foi condenado (e queimado) no séc. VIII porque questionou como a pretensão de revelação e a possibilidade de uma revelação divina no Islã podem ser compreendidas perante a pertinente defesa do absoluto de Deus; cf. tb. IDEM. “Fundamentaltheologie im Koran“. In: FZPhTh 55 (2008) 23.
75 Cf. KNAUER. Ein anderer Absolutheitsanspruch. 76 KNAUER. Unseren Glauben, 47. 77 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 158. Esta formulação, por causa do caráter
cristocêntrico da própria fé, se encontra de forma pouco variada em quase todos os escritos de KNAUER e representa assim a versão explicitamente cristológica de sua “fórmula breve da fé cristã” (cf. cap. I, p. 37).
119
Jesus, como origem da mensagem cristã, há de ser testemunhado Filho de Deus. Como
consequente união (relação) entre humano e divino em Jesus Cristo, é concebível, sem a
humanidade de Jesus, tornar-se termo constitutivo para a relação da segunda pessoa divina a
ela, senão por união relacional de naturezas (realidades) continuamente distintas?!
Jesus é verdadeiro Deus, porém somente no sentido de sua filiação divina, e não
noutro sentido qualquer. E ele é verdadeiro ser humano, “em tudo igual a nós menos no
pecado” (Hb 4,15). O que significa isso para Jesus e qual sua importância para a compreensão
e fundamentação de nossa fé nele? De acordo com o autor, tudo depende agora de como se
compreende, nesse contexto, a fórmula dogmática cristológica de Calcedônia das “duas
naturezas em uma pessoa”. Contrário à ideia de uma mera junção ou um tipo de
“coexistência” das duas naturezas em uma pessoa, a compreensão relacional da encarnação
supera tal concepção substancialista de uma composição: pois, precisamente na cristologia,
condensa-se o problema geral da mediação entre realidade divina e mundana. “Somente se
também isto se deixa tornar compreensível, tudo em conjunto irá tornar-se compreensível”.78
O amor de Deus por nós não pode ter sua medida em nossa criaturalidade, e sim
somente no próprio Deus. Isso há de ser afirmado com necessidade também daquele que nos
comunicou originalmente essa misericórdia de Deus e que, pelo testemunho de sua pessoa,
nos manifestou nossa própria participação do amor eterno de Deus-Pai a ele como o Filho.
Por conseguinte, a relação de Deus com a humanidade de Jesus não pode tomar sua medida na
natureza humana deste. A existência criatural de Jesus não pode, além disso, ainda formar o
termo constitutivo para a relação de Deus a ele. Como dizer, então, livre de uma contradição,
que Jesus é Deus sem que sua natureza humana seja negada (docetismo) nem “deificada”, no
sentido de se tornar termo constitutivo da afirmação de uma relação real da segunda
autopresença divina ao ser humano Jesus (monofisismo)?
Em KNAUER, o termo “Palavra de Deus” e a “filiação divina de Jesus”
[Gottessohnschaft Jesu] se implicam e se explicam mutuamente: de um lado, o termo “palavra
de Deus” somente se torna definitivamente dizível se Deus vem ao nosso encontro como ser
humano para nos dizer o que há de nos dizer em palavra humana. Pois o próprio termo só faz
sentido, se por palavra logo e originalmente se quer dizer palavra humana. Por outro lado,
afirma que “só se pode falar da filiação divina de Jesus de uma maneira que faz sentido se se
compreende corretamente o significado de ‘palavra de Deus’”.79
78 KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 187. 79 KNAUER. Unseren Glauben, 46.
120
A mensagem cristã se remonta a Jesus como sua origem. O Prólogo do Evangelho de
João afirma ele mesmo ser a “palavra de Deus” (Jo 1,1-3) que “se fez carne” (Jo 1,14). Além
da referência ao quarto Evangelho, KNAUER destaca a unicidade de Cristo com as palavras de
SÃO JOÃO DA CRUZ: Por nos dar seu Filho, que “é sua própria palavra, e outra não há”, Deus
“nos disse tudo de uma vez nesta palavra única, e nada mais há para dizer”.80 Como destaque
da insuperabilidade do evento Cristo, KNAUER continua citando JOÃO DA CRUZ: “Quem, por
isso, ainda quisesse interrogar a Deus agora, ou desejar uma visão ou revelação qualquer, não
só cometeria uma tolice, como ofenderia a Deus, por não dirigir os olhos totalmente a
Cristo”.81
No mesmo sentido, refere-se à Constituição dogmática do Concílio Vaticano II sobre a
revelação divina, Dei Verbum, que confirma o termo de a revelação divina ser compreensível
somente “autocomunicação de Deus” por meio de Jesus, que é sua origem e seu fim num
sentido único e insuperável.82 Entretanto, tudo o que a mensagem cristã afirma de Jesus tem
um norte soteriológico: é afirmado em função de nossa própria salvação (Concílio de Nicéia).
Com relação ao anteriormente dito, de forma genérica, sobre a compreensão trinitária
de Deus, sendo condição de possibilidade para o mundo ser “alvo” de uma relação real de
Deus, vale dizer agora de forma análoga de Jesus: a relação da segunda pessoa divina com a
humanidade de Jesus há de tomar sua medida na relação da única realidade divina a si mesma.
Consequentemente, KNAUER afirma, de acordo com a tradição patrística, que o ser humano de
Jesus é “assumido”,83 sim, criado, desde o primeiro momento de sua existência, na segunda
pessoa divina, e isso em sua inteireza.
80 SÃO JOÃO DA CRUZ. Aufstieg zum Berge Karmel. Livro 2. Cap. 22,3.5. Apud: KNAUER. Unseren Glauben, 45. 81 IBID. 82 Cf. o termo communicat em DV 6,1. KNAUER. “Natürliche Gotteserkenntnis”, observa que se trata de uma
complementação ao manifestat no texto citado do Vaticano I (DH 3004 sobre o fato da revelação sobrenatural).
83 KNAUER. Der Glaube, 135, nota 174, refere à fórmula do papa LEO I que afirma Jesus ser criado ao ser assumido na segunda pessoa divina (“ut ipsa adsumptione crearetur”, DH 298).
121
Figura 6: Modelo relacional da união hipostática de Jesus Cristo.
Fonte: KNAUER. Der Glaube, 137 (adptado).
Com tal afirmação KNAUER leva a cabo a formulação do assumptione creatur –
creatione assumitur do papa Leo XIII. Nela unem-se a linha “descendente” do Verbum
incarnatum com a linha “ascendente” do assumptus homo,84 não dando margem a uma
contraposição de uma “cristologia de cima” versus outra “de baixo”.85 Tal oposição parece
sugerir a existência prévia e desvinculada das duas naturezas e, com isso, uma separação da
natureza à graça.
Na realidade, a afirmação tradicional de que “a graça pressupõe a natureza” implica a
anterioridade ontológica da graça (linha descendente), mas desemboca numa afirmação
quanto à ordem econômica da salvação: sem existência de uma realidade criada, a graça nada
teria para salvar, e o discurso cristão todo ficaria no ar (linha ascendente). Mas, porque
existimos, só o podemos desde já “assumidos” por completo na relação de Deus a Deus. E nós
só podemos afirmá-lo por referência original a Jesus como o “primogênito” de toda criação
(Cl 1,15) nesse sentido. Portanto, a divindade da segunda autopresença divina somente é
preservada se o ser humano Jesus é concebido como criado, desde o primeiro momento de sua
existência humana, para dentro da pessoa do Filho.
84 Cf. a respeito GONZÁLEZ DE CARDEDAL, OLEGARIO. La entraña del cristianismo. 3.ed. Salamanca:
Secretariado Trinitario, 2001, 86s. O autor remonta a as duas linhas de reflexão refletidas na fórmula citada em carta de LEO MAGNO (DH 290-295) – e que certamente já está implicada no Concílio de Éfeso (431, DH 250s) até a SANTO AGOSTINHO (cf. IBID., 87). Esta fórmula, por sua vez, prepara a compreensão da “união hipostática” do Concílio de Calcedônia.
85 A respeito da contraposição equívoca entre uma cristologia “de cima” (desde a divindade de Cristo) e outra “de baixo” (desde a humanidade de Jesus) cf. tb. KNAUER. Der Glaube, 137.
122
Com relação ao “ser pessoa” [Personsein] de Jesus, KNAUER faz a importante
distinção desta de sua “personalidade” [Persönlichkeit] que refere à autopresença humana
(autoconsciência): à luz da fé não é mais a autoprsença humana que constitui a referência
última para o ser pessoa de Jesus e sim, pela sua inserção na segunda autopresença divina, que
é o Filho, o ser Deus é a referência última e definitiva de seu verdadeiro “ser pessoa”. Porém,
em momento algum, este ser humano [Menschsein] de Jesus, conhecido em sua historicidade
pelos seus conterrâneos e reconhecido pelos seus seguidores na fé (Hb 5,7s), é usurpado ou
“anulado” (GS 22: “assumpta, non perempta”) pela segunda autopresença de Deus. No
reconhecimento de Jesus como Filho de Deus, sua “personalidade” individual é
inconfundível, por isso, é preservada e não descaracterizada.
A afirmação da assunção da humanidade de Jesus na segunda pessoa divina desde o
início da existência surge, em conseqüência, como condição de possibilidade de vincular as
afirmações de fé sobe a identidade divina de Jesus Cristo à sua pregação e todo o seu
testemunho de vida. Assim, por exemplo, na experiência da ressurreição, os discípulos
podiam “reconhecer” no Ressuscitado o Crucificado. E só assim podiam afirmá-lo como
Ressuscitado. Mas, o sentido último da afirmação da filiação divina de Jesus, desde o Novo
Testamento, é o “por nós e nossa salvação” (Nicéia) dessa afirmação:
Portanto, somente se fala da filiação divina de Jesus no sentido da mensagem cristã realmente, se se capta que nisso não se trata apenas dele por si só, mas simultaneamente também de nosso próprio relacionamento para com Deus.86
Na história da “cristologia eclesial”, segundo KNAUER, o Concílio de Nicéia (DH
125) foi, no fundo, um concílio trinitário. Por isso, tornou-se primordial interpretar o
testemunho originário da filiação divina de Jesus, no Novo Testamento, no sentido da
“consubstancialidade” de Jesus com Deus-Pai. Esta é a alternativa às tentativas de enquadrar a
relação de Jesus com Deus “sem ranhura” [fugenlos] numa concepção ainda substancialista
do ser do pensamento grego, tal como o representa o arianismo.87
KNAUER se refere ao arianismo como exemplo de uma compreensão mitológica da fé,
em seu equívoco principal ainda hoje muito difundido de abordar a “divindade” do Lógos
pelas categorias de um ser cirado. A conseqüência da falta de distinção total entre natureza
86 KNAUER. Unseren Glauben, 48. 87 O arianismo representa assim uma “má transcendência” a respeito da ideia de Deus como “o absoluto” que
para além da afirmação da dependência de toda criatura de Deu, contraditoriamente enquadra Deus no mesmo horizonte da realidade totalmente dependente dele como criatura (no caso, o Lógos). Cf. KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 160.
123
humana (criada) e divina é sua mistura, portanto, uma concepção monofisita de Jesus Cristo
porque é incapaz de salvaguardar a divindade de Deus. O arianismo, no caso, desemboca em
monofisismo porque procura salvar a transcendência de Deus à custa da consubstancialidade
do Logos. É monofisita no sentido de que, na verdade, une duas realidades criadas quando
afirma que o Logos assume o lugar da alma na encarnação.
A concepção de mistura (não-distinção) de realidade divina com a mundana é que
constitui o pensamento mitológico. Isso acontece, segundo BULTMANN, quando se apresenta
uma realidade criada como [se fosse] divina.88 “Até hoje, a história da teologia é uma história
de tentação constante de tal mitologia”.89 A consequência para a compreensão encarnatória de
Deus é que Jesus emerge assim como homem equipado de forças sobre-humanas, como um
tipo “super-homem”. Por causa de sua filiação divina, nessa concepção equívoca de sua
divindade, Jesus seria capaz de suspender as leis da natureza e de chamar os mortos de volta à
vida, de andar em cima d’água etc. No fundo, tal pensar mitológico supõe aqula concepção
meramente potencial da onipotência divina, em consequência da qual Jesus poderia até ter
descido da cruz se assim quisesse.
KNAUER associa tal pensamento subjacente a toda compreensão dos milagres em geral
à “exigência judaica de sinais” [jüdische Zeichenforderung] testemunhada no Novo
Testamento (Mt 16,1-4 par.). O erro cometido aqui é que se toma como medida da atuação
divina em Jesus qualidades criadas, portanto legíveis no mundo. E o que se aduz como “prova
escriturística” é um fundamentalismo sem fundamento na palavra porque “lê” (sempre de
forma interpretativa) de acordo com seus preconceitos e paradoxalmente não olha a
verdadeira “literalidade” da palavra.90
Tudo depende da reta compreensão da “união hipostática” de Jesus Cristo, definida no
Concílio de Calcedônia (DH 302). O “não-misturado” e “não-separado” da fórmula
dogmática básica do Concílio, “uma pessoa em duas naturezas”, torna-se critério para a
retidão, ou “correção” no sentido da fidedignidade, de todas as afirmações de fé. Trata-se de
distinguir o horizonte de nossa realidade humana (natureza humana) da inconcebilidade de
88 Cf. KNAUER. Der Glaube, 137s. Com a definição de BULTMANN de mitológico (cf. IBID., 138 nota 181)
KNAUER também acolhe (junto a EBELING) seu programa de desmitologização para toda a teologia, não apenas como método exegético ou hermenêutico-bíblico, mas como método hermenêutico fundamental (cf. IDEM. Verantwortung, 48s. Já na época (1969), o autor ressalta que a definição de BULTMANN do mitológico, no fundo, é uma definição de uma concepção monofisita da revelação.
89 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 164. 90 Esta observação o autor me fez em um e-mail recente, comentando o uso da expressão “interpretação ao pé
da letra” com relação à interpretação fundamentalista.
124
Deus (natureza divina) sem dissociar uma da outra na pessoa de Jesus Cristo. Seu
reconhecimento permite evitar a “perversão da fé em mitologia” ou na “subsunção” de divino
e mundano ao mesmo “horizonte de realidade” [Wirklichkeitshorizont].
“Na fórmula de Calcedônia se trata, antes, de uma desmitologização radical (que não
quer dizer o abolir das expressões míticas, mas sua interpretação no sentido da fé)”.91 As
afirmações de fé só fazem sentido se remetidas à figura do Jesus histórico. Isso, porém, não
quer dizer que tais afirmações elevassem fatos históricos ao nível de assuntos de fé. A
verdade destes continua totalmente distinta daqueles. A divindade de Jesus assim não é
legível na humanidade de Jesus, nem na sua masculinidade, nem em sua estatura, sua cor dos
olhos etc. Nem tampouco seus feitos, considerados em abstração da fé e frequentemente mal-
entendidos como corroboração externa de sua filiação divina e complementar à sua
mensagem, podem, tomados por si só, ser a medida para a verdade de fé. Só à luz de sua
própria mensagem acolhida pela “fé”, também as boas obras de Jesus (At 10,38) se entendem
como “obras feitas em Deus” (Jo 3,21).92
“O aspecto mais importante da doutrina da Calcedônia [...] consiste, no entanto, na
instrução [Anweisung = indicação hermenêutica] de compreender a filiação divina de Jesus
Cristo a partir de sua real condição humana”.93 À base da total igualdade (Hb 4,15a), o que
diferencia Jesus dos demais seres humanos é seu “sem pecado” (Hb 4,15b). Este consiste,
segundo KNAUER, no fato (de fé) de que Jesus não deixou dominar-se pelo medo a respeito de
si próprio durante toda a sua vida. Essa afirmação desconstrói toda imagem da figura de Jesus
como um “super-homem”. Ademais, pela sua compreensão de Deus, fez outros, os que davam
91 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 164. 92 Nessa discussão polêmica, baseada na afirmação de BULTMANN de que para a fé bastaria o mero “que” da
existência de Jesus e desencadeada por aula (1953) e artigo de Ernst KÄSEMANN. „Das Problem des historischen Jesus“. In: ZThK 51 (1954) 125-153 – presumivelmente um grande mal-entendido entre BULTMANN e seus alunos – KNAUER defende BULTMANN no sentido do propósito antes teológico-fundamental do que “cristológico”: no fundo, BULTMANN apenas queria alertar que a humanidade de Jesus não pode se tornar referência constitutiva para a afirmação de seu ser Filho de Deus. Nesse sentido o “Jesus histórico” e o “Cristo da fé” permanecem inconfundivelmente distintos. Ao mesmo tempo, BULTMANN está ciente de que não há “Cristo da fé” sem pressupor a existência humana do “Jesus histórico” como conditio sine qua non do primeiro.
93 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 165 (acréscimo em parênteses nosso).
125
“fé” à sua palavra, participarem de sua relação com Deus.94 “Esta experiência da libertação no
ser confrontado de nosso ser humano com o ser humano de Jesus, e portanto, com aquilo que
nele veio à linguagem, encontra sua expressão na confissão de fé nele”.95
Exatamente em virtude dessa libertação nossa, mediada por Jesus por meio de nossa
participação de sua relação com Deus-Pai na fé como o estar repleto de seu Espírito, o
Concílio de Calcedônia formula além da consubstancialidade de Cristo com Deus à medida de
sua filiação divina, também a consubstancialidade conosco à medida de sua humanidade. Tal
“união hipostática” que preserva a “propriedade de cada qual das naturezas” (DH 302), de
acordo com a interpretação do dogma cristológico de Calcedônia por KNAUER, há de ser
concebida por meio dos quatro atributos adverbiais gregos do “sem mistura” (ἀσυγχύτως),
“sem mudança” (ἀτρέπτως), “sem divisão” (ἀδιαρέτως) e “sem separação” (ἀχωρίστως).
Geralmente são entendidos como uma demarcação negativa de extremos a serem
evitados de tal maneira que se supõe poder falar apenas, aproximativamente, de Jesus como
inteiramente humano e inteiramente divino. Acontece, porém, que, em consequência da falta
de uma compreensão relacional desses termos, ou se separa, ou se mistura as duas naturezas.
No entanto, assim comenta KNAUER, os padres conciliares intencionaram formular com “toda
e holística precisão e cautela” (DH 302), portanto de forma insuperável, sem margens de
dúvida, e não de forma incerta ou ainda gradativa.96
Somente em uma concepção ontológico-relacional, chega-se à compreensão
consistente, definitiva e insuperável da compreensão encarnatória de Deus em Jesus Cristo.
Ou o pensamento substancialista não consegue evitar a separação duas naturezas em Jesus
Cristo para salvaguardar a divindade de Deus. Mas, então, encarnação não aconteceu. Ou
inevitavelmente se chega a misturar as duas porque sua conexão estaria baseada no “contato”
senão na identidade material e ao mínimo parcial entre humano e divino. O divino se tornaria
legível na humanidade de Jesus, mensurável e evidenciável.97 Apenas no pensamento
relacional, consegue-se preservar a integridade de cada natureza sem separá-las e concebê-las
unidas sem misturá-las.
94 Porque o poder do medo, do qual Jesus nos liberta, nos impulsiona a anseiarmos pelos “primeiros lugares”,
KNAUER o denomina também de “medo de frustração” [Frustrationsangst]; cf. IDEM. Fundamentaltheologische Erhellung, 196.
95 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 165. 96 Cf. KNAUER. Die chalkedonsiche Christologie, 6. 97 O theologoumenon do „segredo messiânico“ do Evangelho de Marcos parece justamente ter a função de
combater a tendência de amarrar a divindade de Jesus na visibilidade de seus feitos. KNAUER mesmo comenta que os próprios Evangelhos parecem defrontar-se com a dificuldade de expressão indubitável em suas narrativas dos milagres (cf. KNAUER. Der Glaube, 272).
126
Mas essa proclamação cristã (o “kérygma”) somente é compreendida e realizada
plenamente em sua pretensão quando seu ouvinte se sabe existencialmente envolvido por ela
na relação de Jesus com Deus. O ponto de partida histórico dessa afirmação só pode ser a
própria pregação de Jesus. Por meio de sua mensagem da vinda iminente do Reinado de Deus,
Jesus nos comunicou nosso ser acolhido no amor do Pai a ele, e assim fez-nos participar de
sua relação com Deus-Pai.
O fato de que a vinda do Reino estava irremediavelmente vinculada a sua pessoa
certamente não foi ignorado pelo próprio Jesus (discussão pela consciência messiânica de
Jesus como implicada nos escritos neotestamentários). Mas não é a consciência psicológica de
Jesus que aqui interessa. Pois a verdade da consciência de sua filiação divina só pode ser
acolhida enquanto tal em um ato de fé. Nele a pessoa crente reconhece, ao mesmo tempo, sua
própria inclusão no mesmo ser amado, mediante a segunda autopresença divina.
Esse “evangelho” Jesus testemunhou com a sua vida. Morreu como mártir justamente
porque conquistou seguidores por sua causa. Sua palavra tinha “autoridade” à medida de seu
próprio estar-repleto-do-Espírito-Santo. E sua palavra foi ouvida por aqueles que se tornaram
seus discípulos à medida de “sua fé”, mas enquanto “fé verdadeira” no sentido da autodoação
(o credere in Deum), fundamenta-se coerentemente apenas com referência constitutiva ao
evento da ressurreição de Jesus.
Pela repercussão de sua mensagem, Jesus mesmo podia se certificar da correção de
suas palavras e de sua própria fé, porque nenhum de seus adversários conseguiu refutá-las,
nem podia esquivar-se do confronto com a mensagem e com a pessoa de Jesus sem cair em
contradição consigo próprio: segundo KNAUER, os Evangelhos demonstram como seus
adversários se recusaram a usar sua própria razão.98
Depositar fé em Jesus “por causa de sua palavra” (Lc 5,5), como sendo a origem da fé
cristã, e à qual se precisa recorrer historicamente, significa o mesmo que crer na filiação
divina de Jesus como “unigênito” [μονογενής] do Pai (referente à preexistência no Pai; Jo
3,16.18 e DH 125) e “primogênito” da criação (referente à economia da salvação; Cl 1,15).
Pois não se teria acesso a essa verdade senão originalmente por meio de sua palavra. Nessa fé,
esclarece-se a comunhão com Deus, revelada por ele e estabelecida nele mesmo, como a
participação nossa de sua relação com seu Deus-Pai sendo seu fundamento.
98 Cf. a interpretação de Mc 3,1-6 em KNAUER. Unseren Glauben, 53s e tb. IDEM. Der Glaube, 231. O mesmo
fato é referido em Jo 15,25: “Me odiaram sem razão” (cf. KNAUER. Der Glaube, 348) e em Jo 18,19-23.
127
Em Jesus, à luz da fé, nossa verdadeira identidade se torna manifesta como nosso “ser-
criado-em-Cristo”. “E inversamente, esse fato oculto não existiria efetivamente se ele não
implicasse a necessidade de uma encarnação do Filho”.99 Por esse motivo, a referência da
mensagem cristã a Jesus de Nazaré como sua origem necessariamente leva à afirmação de sua
filiação divina. Mas “da filiação divina de Jesus apenas se fala adequadamente quando nisso
se trata de nosso próprio relacionamento com Deus”.100 Tudo aquilo que a mensagem cristã
desde o Novo Testamento afirma de Jesus é em função de nossa inclusão na comunhão eterna
entre o Pai e o Filho, do nosso ser criado em Cristo que afirma. No entanto, para poder dizer
que nós participamos da relação de Jesus com Deus, precisa-se esclarecer em que relação
Jesus está com Deus.
A mensagem cristã há de responder a esse problema em primeiro lugar, a respeito de
quem ela remete sua própria origem: a Jesus de Nazaré. Somente a partir daí, mas, então,
necessariamente a partir daí é que o dogma cristológico (a verdade cristológica do ser humano
Jesus ser criado desde o início de sua existência na segunda autopresença divina que é o
Filho) se torna “critério” ou “chave de leitura” (princípio hermenêutico) para todas as demais
sentenças de fé em virtude da afirmação de nossa própria filiação divina. Esse critério
KNAUER encontra nos dois atributos do “não-misturado” e do “não-separado” da fórmula
calcedônica.
Assim delimitam um espaço indefinido para afirmações consideráveis como
“ortodoxas”. Mas, dessa maneira, parecem já declarar sua capitulação diante do desafio de
dizer, definitiva e claramente, sem margem de dúvida e mal-entendido, como se pode
conceber a comunhão do ser humano com Deus mediante Jesus, o Cristo.
Em segundo lugar, a dificuldade de compreensão diante do dogma calcedônico
frequentemente se deve a uma “confusão linguística de ‘distinguir’ e ‘separar’”101 que, de
modo algum, dizem a mesma coisa. Na cristologia, como em toda a teologia, trata-se de dizer
como realidade divina e humana e/ou mundana estão conectadas, formando uma unidade, sem
que possam ser confundidas nem consideradas desvinculadas. Pelo fato de a maioria dos
teólogos modernos ainda pensar à base de uma ontologia substancialista, aparece-lhes
impossível fundamentar tal verdade dogmática livre de contradições ou margens difusas de
compreensão. No fundo, a história dos dogmas é marcada por essa incapacidade:
99 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 158. 100 KNAUER. Der Glaube, 131. 101 KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 7.
128
É óbivo que por trás do constante movimento dialético em toda a história dos dogmas e da teologia [...] entre a ênfase na unidade e da ênfase no ser distinto [Unterschiedenheit] de divindade e humanidade esteja um problema não resolvido e possivelmente insolúvel: o problema da mediação entre Deus e ser humano.102
Somente numa ontologia relacional, o que parece formar uma tensão ou até
contradição (pensar a união sem mistura nem manipulação de realidade divina e mundana),
dissolve-se sem dificuldade lógica ou imprecisão de linguagem:
De um lado, é afirmado com razão aqui que o problema da mediação entre Deus e ser humano é o problema determinante de toda a história dos dogmas e da teologia. Também parece, de fato, ser o diagnóstico da história da teologia que unidade e ser distinto de divindade e humanidade são afirmados comumente como estando em uma tensão enigmática uma com a outra. Por outro lado, porém, há de se perguntar se realmente se trata de um “problema possivelmente insolúvel”. Isto não significaria que teologia se torna impossível já no princípio?103
De fato, o que está em jogo, de acordo com KNAUER, é a compreensão tal qual da
mensagem cristã como “palavra de Deus” em sua consistência interna e, também, “externa”
porque a razão crítica não conseguirá comprovar alguma incoerência da mensagem cristã. Se
não fosse possível compreender como Jesus há de ser considerado inteiramente humano e
inteiramente divino, também não seria possível compreender a própria mensagem cristã em
sua pretensão de ser “palavra de Deus” nem o “em Cristo” de nosso ser criado. Pois ela
levanta essa pretensão de verdade a partir do ser Filho de Deus de Jesus, a “palavra de Deus”
enquanto “Logos encarnado” tal qual. E, se não for possível fundamentar a união de
realidades mundana e divina respectivamente como sendo inteiramente distintas, porém,
enquanto distintas inteiramente vinculadas desde a realidade divina como constitutiva,
também não é possível manter de pé a afirmação de nossa comunhão com Deus – o que
equivale à negação de nossa salvação.
Por isso, KNAUER reinterpreta:
(1) Com o “não-confundido” das duas naturezas se exclui qualquer identidade parcial
no sentido de “mistura” (Vermischung) entre ser Deus e ser humano. Sua diferença é total.
Positivamente formulado quer dizer “distinção” – sem implicar logo separação porque se diz
relação.
102 KASPER, WALTER. Jesus der Christus. Mainz: 1974, 283. citado in: KNAUER. Die chalkedonensische
Christologie, 1. 103 IBID., 1. Ao menos assim se constataria, então, que teologia nunca poderá fazer jus a sua pretensão de
fundamentar palavra de Deus coerentemente.
129
(2) Pelo “não-mudado” o Concílio ressalta que, com a união hipostática, não
acontece nenhuma modificação da integridade de cada qual das naturezas. Elas permanecem
não-manipuladas em seu ser relacionado porque sua união já existe desde o início da
existência humana de Jesus. Desse modo, Jesus não pode tornar-se “super-homem” por
suposta usurpação da natureza humana pela divina, e assim Deus também não é degradado a
um demiurgo.
(3) O “não-dividio” expressa que a união entre divino e humano não se comporta
como partes em relação a um todo mais abrangente. Tal concepção consegue perceber uma
união de duas realidades diferentes, constituída por meio de sua tangência ou identificação
parcial. A relação entre as naturezas passa a ser algo obsoleto ou, no mínimo, secundário e
não constitutivo para formar sua união. Em equivalência à mistura das duas naturezas, nem o
ser divino nem o humano se salvariam em sua integridade e autonomia. Essa ideia subjacente
à concepção substancialista, outra vez, é inevitavelmente monofisita. Positivamente
formulado significa que as realidades permanentemente distintas formam uma união desde o
princípio, e não uma composição posterior das duas naturezas.104
E (4) o “não-separado” finalmente estabelece que ser divino e ser humano não ficam
isolados, e sim relacionados de tal forma em Jesus Cristo que seu ser Deus seja constitutivo
pela união das duas naturezas e, portanto, o que tudo abrange. Por isso, o ser pessoa de Jesus é
seu ser Filho de Deus, porque, na união hipostática, sua autopresença humana é criada para
dentro da segunda autopresença divina.105
Se, ainda hoje, seus seguidores se sabem em comunhão com Deus, “em confiança a
sua palavra”, isso implica a presença real de Jesus em meio à comunidade cristã (e das
pessoas de “fé”) como eterno mediador de salvação (que consiste em nosso participar de sua
relação com Deus). “Ele é aquele por meio de quem outros seres humanos unicamente
adquirem acesso a Deus”.106 Quer dizer que a fé só é verdadeira no que afirma a respeito do
nosso ser amado por Deus hic et nunc justamente porque Jesus ainda hoje nos faz participar
104 Cf. DH 298 e a referência em nota 342 na p. 121 deste trabalho. 105 Aqui KNAUER refere a TERTULIANO. Adversus Praxeas. ed. Evans, 124, 37ff. Apud: KNAUER, Die
chalkedonensische Christologie, 11, para corroborar sua interpretação: “vemos um duplo estado, não confuso, mas sim conexo, em uma pessoa Jesus é Deus e homem”.
106 KNAUER. Der Glaube, 131.
130
de sua relação com Deus. “Por isso, Jesus não é apenas iniciador histórico-espiritual da fé
cristã, senão que esta fé como o fazer parte na sua relação com Deus depende dele
permanentemente”.107
Dessa forma, entende-se que, diante de sua morte de cruz, a afirmação da
ressurreição de Jesus, por sua vez, é sinônima da afirmação de sua filiação divina. A partir
daí, compreende-se que tudo o que a cristologia afirma de Jesus de Nazaré no sentido de sua
filiação divina e em virtude de nossa redenção, além de preexistência do Logos, de
importância redentora de sua cruz, das aparições do Ressurreto, do túmulo vazio e de sua
assunção, sempre e apenas é desdobramento do mistério da encarnação.
4. “TORNAR-SE IGREJA” DO ESPÍRITO SANTO: UMA PESSOA EM MUITAS PESSOAS
Por meio da compreensão encarnatória de Deus, KNAUER estabelece a fórmula
calcedônica como princípio hermenêutico fundamental, desde a cristologia, para toda a
teologia. Em consequência análoga estrita e igualmente necessária, ele concebe a
compreensão pneumatológica de Deus como princípio hermenêutico para a compreensão de
toda a fé como o “estar-repleto-do-Espírito-Santo” em sua eclesialidade irrevogável, em sua
catolicidade verdadeira (LG 8) e em sua infalibilidade insuperável (LG 10). Para o autor, isso
desemboca tanto na afirmação da existência de “fé anônima”108 quanto na da “possibilidade
necessária”109 de constatar publicamente a concordância de todos os fiéis e comunidades
eclesiais nesta mesma e una fé (LG 12), portanto de um tipo de “magistério” em cada Igreja
cristã.110
A encarnação do Filho e o envio do Espírito Santo em função do “tornar-se manifesto”
[Offenbarwerden] de nossa comunhão com Deus, mediante a Igreja como “sacramento
universal de salvação” (LG 48 e GS 45; e tb. LG 1 e o.), não apresentam apenas uma
107 KNAUER. Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie, 158. 108 Cf. KNAUER. Der Glaube, 156. Contrariando, de certa forma, o “cristão anônimo” de RAHNER (cf. IBID., nota
209), KNAUER entende que o “vínculo verdadeiro” entre as pessoas de “boa vontade” é, por assim dizer, preexistente também à sua própria escolha religiosa ou confissão de fé. Somente à luz da fé conscientemente acolhida enquanto “cristã”, e assim na retrospectiva, se manifesta que tudo de verdadeiro bem que é feito só pode ser feito “no Espírito Santo” enquanto “Espírito de Cristo”. O critério é que a pessoa de fato siga sua consciência (cf. IBID., por referência à LG 16).
109 Cf. KNAUER. “‚Notwendige Möglichkeit‘ als ökumenische Grundkategorie”. In: ThGl 92 (2002) 48-59. 110 Além de KNAUER. Der Glaube, 291ss, cf. tb. IDEM. “Das kirchliche Lehramt und der Beistand des Heiligen
Geists. Zur römischen ‚Instruktion der über die krichliche Berufung des Theologen‘”. In: HÜNERMANN, PETER; MIETH, DIETMAR (ORg.). Streitgespräch um Theologie und Lehramt. Die Instruktion über die kirchliche Berufung des Theologen in der Diskussion. Frankfurt am Main: Knecht, 1991, 207–231.
131
“analogia não medíocre” [non mediocrem analogiam] (LG 8,1) como também se implicam
mutuamente de forma insuperável. A respeito de tal analogia entre a encarnação do Verbo e o
envio do Espírito Santo à Igreja, KNAUER confirma: “Como [se fala] do ‘tornar-se ser
humano’ [Menschwerdung] do Filho assim poder-se-ia falar como que do ‘tornar-se Igreja do
Espírito Santo’”.111
Pois, somente no ato do acolhimento da palavra, que é o ato da fé, reparamos que a
palavra anunciada significa, ela mesma, o nosso ser acolhido no amor do Pai ao Filho, que é o
Espírito Santo, porque nela mesma acontece do que ela fala. Por essa razão, ter fé é sinônimo
ao “estar-repleto-do-Espírito-Santo”:
A “palavra de Deus” é, como a revelação de nosso ser inserido no amor entre o Pai e o Filho, a transmissão [Mitteilung] do Espírito Santo. Daí que ter fé [Glauben] é possível somente como o estar repleto do Espírito Santo.112
No ato de sua transmissão, acontece o conteúdo transmitido. É palavra que faz o que
diz. Nesse sentido, KNAUER reflete, como ressaltado desde o início deste trabalho, sobre a
identidade entre o ato da fé (fides qua) e seu conteúdo (fides quae).113 Assim, á luz do vínculo
pneumático, há de se notar o caráter intrínseco entre conteúdo e estrutura de transmissão da
fé.
Hermeneuticamente falando, portanto, o evento da Páscoa e o de Pentecostes se situam
da mesma forma e nesta mesma sequência lógica e histórica como o fazem Escritura e
Tradição. Dentro da concepção ontológico-relacional, são compreensíveis como
intrinsecamente relacionados (DV 9s).114 Pois, como se disse antes que a afirmação da
ressurreição é sinônima do reconhecimento da filiação divina de Jesus diante de sua morte de
cruz, a afirmação do envio do Espírito Santo é sinônima do momento fundante da Igreja como
“corpo [místico] de Cristo [ressuscitado]”, como “Povo de Deus”.
Pois o sentido da mensagem que Jesus testemunhou com a sua vida era conquistar
companheiros para a sua causa (a vinda do Reino de Deus por meio de seus sinais). E a causa
consiste em fazer outros participarem de sua relação com Deus. O testemunho pós-pascal e 111 KNAUER. Unseren Glauben, 96; cf. tb. IDEM. Der Glaube, 157. 112 KNAUER. „Wort Gottes“ als Grundkategorie des Christentums. 113 Cf. IDEM. Der Glaube, 162s. No fundo, o terceiro capítulo da primeira parte de Der Glaube completa a
trilogia intrínseca de Deus – Palavra – Fé que estrutura o livro todo em suas três partes principais. 114 Cf. a reflexão de KNAUER sobre Jo 19 em IDEM. Unseren Glauben, 64-67. O autor comenta teologicamente à
base do substrato exegético do Quarto Evangelho como a comunidade joanina concebe o nascimento da Igreja no pé da cruz (análogo à concepção da elevação de Jesus na cruz corresponde à sua glorificação) pelas palavras de Jesus a sua mãe e ao seu discípulo amado por meio das quais a comunidade vê estabelecidas entre seus membros as mesmas relações que Jesus mantinha com os seus.
132
originário de seus discípulos atesta e reflete, nos escritos neotestamentários, esse mesmo
sentido por meio da afirmação de sua ressurreição (At 2,24.32) numa prática de transmissão
desta mensagem. Essa é a razão teológica para KNAUER afirmar que o sentido do testemunho
de Jesus é a Igreja. A referência crucial de KNAUER a 1Cor 12,3 também comprova isso. A
raiz permanente das afirmações pneumatológicas é cristológica, já que o Espírito Santo
sempre e somente nos é cognoscível como “Espírito de Cristo”. E embasado no mesmo
princípio hermenêutico, o autor explica a relação entre Igreja católica romana e as demais
Igrejas cristãs, bem como entre o cristianismo e as demais religiões.115
Nesse intuito, KNAUER concebe o Concílio Vaticano II como referência magisterial e
dogmática fundamental, especialmente o capítulo I da Lumen Gentium, em vínculo com o
decreto sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio. Tendo em vista a história dos concílios
da Igreja, o autor afirma que, somente pelo “evento” Vaticano II, as afirmações ou fórmulas
dogmáticas fundamentais da fé cristã chegam ao seu “fim” definitivo.116 No sentido do que foi
chamado de “tripé dogmático”, pode-se afirmar, de acordo com o autor, que, enquanto Nicéia,
no fundo, foi o concílio trinitário e Calcedônia o concílio cristológico, Vaticano II completou
esse fundamento doutrinal por ter sido um concílio essencialmente pneumatológico.
A fórmula pneumatológica conciliar propriamente dita KNAUER encontra na LG 7,7
segundo a qual o Espírito Santo é “um e o mesmo na cabeça e nos membros”, ou seja, “um só
e o mesmo em Cristo e nos cristãos”.117 Em vista da Igreja como do “evento contínuo da
transmissão do Espírito Santo”, KNAUER põe ao lado das fórmulas dogmáticas de Nicéia e
Calcedônia a formulação pneumatológica “uma pessoa em muitas pessoas”118 do teólogo
alemão HERIBERT MÜHLEN.
115 Na verdade, esta última parte da mensagem cristã autoevidencia-se por meio de seu conteúdo. Isso já implica
a abordagem das estruturas normativas da transmissão. Esta forma a segunda parte na obra principal de KNAUER e não pode ser considerada em detalhes nesta dissertação – por mais interessante e igualmente provocador que seja. Justifica-se essa restrição aqui por referência à própria concepção teológica de KNAUER, lembrando a delimitação de nosso objeto de estudo para esta pesquisa que trata do núcleo de seu pensamento teológico em função de fundamentar a fé. KNAUER mesmo explica em Der Glaube, 20, que “já o conteúdo da mensagem cristã explica em que consiste sua transmissão [Weitergabe] para a acolhida na fé: a transmissão da fé é a comunicação [Mitteilung] do Espírito Santo, e a acolhida crente [glaubend] da mensagem é o estar repleto do Espírito Santo”. Tudo que segue à primeira parte somente se compreende como desdobramento do que já foi apresentado: comunhão com Deus consiste e acontece na prática da entrega de sua Palavra (por isso chama de acordo com EBELING de “Wortgeschehen”), unicamente compreensível na fé como aquilo que é: encarnação da autodoação de Deus-Pai ao Filho que é o Espírito Santo (cf. tb. nota 297 na p. 107 deste trabalho a respeito do significado do termo “παραδίδωμι” no Evangelho de Lucas).
116 Cf. KNAUER. Der Glaube, 154. 117 IBID.; cf. tb. IDEM. Unseren Glauben, 96 e em diversos escritos do autor. 118 MÜHLEN HERIBERT. Una Mystica Persona – Die Kirche als das Mysterium der Identidät des Heiligen
Geistes in Christus und den Christen: Eine Person in vielen Personen. 3.ed. München-Paderborn-Wien: Schöningh, 1968. Apud: KNAUER. Der Glaube, 157.
133
Por isso, deve ser apresentado antes em que sentido KNAUER concebe a compreensão
pneumatológica de Deus como terceira e última resposta da mensagem cristã ao
questionamento crítico da razão referindo-se a si mesma, ao seu conteúdo, para tornar-se
compreensível. Pois KNAUER põe a fórmula pneumatológica (“uma pessoa em muitas
pessoas”) ao lado da fórmula trinitária (“três pessoas numa natureza”) e da cristológica (“uma
pessoa em duas naturezas”) como a terceira fórmula dogmática básica.
Se, pela autocomunicação de Deus em Jesus como Filho de Deus, nos é revelada nossa
comunhão com Deus no sentido da participação nossa da relação de Jesus com Deus desde o
início, somente podemos acolher tal afirmação como aquilo que realmente é: o ser abordado
por Deus em sua palavra. No ato do anúncio, a própria condição de possibilidade de acolher
tal palavra como verdadeira, nosso próprio estar-repleto-do-Espírito-Santo comunicado a nós
igualmente por meio dele enquanto espírito de Cristo.
A afirmação do vínculo pneumático no ser humano é (1) ontologicamente necessária,
porque o fato de nossa mera criaturalidade conhecida por meio da razão nunca pode tornar-se
termo constitutivo para a inserção nossa na relação de Jesus com Deus (o nosso “ser criado
em Cristo”). Ao mesmo tempo, é (2) epistemologicamente necessário porque, dentro do nosso
horizonte de realidade criatural, nenhum esforço nosso não somente é incapaz de estabelecer
tal comunhão com Deus, mas também é impossível à razão humana reconhecer em Jesus a
autocomunicação de Deus e, por meio desta, de conhecer em nós o “em Cristo” de nosso ser
criado. Somente em um ato de “obediência” (de “correspondência”) constituído pela palavra
de Deus, que é o ato de fé no sentido da entrega a Deus (credere in Deum), é possível acolher
a “promessa” de nossa identidade última de “filhos de Deus” como, desde sempre, “realizada
em Deus” (cf. figura 7).
Figura 7: Modelo relacional do ser criado em Cristo.
Fonte: KNAUER. Der Glaube, 166 (adaptado).
134
Trata-se de reconhecer na expressão do texto conciliar “O Espírito Santo, o mesmo em
Cristo e nos cristãos” (LG 7,7) a afirmação de que comunhão com Deus somente é possível de
tal forma que o amor com que o Pai ama o Filho desde toda eternidade seja o mesmo amor
com o qual nós somos amados desde o início de nossa existência. Pois esse amor justamente é
o próprio Espírito Santo. Em seguida, vinculada à eclesiologia como pneumatologia, KNAUER
desdobra toda a compreensão da teologia da graça, dos sacramentos até duma teologia das
religiões com base na sua concepção ecumênica, o modelo que chama de “interiorismo”.119
Antes, porém, precisa ser ressaltado que a tríplice resposta teológico-dogmática da
mensagem cristã no sentido de sua autoevidenciação por meio de seu conteúdo continua
sendo desdobrada em mais duas partes de sua obra principal Der Glaube kommt vom Hören:
na segunda parte, KNAUER aprofunda as estruturas de transmissão da Palavra de Deus (à base
de Escritura, Tradição e Magistério vivo, cf. DV 9s), enquanto, na terceira, conclui sua
trajetória de fundamentação da fé, examinando a razoabilidade da concordância da fé à
mensagem cristã. Quanto à exposição dos princípios de seu pensamento teológico à base da
ontologia relacional por ele desenvolvida, afirma-se que seja completa e que tudo o mais
apenas é, no sentido do próprio intuito do autor, explicitação e desdobramento daquilo que já
foi resumidamente afirmado, especialmente no primeiro capítulo deste trabalho.
O ser abordado por Deus em sua palavra por meio de uma palavra humana em sua
originalidade reconduzida ao evento Jesus tem sua continuidade na Igreja como “evento de
transmissão continua da autocomunicação de Deus”. Pois a nossa participação na relação de
Jesus com Deus, acolhida como verdadeira na fé, só é possível ser afirmada se há um
fundamento ontológico anterior a esse mesmo ser abordado por Deus.
Em analogia à inserção da natureza humana de Jesus na segunda autopresença divina,
que é o Filho, o restante de toda a humanidade, de acordo com a mensagem cristã, desde o
início de sua existência, é assumido na terceira autopresença divina, que é o Espírito Santo.
Ainda de acordo com os testemunhos neotestamentários, KNAUER chama essa identidade
verdadeira do ser humano de “nosso ser criado em Cristo” (Jo 1,3, Ef 2,10 e Cl 1,16).
Enquanto nosso mero ser criado é conhecido pela razão, o “em Cristo” do nosso ser criado é
119 A respeito de sua proposta alternativa de um “interiorismo” aos modelos exclusivista, inclusivista e pluralista
cf. tb. “Christus in den Religionen: Interiorismus”. In: Freiburger Zeitschrift für Philosophie und Theologie (2004) 237-25. A mesma concepção defende também GERHARD GÄDE (além da obra citada na p. 47, nota 105 cf. IDEM. “Interiorimus. Ein Vorschlag für einen Ausweg aus der religionstheologischen Sackgasse”. In: Theologie der Gegenwart 46 (2003) 14-27. A tradução nossa do artigo para o português, autorizada pelo autor sob título “Interiorismo. Sugestão para uma saída do beco-sem-saída da Teologia das Religiões” foi publicado in: Kairós 4 (2/2007) 309-328; cf. tb. IDEM. Viele Religionen – ein Wort Gottes. Einspruch gegen John Hicks pluralistische Religionstheologie. Gütersloh: Kaiser/Gütersloher, 1998.
135
acessível numa palavra unicamente compreensível como autocomunicação divina e pode ser
acolhida enquanto tal (como verdadeira) somente na fé como o estar-repleto-do-Espírito-
Santo.
Nesse sentido, Jesus como palavra viva de Deus (viva vox evangelii – por meio da
proclamação cristã) nos fez original e continuamente participar da natureza divina em dois
sentidos: (1) porque, por meio dele (cruz e ressurreição – mediador de salvação), a nossa
comunhão com Deus ficou manifesta (revelada) definitivamente com certeza inabalável de fé;
(2) porque, por meio dele, ficou manifesta a nossa comunhão com Deus desde o início de
nossa existência, o “em Cristo” do nosso ser criado enquanto verdadeira identidade nossa e
assim fundamento (Cl 1,16) e fim (Jo 1,3) da salvação.
A fé, como sendo o princípio de conhecimento da verdade da palavra de Deus – e isso
significa dizer que se sabe tal palavra realmente ser autocomunicação de Deus –, só é possível
se for (1) constituída por essa mesma palavra que, dessa maneira, a traz consigo e (2) revelar a
verdade ontológica última sobre nós mesmos anteriormente existente, porém até então oculta
(Ef 3,3-9). A razão dessa afirmação se dá em analogia à regra básica da ontologia relacional
tão ressaltada por KNAUER: nenhuma qualidade criatural é suficiente para constituir uma
relação real de Deus a ela. Nem o mundo de forma geral, nem a natureza humana de Jesus em
virtude da “necessidade” de encarnação de Deus, nem mesmo a instituição social da Igreja em
função da manifestação de nossa comunhão com Deus e assim de nossa redenção.
O Filho nos comunica o seu Espírito de junto do Pai (nisso representa para nós o amor
que advém do Pai), que, pela acolhida na fé, faz ressoar em nós o “em Cristo” do nosso ser
criado, trazendo-o ao nosso conhecimento consciente e seguramente. Se é somente pela fé que
podemos conhecer a nossa própria filiação divina como nossa “herança”, necessariamente a fé
há de ser compreendida como o estar repleto do Espírito Santo. A razão disso é o princípio
metafísico escolástico de que uma relação real de reciprocidade só se dá entre seres da mesma
ordem ontológica. Pois, como a natureza humana de Jesus não pode tornar-se termo
constitutivo da relação de Deus a ela, tampouco o pode a nossa natureza humana em vista da
afirmação de nossa comunhão com Deus.
136
5 CONCLUSÃO: A FÓRMULA CALCEDÔNICA COMO CHAVE DE LEITURA PARA TODAS AS AFIRMAÇÕES DE FÉ
Se em todas as afirmações de fé se trata da comunhão nossa com Deus, o problema de
fundo dessas afirmações é o da mediação entre Deus e mundo.120 KNAUER vincula a categoria
do “distinguir e pôr-em-relação”, que ele assume de EBELING, como uma “distinção
fundamental” à essência da fórmula calcedônica. “Em todos os dogmas cristãos se trata ao
mesmo tempo da reta distinção e do reto pôr-em-relação de Deus e mundo contra sua mistura
e separação”.121
Segundo o autor, esse problema se cristaliza na cristologia. Pode-se dizer que a
cristologia é a “pedra de toque” para a coerência de todas as sentenças de fé, porque “entre a
mensagem cristã como [sendo] a ‘palavra de Deus’ e a realidade de fé de Jesus como [sendo]
o ‘Filho de Deus’ existe um paralelo estrutural pleno”.122 Ambas têm sempre a mesma
estrutura ontológico-relacional que o próprio Jesus Cristo: ser verdadeiro homem e verdadeiro
Deus, vinculando realidade humana (e mundana) e divina “sem mistura e sem separação” de
tal forma que o horizonte divino é oniabrangente e constitutivo para o mundano a partir do
qual o divino não é legível.123
Finalmente, importa ressaltar que no discurso próprio da fé, da palavra de Deus como
autocomunicação divina em sentido estrito e próprio, não se pode deixar para trás a
criaturalidade do ser humano. À base desta também a analogia unilateral se aplica no campo
da fé como única maneira de falar de Deus coerentemente, preservando sua inconcebilidade.
Nós pudemos determinar o significado da palavra “Deus“ somente a partir da criaturalidade do mundo, portanto, “indicativamente”. Semelhantemente há de ser apresentado o significado da fala de um “amor de Deus” ao ser humano, e com isso de uma comunhão do ser humano com Deus de forma “referente” por uma nova compreensão de si e do mundo da parte do ser humano. Nisso as três vias de conhecimento da doutrina natural de Deus serão retomadas de modo novo. Também no conhecimento sobrenatural de Deus se mantém a analogia unilateral.124
120 Cf. KNAUER. Die chalkedonensische Christologie, 1. Faz-se referência a este artigo de KNAUER aqui durante
este capítulo todo, porque nele o autor torna bem transparente e evidente o vínculo entre cristologia e teologia. Cf. tb. IDEM. Wort-Gottes-Theologie und Christologie. Este artigo retoma a abordagem do artigo anteriormente citado, porém, de forma mais genérica em resumo a toda a concepção teológica de KNAUER posterior à última edição de Der Glaube kommt vom Hören.
121 KNAUER. Die chalkedonsiche Christologie, 12. 122 KNAUER. Wort-Gottes-Theologie und Christologie, 194. 123 Em seguida se trata de um simples desdobramento de que Jesus Cristo é o Verbo feito carne cujo evento
histórica e soteriologicamente falando continua acontecendo por meio da proclamação atual da mensagem cristã em sua pretensão de ser originalmente e continuamente tal Verbo divino encarnado em palavra humana. Todas essas implicações em resumo de seu pensamento teológico KNAUER publicou no seu artigo Wort-Gottes-Theologie und Christologie acima já referido.
124 KNAUER. Der Glaube, 114.
137
Pois, mesmo quando afirmamos a presença real de Deus em todas as coisas, fazemo-lo
sempre analogamente de um jeito que Deus não acabe “sob” algum conceito, confundido-o
com alguma qualidade criatural. Pela via afirmativa, à luz da fé, toda experiência mundana ou
“profana” se torna símbolo da comunhão em que nos encontramos com Deus [desde] sempre.
“Nós não precisamos construir uma imagem fantasiosa adicional do céu, mas podemos
compreender desde já tudo de bom e belo do mundo real como imagem do céu que em si
mesmo não se subordina a nenhum conceito e a nenhuma imagem”.125
E mesmo qualquer experiência negativa que fizermos de vulnerabilidade, de
enfermidade, de dor, injustiça e morte não pode anular ou negar a experiência boa que nos
simboliza que estamos sempre sob o amparo infinito de Deus. Na fé, toda experiência de
desespero perdeu seu espinho de palavra última sobre nossa realidade (Rm 8,35-39). Esse é o
lugar da via negativa no discurso da fé. Mas, seja experiência boa seja ruim, a via da
eminência na fé nos representa que toda experiência nossa apenas permanece análoga
referente à comunhão com Deus, que, enquanto tal, não é legível ou dedutível do caráter
simbólico em si:
Saber-se amado por Deus com um amor no qual Deus está voltado a Deus, portanto, significa em contrapartida a idolatração do mundo ou desespero diante do mundo, poder-se alegrar com tudo de bom no mundo sem agarrar-se a isso a todo custo, e, inversamente, que se pode resistir no sofrimento.126
125 IBID., 117. 126 IBID., 118. Na nota 144, vinculado ao trecho citado, o autor observa que vê nesse fato o sentido do princípio
espiritual inaciano de achar Deus em todas as coisas.
138
CONCLUSÃO GERAL
Nesta conclusão ao trabalho no seu todo, retoma-se as questões centrais em sua
abordagem sistemática no decorrer dos três capítulos, a fim de conferir os resultados da
reflexão.
Este trabalho se propôs a compreender a fé cristã por meio do pensamento relacional
de PETER KNAUER. Pensar a fé mediante a concepção ontológico-relacional do autor nos pôs
junto dele na contramão de muitas concepções populares e também teológicas, atualmente e
desde sempre tendencialmente dominantes. Com referência à divisa do “vinho novo em odres
novos” (Mc 2,22), seguimos a intuição de KNAUER de a própria mensagem cristã caminhar na
contramão, porque ela exige para a sua compreensão adequada uma “conversão na pré-
compreensão”. Sem dúvida, o leitor terá percebido como o pensamento de KNAUER embarca
nas águas mais profundas da teologia toda, suscitando uma série de questionamentos. Se
assim for, já se pode estar certo de tê-lo encontrado no lado verso da corrente principal
teológica contemporânea. Pensou-se cumprir assim inicialmente o papel de “intérprete”, que o
autor atribui ao próprio ministro da palavra (fundamentalmente todos os fiéis, cf. LG 10 com
LG 12) e expressa nas palavras de um bispo francês: trata-se de “faire circuler la Parole”.127
No primeiro capítulo, introduziu-se o teólogo e pensador KNAUER, com o objetivo de
delimitar sua proposta hermenêutica fundamental em função de uma consequente teologia-da-
palavra-de-Deus. Em sua concentração na simples e insuperável verdade de fé, que trata da
nossa comunhão com Deus, o autor se contrasta daquelas concepções teológicas que
continuam embebidas de uma compreensão ontológico-substancialista da realidade, donde
acabam inevitavelmente enquadrando Deus nas categorias de nossa pensar corriqueiro. Em
decorrência de tal falácia, cai-se nas dissociações de uma concepção aditiva da fé. Na
realidade, tais teologias, à medida que declaram a verdade da fé na revelação divina, no
fundo, como algo trivialmente compreensível, prejudicam a busca de sua reta compreensão:
“A tentativa de tornar a mensagem cristã ‘plausível’ dentro do quadro da pré-compreensão
previamente encontrada, só pode prestar a ela um serviço pelego [Bärendienst]”.128
127 IBID., 292, nota 457. 128 KNAUER. „Neuer Wein in neue Schläuche“, 70; cf. tb. IDEM. Was die öffentliche Prüfung aushalten kann e
IDEM. Apresentação PowerPoint, jul. 2009, slide 928s.
139
Procurou-se situar brevemente o autor diante das tendências globais de enfrentar
compreensões que enquadram a fé nos esquemas pós-modernos da abordagem do “fenômeno
religioso”. Com relação à atual confusão epistemológica entre teologia e ciência da religião, o
autor, de forma semelhante como no texto supracitado, alega que é prestar um serviço pelego
porque se pretende fazer teologia apenas “por um interesse a respeito de religião” [Interesse
an Religion] e não “no interesse de sua própria religião” [in ihrem eigenen Interesse].129
Em contrapartida, apresentaram-se previamente as intuições teológicas principais do
autor a partir de sua percepção do caráter problemático da pretensão da mensagem cristã ser
“palavra de Deus”. A fé como o saber-se amado incondicionalmente por Deus só se dá a
entender em sua correlação estreita com a palavra da proclamação na qual Deus vem à palavra
somente. Por causa de na fé se tratar de uma certeza absoluta na vida e na morte, ela não pode
confundir-se com a incerteza existencial do ser humano, que se deve ao seu ser-entregue-na-
morte, nem com suas falsas certezas por ele criadas em compensação do medo a respeito de si
mesmo daí derivante. Pois, desse poder do medo, a fé quer libertar o ser humano para que este
possa ser verdadeiramente humano. Assim, sendo não-legível no mundo, a fé precisa ser
sobredita à realidade mundana, provém, por isso, do “ouvir”.
Em consequência disso, a teologia precisa tomar outro ponto de partida metodológico
em função de uma compreensão coerente da fé. Segundo KNAUER, se não se partir do simples
encontro com a mensagem cristã, incorre-se em becos-sem-saída logo de início do
empreendimento da fundamentação da fé. A mensagem cristã, em função de seu caráter
contraintuitivo, requer ser questionada para se dar a entender. Sua pretensão de verdade é
universalmente acessível. Consequentemente, quem pretende ter “palavra de Deus” há de
explicar primeiro como ele entende o termo “Deus” para depois voltar ao termo e responder
como se pode referir uma palavra a Deus. Os capítulos II e III assim representam a própria
particularidade estrutural da mensagem cristã em sua não-evidência diante da razão e sua
autoevidência apenas na fé.
No segundo capítulo, portanto, levantou-se a pergunta por “Deus”. É a própria
mensagem cristã que problematiza o termo, referindo-se à tradição da inacessibilidade de
Deus. Deus não pode ser subordinado a algum conceito de nossa linguagem. É recorrendo a
SANTO ANSELMO que KNAUER resgata um critério fundamental em todo discurso de Deus:
suas afirmações hão de ser compreendidas em um sentido insuperável, pois Deus há de ser
concebido como maior do que se pode pensar.
129 Cf. KNAUER. Ein anderer Absolutheitsanspruch e tb. IDEM. Der Glaube, 393.
140
À base desta intelecção, o autor desenvolve sua ontologia relacional como requisito
filosófico necessário, trazido pela própria mensagem cristã, a fim de salvaguardar a divindade
de Deus. É o que não acontece numa concepção ontológico-substancialista que não pode
evitar de subordinar Deus ao mesmo horizonte do ser do mundo. Para falar de “Deus”
coerentemente, a mensagem cristã nos remete ao mundo do qual afirma ser criado do nada.
Em sua reformulação do significado da criaturalidade do mundo, KNAUER desenvolve sua
compreensão relacional do ser: o mundo é um “ser totalmente relacionado a ... / em total
diferença de ...” seu “para-onde”, que é seu termo constitutivo, Deus. Por tal relação
substancial, unilateral e direta do mundo, Deus é precisamente conhecido como “aquele sem
quem nada é”. De Deus se conhece tudo que é diferente dele, mas se remete somente a ele.
Enquanto afirmação acessível à razão humana, a doutrina da criaturalidade está
submetida à “comprobabilidade” [Beweisbarkeit]. KNAUER não deixa dúvida de que não é
Deus que assim é comprovado em sua existência, e sim o ser criado do mundo. De fato, a
prova tem o maior grau de abstração, porque, pela necessidade de explicar o ser do mundo, há
de se procurar. O problema de contradição encontrado é respondido pela indicação das duas
referências não-contraditórias do total ser relacionado em total diferença do mundo com
relação ao seu para-onde.
Para poder falar de Deus de forma definitivamente consistente, KNAUER resgata a
doutrina escolástica da analogia, que, pela compreensão adequada de suas três vias,
afirmativa, negativa e da eminência, garante a unilateralidade da relação do mundo a Deus.
Diante de simultânea semelhança (relação) e dessemelhança (diferença) da parte do mundo, a
dessemelhança “da parte de Deus” é sempre maior. Tal analogia unilateral tem consequências:
uma relação real de Deus ao mundo há de ser completamente descartada pela razão.
Nessa afirmação consiste todo potencial crítico da ontologia relacional referente,
sobretudo, a concepção teísta, ainda muito difundida em ambiente teológico. Nela está
enraizado também o problema da teodicéia. Ocorre que alguma intervenção “extraordinária”
de Deus no mundo, ou disposição sua diante do mundo, não pode existir, porque o mundo já
se encontra desde antes na total dependência de Deus.
Por essa razão, Deus há de ser concebido como de fato “poderoso em tudo”. À luz da
razão humana, portanto, comunhão com Deus emerge como algo totalmente impossível. Ao
contrário, Deus é conhecido no modo de sua ausência. Abstraído da fé, o mundo assim se
torna de fato imagem do “silêncio” de Deus, do mundo “abandonado” por Deus.
141
Diante da constatação de que “Deus” parece ser o maior argumento contra “palavra de
Deus”, voltou-se, no terceiro capítulo, a perguntar a mensagem cristã como ela ainda se
explica. Pois também o termo “palavra” surge agora, e mais ainda, como problemático,
porque parece afirmar uma relação real de Deus ao mundo – antes afirmada como impossível
no horizonte do conhecimento natural de Deus. De acordo com KNAUER, a mensagem cristã
se explica pelo seu próprio conteúdo trinitário-encarnatório-pneumatológico, evidenciando-se,
desse modo, em sua verdade somente no seu próprio campo da fé.
À razão, porém, compete constatar a coerência externa, isto é, a consistência lógica
das afirmações de fé, mesmo não podendo evidenciar sua verdade em seu próprio campo. O
fato que a razão não consegue comprovar a inconsistência da mensagem cristã não é
logicamente o mesmo que comprovar sua coerência que coincide com o reconhecimento de
sua verdade.130 Nesse sentido, apresentou-se as exigências lógicas como sendo implicações
necessárias para a compreensão coerente da mensagem cristã. Sua pretensão de revelação só
se pode fazer mediante seu caráter de palavra como autocomunicação de Deus ao mundo. Só
à base do reconhecimento da Lei a mensagem cristã pode se dar a entender como Evangelho.
Isso exige seu caráter de mistério de fé, pois sua verdade não é legível no mundo. Os dogmas
fundamentais da Igreja hão de ser compreendidos como mistérios de fé num sentido estrito,
porém não de forma acumulativa. Nem um nem outro deve ser confundido com alguma
dificuldade lógica. Qualquer afirmação de fé é mistério em sentido insuperável e, por isso,
sempre “apenas” desdobramento da única verdade simples de nossa comunhão com Deus.
Uma relação real de Deus ao mundo só pode ser afirmada como ser assumido do
mundo numa relação real de Deus com Deus anterior ao mundo. A Trindade de Deus assim é
a condição de possibilidade fundamental de nossa salvação, e só em sentido soteriológico se
torna assunto teológico. Apenas numa concepção relacional compreende-se a co-originalidade
da única natureza divina que se relaciona a si mesma mediante as três autopresenças
diferentemente mediadas entre si, Pai, Filho e Espírito Santo.
A encarnação do Filho em Jesus de Nazaré é a autocomunicação eterna do Pai para
“dentro” do mundo enquanto relação ad intra Dei (e não para fora de si!): “Quem crê em
mim, não é em mim que crê, mas em quem me enviou, e quem me vê, vê aquele que me
enviou” (Jo 12,45). A humanidade de Jesus é assim criada, desde seu início, na segunda
autopresença que é o Filho. Este é o termo constitutivo para o ser pessoa de Jesus e
subsequente união hipostática afirmada pelo Concílio de Calcedônia. Sua fórmula, duas
130 Cf. KNAUER. Der Glaube, 351, nota 557!
142
naturezas numa só pessoa, “distintas” e “vinculadas” em linguagem relacional, na realidade, é
entendida por KNAUER como um aviso hermenêutico universal para todas as afirmações que
vinculam mundo e Deus. Se Jesus é em tudo igual a nós menos no pecado, à luz do envio do
Espírito Santo, acolhemos nossa verdadeira condição de “criados em Cristo”, em tudo igual a
ele, menos na ausência do pecado.
O evento da transmissão da palavra é a Igreja, constituída no Espírito Santo, em
analogia ao Verbo encarnado (LG 8,1). O Espírito Santo une os membros do corpo de Cristo
entre si, e com Cristo em si mesmo; ele é uma pessoa em muitas pessoas. Isso acontece
sempre de forma invisível em que seres humanos se unem por amor gratuito. Mas, somente a
fé trazida pela tradição da Igreja faz ver essa realidade que KNAUER designa de “fé
anônima”:131 desse modo, “a fé provém do ouvir, mas leva ao ver”.132
A partir daí, levantam-se duas questões: (1) com relação à própria concepção teológica
do autor: sua pressuposição de formar, com a sua compreensão de fé, uma alternativa às
“falsas alternativas” de racionalismo e fideísmo, por meio do instrumentário hermenêutico de
uma ontologia relacional, realmente consegue fazer jus à fé? E qual seria o critério julgador?
(2) Com relação à teologia latino-americana: assuntos que devem animar um diálogo frutífero
se encontram, a nosso ver, além das insinuações feitas a respeito da crítica teológica de
idolatria e sua desmitologização, no problema da teodicéia em vínculo com a questão da
opção pelos pobres.
(Ad 1) Concorda-se com KNAUER que um critério pela adequação ou justeza de uma
teoria é se ela mesma indica de que modo sua argumentação se distingue de uma estratégia de
imunização. Isso já é prova de uma busca ativa nela mesma por contradições, demonstrando
assim a disponibilidade de responder a quaisquer questionamentos a ela. Essa postura, o autor
identifica com a intenção da própria mensagem cristã, que, em função de seu caráter contra-
intuitivo, requer ser perguntada como ela se entende. A maneira como o autor concebe a
relação entre razão e fé em função da fundamentação da fé nos fornece a resposta.
A mensagem cristã mesma, por meio da teologia, remete-se à autonomia da razão
com todos os seus princípios lógicos, oriundos do princípio da não-contradição, diante da qual
sua verdade há de corresponder, sem que com isso queira dizer que sua verdade seja 131 IBID., 156-159. Como a fé liberta para agirmos simplesmente como seres humanos, relacionando-nos com a
nossa realidade responsavelmente, fé anônima é o mesmo saber-se amado, mesmo se ainda não explicitado. Pois só uma pessoa que se sabe infinitamente amparada pode fazer o que é realmente bom diante de Deus. Só “uma árvore boa dá bons frutos” (Mt 7,17). A relação entre fé e obras, na qual KNAUER segue os parâmetros da compreensão protestante, e pelos quais esclarece a tradição tridentina, poderia formar outro ponto na pauta de um diálogo com o autor na América Latina.
132 IBID., 410.
143
evidenciável positivamente no campo da razão.133 Se não se pode fazer jus à mensagem cristã
senão apenas na fé como o estar-repleto-do-Espírito-Santo, então, trata-se de uma mensagem
diante da qual não se pode permanecer numa postura de indiferença. A não-neutralidade da
mensagem cristã, por isso, torna-se igualmente critério de sua fundamentação. Compete à
teologia demonstrar como a palavra de Deus sempre põe seu ouvinte na alternativa
assimétrica entre fé e não-fé. A postura de não-fé não pode contar com a razão do seu lado.
Pelo contrário, tal posição se comprova como inconsistente no próprio campo da razão.
São dois os critérios principais que delimitam a função da razão pela fundamentação
da fé como sendo um “filtro” para ela. KNAUER se refere, nesse contexto, à Constituição Dei
Filius do Vaticano I, especialmente a DH 3017 como a Magna Charta da teologia
fundamental.134 Afirmar a impossibilidade de haver contradição real entre fé e razão é
consequência necessária da compreensão relacional de sua unidade.135
(1) Nada pode ser crido o que pode ser remetido à razão. Assunto da fé é apenas a
autocomunicação de Deus por meio da palavra humana da proclamação da fé, que nos confere
comunhão com ele, nos revela seu amor incondicional.
(2) Nada pode ser crido o que contradiz à razão preservando sua autonomia. Como
não pode ser crido que já é assunto da razão, também não pode ser crido o que contradiz a
razão. Uma palavra inconsistente, contraditória em si, não merece fé porque carece de
qualquer sentido. Só merece fé a palavra compreensível unicamente como autocomunicação
de Deus. Isso também exclui afirmações em si incompreensíveis ou indecisíveis. A
responsabilidade da mensagem cristã consiste justamente no fato de que as objeções contra
ela só podem ser refutadas no próprio campo da razão. Por essa razão, “uma teologia
fundamental hermenêutica apenas está ainda mais interessada na razão do que na fé”.136
133 Cf. IBID., 392ss. 134 Cf. IBID., 323; cf. tb. IDEM. „Potentia Oboedientialis“ e IDEM. Einführung in den Glauben. 135 Cf. DH 3019. 136 KNAUER. Glaubensbegründung heute, 207s. O autor transfere o paradoxo de uma propaganda de uma
empresa aérea em função da segurança: “Nós apenas dedicamos mais atenção ainda ao avião do que aos passageiros”, porque somente assim a empresa serve ao passageiro de verdade, tal qual a teologia com sua atenção à razão serve à fé. O diálogo com as ciências pela presença de cursos públicos de teologia no palco das faculdades públicas (cf. IDEM. Was die öffentliche Prüfung aushalten kann, 19), e enfrentar debates públicos críticos à Igreja, podem servir de exemplos disso.
144
BIBLIOGRAFIA GERAL
Bibliografia do autor: KNAUER, PETER. “Christus in den Religionen: Interiorismus”. In: Freiburger Zeitschrift für
Philosophie und Theologie (2004) 237-25. ______. Darse cuenta de nuestra fe. Apresentação ppt.. Disponível em:
<http://www.jesuiten.org/peter.knauer/knauer0.html#Download>. Acesso em: 8 out. 2009.
______. “Das kirchliche Lehramt und der Beistand des Heiligen Geistes. Zur römischen
Instruktion über die kirchliche Berufung des Theologen’”. In: Stimmen der Zeit 208 (9/1990) 661–675. Também publicado in: HÜNERMANN, PETER; MIETH, DIETMAR
(ORG.). Streitgespräch um Theologie und Lehramt. Die Instruktion über die kirchliche Berufung des Theologen in der Diskussion. Frankfurt am Main: Josef Knecht, 1991, 207-231.
______.“Das rechtverstandene Prinzip der Doppelwirkung als Grundnorm jeder
Gewissensentscheidung ”. In: Theologie und Glaube 57 (1967) 107-133. ______.“Der Geschöpflichkeitsbeweis”. Disponível em:
<http://www.jesuiten.org/peter.knauer/11.html>. Acesso em: 12 out. 2009. ______. Der Glaube kommt vom Hören. Ökumenische Fundamentaltheologie. 6.ed. Feiburg-
Basel-Wien: Herder, 1991. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/20.html>. Acesso em: 14 out. 2009.
______. “Der Heilige Geist – Garant der Wahrheit und der Einheit”. In: Materialdienst des
Konfessionskundlichen Instituts Bensheim 30 (caderno especial 10/1979) 2–5. ______. “Der neue kirchliche Amtseid”. In: Stimmen der Zeit 208 (2/1990) 93-101. ______. “‚Der vom Vater und vom Sohn ausgeht‘. Zu einer ökumenischen Kontroverse”. In:
Theologie und Philosophie 76 (2001) 229-237. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/17.html>. Acesso em: 14 out. 2009.
______.“Dialektik und Relation. Die Einsicht in das metaphysische Kausalitätsprinzip im
Gottesbeweis”. In: Theologie und Philosophie 41 (1966) 54-74. ______. Dialog mit dem Islam, 2004. Disponível em:
<http://www.jesuiten.org/peter.knauer/28.html>. Acesso em: 7 out. 2009. ______. “Die chalkedonische Christologie als Kriterium für jedes christliche
Glaubensverständnis”. In: Theologie und Philosphie 60 (1/1985) 1-15. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/39.html>. Acesso em: 14 out. 2009.
145
______. “Die Dollaraufschrift”. Disponível em: http://www.jesuiten.org/peter.knauer/greenback.pdf>. Acesso em: 19 out. 2009.
______. “Ein anderer Absolutheitsanspruch ohne exklusive oder inklusive Intoleranz“. In:
D'SA, FRANCIS X.; MESQUITA, ROQUE (Org.). Hermeneutics of Encounter: Essays in Honour of Gerhard Oberhammer on the Occasion of his 65th Birthday. Vienna: De Nobili Research Library. Vol. XX, 1994, 271-295.
______. “Eine Alternative zu der Begrifflichkeit ‚Gott als die alles bestimmende
Wirklichkeit‘“. In: Zeitschrift für Katolische Theologie 124 (3/2002) 312-325. ______. “Eine andere Antwort auf das ‚Theodizeeproblem‘. Was der Glaube für den Umgang
mit dem Leid ausmacht”. In: Theologie und Philosophie 78 (2003) 193-211. ______. “Einzigartigkeit des Christentums”. In: Theologische Akademie 13 (1976) 9–26. ______. “Erbsünde als Todesverfallenheit. Eine Deutung von Röm 5,12 aus dem Vergleich
mit Hebr 2,14f”. In: Theologie und Glaube 58 (1968) 153-158. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/55.pdf>. Acesso em: 14 out. 2009.
______. “Erlösung aus der Theodizeefrage”. In: Communitas. Périodique bimestriel: Foyer
Catholique Européen, (nov./2004) 16–17. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/30.html>. Acesso em: 13 out. 2009.
______. “Fundamentaltheologie im Koran?”. In: Freiburger Zeitschrift für Philosophie und
Theologie 55 (2008) 142-165. ______. “Fundamentaltheologische Erhellung der Glaubensproblematik”. In: TÜRK, HANS
JOACHIM (Org). Glaube – Unglaube. Mainz: Grünewald, 1971, 183-197. ______. “Glaube befreit zur Option für die Armen”. In: MAGDALENA HOLZTRATTNER (Org.).
Eine vorrangige Option für die Armen im 21. Jahrhundert? Innsbruck: Tyrolia, 2005, 37-59. Também disponível em: <www.jesuiten.org/peter.knauer/48.htm>. Acesso em: 13 out. 2009.
______. “Glaubensbegründung heute. Der Umbau der Fundamentaltheologie”. In: Stimmen
der Zeit 59 (3/1984) 200-208. ______. “Grunddogmen und Unfehlbarkeit”. In: Zur Debatte – Themen der Katholischen
Akademie in Bayern 10 (3/1980) 8. ______. Handlungsnetze: Über das Grundprinzip der Ethik. Frankfurt: Books on Demand
GmbH, 2002. ______. “Heil und Wahrheit. Ein Beitrag zum ökumenischen Gespräch”. In: Lebendiges
Zeugnis (1969) 49–58. ______. “Hermeneutische Fundamentaltheologie. Der Glaubenstraktat des Hugo von Sankt
Viktor”. Frankfurter Theologische Studien 7 (1971) 67–80. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/46.html>. Acesso em: 14 out. 2009.
146
______. “Jesus als Gegenstand kirchlicher Christologie”. In: SCHIERSE, FRANZ JOSEPH (ORG.). Jesus von Nazareth. Mainz: Grünewald, 1972, 156-166.
______. “Katholisch = ökumenisch”. Disponível em:
<http://www.jesuiten.org/peter.knauer/24.html>. Acesso em: 19 out. 2009. ______. Kurze Einführung in den christlichen Glauben. Disponível em:
<http://www.jesuiten.org/peter.knauer/22.html>. Acesso em: 14 out. 2009. ______. “‚Natürliche Gotteserkenntnis?‘”. JÜNGEL, EBERHARD; WALLMANN, JOHANNES;
WERBECK, WILFRID (ORG.). In: Verifikationen – Festschrift für Gerhard Ebeling zum 70. Geburtstag. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1982, 275–294. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/41.html>. Acesso em: 14 out. 2009.
______. “‚Neuer Wein in neue Schläuche‘. Welches neue Vorverständnis bringt die
christliche Botschaft mit sich?”. In: GUNNEWEG, ANTONIUS HERMANUS. JOSEPHUS.; SCHRÖER, HENNING (Org.). Standort und Bedeutung der Hermeneutik in der gegenwärtigen Theologie. Die Vorträge des Bonner Hermeneutischen Symposiums 1985. Bonn: Bouvier Herbert Grundmann, 1986, 63-76. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/neuerwein.html>. Acesso em: 14 out. 2009.
______. “Nicht unfehlbare Glaubenslehre, aber doch definitive kirchliche Lehre?”. In:
Zeitschrift für Katolische Theologie 122 (2000) 60-74. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/14.html>. Acesso em: 14 out. 2009.
______. “‚Notwendige Möglichkeit‘ als ökumenische Grundkategorie”. In: Theologie und
Glaube 92 (2002) 48-59. ______. Para compreender nossa fé. São Paulo: Loyola, 1989. Tradução de Attílio Cancian. ______. Para comprender nuestra fe. Palmarín/Mexico, 1989. Tradução de Venegas Beltrán,
Gerardo & Flórez Echevarry, Pedro Antonio. Também disponível em: http://www.jesuiten.org/peter.knauer/pcnf.pdf>. Acesso em: 14 out. 2009.
______. Per comprendere la nostra fede. Roma: Borla, 2006. Tradução de Gerhard Gäde. ______. “‚Potentia oboedentialis‘ und ‚übernatürliches Existencial‘ im Verhältnis zum
‚Verlangen nach der Gottesschau‘“. Disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/49.html>. Acesso em: 22 out. 2009.
______. “Schrift und Überlieferung”. In: Ökumenisches Forum – Grazer Hefte für konkrete
Ökumene (3/1980) 21–32. ______. “Teología Fundamental Hermenéutica”. In: Proyección/teología y mundo actual 50
(219/2003) 161-181. Também disponível em: http://www.jesuiten.org/peter.knauer/33.html#(4)>. Acesso em: 14 out. 2009.
______. “Theologische Gedanken zum kritischen Rationalismus”. In: Information
Philosophie (feb./1976) 2–6.
147
______. “Universalkirche, Einzelkirchen und Gesamtkirche”. In: Orientierung 65 (2001) 3-6. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/15.html>. Acesso em: 14 out. 2009.
______. Unseren Glauben verstehen. Würzburg: Echter, 1986. ______. “Unser liebes Geld: Aktuelle Überlegungen zu einem Systemfehler”. In:
Orientierung 73 (2009) 41-44. ______. Verantwortung des Glaubens. Ein Gespräch mit Gerhard Ebeling aus katholischer
Sicht. Frankfurt a. M.: Knecht, 1969. ______. “Vernunft – Naturwissenschaften – christlicher Glaube”. In: Studia Bobolanum 4
(2008) 21-41. ______. “Was die öffentliche Prüfung aushalten kann: Christlicher Glaube, Vernunft und
theologische Wissenschaft – ein Plädoyer gegen ihre Karikaturen”. In: Frankfurter Rundschau, 3 ago. 1999, 19.
______. “Was heißt ‚Wort Gottes’?”. In: Geist und Leben 48 (1/1975) 6-17. ______. “Was verstehen wir heute unter ‚Inspiration‘ und ‚Irrtumslosigkeit‘ der Heiligen
Schrift?”. In: Theologische Akademie 10 (1973) 58–87. ______. “Welchen Sinn hat das Wort ‚Gott‘ im christlichen Glauben?”. In: Theologie und
Glaube 58 (1968) 321–333. ______. “‚Wort Gottes‘ Grundkategorie des Christentums. In: Lebendiges Zeugnis 47 (1992)
276-285 (acesso por envio do autor em formato digital de Word sem paginação original).
______. “Wort-Gottes-Theologie und Christologie”. In: RISSE, G (ORG.). Zeit-Geschichte und
Begegnungen. Festschrift für Bernhard Neumann zur Vollendung des 70. Lebensjahres. Paderborn, 1998, 186-198. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/09.html>. Acesso em: 14 out. 2009. Artigo publicado em português: “Teologia-da-Palavra-de-Deus e Cristologia”. In: Kairós III (2/2006) 255-272. Tradução de Michael Kosubek. Também disponível em: http://www.jesuiten.org/peter.knauer/59.html>. Acesso em: 14 out. 2009.
______. “Zu Gerhard Ebelings ‚Dogmatik des christlichen Glaubens‘.
‚Fundamentalunterscheidung‘ und ‚Lebensbezug‘ als theologische Grundkategorien”. In: Stimmen der Zeit 59 (3/1984) 393-413.
______. “Zu Gerhard Ebelings ‚Wesen des christlichen Glaubens‘ (1959)”. In: DELGADO,
MARIANO (ORG.). Das Christentum der Theologen im 20. Jahrhundert. Vom ‚Wesen des Christentums‘ zu den ‚Kurzformeln des Glaubens‘. Stuttgart-Berlin-Köln, 2000, 74-83. Também disponível em: <http://www.jesuiten.org/peter.knauer/53.html>. Acesso em: 14 out. 2009.
148
______. “Zum Verstehensgrund der Gemeinsamen Erklärung zur Rechtfertigungslehre”. In: Catholica 56 (4/2002) 263-280.
______. “Zur Frage der Glaubwürdigkeit der christlichen Offenbarung. Eine Diskussion
zwischen Walter Kern SJ, Innsbruck, und Peter Knauer SJ, Frankfurt/M”. In: Zeitschrift für Katholische Theologie 93 (1971) 429–436 [Kern: 419-428].
Bibliografia secundária: ANDRADE, BÁRBARA. Preámbulo a la teología de Peter Knauer. In: Revista Iberoamericana
de teología. Ciudad de México 2 (2006) 69-72. ______. Pecado original ... ou graça do pecado? São Paulo: Paulus, 2007. ASSMANN, HUGO; HINKELAMMERT, FRANS-JOSEF. A idolatria do mercado. Petrópolis: Vozes,
1989. BOFF, LEONARDO. Jesus Cristo Libertador. 12.ed. Petrópolis: Vozes, 1988. ______. A Trindade e a Sociedade. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1987. BONHOEFFER, DIETRICH. Widerstand und Ergebung. Briefe und Aufzeichnungen aus der Haft.
(org. por EBERHARD BETHGE) 12.ed. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus Mohn, 1983. CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil. 2003-2006. 6.ed. São
Paulo: Paulinas, 2003. COMPÊNDIO DO VATICANO II. Constituições, Decretos, Declarações. 24.ed. Petrópolis:
Vozes, 1995. DEINHAMMER, ROBERT. Fragliche Wirklichkeit - Fragliches Leben: Philosophische Theologie
und Ethik bei Wilhelm Weischedel und Peter Knauer. Würzburg: Echter, 2009. DENZINGER, HEINRICH. Compendio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral.
Tradução, com base na 40.ed. alemã (2005), aos cuidados de PETER HÜNERMANN, por Jose Marino Luz e Johan Konings. São Paulo: Loyola, 2007.
DIAS, SILAS BARBOSA. A Igreja na gloriosa Trindade. Disponível em:
<http://web.unifil.br/teologia/sermoes/Igreja%20da%20trindade.doc >. Acesso em: 23 out. 2009.
FERCHHOFF, WILFRIED; NEUBAUER, GEORG. Patchwork-Jugend. Eine Einführung in
postmoderne Sichtweisen. Opladen: Leske + Budrich, 1997. FREIRE, PAULO. Pedagogia do oprimido. 5.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
149
GÄDE, GERHARD. “Die Rolle der‚ratio‘ bei der Glaubensveratwortung im Denken Anselms von Canterbury”. In: BROSE, THOMAS (Org.). Religionsphilosophie. Europäische Denker zwischenphilosophischer Theologie und Religionskritik. Würzburg: Echter, 2009, 9-36.
______. Christus in den Religionen. Der christliche Glaube und die Wahrheit der Religionen.
Paderborn: Schöningh, 2003. ______ (ORG.). Hören – Glauben – Denken: Festschrift für Peter Knauer S.J. zur Vollendung
seines 70. Lebensjahres. Münster: LIT, 2005. ______. “Interiorimus. Ein Vorschlag für einen Ausweg aus der religionstheologischen
Sackgasse”. In: Theologie der Gegenwart 46 (2003) 14-27. Artigo publicado em português: “Interiorismo. Sugestão para uma saída do beco-sem-saída da Teologia das Religiões”. in: Kairós 4 (2/2007) 309-328). Tradução de Michael Kosubek.
______. Viele Religionen – ein Wort Gottes. Einspruch gegen John Hicks pluralistische
Religionstheologie. Gütersloh: Kaiser/Gütersloher1998. GONZÁLEZ DE CARDEDAL, OLEGARIO. La entraña del cristianismo. 3.ed. Salamanca:
Secretariado Trinitario, 2001. GUTIÉRREZ, GUSTAVO. Falar de Deus a partir do sofrimento do inocente. Uma reflexão sobre
o livro de Jó. Petrópolis: Vozes, 1987. Tradução de Lucia Mathilde Endlich Orth. ______. O Deus da vida. 3. Ed. São Paulo: Loyola, 2003. Tradução de Gabriel C. Galache e
Marcos J. Marcionilo. HUNTER, LIDIA. “A teologia dos pobres não morreu”. Disponível em:
<www.tierramerica.net/2003/0609/ppreguntas.shtml>. Acesso em: 8 out. 2009. JÜNGEL, EBERHARD. Gott als Geheimnis der Welt. Zur Bergründung der Theologie des
Gerkreuzigten im Streit zwischen Theismus und Atheismus. 5.ed. Tübingen: J.C.B. Mohr, 1986.
LADARIA, LUIS F. Introdução à Antropologia Teológica. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2002. KASPER, WALTER. Jesus der Christus. Mainz: 1974. LIBANIO, JOÃO BATISTA. “Pluralismo Cultural e Religioso”. In: AMERINDIA (Org.). V
Conferência de Aparecida. Renascer de uma esperança. São Paulo: Paulinas, 2008, 73-78.
______. Religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002. LIBANIO, JOÃO BATISTA; MURAD, AFONSO. Introdução à teologia. Perfil, Enfoques, tarefas.
3.ed. São Paulo: Loyola, 2001. ______. MARDONES, JOSÉ MARIA. Para comprender las nuevas formas de la religión. La
reconfiguración postcristiana de la religión. Estella: Verbo Divino, 1994.
150
MARTINS, MAURÍCIO VIEIRA. “O criacionismo chega às escolas do Rio de Janeiro: uma abordagem sociológica”. Disponível em: <http://www.comciencia.br/200407/reportagens/10.shtml>. Acesso em: 10 out. 2009.
MESTERS, CARLOS. Com Jesus na contramão. São Paulo: Paulinas, 1995. MOJSISCH, BURKHARD (org.). Kann Gottes Nicht-Sein gedacht werden? Die Kontroverse
zwischen Anselm von Canterbury und Gaunilo von Marmoutiers. Kempten: excertpta classica, 1989.
GONZÁLEZ DE CARDENAL, OLEGARIO. La entraña del cristianismo. 3.ed. Salamanca:
Secretariado Trinitario, 2001. OLIVEIRA, MANFREDO ARAÚJO DE. Filosofia transcendental e Religião. Ensaio sobre a
Filosofia da religião em Karl Ranher. São Paulo, 1984. ______ & ALMEIDA, CUSTÓDIO (Org.). O Deus dos filósofos modernos. Rio de Janeiro:
Vozes, 2002. PAPA JOÃO PAULO II. Carta apostólica Fides et Ratio do Sumo Pontífice João Paulo II aos
bispos da Igreja Católica sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Loyola, 1998. PRESTIGE, GEORGE LEONARD. God in Patristic Thought. London: S.P.C.K., 1964. ROSSI, LUIZ ALEXANDRE S. Messianismo e modernidade. Repensando o messianismo a partir
das vítimas. São Paulo: Paulus, 2002. RUBIO, ALFONSO. Elementos de Antropologia Teológica. Salvação cristã: salvos de quê e para
quê? 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2004. TABORDA, FRANCISCO. “Recensão do livro ‘Para compreender nossa fé’ de Peter Knauer”.
São Paulo: Loyola, 1989. In: Perspectiva Teológica 36 (6/1991) 406-407. SUNG, JUNG MO. Teologia & Economia. Repensando a teologia da libertação e utopias.
Petrópolis: Vozes, 1994. WERBICK, JÜRGEN. “Doutrina da Trindade”. In: SCHNEIDER, THEODOR (Org.). Manual de
Dogmática. Vol. II. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2002, 429-509.