tempos e homens difíceis

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1 Livro Tempos e homens difíceis Brett Martin conta com detalhada lucidez a história do boom das séries dramáticas adultas na TV americana. por Leandro Saraiva (revista Retrado do Brasil, no. 94 maio/2015) Mesmo que você ache que televisão é a máquina de desligar os cérebros, suprassumo da indústria cultural, destruidora da esfera pública, produtora de um fluxo imaginário infinito, que nos infantiliza por negar a falta essencial, que define a condição humana, ou mesmo que você ache que televisão é novela, reality show e telejornal manipulador muitas vezes com dif ícil discernimento entre os três formatos , mesmo assim, é difícil que você não saiba quem é Tony Soprano ou Walter White. Se, além de registrar a existê ncia destes célebres monstros morais contemporâneos, você adentrou seus mundos o da máfia periférica da Nova Jersey, de Família Soprano, ou o do submundo do tráfico em Albuquerque, desbravado pelo professor de química de Breaking bad, você sabe que algo aconteceu, sabe que há algo de nobre no apodrecido reino da telinha. E se você, quanto a estes casos, acha que, no fundo, não é TV, está, então, paradoxalmente bem acompanhado: It´s not TV, it´s HBO, foi o slogan que definiu a postura do radicalmente pioneiro canal de TV responsável pela produção de uma espantosa sucessão de trabalhos que, num curto espaço de tempo, redefiniram não só o mais vilipendiado dos meios de comunicação, como, provavelmente o conjunto da indústria audiovisual contemporânea. Homens difíceis, de Brett Martin é a reconstituição histórico-jornalística do pequeno milagre cultural do surgimento, neste começo de século, de uma nova e poderosa forma de arte narrativa a série dramática ficcional séria nascida do lodo televisivo. Se Martin, seguindo vários outros comentadores, reconhece que os EUA (e, por consequência, o mundo) vive hoje a Terceira Era de Ouro da TV, depois daquela do momento de sua criação, e a leva de bons programas surgidos nos anos 1980, bem mais importante é ele comparar este momento brilhante da TV gringa ao

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Resenha do livro Homens Difíceis, de Brett Martin, sobre o boom das séries ficcionais na tv americana. Escrito por Leandro Saraiva, para a revista Retrato do Brasil, no. 94

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    Livro Tempos e homens difceis Brett Martin conta com detalhada lucidez a histria

    do boom das sries dramticas adultas na TV americana.

    por Leandro Saraiva (revista Retrado do Brasil, no. 94 maio/2015)

    Mesmo que voc ache que televiso a mquina

    de desligar os crebros, suprassumo da indstria cultural, destruidora da esfera pblica, produtora de um fluxo imaginrio infinito, que nos infantiliza por negar a falta essencial, que define a condio humana, ou mesmo que voc ache que televiso novela, reality show e telejornal manipulador muitas vezes com difcil discernimento entre os trs formatos , mesmo assim, difcil que voc no saiba quem Tony Soprano ou Walter White. Se, alm de registrar a existncia destes clebres monstros morais contemporneos, voc adentrou seus mundos o da mfia perifrica da Nova Jersey, de Famlia Soprano, ou o do submundo do trfico em Albuquerque, desbravado pelo professor de qumica de Breaking bad, voc sabe que algo aconteceu, sabe que h algo de nobre no apodrecido reino da telinha. E se voc, quanto a estes casos, acha que, no fundo, no TV, est, ento, paradoxalmente bem acompanhado: Its not TV, its HBO, foi o slogan que definiu a postura do radicalmente pioneiro canal de TV responsvel pela produo de uma espantosa sucesso de trabalhos que, num curto espao de tempo, redefiniram no s o mais vilipendiado dos meios de comunicao, como, provavelmente o conjunto da indstria audiovisual contempornea.

    Homens difceis, de Brett Martin a reconstituio histrico-jornalstica do pequeno milagre cultural do surgimento, neste comeo de sculo, de uma nova e poderosa forma de arte narrativa a srie dramtica ficcional sria nascida do lodo televisivo.

    Se Martin, seguindo vrios outros comentadores, reconhece que os EUA (e, por consequncia, o mundo) vive hoje a Terceira Era de Ouro da TV, depois daquela do momento de sua criao, e a leva de bons programas surgidos nos anos 1980, bem mais importante ele comparar este momento brilhante da TV gringa ao

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    Novo Cinema Americano dos anos 1970 aquele dos jovens Martin Scorsese, Francis Coppola & cia e, talvez, de modo ainda mais marcante, com a gerao de romancistas dos contraculturais anos 1960, que revelou Phillip Roth, John Updike e Norman Mailer.

    Como a justa comparao sugere, o livro favorece a narrao de histrias nas quais o talento se impe contra o muro de mediocridades. Se as condies eram difceis, mais difceis ainda eram estes homens brilhantes, que, como os diretores dos anos setenta tinham feito com os estdios, se impuseram aos canais de TV, a ponto de mudar sua hierarquia interna, submetendo todo o processo ao controle de quem criava aqueles mundos: os roteiristas. No os produtores, no os astros atores, no os diretores: reconhecidamente, os roteiristas so os autores. Mais que isso, se tornaram os mandachuvas, os showrunners, supervisionando cada etapa da produo, controlando todos os elos de uma cadeia produtiva criada para materializar a sua excepcional viso.

    Esses homens, de fato, tm criado catedrais de histrias. Narrativas de cinquenta, sessenta horas audiovisuais, com dezenas de personagens. Nesse universo altamente competitivo e artisticamente muito rigoroso, cada episdio como um longa-metragem. Talvez nem o mestre francs do realismo literrio, Honor de Balzac (1799-1850) tenha ido to longe em termos de ambies artsticas de representao do mundo.

    Mas o livro de Martin no se resume a apresentar histrias exemplares. Apesar do destaque que d personalidade e trajetria triunfante de seus heris, tambm os situa numa trama econmica, artstica e poltica. Os homens, suas obras geniais, capazes de expressar sua poca, e suas circunstncias. Os homens difceis expressaram to bem essa ligao complexa, entre arte e contexto, alcanando tamanha lucidez e maturidade, que a expresso entretenimento soa modesta demais para descrev-la. E modstia no uma das virtudes desses criadores de mundos, capazes, como Matthew Wainer, de reconstruir com preciso de detalhes no apenas todos os itens materiais da agncia de publicidade dos anos 1950/1960 de Mad Men, mas tambm o clima cultural e poltico, ms a ms, daqueles anos. Ou ento, como David Simon, roteirista de The wire, escrever dilogos das esquinas do trfico de Baltimore mais expressivos e pertinentes que os dos prprios traficantes, como eles prprios chegaram a reconhecer, e ao mesmo tempo

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    inseri-los numa trama poltica que projetava naquela cidade uma representao vlida para o pas inteiro.

    Ao mesmo tempo que expe essas vocaes de romancistas caudalosos, Martin relata como foi possvel a estes criadores tomar o poder na indstria televisiva. Mas tudo comea, mesmo, com as obsesses autorais de cada um, suas frustraes, megalomanias e sublimaes objetivadas em formas estticas, ou, na linguagem do ramo, em pilotos de programas estranhos, perversos, avessos s amenidades da sala de jantar aparentemente condenados, como seus autores, ao emboloramento das pilhas e gavetas dos chefes de ento, sempre interessados no constrangimento do anunciante, que se recusa a pagar pela veiculao de seu cereal matinal depois de uma lgubre cena noturna de depresso ou violncia. Martin conta sua histria com requintes de descries psicolgicas, vida pregressa e cenas decisivas para seus hericos criadores de anti-heris. David Chase, o lendrio e todo-poderoso criador de Famlia Soprano, a srie que deu origem s sries, que Martin chama de Relutante Moiss da Terceira Era de Ouro da TV, detestava (talvez ainda deteste) TV. De uma famlia de origem italiana, ele sonhava com o cinema, mais especificamente com um cinema rebelde e moderno, aquele de seus dolos dos anos 1970 que, como ele, tinham feito faculdade de cinema e se encantando com a Nouvelle Vague de Jean-Luc Godard e Franois Truffaut. Reproduzia, no jogo da cultura, a aspirao distino que marcou a vida de sua me, uma pequena e autoritria arrivista de subrbio verso americana de segunda gerao do esteretipo das mes italianas que sufocou seu pai, dono de loja, e tambm o filho. Qualquer um que tenha acompanhado a brutalidade da relao entre Tony Soprano e sua me, Livia, misto de compromisso familiar infeliz e disputa surda pelo poder na mfia perifrica de Nova Jersey, reconhecer na histria pessoal de Chase as marcas da sublimao. O inusitado e excepcional - recurso de colocar o protagonista mafioso em tratamento psicanaltico, motivado por sua incontrolvel Sndrome do Pnico, vem direto do tratamento do prprio Chase. Mas, como em todas as histrias realmente boas, no s isso.

    Como conta um companheiro de jornada de Chase, desde o comeo David comeou falar sobre os Estados Unidos de maneira temtica. Como seus dolos cinematogrficos, ele estava virando do avesso um gnero consagrado: se o filme de mfia era,

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    reconhecidamente, a expresso quase mtica do sonho americano, pleno de prepotncia, violncia e satisfao egosta, Famlia Soprano mostrava que, na Amrica concorrencial dos anos ultra-liberais de George W. Bush, nem mesmo os mafiosos aguentavam o tranco. No era exatamente sobre a mfia, mas sobre como um homem precisava ser monstruoso na selva l fora e lidar com sua fera interior, dentro de sua famlia e, ainda pior, dentro de sua alma. Em termos propriamente artsticos, Chase, como diz outro colaborador, no era apenas bom, ele era Tchekov. Ou seja, ele no se pautava pelos cdigos fceis da catarse pr-fabricada, vendida em todos os manuais de roteiro americanos, com seus trs atos sempre rumo inevitvel redeno final. Como na obra do escritor e dramaturgo russo, as tenses de Chase so internas, cumulativas, pouco bvias para a plateia, e para os prprios personagens. Em Famlia Soprano, no h espetculo da violncia. A narrao fria, distanciada, e quando Tony, no histrico quinto episdio da primeira temporada (College), mata um dedo-duro, que ele encontra durante o ritual burgus de acompanhar a filha adolescente na escolha de uma universidade, a lenta agonia da vtima e o prazer viril de seu algoz, durante terrveis 76 segundos, sem cortes, do enforcamento, uma chocante exploso interna, um retrato impiedoso de uma alma e uma forma muito ousada de conquistar o pblico.

    Chase, apesar de seu asco pelo meio, era um homem de TV. Tinha mais de 40 anos de idade quando, finalmente, fez as coisas de seu jeito, com Famlia Soprano. Desde a sada da faculdade, escrevia para seriados e telefilmes sempre na esperana de conseguir transformar seus roteiros e pilotos em filmes. Ele sabia perfeitamente que um assassinato, dramaticamente srio, com total conscincia, inclusive prazer, por parte de um protagonista de srie era algo proibido. Diz a lenda que essa foi a nica vez que o canal que produzia a srie, a HBO, tentou interferir. Chase foi irredutvel, ganhou a parada, e provou que estava certo: o pblico, ou melhor, um certo setor do pblico adulto, congregando boa parte dos formadores de opinio estava pronto para aderir emocionalmente a esse tipo de protagonista, problemtico, atormentado, egocntrico, violento de um modo brutalmente realista (na contramo do grafismo ldico das espetacularizaes da violncia).

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    Martin arrisca uma interpretao: os EUA estavam fortemente divididos entre republicanos e democratas, com no apenas a vitria republicana, mas com duas guerras, torturas, segredos de Estado, enfim, um choque de realpolitk e de deslavadas mentiras por parte do governo Bush. A representao artstica produzida por autores crticos, produzindo amplo interesse, parece lidar, diz ele, com the beast in me (a fera em mim), segundo a msica tema de Famlia Soprano. Fico, adulta e sria, sobre um mundo brutal, sem morais consoladoras, tecido pelas tramas do poder, e vivido como um fardo.

    Mas nada disso foi resultado de alguma evoluo natural da TV para estar a par com seu tempo. Ao clima pesado, os canais, em princpio, teriam continuado a fazer mais do que j costumavam: oferecer drogas audiovisuais leves, que Martin sintetiza na frmula caricata: seu marido morreu, mas voltou como seu cachorro! A brecha na qual Simon inseriu sua arte, mudando a TV de rumo, teria que vir do campo que os donos dos esquemas de produo e exibio entendem: a economia.

    A HBO, o canal pioneiro, quando tudo comeou, estava encalacrada: sua tradicional programao de filmes tornava-se obsoleta frente ao irrefrevel crescimento do VHS. A soluo era partir para a aventura da produo original. Mais que isso, era preciso fazer diferena, no ambiente altamente concorrencial da TV a cabo americana. Para apreciar a narrativa de Martin, sobre as disputas corporativas internas HBO que a colocariam na liderana da TV por assinatura, preciso compreender as particularidades deste mercado.

    Nos EUA, a TV basicamente por cabo. H um servio bsico, das grandes redes, que est disponvel gratuitamente para todos. Mas uma mirade de canais premium disputa a preferncia dos assinantes. Diferente do Brasil, o mercado de pacotes de canais altamente competitivo, organizado regionalmente. Os canais fazem a diferena entre os muitos pacotes oferecidos. Desde o incio dos anos noventa, com a consolidao do VHS, a HBO, que exibia basicamente um acervo de filmes, via sua marca perder espao. No incio do sculo, com a disseminao da internet, o canal resolveu arriscar. O slogan Its not TV, its HBO, referia-se a uma ousadia de criao que, de fato, no se via desde o cinema americano dos anos 1970. O tremendo sucesso alcanado, importantssimo que se compreenda, no foi nada como o quase monoplio de

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    audincia ao qual estamos acostumados no Brasil. Em seu auge, relata Martin, nos ltimos episdios da ltima temporada, Famlia Soprano chegou prximo a 20 milhes de espectadores quando o SuperBowl o jogo que decide o campeonato da liga de futebol americano tem cerca de 110 milhes. Outras sries, hoje clssicas do canal, fizeram muito menos The Wire, em seu auge, com uma campanha de marketing agressiva, chegou a 5 milhes. Esses nmeros, e a diversidade e concorrncia na produo que eles indicam, explica-se pelo princpio econmico do prestgio do canal na composio dos pacotes de assinatura. Para o ambiente criativo, isso se traduz na importncia apenas relativa da audincia bruta. Resumindo, naquele momento reconstrudo por Homens difceis, o que no fundo era uma crise da televiso, que via sua hegemonia declinar frente s tecnologias de gravao e reproduo domstica, tornou-se, por fora de uma forte concorrncia, uma oportunidade de reinveno do meio. Surgiu a chance dos criadores no terem que tentar convencer os executivos de que suas histrias iriam agradar a todos.

    E eles agarraram a chance. Pelo caminho aberto por Chase, vrios outros homens difceis passaram, e Martin esmera-se no retrato de seus anti-heris. Simon, o jornalista intelectualizado, obsedado com pesquisa, que escreveu o projeto de srie mais pretensioso e preciso da histria da TV (ver http://kottke.org.s3.amazonaws.com/the-wire/The_Wire_-_Bible.pdf), no qual equipara seu trabalho ao de Eugene ONeil. Em outros momentos, Simon diria que The Wire poderia ser descrito com uma tragdia contempornea, na qual o dinheiro faz o papel da crueldade dos deuses. Martin detalha como ele chegou a isso, atravs de quinze anos de jornalismo policial e investigativo no The Sun, de Baltimore (cidade na qual se passa a ao da srie), seguido de livros-reportagem, um deles em parceria com Ed Burns, futuro co-autor de The Wire, ex-delegado de polcia, que aliava o talento literrio e experincia de vida a uma incrvel rede de informantes, que eles mantiveram ativa para ajud-los na redao das cinco temporadas de uma fico de fato indita em sua capacidade de dissecar a sociedade americana.

    A herana desta saga narrativa chegou a Breaking Bad (de Vince Gillian) que se beneficou de um acmulo de recursos que permitia HBO e seus criadores tratar cada episdio com requintes visuais de um longa

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    sofisticado e o ainda em cartaz Mad Man, que leva ainda mais adiante a audcia e independncia das sries em relao s demandas fceis, seja de pirotecnias, seja meramente de viradas e impactos narrativos. Mad Man se d ao luxo da observao lenta, ainda mais lenta que The Wire, por prescindir do gancho da investigao policial. Matthew Weiner, seu criador, desenvolveu para a AMC j fora da HBO, para quem trabalhara um mundo completo, aquele do incio dos EUA contemporneo, centrando numa agncia de publicidade (uma fora motora dessa atualidade), mas nos desvos da alma do yuppismo. A vida escorre lenta e dolorosamente, inconfessvel, sob as mscaras do sonho americano.

    Martin encerra seu relato o livro foi lanado nos EUA em 2013 fazendo referncia, e lanando uma sombra de suspeita de decadncia, s sries mais recentes True Blood, Girls, Newsroom , dizendo que parecia que a explorao do lado tenebroso dos EUA tinha chegado ao fim, sendo substituda por retratos mais amenos, complacentes e reconhecveis por parte de espectadores liberais.

    Talvez seja uma viso, em seu pessimismo, muito otimista em relao aos rumos do pas, e de sua ltima conquista ficcional. Os problemas econmicos inerentes decadncia da TV como negcio podem vir a ser reequacionados, em termos do novo formato da srie ficcional, adaptando-se aos servios de vdeo on demand (vod), como fica evidente com o sucesso mundial de House of cards (produzido pelo empresa de vod Netflix, e no mais por um canal). E as nuvens da face terrvel da experincia americana parecem ainda soprar sobre uma fico densa e adulta. Talvez, em termos de pessimismo cultural e de qualidade artstica, ainda mais marcante que a verso do Ricardo III contemporneo alis, democrata Frank Underwood, seja o retrato ntimo, cotidiano e demolidoramente autobiogrfico do homem comum, obtido pelo humorista Louis C.K. em Louie, hoje na quarta temporada (pelo canal FX, do grupo Fox), do que j no se pode dizer se humor ou algo cruelmente indiscernvel. Os tempos e os homens continuam muito difceis, nos EUA e no mundo. E a arte narrativa americana brilha como nunca.

    Homens difceis os bastidores do processo

    criativo de Breaking bad, Famlia Soprano, Mad men e outras sries revolucionrias

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    Autor Brett Martin Editora Aleph Pginas 368