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Temas de filosofia política e jurídica Alfredo Storck, Paulo Baptista Caruso MacDonald & Wladimir Barreto Lisboa (Organizadores)

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Temas de filosofia política e jurídica

Alfredo Storck, Paulo Baptista Caruso MacDonald & Wladimir Barreto Lisboa (Organizadores)

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Temas de filosofia política e jurídica

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Alfredo Storck, Paulo Baptista Caruso MacDonald &

Wladimir Barreto Lisboa (Organizadores)

Temas de filosofia política e jurídica

Porto Alegre, 2015.

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Edição e Capa

Mariana Kuhn de Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Temas de filosofia política e jurídica / Alfredo Storck, Paulo Baptista Caruso MacDonald e Wladimir Barreto Lisboa (organizadores). – Porto Alegre: Faculdade de Direito da UFRGS, 2015.

Vários autores

ISBN 9788566106596

1. Filosofia do Direito 2. Filosofia Política. 3. Teoria Jurídica. I. Storck, Alfredo (org.). II. MacDonald, Paulo Baptista Caruso (org.). III. Lisboa, Wladimir Barreto (org.). IV. Título.

CDU- 340.12

Bibliotecário Responsável

Michel Maya Aranalde CRB 10/1873

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 4

Hume e a liberdade saxã – sobre a origem social da lei 6

Maria Isabel Limongi

Thomas Hobbes et la dignité du droit de nature 20

Wladimir Barreto Lisboa

A Criação do Direito na Filosofia Jurídica de Immanuel Kant 32

Cláudio Ari Mello

John Austin's Defense of the Separation Thesis 51

Fábio P. Shecaira

Legalidade e Direito Natural Institucional 62

Luís Fernando Barzotto

A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância- um esquema de crítica conceitual. 83

Ronaldo Porto Macedo Junior

Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica. 111

José Guilherme Giacomuzzi

Em defesa da abstração em teoria da justiça 148

Paulo Baptista Caruso MacDonald

Relendo o Capítulo 2 de O Conceito de Direito 159

Alfredo Storck

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APRESENTAÇÃO

Durante três dias do mês de junho de 2014, juristas e filósofos provenientes do Brasil, Escócia e

Argentina reuniram-se em Porto Alegre para participar do III Colóquio de Filosofia Jurídica e Política

organizado pelos programas de Pós-Graduação em Direito e Filosofia da Universidade Federal do

Rio Grande do Sul.

Nosso propósito na promoção desse evento consiste em procurar aglutinar diferentes tradições de

pesquisa tendo como único fio condutor a seriedade dos diferentes pesquisadores. Assim, a

diversidade de abordagens em torno da filosofia do direito e da filosofia política que o leitor

encontrará nesse livro enriquece um laço acadêmico que busca consolidar um espaço comum de

debate que nos une em nome do fortalecimento da Universidade brasileira.

Gostaríamos de agradecer aos diferentes pesquisadores, alunos e público em geral que puderam

estar em Porto Alegre durante esses três dias. Alguns palestrantes, por razões diversas, não tiveram

a oportunidade de colaborar nesse volume. Fica aqui nosso agradecimento pelo debate caloroso

que nos proporcionaram.

Os organizadores deste livro decidiram veiculá-lo por mídia eletrônica, acreditando que desse

modo estariam garantidos acessibilidade a um público mais amplo e gratuidade na leitura do

mesmo. Esperamos colaborar, desse modo, com todos aqueles que julgarem o material aqui

divulgado relevante para suas pesquisas e interesses.

Como o leitor irá constatar, decidimos realizar nessa publicação, assim como nas publicações dos

eventos anteriores (Norma, moralidade e interpretação: temas de filosofia política e do direito.

Porto Alegre: Linus Editores Ltda, 2009 e Normatividade & argumentação: ensaios de filosofia

política e do direito. 1. ed. Porto Alegre: Linus Editores, 2013) um trabalho de edição bastante

limitado, e não adotar uma formatação uniforme para os artigos, preservando o modelo

originalmente proposto pelos autores. Evitando ao máximo a intervenção nos textos, mesmo no

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que diz respeito aos diferentes padrões de citação adotados, pretendemos manter no livro um

pouco da diversidade de estilos invariavelmente presente em um colóquio dessa natureza.

Participaram do evento Alfredo Storck (UFRGS), Paulo MacDonald (UFRGS), Maria Isabel Limongi

(UFPR), Cláudio Ari Mello (UniRitter), Fábio P. Shecaira (UFRJ), José Guilherme Giacomuzzi

(UFRGS/UniRitter), Luis Fernando Barzotto (UFRGS), Wladimir Barreto Lisboa (UFRGS), Luís Duarte

d'Almeida (University of Edinburgh), Andres Rosler (Universidad de Buenos Aires), José Reinaldo

Lima Lopes (USP/FGV-SP) e Ronaldo Porto Macedo (USP/FGV-SP).

Finalmente, gostaríamos de agradecer a inestimável colaboração, na organização do evento e na

preparação do presente livro, a Mariana Kuhn de Oliveira, bem como o apoio proporcionado pelo

CNPq.

Alfredo Storck

Paulo MacDonald

Wladimir B. Lisboa

Organizadores

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Hume e a liberdade saxã – sobre a origem social da lei

Maria Isabel Limongi Professora do Departamento de Filosofia, UFPR/CNPq.

Encontramos nos seis volumes da História da Inglaterra de Hume fundamentalmente uma

história da lei e da constituição inglesa. Trata-se também de história econômica e da história dos

costumes ou maneiras (manners) dos ingleses, mas, diferentemente da História da Sociedade Civil

de Ferguson, que é fundamentalmente uma história das maneiras e dos costumes na qual a lei

recebe uma atenção marginal e a lei inglesa em particular nenhuma, o fio condutor da História de

Hume é a lei ou o processo de formação do sistema legal inglês. E, diferentemente de Kames, que,

como Hume, se interessou pela história da lei, em particular pela história das leis inglesa e

escocesa, Hume não quer fazer uma história jurídica (interna) da lei, mas uma história social da lei,

isto é, ele quer mostrar como a lei se inscreve no fato social e se faz lei a partir dele.

Hume começa sua História1 com as invasões germânicas - com a chegada dos saxões em

solo britânico, o que culminou, 460 anos depois, no que ele reconhece como a primeira monarquia

inglesa, a de Alfredo. É aqui precisamente que se inicia a sua história da lei inglesa – na história da

lei saxã, que começa a ganhar forma então.

Minha proposta é a de reconstruir esse primeiro capítulo da história da lei elaborada na

História da Inglaterra a fim de indicar como a leitura que Hume faz do período saxão, ao mesmo

tempo em que recusa a leitura corrente, segundo a qual os saxões dispunham de uma constituição

civil bem equilibrada, cujos princípios fundamentais teriam sido encarnados e transmitidos pela

common law, prepara a sua própria e original concepção da lei como um fato social.

Comecemos pela leitura corrente da história saxã contra a qual Hume escreve.

* * *

1 No sentido da cronologia histórica, pois, na ordem da escrita, os volumes sobre o período medieval foram os últimos a serem produzidos.

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A valorização da herança saxã era um ponto central no modo whig de ler a história da

Inglaterra no período posterior à restauração da monarquia. As teorias góticas, influenciadas pela

descrição que Tácito e Cesar fizeram dos costumes e instituições dos povos germânicos,

enfatizavam a liberdade de que supostamente gozavam os saxões entre o fim da ocupação romana

e a conquista normanda. A exaltação da liberdade gótica desempenhou no argumento whig do

período posterior à restauração o mesmo papel desempenhado pelo recurso, comum no período

anterior à guerra civil, ao caráter imemorial da common law (Cf. SMITH, 1987, p. 11-3). O que se

trata de defender num e noutro caso é o caráter fundamental da lei. 2

O maior advogado da common law e de seu caráter imemorial foi Coke, a cuja obra se

recorria ao longo do debate constitucional como a uma espécie de “oráculo do direito” (WESTON,

1997, p. 341). Coke foi amplamente usado e citado pelos whigs a favor da sua causa, de modo que

se pode dizer que foi um whig por “afiliação póstuma” (SMITH, 1987, p. 2).3

A tese fundamental de Coke e que reflete a percepção que os common lawyers tinham da

lei inglesa é a de que esta se deriva de costumes imemoriais e que é em função do uso continuado

desde os tempos imemoriais que a lei e as práticas jurídicas das quais se tem registro adquiriram

força de lei. A lei é, assim, a prescrição de costumes imemoriais. Daí porque, quando se trata de

legitimar um determinado princípio, seja o caso de encontrar o maior número possível de práticas e

registros que confirmem seu caráter antigo. Tais registros não valem por si mesmos, de acordo com

a common law mind (segundo a expressão de Pocock – cf. POCOCK, 1967), enquanto fonte de

autoridade da lei, mas na medida em que deles se pode depreender costumes ainda mais antigos e,

no limite, imemoriais, dos quais eles seriam supostamente derivados e de que seriam a

confirmação.

O raciocínio funda-se sobre a tese de que o uso continuado de um princípio, a sua

permanência no tempo, é a prova de que ele é bom e benéfico, funcionando como uma espécie de

2 Sobre a ideia de lei fundamental e sua centralidade no debate constitucional inglês ver GOUGH,1992. Gough mostra

que o termo não assume nesse contexto o significado que adquiriu na constituição americana, a saber, a de princípios legais pétreos, que não podem ser modificados ou suprimidos pela legislação ordinária e a partir dos quais se pode operar algum tipo de controle de constitucionalidade. Essa ideia não encontra lugar na constituição atual da Inglaterra e não é de algo como um controle de constitucionalidade que se tratava, segundo Gough, quando no século XVII e XVIII inglês se aludia à “lei fundamental”. Assim, ele mostra de maneira abundantemente documentada que os atos do parlamento e mesmo a Magna Carta (um documento assinado pelo Rei e os barões no século XIII, colocando limites às prerrogativas reais, extremamente aludido e enaltecido por Coke e os whigs, com o qual Hume fecha o volume I da História) não eram tidos por “fundamentais”. O que era tomado por fundamental era a lei natural e a razão que esses atos expressam e reafirmam, os princípios de justiça que a lei incarna. 3 Sobre a influência póstuma de Coke, ver ainda POCOCK, 1967, p 46-5.

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atestado de perfeição da lei. A lei proveniente do costume, a customary law é a mais perfeita e

excelente porque é a sedimentação da sabedoria de muitas gerações. Coke enfatiza ainda a

atividade constante dos juízes no aprimoramento e refinamento da lei como um elemento que dá à

common law a sua autoridade. O uso costumeiro atesta ainda que a lei provém de um

consentimento tácito entre os ingleses, que a lei da Inglaterra não é, portanto, estrangeira ou

imposta, mas a lei dos ingleses, contraparte inseparável da sua liberdade.

Essa teoria da lei enquanto prescrição do costume esteve fortemente atrelada ao que

Pocock denomina o mito da antiga constituição, uma constituição que teria sido a dos saxões e que

– este é um ponto de honra para Coke e os common lawyers – não se viu alterada pela invasão

normanda, tendo sido, ao contrário, reafirmada pelos normandos, de modo a ter se transmitido por

repetidos atos de confirmação desde os tempos imemoriais até o presente. Tratou-se na verdade

de projetar a constituição inglesa do século XVII no passado, sendo um ponto fundamental ao

imemorialismo a defesa do caráter imemorial do próprio parlamento e da casa dos comuns. Daí

porque os whigs tenham encontrado no imemorialismo argumentos preciosos para a sua causa a

favor das limitações das prerrogativas reais: uma constituição imemorial é uma constituição

independente do rei e de seu poder, operando como um fator limitador desse poder.

A teoria gótica foi, a princípio, segundo Smith, uma teoria rival ao imemorialismo, já que o

interesse pelos costumes e leis saxãs e a coleta dos registros históricos do período respondem a

uma curiosidade de ordem histórica, favorecendo a visão de uma origem temporal e não imemorial

da lei. Além disso, a valorização da liberdade saxã convivia bem com a ideia, também em circulação

no período, por exemplo entre os levellers, mas negada pelos imemorialistas, de que a invasão

normanda foi um ato de conquista pela violência, consistindo na submissão pela força dos saxões

por parte dos normandos e na imposição de um jugo a ser afastado. A conquista normanda era

negada pelos common lawyers, que não falavam em conquista, mas de um acordo entre saxões e

normandos em torno da lei fundamental (Cf. SMITH, 1987, p. 5; WESTON, 1997, p.346; POCOCK,

cap. 2, II).

Mas, quando o imemorialismo se viu definitivamente vitimado pela descoberta do

feudalismo, após a restauração, a teoria gótica ganhou força entre os whigs, por ser menos atingida

que o imemorialismo pelos estudos históricos. Ela oferecia aos whigs um novo modo de pensar a lei

fundamental, agora entendida como saxã. Smith mostra como na ideologia whig pós-restauração, a

teoria gótica aliou-se ao maquiavelismo e ao harringtonismo – isto é, à ideia de que é preciso

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retornar ao espírito original da constituição, renovar seus compromissos e salvá-la da corrupção

histórica - ganhando força sobre o imemorialismo na sustentação da ideia de que existe algo como

uma Lei inglesa fundamental, servindo como um elemento de limitação da autoridade real. Quer

fosse imemorial, quer fosse uma herança do período gótico, em ambos os casos importava apontar

para a existência de uma lei fundamental ou de uma antiga constituição inglesa, a ser preservada

ou reestabelecida. A exaltação da liberdade gótica era uma forma de mostrar a sua existência na

história, fazendo-a remontar ao período de fundação do corpo político inglês.

* * *

Hume introduz os saxões em sua narrativa histórica exaltando, ele também, a liberdade

germânica:

De todas as nações bárbaras, conhecidas nos tempos antigos ou modernos, os germanos são

os que mais se distinguem, tanto por suas maneiras quanto por suas instituições políticas, e

os que elevaram ao mais alto grau as virtudes do valor e do amor à liberdade [liberty], as

únicas virtudes que podem encontrar lugar entre povos não civilizados, onde a justiça e a

humanidade são normalmente negligenciadas. O governo do rei, mesmo quando

estabelecido entre os germanos (pois não o era universalmente), possuía uma autoridade

bastante limitada; e embora o soberano fosse usualmente escolhido entre os da família real,

ele era conduzido em todas as decisões [in every measure] pelo consentimento comum da

nação a que presidia (HUME, 1983, p. 15)4.

Também no apêndice com o qual se fecha a narrativa do período, a apresentação do

governo e das maneiras anglo-saxãs se introduz pelo topos da liberdade germânica:

O governo dos germanos e de todas as nações nórticas que se estabeleceram nas ruínas de

Roma eram sempre extremamente livres [free]; e esse povo feroz [fierce], acostumado à

independência e habituado às armas, era guiado mais pela persuasão do que pela autoridade,

na submissão que prestava a seus príncipes (...). As constituições livres então estabelecidas,

ainda que prejudicadas pela usurpação [encroachments] de sucessivos príncipes, ainda

4 Doravante H, I

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Hume e a liberdade saxã – sobre a origem social da lei- Maria Isabel Limongi

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preservam o ar da independência e da administração legal que distingue as nações europeias;

e se essa parte do globo mantém os sentimentos de liberdade, honra, equidade e valor em

grau superior ao resto da humanidade, deve tais vantagens principalmente às sementes

plantadas por esses generosos bárbaros (H, I, p. 160).

A referência é Tácito: “o mesmo retrato [picture] de uma feroz [fierce] e impudente [bold]

liberdade, desenhado pelo pincel magistral de Tácito, caberá aos fundadores do governo inglês (H,

I, p.161).5 Hume incorpora no seu retrato dos saxões o traço, bem definido no retrato que Tácito

fizera dos povos germânicos, segundo o qual os príncipes germânicos governavam com a ajuda de

um conselho nacional ou uma assembleia de sábios, sendo antes um príncipe - o “primeiro entre os

cidadãos” - do que um rei.

Há, deste modo, “ecos de goticismo” em Hume (SMITH, 1987, p.79). Mas o topos da

liberdade germânica é para Hume apenas um ponto de partida, que dele se apropria para alterar

profundamente o seu significado corrente no interior do debate constitucional. Não apenas ele

evita fazer deste quadro da liberdade a prova de que a estrutura presente do parlamento já

estivesse bem estabelecida entre os saxões6, como o associa antes à carência de governo e à

ausência da lei do que à expressão de um equilíbrio constitucional fundamental.

Se a autoridade real era limitada entre os saxões, não é porque o governo fosse bem

equilibrado, mas porque era incipiente - um governo que mal começara a se estabelecer em torno

de sua capacidade ainda muito restrita de conter a violência generalizada, a pilhagem corrente e as

sucessivas invasões estrangeiras. Se os governos saxões lançaram as sementes de uma “monarquia

civilizada, dotada de tranquilidade interna e segura contra as invasões externas” (H, I, p. 50),

estavam muito distantes de ser uma. Uma monarquia civilizada é para Hume um governo regulado

pela lei, opondo-se nisso às monarquias bárbaras. Estas são arbitrárias - entenda-se: sem lei, ou

melhor, com uma lei apenas incipiente. Pode-se ler a História da Inglaterra como a história da

passagem da monarquia bárbara à civilizada, o que passa pela constituição de um sistema legal (Cf.

McARTHUR, 2007).

5 Sobre a importância de Tácito - em especial, sobre o caráter exemplar dos seus retratos históricos para Hume e seus contemporâneos ver o ensaio de Pedro Pimenta “A arte do retrato histórico” (PIMENTA, 2013). 6 “Nosso conhecimento das <<antiquities>> e da história anglo-saxã é por demais imperfeito para nos dar os meios de

determinar com certeza todas as prerrogativas da coroa e os privilégios do povo, ou para dar o contorno [delineation] exato de um tal governo”, pondera (HUME, 1983, p. 162).

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Assim, as sementes da monarquia civilizada semeadas pelos bárbaros saxões foram as

sementes da lei. Trata-se de uma certa capacidade de executar e administrar a justiça que o

governo saxão adquiriu sobretudo a partir de Alfredo (Cf. H, I, p.75), sendo a administração da

justiça a função principal do governo e aquilo que explica a sua existência, conforme a teoria do

governo presente no Tratado e nos Ensaios.7 E é em torno desta administração que o primeiro

governo inglês - o saxão - se organiza, sendo assim o princípio (no sentido do começo) de uma

monarquia civilizada.

O mérito de Alfredo está em ter organizado uma milícia regular que garantiu a defesa da

Inglaterra frente aos ataques estrangeiros8 e, paralelamente a isso, em ter garantido alguma paz

interna pela elaboração de um “plano para a administração da justiça” (H, I, p. 77). Este plano

consistiu basicamente em dividir a Inglaterra em condados, subdividi-los em centos e décimos e

responsabilizar cada unidade pelas ofensas cometidas pelos seus, fazendo com que os membros

das comunidades arbitrassem em conjunto as diferenças entre eles e que as comunidades maiores

arbitrassem as diferenças entre as menores. Quanto a esse “método de decisão”, Hume observa

que é “a origem dos juris; uma instituição admirável em si mesma e a melhor calculada para a

preservação da liberdade e a administração da justiça jamais divisada pelo engenho humano” (Id.).

Há nessas observações novos “ecos de goticismo”, temperados com uma boa dose de

imemorialismo, uma vez que Hume observa ainda que Alfredo não foi “o único autor desse plano

de governo”; antes, “como um homem sábio, ele se contentou com reformar, estender e executar

as instituições que ele encontrou previamente estabelecidas. (H, I, p. 79). Ou seja, Alfredo não era

soberano: sua autoridade não era a fonte, ou ao menos não a única fonte da lei – com o que Hume

aceita um ponto central da historiografia whig. Sua concessão é coerente com a teoria da lei

natural do Tratado, segundo a qual a lei encontra o seu princípio (no sentido do começo) nos

acordos recíprocos e nas práticas comuns que se estabelecem antes mesmo de haver governo. Há

lei natural antes do governo e esta constitui-se em práticas acordadas estabilizadoras da posse.

Assim, o governo surge para administrar uma lei pré-existente nos princípios acordados que

regulam as práticas sociais e que dão certa estabilidade, ainda que muito precária, à propriedade.

7 Ver por exemplo o ensaio Da origem do governo: “o homem (...) é levado a estabelecer a sociedade política a fim de administrar a justiça, sem a qual não pode haver paz, segurança ou intercâmbio entre os homens” (HUME, 1985, p. 37). 8 “Ele ordenou que toda a população fosse armada e registrada; atribui-lhe uma rotação regular de deveres; distribuiu uma parte em castelos e fortalezas, construídos em lugares apropriados; determinou que outra parte ganhasse o campo ao primeiro alarme e se reunisse em lugares estabelecidos de encontro; e deixou um número suficiente em casa, empregados no cultivo da terra, e que depois tomavam seus lugares no serviço militar” (H, I, p. 70).

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Hume e a liberdade saxã – sobre a origem social da lei- Maria Isabel Limongi

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Tais práticas necessitam, porém, da administração de um governo para que se tornem elas próprias

regulares, para que se tornem um sistema de regras, no que consiste para Hume a justiça.

Mas um tal sistema de regras é justamente o que falta à sociedade saxã:

Entre um povo que vive de maneira tão simples quanto os saxões o poder judicial é sempre

de maior importância que o legislativo. Havia poucas ou nenhuma taxa imposta pelos

estados, poucos estatutos decretados; e a nação era menos governada pelas leis do que pelos

costumes [customs], que admitem uma grande latitude de interpretação. (H, I, p. 173)

Assim, não havia propriamente leis entre os saxões. O que se tinha era a lei natural:

“devemos conceber que os antigos germanos pouco tinham se afastado do estado de natureza

original” (H, I, p.174). Da lei civil havia apenas rudimentos, que culminaram nas leis coletadas por

Eduardo, o Confessor, o último da linhagem saxã, acerca das quais Hume observa que, embora

estivessem “hoje perdida[s] (pois as leis que se passam em nome de Eduardo foram compostas

depois), [foram] por muito tempo objeto de afeição da nação inglesa” (H, I, p. 146). Com efeito, as

supostas leis de Eduardo eram tidas como um dos primeiros atos de prescrição da common law, um

atestado de sua imemorialiadade. Mas Hume se refere a esse suposto corpo de leis como o

rudimento de um código civil e de uma lei escrita da qual não restou nenhum registro e que não

chegou a marcar a presença reguladora da lei civil na sociedade saxã.

Tal sociedade carecia de leis porque a ela faltava um poder legislativo. As cortes saxãs, cujo

caráter deliberativo tanto se exaltara no debate constitucional, não eram cortes legislativas, mas

judiciárias, que arbitravam as diferenças de modo bastante irregular, segundo a discrição dos

magistrados, de acordo com “a grande latitude de interpretação” admitida pelos costumes de que

se serviam como regra em sua atividade judiciária.

Penso que Hume entende por costume nessa passagem o mesmo que lei natural, ou seja,

um conjunto de práticas mais ou menos acordadas, mais ou menos sedimentadas e ainda não

sistematizadas que traziam alguma estabilidade à propriedade. Se é assim, vale lembrar que no

Tratado Hume salienta que, nas deliberações jurídicas que se fazem com base apenas na lei natural

(isto é, sem o apoio de uma lei civil), em boa parte dos casos, não há um critério (standard) dado

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Temas de filosofia política e jurídica

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pelo qual se possa orientar ou regular a decisão.9 Esta será, portanto, arbitrária; criar tais critérios é

um papel decisivo da lei civil e do poder legislativo, cuja presença é um fator de limitação do poder

discricionário dos magistrados.

Mas, justamente, não havia - ou quase não havia - tal poder legislativo entre os saxões. O

que se tinha era um certo método de decisão judicial a partir da lei natural, pelo qual a justiça era

administrada de maneira irregular e discricionária ou arbitrária. E nisso consistia, segundo Hume, o

caráter consentido da lei saxã: nos costumes e práticas legais, cuja latitude deixava aos magistrados

das cortes de justiça um amplo poder discricionário, em face da ausência de um poder legislativo e

de uma lei escrita que viesse a fixar um padrão de decisão para as disputas judiciais. Estamos bem

distantes do topos da liberdade germânica, como o elemento de um equilíbrio constitucional antigo

ou imemorial a ser preservado no presente.

Além disso, no que tange ao poder legislativo, ainda mais precário entre os saxões do que o

judiciário, Hume o vincula à autoridade igualmente precária dos reis – com o que se afasta ainda

mais da historiografia whig, fazendo eco às teorias da soberania que, de Bodin a Filmer, municiaram

os tories no debate constitucional. Como vimos, Hume entende que os reis saxões não eram

soberanos, que a lei saxã estava longe de ser um produto de suas vontades, já que provinha dos

costumes e consistia em última instância na lei natural. Ainda assim, ele entendia que a autoridade

dos príncipes era uma circunstância indispensável para a consolidação da lei enquanto elemento de

regulação social. Eis porque ele não economiza elogios a Alfredo, exaltando as virtudes que

sustentavam sua autoridade legislativa:

O mérito deste príncipe, tanto na vida privada quanto pública, pode se contrapor com

vantagem ao de qualquer monarca ou cidadão apresentado nos anais de qualquer época ou

9 Hume observa, na contramão da tradição da lei natural, que “(…) é fácil ver quão complicadas podem se tornar as

diversas questões concernentes à aquisição da propriedade por ocupação e o menor esforço de pensamento pode nos apresentar exemplos que não admitem nenhuma decisão razoável (reasonable). Se preferimos exemplos reais aos imaginados (feign’t), podemos considerar o seguinte, que se encontra em quase todos os autores que trataram da lei natural. Duas colônias gregas, tendo deixado seu país natal em busca de novos assentamentos, foram informadas de que uma cidade próxima havia sido abandonada por seus habitantes. Para confirmar a veracidade do relato, elas de pronto enviaram dois mensageiros, um de cada colônia, os quais, ao se aproximarem, tendo descoberto que a informação era verdadeira, começaram uma corrida com a intenção de tomar posse da cidade, cada qual em nome dos seus conterrâneos. Um dos mensageiros, vendo que não era tão veloz quanto o outro, atirou sua lança nos portões da cidade e teve a sorte de fixa-lo ali antes da chegada do seu companheiro. Isso produziu uma disputa entre as duas colônias sobre qual delas era a proprietária da cidade abandonada; e esta disputa ainda subsiste entre os filósofos. De minha parte penso que a disputa é impossível de ser decidida, e isso porque toda a questão depende da fantasia (fancy), que nesse caso não possui nenhum padrão (standard) preciso e determinado a partir do qual possa dar a sua sentença (HUME, 1989, p 507-8, nota, grifos meus).

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Hume e a liberdade saxã – sobre a origem social da lei- Maria Isabel Limongi

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nação. Com efeito, ele parece ser o modelo daquele caráter perfeito, que, sob a

denominação de um sábio ou de homem sábio, os filósofos quiseram delinear, mais como

uma ficção de sua imaginação do que na esperança de vê-lo alguma vez existindo realmente

(H, I, p. 74).

Tais méritos permitiram que Alfredo garantisse com seu governo alguma tranquilidade

social - bons efeitos da administração da justiça – que, por sua vez, deram a ele uma certa

autoridade, com a qual pode então governar ou administrar a justiça, num círculo virtuoso que

favoreceu a implantação da lei. O importante a assinalar é que sem a autoridade de Alfredo o

pouco de lei que houve entre os saxões sequer teria existido. Sem a “vigilância e a atividade de

Alfredo” (H, I, p. 76) – escreve Hume – sua precária administração da justiça teria sucumbido ao

barbarismo, ao regime de violência e ausência de regulação legal ainda imperante. Ou seja, a lei

está na dependência de uma instância de governo ativa – uma autoridade. No caso de Alfredo, sua

autoridade esteve fundada sobre o seu bom governo, embora se explique ainda por outras

circunstâncias, mais particulares e menos dependentes do seu valor: além das urgências do tempo

e da aprovação da nação, Alfredo foi chamado ao trono – observa Hume - pela vontade de seu pai,

“uma circunstância que tinha grande autoridade entre os anglo-saxões” (H, I, p. 64). Seja lá como

for constituída a autoridade do rei (este é um ponto interessante, mas que não cabe ser

desenvolvido aqui), importa observar que ela não equivale, mas excede e engloba a autoridade da

lei, sendo o que permite que a lei venha a ter sua autoridade própria, na medida em que se

consolida em torno da autoridade real.

Outras circunstâncias relacionadas à autoridade dos príncipes saxões são assinaladas por

Hume com relação a Eduardo, O Confessor - príncipe cujo governo cumpriu também um papel

decisivo no desenvolvimento da lei saxã. Hume faz ver que a autoridade deste príncipe, tido por

santo, esteve fundada em boa medida sobre sua religiosidade, uma qualidade valorizada em

tempos de superstição, e sua submissão a Igreja, instituição que gozava então de autoridade

própria, da qual dependia em boa parte a autoridade dos príncipes. Hume quer mostrar com isso, e

com os relatos das disputas de poder frequentes entre clérigos e os príncipes saxões, a

precariedade da autoridade destes últimos, ao mesmo tempo em que aponta para as circunstâncias

sociais particulares em que esta autoridade se funda, assim como assinala seu caráter indispensável

à administração da justiça.

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Temas de filosofia política e jurídica

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Na narrativa de Hume, a autoridade nascente do governo saxão esteve ameaçada não

apenas pela autoridade nem sempre convergente dos clérigos, como também e de forma decisiva,

pelas querelas de sucessão e pelo poder de uma nobreza cada vez mais empoderada. Assim, Hume

narra como um certo conde Godwin, cuja família tinha grande autoridade “sustentada por posses

imensas e alianças poderosas” (H, I, p. 133), se opôs a Eduardo. Se Eduardo gozava da afeição dos

ingleses – logo, de autoridade - Godwin, por outro lado, “fixou sua autoridade em bases firmes”, de

modo que a de Eduardo restou bastante diminuída diante de sua oposição. O rei não deixou de

defender-se, procurando, por exemplo, fortalecer uma família rival, adotando a “a política (policy)

de balançar os partidos opostos” a fim de estabelecer uma balança entre “as famílias potentes”.

Mas sua política não surtiu o efeito desejado (H, I, p. 137) e as turbulências e intrigas entre as

famílias nobres se prolongaram no governo de Haroldo, precipitando a invasão normanda e

prolongando-se por todo o período bárbaro, até o governo de Henrique VII, quando então a

monarquia se consolida como uma autoridade capaz de fazer frente ao poder dos barões.

O que se vê nessas passagens na História da Inglaterra é uma certa visão maquiaveliana da

sociedade como um campo de forças que Hume herdará de Harrington, mas sendo ainda mais

maquiaveliano do que este, no papel que atribui à autoridade do príncipe para a estabilização desse

campo. Vem de Maquiavel o conselho de que o príncipe deve balançar os partidos opostos - o

famoso “dividir para governar” a que Kant alude no apêndice a Paz Perpétua, como o preceito de

uma política que se pensa como independente da moral, e que Hume diz ter sido posto em prática,

ainda que sem sucesso, por Eduardo, o Confessor. Mais sucesso teria a boa administração da justiça

na consolidação da sua precária autoridade. Seja como for, a alusão ao preceito maquiaveliano de

prudência política nesse contexto é uma forma de corroborar a sua visão de que é preciso de algum

modo estabilizar o campo das forças sociais para que a lei possa se impor - e que isso só pode ser

feito - nesse começo pelo menos, em que a lei tem que se impor sobre a ausência da lei – pela

consolidação da autoridade do príncipe.

Este não era o caso, porém, do governo de Eduardo. Se Eduardo procurou administrar com

rigor a justiça, ele ainda assim não dispunha da autoridade necessária para conter a violência dos

mais potentes. Daí a precariedade da lei durante o seu governo, assim como no período saxão

como um todo.

A partir desse ponto Hume pode retomar em novos termos a questão da formação dos

conselhos legislativos que teriam existido entre os povos germânicos, com os quais os reis teriam

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Hume e a liberdade saxã – sobre a origem social da lei- Maria Isabel Limongi

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supostamente partilhado sua autoridade legislativa. Hume aceita, com bastante reserva, que um tal

conselho tenha de fato existido entre os saxões. Há poucas evidências, mas parece (“it appears”) –

diz ele - que algo assim tenha existido e o que rei governasse, portanto, com a ajuda de um

conselho (H, I, p. 163).

Mas, se existiu, tal conselho de modo algum prefigurou o parlamento do século XVII e XVIII,

com sua casa dos comuns. Eram conselhos aristocráticos, afirma Hume, apoiando-se nos estudos

de Brady (Cf. BRADY, 1711), sem contudo abandonar a autoridade de Tácito, que procura conciliar

com Brady.10 Tácito não dizia, observa Hume, que os conselhos germânicos eram representativos,

mas que o consentimento de toda a comunidade era requerido nas deliberações. São coisas bem

distintas. Do elemento supostamente consentido da lei saxã Hume dera conta ao se referir aos

costumes e práticas consentidas (lei natural), que regulavam as decisões dos magistrados nas

cortes judiciárias. Um conselho legislativo – fazedor da lei - é outra coisa. Não era isto a que Tácito

se referia, podendo-se ficar com Brady sem desautoriza-lo: se, além das cortes judiciárias, um tal

conselho legislativo existiu entre os saxões, ele era um conselho aristocrático, composto pelos

grandes proprietários de terra, e não um conselho representativo dos comuns. A esta visão

bradyana da composição dos conselhos legislativos Hume acrescenta a visão harringtoniana (Cf.

HARRINGTON, 1992) segundo a qual o que estava em jogo então era a disputa de poder entre o rei

e os nobres, que mais enfraquecia do que compunha a autoridade legislativa.

Assim, é verdade que o poder dos reis saxões não era um poder absoluto. Além de aplicar a

lei natural com a ajuda de magistrados dotados de amplos poderes discricionários, os reis saxões

não decidiam a composição dos conselhos legislativos que teriam existido no período. Hume recusa

a ideia, que era a de Brady e a dos tories, de que os participantes dos conselhos legislativos saxões

eram designados pelo rei (Cf. H, I, p. 165). Mas, se o faz, não é para se aproximar da visão whig de

que a Inglaterra já seria então dotada de uma constituição equilibrada e de um governo

representativo, mas sim para reiterar a sua própria visão do período saxão, segundo a qual a

autoridade legislativa era então precária, a lei incipiente e os interesses da nobreza prevalecentes.

Os nobres – os grandes proprietários e senhores de escravos – tinham força para pôr em

cheque a precária autoridade legislativa do rei, com o que se fortaleciam ainda mais contra ela.

10 Brady foi um dos primeiros a se valer das evidências históricas acerca do caráter do Parlamento, usando-as a favor da causa do rei. Sobre o lugar de Brady no debate constitucional inglês, Cf. POCOCK, 1967, cap. 8.

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Temas de filosofia política e jurídica

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Grande propriedade dos nobres, especialmente quando aliada a uma administração irregular

da justiça, naturalmente favorece o poder (power) da aristocracia; mas ainda mais se a prática

da escravidão for admitida e tiver se tornado bastante comum. A nobreza não apenas possui

a influência que atende aos ricos, mas também o poder que a lei lhe dá sobre escravos e

vassalos. (H, I, p. 171)

É ainda sobre Brady que Hume se apoia para afirmar a forte presença da escravidão entre

os saxões. O que ele quer retirar daí é uma explicação, que ele acrescenta à explicação

harringtoniana de que o poder está fundado na propriedade, para o poder da nobreza. Não é

apenas que um certo tipo de lei favorece a nobreza, mas a insipiência da lei a favorece, já que,

nesse caso, subjugar-se aos grandes proprietários, como vassalo ou escravo, é a única saída, a título

de proteção.

A suposta liberdade saxã não estava, portanto, na presença desses conselhos legislativos,

em que tinham assento os grandes proprietários de terra e os senhores de escravo, e que

apontavam antes para a precariedade da autoridade legislativa do que para um justo balanço

constitucional. Nesse primeiro capítulo da história da lei, a autoridade legislativa está com o rei. E

sendo ela precária diante do poder dos nobres, não podia haver entre os saxões “verdadeira

liberdade”11, o que Hume entende, em termos republicanos, como proteção da violência dos

poderosos pela lei. O que havia de liberdade entre os saxões não estava nos conselhos legislativos,

mas na administração da justiça que começava a se organizar nas cortes judiciárias e que, segundo

Hume, “era calculada para defender a liberdade geral e restringir o poder dos nobres” (H, I, p. 172).

Contudo, o poder de injuriar e decidir pela violência era muito maior que o judicial e o

legislativo, e recaia sobre a nobreza, os proprietários de terra e de escravos. Eis porque, ao fim da

sua narrativa sobre o período saxão, Hume prefere denominar a tão exaltada liberdade saxã de

“licenciosidade”. Na falta da lei, a violência, os roubos, os crimes e a necessidade de buscar

proteção entre os mais fortes, que se viam ainda mais fortalecidos por essa dinâmica, eram a regra.

A razão disso está na ausência da lei e na insegurança que isso gera – lição que Hume guarda de

Hobbes e Selden. O que se tinha então, em sua leitura do período, era uma aristocracia com grande

11

“Ao fim e ao cabo, não obstante a aparente liberdade, ou antes, licenciosidade dos anglo-saxões, a maioria dos cidadãos gozava de menos verdadeira liberdade do que pela execução mais severa da lei por parte de um magistrado civil” (H, I, p. 168).

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Hume e a liberdade saxã – sobre a origem social da lei- Maria Isabel Limongi

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poder (power) de causar injúria e decidir as questões pela violência, o qual era maior que a

autoridade legal, que, embora existisse, se exercia antes enquanto autoridade judicial do que

legislativa, e de maneira bastante rudimentar e irregular, de modo a não ser capaz de se impor

diante do poder dos nobres.

* * *

O que parece particularmente importante nesse capítulo inicial da história da lei narrada na

História da Inglaterra está no modo como Hume, ao recusar a tese de uma antiga constituição

inglesa que teria sido a dos saxões, passa a compreender a história saxã como um período em que a

lei civil começa, ainda que muito precariamente, a impor sua autoridade, ou seja, a impor-se como

um elemento regulador das relações sociais, sendo que esse processo tem como pano de fundo as

relações sociais não reguladas pela lei. Fazer emergir esse pano de fundo para pensar a partir da daí

a história da lei é uma das principais e mais originais contribuições da História da Inglaterra de

Hume.

Referências bibliográficas

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Temas de filosofia política e jurídica

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____________ Historical Law-tracts. Edinburgh: A. Kincaid, 1761 (The lawbook exchange, Ltd.

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Thomas Hobbes et la dignité du droit de nature

Wladimir Barreto Lisboa Professor da Faculdade de Direito, UFRGS/Capes.

«On me reprochera de m’attacher trop à des minuties : je souhaite que l’on sache

que je le fais, non pour croire que ces choses sont importantes en elles-mêmes,

mais afin d’insinuer par des exemples sensibles qu’il faut s’armer de défiance

contre ce qu’on lit et employer son génie au discernement des faits. Cette

application étend et multiplie les forces de l’âme.» Pierre Bayle, Cappadoce,

remarque : K in fine. Dictionnaire Historique et Critique. Nouvelle Édition. Genève,

Slatkine Reprints (Réimpression de l’édition de Paris, 1820-1824).

1. Lamentations d’un monde perdu

C'est presque un lieu commun aujourd'hui de diriger une critique envers la modernité quant

à son impossibilité de pouvoir penser le monde en tant que réalisant un telos, une fin digne par soi-

même. Critique, par conséquent, de l'impossibilité de déterminer un juste objectif, fondé sur les

choses, fondateur de la justice distributive. Le droit naturel moderne, en hypostasiant la notion de

sujet, aurait transformé l'homme en une unité abstraite dont la revendication fondamentale

consisterait à chercher à se faire comprendre en faisant abstraction de sa propre subjectivité. Cet

absolutisme d'une notion abstraite et a-historique du sujet aurait été construit sur la supposition

d’une égalité naturelle des individus dont le corollaire, sur le plan politique, serait la construction

d'un pluralisme et d’une horizontalisation des valeurs dignes d'être poursuivie par les individus dans

la société politique1. Comme une conséquence nécessaire de cette hypothèse, il y aurait un État

dont la tâche prioritaire serait de garantir aux individus la jouissance des droits absolus constitués

dans la sphère privée. Le résultat du discours moderne serait donc la construction d'un État libéral

assis sur le principe fondamental de l'ordre et de la sécurité juridique. Enfin, le savoir proposé par

1 Ces critiques remontent, évidement, à Edmund Burke, Reflections on the revolution in France. London : Macmillan, 1890 et à Joseph de Maistre. Ce dernier disait sur la Constitution française : «La Constitution de 1795, tout comme ses aînées, est faite pour l’homme. Or il n’y a point d’homme dans le monde. J’ai vu, dans ma vie, des Français, des Italiens, des Russes, etc. Je sais même, grâce à Montaigne, qu’on peut être persan ; mais quant à l’homme, je déclare ne l’avoir rencontré de ma vie ; s’il existe, c’est bien à mon insu.» In Maistre Joseph de. Considération sur la France. Lyon : J. B. Pélagaud et Cie, 1850, p. 88.

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ceux qui inaugurent la modernité aurait produit une instrumentalisation totale de la raison et

propulsé la marchandisation de la culture et de la société industrielle moderne, comprise comme le

royaume de l'aliénation technologique2.

C'est dans cette perspective que la pensée de Thomas Hobbes exerce une fascination sur

tous les lecteurs qui ne cessent de chercher à comprendre et regretter la saga et le déclin d'un

monde qui était autrefois le berceau et le destin culturel de l'humanité. Cela est dû en grande

partie au fait, croient-t-ils, de cet auteur d'avoir, plus que tous, dévoilé les secrets d'une modernité

barbare qui peuvent être fédérés autour d'un thème : l'individualisme, racine de toutes les

maladies des sociétés libérales contemporaines, où le formalisme bourgeois s'est déroulé dans une

explosion de revendications de droits. L'individualisme radical du droit naturel, chez Hobbes, fini

par détruire toute inclination naturelle à la vie politique. « Tout droit est reconstruit par Hobbes par

degrés successifs sur la marche première du droit subjectif, et c’est en cela que Hobbes renverse la

science juridique antérieure »3. Ainsi, par exemple, avoir le droit de propriété permet au sujet de

droit de faire tout ce qu’il veut de la chose: « Hobbes est déjà l'un des prophètes de l'économie

libérale. »4 Voici la tragédie qui conduirait le libéralisme à une auto-négation : sous la démesure des

droits naturels s’engendrent les régimes plus oppressifs des individus5. Il est prophète, c'est-à-dire

diffuseur et révélateur des engrenages d'un temps qui le dépasse et le confirme. L'homme

bourgeois moderne, tel que Hobbes le décrirait, associe à la rationalité sa nature violente et

égoïste, source permanente de tension et de dissensions de la vie civile. La société reconstruite par

des individus isolés méconnaîtrait la nature des choses et, par conséquent, la vraie science du juste,

se conformant aux commandes imposées par les autorités comme constituant, par la seule volonté

législative, la totalité du droit. Le droit se trouve alors constitué entre les volontés individuelles, le

droit subjectif et la volonté de la puissance publique, le droit positif. Mais c'est à la première qu'est

attribuée l’origine de notre représentation du sociale: « ... de même que partant de l’individu on ne

2 A ce propos, écrit Heidegger : «Avec l’impérialisme planétaire de l’homme organisé techniquement, le subjectivisme

de l’homme atteint son plus haut point à partir duquel il se posera dans le nivellement de l’uniformité organisée et s’y installera. Cette uniformité sera l’instrument le plus sûr de la domination complète, c’est-à-dire technique de la terre.» M. Heidegger, Chemins qui ne mènent nulle part, trad. W. Brokmeier, Paris, Gallimard, coll. «Tel», 1986, p. 144. Tout est là, dirais-je. 3 Michel Villey. La Formation de la pensée juridique moderne: cours d'histoire de la philosophie du droit. Paris : Montchrétien. 1975, p. 591. L’analyse de la pensée de Michel Villey me sert ici en tant qu’elle n’est qu’une instance d’arguments qui, malgré les différentes justifications qu’ils peuvent trouver à l’intérieur des théories distinctes, ciblent toujours, comme cause efficiente de ses raisonnement, l’ennemie commun. 4 Idem. p. 671. 5 Idem p. 675. Celui-ci est aussi le point de vue de Strauss pour qui le libéralisme de Hobbes ne considère que les droits

naturels mais non ses devoirs. Cette primauté de l’individu sur la société aboutit, a contrario, à une conception autoritaire de l’État. Cf. Strauss, Droit naturel et histoire, chap. V (a), Paris: Champs-Flammarion, 1986, p. 169.

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Thomas Hobbes et la dignité du droit de nature- Wladimir Barreto Lisboa

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peut aboutir au droit comme juste partage et proportion entre individus, mais seulement au ‘droit

subjectif’ solitaire de chaque individu (...); de même une loi qui est l’expression d’une volonté

individuelle est impuissante à ordonner des relations justes. »6 L'histoire du droit devient ainsi un

grand récit de son oubli. Le moment copernicien de l'histoire du droit se trouve dans la conjonction

et l'implication réciproque du subjectivisme juridique, du positivisme, du nominalisme, de

l'individualisme et du volontarisme. Les juristes modernes, ignorant Occam, Galilée, Bacon,

Descartes et Hobbes, ainsi que les philosophes, ignorant le droit, sont « eux même esclaves du

préjugé moderne du progrès des lumières »7. Voilà donc le mal ! Son inspirateur principal répond

au nom de Thomas Hobbes. Pour échapper à cette obscurité où nous avons été submergés par les

lumières, il faut que les juristes « remontent par l’histoire jusqu’au siècle où s’est opérée cette

révolution ; à ce carrefour où les moderne, à notre avis, se sont fourvoyées. Et repartir dans la voie

qu’à tort ils ont abandonnée, celle du réalisme classique. »8

Dans ses Carnets publiés en 1995, sept ans après sa mort, Villey écrivait ainsi à propos de

l’égalité des modernes: « Les hommes ne sont nullement égaux quoi que nous veuille en faire

accroire le démocratisme ; leur autorité est très inégale, car il y en a qui par grâce ont pénétré les

mystères de l’amour divin (saint Augustin), qui eurent le génie du beau musical (Mozart),

l’intelligence philosophique (Aristote): d’autres qui furent doués du sens juridique. Réhabiliter

l’auctoritas contre la science impersonnelle. »9 Tout est là, pourrions-nous dire: l’attaque à l’égalité

abstraite des démocraties, le mystère de la grâce (thème constant de ses Carnets), l’empire de la

technique et de la science et regret de l’oubli de l’autorité.

Du côté de l’oubli du Jus, c’est Hobbes aussi son principal protagoniste. On lui doit, selon les

mots de Julien Freund10, la rupture entre les mondes antique et médiéval, d'un côté, et le monde

moderne, de l'autre. La société, désormais, ne peut plus être pensée comme un donné naturel,

6 Michel Villey. La Formation de la pensée juridique moderne. Op. cit.p. 706.

7 Michel Villey. Leçons d'histoire de la philosophie du droit. Paris : Dalloz, 1961, p. 707.

8 Idem.

9 Michel Villey. Réflexions sur la philosophie et le droit. Les Carnets de Michel Villey. Textes préparés et indexés par

Marie-Anne Frison-Roche et Christophe Jamin. Préface de Blandine Kriegel et François Terré. Paris, Presse Universitaire de France, 1995, Le vingt-deuxième livre des pages, p.448. La période de cette réflexion se situe entre août 1975 et avril 1977. Aussi éclairant à propos de la critique de Villey aux droits de l’homme est ce passage des Carnets : « Droit de l'homme, l'hérésie majeure du XXème siècle. Fondé sur cette absurdité, la déification de l'Homme, c'est-à-dire d'un universel abstrait, déification d'un être inexistant, non personnel. Exprimé dans le mythe fantastique et totalement irréaliste de l'état de nature. Épanoui dans ses monstruosités, le "droit à la vie, à la mort choisie, au bonheur, à l'enfant", la liberté indéfinie. Alors qu'il faut reconnaître un Dieu et un ordre et une nature cosmique où chacun trouve sa liberté réduite, mesurable, déterminable. » Michel VILLEY Carnets, n° XXIV-108. 10 J. Freund. “Pouvoir et personne”, Cahier Vilfredo Pareto, 1975, n. 34, p. 59.

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mais comme une création, un artifice humain. C’est l’idée même du contrat qui doit être la cible

des critiques. Mais pour être pleinement efficace, la critique doit encore ajouter, bien sûr, la

dénonciation de l'individualisme, responsable, selon Julien Freund, de la division de ces monades

humaines, opaques au monde social et au pouvoir, source de la fragmentation politique, de

l’anarchie et de l’étatisme.

Pour Julien Freund, bien au contraire, nous devrions penser à nouveau la vie politique

comme une réalité qui existe naturellement et préalablement, en tant que fin régulateur, à toutes

les autres communautés. La vie proprement humaine ne peut être pensée hors de la politique. La

vie politique, malgré sa contingence liée à diversité temporelle et géographique, contiendrait une

norme éthique naturelle à partir de laquelle il serait possible de juger de la pertinence d'une réalité

politique concrète. Hobbes, pour sa part, en soutenant l’idée de la politique comme le résultat de

l’artifice d’un contrat, laisserait entrevoir la possibilité de que, ainsi visée, soit transférée à

l’arbitrage des hommes la banalité de la modifier ou d’abroger ce qui ne peut pas être détruit, à

savoir la nature politique de l’homme et les standard normatifs au sein desquels il est possible une

vie conforme à ses fins naturelles. Cependant, il fait partie de la nature même de l’idée de contrat,

base juridique à partir de laquelle est pensée la vie civile, que les hommes puissent transiger autour

de ce qu’ils jugent conforme à leur sécurité. Voici, d'après Freund, la mystique révolutionnaire11.

Comme chez Villey, Freund identifie l'individualisme à partir de la suprématie et de l'antériorité du

droit par rapport à la société politique, et dont le renoncement la rendrait possible12. La politique,

alors, devient, chez Hobbes et malgré lui, une activité éphémère, parce que désubstancialisée de la

nature humaine, sans objectif, irréelle. Si, maintenant, nous nous fixons non plus sur la sphère

privée de l'individu, mais essayons de « nous aventurer sur le terrain des droits de l’homme et du

citoyen et des programmes politiques, quel triomphe ne nous révélerait-il pas l’idée de droit

subjectif ? Et combien nous verrions les masses populaires françaises convaincues des ‘‘droits’’ de

chacun! »13.

Nous pouvons identifier une autre idée de base dans ces critiques : la théorie du contrat

romprait avec la conception traditionnelle et ancienne de société et permettrait l'émergence

progressive de l'idée de la révolution. Le concept d’État présupposé dans les théories du contrat ne

11 Cf. J. Freund. Politiques et impolitiques. Paris : Sirey, 1987, p. 47. 12

Idem. p. 45. 13 Michel VILLEY, «La notion de droit subjectif et les systèmes du droit romain classique», Revue historique de droit français et étranger, 1946, p. 201-228.

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peut, poursuit le raisonnement, que conduire à un résultat diamétralement opposé : sans formuler

un droit à l’insurrection, Hobbes montre que nul n’a à respecter un contrat ou une obligation

quelconque lorsqu’il connaît l’insécurité. Toutes les théories du contrat, malgré leurs différences,

dit Julien Freund, sont des théories de l'aliénation de l'individu dans le pouvoir politique : la

politique n'appartient dès lors qu’à l'historicité de l'homme, non à sa nature. A une telle aliénation

correspondrait la dérive totalitaire : l'omnipotence de la souveraineté est le prix à payer pour

s'assurer l’effectivité des lois civiles14.

Mais, pourrions-nous nous demander, pour quelles raisons ces lectures de Hobbes sont

inacceptables pour tous ceux qui pensent la légitimité de la modernité politique, i.e., d’une

communauté fondée dans le partage d’une croyance normative de la part des individus sur ce qui

est dû à chacun pour qu’un pouvoir souverain, c’est-à-dire, au-dessus de tous, existe .

Les attaques contre la pensée politique moderne15, sur ses différentes nuances, dénoncent

les prétendues dérives autoritaires et aliénantes de l’individu pensées comme une monade, perdu

dans sa subjectivité, toujours ambiguë par rapport à un pouvoir politique à qui l’obéissance due ne

cesse d’être mesurée et conditionnée selon les humeurs de l’occasion.

D’un côté, Hobbes inventerait d’une certaine façon la notion de droit subjectif, i.e., la notion

d’un droit qui appartient à quelqu’un indépendamment et même en dehors de la politique. Il y

aurait donc une résistance atavique de l’individu : les hommes possèdent des droits inhérents à leur

nature. Il y aurait là le germe de la mystique révolutionnaire dont parlait Freund : toutes les

théories du contrat seraient, malgré leurs différences, des théories de l’aliénation de l’individu dans

le pouvoir politique, dans la mesure où il ne peut s’en apercevoir que dans une historicité toujours

capable d’être révolue. Il est aliéné de sa nature inexorablement politique. En fin de compte, qui dit

homme veut tromper, mystifier le non-lieu, l’utopie de concevoir un au-deçà de la politique. Voilà,

disent-ils, la vérité effective des choses. La vie commune n’est qu’une lutte de factions, de peuples,

de différentes communautés de destin distingués par leur histoire, leur langue, leur patrimoine

propre : la nation est centrée sur l’histoire d’une même sensibilité partagée. C’est ainsi un droit à

14 Cf. Julien Freund. Politique et impolitique. Paris, Sirey, 1987, p. 68. Cf. aussi Strauss, pour qui la philosophie individualiste et subjectiviste se transformerait en une des doctrines les plus réactionnaires. In Strauss, L. Droit naturel et histoire. Paris, Flammarion, 2008, chap. V (a). 15 Sur la spécificité de la pensée politique moderne, voir Zarka, Y. C. L’autre voie de la subjectivité. Paris : Beauchesne, 2000. Voir aussi Lazzeri, Christian. La théorie du droit naturel au XVIIe siècle : l’utilité comme enjeu du droit et du contrat. In Caillé, A. ; Lazzeri, A. & Senellart, M. (éd.). Histoire raisonnée de la philosophie morale et politique. Le bonheur et l’utile. Paris : Éditions La Découverte, 20 01, p. 368-387.

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l’exception qui est revendiqué, « le droit de renoncer à l’universalité de principes communs, droit

de s’exclure de l’idéal cosmopolitique et droit d’exclure les individus ou les peuples qui y aspirent.

»16 Refus de l’universalité abstraite de droits de l’homme, affirmation de l’existence exclusive de

peuples particuliers liés au sentiment d’un projet authentique réalisé toujours dans un sol

particulier par un sang particulier, voilà le versant final d’une conception « ethnique » de

l’appartenance nationale ou locale. Il n’y a pas d’hommes : on est toujours compromis dans un

projet de réalisation d’une communauté de destin toujours particulier. Une pensée qui ne se voit

pas comme une revendication d’une conviction moral quelconque, une pensée que ne se voit pas

dans un monde particulier, est une pensée immonde : l’universalité abstraite qui prétend penser

l’homme ne serait que la confirmation de l’idéal eurocentriste ou occidental-centriste.

L’universalisme, enfin, ne serait qu’un anthropocentrisme masqué. Il faut donc ou bien revenir à

une époque pré-moderne ou bien nommer l’ennemi et refonder la vérité de la lutte politique.

De l’autre côté, il s’agirait bien de dénoncer l’autre versant de la même histoire : comme

contrepoids à une résistance potentiellement destructive de la part des individus il y aurait la dérive

totalitaire à laquelle conduit l’individualisme. L’omnipuissance de la souveraineté serait le prix à

payer pour assurer l’effectivité des lois civiles toujours menacées par l’obéissance éphémère des

individus17.

16 Castillo, M. «Entre cosmopolitisme et mondialisation». In Castillo, M. (Ed.). Moral et politique des droits de l’Homme. Zürich : Georg Olms Verlag, 2003, p. 92. Bien sûr, nous sommes là, avec l’idée de cosmopolitisme, très loin de la pensée de Hobbes. J’ai voulu, néanmoins, montrer que le desideratum des critiques à la notion de droit subjectif rebondit, finalement, sur une critique de droits humains. Voir aussi J. Habermas. La nation, l’Europe et la démocratie. In Sciences de l'homme & sociétés / Cultures en mouvement , n°35, 2001, p. 11-26. 17 Dans cette perspective on peut se référer au livre de Hannah Arendt L’Impérialisme, trad. fr. M. Leiris, Paris, Fayard, coll. «Points», 1982, p. 28-50, où l’auteure identifie Hobbes comme annonciateur des catastrophes politiques du premier XX

e siècle. Ainsi, dit Arendt, « Le Commonwealth a pour fondement la délégation du pouvoir, et non des droits.

Il acquiert le monopole de l’assassinat et offre en retour une garantie conditionnelle contre le risque d’être assassiné. (...) En ce qui concerne la loi de l’État, à savoir le pouvoir accumulé par la société et monopolisé par l’État, il n’est plus question de bien ou de mal, mais uniquement d’obéissance absolue, du conformisme aveugle de la société bourgeoise » p. 39-40. En France, Joseph Vialatoux, philosophe catholique, rapproche la conception de souveraineté chez Hobbes des États totalitaires du XX

ème siècle. In Joseph Vialatoux. La Cité totalitaire de Hobbes: théorie naturaliste

de la civilisation : essai sur la signification de l’existence historique du totalitarisme. Paris : Éditions École et collège, 1939. Vialatoux attribuait à Hobbes la responsabilité « des régimes dont le joug pèse aujourd’hui avec une égale dureté sur l’Église et sur l’individu ». Ce que l'amène aussi à condamner le philosophe de Malmesbury qui déclarait l’État incompatible avec l’église catholique (nommée par Hobbes de ‘royaume des ténèbres’). Pour une critique du rapprochement de la pensée de Hobbes aux doctrines organicistes et mystiques qui soulèvent l’Allemagne du IIIème Reich, voir René Capitain. Hobbes et l’Etat totalitaire. In Archives de philosophie du droit et de sociologie juridique, Paris, Sirey, 1938, pp. 46-75. Pour une critique de l’interprétation d’Arendt et de Vialatoux, voir L. Foisneau, Hobbes, Paris, Gallimard, Folio essai, 2016, à paraître.

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Thomas Hobbes et la dignité du droit de nature- Wladimir Barreto Lisboa

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Ce qui a pu déranger profondément les pensées que l’on peut caractériser comme

conservatrices est, entre autres choses, l’idée soutenue par Hobbes d’une fondation du politique en

raison, c’est-à-dire d’une justification rationnelle du pouvoir politique. Cette fondation en raison

signifie au moins quatre choses : a) que la vie civile ne peut trouver son fondement dans une

tradition textuelle sacrée qui conférerait une légitimité à l’autorité ainsi constituée. Ni l’église

catholique, ni une herméneutique biblique ne peuvent justifier le pouvoir politique. Pour ce qui est

de l’Église, il n’y a pas et il n’y a jamais eu de translatio imperii fondatrice de son prétendu pouvoir

politico-théologique. En effet, pour Hobbes : « ... si l’on considère l’origine de ce grand empire

ecclésiastique, on s’apercevra aisément que la papauté n’est rien d’autre que le spectre [Ghost] du

défunt Empire romain, assis couronné sur sa tombe, car c’est ainsi que la papauté a surgi

soudainement des ruines de ce pouvoir païen. »18 ; b) la destitution des philosophes en tant que

prodigues d’une sagesse politique la seule capable de valider l’autorité politique ; c) le refus de

toute idée d’une hiérarchie des fins dignes d’être poursuivies par les hommes et, corollaire, le refus

du mérite en tant que justifiant un insigne naturel capable de fonder la justification d’une justice

distributive ; d) finalement, la contrariété à toute subordination de la tâche d’interprétation de la loi

civile à une classe de juristes dont la sagesse accumulée au fil des années constituerait une espèce

de raison artificielle capable de créer, modifier ou même abroger la loi.

Or, vouloir attribuer aux juges la tâche de déterminer ce qui est dû à chacun au-dessous ou

au-delà de la loi civile équivaut à dire qu’une loi n’est effective qu’en tant qu’elle est juste. Hobbes,

toutefois, voit dans l’irruption de la figure du législateur souverain qui crée consciemment des

nouvelles normes juridiques la seule source de juridicité. Un système pré-moderne, ou non

moderne, par contre, est un système qui fait appel aux pratiques traditionnelles ou à une certaine

nature de choses pour décider ce qui est dû à chacun.

Mais que-ce qu’on peut objecter à tout cela? Si l’on croit que notre monde est soigné et

maintenu par la providence, que notre société est naturellement ordonnée, et qu’entre nous il n’y a

pas de désaccord politique qui ne soit passible d’être solutionné soit par la raison soit par l’autorité

morale, de sorte qu’on peut accepter la prétention d’une élite professionnelle de juges ou d’oracles

ayant une voie privilégiée à la sagesse pratique requise pour décider les questions les plus

fondamentales, si l’on accepte tout cela, alors on n’a rien à objecter.

18

Thomas Hobbes. Leviathan, XLVII ; édition MacPherson, Harmondsworth, Penguin Classic, 1968, traduction française par François Tricaud, Paris : Sirey, 1970, p. 707. Désormais, dans les références, la page de la traduction suivra, après une barre oblique, celle de l’édition indiquée du texte original.

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La cantilène anti-hobbesienne et anti-moderne19 ne peut pas supporter toutes les

implications de la fondation de la politique en raison, dans le tribunal de la raison. Or, c’est

justement en raison que se fonde l’usage du droit naturel chez Hobbes et la relative autonomie de

l’individu20 para rapport à la politique. Essayons de le montrer.

2. La légitimité de la modernité

On doit commencer l’interrogation sur le droit naturel chez Hobbes en se posant la

question, d’abord, du fondement de sa normativité pour, ensuite, penser la spécificité de son

rapport à l’être même qui est supposé en être le porteur. Reprenons la définition hobbesienne du

droit naturel au chapitre XIV du Léviathan:

« Le DROIT DE NATURE, que les auteurs appellent généralement jus naturale, est la liberté

qu’a chacun d’user comme il le veut de son pouvoir propre, pour la préservation de sa propre

nature, autrement dit de sa propre vie, et en conséquence de faire tout ce qu’il considérera,

selon son jugement et sa raison propre, comme le moyen le mieux adapté à cette fin. »21

La première chose à remarquer dans cette définition est que là où Grotius définissait le Jus

comme une qualité morale, attachée à la personne, en vertu de laquelle on peut légitimement

19 Et aussi anti-machiavélienne, anticartésienne, anti-bodinienne, anti-grotienne, anti-leibnizienne, anti-kantienne, etc. Tous ces « anti »ont en commun un ensemble relativement systématique d’expressions, de mots, de questions et de débats dont le partage délimite et rend possible la communication et la diffusion. Il s’agit là des prêts-à-porter ou prêts-à-penser qui révèlent les stéréotypes des auteurs et des universitaires qui se veulent lucides. C’est de la rhétorique à service de l’orthodoxie universitaire. Les philosophes modernes sont même devenus les boucs émissaires, un outil idéologico-politique servant à déterminer l’ennemi. La doxa intellectuelle se sent finalement heureuse, car à la fin on s’entend avec les gens si on leur donne ce qu’ils désirent. 20

Dans cela je voudrais répondre aussi à ces auteurs qui voient dans l’idée de droit naturel chez Hobbes le mal en soi. Pour Villey, je me préoccuperai de faire relever le bien-fondé de la notion de droit naturel dans le cadre d’une théorie, comme c’est le cas de celle de Hobbes, qui ne subsume pas l’individu dans la sphère du politique. Pour ce qui est de la critique de la lecture que Villey a fait du droit médiéval et romain, je renvoi ici à Brian Tierney. The Idea of Natural Rights. Studies on Natural Rights, Natural Law and Church Law, 1150-1600. Atlanta, Scholars Press, 1997: Michael P. Zuckert. « Bringing Philosophy down from the Heavens’ : Natural Right in the Roman Law », The Review of Politics, 51, 1989, p. 70-85; Annabel S. BRETT. Liberty, Right and Nature: Individual Rights in Later Scholastic Thought, Cambridge, Cambridge University Press, 1997; Yan Thomas. « Michel Villey, la romanistique et le droit romain », Droit, nature, histoire, p. 31-41; Sylvain Piron. « Congé à Villey », L’Atelier du Centre de recherches historiques [En ligne], 01 | 2008, mis en ligne le 18 novembre 2008, consulté le 15 mai 2015. URL : http://acrh.revues.org/314 ; DOI : 10.4000/acrh.314 et Alfredo Storck. Direito subjetivo e propriedade. Sobre o tomismo de Michel Villey. Curitiba : Revista Dois Pontos, v. 7, n. 2 (2010): Justiça, Virtude e Democracia: da amizade ao reconhecimento, p. 47-72. 21

Thomas Hobbes. Leviathan, XIV, p. 189/128. Sur cette définition du droit de nature, Villey a dit : « Ce texte extrait du Léviathan (1651) est le premier, que je sache, où soit défini le ‘droit de l’homme’. » VILLEY, M. « Des droits de l’homme au XXVIIème siècle ». In Le droit et les droits de l’homme. Paris : PUF, 2014, p. 136.

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Thomas Hobbes et la dignité du droit de nature- Wladimir Barreto Lisboa

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avoir ou faire certaines choses22, Hobbes, à la place de la tripartition opérée par Grotius dans le

domaine du jus parfait, ne retient qu’une de ses dimension, à savoir, la potestas sur soi-même ou

liberté. Avoir la liberté, à son tour, signifie, pour Hobbes, n’avoir pas d’obstacles extérieurs qui,

même s’ils enlèvent éventuellement une part du pouvoir qu’un homme a de faire ce qu’il voudrait,

« ne peuvent l’empêcher d’user du pouvoir qui lui est laissé, conformément à ce que lui dicteront

son jugement et sa raison. »23

Mais c’est justement sur ce point-là qu’on se heurte à une difficulté que Pufendorf24 avait

déjà repérée et qui pose un obstacle à penser la normativité du jus tel qu'il a été défini par Hobbes.

Un pouvoir naturel de faire quelque chose ne pourra jamais se confondre avec un droit, dit

Pufendorf. Un cheval, par exemple, a le pouvoir naturel de paître dans le pré où il se trouve ; de

même pour le cerf. Toutefois, ni l’un ni l’autre n’avaient aucun droit, car ce pouvoir commun

n’implique aucune obligation réciproque. Le même raisonnement vaut pour l’homme: lorsqu’il se

sert des choses inanimées ou de bêtes, il n’exerce que son pouvoir physique sans aucun rapport

aux autres hommes. Mais, s’il existe certains qui se sont mis dans l’obligation de ne pas empêcher

l’usage de leur pouvoir et de ne point se servir des choses sans leur consentement, alors là ce

pouvoir devient un droit. Il est même ridicule, poursuit Pufendorf, de nommer droit un pouvoir

dont l’usage suppose aussi que tous les autres ont un pouvoir égal d’empêcher mon usage. Ce n’est

qu’à condition d’un consentement exprès ou tacite à l’usage des choses de la part des autres qu’on

peut légitimement parler d’appropriation légitime25.

22 Ensuite Grotius distingue entre, d’un côté, le jus parfait, à savoir, potestas (sur soi-même, qui s’appelle liberté, ou sur les autres – patria potestas et domenica potestas), dominium et faculté d’exiger son dû et, de l’autre, le jus imparfait, une aptitudo ou capacité fondée sur le mérite ou dignité. A cette personne morale, la seule capable de se former des maximes générales, et qui soit susceptible de droit et d'obligation, appartient le droit naturel, c’est-à-dire certains principes de la droite raison qui nous font connaître qu’une action est moralement nécessaire ou déshonnête, selon la convenance ou disconvenance nécessaire qu’elle a avec une nature raisonnable [et sociable]. Les actions à l’égard desquelles la raison nous fournit de tels principes sont obligatoires ou illicites par elles-mêmes, à savoir : a) qu’il faut s’abstenir du bien d’autrui ou le restituer ; b) que l’on est obligé de tenir sa parole ; c) que toute violation de règles précédentes mérite une punition de la part même des hommes. Ainsi, avant qu’il y eût des lois civiles, il était permis à chacun de se faire raison à lui-même et de poursuivre son droit par les voies de la force. Cf. Hugo Grotius. De jure belli ac pacis. Traduction Jean Barbeyrac, Le droit de la guerre et de la paix. Caen, bibliothèque de philosophie politique et juridique, 1984, I.I. 23

Ibid. 24 Mon propos ici n’est pas d’exhiber la pensée de Pufendorf et sa prise de position par rapport à celle de Hobbes. Si je l’utilise ici c’est plutôt pour remarquer la nécessité de lire le concept de droit naturel chez Hobbes au-delà de la simple puissance d’agir. Deuxièmement, j’ai voulu suggérer que la constitution de la notion de droit subjectif soulève des problèmes philosophiques beaucoup plus complexes que ne l’imaginaient Villey et Julien Freund, par exemple. Pour une analyse de ces difficultés, voir Zarka, Y. C. L’autre voie de la subjectivité, op. cit., p. 3-28. 25

Cf. Le droit de la nature et des gens. III, 5, 3. Pas de droit, donc, sans une obligation corrélative. Mais pour Spinoza les critiques sont encore plus dures. Dit Pufendorf : « En effet, le simple pouvoir physique de faire une chose ne prouve point qu’on soit tenu indispensablement de la faire, ni qu’on puisse la faire légitimement si l’on veut : à moins qu’on ne

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Toutefois, comme observe fort bien Pufendorf, ce droit sur toutes les choses serait une

permission accordée para la nature d’employer tous les moyens que la droite raison juge capable

de contribuer à notre conservation. Cela est si vrai, poursuit Pufendorf, « que Hobbes lui-même fait

entrer l’usage de la droite Raison dans la définition du droit. »26 Le jus, comme on le voit dans la

définition de Hobbes donnée ci-dessus, ne s’identifie pas avec la liberté. Au contraire, suivant sa

définition, le droit naturel est la liberté d’user son pouvoir pour sa préservation selon son jugement

et sa raison propre. Cela revient à dire que le droit naturel ne peut pas être réduit au pouvoir, son

utilisation étant conditionnée au jugement de la conformité de l’action à ce qu’indique la raison

comme adéquat à la poursuite de la fin : la préservation de sa propre nature.

Il y a, chez Hobbes, deux usages possibles de ce pouvoir : l’un dans l’état de guerre, l’autre

dans les temps de paix. Le premier usage s’avère justifié quand on n’est pas assuré que les autres

individus acceptent eux aussi de ne pas être leurs propres juges et de tout mesurer à l'aune de leurs

appétits27.

Dans l’état de guerre, l’usage du droit naturel devient hyperbolique, car son exercice

répandu empêche justement d’achever la fin cherchée par tout individu rationnel, à savoir la

préservation de la vie. Dit Hobbes:

« Et parce que l’état de l’homme, comme il a été exposé dans le précédent chapitre,

est un état de guerre de chacun contre chacun, situation où chacun est gouverné par sa

propre raison, et qu’il n’existe rien, dans ce dont on a le pouvoir d’user, qui ne puisse

éventuellement vous aider à défendre votre vie contre vos ennemis : il s’ensuit que dans cet

état tous les hommes ont un droit sur toutes choses, et même les uns sur le corps des autres.

C’est pourquoi, aussi longtemps que dure ce droit naturel de tout homme sur toute chose,

nul, aussi fort ou sage fût-il, ne peut être assuré de parvenir au terme du temps de vie que la

nature accorde ordinairement aux hommes. »28

suppose, ce qui est en question, que le pouvoir physique et le pouvoir morale ne sont qu’une seule et même chose. » Pufendorf. Le droit de la nature et des gens. II, 2, 3, n. 3. 26 Pufendorf, Le droit de la nature et des gens. I, 7, 13. Pufendorf reprend ici le De Cive, I, 7 : « Non igitur absurdum neque reprehendendum neque contra recta rationem est ... » De Cive: Latin version; a critical edition by Howard Warrender. Clarendon Press, 1984. Il y a là toute une discussion sur le rapport entre la recta rationem du De Cive et le Reason du Leviathan. Ce n’est pas le lieu ici pour exhiber les arguments du débat. Pour ma part, je le trouve stérile. 27 Cf. The Elements of Law Natural and Politic, édition F. Tönnies, Londres, Frank Cass, 1969, I, XVII, p. 92. 28 Leviathan, p. 189/129.

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Néanmoins, si le droit naturel est par définition un usage rationnel de la puissance en vue

de la préservation de l’individu, son usage hyperbolique, c’est-à-dire le droit sur toute chose nous

mettrait dans un état de guerre perpétuelle. Pour en sortir, ou pour ne pas y tomber, les hommes

doivent garder la volonté et la disposition de s’accommoder les uns aux autres. La force par

conséquent de la raison est d’apporter le chemin de sortie de la ruse et d’éviter les passions

comme la convoitise, la vaine gloire et d’autres semblables qui transforment les individus en rivaux.

La règle indiquée par la raison sont les lois de nature qui peuvent être exprimées par l’adage Quod

tibi non vis, alteri ne feceris. La force de la loi de nature par conséquent « n’est pas in foro externo,

tant que les hommes ne peuvent lui obéir en toute sécurité, mais toujours in foro interno, où, l’acte

d’obéissance n’étant pas sûr, ce sont la volonté et la disposition à exécuter qui sont prises pour

l’exécution. »29 S’accommoder aux autres signifie renoncer à l’usage illimité du droit de nature. Par

un pacte, c’est-à-dire par l’acceptation d’une renonciation réciproque à son usage immodéré, les

hommes se soumettent à une règle commune garantie par un pouvoir qui est au-dessus d’eux tous.

Au lieu de la convoitise ou de la vaine gloire qui poussent les hommes au conflit, la soumission à

une règle commune, en l’occurrence à la loi civile30, conduit les hommes à vouloir sortir de l’état de

guerre. Cette soumission n’arrive que parce qu’ils se reconnaissent comme égaux dans leurs

aspirations et leur désir des choses nécessaire à une vie agréable et dans l’espoir de les obtenir par

leur industrie31. S’il est vrai qu’il existe la peur politique du pouvoir auquel nous acceptons de nous

soumettre (qui diffère de la peur réciproque des individus), il n’est pas moins vrai que c'est « le

désir de connaissance et des arts pacifiques [qui] incline les hommes à obéir à un pouvoir commun ;

car un tel désir implique le désir de loisirs, et par conséquent de la protection dispensée par

quelque autre pouvoir que celui dont on dispose personnellement. »32

Le droit naturel apparaît donc comme ce qui doit être garanti tant par les lois naturelles que

par les lois positives. L’État civil est la sortie de la vie brutalisée, de l’immédiat, de la visée purement

biologique des propos humains. Comme le dit Hobbes, la félicité pour un homme est de pouvoir

continuer à désirer33, ce qui n’est pas possible qu’à condition de vivre ensemble. Non simplement

vivre ensemble, mais bien vivre ensemble. Néanmoins, il faut compter toujours avec la possibilité

29 The Elements of Law Natural and Politic, p. 92: “The force therefore of the law of nature is not in foro externo, till there be security for men to obey it; but is always in foro interno, wherein the action of obedience being unsafe, the will and readiness to perform is taken for the performance.” 30 C’est, en dernière instance, cette soumission à l’autorité qui dicte la loi civile qui indique les lois de natures. 31

Cf. Leviathan, p. 188/127. 32 Leviathan, p. 162/97. 33 Idem, p. 160/95.

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d’un pas en arrière là où la reconnaissance de l’égale soumission à la loi civil échoue. Étant donné

qu’il est impossible à quiconque de faire de son propre mal l’objet de sa volonté, parce que l’objet

du vouloir serait la négation de la cause du vouloir, et la volonté serait contradictoire34, il n’est pas

rationnel d'abandonner son droit naturel au nom d’une soumission inconditionnelle au pouvoir

civil. Là réside la vraie liberté des sujets (subject/civium)35.

On voit ainsi, par cette brève exposition de la pensée hobbesienne sur le droit naturel et son

usage légitime, que là où certains prenaient ce concept comme l’expression de la démesure de

l’individualisme, du solipsisme, du libéralisme et même du totalitarisme, on repère, par une lecture

plus juste des textes du philosophe de Malmesbury, l’exaltation d’une vie politique qui, nonobstant,

ne peut jamais, sous peine de l’effacement de l’individu, éviter le jugement si ce pouvoir, même

absolu, ne dépasse pas les fins pour lesquelles il a été créé, à savoir « le souci de pourvoir à leur

propre préservation et de vivre plus heureusement par ce moyen. »36

Enfin, on doit toujours soupçonner tous les récits qui s’attaquent à l’histoire du droit ou de

la philosophie pour raconter une histoire moraliste et moralisante. L’adhésion aux slogans de ces

différentes doctrines impose subrepticement qu’on se contente d’une vision caricaturale d’une

période si riche de l’histoire de la philosophie et du droit.

34 Pour le développement de cet argument, cf. Zarka, Y. C. La décision métaphysique de Hobbes, Paris : Vrin, 1987, p. 321 et seg. 35 Leviathan, p. 268/229. 36 Leviathan, p. 223/173. C’est nous qui soulignons.

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A Criação do Direito na Filosofia Jurídica de Immanuel Kant

Cláudio Ari Mello Professor da Faculdade de Direito, UniRitter.

Resumo: A filosofia jurídica de Kant pode contribuir para o avanço das reflexões teóricas provocadas pela crise contemporânea no modelo de fontes do direito, caracterizada pelo declínio da legitimidade do direito criado pelo poder legislativo e a ascensão do direito criado pelo poder judiciário. O ensaio procura mostrar porque a filosofia jurídica de Kant dá primazia à legislação criada por órgãos representativos da sociedade e rejeita a legitimidade da criação judicial do direito a partir de métodos e princípios desenvolvidos na filosofia moral kantiana. Palavras-Chave: Filosofia do direito; filosofia política; filosofia moral; constitucionalismo; democracia.

Abstract: Kant’s legal philosophy can help the development of the theoretical reflections brought about by the contemporary crisis in the model of the legal sources, which is characterized for the loss of legitimacy of law created by the legislative power and the rise of the judge-made law. The essay attempts to show why Kant’s legal philosophy holds legislation created by representatives bodies of the society and rejects the legitimacy of judicial creation of law through the methods and principles formulated in Kantian moral philosophy. Keywords: Legal philosophy; political philosophy; moral philosophy; constitutionalism; democracy.

Sumário: 1. Introdução; 2. A condição humana e a origem do direito; 3. Kant e as fontes do direito; 4. Conclusão.

1. Introdução

O problema que eu gostaria de enfrentar a partir da filosofia política kantiana tem a sua

origem na seguinte proposição: nos sistemas jurídicos dos Estados constitucionais

contemporâneos, a conjugação de uma constituição compreendida como uma ordem objetiva de

valores morais e políticos com a aceitação do poder judiciário como a instituição do Estado

detentora da competência final para interpretar e construir o sentido desses valores e para aplica-

los às relações sociais tem produzido como resultado a transformação dos tribunais constitucionais

e das supremas cortes das democracias constitucionais contemporâneas em uma nova espécie de

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Temas de filosofia política e jurídica

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legislador dos fins últimos da vida política e moral das comunidades que adotam esse modelo de

sistema jurídico.1

No exercício dessa função criativa no exercício da concretização da ordem objetiva de

valores instituída nas constituições, as cortes constitucionais e as supremas cortes têm assumido o

papel de sujeito da história política, dotado da missão de acelerar as transformações culturais da

sociedade a partir da interpretação e da construção do significado e da força normativa de

princípios e direitos fundamentais inseridos nos textos constitucionais.2 Na execução desse papel,

os tribunais formam uma visão ideal de sociedade, de como o Estado deve tratar as pessoas e de

como as pessoas devem tratar-se umas às outras, visão essa que é ao menos retoricamente

justificada como uma interpretação ou construção adequada dos valores constitucionais, e usam

suas competências para dirigir a sociedade na direção desse ideal. Os tribunais constitucionais

seriam, nessa visão, responsáveis pelo progresso moral da comunidade política, tanto no que diz

respeito à moralidade política quanto em relação à moralidade privada.

É perfeitamente explicável que esse fenômeno tenha estado no centro das atenções da

teoria constitucional, da filosofia do direito e da filosofia política nas últimas décadas e que

desperte cada vez mais interesse, a despeito da imensa quantidade de obras já publicadas tentando

melhor compreendê-lo. Esse modelo de direito, que converteu constituições em ordens objetiva de

valores morais e atribuiu a tribunais especializados a função de interpretar e construir o sentido

desses valores, é uma completa novidade na história, razão pela qual ela não cessa de causar

perplexidade. A utopia onipresente do pensamento político moderno, ao menos desde a Revolução

Francesa, é a democracia, que concretiza o princípio da soberania popular ou da autonomia

política, tão caros ao pensamento político moderno. A perplexidade referida decorre justamente do

fato de que a supremacia das cortes constitucionais, na definição do conteúdo semântico e

normativo dos valores morais e políticos das sociedades, parece ameaçar a própria essência do

ideal democrático.

1 Esse problema tem sido enfrentado por estudiosos do constitucionalismo de várias áreas do conhecimento humano.

São referências importantes e influentes as obras de Alec Stone-Sweet, Governing with Judges: Constitutional Politics in Europe; Oxford; Oxford University Press, 2000, David Robertson, The Judge as a Political Theorist; Contemporary Judicial Review, New York: Princeton University Press, 2010, e Ran Hirschl, Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of New Constitutionalism, Cambridge, USA: Harvard University Press, 2007. 2 O voto dissidente do Chief Justice John Roberts Jr. no recente caso Obergefell v. Hodgers, de 2015, no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu o direito ao casamento civil a casais do mesmo sexo, pode ser considerado a epítome da acida crítica contra a assunção desse papel de sujeito da história por parte dos tribunais. A certa altura, o juiz Roberts Jr. pergunta; “Quem, afinal, pensamos que somos? (Just who do we think we are?)”

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A Criação do Direito na Filosofia Jurídica de Immanuel Kant- Cláudio Ari Mello

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Alguns anos atrás, Jeremy Waldron propôs que tentássemos compreender precisamente

esse dilema a partir do estudo das contribuições dos maiores filósofos políticos da história.3 Em

obra publicada há alguns anos, aceitei esse desafio estudando como poderíamos nos beneficiar do

pensamento político e jurídico de Immanuel Kant na reflexão sobre as questões que emergem do

constitucionalismo democrático contemporâneo.4 Não pretendo, neste artigo, voltar a analisar com

profundidade a obra kantiana e suas possíveis contribuições para compreender a multiplicidade de

questões teóricas e filosóficas dos Estados modernos. Vou me concentrar em uma questão mais

específica: a filosofia moral kantiana pode servir de inspiração para o raciocínio jurídico necessário

para interpretar e aplicar normas jurídicas que remetem a valores morais e políticos?

Há mais de uma razão para nos propormos essa pergunta. A primeira delas decorre do fato

de que uma parte muito significativa das decisões dos tribunais constitucionais que exercem essa

função de agente concretizador da ordem objetiva de valores morais das constituições recorre

direta ou indireta ao princípio da dignidade da pessoa humana, que se encontra positivado em

diversas constituições contemporâneas. Muitos autores e decisões judiciais dessas cortes afirmam

que o princípio da dignidade da pessoa humana é o valor central dos sistemas jurídicos dos Estados

constitucionais modernos, que todos os direitos fundamentais incorporados nas constituições

encontram respaldo na dignidade humana e que ela é a fonte de novos direitos e subprincípios

jurídicos. Contudo, definir o que seja dignidade da pessoa humana é uma tarefa teórica de extrema

dificuldade, com alto grau de indeterminação e de controvérsia, não apenas no universo jurídico,

mas inclusive, e, sobretudo, no âmbito da filosofia.

Provavelmente a principal referência filosófica utilizada na literatura jurídica e na

jurisprudência que aborda o princípio da dignidade da pessoa humana é a segunda formulação do

imperativo categórico proposta por Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, segundo

a qual devemos tratar a todos os seres humanos sempre ao mesmo tempo como fim em si mesmo.

Segundo o filósofo alemão, o fato de que o ser humano é um fim em si mesmo dá a ele um valor

final na esfera da moralidade e proíbe que ele seja instrumentalizado ou utilizado para a obtenção

de outros fins eleitos pelo Estado ou por outros indivíduos humanos. Partindo desse dado da

realidade da prática da jurisdição constitucional contemporânea, Kant poderia ser visto como um

3 Jeremy Waldron, The Dignity of Legislation, Cambridge: Cambridge University Press, 1999. 4 Cláudio Ari Mello, Kant e a Dignidade da Legislação, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.

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Temas de filosofia política e jurídica

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dos principais referenciais filosóficos da função “legislativa” exercida pelos modernos tribunais

constitucionais, particularmente na proteção de direitos fundamentais.

A segunda razão reside na circunstância de que as decisões dos tribunais constitucionais

que concretizam a ordem objetiva de valores das constitucionais exigem com frequência juízos de

moralidade, e como esses juízos de moralidade se expressam pretensamente como juízos objetivos

sobre direitos e deveres morais, é tentador recorrer às diversas filosofias morais propostas ao longo

da história. O recurso à filosofia moral kantiana parece, nesse caso, particularmente sedutor pelo

fato de que a sua filosofia moral, na medida em que compõe o programa do idealismo

transcendental, propõe esquemas de raciocínio moral que possam ser pensados isoladamente por

indivíduos e ainda assim obtenham validade necessária, objetiva e universal, tais como a primeira

formulação do imperativo categórico, o princípio da universalização (age sempre de forma que

possas fazer da máxima subjetiva da tua ação uma lei universal da razão legisladora), e o princípio

metafísico do direito (age de tal forma que o exercício da tua liberdade externa possa concordar

com o exercício da liberdade externa de todos os outros sob uma lei universal da liberdade). Para a

filosofia moral kantiana, a razão prática do indivíduo é legisladora porque cria as suas próprias leis

morais a partir das fórmulas do imperativo categórico. É natural que uma filosofia moral dessa

natureza pareça sedutora para juízes de tribunais constitucionais que têm o poder de decidir

processos judiciais que dependem de juízos de moralidade.5

Essas duas razões sugerem que Kant pode ser considerado um recurso filosófico valioso e,

eventualmente, até mesmo decisivo para justificar ou apoiar a função legislativa ou criativa

exercida pelos tribunais constitucionais na interpretação, construção e concretização da ordem

objetiva de valores das constituições. Não estou querendo dizer que esse recurso a Kant aconteça

de forma consciente ou deliberada por parte dos juízes dos tribunais constitucionais, mas que a

prática efetiva da jurisdição constitucional pode sugerir que a filosofia moral kantiana suportaria a

criação judicial do direito ou a legislação judicial que tem se tornado comum nos estados

constitucionais contemporâneos. Todavia, como pretendo demonstrar sucintamente, a filosofia do

5 Uma terceira razão também poderia decorrer, conquanto seguramente menos importante, de algumas tentativas de

associar a filosofia kantiana à teoria do direito elaborada por Ronald Dworkin, sabidamente um dos grandes incentivadores da transformação da jurisdição constitucional em um fórum de concretização de concepções de filosofia moral e política e das supremas cortes e dos tribunais constitucionais em agentes de progresso cultural das sociedades. Refiro-me aqui a obras recentes como as de Julie Allard, Kant et Dworkin: Refléxions sur le jugement, Bruxelas: Université de Brusselles, 2002, e Christina Chalanouli, Kant et Dworkin: De l’a autonomie individielle a la autonomie privée et public, Paris: LHarmmatan, 2010, que buscam demonstrar a semelhança entre os pensamentos de Kant e Dworkin.

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A Criação do Direito na Filosofia Jurídica de Immanuel Kant- Cláudio Ari Mello

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direito desenvolvida por Kant nos seus textos políticos e jurídicos, e especialmente na Doutrina do

Direito incorporada à Metafísica dos Costumes, não respaldaria o recurso à sua filosofia moral para

legitimar a função “legislativa” da jurisdição constitucional.

2. A condição humana e a origem do direito

A filosofia do direito de Kant só veio a ser exposta na fase final de sua vida produtiva,

quando ele lançou a primeira parte da Metafísica dos Costumes, obra que vinha sendo projetada há

muito tempo, quando da sua publicação original em 1797. A Metafísica dos Costumes é dividida em

duas partes, a Doutrina do Direito, publicada em 1797, e a Doutrina da Virtude, publicada em 1798.

A Metafísica dos Costumes engloba, portanto, tanto a filosofia do direito quanto a filosofia da ética,

sendo que ambas comporiam o que Kant parece ter pretendido ser a parte doutrinária da sua

filosofia moral, cujas bases transcendentais ele havia exposto nas obras da década de 1780,

especialmente a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, e a Crítica da Razão Prática,

de 1788.

A Doutrina do Direito é dividida em duas partes, o direito privado e o direito público. O

direito privado corresponde basicamente à sua teoria do direito natural e o direito público

corresponde ao direito positivo de uma comunidade juridicamente organizada. É especialmente na

doutrina do direito privado que Kant associa a sua filosofia do direito ao projeto da filosofia crítica,

procurando demonstrar a possibilidade de formular juízos sintéticos a priori sobre o direito.

Segundo Kant, o conceito de direito é um conceito sintético a priori, portanto um conceito

metafísico ou transcendental de direito, segundo o qual o direito é o conjunto das condições que

permitem a coexistência das liberdades externas das pessoas segundo uma lei universal da

liberdade. O direito não trata, portanto, da ética, isto é, das máximas subjetivas das ações que

podem ser universalizadas se estiverem de acordo com o imperativo categórico, mas trata

exclusivamente do exercício do livre arbítrio nas ações externas.

Que o direito trate da liberdade externa não é algo que esteja já implicado analiticamente

no conceito de direito. Eu só posso chegar ao conceito de direito a partir do conhecimento da

natureza humana e das condições da existência humana. Assim, o fato de que somos seres

racionais, dotados de livre arbítrio para decidirmos quando e como agir, de que vivemos e temos

que viver inescapavelmente em comunidade, que estamos condenados a interagir e que os bens

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Temas de filosofia política e jurídica

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são escassos, faz com que seja uma verdade necessária, objetiva e universal que o direito é o

conjunto das condições que permitem que o exercício da liberdade externa de todos seja

harmonizado sob uma lei universal da liberdade. Como todos temos interesse em preservar a nossa

liberdade de ação externa, o dever de reciprocidade no respeito das liberdades externas é uma

verdade sintética a priori do direito, embora se trate de um juízo sintético a priori impuro, porque,

em sua formulação, tenho que contar com dados da experiência.

Para compreender adequadamente o projeto kantiano parece ser interessante acompanhar

como a sua filosofia do direito está associada a uma antropologia filosófica.6 Tentemos, pois,

refazer o caminho das principais premissas do raciocínio que leva à formulação do que podemos

denominar de origem antropológico-filosófica do direito. Os seres humanos vivem em comunidade,

como outros animais. Embora seja possível que alguns membros da espécie humana tenham vivido

e vivam isolados ou pertencendo a pequenos grupos, a espécie humana tem uma propensão

natural a viver em comunidades. Essa é a destinação comunitária da espécie humana, para usar a

expressão de Adelino Braz.7

Kant considerava a relação entre indivíduo e comunidade problemática. Por um lado, o

indivíduo humano tem a propensão de viver coletivamente e encontra na vida comunitária a

oportunidade de desenvolver e exercer na plenitude diversas de suas características naturais, as

quais não poderiam ser desenvolvidas e exercidas em uma vida solitária. Além disso, uma infinidade

de atividades tipicamente humanas só pode ser executada em colaboração com outros indivíduos,

muitas delas essenciais para o pleno desenvolvimento das capacidades humanas. Todavia, o

mesmo ser que encontra tanta satisfação na sua dimensão comunitária e que em muitos sentidos

depende da vida coletiva debate-se frequentemente com imensas dificuldades de se integrar à

coletividade e sofre com o desgosto provocado pela coexistência com outros indivíduos. Kant

chama esse paradoxo de insociável sociabilidade (ungesellig Geselligkeit) humana. Ou seja, para o

autor, a existência humana é inescapavelmente imersa nesse dilema existencial do qual não

podemos escapar ao longo de nossas vidas, ainda que ele possa ser vivido com menos intensidade

por alguns indivíduos ou em alguns momentos da totalidade da existência de cada um deles.

6 Sobre a antropologia de Kant, ver Brian Jacobs and Patrick Cain (editores), Essays on Kant’s Anthropology, Cambridge: Cambridge University Press, 2003, e Patrick R. Fierson, What is the Human Being?, New York: Routlege, 2013. 7 Adelino Braz, Droit et éthique chez Kant: l’idée d’une destination communautaire de l’existence, Paris: Publications de la Sorbonne, 2005.

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Esse indivíduo dotado de uma propensão natural a viver em comunidades tem, contudo,

uma característica que torna a sua dimensão coletiva particularmente complexa e problemática. Os

humanos são dotados de razão, e uma das funções da razão é o livre arbítrio, isto é, a liberdade de

escolha na vida prática. Kant reconhece que grande parte do comportamento humano é

determinada por causas naturais, como sentimentos e impulsos. Esses sentimentos e impulsos são

a causa de grande parte das ações humanas. Entretanto, a despeito de ter suas ações

determinadas pela sua própria natureza, como todos os demais animais, o ser humano se

diferencia desses porque é simultaneamente dotado de certa dose de liberdade em relação a sua

própria natureza. A origem da liberdade humana é, para Kant, a racionalidade, que é um atributo

típico da espécie humana.

A liberdade humana é um dos grandes temas da filosofia kantiana e foi extensamente

abordada em toda a sua obra. Na Crítica da Razão Pura, ela aparece ao lado da existência de Deus e

da imortalidade da alma como uma das três ideias da razão pura que a racionalidade humana não

pode deixar de se propor como questão metafísica.8 A liberdade prática humana, isto é, a liberdade

da ação humana em relação a sua natureza recebe dois tratamentos diversos na filosofia moral

kantiana: o aspecto negativo e o aspecto positivo. A liberdade prática em sentido negativo consiste

na capacidade humana de resistir aos impulsos que a natureza humana impõe à ação dos

indivíduos e de decidir como agir resistindo a esses impulsos naturais. Ser livre em sentido negativo

é ser capaz de agir movido pela razão e não por causas naturais. Já a liberdade prática em sentido

positivo consiste na capacidade do ser humano de formular racionalmente as leis que determinam

o seu próprio comportamento. Ser livre em sentido positivo é ser autônomo, ou seja, ser o

legislador das normas que definem as suas próprias ações.

A liberdade humana não pode ser provada empiricamente. Segundo Kant, ela é um fato da

nossa natureza que nós podemos reconhecer, mas que não podemos demonstrar como podemos

fazer com os fatos naturais que são estudados pelas ciências da natureza. Para Kant, a origem da

liberdade humana é a razão. Não sabemos exatamente como funciona essa capacidade humana de

agir contra sentimentos e impulsos biológicos e psicológicos e de formular as leis de nosso próprio

comportamento e tão pouco podemos saber exatamente qual é a extensão dessa liberdade em sua

relação com as determinações patológicas da natureza. Tudo o que podemos constatar é que a

origem dessa liberdade é a atividade racional, o que levou Kant a reconhecer a liberdade prática do

8 Kant, Crítica da Razão Pura, São Paulo: Vozes, 2012.

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Temas de filosofia política e jurídica

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ser humano como um “fato da razão”.9 Não fossemos racionais, não poderíamos ser livres em face

da dimensão não racional da nossa natureza. Sendo racionais, somos livres, ainda que nem sempre

sejamos capazes de exercer essa liberdade e ainda que não tenhamos um pleno domínio das

fronteiras entre comportamento determinado por causas naturais e comportamento decidido

autonomamente pela vontade humana. A liberdade prática é, portanto, uma condição humana. É

ela que permite ao indivíduo humano dar início espontaneamente a uma cadeia de novos fatos a

partir do exercício da sua vontade consciente, e não de forças biológicas e psicológicas sobre as

quais o indivíduo não exerce controle.

Portanto, somos seres racionais e por isso somos livres. Sendo livres, podemos fazer

escolhas que determinam nosso comportamento. Fazemos essas escolhas por meio da nossa

vontade, isto é, da capacidade racional de nos propormos fins autônomos em face da nossa

natureza. Além disso, como vimos, vivemos inescapavelmente em comunidades. Ocorre que as

comunidades de humanos são comunidades de indivíduos que possuem livre arbítrio e que por isso

estabelecem seus próprios fins por meio de suas vontades, fins esses que fatalmente competem,

conflitam, divergem ou antagonizam com os fins eleitos pelas vontades de outros indivíduos da

mesma comunidade. Dada a natureza humana, de ser racional e de possuir livre arbítrio, se segue

que necessariamente haverá competição, conflito, divergência e antagonismo entre as vontades

humanas e os fins por ela eleitos. Uma comunidade humana não pode deixar de estar sujeita a

essas circunstâncias que dificultam ou impedem a coexistência das liberdades de escolha dos

indivíduos que a compõem. Elas são circunstâncias necessárias, objetivas e universais de

comunidades humanas, que decorrem inexoravelmente da condição humana de ser dotada de livre

arbítrio.

Na filosofia política kantiana, o direito é compreendido como a solução da razão para a

dificuldade ou o impedimento da coexistência das liberdades de escolha dos membros de uma

comunidade humana. Segundo a definição que Kant apresenta na Doutrina do Direito da Metafísica

dos Costumes, o direito é o conjunto das condições que permitem a coexistência das liberdades de

escolhas sob uma lei universal da liberdade.10 Onde existirem comunidades de humanos, existirá

um direito, isto é, um conjunto de leis práticas que estabelecem as condições que permitem a

coexistência das liberdades de escolha. Somente em comunidades humanas em que o livre arbítrio

9 Kant, Crítica da Razão Prática, São Paulo: Martins Fontes, 2015. 10 Kant, Metafísica dos Costumes, São Paulo: Editora Vozes, 2013, p. 36.

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A Criação do Direito na Filosofia Jurídica de Immanuel Kant- Cláudio Ari Mello

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for anulado ou reduzido à insignificância o direito deixará de existir. O direito é uma instituição que

surge necessariamente da natureza humana quando esta é submetida a determinadas condições

antropológicas. Por isso o conceito de direito é apresentado como um conceito sintético a priori na

Metafísica dos Costumes. Embora seja um conceito extraído de dados empíricos, não necessitamos

testar empiricamente o conceito para sabermos que ele corresponde necessariamente à

experiência de toda a comunidade política formada por seres humanos que exercem livre arbítrio.

O direito não regula a vontade das pessoas, mas o exercício das escolhas feitas pela vontade

autônoma dos indivíduos. Portanto, ele regula exclusivamente a liberdade externa dos humanos.

Para ser mais preciso: o direito regula as ações humanas que são o produto do exercício efetivo da

vontade livre dos indivíduos. A ética regula a vontade humana independentemente da sua

exteriorização. Uma ação é eticamente valiosa quando é o produto de uma vontade boa, isto é, de

uma vontade que decide agir por respeito ao dever, e não apenas em conformidade externa com o

dever. Uma ação humana é eticamente correta quando a máxima subjetiva que a determina (i)

pode ser convertida em uma lei universal da ação humana, (ii) trata os seres humanos como fins

em si mesmo e (iii) pode fazer parte de um reino de todos os fins criados pela vontade legisladora

autônoma dos humanos.11 Se o indivíduo age de acordo com a lei, que resulta da máxima subjetiva

que passa por estas três exigências, apenas por respeito ao dever, e não motivado por incentivos

externos, então a sua ação é ética. A ação ética é autônoma porque é movida exclusivamente por

dever, ou seja, pelas leis morais que resultam da universalização das máximas subjetivas da

vontade. Uma ação movida por causas heterônomas, como medo de censura e punição ou desejo

de apreço e recompensa, não é ética, ainda quando externamente seja idêntica à ação guiada por

uma boa vontade. A ética trata, portanto, da liberdade interna que antecede as ações humanas.

A ação humana que é regulada pelo direito é a ação que resulta do exercício da liberdade

externa, ou seja, da liberdade que não depende de ser motivada exclusivamente pelo dever, mas

que pode ser motivada também por outros motivos, como o medo de ser punido, o desejo de ser

recompensado ou elogiado e o receio de ser criticado ou censurado. As ações humanas reguláveis

pelo direito são exclusivamente aquelas que resultam do exercício da liberdade de escolha que é

um fato da racionalidade humana, porém essa liberdade não necessita ser o produto de uma boa

vontade, vale dizer, de uma vontade que quer agir de acordo com a lei moral por respeito ao dever.

Basta que seja derivada do exercício da capacidade humana de escolher os seus próprios fins, ainda

11 Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, São Paulo: Barcarolla e Discurso Editorial, 2009.

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Temas de filosofia política e jurídica

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que contra suas inclinações naturais. Como comunidade de humanos são comunidades de seres

que agem de acordo com fins que sua vontade livremente põe, e como os fins de cada indivíduo

podem competir, conflitar, divergir ou antagonizar, o direito é necessário porque cria as condições

para que esses fins livremente escolhidos coexistam em um sistema em que a liberdade geral de

ação externa seja simultaneamente resguardada para todos. Como ele afirma no fim de À Paz

Perpétua, “só no direito é possível a união do fim de todos”.12

Se essa interpretação está correta, a existência do direito é uma necessidade a priori da

própria condição humana tal como a conhecemos. Isso significa que, a partir do momento em que a

racionalidade humana surgiu e se desenvolveu, em toda e qualquer comunidade de seres humanos

dotados de racionalidade, o direito necessariamente existirá oferecendo as condições que

permitem a coexistência de indivíduos que exercem a sua liberdade de escolha e de ação13 em um

contexto político em que essa liberdade geral está assegurada.

3. Kant e as fontes do direito

A principal estratégia argumentativa de Kant para deduzir e demonstrar a existência de

juízos sintéticos a priori no direito e, portanto, de princípios e conceitos metafísicos do direito é a

exposição da existência do direito de propriedade de coisas externas no estado de natureza, ou

seja, naquilo que ele denomina de direito privado. Essa estratégia foi plenamente apresentada

apenas na Doutrina do Direito, a primeira parte da Metafisica dos Costumes. Segundo Kant, é um

princípio a priori da razão prática que temos o poder e o direito de nos apropriarmos dos bens

externos, fazendo uso deles e tomando-os como nossos. A razão prática institui uma lei permissiva

da apropriação de bens externos pela ação humana.14 Existe, portanto, já um direito no estado de

natureza, que Kant chama de direito privado. Esse direito de propriedade já existente no estado de

natureza não decorre de nenhum ato institucional, como uma lei ou uma decisão judicial, já que é

um postulado da razão prática deduzido da condição humana, da condição do mundo exterior e das

circunstâncias objetivas da relação entre o homem e o mundo exterior e entre os homens entre si.

12 Kant, À Paz Perpétua e outros opúsculos, Lisboa, Edições 70, 2004, p. 171. 13 Kant, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, cit., §§ 3º a 6º, p. 52 a 58. 14

Para uma exposição esclarecedora do conceito de lei permissiva, ver B. Sharon Byrd e Joachim Hruschka, Kant’s Doctrine of Right: A Commentary, Cambridge: Cambridge University Press, 2010, capítulo quarto, e Wolfgang Kersting, Kant über Recht, Padernbord: Mentis2004.

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A Criação do Direito na Filosofia Jurídica de Immanuel Kant- Cláudio Ari Mello

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Ocorre que, embora todos tenhamos direito à propriedade no estado de natureza, a

inexistência de regras claras e precisas acerca do título, da origem, do conteúdo e dos limites do

direito de propriedade sobre coisas externas provoca inevitavelmente conflitos, desacordos e

insegurança permanentes. A ausência dessas regras impediria a emergência da paz social e

estimularia a arbitrariedade, a violência e o uso da força como forma de solução dos conflitos.

Portanto, a razão prática pura ordena que devemos sair do estado de natureza e ingressar em uma

condição civil, que Kant denomina de direito público. Ao ingressarmos em uma condição civil,

devemos nos submeter a leis externas que sejam o produto da vontade unida de todos os membros

da comunidade, a fim de que a liberdade de todos seja preservada, no sentido de que o meu livre

arbítrio externo não seja injustificadamente obstaculizado pelo livre arbítrio externo de outra

pessoa. Como consequência, Kant sustenta que a passagem do direito privado para o direito

público requer a instituição de uma constituição republicana, isto é, uma constituição que preserve

a igual liberdade de todos sob uma lei universal da liberdade.15

A razão pela qual na condição civil devemos nos submeter a leis externas que sejam o

produto da vontade de todos os membros da comunidade tem também uma origem que só é

compreensível no quadro das premissas antropológico-filosóficas que subjazem à filosofia do

direito kantiana.16 Para Kant, apesar de suas tantas diferenças, os humanos são essencialmente

iguais. Somos todos seres racionais dotados de livre arbítrio e da capacidade moral de sermos

colegisladores de um reino universal dos fins. É por isso que todos os humanos compartilham a

mesma espécie de valor, que ele denominada de dignidade. Apenas os humanos têm dignidade,

mas todos os humanos são iguais em dignidade. Como consequência dessa concepção

antropológico-filosófica, é também uma verdade sintética a priori que, sendo todos iguais, nenhum

de nós tem o direito de sujeitar os outros ao seu próprio arbítrio e tampouco nenhum de nós está

obrigado a se sujeitar ao arbítrio de outro. Ou seja, os princípios metafísicos do direito não apenas

me asseguram o exercício do meu livre arbítrio nas minhas ações externas como proíbem que eu

seja submetido ao arbítrio de outra pessoa que exerça a sua liberdade externa. Esse é o sentido da

igualdade transcendental que aparece em várias obras da filosofia política e jurídica de Kant.17

15 Kant, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, cit., §§ 43 a 46 e 52. Essa proposição aparece como o primeiro artigo definitivo para a consecução da paz perpétua, no texto de 1995, À Paz Perpétua. 16 A passagem do estado de natureza para o estado civil em Kant é bem enfrentada por Arthur Ripstein, Force and Freedom: Kant’s legal and political philosophy, Cambridge, USA: Harvard University Press, 2009, p. 182 e ss. 17 Kant, “Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática”, in Kant, A Paz Perpétua e outros opúsculos, Lisboa: Edições 70, 2004, p. 80.

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Temas de filosofia política e jurídica

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As premissas antropológico-filosóficas de Kant conduzem-no a considerar que a formação

de uma comunidade política submetida a um direito que efetivamente respeite a condição humana

deve resultar em uma constituição republicana. A ideia de constituição republicana esteve presente

na obra do filósofo alemão desde o opúsculo Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista

Cosmopolita, de 1784, porém foi a partir das suas obras políticas da década de 1790 que ela foi

melhor desenvolvida. Como se sabe, Kant foi um entusiasta da Revolução Francesa, ainda que

tenha igualmente censurado seus excessos. O entusiasmo de Kant parece ter sido com a estrutura

de um governo republicano no sentido moderno da palavra, geralmente sintetizado pela ideia de

que se trata de um governo fundado no princípio da soberania popular. Ou seja, o que Kant

compreende como constituição republicana é a base do que hoje compreendemos por democracia

constitucional.18 Para Kant, humanos são seres racionais livres e iguais, e comunidades políticas de

seres com esses atributos naturais somente são compatíveis com os princípios transcendentais da

moralidade se organizadas por uma constituição republicana, com características muito

semelhantes às democracias constitucionais que passaram a surgir depois da criação dos Estados

Unidos da América e da Revolução Francesa.

Entretanto, na passagem do estado de natureza, em que vigora o direito privado, para o

estado social, em que impera o direito público, um dilema parece assaltar a filosofia do direito

kantiana, conforme foi muito bem ressaltado por Jeremy Waldron em A Dignidade da Legislação.

De fato, nessa passagem do direito natural para a condição civil, Kant sacrifica os princípios

metafísicos do direito a respeito dos quais ele havia meditado por tanto tempo e aos quais havia

dedicado muito esforço argumentativo nos seus escritos políticos e jurídicos tardios. Coerente com

uma posição que ele sustentara publicamente desde Ideia de uma História Universal de um Ponto

de Vista Cosmopolita, o dever de respeito às leis públicas é incondicional e essa incondicionalidade

não cede nem mesmo quando as leis públicas contradizem os princípios metafísicos do direito. Essa

incondicionalidade tem vários desdobramentos na obra jurídica de Kant. Ela rejeita a existência de

um direito de rebelião, de um direito de resistência, de um direito de desobediência e rejeita

também qualquer possibilidade de que juízes julguem contra as leis públicas, mesmo quando elas

contradizem ou contrariam os princípios metafísicos do direito. A necessidade humana de paz e

ordem social se sobrepõem a qualquer justificativa que possa ser levantada para insurgir-se contra

a autoridade, inclusive a imposição de leis públicas contrárias aos princípios metafísicos do direito.

18 Nesse sentido, ver Ingeborg Maus, Zur Aufklärung der Demokratietheorie, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.

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A Criação do Direito na Filosofia Jurídica de Immanuel Kant- Cláudio Ari Mello

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Que papel resta então para os princípios metafísicos do direito ou para o direito natural

kantiano no direito público ou na condição civil? Basicamente quatro: 1) servir de fonte de

inspiração para o direito público, ou seja, para o direito positivo de uma comunidade política; 2)

justificar a legitimidade da autoridade pública; 3) servir de parâmetro de crítica filosófica e política

às leis públicas ou ao direito positivo vigente; 4) funcionar como guia para que a comunidade

política modifique o direito positivo com o objetivo de aproximá-lo sempre mais dos princípios

metafísicos do direito.

Essa quarta função é que nos interessa mais imediatamente. O direito natural kantiano

opera como um ideal regulador da vida política de uma comunidade, como um direito ideal que

serve de modelo ou arquétipo para que a comunidade, no exercício de sua autonomia pública,

corrija e aperfeiçoe o direito positivo de modo a aproximá-lo sempre mais do direito natural.

Entretanto, o dever de ajustar o direito positivo ao direito natural, ou o direito real ao direito ideal

não é um dever jurídico, que possa ser imposto coercitivamente a quem exerce o poder de criar o

direito. Trata-se apenas de um dever moral que se impõe àquele que exerce o poder político

máximo no Estado, seja ele um monarca, seja um parlamento, dever esse que se impõe ao monarca

ao parlamento, “logo que possível”, corrigir a constituição e coaduna-la com o direito natural, “tal

como ele se oferece aos nossos olhos como modelo na ideia da razão”.19

Aqui nós estamos chegando no momento mais importante dessa minha breve exposição.

Para Kant, em uma constituição republicana, quem tem o poder e o dever de criar o direito positivo

e de ajustá-lo e aperfeiçoá-lo são os representantes dos membros da comunidade política reunidos

em uma assembleia de representantes, que, por sua vez, devem decidir de acordo com o princípio

da maioria, que é considerado por Kant “o princípio supremo do estabelecimento de uma

constituição civil”.20 Mais, a essa forma republicana e democrática de criação do direito deve se

associar uma ampla liberdade de expressão por parte dos cidadãos, de forma a instituir uma razão

pública suficientemente informada e participativa nos debates que antecedem a criação da

legislação.21 Essa forma de criação do direito é a única compatível com a autonomia pública dos

cidadãos de um Estado. Se, por um lado, uma conduta só é ética quando é o resultado da razão

prática pura do indivíduo, que é uma razão legisladora, uma lei jurídica pública só é compatível com

19 Kant, À Paz Perpétua e outros opúsculos, cit., p. 154. 20 Kant, “Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática”, in Kant, A Paz Perpétua e outros opúsculos, cit., p. 82. 21 Nesse sentido, o texto “Resposta à Pergunta, o que é o Iluminismo?” de 1784, e o artigo secreto incluído no final de À Paz Perpétua, cit., p. 149.

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Temas de filosofia política e jurídica

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a autonomia pública, que é o princípio fundamental da filosofia política kantiana, quando é o

resultado da razão legisladora da vontade unida de todos os cidadãos, e a vontade unida se

expressa através de uma assembleia de representantes que decide por maioria em um contexto de

ampla liberdade de debate público e participação política.

As leis públicas devem ser criadas por uma assembleia de representantes dos membros da

comunidade basicamente por duas razões. Primeiro, porque essa é a única forma de assegurar que

as leis jurídicas positivas sejam o resultado da vontade livre de cada um dos membros da

comunidade política, de forma a preservar a autonomia pública e privada deles e evitar a

heteronomia. O humano só é politicamente livre quando as leis jurídicas da comunidade a qual

pertence foram criadas mediante um processo em que ele teve oportunidade de participar para

tentar fazer prevalecer a sua vontade. Segundo, porque sendo todos iguais, nenhum dos indivíduos

tem direito de impor a sua vontade ou seus fins sobre os demais membros da comunidade. Assim,

Kant resolve o paradoxo de Rousseau, segundo o qual o problema fundamental da vida política dos

seres humanos “é encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda força

comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça,

contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes”.22

É por isso que concordo com a tese de Jeremy Waldron, de que Kant é provavelmente um

dos maiores teóricos da dignidade da legislação como fonte primária de criação do direito. Para o

filósofo alemão, a legislação republicana é a única fonte do direito efetivamente compatível com o

sistema de filosofia moral, política e jurídica que ele apresenta em suas obras. Pode parecer ousado

dizer isso, mas de fato considero que Kant deveria ser reconhecido um precursor da ideia de

democracia deliberativa moderna. Embora sejam explícitos e reconhecidos seus débitos com

Rousseau, há elementos em sua teoria do direito público que são verdadeiramente pioneiros. Para

Kant, em um Estado que se aproxima do direito natural e, portanto, se institui como uma

constituição republicana, a criação do direito é uma prerrogativa das instâncias representativas dos

cidadãos. As fontes do direito devem ser legislativas. Por isso, Kant pode perfeitamente ser

compreendido como um precursor do positivismo normativo, defendido por Jeremy Waldron e

Tom Campbell na teoria do direito contemporânea. Para ele, há razões morais que justificam que

todo o direito válido em uma comunidade política tenha como fonte exclusiva fatos sociais, isto é,

decisões das autoridades que exercem a soberania política, e há razões morais que justificam que

22 Jean Jacques Rousseau, O Contrato Social, São Paulo: Martins Fontes, p. 20.

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A Criação do Direito na Filosofia Jurídica de Immanuel Kant- Cláudio Ari Mello

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os fatos sociais que devem ser fonte do direito são leis produzidas por um poder legislativo

composto de representantes dos cidadãos.

Kant é plenamente consciente de que o direito positivo não apenas pode não satisfazer em

maior ou menor grau os princípios metafísicos direito como pode inclusive contrariá-los

radicalmente. Qual a solução que ele apresenta para esse defeito do direito positivo? Em primeiro

lugar, a recusa de toda a forma de desobediência e resistência, inclusive por parte dos juízes. Em O

Conflito das Faculdades, de 1798, ele enfaticamente recusa o poder dos juízes de julgar contra o

direito positivo com base em princípios morais metafísicos; “o jurista erudito não busca as leis que

garantem o meu e o teu (se, como deve ser, proceder como funcionário do governo) na sua razão,

mas no código oficialmente promulgado e sancionado pela autoridade suprema”.23 Não compete

aos juízes julgar da justiça das leis positivas: “os decretos é que primeiramente fazem que algo seja

justo, e indagar se também os próprios decretos são justos é algo que os juristas têm de rejeitar

como absurdo”.24 Em segundo lugar, ele propõe a reforma gradual do direito positivo, de modo a

que ele se aproxime sempre mais dos princípios metafísicos do direito. Esse aspecto é indispensável

para compreender algumas questões que parecem realmente contraditórias na filosofia do direito

kantiana.

De fato, Kant era radicalmente reformista, tanto quanto era radicalmente

antirrevolucionário. A importância e a dimensão desse aspecto da filosofia jurídica kantiana só

podem ser verdadeiramente compreendidas quando estudamos a filosofia da história kantiana. A

partir do impacto que a Revolução Francesa provocou nas pessoas instruídas dos países europeus e

da análise da evolução da ordem política, Kant conclui que é possível enunciar um juízo sintético a

priori sobre a história, segundo o qual o gênero humano está em constante progresso moral e

político, sendo possível prognosticar que esse progresso prosseguirá, ainda que com recuos e

retrocessos. Bem entendido, para Kant progresso político representava a aproximação da

comunidade política em relação ao ideal de constituição republicana. Tal progresso ocorre por

meio de reformas graduais e moderadas, não por meio de revoluções e essas reformas devem ser

conduzidas nos termos de uma constituição republicana, que realize e respeite a autonomia pública

e a igualdade transcendental dos cidadãos. Nesse ponto, Kant é um reformista antirrevolucionário

23 Kant, O Conflito das faculdades, Lisboa: Edições 70, 1993, p. 27. 24 Kant, O Conflito das faculdades, cit., p. 27.

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Temas de filosofia política e jurídica

47

como o Edmund Burke de Reflections on the Revolution in France,25 mas que credita à soberania

popular o papel de sujeito da história responsável pelas reformas constitucionais.

Assim, nos termos da filosofia do direito de Kant ninguém pode assumir o papel de sujeito

da história no lugar dos cidadãos. Em uma constituição republicana são os cidadãos, diretamente,

mediante o exercício da razão pública, e seus representantes que devem exercer essa função de

reformar o direito positivo para ajustá-lo aos princípios metafísicos do direito. É claro que todo e

qualquer cidadão pode e deve recorrer aos procedimentos do tipo do imperativo categórico para

avaliar criticamente a legislação pública. Mas nenhum cidadão pode recorrer a qualquer fórmula de

imperativo categórico ou de raciocínio moral individual para acelerar a história em substituição à

soberania popular. Kant rejeita expressamente o recurso a fórmulas de imperativo categórico ou de

raciocínio prático-moral individual para justificar a substituição do uso da autonomia pública dos

membros da comunidade. E embora não seja explícito nesse particular, ele também não deixa

espaço para que o direito seja reformado por juízes e tribunais mediante o recurso ao método de

raciocínio moral que ele apresentou na Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

Se estou correto na leitura que faço da filosofia política kantiana, aceitar atribuir aos juízes o

papel de sujeitos da história representaria renunciar à ideia de autonomia pública e aceitar a

heteronomia e a subordinação política na formulação das normas do direito público. Ou seja, se

queremos ser fieis ao sistema filosófico de Kant, a filosofia moral kantiana não pode ser invocada

como um recurso para a aceleração do progresso moral e político da comunidade por parte dos

tribunais constitucionais e das supremas cortes. Ao contrário, ela deve ser compreendida como

uma vigorosa defesa da democracia deliberativa e da legislação como o contexto e a forma ideal de

criação do direito positivo. O agente do progresso histórico é o cidadão, ainda que, no processo

decisório final de produção do direito ele tenha que ser substituído pelos seus representantes.

Uma leitura sistemática e rigorosa da obra kantiana suscitaria ao menos duas dúvidas a

respeito do argumento que estou apresentando. Primeiro, Kant admite mais de uma vez, inclusive

na Doutrina do Direito, que enquanto uma sociedade não conseguiu atingir a condição de uma

constituição republicana, o autocrata tem que governar como se representasse a vontade unida de

todos e, portanto, como se representasse a autonomia pública dos cidadãos.26 Pois bem, se o

autocrata pode governar como se fosse o representante da cidadania, por que não o poderia um

25 Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France. London: Penguin, 1982. 26 Ver Kant, À Paz Perpétua, cit, p. 154.

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A Criação do Direito na Filosofia Jurídica de Immanuel Kant- Cláudio Ari Mello

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tribunal constitucional, que, nos sistemas jurídicos modernos, vem recebendo o papel de guardião

supremo dos valores constitucionais? Esse argumento é importante, mas é facilmente superável no

contexto da filosofia política e jurídica de Kant. O monarca só pode se substituir ao povo em formas

muito embrionárias de Estados republicanos. Quando as instituições típicas de uma república

constitucional estão funcionando razoavelmente, com parlamento, governo e tribunais e um

sistema eleitoral em operação, nem o monarca e nem qualquer outra instituição pode se sub-rogar

nos poderes de quem detém a soberania popular.

Segundo, pode não ficar claro por que um juiz ou um tribunal não poderia recorrer às

fórmulas do imperativo categórico para fazer juízos morais e, com base neles, criar novas normas

jurídicas. A primeira formulação do imperativo categórico diz que devemos agir de acordo com uma

máxima que possamos querer que sirva simultaneamente como uma lei universal. A segunda

formulação propõe que devemos tratar cada ser humano sempre ao mesmo tempo como um fim

em si mesmo, jamais apenas como um meio para atingirmos nossos próprios fins. Por que não

poderiam os juízes recorrer a essas fórmulas ou derivações delas para julgar processos que

envolvem conflitos sobre a liberdade externa dos membros da comunidade?

Em primeiro lugar, porque as fórmulas do imperativo categórico são fórmulas da ética

kantiana, isto é, fórmulas que criam deveres para a ação individual dos humanos, seja em relação a

si mesmo, seja em relação aos demais indivíduos. Elas não foram concebidas como fórmulas para

disciplinar as relações reguladas pela liberdade externa dos indivíduos. Entre as leis morais e as leis

jurídicas existem diferenças fundamentais que tangem o tema que estamos examinando neste

ensaio. As leis jurídicas podem ser impostas por meio da coerção externa, que, na condição civil, é

exercida exclusivamente pelo Estado, já que a coerção externa é a remoção de um obstáculo que

promove o exercício de uma liberdade de escolha de ação justificada pelo princípio metafísico do

direito. Já as leis éticas ou os deveres de virtude somente podem ser objeto de uma coerção

interna, que tem origem no sentimento de respeito à lei moral. Por isso, os deveres morais que

resultam do emprego das fórmulas do imperativo categórico não podem ser impostos por coação

externa. Tudo o que podemos esperar é que seres humanos que ajam motivados pela lei moral

instituam uma comunidade ética que concretiza o reino dos fins, mas não podemos esperar que o

direito e suas instituições assumam o papel de impor o reino dos fins morais a uma comunidade

política. A formação de uma comunidade ética não é uma função do direito.

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Temas de filosofia política e jurídica

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Vejam que, se consideramos o sistema de filosofia kantiano, a filosofia política e jurídica de

Kant é a sua parte derradeira, quando a sua filosofia moral estava basicamente concluída, e em

momento algum Kant propõe o recurso às fórmulas do imperativo categórico desenvolvidas na

Fundamentação na filosofia do direito exposta na Metafísica dos Costumes. Por que isso não seria

possível? Penso que a resposta é simples. Kant é consciente de que o recurso às fórmulas do

imperativo categórico no raciocínio moral não garante a eliminação da divergência acerca de seus

resultados. Diferentes indivíduos podem chegar a conclusões diversas usando os mesmos métodos,

independentemente de quem esteja verdadeiramente certo. Como no contexto da vida política a

divergência empírica sobre os fins humanos moralmente valiosos não pode ser evitada nem mesmo

pelo uso do imperativo categórico, o conflito entre os fins postos pelas vontades livres dos

membros da comunidade seria reinstalado, e retornaríamos aos mesmos problemas que nos

assaltavam no estado de natureza.

Se as fórmulas do imperativo categórico não podem eliminar a divergência empírica,

recorrer a elas para impor fins escolhidos por alguns, ainda que deduzidos no uso das fórmulas,

sobre os demais membros da comunidade seria (i) colocar em risco a autoridade do direito, que

garante a coexistência das liberdades de escolha e ação sob uma lei universal da liberdade; (ii)

eliminar a autonomia pública e instituir a heteronomia, o que é incompatível com a liberdade

transcendental na sua dimensão política, e (iii) permitir a supremacia da visão moral de alguns

membros sobre todos os demais membros da comunidade, o que é incompatível com a igualdade

transcendental.

4. Conclusão

Em síntese, em gostaria de insistir na tese de que a filosofia política e jurídica desenvolvida

por Kant, especialmente da década de 90, fundamenta uma concepção de constituição republicana

em que a legislação deve ser compreendida como a única fonte de direito efetivamente compatível

com a autonomia pública de seres racionais que são livres e iguais. Kant escreve quando a ideia de

legislação democrática como fonte do direito apenas começava a ser pensada e ensaiada na prática

política, porém as suas reflexões procuram apresentar fundamentos filosóficos que demonstrem

que o único sistema de fontes de direito efetivamente compatível com a condição humana de ser

racional, livre e igual é aquele oriundo de uma república democrática cujo direito é criado por um

poder legislativo composto de representantes dos membros da comunidade política.

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A Criação do Direito na Filosofia Jurídica de Immanuel Kant- Cláudio Ari Mello

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Duas conclusões podem ser extraídas dos elementos da filosofia jurídica e política de Kant

que procurei expor neste ensaio. A primeira conclusão consiste na necessidade de valorizar e

fortalecer a democracia republicana como modelo de Estado, especialmente com o aprimoramento

das instituições e dos procedimentos indispensáveis para um funcionamento consistente e eficiente

do regime democrático. É hoje evidente a profunda crise que acomete a democracia representativa

em muitos países, o que tem colocado em xeque a própria legitimidade do direito legislado. A

segunda conclusão refuta o recurso às concepções expostas nas suas obras de filosofia moral, como

a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Crítica da Razão Prática, para respaldar qualquer

tese que transforme os tribunais judiciais em sujeitos da história constitucional ou agentes do

progresso moral, político e cultural da comunidade em substituição à cidadania, pois isso implicaria

ignorar as verdadeiras bases filosóficas da filosofia do direito de Kant.

Muitas outras questões decisivas acerca dessa temática urgente e complexa, que tanta

perplexidade tem provocado em diversas áreas de estudo e pesquisa nas ciências sociais e

humanas, não podem ser enfrentadas a partir da filosofia kantiana. Sem embargo, a filosofia do

direito de Kant é um poderoso arsenal de argumentos para pensarmos no quanto a ideia de

autonomia pública é um elemento essencial da condição humana, argumentos que no mínimo

recomendam que deveríamos ser mais cuidadosos com modelos institucionais e ideologias políticas

que desestimulem, inibam ou eliminem a soberania popular e o autogoverno dos cidadãos.

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John Austin's Defense of the Separation Thesis

Fábio P. Shecaira Professor da Faculdade Nacional de Direito, UFRJ.

Abstract: The separation thesis is not dependent on the command theory of law: that is to say,

criticisms of the latter do not necessarily affect the plausibility of former, which can and should be

defended on other grounds. H.L.A Hart argued persuasively for this conclusion in “Positivism and

the Separation of Law and Morals” (1958). However, Hart's unqualified references to John Austin in

that influential paper suggest that Austin also believed in the separation thesis’s independence in

relation to the command theory. But that is inaccurate – or so I argue. The correct interpretation of

Austin is that he used the command theory (or rather a corollary thereof) as an implicit premise in

his most famous argument in defense of the separation thesis. This argument, presented in The

Province of Jurisprudence Determined, is frequently cited but rarely elucidated. This is surprising,

since the argument is question-begging if taken at face value (that is, in ignorance of the

aforementioned implicit premise).

1. Introduction

One of H.LA. Hart's aims in “Positivism and the Separation of Law and Morals” (1958) is to

dispel common misunderstandings in respect of what he believed, and many still believe today, to

be the defining tenet of legal positivism: namely, the separation thesis. In section II of that article

(ibid., 601-6) Hart argued that the separation thesis can be held independently of the command

theory of law, whether in John Austin's or Jeremy Bentham's version of it. Thus, Hart tried to show

us that criticisms directed at Austin's and Bentham's command theories of law – theories which

Hart himself regarded as seriously flawed (ibid., 603-5) – do not necessarily reach the separation

thesis, whose plausibility may rest on other grounds.

Now, Hart's paper is not presented exclusively as a study of the works of historical figures

associated with legal positivism. Indeed, Hart was just as concerned about providing his own

arguments in defense of the separation thesis as he was about discussing what Bentham and Austin

took the justification of that thesis to be. However, Hart's unqualified claims regarding the

autonomy of the separation thesis relative to the command theories might be taken to suggest that

Austin and Bentham themselves believed in that autonomy. The suggestion is particularly strong

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John Austin's Defense of the Separation Thesis- Fábio P. Shecaira

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where Hart affirmed that forceful criticisms of the command theories could not show “the

utilitarian [as distinct from Hart’s own] insistence on the distinction between the existence of law

and its ‘merits’ to be wrong” (ibid., 606, emphasis added). To be clear, “utilitarian” is the term used

by Hart to describe a school of thought that has Bentham and Austin as two prominent

representatives. It should also be noted that, in his introduction to a relatively recent edition of

Austin's The Province of Jurisprudence Determined (hereafter PJD), Hart explains Austin's legal

theory by presenting Austin's commitment to the separation thesis before explaining Austin's

command theory of law (Hart 1998, x); which is an additional way of implying that Austin himself

did not believe that the separation thesis depends upon the command theory of law.1

Contemporary scholars have not challenged the suggestion that Austin believed in the

autonomy of the separation thesis with respect to the command theory .This is not exactly to say

that Hart's interpretation of Austin has become the dominant view, although it is hard to

overestimate the influence of Hart's work on current understanding of Austinian jurisprudence

(Rumble 1995, xxi; Schauer 2010, 2-3). In any case, I want to challenge the notion that, for Austin,

the separation thesis is independent of the command theory of law. There is evidence in PJD2

indicating that Austin used the command theory in his defense of the separation thesis. In section 2

I will present the evidence I have in mind. In section 3 I will consider possible objections to my

interpretation of Austin (and in so doing will further clarify the nature of Austin’s defense of the

separation thesis). Finally, section 4 provides a summary of the paper.

2. A telling passage from Lecture V of PJD

Austin's command theory asserts that laws are commands. A command is generated when

someone expresses a wish that someone else act (or refrain from acting) in a particular way,

provided that the person expressing the wish is prepared to inflict an evil on the other person

should the latter fail to comply. The addressee of the command, i.e. the person who is liable to evil

in the event of noncompliance, is said to be “bound” or “obliged” by the command, or to “lie under

a duty to obey it” (Austin 1832/1995, 22). It is crucial to note that the relevant notion of liability to

1 The choice of presenting Austin's commitments in this way – a choice which not only suggests the autonomy of the separation thesis, but also, curiously, inverts Austin's preferred order of presentation in PJD – has also been made by Brian Bix (2010, section 2). 2 I focus on PJD because this is where Austin’s case for the separation thesis appears in its most famous – and indeed most developed – form.

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Temas de filosofia política e jurídica

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evil is not a normative one. For Austin, a person who is liable to evil is not necessarily someone who

ought or deserves to be harmed. It is simply someone who is likely to be harmed: “When I am

talking... of the chance of incurring the evil, or (changing the expression) of the liability or

obnoxiousness to the evil, I employ the term duty, or the term obligation....” (ibid., 25) Indeed,

“where there is the smallest chance of incurring the smallest evil, the expression of a wish amounts

to a command, and, therefore, imposes a duty.” (ibid., 23)

It is also worthy of note that, for Austin, there is more than one kind of law that fits the

command model: namely, divine law and positive law. The first is composed of commands that

have God as their source; the second is composed of commands issued by the agent (or body of

agents) who exercises political sovereignty over a given community. Positive law is described by

Austin as the “appropriate matter of jurisprudence,” (ibid., 19) to which other kinds of law are

related by ties of resemblance or analogy. (Whenever I unqualifiedly refer to “law” in this paper I

will be referring to Austin's conception of positive law.)

These brief remarks do not exhaust Austin's command theory but they suffice for the

purposes of this paper. The essential structure of the command theory, which I have summarized in

the previous paragraphs, was presented by Austin in Lecture I of PJD. In Lecture V of the same book

Austin famously stated what I have labelled the separation thesis: “The existence of law is one

thing; its merit or demerit is another. Whether it be or be not is one enquiry; whether it be or be

not conformable to an assumed standard, is a different enquiry. A law, which actually exists, is a

law, though we happen to dislike it, or though it vary from the text, by which we regulate our

approbation and disapprobation.” (ibid., 157) Thus, the separation thesis consists in the claim that

the moral (in)correctness of putative law does not affect its status as law, i.e. as law that exists and

therefore binds or obligates its addressees.3 This is the thesis that Hart endorsed and whose

independence from the command theory he urged us to recognize.

After stating the separation thesis, describing it as “simple and glaring” (ibid., 157) and

criticizing authors like William Blackstone for repeatedly “forgetting” it,4 Austin proceeded to give

3 I am by no means assuming that everything that can be said of individual laws can equally be said of law in general (see Gardner 2004, for a discussion of the intricate relations between the two concepts). Austin does not seem make that assumption either. But Austin does appear to make twin claims about how moral correctness bears on the status of both individual laws and entire legal systems. 4 “But simple and glaring as it is, when enunciated in abstract expressions the enumeration of the instances in which it has been forgotten would fill a volume.” (Austin 1832/1995, 157)

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John Austin's Defense of the Separation Thesis- Fábio P. Shecaira

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arguments in its defense. The first argument is found in a passage that is perhaps almost as famous

as the passage in which the separation thesis is stated:

Now, to say that human laws which conflict with the Divine law are not binding, that is to

say, are not laws, is to talk stark nonsense. The most pernicious laws, and therefore those

which are most opposed to the will of God, have been and are continually enforced as laws

by judicial tribunals. Suppose an act innocuous, or positively beneficial, be prohibited by the

sovereign under the penalty of death; if I commit this act, I shall be tried and condemned,

and if I object to the sentence, that it is contrary to the law of God, who has commanded

that human lawgivers shall not prohibit acts which have no evil consequences, the Court of

Justice will demonstrate the inconclusiveness of my reasoning by hanging me up, in

pursuance of the law of which I have impugned the validity. An exception, demurrer, or

plea, founded on the law of God was never heard in a Court of Justice, from the creation of

the world down to the present moment. (ibid., 158)

This passage contains a number of important elements. Austin characterized those who

deny (or “forget”) the separation thesis as believing that the perniciousness of a law can negatively

affect its capacity to bind, i.e. to generate legal duties or obligations. Austin responded to the

deniers of the separation thesis by affirming that a command issued by the sovereign will be

enforced by courts of law, as law, regardless of its perniciousness and despite a defendant's

protests to that effect.

A natural first reaction to Austin's reply, it seems to me, is to reject it as question-begging.

The deniers of the separation thesis are claiming that a law's moral incorrectness renders it

incapable of binding its addressees. They are not denying, however, that as a matter of fact courts

often enforce morally wicked norms while publicly claiming to be enforcing the law. The

disagreement between Austin and his opponents, it would appear, includes a theoretical dispute

about the proper jurisprudential understanding of what it is that the courts are doing when they

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Temas de filosofia política e jurídica

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enforce morally wicked norms. Are the courts enforcing actually binding law or are they instead

enforcing what they mistakenly regard as binding law?5

I believe, however, that to reject Austin's argument as question-begging would be to move

too quickly. There is an alternative interpretation of the passage at issue that saves Austin from the

fallacy. It consists simply in assuming that Austin (coherently) uses the concept of legal bindingness

in Lecture V in the same, non-normative sense with which it appeared when the command theory

of law was presented in Lecture I. You will recall that, for Austin, a law binds, or obligates, or

generates a duty, when it is likely that its addressees will be harmed in the event of noncompliance.

Accordingly, Austin believed that the fact that courts will follow pernicious commands of the

sovereign (and hence will enforce the related sanctions) suffices to establish that the addressees of

the sovereign's commands are under a legal duty to comply. Legal duty, for Austin, is not about

what ought to occur, but rather about what will, or is likely to, occur.

The upshot is that Austin assumed the command theory of law, and the related thesis that

legal duty is to be understood in non-normative terms, in his reply to the deniers of the separation

thesis. It is clear why this conclusion is at odds with the interpretation of Austin according to which

his commitment to the separation thesis stands independently of his commitment to the command

theory. On the contrary: Austin assumed the command theory in his defense of the separation

thesis.

3. Objections

Before addressing objections, I should qualify the conclusion of the argument made in the

previous section. As indicated earlier, Austin offered a couple of arguments in defense of the

separation thesis, but only one of them clearly assumes the command theory of law. (Austin’s

second argument will be discussed below.) This means that, even if the command theory is proven

false, Austin's commitment to the separation thesis may still be justified, provided that his other

argument is sound. I should only add in my defense that, although Austin's first argument in favor

of the separation thesis is not his only argument, it does seem that he regarded it as his principal

5 As natural as this interpretation seems, commentators have not said much about it. In fact, they often have dealt surprisingly casually with the passage at issue. Wilfrid Rumble (1985, 82), for instance, characterizes the passage simply as making the claim that non-positivism conflicts with “indisputable historical facts.” This is not an adequate way to deal with the possibility of question-begging. Yes, it is an undeniable historical fact that judges have enforced wicked commands as laws; but were they really applying the law when they did so?

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John Austin's Defense of the Separation Thesis- Fábio P. Shecaira

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argument – indeed, as the only one which could conclusively establish the truth of the separation

thesis. For Austin believed that through his first argument he could show that to deny the

separation thesis is “to talk stark nonsense” (Austin 1832/1995, 158). His other argument, even if

sound, could not aspire to have the same impact.

Let us move on to possible objections, three of which deserve to be discussed.

(1) Recall that my interpretation of the passage containing Austin's first argument for the

separation thesis was motivated in part by the wish to avoid imputing to Austin the fallacy of

begging the question. I assume that interpretive charitableness requires us to avoid attributing a

clearly flawed argument to an author, so long as we can do so without thereby distorting his

intentions as expressed in his text. It could be argued, however, that while it might seem that I am

treating Austin charitably, I am in fact tacitly assigning to him a different mistake that is not very

different, and no less embarrassing, than a question-begging argument. Notice that Austin assumed

in his defense of the separation thesis a non-normative (and hence non-moral) account of legal

duty. When a non-positivist, especially a natural lawyer like Blackstone, affirms that morally

incorrect norms do not bind legally, they normally want to say that the norms' addressees should

not feel morally compelled to comply, or something to that effect. Thus, it could be argued that, on

my interpretation, although Austin did not quite beg the question, he imputed to his opponents (or

assumed that they would accept) a non-normative conception of legal duty that they do not accept.

And this is not an excusable mistake, given natural lawyers' well-known commitment to the view

that legal and moral duties are not to be sharply distinguished.

I believe that my interpretation of Austin need not assign to him such a serious mistake. It is

not the case that Austin was oblivious to the fact that non-positivists would refuse to accept a non-

normative account of legal duty. I take it instead that, by Lecture V, Austin believed already to have

established the superiority of the non-normative account. He simply did not allow his opponents

the option of a different account, as he believed to have shown the truth of the command theory.6

To be sure, there is good reason to be skeptical about the soundness of the command theory.7 But

the reasonableness of that skepticism shows only that Austin may have been wrong, not that he

failed to hold the relevant belief (in the soundness of the command theory).

6 Austin claimed to have, in Lecture I, determined “the essence or nature which is common to all laws that are laws

properly so called.” (1832/1995, 12) 7 See Hart 1961, chapters 2-4.

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Temas de filosofia política e jurídica

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(2) A different objection to my interpretation of Austin directly targets the passage from

Lecture V on which we have been focusing. It emphasizes a subtle element of Austin's argument to

which I have not given much attention. To quote again from that passage: “The most pernicious

laws, and therefore those which are most opposed to the will of God, have been and are

continually enforced as laws by judicial tribunals.” (ibid., 158, emphasis added) The objection at

issue contends that Austin claimed for the separation thesis the advantage of vindicating judicial

discourse or judicial self-understanding. Judges see themselves, or at least present themselves, as

enforcing the law, regardless of whether the posited commands they follow conform to non-

posited moral standards or not. This is something for which deniers of the separation thesis fail to

account. (Note that this objection does not function as an attempt to show that my interpretation

of Austin is inadequate but rather that it competes with an alternative interpretation which does

not seem any less plausible.)

The main problem with this alternative interpretation of Austin's first argument for the

separation thesis is that it appears to be ad hoc. We do not find in Austin's work any declaration

that theories of law should strive to vindicate judicial discourse or judicial self-understanding. In

fact, given Austin's intellectual affinity with Bentham, who was notoriously cynical about the

motivations of judges, it seems hazardous to assume that Austin would regard the vindication of

judicial discourse as a fundamental goal of jurisprudence. 8 I am not suggesting that Austin shared

Bentham's deep cynicism; but Austin was aware of it and would not take for granted that

conformity with judicial discourse is a standard by reference to which important jurisprudential

disputes should be adjudicated. 9

8 In PJD, while expressing reservations about Bentham's criticism of judge-made law, Austin acknowledged that judges are not always candid about what they do: “Notwithstanding my great admiration for Mr. Bentham, I cannot but think that, instead of blaming judges for having legislated, he should blame them for the timid, narrow, and piecemeal manner in which they have legislated, and for legislating under cover of vague and indeterminate phrases...” (1832/1995, 163) See also Rumble 1985, 122 (explaining that “Austin was a strong advocate of more candid judicial legislation”). 9 It should pay briefly to mention Brian Bix's (1993, 85-6) interpretation of Austin. Bix sees Austin's first argument for

the separation thesis as having the flaw of equating the legal validity of a norm with its enforcement by judges, a view which arguably would preclude the possibility of legal mistakes by judges: if the law is what judges enforce then they could never be wrong about what the law is. I disagree with Bix. The scenario Austin paints (“Suppose an act innocuous, or positively beneficial, be prohibited by the sovereign under the penalty of death....”) is one in which all the conditions (i.e. Austin's conditions) for the existence of law are present. The sovereign issues a command that the judges are disposed to apply. It is implicit (but plain) that the judges are not misunderstanding the sovereign's wish but are applying it correctly. If all these conditions are in place, then law exists (whether it is immoral or not). The relevant passage in Lecture V does not deny the possibility of legal mistakes; it simply grounds an argument on a hypothetical scenario in which judges are, by stipulation, getting the sovereign's command right.

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John Austin's Defense of the Separation Thesis- Fábio P. Shecaira

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(3) The third objection to my interpretation of Austin also consists in the proposal of an

alternative reading of the passage on which we have been focusing. It emphasizes yet another

element of Austin's argument:

Suppose an act innocuous, or positively beneficial, be prohibited by the sovereign under the

penalty of death; if I commit this act, I shall be tried and condemned, and if I object to the

sentence, that it is contrary to the law of God, who has commanded that human lawgivers

shall not prohibit acts which have no evil consequences, the Court of Justice will

demonstrate the inconclusiveness of my reasoning by hanging me up, in pursuance of the

law of which I have impugned the validity. (ibid., 158, emphasis added)

It has been suggested to me that here Austin could have been striking a skeptical note about

the inconclusiveness of moral reasoning generally.10 On that reading, Austin is not denying that

moral wickedness invalidates otherwise valid law but rather that one would ever be able to

demonstrate the moral wickedness of a command in such an definitive, uncontroversial way that a

court of law would be willing to disregard the command on that ground.

Here is my take on this interpretation. It is very implausible to affirm that Austin makes a

skeptical argument in the very paragraph in which he proposed a hypothetical scenario involving a

command which, by stipulation, prohibits a morally innocuous act and hence opposes the law of

God. The scenario is premised precisely on the non-skeptical proposition that the command which

the courts will enforce is morally wicked. This indicates that the “inconclusiveness” of the

defendant's case is not a function of the contested nature of moral argument but rather of the fact

that courts see themselves as duty-bound to enforce the commands of the sovereign as they are,

morally objectionable or not. That the courts are not even disposed to consider moral arguments

(cogent or not) is suggested by Austin in the following sentenc: “An exception, demurrer, or plea,

founded on the law of God was never heard in a Court of Justice, from the creation of the world

down to the present moment.” (ibid., 158)

To be sure, Austin did in fact sound a skeptical note in a paragraph from Lecture V that

immediately follows the one we have been discussing. It is in this paragraph that Austin gives his

10 For this suggestion I thank Matthew Grellette.

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Temas de filosofia política e jurídica

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second argument of PJD for the separation thesis. Austin made it clear that his second argument,

the skeptical one, is not identical to his first argument: “But this abuse of language is not merely

puerile [as the first argument showed], it is mischievous.” (ibid., 158) And Austin characterizes the

mischief as follows:

But the laws of God are not always certain. All divines, at least all reasonable divines, admit

that no scheme of duties perfectly complete and unambiguous was ever imparted to us by

revelation. As an index to the Divine will, utility is obviously insufficient. What appears

pernicious to one person may appear beneficial to another. And as for the moral sense,

innate practical principles, conscience they are merely convenient cloaks for ignorance or

sinister interest: they mean either that I hate the law to which I object and cannot tell why,

or that I hate the law, and that the cause of my hatred is one which I find it incommodious

to avow.... In times of civil discord the mischief of this detestable abuse of language is

apparent. In quiet times the dictates of utility are fortunately so obvious that the anarchical

doctrine sleeps, and men habitually admit the validity of laws which they dislike.... To incite

the public to resistance by determinate views of utility may be useful, for resistance,

grounded on clear and definite prospects of good, is sometimes beneficial. But to proclaim

generally that all laws which are pernicious or contrary to the will of God are void and not to

be tolerated, is to preach anarchy, hostile and perilous as much to wise and benign rule as

to stupid and galling tyranny. (ibid., 159)

Note that this is a fairly moderate type of skepticism that, according to Austin, is only

consequential “in times of civil discord.” Thus, the target of Austin's second argument seems much

narrower than the target of the first, which, you will recall, speaks of the courts' willingness to

enforce the commands of the sovereign “from the creation of the world down to the present

moment.” The latter is an argument that applies equally in times of civil discord and in “quiet

times,” when the dictates of utility are obvious. The point is that there is good reason to believe

that Austin's two arguments are independent from each other, and that only the second one is

based on a dose of skepticism.

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John Austin's Defense of the Separation Thesis- Fábio P. Shecaira

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To discourage potential doubts as to whether the different arguments attributed to Austin

are in tension with each other (always with the goal in mind of interpreting Austin charitably), let

me say the following. Providing two different kinds of arguments in defense of the separation thesis

– one pertaining to its theoretical soundness, the other to the positive political consequences that

would result from its dissemination in society – is a trend followed by other prominent positivists

after Austin. Hart offered both types of argument in “Positivism and the Separation of Law and

Morals.”11 Hans Kelsen did the same in “The Pure Theory of Law.”12 In a word, employing different

kinds of arguments – normative and conceptual – in defense of the separation thesis is not an

idiosyncratic or unprincipled strategy, but rather one with a distinguished philosophical pedigree.

4. Conclusion

The structure of my argument is fairly simple. In PJD, arguably Austin's most influential

work, he offered an argument in defense of the separation thesis that should be interpreted as

assuming the truth of the command theory of law. Austin's argument should be interpreted in this

way for a couple of related reasons. First, this reading charitably saves Austin from the fallacy of

begging the question. Second, it seems more plausible than the alternative readings that might

equally save Austin from that fallacy: for there is no reason to believe that Austin was concerned

with designing a theory that vindicates judicial self-understanding, and there is good reason to

believe that Austin's putative knock-down argument against non-positivism is not a skeptical one.

The upshot is that Austin did not seem to regard the separation thesis as being autonomous

with respect to the command theory. This autonomy is affirmed by most contemporary positivists;

but if contemporary positivists are concerned with understanding the history of the philosophical

tradition with which they associate themselves, then they should be interested in learning that

Austin saw things differently.

11 “I have endeavored to show that, in spite of all that has been learned and experienced since the Utilitarians wrote, and in spite of the defects of other parts of their doctrine, their protest against the confusion of what is and what ought to be law has a moral as well as an intellectual value.” (Hart 1958, 621, emphasis added) 12 “The thesis that law is moral by nature... is rejected by the Pure Theory of Law not only because this theory presupposes an absolute moral order but also because in its actual application by the science of law prevailing in a certain legal community, this thesis amounts to an uncritical justification of the national coercive order that constitutes this community.” (Kelsen 1967, 68-9)

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Temas de filosofia política e jurídica

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References

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Gardner, John. 2004. The Legality of Law. Ratio Juris 17: 168-81.

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Rumble. Wilfrid E. 1995. Introduction. The Province of Jurisprudence Determined. W. Rumble, ed.,

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Schauer, Frederick. 2010. Positivism Before Hart. Social Science Research Network Electronic Paper

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Legalidade e Direito Natural Institucional

Luis Fernando Barzotto Professo da Faculdade de Direito, UFRGS.

Resumo: Na sua obra The morality of law, Lon Fuller pretende indicar oito regras ou princípios da

legalidade (principles of legality) que orientam a atividade da legislação. Nesta obra, a legalidade

apresenta-se como um exemplo de uma concepção procedimental ou institucional do direito

natural (procedural natural law ou institutional natural law). O objeto do “jusnaturalismo

institucional” de Fuller não é o conteúdo ético universal do direito (direito natural substantivo), o

seu modo formal-procedimental de existência (direito natural institucional). O artigo consta de

quatro partes. Na primeira, vem exposta o projeto de jusnaturalismo institucional de Fuller. Na

segunda parte, são expostos os oito princípios da legalidade de Fuller, bem como é indicada a sua

presença igualmente na obra de Tomás de Aquino, Thomas Hobbes e Friedrich von Hayek. A

intenção é demonstrar que os oito princípios da legalidade devem considerar-se empiricamente

evidentes, e portanto, imunes a divergências teóricas. Na terceira parte, haverá o recurso a alguns

conceitos de Wittgenstein e de John Searle que iluminam o aspecto metodológico do

jusnaturalismo institucional. Na quarta parte, será apontado que o projeto de um um

jusnaturalismo institucional já está presente na reflexão tomista sobre o jus gentium. Na conclusão,

vamos recorrer às contribuições de Jeremy Waldron para estabelecer o locus do jusnaturalismo

institucional no interior da tradição jusnaturalista.

1. O jusnaturalismo institucional

Em uma obra cuja edição definitiva é de 1969, The morality of law, Lon Fuller inova a

compreensão do direito natural. Até então, o jusnaturalismo era entendido, tanto por seus

defensores como detratores, como uma teoria moral substantiva. Nesta, determinados princípios

ou valores éticos assumem o estatuto de verdades práticas universais, desempenhando a função de

critérios de avaliação do fenômeno jurídico. Fuller, sem negar esta dimensão substantiva do

jusnaturalismo, acrescenta uma dimensão procedimental (procedural) ou institucional

(institutional) que também possuiria um caráter ético, mas que repousaria sobre aspectos formais e

não materiais, da experiência jurídica.

Na obra citada, Fuller analisa oito características que estariam presentes na atividade

legislativa, entendendo a legislação (lawmaking) como “o empreendimento (enterprise) de sujeitar

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Temas de filosofia política e jurídica

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a conduta humana ao governo de regras.”1 Como tal, a lei é uma expressão “da capacidade

humana de criar e projetar ordem”.2 Nesta visão, Fuller dá continuidade à visão do jusnaturalismo

clássico: para Aristóteles, “a lei (nomos) é uma certa ordem (taxis)”3 e segundo Tomás de Aquino,

“a lei (lex) é uma arte de (...) ordenar a vida humana.”4

Ao assumir este empreendimento, o legislador deve, necessariamente, submeter-se aos

“princípios da legalidade” (principles of legality)5, a saber, “oito standards sobre cuja base se pode

falar de um grau de excelência no âmbito da legalidade.”6 São eles:

1)Generalidade (das regras)

2)Promulgação

3)Prospectividade ou irretroatividade

4)Clareza

5)Consistência (não-contradição)

6)Possibilidade (as leis não podem exigir o impossível)

7)Estabilidade

8)Congruência (entre as leis editadas e a ação oficial)

A existência destes princípios, e o modo de conhecê-los, são explicados do seguinte modo

por Fuller:

“Em quase todas as sociedades os seres humanos tornam-se conscientes da necessidade de sujeitar

certas condutas ao explícito controle de regras. Quando ingressam neste empreendimento (...), eles

descobrem que este (...) possui uma lógica interna (inner logic) própria, que essa estabelece exigências

(demands) que devem ser satisfeitas para que os seus objetivos sejam alcançados. É porque os homens

geralmente percebem estas exigências e lhes respeitam, que os sistemas jurídicos mostram uma certa

semelhança em sociedades que são totalmente diversas. É porque a lei é um empreendimento com um

1 Lon Fuller: The morality of law (daqui em diante, ML), p. 74. No texto de Fuller, esta é uma definição de law, direito ou

lei. A ambigüidade do termo reflete-se na obra de Fuller, em que law significa tanto direito como lei. Não nos ocuparemos de qual seria a melhor apreensão global da obra de Fuller. Neste artigo, vamos interpreta-lo como estando ocupado com o fenômeno da lei e da legislação, sem excluir que sua análise tenha um alcance mais amplo. Para uma interpretação nesta última direção, cf. Ângela Vidal Martins: A moralidade do direito, Porto Alegre: Lex Magister, 2013. 2 Lon Fuller: “A reply to professors Cohen and Dworkin”, p. 665. 3 Aristóteles: Política VII, 1326a 30. 4 Tomás de Aquino: Suma Teológica, I-II, q. 104, a.4. Daqui em diante, S.T. 5 ML, p. 206. Aqui cabe também observar que o termo legality pode ser traduzido por juridicidade. Contudo, pelas

razões expressas na nota 1, vamos traduzi-lo por “legalidade”. 6 ML, p. 42.

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Legalidade e Direito Natural Institucional- Luis Fernando Barzotto

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propósito, que ele mostra constantes estruturais (structural constancies) que o teórico do direito pode

descobrir e tratar como uniformidades que estão dadas factualmente.”7

Estes princípios admitem um grau maior ou menor de realização. Mas, sem um

atendimento em um grau mínimo das exigências destes princípios, não há legislação. Isto porque

eles expressam as condições para que o empreendimento legislativo seja bem sucedido. Como tal,

eles se impõem ao legislador, independentemente das finalidades concretas que ele busca obter

com a legislação, e por extensão, impõe-se ao teórico, independentemente da sua filiação a esta ou

aquela tradição filosófica8. O compromisso do legislador com esses princípios “não é apenas um

elemento de um ‘modelo conceitual’: ele é parte da realidade social”9. Se o conjunto destes

princípios for designado, como sugere John Finnis, pela expressão rule of law10

obtém-se uma

conexão empiricamente verificável entre law - lei - e rule of law – império da lei. Todo legislador,

que quer que a lei (law) editada por ele governe (rule) efetivamente a conduta dos destinatários,

deve obedecer aos oito princípios da legalidade. Sem a adesão aos princípios da legalidade (rule of

law), o legislador não alcança produzir uma lei (law): “devo desculpar-me pela insistência sobre

uma tese tão óbvia como aquela segundo a qual uma adesão mínima” aos princípios da legalidade

“é essencial à eficácia prática da lei, se este ponto não fosse frequentemente ignorado.”11

O

legislador, assim como o carpinteiro, deve seguir as “leis naturais” da sua própria atividade, se quer

que ela seja efetiva. De fato, os princípios do rule of law tem para o legislador o mesmo estatuto

“das leis naturais (natural laws) da carpintaria, ou ao menos daquelas leis respeitadas por um

carpinteiro o qual quer que a casa na qual trabalha dure e sirva ao propósito daqueles que vivem

nela.”12

Contudo, não é porque os princípios da legalidade sejam constantes estruturais fáticas da

legislação que eles carecem de natureza moral. Na verdade, o objetivo da obra de Fuller é defender

sua natureza intrinsecamente moral: os oito princípios arrolados formam a moralidade interna da

lei (law’s internal morality). A lei possui uma natureza moral pelo seu propósito intrínseco que é o

de ordenar a vida em sociedade: “Eu acredito que ordem, clareza e coerência possuem uma

7 ML, p. 151. 8 Este ponto será ilustrado mais adiante, indicando a presença dos princípios da legalidade nas obras de Tomás de Aquino, Thomas Hobbes e Friedrich von Hayek. 9 ML, p. 219. 10

John Finnis: Natural law and natural rights, p. 270. 11 ML, p. 156. 12 ML, p. 96.

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Temas de filosofia política e jurídica

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afinidade com bondade e conduta moral.”13

Por meio da ordenação da conduta humana, a lei

busca fins materiais. Estes objetivos externos à ordem imposta pela lei integram o que Fuller

denomina “moralidade externa” da lei. Ainda que as duas moralidade interajam de várias formas, o

que deve ser retido é a prioridade, para o ponto de vista jurídico, da moralidade interna em relação

à moralidade externa. Assim, por exemplo, o juiz, ao aplicar a lei, deve orientar-se prioritariamente

pela moralidade interna da lei:

“Lá onde se trata de propósitos extrínsecos ao direito, faz parte do ethos do ofício do juiz que ele

permaneça, tanto quanto seja possível às capacidades humanas, neutro diante às posições morais que

podem estar presentes na lei sobre questões como divórcio, contracepção, jogo de azar, ou da requisição de

bens de propriedade privada para motivos de utilidade pública.

Mas as mesmas considerações que pedem uma postura de neutralidade diante dos objetivos

externos do direito, pedem um empenho da parte do juiz face à moralidade interna do direito (law’s internal

morality) . Seria, por exemplo, uma abdicação das responsabilidades do seu ofício, uma posição neutral que

fosse assumida pelo juiz entre uma interpretação do direito que implicasse obediência a este nos limites da

capacidade do cidadão comum, e uma interpretação que tornasse impossível a este último a observância

das suas disposições.”14

No texto citado, Fuller está se referindo a um dos oito princípios ou standards da legalidade:

a possibilidade de obediência ao que a lei prescreve. Formando parte da moralidade interna da lei,

o juiz está absolutamente vinculado a este standard. Ele não pode interpretar a lei de tal modo que

seu cumprimento se torne impossível ao cidadão. Ao mesmo tempo, pode acontecer que a

interpretação juridicamente mais adequada seja contrária aos seus valores morais particulares, pois

sua posição de juiz faz dele o guardião da lei e de sua moralidade interna, e não um tirano togado

que impõe a seus concidadãos a sua concepção moral, que Fuller denomina de “externa” à lei.

Como a moralidade interna da lei se orienta pelo propósito formal da mesma, a saber,

estabelecer a ordem nas relações sociais, pode-se falar aqui de “uma espécie procedimental

(procedural) ou institucional (institutional) de direito natural”15

:

“Um modo conveniente (...) de descrever a distinção feita [entre moralidade interna e moralidade

externa do direito], é aquele de falar de um direito natural procedimental como distinto de um direito

natural substancial (substantive natural law). Aquela que eu chamei moralidade interna do direito é neste

sentido uma versão procedimental do direito natural (...). O termo procedimental (procedural) é muito

apropriado enquanto capaz de indicar que não estamos interessados nos objetivos substanciais das regras

jurídicas, mas nos modos como um sistema de regras voltado a governar a conduta humana deve ser

13

Lon Fuller: “Reply to professors Cohen and Dworkin”, p. 666. 14 ML, pp. 131-132. 15 ML, p. 184.

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Legalidade e Direito Natural Institucional- Luis Fernando Barzotto

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construído e administrado se pretende ser eficaz e ao mesmo tempo permanecer aquilo que se propõe a

ser.” 16

A moralidade interna da lei ou rule of law, além de constituir um conjunto de “leis naturais”

para a legislação em um sentido fático - não há lei sem o rule of law, assim como uma casa não

pode ser construída se não forem seguidas as “leis naturais” da carpintaria - expressa um sentido

normativo, o de que os princípios da legalidade constituem deveres para o legislador. Isso conecta

o direito natural procedimental ou institucional de Fuller com a tradição do direito natural, pois os

oito princípios da legalidade são constitutivos (fáticos) mas também normativos (éticos): eles

expressam o que é devido em termos institucionais aos seres humanos considerados como seres

livres:

“A moral da lei (legal morality) pode ser neutra acerca de uma vasta série de questões éticas. Ela

não pode ser neutra acerca da concepção do próprio homem. Engajar-se no empreendimento de sujeitar a

conduta humana ao governo de regras necessariamente implica a adesão à visão segundo a qual o homem

é, ou pode se tornar, um agente responsável, capaz de compreender e seguir as regras, e responder pelas

suas faltas. Todo distanciamento dos princípios da moral interna do direito é uma afronta à dignidade do ser

humano como agente responsável. Julgar as suas ações com base em regras não publicadas ou retroativas,

ou ordenar-lhe um ato impossível significa manifestar-lhe a sua indiferença à sua capacidade de auto-

determinação.”17

Assim, o rule of law admite várias visões morais substantivas, mas um única antropologia:

aquela que considera o ser humano como um ser livre, e portanto, responsável: “a moral específica

da lei articula e torna presente a nós uma visão do se humano que é indispensável para o direito e a

moral.” A partir daí, pode-se afirmar que o sentido normativo fundamental dos princípios da

legalidade “é assegurar a aqueles que estão sujeitos à autoridade a dignidade da autodeterminação

e a liberdade em relação a certos tipos de manipulação. O rule of law está portanto entre as

exigências da justiça.”18

Apesar do rule of law ou moralidade interna da lei constitui uma exigência de justiça

procedimental ou formal para seres naturalmente livres, ele não garante a justiça material da lei: “A

moral interna à lei é uma condição necessária, mas não suficiente, para a justiça.” 19

Herbert Hart,

na sua obra The Concept of Law, sustentou que a obediência aos standards da moral interna do

16 ML, pp. 96-97. 17

ML, p. 162. 18 John Finnis: Ley natural y derechos naturales, p. 301. 19 ML, p. 168.

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Temas de filosofia política e jurídica

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direito poderiam estar presentes em regimes políticos sumamente injustos.20

A réplica de Fuller se

dá na exigência de que o argumento de Hart seja acompanhado de exemplos históricos:

“Hart quer nos dizer que é possível, forçando um pouco a imaginação, conceber o caso de um

monarca malvado que persiga os fins mais iníquos, e ao mesmo tempo, conserve um respeito genuíno pelos

princípios da legalidade (...). Entende Hart que a história fornece efetivamente exemplos significativos de

regimes que combinaram uma fiel aderência à moral interna do direito com uma indiferença brutal pela

justiça e bem-estar do homem? Se é assim, seríamos gratos que ele nos fornecesse alguns exemplos

históricos em torno aos quais poderíamos ter alguma discussão significativa.”21

De qualquer modo, dada a inseparabilidade de forma e conteúdo, Fuller afirma ao lado do

seu “direito natural procedimental”, um conteúdo ético mínimo para a lei e o direito em geral, o

“direito natural substantivo” (substantive natural law). O direito natural substantivo está ligado à

idéia de “coordenar os esforços”22

no interior de um grupo. De um modo mais preciso, o direito

natural substantivo expressa a necessidade natural de comunicação, no sentido do conceito

clássico de communicatio - “tornar comum o próprio”: “Eu acredito que se nós fossemos forçados a

selecionar o princípio que sustenta e encoraja todas aspirações humana, o encontraríamos no

objetivo de manter a comunicação (communication) com os nossos semelhantes.”23

Ou, em uma

formulação mais precisa: “O princípio central indiscutível do que pode ser chamado direito natural

substantivo (...) é o seguinte: abra, sustente e preserve a integridade dos canais de comunicação

pelos quais os homens transmitem uns aos outros aquilo que percebem, sentem e desejam.”24

Como no direito natural procedimental, a antropologia que funda o direito natural

substantivo de Fuller é unívoca. Assim como a moralidade interna da lei está ligada à liberdade, a

moralidade externa mínima e “natural” da lei (e do direito) está ligada à necessidade de

comunicação, ao caráter comunitário do ser humano. Com este elemento, completa-se a

antropologia que funda o projeto jusnaturalista de Fuller: o ser humano na perspectiva do direito

natural procedimental é um ser livre e na perspectiva do direito natural substantivo, é um ser

comunitário. Com isso, o projeto de Fuller vincula-se antropologicamente aos elementos da noção

clássica de pessoa: a liberdade/subjetividade e a comunidade/relacionalidade.

20 Herbert Hart: The concept of law, Oxford: Oxford University Press, 1961, p. 202. 21 ML, p. 154. 22

ML, p. 186. 23ML, p. 186. 24ML, p. 186.

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Legalidade e Direito Natural Institucional- Luis Fernando Barzotto

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2. Os oito princípios/standards da legalidade

A seguir, ao expor os oito princípios da legalidade, vamos buscar exemplifica-los a partir de

três autores de matrizes teóricas radicalmente diversas: Tomás de Aquino, Thomas Hobbes e

Friedrich von Hayek. Deste modo, pretendemos oferecer um argumento em favor da tese de Fuller,

que o empreendimento legislativo possui uma lógica interna que se expressa em padrões

(standards) que podem ser reconhecidos em todas as sociedades que utilizam a legislação como

fonte do direito.

2.1 Generalidade (Generality of law)

Segundo Fuller, “a primeira exigência de um sistema que queira sujeitar a conduta humana

ao governo de regras é que existam regras. Isto pode ser explicitado como exigência de

generalidade.”25

A regra é um imperativo geral, se diferenciando do comando, um imperativo

específico ou concreto: “O controle das ações dos cidadãos é feito não por diretivas específicas,

mas por regras gerais, expressão do princípio de que casos iguais devem receber tratamento

igual.”26

A regra não se dirige a um sujeito determinado em uma situação determinada, em vista

de uma finalidade determinada, mas se dirige a um destinatário típico em uma situação típica, sem

ter em vista a realização de um propósito concreto.

Assim como as regras gerais são da essência da lei, os comandos são o modo próprio de

funcionamento do que Fuller denomina de “gestão burocrática” (managerial direction).27

A

diferença básica entre os dois modos de regulação das ações está em que “a lei não busca, como a

gestão burocrática, dirigir outras pessoas sobre como realizar tarefas estabelecidas por um

superior, mas consiste basicamente em prover a cidadania de uma sólida e sadia estrutura

(framework) para as interações inter-pessoais.”28

Aqui emerge o contraste entre a generalidade da

lei, que lhe é essencial, e a generalidade por razões de conveniência dos comandos burocráticos.

Um gestor burocrático pode, por motivos pragmáticos, expor suas diretivas na forma de regras

gerais, mas ele, pelos mesmos motivos, pode excepcionar a qualquer momento a validade destas

regras, sem que o subordinado possa invocá-las para criticar a ação do seu superior. Isso se dá

25 ML, p. 46. 26

ML, p. 271. 27 ML, p. 207. 28 ML, p. 210.

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Temas de filosofia política e jurídica

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porque a gestão burocrática visa submeter a conduta do subordinado aos fins concretos buscados

pelo gestor, o que não ocorre com a lei. A lei visa apenas fornecer um quadro de referência no qual

as pessoas buscam seus próprios fins, não os fins espectíficos de uma autoridade legislativa: “a lei

fornece a orientação básica (baseline) para a ação auto-dirigida (self-direction action), não um

conjunto de instruções detalhadas para o cumprimento de objetivos específicos.”29

Deve-se ter presente que para a existência de regras gerais é um requisito formal do direito

natural institucional, e como tal, prescinde de uma avaliação do seu conteúdo: “A exigência posta

pela moralidade interna do direito é que existam regras (...), justas (fair) ou injustas (unfair).”30

A

generalidade, como requisito formal, não garante a justiça material da lei, o que não significa sua

neutralidade em relação ao conteúdo. Afinal, forma e conteúdo estão em relação recíproca, de tal

forma que a obediência à moralidade interna do direito representa sempre uma aproximação à

justiça material: “A lei pode ser má, injusta; mas por causa de sua condição geral e abstrata se

reduz ao mínimo este perigo. O caráter protetor da lei, sua própria razão de ser, repousa sobre o

seu caráter geral.”31

Para Tomás de Aquino, “as proposições universais da razão prática ordenadas às ações tem

razão de lei.”32

Ou seja, faz parte do conceito de lei (razão de lei) seu caráter geral ou universal. De

fato, para Tomás, a função ordenadora da lei exige sua generalidade: “Se houvesse tantas regras

(...) quanto são as coisas regradas (...), cessaria a utilidade da regra (...) que é permitir que muitas

coisas possam ser conhecidas a partir de uma só. E assim nenhuma seria a utilidade da lei, se fosse

estendida apenas a um só ato.”33

Do mesmo modo, para Hobbes, a generalidade da lei faz parte do seu conceito: “As leis são

julgamentos ou sentenças gerais do legislador.”34

Hayek considera que a cláusula básica da “constituição de um povo livre” se resumiria a

limitar o legislativo à produção de regras gerais: “O legislativo (...) só pode fazer regras gerais que

serão aplicadas a um número desconhecido de circunstâncias futuras.”35

29 ML, p. 210. 30 ML, p. 47. 31 Leon Duguit apud Carl Schmitt: Teoría de la constitución, Madri: Alianza Universidad, 2006, p.163 (1928). 32

S.T. I-II, q. 90, a.1 33 S.T. I-II, q. 96, a.1 34 Hobbes: Leviatã XXVI, p. 172.

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2.2 Promulgação (Promulgation)

A necessidade de promulgação é tal, que ela não necessita de recomendação explícita:

“Embora não esteja prevista na constituição americana (...) duvido que tenha passado na mente de

algum congressista”36

a possibilidade de não promulgar as leis.

Tomás vincula a obrigatoriedade e a efetividade da lei com sua promulgação: “para que a lei

obtenha a força de obrigar (...) é necessário que se aplique aos homens que segundo ela devem ser

regulados. Tal aplicação se faz enquanto é levada ao conhecimento deles pela promulgação.

Portanto, a promulgação é necessária para que a lei tenha sua força.”37

Para Hobbes, a promulgação também está ligada à própria definição de lei: “Como a lei é

um comando, que consiste na declaração ou manifestação de vontade de quem ordena, oralmente

ou por escrito, ou mediante outros sinais suficientes da mesma vontade, podemos compreender

que o comando do Estado só é lei para aqueles que tem meios para dela se informarem.”38

Hayek relaciona a promulgação com o rule of law: “Rule of law significa que todas as ações

do governo são regidos por normas previamente estabelecidas e divulgadas.”39

2.3 Prospectividade (Retroactive laws)

O standard da prospectividade veda leis retroativas, aquelas que pretendem regular fatos

pretéritos. Fuller defende que “uma lei retroativa é certamente uma monstruosidade. A lei se

relaciona à direção da conduta humana por meio de regras. Falar de governo ou de direção de uma

conduta hoje, por meio de regras que serão emanadas amanhã, significa fazer um discurso vazio.”40

Do mesmo modo, Tomás sustenta que “As leis impõem necessidade aos negócios

futuros.”41

35 Friedrich von Hayek: Direito, legislação e liberdade v. 3, p. 115. 36 ML, p. 149. 37 S.T. I-II, q. 90, a.4. 38 Thomas Hobbes: Leviatã. XXVI, p. 164. 39

Friedrich von Hayek: Caminho de servidão, p. 89. 40 ML, p. 53. 41 S.T. I-II, q. 90, a.4.

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Temas de filosofia política e jurídica

71

Hobbes formula o princípio “nullum crimen, nulla poena sine lege” do seguinte modo:

“Nenhuma lei feita depois de praticado um ato pode transformar este em crime (...), pois uma lei

positiva não pode ser conhecida antes de ser feita e portanto não pode ser obrigatória.”42

Hayek relaciona o standard da prospectividade como uma exigência do rule of law: “A

forma assumida pelo rule of law no direito penal é em geral expressa pela máxima latina nulla

poena sine lege. A essência desta máxima é que a lei deve existir como norma geral antes de se

apresentar o caso ao qual tem de ser aplicada.”43

.

2.4 Possibilidade (Laws requiring the impossible)

A lei não pode exigir condutas impossíveis de serem realizadas.

Segundo Tomás de Aquino, “A disciplina [da lei] deve ser conveniente a cada qual segundo

sua possibilidade, sendo a primeira a possibilidade natural (com efeito, não se pode impor às

crianças as mesmas coisas que aos homens adultos); e deve ser possível segundo o costume

humano, pois o homem não pode viver sozinho na sociedade, não ajustando a sua conduta aos

demais.”44

A impossibilidade, para Hobbes, se manifesta quando uma lei exige, por exemplo, que o ser

humano adote condutas que levariam à perda de sua vida: “Se alguém for obrigado, pelo terror de

uma morte iminente, a praticar um ato contrário à lei, fica inteiramente desculpado, porque

nenhuma lei pode obrigar o homem a renunciar à sua própria preservação.”45

2.5 Clareza (Clarity of laws)

Se a legislação for obscura, isso “pode tornar um comportamento segundo a lei inviável.”46

Por isso, ela deveria “ser suficientemente clara para alcançar o duplo objetivo de dar ao cidadão

42 Thomas Hobbes: Leviatã XXVI, p. 177. 43 Friedrich von Hayek: Caminho de servidão, p. 98. 44

S.T. I-II, q. 95, a.3. 45 Thomas Hobbes: Leviatã XXVI, p. 181. 46 ML, p. 63.

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uma informação acerca da conduta proibida, e de fornecer adequadas diretivas para as decisões

judiciais.”47

Tomás sustenta “que a lei deve ser clara, de sorte a não conter por obscuridade algo

capcioso (...). A clareza é exigida para precaver contra o prejuízo que pudesse provir da própria

lei.”48

Uma lei obscura causa prejuízo à sociedade pois é um fator de desordem.

Hobbes pretende que a clareza deve ser buscada no justo meio entre brevidade excessiva e

minuciosidade excessiva: “Quanto às leis escritas, se forem breves facilmente serão mal

interpretadas, por causa da diversidade de significações de uma ou duas palavras, e se forem

longas ainda serão mais obscuras, devido à diversidade de significações de muitas palavras.”49

Hayek associa a falta de clareza da legislação à introdução de termos vagos como “justo” ou

“razoável”, pois isto “significa que é preciso cada vez mais deixar a decisão do caso concreto ao

poder discricionário do juiz ou da autoridade competente. Segundo ele, “poder-se-ia descrever

uma história do declínio do rule of law (...), com base na introdução progressiva dessas fórmulas

vagas na legislação e na jurisdição, e na crescente arbitrariedade, mutabilidade e imprecisão da lei e

da jurisdição (...), os quais em tais circunstâncias não podem deixar de converter-se em um

intrumento político.”50

2.6 Consistência (Contradictions in the laws)

O standard de consistência simplesmente exige que a lei, para imprimir uma direção dotada

de sentido ao esforço humano, não pode exigir comportamentos contraditórios. O preceito

“Revogam-se as disposições em contrário” é uma expressão desta necessidade de imprimir uma

direção unívoca à conduta. De fato, um legislador que torna o ato x lícito e ilícito na mesma lei, não

está impondo nenhum dever, não está transmitindo nenhuma mensagem normativa.

Tomás define a lei como “certa regra e medida dos atos, segundo a qual alguém é levado a

agir ou a apartar-se da ação.”51

Entenda-se: não é possível que a lei sirva como medida da ação se

47 ML, p. 103. 48 S.T. I-II, q. 95, a.3. 49

Thomas Hobbes: Leviatã XXVI, p. 167. 50 Friedrich von Hayek: Caminho de servidão, p. 93. 51 S.T. I-II, q. 90, a.1.

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ela impor a ação x e simultaneamente a abstenção da ação x. É assim, que à luz do standard de

consistência, poderia ser lida a expressão “agir ou apartar-se da ação.”

Hobbes sustenta que a contradição nas leis é um mal que só pode ser combatido pela

unificação da autoridade legislativa e judicial no Estado: “Subsiste a dúvida sobre a quanto àquele

cuja razão deve ser aceite como lei. Não pode tratar-se de nenhuma razão privada, porque nesse

caso haveria tantas contradições nas leis como as há nas Escolas (...). Portanto, o que faz a lei (...) é

a razão do (...) Estado, e seus comandos. E sendo o Estado, em seu representante, uma só pessoa,

não é fácil surgir qualquer contradição nas leis, e quando tal acontece, a mesma razão é capaz, por

interpretação ou alteração, de eliminar a contradição.”52

Para Hayek, “devemos julgar normas particulares pela sua (...) consistência com todas as

normas reconhecidas do sistema. A consistência (...) neste contexto, significa que as normas servem

à mesma ordem abstrata de ações e evitam conflitos entre as pessoas que as observam.”53

2.7 Estabilidade (Constancy of the law through time)

O princípio da estabilidade prescreve que “as regras não devem ser mudadas

frequentemente.”54

Em Tomás, este standard é afirmado de um modo tão rigoroso que a mudança não pode ser

justificada por promover uma melhoria qualquer do bem comum material. Ela só se justifica se for

absolutamente necessária para esta melhoria, pois o prejuízo que a mudança causa ao bem comum

formal da comunidade, a saber, a ordem, é uma consideração que deve obter precedência em toda

deliberação tendente à mudança na legislação: “A própria mudança da lei tem em si mesma certo

prejuízo do bem comum (...) porque quando se muda a lei, diminui a força coercitiva da mesma,

enquanto se abole o costume. Assim, nunca se deve mudar a lei humana, a não ser que compense

o bem comum tanto quanto a mudança lhe subtraiu.”55

Para Hayek, a estabilidade da lei está relacionada à igualdade entre os cidadãos, de modo

que o longo período de vigência inviabilize as tentativas de utilizar a lei para beneficiar alguns em

52 Thomas Hobbes: Leviatã XXVI, p. 164. 53

Friedrich von Hayek: Direito, Legislação e liberdade, v. 2, p.27. 54 ML, p. 79. 55 S.T. I-II, q. 97, a.2.

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detrimento de outros: “As leis aplicam-se ou deveriam aplicar-se a períodos bastante longos, de

modo que se torne impossível saber se irão favorecer a certas pessoas mais do que a outras.”56

Neste contexto, pode-se citar igualmente Norberto Bobbio, para afirmar que o standard da

estabilidade da lei está relacionada à própria função estabilizadora do direito em geral: “O direito

tem uma função estabilizadora. Dentro da mutação histórica, o direito representa aquilo que

detém o movimento, que o canaliza e o solidifica; na variação das ações humanas representa o

estabelecimento de uma ordem.”57

2.8 Congruência (Congruence between official action and declared rule)

A congruência entre as leis e o comportamento da autoridade, é o mais importante de

todos os princípios da legalidade, e expressa o próprio ideal do rule of law: “Este standard exige

que, dentro da área coberta pela lei, os atos do governo em relação ao cidadão esteja de acordo

(isto é, sejam autorizados ou validados) por regras gerais previamente declaradas pelo próprio

governo.”58

Para Tomás, isto significa que o príncipe ou legislador está sujeito à lei no que diz respeito

ao seu caráter imperativo para a conduta, ou vis directiva: “Todos os homens devem estar sujeitos

à lei humana (...). No que diz respeito à força diretiva da lei, o príncipe está sujeito à lei.”59

Hobbes, por sua vez, alerta o soberano para que ele não desautorize por suas ações as

condutas que impôs pela sua legislação: “Os governantes devem ter o cuidado de não sancionar

obliquamente [pelas suas ações] o que diretamente proíbem [pelas leis]. Os exemplos dos príncipes

são e sempre foram, para quem os vê, mais fortes como motivos para a ação do que as próprias

leis.”60

Hayek vincula diretamente a congruência com o rule of law: “Rule of law significa que

todas as ações do governo são regidas por normas previamente estabelecidas e divulgadas – as

quais tornam possível prever com razoável grau de certeza de que modo a autoridade usará seus

56 Friedrich von Hayek: Caminho de servidão, p. 90. 57 Norberto Bobbio: El problema del positivismo jurídico, p. 38. 58

ML, p. 211. 59 S.T. I-II, q. 96, a.5. 60 Thomas Hobbes: Leviatã XXVI, p. 183.

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Temas de filosofia política e jurídica

75

poderes coercitivos em dadas circunstâncias, permitindo a cada um planejar suas atividades

individuais com base nesse conhecimento.”61

Ao analisar o standard da congruência, Fuller fornece uma contribuição decisiva para o

esclarecimento do conceito de legislação. Com efeito, legislar não consiste, “como pensa o

positivismo, uma projeção unilateral da autoridade política, que tem sua origem nela e se impõe

como tal ao cidadão.”62

Isso porque, legislar para outrem implica legislar para si mesmo: toda

vinculação da conduta social pela lei implica em auto-vinculação por parte do legislador:

“Publicando uma lei (...) a autoridade não dá simplesmente uma diretiva ao cidadão; essa impõe a

si mesma uma clara limitação aos seus poderes no que diz respeito a uma esfera particular da

conduta humana.”63

E isso ocorre por uma razão bastante simples: para a lei “fazer sentido” na

prática social, ela supõe que não só o cidadão orientará o seu comportamento por ela, mas

também a própria autoridade estatal que editou a lei:

“Se o cidadão soubesse de antemão que a autoridade, ao tratar com ele, não levará em consideração as regras por ela mesma proclamadas, ele teria um escasso incentivo a obedecê-las. A publicação de regras claramente traz consigo o ‘significado social’ segundo o qual quem faz as regras respeitará as regras que ele mesmo criou.”64

O totalitarismo, como regime contrário ao Estado de direito, coloca-se também fora do

alcance deste standard. Na análise de Hannah Arendt, “após a promulgação das leis de Nuremberg,

verificou-se que os nazistas não tinham o menor respeito sequer pelas suas próprias leis. Em vez

disso, continuou ‘a constante caminhada na direção de setores sempre novos’, de modo que o

objetivo e a alçada da política secreta do Estado, bem como de todas as outras instituições estatais

ou partidárias criadas pelos nazistas, não podiam ser definidas pelas leis e normas que as regiam.”65

3. Os princípios/standards da legalidade como “gramática” do “jogo de linguagem” da legislação.

Para determinar o estatuto teórico dos princípios da legalidade e sua conexão com a

legislação, vamos recorrer aos conceitos de gramática e jogo de linguagem de Wittgentein e ao

conceito de regras constitutivas de John Searle.

61 Friedrich von Hayek: Caminho de servidão, p. 89. 62 ML, p. 204. 63

ML, p. 212. 64 ML, p. 217. 65 Hannah Arendt: Origens do totalitarismo, p. 444.

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76

No parágrafo 23 das suas Investigações Filosóficas, Wittgenstein afirma o seguinte:

“O termo ‘jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar uma linguagem é uma parte de uma

atividade ou de uma forma de vida. Imagine a multiplicidade dos jogos de linguagem por meio destes

exemplos e outros:

- Comandar, e agir segundo comandos (...);

- Produzir um objeto segundo uma descrição (desenho) (...);

- Relatar um acontecimento (...);

- Expor uma hipótese e prová-la (...);

- Inventar uma história; ler.

- Representação teatral (...);

- Pedir, agradecer, maldizer, saudar, rezar.”

Como salientam os comentadores, “os jogos de linguagem são estruturados por regras.”66

De fato, o ponto de partida para a analogia entre jogo e linguagem é que ambas são atividades

guiadas por regras: “Assim como um jogo, a linguagem possui regras constitutivas, as regras da

gramática (....). As regras gramaticais determinam aquilo que é correto ou faz sentido, definindo,

desta forma, o jogo/linguagem.”67

O sentido de uma expressão ou de um lance no jogo de

linguagem não repousa na intenção do jogador, mas nas regras gramaticais do jogo. Daí as

expressões fortes de Wittgenstein: “a essência se expressa na gramática”68

e ainda, “que espécie

de objeto alguma coisa é, é dito pela gramática.”69

De sua parte, John Searle segue Wittgenstein ao afirmar que “Falar uma linguagem é tomar

parte em uma forma de conduta governada por regras”.70

Para esclarecer a relevância das regras

para a linguagem, Searle propõe a distinção entre regras regulativas e constitutivas. As regras

regulativas governam “uma atividade preexistente, uma atividade cuja existência é logicamente

independente das regras.”71

Assim, as regras de etiqueta à mesa regulam a atividade de alimentar-

se, que é anterior e independente das referidas regras.

66 Gunter Gebauer: O pensamento antropológico de Wittgenstein, p. 94. 67 Hans-Johann Glock: Dicionário Wittgenstein, p. 225. 68 Ludwig Wittgenstein: Investigações Filosóficas, n. 371. 69

Ludwig Wittgenstein: Investigações Filosóficas, n. 373. 70 John Searle: Actos de Habla, p. 50. 71 Idem, op. cit., p. 43.

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Temas de filosofia política e jurídica

77

Por sua vez, as regras constitutivas “criam ou definem novas formas de conduta”.72

Assim,

por exemplo, “as regras do futebol ou do xadrez não regulam meramente o fato de jogar o futebol

ou xadrez, mas criam, por assim dizer, a possibilidade mesma de jogar tais jogos.”73

A regra do

xeque-mate no xadrez não “regula” o xeque-mate, mas o define: sem o auxílio desta regra, seria

impossível descrever uma jogada como “xeque-mate”.

Apropriando-nos dos conceitos expostos de Wittgenstein e Searle, podemos considerar a

atividade de legislar como um “jogo de linguagem” e os “princípios legalidade” como a gramática -

conjunto de regras constitutivas - deste jogo.

No jogo de linguagem da legislação, trata-se de estabelecer proposições gerais, as normas

legais, para ordenar o comportamento em uma determinada comunidade. Há dois jogadores

“típicos”: o legislador e o cidadão. Os oito princípios da legalidade formam o conjunto de regras

regras constitutivas (gramática) da legislação. A generalidade, prospectividade, possibilidade, etc.

definem ou constituem o jogo de linguagem da legislação. Um lance deste jogo de linguagem, ou

seja, uma proposição que o legislador pretende atribuir o sentido de “lei”, só poderá ser

reconhecida como tal se houver correspondência com as regras expressas pelos “princípios da

legalidade”. Uma proposição retroativa, impossível de ser realizada, contraditória, etc. não pode ser

reconhecida como lei, pois as regras que definem uma proposição como “lei” não foram seguidas. A

gramática – regras constitutivas – do jogo de linguagem da legislação definem o que conta como

“lei” ou, de outro modo, controlam o sentido de lei74

das proposições estabelecidas no interior do

jogo. Na expressão de Fuller, a gramática expressa a “lógica interna” do jogo de linguagem da

legislação.

Ora, como vimos acima, Fuller constatou “que os sistemas jurídicos mostram uma certa

semelhança em sociedades que são totalmente diversas. É porque a lei é um empreendimento

com um propósito, que ele mostra constantes estruturais (structural constancies) que o teórico do

direito pode descobrir e tratar como uniformidades que estão dadas factualmente.”75 Estas

“constantes estruturais” que chamamos “regras constitutivas” apresentam-se universalmente,

porque a humanidade, diante de necessidades do convívio que se apresentam como universais,

tende a desenvolver esquemas de comportamento ou instituições semelhantes. Wittgenstein

72 Idem, op. cit., p. 42. 73

Idem, op. cit., p. 43. 74 Devo esta observação a José Reinaldo de Lima Lopes. 75 ML, p. 151.

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denomina esse fenômeno de uma concordância prática universal de “comportamento comum da

humanidade”.76

4. O jusnaturalismo institucional de Tomás de Aquino: o jus gentium.

O jusnaturalismo institucional dirige-se a descrever as instituições estabelecidas pelo

“comportamento comum da humanidade”, ou seja, ele tem por objeto aquilo que Tomás de

Aquino, entre outros, chamava de jus gentium (direito das gentes). Este faz parte do direito

positivo, mas de um modo universal, ao contrário do direito civil (jus civile), cuja positividade se

limita à esfera local.

Tomás, no Tratado da Justiça, assume a definição de jus gentium de Gaio: “aquilo que a

razão natural estabelece entre todos os homens e todas as nações o observam, se chama o direito

das gentes (jus gentium).”77

Ele se contrapõe ao jus civile, o direito positivo específico a cada povo.

No seu Comentário à Ética a Nicômaco, Tomás precisa esta noção, estabelecendo seu fundamento

na natureza racional do ser humano e fornecendo exemplos: “Ao direito que se deriva da inclinação

própria da natureza humana, enquanto o homem é animal racional, os juristas o chamam jus

gentium, porque todos os povos o praticam como: os pactos devem cumprir-se, os embaixadores

devem ser protegidos, etc.”78

. No Tratado da Lei, Tomás indica o outro fundamento do direito das

gentes, a natureza social do ser humano, e agrega outros exemplos: “Pertencem ao direito das

gentes aquelas coisas que derivam da lei da natureza como conclusões dos princípios, como as

compras justas, as vendas e outras coisas semelhantes, sem as quais os homens não podem

conviver uns com os outros, o que é da lei da natureza, porque o homem é naturalmente animal

social, como se prova no Livro I da Política”.79

Em síntese: há instituições que se apresentam em todos os lugares. Em segundo, lugar,

estas instituições são respostas universais – dadas pela razão - a problemas universais – postos pelo

convívio. E por fim, sua universalidade repousa sobre dois predicados da natureza humana: a

racionalidade – “o homem é animal racional” e a sociabilidade – “o homem é animal social”.

76 Ludwig Wittgenstein: Investigações Filosóficas, n. 206. 77

S.T. II-II, q. 57, a.2. 78 Tomás de Aquino: Comentário à Ética a Nicômaco V, L. XII, n. 724) 79 S.T. I-II, q. 95, a.4.

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Temas de filosofia política e jurídica

79

Segundo Tomás, a razão natural estabelece, em todos os lugares, procedimentos e

instituições para possibilitar a coordenação social, pois sem isso “os homens não podem conviver

uns com os outros”. Entre essas instituições encontram-se o contrato (compra e venda), a

proteção aos embaixadores, a propriedade,80

a lei. Cada uma dessas instituições possui uma “lógica

interna”, uma “gramática” que ordena a conduta humana nas várias esferas da existência social.

Assim, quanto Tomás exemplifica o jus gentium com a frase “os pactos devem ser respeitados”

simplesmente está enunciando a regra constitutiva por excelência do jogo de linguagem do

contrato. E quando se refere à compra e venda “justa” está indicando a equivalência da justiça

comutativa como mais uma regra constitutiva do contrato. As variações nos direitos positivos dos

contratos se dão com base em regras regulativas locais. O conceito de contrato não é posto pelo

legislador, mas pressuposto por ele.

Pode-se afirmar que jusnaturalismo institucionalista tem por objeto o jus gentium, o

conjunto de jogos de linguagem referentes à ordem das relações humanas, como a propriedade e

os contratos nas relações privadas, a lei nas relações públicas, os embaixadores nas relações

internacionais. A “semelhança de família” entre os jogos de linguagem das diversas comunidades se

deve à posse de uma natureza humana comum, que se expressa em uma prática institucional

comum. Segundo um comentarista de Wittgenstein: “O ‘comportamento comum da humanidade’

pode ser entendido assim como um termo (...) que designa uma essência comum aos seres

humanos, a sua natureza, à qual nos referimos, quando queremos tornar compreensível o fato de

que somos capazes de chegar a um entendimento. Essa natureza, da qual Wittgenstein foi tão

relutante em falar (...) revela o ser humano como ser social, como zoon politikon – através das

épocas, outro nome para ‘comportamento comum da humanidade.”81

O comportamento comum da humanidade funda o direito natural institucional de Fuller e o

jus gentium de Tomás. Ele revela para ambos, características do ser humano que sustentam a

validade destas instituições: liberdade e sociabilidade para Fuller, racionalidade e sociabilidade para

Tomás.

80 “A divisão das posses não vem do direito natural, porém da convenção humana, dependendo, portanto, do direito positivo, como foi dito acima. Assim, a propriedade não é contra o direito natural, mas a ele se ajunta, por um trabalho da razão humana.” Tomás de Aquino: S. T. II-II, q. 66, a.2 81 Rudolf Haller: Wittgenstein e a filosofia austríaca: questões, pp. 130-131.

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Legalidade e Direito Natural Institucional- Luis Fernando Barzotto

80

Conclusão

O tratamento dado por Fuller à questão da legalidade é o principal intento do século XX de

pensar a questão das instituições no interior de uma perspectiva jusnaturalista. A sua obra mostra a

necessidade da tradição jusnaturalista de desenvolver-se como tradição de pesquisa em uma dupla

direção.

Em primeiro lugar, ao afirmar a existência de um direito natural substantivo, centrado na

idéia de “comunicação”, Fuller retoma as várias investigações feitas sobre a lei natural, os direitos

naturais ou os primeiros princípios da razão prática da tradição jusnaturalista. O direito natural

substantivo contém os padrões ético-materiais de correção das ações.

Em segundo lugar, e essa é a sua contribuição mais relevante, ele afirma a existência de um

direito natural institucional ou procedimental, formado pelos standards, princípios ou regras

constitutivas de nossas instituições. As instituições são as condições de possibilidade da

comunicação intersubjetiva, e o são mais intensamente ainda na presente situação das sociedades

ocidentais, intensamente plurais do ponto de vista dos valores substantivos. Sua natureza

formal/procedimental cria as condições de possibilidade para que pessoas com concepções ético-

materiais distintas possam conviver. As instituições são uma resposta às “circunstâncias da

política”, que se apresentam quando “há uma necessidade, percebida pelos membros de um

determinado grupo de contar com um marco, decisão ou curso de ação comuns sobre certa

questão [ordem], ainda e apesar dos desacordos sobre qual deveria ser dito marco, decisão ou ação

[pluralismo].”82

Essa dupla tarefa do jusnaturalismo como tradição de pesquisa coincide com as duas tarefas

que Jeremy Waldron atribui à filosofia política na sua obra “Direito e desacordos”83

.

A primeira tarefa seria desenvolver uma teoria material dos valores, bens, direitos ou da

justiça. Como vimos, a tradição jusnaturalista desenvolveu esta tarefa na forma de uma teoria da

lei natural ou dos direitos naturais.

A segunda tarefa seria refletir “sobre os propósitos e os processos pelos quais as

comunidades estabelecem um conjunto único de instituições, inclusive diante dos desacordos (...)

82 Jeremy Waldron: Derecho y desacuerdos, p. 123. 83 Idem, op. cit., p. 210.

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Temas de filosofia política e jurídica

81

acerca dos direitos e da justiça.”84

O jusnaturalismo clássico, especialmente em Tomás de Aquino,

desenvolveu isso nas suas reflexões sobre o jus gentium. A lei, os contratos e as embaixadas são

instituições/procedimentos para levar a cabo uma ação comum, apesar e por causa dos desacordos

sobre o conteúdo desta ação comum. Como exemplo da necessidade das instituições do direito

positivo para permitir a ordem no contexto pluralista da existência humana, veja-se a seguinte

afirmação de Tomás acerca da lei: “É necessário que na cidade haja uma diversidade de homens

[pluralidade], tornando-se ela una e comum [ordem] por certa disciplina legal retamente

estabelecida.”85

O jusnaturalismo, como um projeto teórico que pretende levar a sério tanto a essência

humana comum (natureza humana - direito natural substantivo) como a existência humana

marcada pela diferença e pelo conflito (condição humana – direito natural institucional), necessita

investigar a natureza humana “em situação”, isto é, nas circunstâncias da política. Estas exigem as

instituições do direito positivo.

No tocante ao projeto de pensar as instituições e procedimentos do direito positivo como

tendo seu fundamento na natureza humana e como resposta à condição humana, Lon Fuller pode

ser considerado um dos destinatários da seguinte observação de Waldron: “As melhores

considerações sobre a natureza e a importância do direito positivo vieram dos jusnaturalistas”.86

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84

Idem, op. cit., p. 10. 85 Tomás de Aquino: Comentário à Política II, 5, 129. 86 Waldron, “Torture, suicide and determinatio”, p. 1.

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Legalidade e Direito Natural Institucional- Luis Fernando Barzotto

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância- um esquema de

crítica conceitual.1

Ronaldo Porto Macedo Junior Professor da Faculdade de Direito, USP e FGV- São Paulo.

Resumo: O trabalho apresenta um esquema conceitual da crítica formulada por Dworkin ao convencionalismo jurídico e seus impactos para a correta descrição do conceito de direito e da compreensão da natureza dos nossos desacordos jurídicos. Depois de definir os significados de convenção, convencionalismo e do convencionalismo jurídico é apresentada a sua relevância para a determinação de uma concepção positivista de direito apoiada na tese de que este de funda exclusivamente em fontes diretamente sociais. Em seguida, são apresentados casos paradigmáticos de desacordos teóricos que não são adequadamente explicados por uma teoria jurídica comprometida com o convencionalismo jurídico. Com base neles é apresentado um esquema conceitual geral e provisório para a compreensão da critica que Dworkin formula ao convencionalismo jurídico, salientando-se como ela se fundamenta numa análise da gramática lógica pressuposta em desacordos teóricos comuns em nossa prática jurídica. Por fim, o texto indica que o convencionalismo jurídico não foi capaz de responder ao desafio dworkiniano na medida em que não considerou corretamente o tipo de desacordo teórico que estava em questão em casos centrais das práticas jurídicas.

Palavras- Chave: Positivismo Jurídico, Convencionalismo Jurídico, Interpretativismo.

Abstract: The essay presents a conceptual scheme of the criticism made by Ronald Dworkin to legal conventionalism and its relevance for an accurate description of the law and the correct understanding of the nature of legal disagreement. After defining the concepts of convention, conventionalism and legal conventionalism it shows its connection to a positivist conception of law based on the exclusive social grounds of law. It offers shows how some paradigmatic cases of theoretical disagreements are not adequately explained by a legal theory committed with legal conventionalism. Based on these cases the text offers a general and preliminary conceptual scheme to understand Dworkin’s criticism of legal conventionalism. Dworkin’s approach is grounded on the analysis of the logical grammar presupposed by theoretical disagreement common in ordinary legal practice. Finally the essay points to the fact that legal conventionalism failed to cope with the Dworkinian challenge since it could not rightly take in consideration the kind of theoretical disagreements that are at stake in pivotal cases of legal practice.

Keywords: Legal Positivism, Legal Conventionalism, Interpretativism.

1 Este texto é parte introdutória de um livro chamado O direito em desacordo: o debate entre o interpretativismo e o

convencionalismo jurídico, ainda inédito. Neste livro analiso com detalhes as variantes e sofisticadas formulações do convencionalismo jurídico, notadamente nas versões de Andrei Marmor e Jules Coleman, bem com as reações a elas.

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância – Ronaldo Porto Macedo Junior

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I - O convencionalismo jurídico e o desafio dworkiniano

A teoria do direito é um campo do conhecimento humano marcado por profundos

desacordos. Uma parcela muito significativa dos trabalhos mais expressivos nessa área se dedica a

reapreciar algumas perguntas clássicas, como “o que é o direito?”, “qual é sua a natureza?” e “qual

é a natureza da teoria sobre o direito?”. Tais questões indicam que uma das dimensões de nossos

desacordos jurídicos se refere aos desacordos sobre o próprio conceito de direito.

Este trabalho visa analisar um capítulo especialmente importante da história do debate

teórico em tornos dessas questões que dominou os meios acadêmicos anglo-saxão e continental

europeu nas últimas décadas. Ele trata das reações que alguns trabalhos teóricos — e, de modo

muito particular, a obra de Ronald Dworkin — provocaram entre os defensores do positivismo

jurídico, em especial os defensores da tese das fontes sociais do direito2. Tais autores, também

denominados de positivistas metodológicos, procuraram, apresentando uma teoria

convencionalista do direito, responder àquilo que neste trabalho denomino de desafio dworkiniano.

Esse desafio consistiu fundamentalmente na crítica das explicações do positivismo hartiano sobre

como a regra de reconhecimento se torna normativa e gera obrigações para as autoridades às quais

ela serve de fundamento do direito e sobre a natureza das controvérsias e dos desacordos acerca

dos fundamentos do direito nas práticas jurídicas argumentativas comuns em nossos tribunais.

Esses tipos de desacordos teóricos (sobre os fundamentos do direito) demarcam uma importante

dimensão de nossos desacordos jurídicos. Isso faz com que nossos desacordos sobre o conceito de

direito influenciem nossos desacordos no direito.

O trabalho visa, em síntese, mostrar em que consistem os principais elementos da crítica de

Dworkin ao convencionalismo, bem como as respostas a ela oferecidas pelos convencionalistas.

Procuro elaborar um esquema conceitual geral comum aos convencionalistas. Não me detendo,

neste artigo, a uma análise dos pontos de divergência entre as múltiplas variantes

convencionalistas. Ainda que as respostas convencionalistas não esgotem as reações às críticas de

2 Eu assim as denomino porquanto muitas críticas ao convencionalismo não foram formuladas apenas por Ronald Dworkin, mas também por diversos teóricos que participaram desse debate Sobre o assunto, veja-se, dentro outros. Cfr. COLEMAN, Jules (Ed.). Hart’s postscript: essays on the postscript to “The concept of law”. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 59-98; ADLER, Matthew; HIMMA, Kenneth (Eds.). The rule of recognition and the U.S. Constitution. Oxford: Oxford University Press, 2009. Compartilham as críticas ao convencionalismo também GREENBERG, Mark. How facts make law. In: HERSHOVITZ, Scott. Exploring law’s empire: the jurisprudence of Ronald Dworkin. New York: Oxford University Press, 2006. p. 225-264;

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Temas de filosofia política e jurídica

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Dworkin, visto que muitos positivistas como Joseph Raz e Julie Dickson3 seguiram outras

possibilidades teóricas, é certo que elas ocupam um lugar central no debate contemporâneo e são

dominantes entre os positivistas jurídicos. Pretendo mostrar também os motivos pelos quais, em

minha visão, os esforços convencionalistas fracassam. Acredito que o seu fracasso é triplo. Em

primeiro lugar, o convencionalismo jurídico não oferece uma teoria ajustada às práticas

interpretativas e de decisão judicial. Ao analisar as práticas jurídicas, ele assume que há convenções

e nega arbitrariamente existirem razões e justificativas em situações em que muitas vezes as

convenções inexistem. Ele não consegue explicar o motivo pelo qual os juízes continuam

procurando as melhores justificações, mesmo quando elas não são aparentes. Em segundo lugar, a

estratégia de procurar convenções mais abstratas ou profundas para o convencionalismo (por

exemplo: Andrei Marmor) ou de insistir na ideia de que razões substantivas morais podem

contingentemente se tornar fundamentos do direito (por exemplo: Jules Coleman) exige o retorno

da interpretação e, com ele, uma negação do convencionalismo positivista. Por fim, o

convencionalismo também fracassa por não apresentar uma teoria convincente sobre os

fundamentos da aceitação do uso da coerção e sobre o modo como se formam e de que tipo são as

obrigações dos juízes perante o direito. Em outras palavras, não apresenta uma teoria plausível

sobre o dever de obedecer à autoridade. Enfim, o convencionalismo jurídico não responde

satisfatoriamente ao desafio dworkiniano.

O texto segue a seguinte estrutura. Em primeiro lugar procuro determinar os significados de

convenção, convencionalismo e do convencionalismo jurídico. Em seguida, mostro a relevância

destes conceitos para a determinação de uma concepção positivista de direito baseada na tese de

que este de funda exclusivamente em fontes diretamente sociais. Em terceiro lugar, apresento

como os desacordos argumentativos recorrentes nas práticas jurídicas são essenciais para a uma

correta descrição que é o direito. Em quarto lugar, apresento casos paradigmáticos de desacordos

teóricos que não são adequadamente explicados por uma teoria jurídica comprometida com o

convencionalismo jurídico. Em quinto lugar, formulo um esquema conceitual geral e provisório para

a compreensão da critica que Dworkin formula ao convencionalismo jurídico, salientando como ela

se baseia numa análise sobre a gramática lógica pressuposta em desacordos teóricos comuns em

nossa pratica jurídica. Argumento que o direito, contrariamente ao que defendem os teóricos

convencionalistas, não se assemelha a um jogo de xadrez, mas antes a uma prática de disputa

3 Cfr. RAZ, Joseph. The authority of law. Oxford: Clarendon, 1979 e DICKSON, Julie. Is the rule of recognition really a conventional rule? Oxford Journal of Legal Studies, Oxford, v. 27, n. 3, p. 373-402, 2007.

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância – Ronaldo Porto Macedo Junior

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argumentativa sobre o significado normativo de cortesia. Nesta última, o significado dos conceitos

não se determina como querem as explicações convencionalistas, mas ante envolvem uma reflexão

reconstrutiva sobre o próprio valor posto em disputa. Por fim, indico que o convencionalismo

jurídico não foi capaz de responder ao desafio dworkiniano na medida em que desconsiderou o tipo

de desacordo teórico que estava em questão em casos centrais das práticas jurídicas.

O que devemos compreender por convencionalismo jurídico? Diversos filósofos já

salientaram que o conceito de convencionalismo é bastante controvertido e ambíguo4. Isso ocorre,

em primeiro lugar, porque ele assume significados técnicos distintos no âmbito de diversas

disciplinas, como a economia, a sociologia, a filosofia e a teoria do direito5. Em segundo lugar,

mesmo dentro da teoria do direito esse conceito assume distintas definições, sendo muitas vezes

difícil identificar se as críticas que um autor dirige a outro compartilham do mesmo significado dado

pelo autor criticado. Por uma razão de prudência metodológica, apresentarei aqui o significado que

atribuo a esse conceito. Adoto a definição de Gerald Postema, para quem “convenções são normas

sociais praticadas cujo funcionamento como normas depende de elas serem praticadas”6.

A ideia de convenção aparece de diversas formas dentro da teoria do direito. Ela se

constituía num conceito central para a teoria do direito inglesa do início do século XX para a

compreensão da ideia de fonte do direito, em particular para o direito internacional. Em segundo

lugar, em períodos mais recentes a convenção retomou sua importância no âmbito do direito

4 BEN-MENAHEM, Yemima. Conventionalism: from Poincaré to Quine. New York: Cambridge University Press, 2006; RESCORLA, Michael. Convention. In: ZALTA , Edward N. (Ed.). The Stanford encyclopedia of philosophy. Spring 2013 edition. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/archives/spr2011/entries/convention/>. Acesso em: 7 jul. 2013. Nelson Goodman observa que: “The terms ‘convention’ and ‘conventional’ are flagrantly and intricately ambiguous. On the one hand, the conventional is the ordinary, the usual, the traditional, the orthodox as against the novel, the deviant, the unexpected, the heterodox. On the other hand, the conventional is the artificial, the invented, the optional, as against the natural, the fundamental, the mandatory.” GOODMAN, Nelson. Just the facts, ma’am!. In: KRAUSZ, Michael (Ed.). Relativism: interpretation and confrontation. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1989. p. 80-85, p. 80. BEN-MENAHEM, Yemima. Explanation and description: Wittgenstein on convention. Synthese, New York, v. 115, n. 1, p. 99-130, 1998. Uma discussão do convencionalismo, na interpretação de Wittgenstein, e do direito pode ser encontrada (ainda que não acompanhe a autora em muitos aspectos) em NARVÁEZ, Maribel. Wittgenstein y la teoría del derecho: una senda para el convencionalismo jurídico. Madrid; Barcelona: Marcial Pons, 2004 e SEBOK, Anthony J. Finding Wittgenstein at the core of the rule of recognition. Southern Methodist University Law Review, Dallas, v. 52, p. 75-110, Winter 1999. 5 Cfr. RESCORLA, Michael, 2013, p. 2. 6 POSTEMA, Gerald. Legal philosophy in the twentieth century: the common law world. New York: Springer, 2011a. (A treatise of legal philosophy and general jurisprudence, v. 11), p. 484-485, tradução minha. No original: “conventions are practiced social norms the functioning of which as norms depends on their being practiced”. Com essa definição, Gerald Postema procura “to exclude those norms that may apply to a population but are not practiced by them and those rules people tend to follow ‘for their own part only’, which Dworkin called ‘rules of concurrent morality’”.

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Temas de filosofia política e jurídica

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privado, em particular para os estudos de responsabilidade civil e direito comercial7. Por fim, o

tema ganhou importância no âmbito dos debates sobre objetividade na interpretação, visto que

para alguns importantes teóricos do mundo anglo-saxão, como Owen Fiss e Stanley Fish, essa

objetividade seria diretamente dependente das convenções existentes no âmbito da comunidade

dos intérpretes8. Essas abordagens do tema convenções e direito, contudo, se reportam à

importância das convenções no direito e não dizem respeito, senão indiretamente, ao tema central

deste trabalho, que trata do direito como convenção (ou do fundamento convencionalista do

direito). Segundo essa visão, o direito é um conjunto de regras sociais que funcionam como

soluções para problemas de coordenação e cooperação social ou que têm o seu funcionamento

dependente das práticas sociais convergentes, de onde extraem sua normatividade. Postema

denomina esse tipo de convencionalismo de convencionalismo fundacional (foundational

conventionalism)9. Neste trabalho eu o designarei simplesmente como convencionalismo jurídico. É

sobre ele que dirigirei prioritariamente a minha atenção, ainda que seja possível identificar uma

afinidade importante entre o convencionalismo epistêmico (para me referir a Owen Fiss e Stanley

Fish) e o convencionalismo fundacional. Essa definição se distingue, desde logo, daquilo que muitas

vezes também é chamado por filósofos da linguagem de convencionalismo, a saber, a tese

semântica crua (crude semantics) segundo a qual proposições sobre o significado da palavra

“direito”, bem como sobre o significado do direito, são verdadeiras em razão daquilo que as

pessoas acreditam ser o direito.

O convencionalismo jurídico consiste na tese segundo a qual a natureza do direito e a sua

força normativa estão fundadas numa prática social. Um bom exemplo desta tese é a teoria

hartiana do direito, segundo a qual o direito está fundado na prática jurídica dos juízes (officials)10.

7 Cfr. HETCHER, Steven A. Norms in a wired world. Cambridge: Cambridge University Press, 2004; KELLEY, Patrick J. Who decides?: community safety conventions at the heart of tort liability. Cleveland State Law Review, Cleveland, USA, v. 38, p. 315-390, 1990; TRAKMAN, Leon E. The law merchant: the evolution of commercial law. Littleton, USA: Fred B. Rothman, 1983, apud POSTEMA, Gerald, Legal philosophy in the twentieth century: the common law world, 2011a, p. 484. 8 FISS, Owen M. Objectivity and interpretation. Faculty Scholarship Series, paper 1217, 1982. Disponível em:

<http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/1217>. Acesso em: 6 set. 2012. Tradução brasileira em FISS, Owen M. Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. Tradução coordenada por Carlos Alberto de Salles. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004; FISS, Owen M. Conventionalism. Faculty Scholarship Series, paper 1214, 1985. Disponível em: <http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/1214>. Acesso em: 3 set. 2012. 9 POSTEMA, Gerald, Legal philosophy in the twentieth century: the common law world, 2011a, p. 484. 10 É importante destacar que alguns teóricos apresentam argumentos distinguindo da tese das fontes sociais do direito o convencionalismo, muito embora reconheçam que essa separação não é feita pelo próprio Hart nem é reconhecida por Dworkin na crítica que dirige ao convencionalismo. ZIPURSKY, Benjamin, 2001 e 2013. Postema chama a atenção para o fato de que seria possível também identificar uma outra tradição de convencionalismo fundacional na tradição

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância – Ronaldo Porto Macedo Junior

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É interessante notar que H. L. A. Hart somente vem a acolher de forma clara e explícita um

fundamento convencionalista para a sua teoria do direito no Postscript11. Essa sua “virada

convencionalista” está relacionada historicamente às críticas que lhe foram feitas por Dworkin,

talvez o primeiro crítico a acentuar a vulnerabilidade de sua teoria do direito tal como exposta em

O conceito do direito, em razão da circularidade envolvida na teoria da obrigação jurídica que Hart

apresentara. Ela estaria sintetizada na questão central (e mortal) que formula Dworkin já nas

primeiras páginas de “Modelo de regras I” e repetida em O império do direito acerca do

fundamento das obrigações dos juízes de obedecer ao direito12. O que significa e de onde nasce a

obrigação dos juízes de aplicar o direito? Colocando em outros termos, essa circularidade poderia

ser enunciada na constatação de que “a autoridade jurídica dos atos ou das instituições baseia-se

em regras jurídicas que a conferem, mas essas regras jurídicas são capazes de conferir autoridade

somente se eles já a têm”13. Essa crítica foi reconhecida posteriormente não apenas pelo próprio

Hart (que por esse mesmo motivo procura dar-lhe uma resposta convencionalista), como por

outros críticos contemporâneos14.

Mas por que motivo seria relevante apresentar os fundamentos do convencionalismo, bem

como as razões de seu insucesso? Qual é o interesse em empreender esse esforço teórico? Para

responder, vale a pena ampliar ainda mais o escopo e a abrangência dessa pergunta. Afinal, por que

a teoria do direito é relevante?

teórico-jurídica anglo-saxã, associada à obra de Lon Fuller. Esta, contudo, não será aqui analisada, tendo em vista os objetivos mais analíticos do que históricos do presente trabalho. “Within the common law tradition, represented in the recent century by the work of Lon Fuller a wider foundational conventionalism has also been available.” POSTEMA, Gerald. Philosophy of the common law. In: COLEMAN, Jules; SHAPIRO, Scott (Eds.). The Oxford handbook of jurisprudence and philosophy of law. Oxford: Oxford University Press, 2011b. p. 588-622, p. 609-16; Ver também POSTEMA, Gerald. Conformity, custom, and congruence: rethinking the efficacy of law. In: KRAMER, Matthew; GRANT, Claire; COLBORN, Ben; HATZISTAVROU, Antony. The legacy of Hart. Oxford: Oxford University Press. 2008. p. 45-65. 11 Esse ponto é enfaticamente defendido também por DICKSON, Julie. Is the rule of recognition really a conventional rule? Oxford Journal of Legal Studies, Oxford, v. 27, n. 3, p. 373-402, 2007. 12

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28-29; DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge, USA: Harvard University Press, 1977, p. 17; DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge, USA: Belknap Press, 1986, p. 3. “Since it matters in these different ways how judges decide cases, it also matters what they think the law is, and when they disagree about this, it matters what kind of disagreement they are having. Is there a mystery about that?” 13

POSTEMA, Gerald, Legal philosophy in the twentieth century: the common law world, 2011a, p. 485, tradução minha. No original: “the legal authority of acts or institutions rests on legal rules that confer it, but those legal rules are able to confer authority only if they already have it”. 14 GREEN, Leslie. Positivism and conventionalism. Canadian Journal of Law and Jurisprudence, v. 12, p. 35-52, 1999, p. 36; SHAPIRO, Scott. On Hart’s way out. In: COLEMAN, Jules (Ed.). Hart’s Postscript: essays on the postscript to “The concept of law”. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 149-191; MARMOR, Andrei. How law is like chess. Legal Theory, Oxford, v. 12, p. 347-371, 2006; “legal authority is made possible by a specific kind of conventional social practice.” COLEMAN, Jules. The practice of principle: in defense of a pragmatist approach to legal theory. Oxford: Oxford University, 2001b, p. xvii; SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge, USA: Harvard University Press, 2011, p. 57 et seq.

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Temas de filosofia política e jurídica

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Para que serve a teoria do direito? Essa pergunta básica tem sido formulada há séculos por

diversos filósofos e pensadores do direito. A pergunta é, num certo sentido, trivial, visto que

mesmo aqueles que expressam má vontade com os exageros das sofisticações conceituais

reconhecem que algum tipo de sistematização do conhecimento é relevante. Ademais, diversos

outros campos do saber também fizeram da pergunta sobre a sua natureza e sua utilidade uma

questão básica. A pergunta, portanto, não é extravagante. A filosofia, de maneira particular, parece

ter feito de si mesma o seu primeiro problema filosófico.

As respostas, entretanto, estão longe de ser triviais. É possível destacar dois grandes grupos

de respostas a essa pergunta: aquelas que discutem a sua utilidade teórica e as que avaliam a sua

utilidade prática. A utilidade teórica da teoria do direito é objeto de reflexão de muitos pensadores.

Vários deles sugerem, grosso modo, que o serviço que uma teoria do direito pode prestar ao nosso

conhecimento consiste em oferecer descrição correta e verdadeira do que é o direito15. Aqui, a

descrição poderia ser pensada, por exemplo, como uma tentativa de oferecer uma ciência

positivista do direito16. Nessa acepção, uma teoria do direito é útil na medida em que permite

conhecer o que caracteriza a prática social usualmente descrita como direito, a exemplo do modo

como um sociólogo poderia descrever o que é a prática do futebol ou a realização de uma greve. A

utilidade teórica seria medida pela capacidade de oferecer uma descrição correta e verdadeira

dessa prática.

É possível também imaginar qual seria a utilidade prática da teoria do direito. Nesse caso,

seria possível pensar nos ganhos que o conhecimento teórico do direito poderia trazer para nossas

ações práticas no mundo. Um exemplo do tipo de resposta que poderíamos dar a essa pergunta

seria: a teoria do direito funciona como uma espécie de laboratório conceitual nutrindo a

dogmática jurídica de categorias úteis para a resolução de conflitos jurídicos. A teoria do direito,

nesse caso, manteria com a dogmática jurídica (aqui entendida como um tipo de saber tecnológico)

15 Evidentemente poderão existir inúmeras controvérsias sobre o conceito de verdade e de correção que devem ser utilizados por uma teoria do direito. Discuti alguns de seus problemas e algumas de suas dimensões em MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 66 et seq. Uma análise rica e sintética do tema é também feita por MICHELON JÚNIOR, Cláudio. Aceitação e objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 60 et seq. Adiante analisarei como o conceito de verdade é também central para compreender a articulação entre as importâncias teórica e prática da teoria do direito. 16 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 1.

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância – Ronaldo Porto Macedo Junior

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uma relação análoga àquela estabelecida entre a física teórica e a engenharia civil17. A primeira

seria útil na formulação dos conceitos centrais utilizados pela tecnologia de construção. O vínculo

entre a teoria e a prática, assim, se estabeleceria de forma indireta, na medida em que seria

importante para a elaboração de sistemas de pensamento úteis para nossas ações práticas.

É possível oferecer também um outro tipo de resposta. Poderíamos perguntar se são

relevantes para a prática jurídica as respostas que juristas dão à pergunta teórica “o que é o

direito?”. Caso positiva, a resposta nos indicaria a existência de uma relação direta entre a teoria do

direito e a prática jurídica. O tema é controvertido, em especial entre os teóricos do direito.

Embora seja plausível imaginar que o senso comum tenda a considerar o conhecimento teórico do

direito altamente relevante para a prática jurídica, muitos filósofos do direito têm questionado, ao

menos parcialmente, tal evidência. Richard Posner, por exemplo, tem produzido diversos artigos

apontando para os limites da utilidade das preocupações teórico-jurídicas para os juristas18. Por

razões parecidas, Joseph Raz também tem salientado que o interesse da teoria do direito para a

prática jurídica seria evidente apenas num nível mais básico e elementar19.

Ronald Dworkin e outros procuraram mostrar que a resposta que damos à pergunta “o que

é o direito?” é fundamental em nossas práticas jurídicas centrais. Para ele, muitos dos desacordos

que encontrarmos nas práticas argumentativas típicas de nossos tribunais envolvem o que ele

denomina de desacordos teóricos, isto é, desacordos entre proposições jurídicas cujo valor de

verdade depende do significado atribuído ao direito. Esse tipo de desacordo é importante tanto do

17 Cfr. LUHMANN, Niklas. Sistema jurídico y dogmatica jurídica. Madrid: Centro di Estúdios Constitucionales, 1983; FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003. VIEHWEG, Theodor. Tópica y filosofía del derecho. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 1997. 18 Desenvolvo esse argumento, bem como apresento uma leitura da virada pragmática de Richard Posner, em MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Posner e a análise econômica do direito: da rigidez neoclássica ao pragmatismo frouxo. In: PÁDUA LIMA, Maria Lucia (Org.). Direito e economia: 30 anos de Brasil. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 260-281. v. 1. Ver também a bibliografia lá citada, especialmente POSNER, Richard. A reply to some recent criticisms of the efficiency theory of the common law. Hofstra Law Review, Hempstead, USA, v. 9, p. 775-794, 1980-1981; POSNER, Richard. Against constitutional theory. New York University Law Review, New York, v. 73, p. 1-22, Apr. 1998a; POSNER, Richard. Conceptions of legal theory: a response to Ronald Dworkin. Arizona State Law Journal, Tempe, USA, v. 29, p. 377-388, 1997; POSNER, Richard. Law, pragmatism and democracy. Cambridge, USA: Harvard University Press, 2005; POSNER, Richard. Pragmatic adjudication. Cardozo Law Review, New York, v. 18, p. 1-20, 1996-1997. As principais críticas de Dworkin a Posner no tocante a sua “virada pragmática” estão em DWORKIN, Ronald. In praise of theory. In: DWORKIN, Ronald. Justice in robes. Cambridge, USA: Harvard University Press, 2006c. p. 49-74. Ver ainda POSNER, Richard, 1998a; POSNER, Richard, 1997; DWORKIN, Ronald. Darwin’s new bulldog. In: DWORKIN, Ronald. Justice in robes. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2006a. p. 75-104; POSNER, Richard. The problematics of moral and legal theory. Harvard Law Review, Cambridge, USA, v. 111, p. 1637-1716, 1998b. 19 Cfr. RAZ, Joseph. Two views of the nature of the theory of law: a partial comparison. Legal Theory, Oxford, v. 4, n. 3, p. 249-282, 1998; SHAPIRO, Scott, 2011, p. 368 et seq.

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Temas de filosofia política e jurídica

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ponto de vista prático como do ponto de vista teórico “descritivo” e será objeto de detida análise

neste trabalho.

Mas qual é a estrutura desses desacordos teóricos? Como se expressam? Qual é a sua

natureza? Em primeiro lugar, é importante notar que os desacordos que encontramos na prática do

direito se expressam por argumentos. O direito é, por esse mesmo motivo, essencialmente uma

prática argumentativa. Qualquer descrição do direito que ignorasse essa relevante característica

das práticas que o constituem estaria se afastando significativamente daquilo que socialmente

designamos e reconhecemos como direito. Os advogados, quando atuam em defesa dos seus

representados, buscam apresentar a melhor justificação para seus pleitos perante o Judiciário.

Também os juízes, em seus esforços argumentativos, agem intencionalmente orientados para

apresentar a melhor interpretação do direito e nisso reconhecem a sua obrigação como juízes.

Um exemplo poderá tornar tal ideia mais evidente. Imagine-se um sistema de atribuição de

prêmios, sanções e consequências coercitivas organizado como um sorteio aleatório. Nesse sistema

de distribuição há regras, procedimentos e consequências a serem impostas coercitivamente.

Suponha-se também que num sorteio X a conduta roubar um banco seja escolhida e o resultado

aleatoriamente associado a ela seja “cumprir 12 anos de reclusão”. Tudo parecerá familiar em

relação ao nosso sistema de justiça. Num outro sorteio desse tipo, porém, suponhamos que a

conduta auxiliar uma velha senhora a atravessar a rua seja associada a “cumprir quatro anos de

reclusão”. Ou ainda, que para a conduta não pagar impostos seja associada o recebimento de 100

mil reais. A estranheza que o exemplo suscita se reporta ao fato de que o direito não é apenas um

sistema de regras para atribuição de sanções, prêmios e consequências coercitivas. Ele é um

sistema que exige que tais procedimentos sejam justificados segundo algum esquema plausível de

justiça. É esse esquema que está ausente no exemplo e nos faz ver por que não faria sentido

denominá-lo de sistema jurídico. Um sistema jurídico não pode ser uma loteria de sanções e

recompensas.

Em segundo lugar, é importante também notar que os desacordos se fazem por meio de

proposições jurídicas, isto é, de afirmações ou pretensões sobre o que o direito lhes permite,

garante ou proíbe20. Essas proposições jurídicas, como qualquer outra proposição, são bipolares, ou

20 DWORKIN, Ronald, Law’s empire, 1986, p. 4.

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância – Ronaldo Porto Macedo Junior

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seja, possuem um valor de verdade que pode ser verdadeiro ou falso21. As proposições são, como

destacava Platão no Sofista22, como uma flecha lançada por um arco. Ela pode acertar ou errar o

alvo. Nisso consiste a sua bipolaridade. A proposição jurídica pode ser verdadeira ou falsa e, como

uma flecha, errar ou acertar o alvo. Quais são as condições que permitem que uma proposição

jurídica seja bipolar? Em que condições podemos dizer que uma proposição que afirma um direito é

verdadeira?

Tomemos um exemplo. A proposição jurídica “é verdadeiro que no Brasil os motoristas não

podem trafegar a mais de 300 km/h porque o direito proíbe” tem o valor de verdade verdadeiro.

Isso significa que ela poderia, do ponto de vista lógico, ser falsa. Contudo, ela é verdadeira porque

imaginamos que ela satisfaz as condições de verdade. Podemos imaginar, por exemplo, que a

existência de uma lei válida publicada no Diário Oficial proibindo transitar a mais de 120 km/h nas

rodovias nacionais satisfaz a condição de verdade da proposição. Dworkin denomina essa condição

de verdade das proposições jurídicas de fundamentos do direito (grounds of law)23.

Dworkin destaca também que proposições jurídicas podem expressar desacordos de

variadas espécies. Alguns desacordos podem não se referir aos fundamentos de direito (grounds of

law), mas antes questionar se suas condições estão satisfeitas num caso particular. Desacordos

empíricos são desse tipo. Poderemos, por exemplo, concordar que, se houver uma lei proibindo

trafegar a mais de 120 km/h nas rodovias, então trafegar a 300 Km/h violará o direito. Contudo,

podemos não estar de acordo quanto à existência dessa lei. Alguem poderá entender que tal lei foi

anulada ou revogada. Podemos também, num caso particular, estarmos em desacordo sobre a

velocidade em que trafegava determinado motorista. Esses desacordos empíricos são bastante

comuns na vida dos tribunais e não despertam maiores desafios para a teoria do direito.

Desacordos teóricos, contudo, representam um desafio importante para a teoria do direito. Dois

exemplos indicados por Dworkin em duas diferentes obras auxiliam a compreender as razões.

21

SANTOS, L. H. L. A essência da proposição e a essência do mundo. In: WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 1993; DWORKIN, Ronald. On interpretation and objectivity. In: DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge, USA: Harvard University Press, 1985 p. 167-180; DWORKIN, Ronald. Indeterminacy and law. In: GUEST, Stephen; FREEMAN, Michael (Orgs.). Positivism today. Dartmouth: Dartmouth, 1996. p. 1-11. (Issues in Law and Society Series). 22 PLATÃO. O sofista. In: PLATÃO. Diálogos. São. Paulo: Nova Cultural, 2000; ARISTOTELES. De interpretatione. In: AGIONI, L. (Org.). Ontologia e predicacao em Aristoteles. Tradução de L. Agioni. Campinas: Unicamp, 2000; SANTOS, L. H. L. A harmonia essencial. In: NOVAES, A. (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 437-456. Aristóteles, em De interpretatione, afirma que “nem toda frase é declarativa, mas apenas aquela em que ocorre pretender dizer o verdadeiro e o falso”. ARISTOTELES, 2000, cap. 4, 16b 33. 23 DWORKIN, Ronald, Law’s empire, 1986, p. 4.

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Temas de filosofia política e jurídica

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II - Casos paradigmáticos de desacordo teórico

Scott Shapiro chama a atenção para o fato de que Dworkin, ao escrever O império do

direito, substitui o exemplo paradigmático utilizado para ilustrar o seu argumento acerca das

controvérsias teóricas24. Se nos artigos “Modelo de regras I” e “Modelo de regras II” ele se valera

da análise do famoso caso Elmer25, no qual se discutia a validade de um testamento feito em favor

do neto que assassinara o avô, em O império do direito o caso Tennessee Valley Authority (TVA) v.

Hill (doravante denominado abreviadamente de caso TVA)26 ocupa um lugar de destaque. Isso

porque ele ilustra com mais clareza o seu argumento sobre a relevância prática dos desacordos

teóricos e, portanto, da própria teoria do direito.

O caso é bastante conhecido e envolve uma ação proposta para impedir a construção de

uma barragem no Tennessee, visto que colocaria em risco a sobrevivência de uma espécie de peixe

(denominado snail darter) protegida pela Lei de Espécies Ameaçadas de 1973 (Endangered Species

Act of 1973). Depois de muitas batalhas judiciais o caso foi levado à Suprema Corte norte-

americana e provocou o dissenso entre os argumentos jurídicos esposados por dois de seus

célebres componentes.

Por um lado, o chief justice Burger, ao relatar o seu voto, admitiu que a lei que protegia o

animal era válida, ponderou que a interrupção da obra provocaria um desperdício de cerca de 100

milhões de dólares e concluiu que a sua obrigação como juiz era aplicar o direito e garantir a

efetividade das leis válidas e, assim, suspender a obra. Por outro lado, o justice Powell divergiu,

ainda que concordando com as premissas empíricas e com o conceito de validade jurídica

empregado por Burger. Aceitou também que sua obrigação como magistrado era aplicar o direito

(e não inventá-lo), mas defendeu uma concepção distinta de direito (juridicidade ou legalidade).

24

SHAPIRO, Scott. The Hart Dworkin debate: a short guide for the perplexed. University of Michigan Public Law, Working Paper n. 77, Feb. 2007. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=968657>. Acesso em: 20 ago. 2012. Republicado em HERSHOVITZ, Scott (Ed.). Exploring “Law’s empire”: the jurisprudence of Ronald Dworkin. New York: Oxford University Press, 2006. Ainda que Dworkin não abandone o caso Elmer em sua argumentação (DWORKIN, Ronald, Law’s empire, 1986, p. 15-20), é certo que o caso TVA v. Hill não poderia receber as mesmas respostas teóricas que os positivistas poderiam dar para o caso Elmer, refutando a interpretação que dele faz Dworkin. Nesse sentido, o caso TVA v. Hill é mais difícil de ser refutado e expõe com mais clareza a força do argumento de Dworkin. 25 Também conhecido como caso Riggs v. Palmer, 115 N.Y. 506, 22 N.E. 188 1889, referido em DWORKIN, Ronald. Is there really no right answer in hard cases? University of New York Law Review, New York, v. 53, p. 1-32, 1978, p. 23, e também em DWORKIN, Ronald, Law’s empire, 1986, p. 13, e em MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto, Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea, 2013, p. 188 et seq. 26 103 Tennessee Valley Authority v. Hill, 437 US 153 1978.32, referido por Dworkin em DWORKIN, Ronald, Law’s empire, 1986, p. 20-23.

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância – Ronaldo Porto Macedo Junior

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Para ele, os princípios de razoabilidade e proporcionalidade, bem como a argumentação, em certo

sentido, moral que eles invocavam também deveriam ser reconhecidos como fundamento do

direito (grounds of law). Em face disso, argumentou e decidiu pela continuidade da construção da

barragem.

Em Justice in Robes (2006), Dworkin apresenta um novo exemplo para mais uma vez

enfatizar a natureza e a relevância dos desacordos teóricos27. Nesse caso imaginário, a Sra.

Sorensen é vítima dos efeitos colaterais provocados por um remédio para o coração (denominado

Inventum) cujos produtores negligentemente não descobriram antes de o colocar à venda. Ela

ingressou com uma ação indenizatória contra todos os fabricantes que colocaram o Inventum no

mercado durante o período em que ela o consumiu, visto que não tinha como provar de qual deles

comprara o medicamento. O seu pedido visava responsabilizar os fabricantes na mesma proporção

de sua participação no mercado de vendas (market share).

Os advogados da empresa contestaram a ação, alegando que a querelante não fora capaz

de provar a responsabilidade individual de cada empresa, razão pela qual não seria merecedora de

qualquer indenização. Para Dworkin, “Ambos os lados fazem afirmações sobre o que esse direito é,

não sobre o que ele deveria ser. Também não propõem que os juízes que ouvem os casos ignorem

o direito e a regra a seu favor com base no fato de que é isto que a justiça requer”28. Dessa forma,

ele conclui que, “Se nós mesmos quisermos ter uma visão a respeito de qual das afirmações está

certa (se é que alguma está), devemos nós mesmos decidir o que o direito na jurisdição do caso da

Sra. Sorenson realmente é”29. Isso evidenciaria a natureza teórica desse desacordo.

Ainda que se pudesse afirmar que a doutrina do direito oferece uma resposta a tal questão,

poderíamos ainda encontrar teorias distintas sobre o que é o direito. Algumas poderiam afirmar

27

O caso é descrito em dois distintos artigos em Justice in robes: DWORKIN, Ronald. Law and morals. In: DWORKIN, Ronald. Justice in robes. Cambridge, USA: Harvard University Press, 2006d. p. 7-9; DWORKIN, Ronald. Hart’s postscript and the character of political philosophy. In: DWORKIN, Ronald. Justice in robes. Cambridge, USA: Harvard University Press, 2006b. p. 140-186, p. 143-145. Dworkin aponta que casos reais do direito norte-americano envolvem esse tipo de questão acerca da responsabilidade em função da fatia de mercado (market share liabity); por exemplo, o caso Sindell v. Abbott Labs. 607 P2d, 924, 935-38 1980, julgado pela Suprema Corte da Califórnia, e os casos lá citados. 28 DWORKIN, Ronald. Justice in robes. Cambridge, USA: Harvard University Press, 2006d, p. 8, tradução minha. No original: “Both sides make claims about what this law is, not what it ought to be. Neither proposes that the judges who hear the case ignore the law and rule in their favor on the grimed that that is what justice requires”. Ver também a versão traduzida: DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. Revisão de Fernando Santos. Revisão técnica de Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 14. 29

DWORKIN, Ronald, Justice in robes, 2006d, p. 8, tradução minha. No original: “If we ourselves are to have a view about which side’s claims (if either side’s) are right, we must ourselves decide what the law in Mrs. Sorenson’s jurisdiction actually is”. Ver também a versão traduzida: DWORKIN, Ronald, A justiça de toga, 2010, p. 14.

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Temas de filosofia política e jurídica

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que o direito corresponde àquilo que os tribunais decidiram no passado, nesse caso privilegiando a

interpretação mais tradicional, favorável aos fabricantes do Inventum. Outras poderiam apelar à

melhor formulação teórica do princípio da responsabilidade civil, ainda que porventura não

explícita, totalmente reconhecida ou bem formalizada e teorizada pelos doutrinadores ou

consagrada pelos tribunais. Nesse caso, o conflito não diria respeito apenas a teorias rivais sobre os

fundamentos do direito, mas também a melhor forma para identificar esses fundamentos, o que

envolve uma disputa metodológica.

Caso acolhêssemos o argumento de que os fundamentos do direito são exclusivamente

sociais, tal como defendem convencionalistas como Hart, então seria forçoso concluir que a

demanda da Sra. Sorensen deveria ser julgada improcedente. Afinal, conforme ressalta Dworkin,

para Hart “a existência e o conteúdo do direito podem ser identificados por referência às fontes

sociais do direito (por exemplo, legislação, precedentes judiciais e costumes sociais) sem referência

à moralidade, exceto onde o direito assim identificado tiver ele mesmo incorporado critérios morais

para a identificação do direito”30.

Por outro lado, caso acolhêssemos a ideia de que, ao lado dos fundamentos sociais,

também a melhor interpretação do princípio moral da responsabilidade (com o seu possível valor

de verdade dependente da existência da melhor justificação como o seu fundamento) deveria ser

considerada fundamento do direito, poderíamos ser levados a concluir que a Sra. Sorensen tem

direito à indenização nos termos em que a pleiteia. Por esse motivo, o juiz que não decidisse em

seu favor estaria cometendo um erro jurídico. Para compreender o exemplo, não importa saber se

ela teria ou não razão, mas apenas apontar para a circunstância e a condição de sentido da

proposição jurídica que afirma ser verdadeiro que ela tem direito à indenização. Esses exemplos

são úteis, pois revelam com muita clareza o tipo do argumento que está subjacente ao “desafio

dworkiniano”. É importante destacar que bons exemplos como esses poderiam ser encontrados

porquanto comuns em todas as jurisdições modernas, inclusive no Brasil31.

Um caso de notável repercussão no Brasil que pode ser visto com um exemplo similar ao

caso TVA é o julgamento do habeas corpus 82424-2, também conhecido como caso Ellwanger,

30 DWORKIN, Ronald, Hart’s postscript and the character of political philosophy, 2006b, p. 144, tradução minha. No original: “the existence and content of the law can be identified by reference to the social sources of the law (e.g . Legislation, judicial decisions, social customs) without reference to morality except where the law thus identified has itself incorporated moral criteria for the identification of the law”. 31 Cfr. LAFER, Celso. O caso Ellwanger: anti-semitismo como prática de racismo. In: LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos. São Paulo: Manole, 2005. p. 33-122.

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância – Ronaldo Porto Macedo Junior

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decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Nele, em extrema síntese, se discutia se a publicação, pelo

Sr. Ellwanger, de livros de conteúdo antissemita que violavam a lei de crimes raciais seria condição

suficiente para a sua condenação, levando em consideração o princípio constitucional da liberdade

de expressão. Para a maioria, prevaleceu o argumento baseado na tese de que o princípio da

liberdade de expressão poderia ser limitado pela legislação penal. Alguns ministros aplicaram o

princípio da proporcionalidade para qualificar o significado que se deveria conferir ao princípio da

liberdade e chegaram a conclusões divergentes. Assim, por exemplo, o ministro Marco Aurélio

afirmou que “à medida que se protege o direito individual de livremente exprimir as ideias, mesmo

que estas pareçam absurdas ou radicais, defende-se também a liberdade de qualquer pessoa

manifestar a própria opinião, ainda que afrontosa ao pensamento oficial ou ao majoritário”. Por

outro lado, o ministro Gilmar Mendes Ferreira argumentou que “a liberdade de expressão não se

afigura absoluta no nosso texto constitucional”, pois houve ressalvas, por exemplo, quanto à

liberdade de informação, que deveria ser exercida de modo compatível com o direito à imagem, à

honra e à vida privada (art. 5º, inciso X). Em seu argumento, afirmou também que o próprio

significado do princípio moral deveria ser interpretado à luz de sua ligação com uma teia mais

ampla de valores e princípios: “Da mesma forma, não se pode atribuir primazia à liberdade de

expressão, no contexto de uma sociedade pluralista, em face de valores outros como os da

igualdade e da dignidade humana. Daí ter o texto constitucional de 1988 erigido, de forma clara e

inequívoca, o racismo como crime inafiançável e imprescritível (Constituição Federal, F, art. 5º,

XLII), além de ter determinado que a lei estabelecesse outras formas de repressão às manifestações

discriminatórias (art. 5º, XLI)”. Por outro lado ainda, outras argumentações insistiram na tese das

fontes sociais, afirmando que o fundamento do direito que governaria o sentido correto da decisão

deveria ser a legislação válida (lei penal) e os princípios positivados pela ordem constitucional

compreendidos convencionalmente.

Casos muito semelhantes ao Sra. Sorensen também têm sido apresentados para o Judiciário

brasileiro envolvendo responsabilidade em função da fatia de mercado, por exemplo, na indústria

do tabaco e no ramo de fast food em relação a, respectivamente, doenças pulmonares e

obesidade32. O mais importante, entretanto, não é destacar a semelhança com o tipo de questão

32 A mesma tese tratada no exemplo imaginário de Dworkin pode ser encontrada na Ação Civil Pública 583.00.2007.206840-1, ajuizada pelo Promotor de Justiça do Consumidor de São Paulo, João Lopes Guimarães Jr. no ano de 2007 na Vara Cível de São Paulo, ainda não julgada pelo TJSP. Nela se discute a responsabilidade global proporcional das empresas de tabaco Phillip Morris e Souza Cruz, conforme respectivas parcelas do mercado de vendas, por danos causados a consumidores e ao Estado em face do prejuízo sofrido pelo Sistema Único de Saúde com

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Temas de filosofia política e jurídica

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discutida, mas antes a natureza teórica dos desacordos envolvidos. Ademais, a questão teórica que

eles, como casos exemplares, expõem com especial clareza e distinção, está presente com enorme

frequência em inúmeros casos controvertidos em nossos tribunais. O que pode ocorrer, contudo,

nessa vasta gama de casos, é que o ponto em destaque (os desacordos teóricos) talvez estejam

mais encobertos ou mal sistematizados.

III - Um esquema conceitual provisório

Esses são exemplos paradigmáticos de desacordos teóricos. Neles o que está sendo

discutido é o próprio conceito de direito que deve servir de condição de verdade para a proposição

jurídica. O que está em discussão é a resposta que se deu à pergunta “o que é o direito?” e a teoria

do direito que responde a essa pergunta. Por esses exemplos é possível perceber um sentido,

dentre outros, pelo qual a teoria do direito possui, ao menos à primeira vista, uma relevância

prática, mesmo quando os juízes não têm a consciência filosófica disso. Será mesmo? Façamos mais

uma abstração neste momento.

A crítica de Dworkin ao convencionalismo é dependente de diversas categorias que foram

desenvolvidas no seio da filosofia da lógica e da filosofia da linguagem contemporânea. Basta

pensar em sua análise sobre o funcionamento da linguagem da moral, o conceito de bipolaridade, a

crítica ao representacionismo33, a concepção verificacionista do conhecimento (admitido por

parcela do positivismo lógico), bem como na ideia de análise da gramática lógica da linguagem,

tema que está pressuposto em toda a filosofia da linguagem e foi trazido para o seio da filosofia do

direito pioneiramente pelas mãos de Hart. Antes de analisar com mais detalhe o significado dessas

categorias para a teoria do direito, me parece oportuno apresentar um esquema conceitual

provisório que poderá auxiliar o leitor na compreensão dos argumentos centrais deste trabalho.

Muitos teóricos comparam o direito com um sistema de regras convencionais de

coordenação da vida social, tal como a língua com a qual nos comunicamos. A língua portuguesa foi

constituída pelas práticas sociais que fixaram determinados vocábulos e regras para designar

objetos, ideias e vontades. O que constitui as regras de uma língua, portanto, é o conjunto das

regras convencionais que informam quais são os usos adequados da fala “dentro dessa língua”.

gastos com pacientes cujo problema de saúde foi provocado ou agravado pelo consumo de cigarro. 33 Sobre a ideia de verdade como correspondência e o papel da linguagem, ver, dentre outros, HACKING, Ian. Por que a linguagem interessa à filosofia. São Paulo: Edunesp, 1999.

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância – Ronaldo Porto Macedo Junior

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A gramática da língua portuguesa estabelece as regras que determinam qual é a forma

correta de falar português. Assim, podemos dizer que, na proposição “é verdadeiro que, segundo a

língua portuguesa, não é autorizado dizer ‘eu vamos estudar direito amanhã’”, a condição de

verdade é dada pela existência de uma regra social, uma convenção linguística, que fixa a regra que

permite avaliar essa sentença como incorreta. É interessante notar que não é preciso anuir a ou

concordar com essa regra para, de uma perspectiva externa, reconhecer que a expressão está

incorreta, segundo a língua portuguesa. Basta saber que é incorreto, basta conhecer as convenções

da língua portuguesa.

A comparação do direito às convenções que definem uma língua permite a alguns teóricos

afirmar que as condições de verdade das proposições jurídicas funcionam de modo semelhante às

proposições dessa língua. O que permitiria dizer qual é o valor de verdade de uma proposição

jurídica seria a existência de uma fonte social, uma convenção, como o seu fundamento. No caso do

direito, uma regra de reconhecimento funcionaria como critério que permite reconhecer o que é

uma regra jurídica. Nesse sentido, podemos afirmar que viola o direito brasileiro trafegar a 300

km/h porque existe uma regra válida fundamentada, em última instância, numa regra convencional

de reconhecimento. Ela seria o critério para a verificação da verdade da proposição.

Essa estratégia explicativa permitiria também dizer que, ao afirmar que inexiste um direito a

trafegar a 300 km/h no Brasil, estou formulando uma proposição cuja condição de verdade

depende exclusivamente da existência de um estado de coisas no mundo, isto é, de uma convenção

social fundadora. O meu juízo proposicional pode, então, ser neutro e puramente descritivo. Igual

raciocínio me permitiria dizer que o que faz com que seja incorreto afirmar “eu vamos estudar

direito” é a existência de um outro estado de coisas no mundo, a saber, uma convenção da língua

portuguesa. Dworkin denomina esse tipo de concepção da condição de verdade invocado nesses

exemplos de concepção puramente factual (plain fact)34.

Uma variante dessa concepção de convenção social poderia ser pensada por meio do

exemplo de um jogo de xadrez, também muito invocado pelos teóricos do direito35. Poderíamos

imaginar que o xadrez não é uma convenção que surge diretamente para resolver problemas de

coordenação e cooperação numa sociedade, mas simplesmente uma convenção constitutiva, que

constitui uma prática anteriormente inexistente. 34

DWORKIN, Ronald, Law’s empire, 1986, p. 6-11. 35 MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto, Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea, 2013, p. 328, p. 91 et seq.

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Temas de filosofia política e jurídica

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Assim, poderíamos também imaginar que o que torna verdadeira a proposição “no xadrez

não podemos mover o cavalo na diagonal” é o fato de que existe uma convenção que constituiu o

xadrez e fixou regras que não permitem esse tipo de movimento. Nesse caso, mais uma vez,

poderíamos dizer que não precisamos aprovar ou endossar as regras do xadrez para sabermos

descrever os movimentos corretos e autorizados para esse jogo.

Aparentemente esse modelo apresenta um grande potencial explicativo e permite que nos

mantenhamos dentro de uma consolidada tradição epistemológica que afirma que uma ciência

descritiva do direito não precisa nem deve ser avaliativa num sentido moral. Isto é, para fazer uma

teoria descritiva do direito não é necessário avaliar moralmente o direito36. De maneira análoga,

para descrever a língua portuguesa não é necessário julgá-la como bela ou feia.

Mas agora pensemos num novo exemplo. Dois juristas brasileiros podem discordar sobre o

valor de verdade da seguinte proposição: “os gays têm direito ao casamento, segundo o direito

brasileiro”. Alguns poderão afirmar que ela é falsa, pois o casamento é, por convenção, uma relação

more uxorio entre pessoas de sexos diferentes. Para embasar tal entendimento, bastaria observar

as práticas pretéritas de identificação do que é um casamento para concluir que essa é uma

instituição heterossexual. Contudo, se esse fosse o significado de casamento em disputa nos

tribunais de diversas jurisdições internacionais nos dias de hoje, seria difícil até mesmo

compreender como seria possível ou inteligível essa disputa. Afinal, o objeto mesmo do desacordo

se refere ao conceito de casamento. Ele é o centro do desacordo justamente em face de seu

caráter valorativo e não puramente convencional. No âmbito das disputas judiciais, o conceito de

casamento é um conceito interpretativo, e não um conceito convencional.

Podemos imaginar que, da mesma forma como nos casos TVA e Sorensen antes

mencionados, o desacordo entre os que defendem que os gays têm direito ao casamento seja

também teórico. Isso porque um deles pode entender que o fundamento do direito é fixado por

convenções sociais, sejam elas do tipo da língua portuguesa, sejam do tipo do xadrez, ao passo que

o outro pode entender que o fundamento do direito depende de sua correção moral. Que tipo de

desacordo teríamos nesse segundo caso?

36 Um balanço do debate contemporâneo recente sobre esse tema é apresentado por DICKSON, Julie. Evaluation and legal theory. Oxford: Hart, 2001, p. 104. Dickson denomina de diretamente avaliativa o que aqui chamei de avaliativa num sentido moral. Examinei com detalhe o assunto em MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto, Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea, 2013, p. 130 et seq.

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância – Ronaldo Porto Macedo Junior

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O desacordo certamente seria teórico, porquanto envolve uma disputa sobre os

fundamentos do direito, e confrontaria teorias distintas sobre o que é o direito. Ele seria também

uma disputa entre dois tipos de teoria. Uma das teorias teria como condição de verdade para suas

proposições a existência de um certo estado de coisas no mundo (convencionalistas), ao passo que

outra dependeria de uma teoria da correção moral. Mas a correção moral não poderia também ser

compreendida segundo padrões convencionalistas? Em teoria, sim, poderia37. Mas seria necessário

que o fosse? E, mais do que isso, seria essa possível compreensão convencionalista da correção

moral o caso predominante nos desacordos teóricos jurídicos cotidianos em nossos tribunais?

Imaginemos agora um “xadrez argumentativo” cujas regras fossem ligeiramente distintas

das do xadrez praticado pelos enxadristas em campeonatos oficiais e regulado pela Federação

Internacional de Xadrez (Fédération Internationale des Échecs — FIDE). A circunstância dessa

modalidade de jogo nos é algo familiar especialmente em contextos domésticos. As regras básicas

desse “xadrez argumentativo” são muito semelhantes àquelas do xadrez praticado nos

campeonatos. Há um tabuleiro quadriculado, peças que se movimentam da mesma forma, etc.38

No xadrez argumentativo uma diferença sobressai: a determinação do significado das regras

depende de práticas argumentativas realizadas pelos jogadores e por suas torcidas. Além disso, as

regras desse jogo devem visar atingir o seu propósito central de garantir um “jogo justo”.

Imaginemos que um adolescente de 17 anos e com nível mais alto de proficiência enxadrística joga

com um garotinho de 10 anos com pequena experiência e nível mais baixo de proficiência nessa

modalidade extraordinária de “xadrez”. Os jogadores decidem realizar uma série de 20 partidas sob

37 Nesse caso, poderíamos imaginar uma teoria historicista ou que compreende que o padrão do que é correto moralmente depende do que é aceito como dominante num determinado período ou acolhido pela “comunidade dos intérpretes” (para usar uma expressão de Stanley Fish) como correto, tal como acolhemos nossos critérios de uso correto da língua portuguesa. 38

Não importa aqui saber se ainda seria um jogo de xadrez. Com certeza, apesar de manter com o jogo de “xadrez da FIDE” muitas semelhanças, dele diferiria nesse caráter argumentativo. Hart se pergunta se um navio com asas ainda seria um navio e observa que: “Algumas vezes, a diferença entre o caso-padrão nítido ou paradigma, relativamente ao uso de uma expressão, e os casos discutíveis é apenas uma questão de grau. Um homem com uma cabeça brilhantemente polida é claramente careca; um outro com uma cabeleira luxuriante claramente que o não é; mas a questão respeitante a um terceiro homem, com um tufo de cabelo aqui e ali, sobre se é careca ou não, poderia ser discutida indefinidamente, se valesse a pena ou se dela derivasse qualquer resultado prático. Por vezes, o desvio do caso-padrão não é uma simples questão de grau, mas surge quando o caso-padrão é de facto um complexo de elementos normalmente concomitantes mas distintos, algum ou alguns dos quais podem faltar nos casos abertos a disputa. Um barco voador é um ‘navio’? Ainda se trata de xadrez, se o jogo é disputado sem rainhas? Tais perguntas podem ser instrutivas, porque nos obrigam a reflectir sobre a nossa concepção da composição do caso-padrão e a torná-la explícita”. HART, H. L. A. O conceito de direito. 2. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994, p. 8-9. No exemplo aqui discutido, é certo que o xadrez argumentativo seguiria uma gramática distinta daquela do xadrez da FIDE. De forma semelhante Hart faz a sua análise comparativa entre “o jogo da discricionariedade do marcador” e “um jogo normal”. HART, H. L. A., O conceito de direito, 1994, p. 153-156.

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Temas de filosofia política e jurídica

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o olhar atento e participativo de familiares, amigos e torcidas. Nesse jogo fica também estabelecido

que, levando em consideração a diferença de idade e de habilidade dos jogadores, algum tipo de

“compensação” nas regras deve ser proposto de modo a garantir um match justo.

Podemos imaginar que nas primeiras partidas o adulto começa a jogar em desvantagem,

sem suas torres e um bispo, para proporcionar um equilíbrio lúdico na atividade. Imaginemos

também que o jogo transcorra sem grandes discordâncias até o final da quinta partida, terminada

com a quarta vitória consecutiva do garotinho. Nesse momento um primeiro desacordo aparece

entre os jogadores e as torcidas que os apoiam a respeito das regras que devem comandar a

continuidade do jogo. A torcida do adolescente insiste que o respeito às regras daquele jogo impõe

uma alteração dos critérios de compensação até então utilizados, reduzindo-se a vantagem em seu

desfavor, de modo a respeitar o princípio geral de equilíbrio lúdico que norteou o início do match.

Eles argumentam que a regra daquele jogo de xadrez exige que seja reduzida a vantagem na

medida em que aumenta a habilidade enxadrística do garoto mais jovem. Eles afirmam que essa é a

melhor forma de compreender a regra que regula aquele tipo de jogo.

Nesse xadrez argumentativo, os partidários do garotinho não silenciam; argumentam que a

correta compreensão da regra do jogo exige que as compensações sejam mantidas por mais tempo

e que as vitórias sucessivas foram devidas ao especial talento enxadrístico do garoto, e não a uma

compensação “excessiva” que o favoreceria. Para uns, o equilíbrio deve levar em consideração o

critério de igualdade na experiência de jogo, ao passo que, para outros, o que deve ser considerado

é o equilíbrio real nos resultados positivos obtidos pelos jogadores. De um lado, se afirma que a

prova do equilíbrio é dada pelo número de vitórias e, de outro, se afirma que a virtude enxadrística

do garoto mais jovem não deve ser cancelada, de modo a garantir a igualdade de resultados, pois

isso ofenderia o princípio lúdico básico de que “o melhor deve vencer”.

Imaginemos que os argumentos se sofistiquem e justificativas fundadas nas práticas

competitivas compartilhadas por aquela família sejam recuperadas e interpretadas. Suponhamos

que os dois lados concordem que a regra do match enxadrístico deve ser justa, discordando apenas

quando à concepção que melhor representaria a “justiça”. O que poderia tornar verdadeiro o

argumento defendido pelo adolescente e sua torcida de que a retirada de três de suas peças viola

as regras do xadrez argumentativo?

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância – Ronaldo Porto Macedo Junior

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É certo que poderíamos compreender que tudo não passa de uma brincadeira na qual a

própria prática de discutir deveria ser entendida como mera retórica lúdica. Mas isso seria alterar o

exemplo num de seus traços essenciais. Nele devemos presumir que o desacordo é genuíno e que

os jogadores e suas torcidas conseguem compreender o sentido do que dizem seus oponentes sem,

contudo, com eles concordar. Qual poderia ser o sentido de uma argumentação que faz apelo à

justiça como fundamento da normatividade do jogo?

Aqui é importante fazer uma observação sobre o sentido da linguagem da moral39. Quando

usamos a linguagem moral, podemos estar fazendo coisas distintas. Podemos estar sendo apenas

enfáticos, podemos estar nos referindo a uma moral convencional ou podemos estar fazendo um

uso normativo-prescritivo da linguagem da moral. Pensemos em alguns exemplos banais.

Imagine alguém que se vangloria de ser um grande apreciador de café e diga a seu amigo

que acabara de adoçar um café expresso: “é absolutamente errado e inaceitável colocar açúcar no

café!”. Em situações normais compreenderíamos tal afirmação como uma expressão de ênfase na

expressão do gosto pessoal por tomar café “puro”. Apesar da roupagem moral da expressão, ela

deveria ser compreendida como uma mera manifestação de uma preferência personalíssima. Caso

o autor da expressão insistisse, sem intenções irônicas, que é, de fato, objetivamente errado e

inaceitável (moralmente) tomar café com açúcar, começaríamos a duvidar de sua sanidade. Isso

porque não imaginamos haver objetividade (ou ao menos o mesmo tipo de objetividade) na

preferência por um paladar para tomar café.

Existe ainda outra possibilidade. O autor da expressão poderia estar se referindo a um

critério convencionalmente acolhido entre os “gourmets do café” sobre a melhor forma de

consumir café. Nesse caso, a condição de verdade de sua expressão estaria referida a um fato

convencional do mundo, isto é, a um certo acordo entre os especialistas sobre a melhor forma de

tomar café. Essa comunidade dos intérpretes do café fixaria a forma correta do consumo dessa

bebida40. Situações muito semelhantes a essa são comuns nas comunidades de enólogos, que

costumam estabelecer critérios convencionais que servem para aquilatar a qualidade de um vinho.

Um exemplo disso é o famoso ranking de qualidade de vinhos elaborado pelo famoso enólogo

39 No que segue utilizo o conceito de linguagem da moral apresentado por R. M. Hare, ainda que não necessariamente acolhendo suas conclusões sobre qual é a sua gramática. HARE, R. M. The language of morals. Oxford, USA: Oxford University Press, 1991. 40

O argumento que aqui apresento de forma caricatural é apresentado por FISH, Stanley. Working on the chain gang: interpretation in the law and in litterary criticism. In: MITCHELL, W. J. Thomas (Ed.). The politics of interpretation. Chicago: University of Chicago Press, 1983. p. 271-286.

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Robert Parker, que hoje desperta seguidores em todo o mundo41. Poderíamos talvez até imaginar

que para um grupo determinado o valor do vinho poderia assumir uma dimensão sagrada e

religiosa. Isso certamente é possível, ainda que improvável, mas também alteraria essencialmente o

exemplo que estou analisando.

Imaginemos agora que uma pessoa diga a outra: “é errada a prática da escravidão!”. Como

poderíamos interpretar essa proposição? Uma primeira possibilidade, talvez a menos provável no

seu uso comum, seria a de que essa pessoa estaria, tal como na observação sobre o café adoçado,

expressando uma preferência. Ela estaria sendo enfática ao dizer que “não gosta de escravidão”,

assim como “também não gosta de café adoçado”. Isso certamente é possível.

Outra possibilidade seria essa pessoa estar se referindo ao fato de que a escravidão é

considerada errada pela moral convencional dominante no país e na época em que vive. Nesse

caso, para que sua proposição fosse verdadeira, bastaria existir esse fato convencional no mundo

no qual ela foi dita. Cabe notar também que, se aceitos esses critérios de verdade para a

proposição, seria possível também afirmar que ela não seria verdadeira se dita num contexto no

qual a moral convencional não considerasse a escravidão imoral e errada. Nessa linha, alguém

poderia dizer que a escravidão é errada e inaceitável hoje, porém era aceitável e correta, e estava

de acordo com os critérios de correção moral prevalentes na Roma Antiga.

Há ainda uma terceira alternativa, segundo a qual o sentido da proposição não teria o seu

valor de verdade garantido pela existência de uma convenção, mas antes por estar justificada pelas

melhores razões. Nesse caso, a proposição teria a pretensão de ser verdadeira ainda que não

houvesse uma moral convencional que a apoiasse. Ela se pretenderia verdadeira ainda que

estivesse em desacordo com a moral convencional. Nesse caso, a proposição pretenderia afirmar

que a escravidão era errada e inaceitável também na Roma Antiga, ainda que naquela época a

moral convencional a aprovasse. Esse tipo de uso da linguagem moral tem um manifesto caráter

normativo prescritivo. Ela requer, como condição de sentido e inteligibilidade, que sejamos capazes

de compartilhar as razões que poderiam torná-la verdadeira42. Para que ela faça sentido não é

necessário que com ela concordemos. Contudo, é necessário que sejamos capazes de compartilhar

dos critérios que produzem o seu valor de verdade.

41 Cfr. a publicação Wine Advocate. Disponível em: <https://www.erobertparker.com/entrance.aspx>. Acesso em: 28 ago. 2013. 42 DWORKIN, Ronald, Law’s empire, 1986, p. 83. “The practices of interpretation and morality give these claims all the meaning they need or could have.”

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Explicar o sentido pressupõe, assim, compreender as condições de verdade das práticas

discursivas que a caracterizam e constituem. Afinal, para descrever o que se quer dizer ao afirmar

que “a escravidão é errada” não é preciso indicar quais são as condições de sentido dessa

proposição? O que a tornaria dotada de sentido para que não fosse interpretada como um mero

nonsense, uma proposição feita pelo chapeleiro maluco de Alice no país das Maravilhas? Se quero

compreender o que elas significam, preciso descrever as suas condições de verdade (e sentido),

visto que pretendem afirmar a verdade.

Esse tipo de expressão da linguagem da moral exige que não nos coloquemos

completamente fora de (externamente a) seus critérios de sentido e verdade. Para que possamos

compreender o que alguém quer dizer quando afirma que a escravidão é inaceitável e errada,

nesse sentido normativo, é necessário que ela esteja dentro do jogo de linguagem e do mundo no

interior do qual ela é dita.

Se retomarmos agora o exemplo imaginário do xadrez-argumentativo, poderemos nos

perguntar se seria possível descrever o sentido das práticas dos agentes de um ponto de vista

completamente externo. Talvez fosse possível explicar a ação de mover as peças de um ponto de

vista externo, sociológico, desde que fosse levado em conta também o sentido interno do agente

que segue as regras do jogo. Ou seja, desde que se compreendesse que a sua ação levou em

consideração as regras do jogo de xadrez. Contudo, seria possível assumir um ponto de vista

externo semelhante ao descrever o sentido das práticas argumentativas em disputa? Mas, nesse

caso, elas não constituem também o jogo? Quando imaginamos que os agentes se valem de

argumentações cujo sentido é normativo prescritivo — como quando invocam conceitos de justiça,

igualdade e “fair play” —, somente as podemos descrever se formos ao mesmo tempo capazes de

expressar a sua condição de sentido e de verdade. Não é possível descrever esse xadrez

argumentativo sem adotarmos uma posição de algum modo interna ao próprio jogo. Isto é, não é

possível nos situarmos fora das próprias condições de sentido das argumentações e das

justificações que ele envolve e que o caracterizam. Mesmo quando não jogamos diretamente o

jogo, temos de compartilhar de um mundo (forma de vida), de um conjunto de práticas, como

condição para entender esse mesmo jogo. Não podemos ser externos a ele se quisermos

compreendê-lo.

Seria a linguagem da argumentação jurídica semelhante, em suas condições de sentido e

verdade, a esse sentido normativo-prescritivo aqui apontado? Seria possível explicar as práticas

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argumentativas por meio de critérios convencionais de sentido e verdade? Seria o direito

semelhante a uma língua, a um jogo de xadrez (regulado pela FIDE) ou a um “xadrez-

argumentativo”? O leitor já deve ter percebido que as minhas convicções são críticas em relação às

respostas oferecidas pelo convencionalismo jurídico a essas questões. Isto porque o

convencionalismo não apresenta uma descrição correta da gramática de funcionamento de nossas

práticas e nossa linguagem nestes tipos de desacordos que envolvem desacordos teóricos e acerca

do funcionamento da própria linguagem destas práticas.

O convencionalismo jurídico se apresenta como uma importante vertente do pensamento

teórico jurídico contemporâneo. A sua relevância se encontra tanto no seu potencial explicativo

como nas consequências que traz para a própria prática jurídica, não apenas dos juristas afeitos à

filosofia, mas a todos eles, na medida em que compartilham de muitos de seus pressupostos

mesmo quando não gozam da consciência disso.

Acredito que o desafio dworkiniano não foi convincentemente atendido pelas respostas

convencionalistas dadas a ele. Isto se deve em parte a não compreensão da natureza da objeção

gramatical que ele dirigiu ao convencionalismo. Evidentemente uma análise mais aprofundada é

necessária para justificar esta conclusão. Algumas versões sofisticadas do convencionalismo jurídico

procuraram responder ao desafio dworkiniano. Andrei Marmor, Scott Shapiro, dentre outros,

gastaram muita energia e talento intelectual para enfrentar estas difíceis questões teóricas. Uma

parte das soluções caminhou na direção da formulação de uma teoria das convenções baseada nas

ações cooperativas compartilhadas, inspirada nos trabalhos de David Lewis e Michael Bratman43.

Outra numa releitura da leitura do convencionalismo formulada pelo segundo Wittgenstein.

Examina-las foge dos limites e escopo do presente artigo. A minha intenção neste texto

introdutório foi apenas oferecer uma visão esquemática das principais questões e desafios

metodológicos que devem ser enfrentados por aqueles que querem enfrentar e responder as

críticas de Dworkin. A despeito de seu possível sucesso, resta claro que o desafio posto por este

grande autor impôs uma nova agenda para o debate jurídico contemporâneo. A grandeza de um

autor não é medida exclusivamente pela correção de suas ideias, mas também pela capacidade de

suas ideias nos auxiliarem a tomar consciência das novas questões e problemas. O impacto de

Dworkin na teoria do direito contemporânea é exemplar de ambas dimensões de grandeza.

43 LEWIS, David. Convention: a philosophical study. Cambridge: Harvard University Press, 1969 e BRATMAN, Michael E. Shared cooperative activity. Philosophical Review, Ithaca, NY, v. 101, n. 2, p. 327-341, 1992.

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A Crítica de Dworkin ao Convencionalismo e sua Relevância – Ronaldo Porto Macedo Junior

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ZIPURSKY, Benjamin. The model of social facts. In: COLEMAN, Jules (Ed.). Hart’s postscript: essays on the postscript to “The concept of law”. Oxford: Oxford University Press, p. 219-270, 2001. Casos citados: Riggs v. Palmer, 115 N.Y. 506, 22 N.E. 188 1889 Tennessee Valley Authority v. Hill, 437 US 153 1978.32 Sindell v. Abbott Labs. 607 P2d, 924, 935-38 1980 Ação Civil Pública 583.00.2007.206840-1

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise

crítica.1

José Guilherme Giacomuzzi Professor da Faculdade de Direito, UFRGS e UniRitter.

“Agradava-me enfim que estas mesmas palavras Humanidade, Liberdade e Felicidade não tivessem sido

ainda desvalorizadas pelo excesso de aplicações ridículas”. ––– Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano.

Introdução

Começo com dois fatos incontestáveis. O primeiro: a partir de meados do século XX, a

“dignidade humana” passou ao centro da cena filosófica, política e jurídica mundial. Como diz o

título de um trabalho publicado originalmente em inglês pelo hoje ministro do Supremo Tribunal

Federal Luís Roberto Barroso, a dignidade humana está “aqui, lá, em todos os lugares”.2 Das

Declarações e Pactos Internacionais às Constituições dos mais diversos países, com a Lei

Fundamental Alemã à frente, a dignidade humana está presente.

A Constituição Brasileira de 1988 não foge à regra e refere-se expressamente à dignidade

humana em cinco oportunidades: a primeira está já no Título I (Dos Princípios Fundamentais), como

“fundamento da República” (art. 1º, III); a segunda, sob a linguagem “existência digna”, está no

Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira) Capítulo I (Dos Princípios Gerais Da Atividade

1 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada em junho de 2014 no III Seminário de Filosofia do Direito e

Filosofia Política ocorrido organizado pela Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a coordenação dos Professores Alfredo C. Storck (Filosofia, UFRGS) e Wladimir B. Lisbôa (Direito, UFRGS), a quem agradeço o convite para participar. Nesta publicação fiz alterações em relação à apresentação feita na ocasião. Ana Paula Ávila leu a primeira versão do texto, e eu lhe agradeço as observações feitas. No seminário, Andrés Rosler e Ronaldo Porto Macedo Júnior fizeram comentários críticos que me ajudaram a deixar o texto menos imperfeito e quiçá com algum sentido. Os avaliadores anônimos da revista Novos Estudos Jurídicos também fizeram críticas construtivas que me provocaram a melhorar o escrito, pelo que lhes sou grato. Agradeço, por fim, a Manuela Keunecke Leo, que auxiliou na pesquisa da jurisprudência. 2 BARROSO, Luís Roberto. Here, There, and Everywhere: Human Dignity in Contemporary Law and in the Transnational Discourse. Boston College International & Comparative Law Review, v. 35, p. 331-393, 2012. Esse artigo foi traduzido ao português e resultou em livro publicado no ano seguinte. Ver BARROSO, Luís Roberto. Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: A Construção de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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Econômica), enquanto “fim” a ser “assegurado” pela Ordem Econômica. As três últimas inserem-se

no Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo VI (Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do

Idoso), da seguinte forma: como “princípio” do planejamento familiar (art. 226, §7º); como

“direito” da criança, do adolescente e do jovem (art. 227, caput); e como algo a ser

obrigatoriamente defendido pela família, pela sociedade e pelo Estado (art. 230, caput).

O segundo fato é este: nunca na história brasileira o STF esteve tanto em evidência. De

instituição pouco conhecida do cidadão comum e Poder menos importante da República, o STF, a

partir da redemocratização marcada pela Constituição Federal de 1988, passou ao centro da cena

jurídico-política brasileira. Não é exagero dizer que o STF se transmudou de Poder quase invisível a

Poder bastante visível, talvez a ponto de, em certos momentos, ofuscar os demais. No presente

século, o STF, para a crítica de uns e o gáudio de outros, permitiu a união de pessoas do mesmo

sexo, possibilitou o uso de células tronco em pesquisa científica, bem como o abortamento de fetos

anencéfalos, para ficarmos em alguns poucos casos nos quais o tema da dignidade humana esteve

sempre presente, sem falar nas decisões sobre matéria eleitoral, como fidelidade partidária e “ficha

limpa”, além de rumorosas decisões em processos criminais envolvendo o alto escalão da política

brasileira. E a lista, sabemos, poderia ser bastante mais longa. Essa virada de 180º graus em

notoriedade (agora não falei “importância”) do papel do STF na República brasileira certamente foi

ajudada pela decisão ––– que se mostrou desastrosa ao meu ver ––– de transmissão, ao vivo e pela

televisão, dos seus próprios julgamentos.3

O presente estudo junta os dois fatos e pretende comentar criticamente algumas decisões

do STF tomadas depois de 1988 em que a dignidade humana foi expressamente invocada. Todas as

decisões comentadas dizem com o direito administrativo. Esse corte é arbitrário, mas pode ser

minimamente justificado: em razão da proeminência dos direitos humanos no discurso jurídico

mundial ––– os quais têm, no plano interno, sua correspondência nos direitos fundamentais –––,

tem havido na doutrina administrativista nacional uma espécie de frenesi sobre o assunto, a ponto

de alguns sustentarem hoje que o direito administrativo deve mudar de fundamento, abandonando

o “interesse público” para abraçar a ideia dos “direitos fundamentais”, os quais se ancorariam na

3 A Lei Federal nº 10.461/2002, de 17 de maio de 2002, criou “um canal reservado ao Supremo Tribunal Federal, para a

divulgação dos atos do Poder Judiciário e dos serviços essenciais à Justiça”. Nada na referida lei, contudo, obriga o STF a transmitir ao vivo suas sessões de julgamento; a decisão de transmiti-las ao vivo é do próprio STF .

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Temas de filosofia política e jurídica

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dignidade humana.4 Para a arquitetura do direito administrativo, alterar sua estrutura, suas

“fundações”, não é sem importância.

O problema do fundamento de cada ramo do direito ou instituto jurídico é tormentoso, e

não seria diferente com o fundamento dos direitos humanos ou dos direitos fundamentais. Seja

como for, é um fato que a dignidade humana tem sido majoritariamente apontada pela maioria dos

estudiosos como fundamento dos direitos humanos, e é essa também a razão pela qual cresce a

importância teórica de tentar compreender o que significa essa dignidade; igualmente importante,

agora no plano prático, é tentar compreender o que diz, no âmbito do direito interno, o STF sobre

isso (ainda que em casos limitados ao direito administrativo). Dizendo mais claramente: o problema

da pesquisa empreendida neste estudo é, à vista dos acórdãos prolatados depois de 1988 que

expressamente invocam a “dignidade humana” em matéria de direito administrativo, verificar se o

STF possui alguma compreensão sobre o que significa essa dignidade, ou, mesmo que não a tenha,

se é possível dar algum sentido normativo racionalmente rastreável e coerente ao uso da dignidade

pelo STF.

Procedo da seguinte forma: no item 1, vou expor as críticas ao conceito de dignidade

humana feitas por dois autores proeminentes, para depois, no item 2, analisar criticamente as

decisões do STF sobre o tema contra esse pano de fundo, tentando quando possível oferecer uma

proposta alternativa de interpretação dos julgados, para fim de plantar um germe para a

construção de um sentido coerente à dignidade. Os autores escolhidos para formar o pano de

fundo crítico são o filósofo político inglês Michael Rosen e o juspublicista alemão Christopher

Möllers. A proposta alternativa tem base na ideia de dignidade como status, sustentada tanto pelo

historiador do direito James Q. Whitman quanto pelo filósofo político e teórico do direto Jeremy

Waldron. Devo justificar, mesmo que brevemente, essa escolhas.

Para além da força analítica dos argumentos de Rosen e Möllers, há dois motivos inter-

relacionados na escolha desses autores para formar o pano de fundo contra o qual as decisões

serão confrontadas: (i) seus argumentos, combinados, são bastante representativos das principais

críticas feitas por filósofos e teóricos do direito hoje à dignidade humana e ao seu uso; (ii) a

4 O autor que mais expressamente defende essa tese é Marçal JUSTEN FILHO, Marçal. Direito Administrativo de Espetáculo. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coords.). Direito Administrativo e seus Novos Paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 65-85; e JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 10.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. O autor sustentava até 2004 que o fundamento do direito administrativo era a supremacia do interesse público; a partir de 2005 passou a alterar sua posição para fundar o direito administrativo na proteção dos direitos fundamentais.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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maioria, se não todas as decisões do STF aqui analisadas parecem de alguma maneira encaixar-se

nessas críticas. Minha hipótese, portanto, é a de que as decisões do STF sobre o tema da dignidade

humana em matéria de direito administrativo corroboram e reforçam as críticas dos referidos

autores.

Whitman e Waldron, por sua vez, são os autores que melhor têm desenvolvido uma ideia

consistente e não retórica da dignidade, examinando-a sob o ponto de vista histórico, político e

jusfilosófico e dela tentando retirar algum sentido normativo. Entretanto, e ao contrário do que

farei com a corrente que que forma o que chamei de “pano de fundo crítico”, não exporei com

vagar esse ponto de vista, que irá sucintamente explicado e será assumido como hipótese razoável

de trabalho na empreitada teórica de dar sentido à dignidade. Seguirá uma conclusão crítica.

1. Qual dignidade?

Em 2013 foi publicada pela British Academy, da Oxford University Press, uma coletânea 33

de artigos sobre a dignidade humana, somando mais de 740 páginas e organizada pelo Professor

Christopher McCrudden, hoje na Universidade de Michigan.5 Para honrar seu título, Understanding

Dignity, a coletânea buscou representantes das mais diversas correntes filosóficas, políticas e

jurídicas de várias nacionalidades; em conjunto, os artigos reúnem, até onde conheço, os mais

autorizados pensadores que tratam do tema, predominantemente anglo-americanos. As várias

correntes jusnaturalistas ou jusmoralistas e juspositivistas estão todas lá, bem como estão desde

entusiastas crédulos na dignidade humana até críticos mais ferrenhos. Interessam aqui somente os

artigos de Rosen e Möllers.

1.1. A crítica de Michael Rosen

Michael Rosen, hoje Professor no Departamento de Ciência Política da Universidade de

Harvard, abre a Parte II da referida coletânea, reservada expressamente às críticas à dignidade. Seu

artigo, intitulado Dignity: The Case Against, é uma espécie segundo round do seu primeiro e mais

5 O autor escreve um longo capítulo introdutório ao livro, dando um panorama geral sobre o debate. Ver McCRUDDEN,

Christopher. In Pursuit of Human Dignity: An Introduction to Current Debates. In: McCRUDDEN, Christopher (Editor). Understanding Human Dignity. Oxford: Oxford U. Press, 2013, p. 1-58.

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elaborado estudo sobre o tema, o pequeno-grande livro Dignity: Its History and Meaning, publicado

em 2012.6 Limito-me aqui ao artigo, que de certa forma deriva bastante do livro referido.

Rosen começa noticiando o que entre os filósofos (analíticos ao menos) parece ser bastante

comum: um ânimo contrário à dignidade. O artigo de Rosen apresenta inúmeros argumentos que

pretendem sustentar essa contrariedade. Os argumentos vêm postos em formas de imputações

(charges), e o que farei aqui não passa de uma exposição descritiva, tão sucinta quanto possível,

desses argumentos.7

A primeira imputação é a de que a dignidade é uma ilusão, um logro (humbug). O filósofo

que mais fortemente sustentou isso, como sabem os que lidam com o tema, foi Schopenhauer,

frequentemente citado pelos críticos da dignidade. No livro Sobre os Fundamentos da Moral, de

1840, Schopenhauer parece acertar o coração do tema ao sugerir que, embora a palavra dignidade

venha associada à grandiosidade e ao status elevado do ser humano, ela na verdade não passa de

uma decepcionante fachada; quem espera encontrar nela os fundamentos da moral, verá, na

verdade, um espaço vazio: a impressionante fachada desvia nossa atenção do vácuo que por trás

dela se encontra.

O próprio Rosen refere que, embora seja uma ilusão, talvez se pudesse sustentar que a

história do pensamento político ocidental, de Platão a Bacon, vive de ilusões, e inclusive que precisa

delas. Até mesmo Nietzsche uma vez sustentou que a “verdade brutal” de que a “escravidão é da

essência da cultura” precisava ser escondida por ilusões sentimentais tais como “direitos do

homem”, “igualdade” e “dignidade do trabalho”. Como diz Rosen, “para um mundo sem coração, é

melhor parecer ter coração do que ter sua falta de coração totalmente à mostra”.8 Mas seria

mesmo assim?

O autor sustenta que não e retorna ao uso do termo “fachada” para construir seu

argumento. Fachada é uma metáfora forte e significativa, mas o termo “fachada” não parece ter

entrado no vocabulário comum antes do início do século XX. A entrada ter-se-ia dado com o

advento do modernismo arquitetônico, em especial com o trabalho do arquiteto Adolf Loss (1870-

1933) e seu texto mais polêmico, Ornamento e Crime, de 1908. A força e a revolta do movimento 6 Ver ROSEN, Michael. Dignity: Its History and Meaning. Cambridge, MA: Harvard U. Press, 2012. 7 Todos os parágrafos que seguem neste subitem (1.1) têm base em ROSEN, Michael. Dignity: The Case Against. In: McCRUDDEN, Christopher (Editor). Understanding Human Dignity. Oxford: Oxford U. Press, 2013, p. 143-154. A bem da verdade, o que faço neste subitem é quase que integralmente parafrasear o autor. Para não trucar a leitura, vou reservar os rodapés para referências das citações literais. Sobre as traduções do alemão, ver nota 10 abaixo. 8 ROSEN, Dignity: The Case Against. p. 144.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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modernista ampliou-se depois da 2ª Guerra Mundial, quando atrás das fachadas de concepção

clássica e estática, que representava a lisonja da dignidade dos imperadores e seus rituais galantes,

se escondia uma sociedade capitalista e dinâmica, na qual a guerra industrializada provocara o

morticínio em massa. Assim, diz Rosen, não somente a ideia nietzschiana de filósofos como

aristocratas epistêmicos se tornaria uma repelente forma de arrogância, mas também a

sustentação cínica de fachadas ilusórias como a da dignidade aumentaria o poder destrutivo das

forças escondidas pelas mesmas fachadas.

A segunda imputação de Rosen vem com a seguinte provocação, retirada da opereta Os

Gondoleiros, de William Gilbert e Arthur Sullivan: “quando todo mundo é alguém, joão-ninguém é

qualquer um” (when everybody’s somebody, nobody’s anybody). O autor aqui retoma a sugestão de

Schopenhauer e explora a expressão, propositadamente utilizada antes (e acima grifada),

“grandiosidade e ao status elevado”. Se olharmos, diz Rosen, a história da palavra “dignidade”,

veremos que muitas das palavras hoje traduzidas ao inglês (e ao português, acrescento eu) por

dignidade eram associadas com classe social e majestade ––– real ou divina.

O raciocínio é este: se a dignidade é uma questão de classe social, então estamos falando de

uma convenção social, a qual precisa somente ser aceita para ser válida; não é necessário que a

dignidade denote alguma coisa. É aqui que entra a segunda objeção: se não há nada na dignidade

além de uma convenção social, qual o significado de atribuir a todos os seres humanos, pelo só fato

de serem humanos, algo (a dignidade) que originariamente era atribuído somente a alguns? Vem

daí a satírica frase de Gilbert e Sullivan acima citada.

A terceira imputação de Rosen, que ele chama de “núcleo transcendental”, decorre de uma

tentativa ––– que será fracassada, diz Rosen ––– de responder à segunda imputação com um algo

mais que mera convenção, e que esse algo mais estaria ligado à ideia kantiana segundo a qual a

dignidade seria o fundamento último da igualdade e dos direitos humanos, o seu “núcleo

transcendental”.

Ocorre que, para o Kant de Rosen, não há qualquer núcleo transcendental na dignidade,

porque a dignidade em Kant é o nome dado a uma espécie de valor. E os valores, em Kant, são de

duas classes, como dito na Fundamentação da Metafísica dos Costumes: “No reino dos fins tudo

tem ou um preço ou uma dignidade”. Quando algo não tem preço, é porque tem dignidade, diz

Kant. Mas, continua Kant, “a moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as

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Temas de filosofia política e jurídica

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únicas coisas que têm dignidade”.9 Esse é, segundo Rosen, o “núcleo transcendental”, e o grande

problema a ser enfrentado é o seguinte: mesmo se o admitirmos, não sabemos no que ele ajuda a

orientar nossa conduta, i.e., não sabemos como devemos nos comportar.

Consideremos, propõe Rosen, que a dignidade seja algo inerente a mim em virtude da

minha personalidade. Embora seja possível raciocinar instrumentalmente sobre coisas que têm

“preço”, minha dignidade, não importa como eu seja tratado, não poderia, segundo o Kant de

Rosen, ser aumentada ou diminuída. Isso porque, para Kant, a dignidade é inerente à minha pessoa,

não ao meu corpo, e ela não pode ser destruída nem com a minha morte. Como essa compreensão

poderia guiar algum tipo de conduta? Em suma, o problema de Michael Rosen (que será também o

de Möllers, como veremos) é este: qual normatividade podemos retirar da dignidade? Noutras

palavras: como a dignidade guia nossa conduta?

É claro que Kant pensa oferecer, diz Rosen, um arcabouço de guia de ação. Mas a teoria

kantiana é muito controversa. Rosen refere que a “visão dominante” entre os kantianos

contemporâneos é a de que Kant endossa o “princípio do consenso”; para Rosen, isso não pode ser

correto. O que pode ser mais obviamente capaz de ser consentido, pergunta Rosen, do que as

pessoas deverem ter o direito de tirar a própria vida? Mas Kant nega esse direito tão

ferrenhamente quanto um bispo católico. As mesmas incertezas exsurgiriam, diz Rosen, em relação

ao que Kant considera como sendo “deveres pessoais”. Para Rosen ––– obviamente um não

kantiano –––, é surpreendente que, dadas as dificuldades e controvérsias havidas em torno da

filosofia moral de Kant, a dignidade tenha-se tornado tão proeminente no discurso político e

jurídico. Devemos então supor, diz Rosen, que há algo mais por trás da dignidade que não somente

o kantismo.

Isso leva Rosen à sua quarta objeção: a dignidade seria um cavalo de Troia para ataques à

igualdade inspirados na religião. A história da dignidade, lembra Rosen, vai de mãos com a história

do Cristianismo, o que não é nada estranho, dado que a história do pensamento social ocidental

tem sido a do Cristianismo. Três das mais importantes linhas históricas de pensamento sobre o

significado da dignidade, diz Rosen, são encontráveis já em Cícero, mas depois do séc. XVIII passam

a ser essencialmente cristãs: dignidade como status elevado; dignidade como status do ser humano

enquanto tal; e dignidade como forma de discurso que é “dignificado”.

9 Rosen traduz direto do alemão. Usei a tradução portuguesa da obra de KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1997. p. 77-8.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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Rosen refere que, no séc. XIX, o discurso da dignidade tornou-se bastante significativo no

Catolicismo, principalmente sob o pontificado de Leão XIII, para quem a dignidade era parte de uma

visão de mundo que vindicava hierarquia ––– Igreja, sociedade, família. Rosen cita a Encíclica Quod

Apostolici Muneris, de 1878:

Por isso, assim como no céu quis os coros dos Anjos fossem distintos e

subordinados uns aos outros, e na Igreja instituiu graus nas ordens e

diversidade de ministérios de tal forma que nem todos fossem apóstolos,

nem todos doutores, nem todos pastores (1 Cor 12, 28-30); assim

estabeleceu que haveria na sociedade civil várias ordens diferentes em

dignidade, em direitos e em poder, a fim de que a sociedade fosse, como a

Igreja, um só corpo, compreendendo um grande número de membros, uns

mais nobres que os outros, mas todos reciprocamente necessários e

preocupados com o bem comum. [grifei]

Para Rosen, nos pontificados tanto de Leão XIII quanto de seus antecessores Pio IX e Pio X, a

mensagem central da Igreja Católica era claramente a de que a hierarquia social deveria ser

mantida, o que contrariava frontalmente o espírito igualitário da Revolução Francesa.

Estranhamente, porém, ressalta Rosen, no final da 2ª Guerra Mundial, as antes imutáveis verdades

do direito natural transmudaram-se em algo bem menos hostil às doutrinas da igualdade social e

aos direitos, em comparação com o que se passava no pensamento católico do século anterior.

É nessa luz, diz Rosen, que devemos apreciar o aparecimento da dignidade nos vários

documentos sobre direitos humanos surgidos nos cinco anos posteriores ao fim da Guerra,

particularmente a Declaração Universal de Direitos do Homem (1948) e a Lei Fundamental alemã

(1949), as quais consagraram a dignidade em posição proeminente, conectando-a com os direitos e

com a igualdade. O art. 1º da DUDH diz: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e

direitos.” O art. 1, ns. 1 e 2 da Grundgesetz é este:

1. A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é

obrigação de todo o poder público. 2. O povo alemão reconhece, por isto,

os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento

de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo. [grifei]

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Temas de filosofia política e jurídica

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Aqui valeria, sempre com Rosen, o alerta de Schopenhauer sobre a vacuidade da dignidade:

o que se perderia se simplesmente disséssemos “todos os seres humanos são livres e iguais em

direitos”? O caso do texto alemão é mais difícil, porque precisamos explicar duas coisas: (i) como

violamos a dignidade humana e (ii) como conectamos a dignidade com “direitos invioláveis e

inalienáveis”. Mas então retornamos ao problema kantiano.

Rosen, entretanto, sugere, dialeticamente, que tudo isso não seria grande problema, afinal

houve, no final da 2ª Guerra, um acordo entre o humanismo democrático liberal e a Igreja Católica

em torno das básicas igualdades e direitos; se a inclusão da dignidade ao lado dos direitos aduz

pouco conteúdo à DUDH, ao menos a dignidade serve como expressão de união, e tolerar algum

logro é um preço pequeno a pagar por algo tão importante. O próprio Rosen, contudo, entende

que o argumento seria demasiado otimista: adotar a dignidade ––– seja na forma kantiana, seja na

católica ––– deixa em aberto a questão de como eticamente devemos agir na prática, e aqui há

acordos e desacordos entre os humanistas democrático-liberais e o catolicismo. Os ferrenhos

desacordos na área da bioética refletem hoje, na prática, a falha da dignidade em guiar

comportamentos.

Isso leva Rosen à penúltima objeção, denominada “ataque à autonomia”. Rosen inicia

referindo-se ao artigo da Professora Ruth Macklin, publicado no British Medical Journal em 20 de

dezembro de 2003 e intitulado “Dignidade é um conceito inútil” (Dignity is a useless concept), no

qual a autora entende que a dignidade não tem nenhuma função positiva a cumprir, por ser

extremamente vaga e por simplesmente nada acrescentar à compreensão da temática. Esse

entendimento, aduz Rosen, foi logo compartilhado por vários autores, em especial pelo linguista e

psicólogo Steve Pinker, cujo artigo “A Estupidez da Dignidade” (The stupidity of dignity), publicado

em 28 de maio de 2008 na revista The New Republic. Em poucas palavras, Pinker faz eco às críticas

de Macklin e sustenta que o conceito de autonomia, entendido enquanto “consentimento

informado”, é tudo o que a bioética precisa, e a dignidade nada tem a ajudar. Mas será, pergunta

Rosen, que a dignidade seria simplesmente uma forma elaborada de dizer “autonomia”?

Essa questão, sustenta Rosen, fica complicada se trouxermos Kant uma vez mais.

“Autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza

racional”,10 diz Kant. Ocorre que Kant entende por autonomia algo diferente do que entendem

Macklin e Pinker. A ideia destes últimos é a moderna: autonomia é a soberania do self, i.e.,

10 KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. p. 79.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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essencialmente, a capacidade/possibilidade de cada um de agir conforme a própria vontade. Não é

essa a visão de Kant, diz Rosen. Para Kant, autonomia seria a escolha do nosso eu superior,

numênico ––– seria algo, na verdade, próximo a um dever moral. É dessa visão de autonomia que

Kant deriva um dever moral de não cometer suicídio, de não desenvolver suas própria capacidades.

A visão moderna de autonomia, diz Rosen, não precisa negar a existência de deveres do

homem para consigo mesmo, mas certamente nega o direito do Estado de, em nome desses

deveres, ignorar as escolhas individuais. Essa visão moderna foi sustentada na famosa “Petição dos

Filósofos” ofertada por seis filósofos perante a Suprema Corte norte-americana no caso Planned

Parenthood v. Casey, julgado em 1992, no qual se discutia o direito de morrer. A Suprema Corte

então expressamente vinculou dignidade pessoal e autonomia para afirmar o direito de as pessoas

tomarem suas próprias decisões em questões envolvendo as mais íntimas escolhas pessoais. Em

suma, a dignidade foi tratada como sinônimo de autonomia de poder de decidir o que era

importante à vida de cada um ––– no caso, o direito de morrer.

Entretanto, a visão oposta também aparece na teoria do direito e nos tribunais. Rosen cita,

em nítido contraste, o conhecido caso francês do lançamento de anão, decidido tanto pelo

Conselho de Estado francês quanto pela Corte Europeia de Direitos Humanos exatamente no

sentido contrário, i.e., denegando ao anão o direito ––– consciente e bem informado ––– de querer

participar da atividade de ser arremessado (e com isso ganhar seu sustento). O argumento usado

foi este: arremesso de anão é indigno → arremesso de anão viola a dignidade dos que participam

da atividade → dignidade é inviolável → o fato de que o arremesso de anão tenha sido uma

atividade livremente escolhida pelos participantes não é razão suficiente para permiti-la.

A última objeção de Rosen refere-se à democracia: a dignidade seria utilizada pelas cortes

como uma licença ilegítima para invalidar escolhas democráticas. O argumento é simples: a revisão

judicial tem sido ligada à “dificuldade contramajoritária”, i.e., à dificuldade de aceitar que alguns

poucos juízes possam ir contra ao que estabeleceu a maioria dos representantes do povo. Os

direitos individuais têm entrado em cena justamente como elemento de proteção contra a “tirania

da maioria”; se a dignidade humana é encarada como um valor transcendental ao indivíduo, como

uma varinha mágica da qual brotam os direitos, e se não há consenso sobre o que ela significa,

então estaria aberta a porta para que alguns poucos juízes invalidem decisões da maioria com base

na dignidade humana.

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Temas de filosofia política e jurídica

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Há interessantes exemplos de invalidações de atos administrativos e legislativos com base

na dignidade. O caso do anão julgado pelo Conselho de Estado francês em 1995 é um exemplo.

Duas decisões no Tribunal Constitucional alemão sobre o aborto, em 1975 e 1993, também servem

aqui de ilustração: a Corte germânica entendeu, com base na dignidade, em limitar a possiblidade

de aborto, contrariando as propostas legislativas e as pesquisas de opinião subsequentes, que

revelaram um percentual de mais de 60% de alemães como favoráveis à prática abortiva.

Ficaríamos melhor sem a dignidade? ––– pergunta Rosen. A pergunta está mal posta, diz

ele. A dignidade está por demais entrincheirada no nosso discurso. O que é preciso é exigir, dos que

empregam a dignidade no discurso público, ao menos uma melhor especificação de sentido do que

entendem por dignidade. Estaríamos então em melhor posição para resistir ao uso da dignidade

como “uma cloaca na qual partes interessadas pretendem impor suas prescrições morais, as quais

carecem de legitimidade do mandato popular”.11

1.2. A posição de Christoph Möllers

Serei mais breve na exposição da crítica de Christoph Möllers, Professor de Direito Público e

Teoria de Direito da Universidade de Berlim, não porque seja menos importante, mas porque ela é

mais fácil de ser resumida. O artigo, intitulado “O Triplo Dilema da Dignidade” (The Triple Dilemma

of Human Dignity), pretende argumentar sistematicamente contra o uso da dignidade humana em

ordenamentos jurídicos que protegem direitos individuais.12

Möllers parte de um caso concreto, julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos em

2008, KU vs. Finlândia, para sustentar, em suma (e no mesmo sentido de Rosen), que o conceito de

dignidade humana não é dotado de normatividade suficiente para orientar a conduta do cidadão

nem a do Estado. Essa tese central é sustentada por três argumentos básicos ––– daí o título O

Triplo Dilema da Dignidade Humana –––, que exponho logo abaixo. Antes, relato o caso.

Na Finlândia, alguém (vou chamá-lo de ofensor) postou em site de relacionamentos uma

foto e a descrição física de um menino de doze anos (vítima), usando-a como propaganda sexual. O

pai da vítima pediu à polícia para identificar o ofensor, mas o provedor da internet recusou-se a

11 ROSEN, Dignity: The Case Against. p. 154. 12

Ver MÖLLERS, Christoph. The Triple Dilemma of Human Dignity. In: McCRUDDEN, Christopher (Editor). Understanding Human Dignity. Oxford: Oxford U. Press, 2013, p. 173-187. Procedo da mesma forma: este item (1.2) é retirado integralmente das ideias de Möllers; as notas de rodapé ficam reservadas às citações expressas.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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fornecer à polícia os arquivos, alegando estar obrigado a observar as leis finlandesas sobre a

proteção de dados. Todas as tentativas, da polícia e dos promotores, de conseguir identificar o

agressor foram infrutíferas nas três esferas judiciais da Finlândia: todas as cortes entenderam,

sempre por unanimidade, que não havia base legal para exigir do provedor que prestasse a

informação pedida; os crimes que permitiam essa busca de dados não contemplariam o delito em

questão; ademais, o crime cometido estaria prescrito.

A Corte Europeia de Direitos Humanos discordou e julgou em favor da vítima, com base no

art. 8º da Convenção Europeia de Direito Humanos, que protege a privacidade e a vida familiar.

Para a CEDH, embora o objeto do art. 8º fosse a proteção dos indivíduos contra a interferência

arbitrária das autoridades, a norma veiculada pelo artigo não somente determinava

comportamentos negativos do Estado, mas também impunha obrigações positivas de efetivo

respeito à vida privada e familiar. A Corte determinou então que a Finlândia providenciasse o

arcabouço jurídico necessário que permitisse à polícia identificar o ofensor.13 Passemos aos três

dilemas de Möllers.

O primeiro envolve a seguinte “questão substancial”: a dignidade protege a intimidade

privada ou a persona social? Se é um truísmo que o conceito de dignidade humana protege algo

que é específico dos seres humanos, é também verdade que muito do que nos faz humanos

depende de nossas capacidades sociais: língua, deliberação, crítica, orgulho. Aqui mora um

problema cognitivo central: não há linha divisória clara que limite o individual e o social, nem

mesmo se o problema envolve deliberação sobre o corpo humano, como no exemplo da

obrigatoriedade de colher exame de DNA de suspeitos de crimes sexuais. De alguma forma, é o

problema da autonomia versus condição social do homem que se apresenta. E a dignidade pode

ajudar ambos os lados: protege a intimidade da vítima de não ser exposta sem consentimento na

rede de computador, mas também protege o ofensor de não ter sua vida pessoal potencialmente

devassada, o que poderia ocorrer acaso fosse possibilitado o acesso pelo Estado a todos os seus

dados telemáticos, o que certamente seria necessário fazer para identificar o autor da ofensa. Há,

no entanto, um outro e crucial dado: a polícia teria de acessar todos os dados telemáticos do

13 Embora a linguagem da CEDH jamais invoque expressamente a dignidade humana (que aliás não figura explicitamente dentre os “direitos” na Convenção Europeia de Direitos Humanos), Möllers justifica o uso do caso como paradigma da seguinte forma: “quando tentamos explorar problemas conceituais, não dependemos do uso semântico da dignidade num ordenamento jurídico positivo específico, ao menos não na medida em que podemos argumentar no sentido de que os problemas do nosso caso são usualmente discutidos dentro do estrutura [conceitual] da dignidade humana.” MÖLLERS, The Triple Dilemma of Human Dignity. p. 174-5.

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Temas de filosofia política e jurídica

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provedor, i.e., poderia haver a devassa de várias vidas privadas, inclusive de terceiros sem nenhuma

responsabilidade.

O segundo dilema é a “questão relacional”: a dignidade é um direito subjetivo ou valor

objetivo? Supondo que a dignidade seja um “direito subjetivo”, qual seria a prestação exigível acaso

haja a sua violação? Outra linha de questionamento: se a dignidade faz parte do sistema jurídico, e

não somente do sistema moral, ela toma a forma de uma regra ou de um princípio, remontando a

valores? Não é fácil responder a essas questões segundo o caso paradigma.

Mas há ainda outro aspecto neste tópico: um problema negligenciado da teoria dos direitos

humanos é o de como sancionar coerentemente suas violações. Se a dignidade humana é

considerada um direito subjetivo particular que goza de posição central no sistema jurídico e

inclusive de superioridade em posição hierárquica, não deveria a sua violação merecer maior

reprimenda? Se assim deveria ser, os ordenamentos jurídicos não parecem isso refletir, uma vez

que a violação de alguns direitos são muitas vezes sancionadas com a simples invalidação do ato; e,

em relação à violação da dignidade, se ela é um direito superior em hierarquia, sua violação haveria

de corresponder à sanção parecida com a do homicídio. Mas nem o sistema jurídico alemão chega

a essa ponto.

O terceiro dilema gira em torno da seguinte “questão prática”: a dignidade seria um direito

geral sem aptidão para resolver casos específicos. Uma das assunções básicas do discurso acerca da

dignidade humana é a de que ela serve a um “acordo teoricamente incompleto”, i.e., a dignidade

seria uma expressão de consenso para dar curso a razões controvertidas. A história é bem

conhecida: ao final de 2ª Guerra, ocidentais e orientais, capitalistas e comunistas precisavam

formular um documento fundado em pontos comuns de compromisso, e a dignidade era a

expressão de consenso. Em síntese, todos concordavam que a expressão deveria estar lá, mas

ninguém concordava no porquê. Ora, seria difícil que, havendo discordância sobre o significado, a

dignidade pudesse ser aplicada de forma incontroversa.

Em razão disso, não há nada de acidental no fato de que a aceitação universal da dignidade

humana não tenha levado, na sua aplicação prática, a resultados comuns; mais, que a sua aplicação

seja bastante díspar, até mesmo com significados opostos: alguns Estados aplicam a pena de morte

e entendem não violada a dignidade (nos EUA, alguns estados entendem que determinadas

espécies de pena capital são “indignas”, como a cadeira elétrica); mas outros entendem que a pena

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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capital viola a dignidade; uns entendem que a dignidade humana protege o feto e justifica a pena

criminal pelo sistema jurídico, outros que a dignidade a ser protegida pelo mesmo sistema é a da

livre escolha da mãe. A questão é esta: como essas contradições podem ser reconciliadas com a

ideia de haver um núcleo e uma periferia da dignidade? A resposta de Möllers é desoladora: parece

que não podem. E isso porque a ideia de núcleo e periferia não pode ser aplicada se pudermos

identificar significados contraditórios dentro do mesmo conceito. Com todas essas contradições, a

dignidade humana, conclui Möllers, “definitivamente não é o tipo de norma que nos ajude a

prevenir que Estados ou indivíduos ajam de determinada forma”.14

1.3. A proposta de dignidade como status ––– inter-relação entre dignidade e igualdade

Nos últimos anos, o historiador do direito e Professor em Yale James Q. Whitman parece ter

plantado o germe da ideia de tratar a dignidade como um status a ser perseguido;15 e é o

jusfilósofo, teórico político e Professor na NYU Law School e em Oxford Jeremy Waldron quem a

vem desenvolvendo com mais cuidado.16 Em poucas palavras, trata-se de considerar a dignidade

como “posição” (rank) superior, i.e., um status ao qual se deve tratar de elevar (leveling up) todos,

e não somente alguns, como ocorria desde os romanos nas sociedades não igualitárias.

Se posso escolher uma metáfora de Waldron para sucintamente expressar uma ideia rica

em conteúdo, é a de uma sociedade de apenas uma casta ––– uma casta superior ––– onde todos

os humanos são equiparados a brâmanes:

Todo homem um duque, toda mulher uma rainha, todos titulares de uma

espécie de deferência e consideração, a pessoa e o corpo de todos

sacrossanto, na forma que os nobres tinham direito a deferência ou na

14

MÖLLERS, The Triple Dilemma of Human Dignity. p. 174-5. 15

Ver WHITMAN, James Q. Harsh Justice: Criminal Punishment and the Widening Divide between America and Europe. Oxford: Oxford University Press, 2003; WHITMAN, James Q. The Two Western Cultures of Privacy: Dignity Versus Liberty. Yale Law Journal, v. 113, p. 1151-1221, 2004. WHITMAN, James Q. “Human Dignity” in Europe and in the United States: The Social Foundations. Human Rights Law Journal, v. 25, p. 17-23, 2004. 16 Ver, principalmente, WALDRON, Jeremy. Dignity, Rights and Responsibilities. Arizona State Law Journal. Vol. 43, Issue 4, winter 2011, pp. 1107-36; WALDRON, Jeremy. Dignity, Rights, and Rank (Berkeley Tanner Lectures). Oxford University Press, 2012; WALDRON, Jeremy. How Law Protects Dignity? Cambridge Law Journal, v. 71, n. 1, p. 200-222, March 2012. WALDRON, Is Dignity the Foundation of Human Rights? (January 3, 2013). NYU School of Law, Public Law Research Paper No. 12-73. Disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=2196074 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2196074. Acesso em: 21 abr. 2015. Exponho a proposta teórica de Waldron noutro artigo, escrito com Cláudia Perrone. Ver GIACOMUZZI, José Guilherme; PERRONE, Cláudia. A ideia de dignidade na obra de Jeremy Waldron (ainda inédito).

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Temas de filosofia política e jurídica

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forma que um ataque sobre o corpo ou a pessoa de um rei era considerado

um sacrilégio.17

Anote-se que Waldron lembra que a ideia de dignidade como status também aparece em

Kant, mas não no locus comumente citado (a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, como

visto acima na crítica de Rosen), mas sim na Metafísica dos Costumes.18 Na Metafísica Kant também

fala de uma “distribuição de dignidades” e descreve nobreza como uma dignidade que “torna o

possuidor, mesmo sem especiais serviços, membro de um status mais elevado”, completando que

não pode “existir no Estado nenhum homem desprovido de dignidade, pois que tem, pelo menos, a

de cidadão”.19 Depois, em passagem da Metafísica sobre o servilismo, Kant tem mais longa

passagem, citada por Waldron:

Não se tornem escravos dos homens. – Não permitam que o vosso direito

seja espezinhado por outros. Não contraiam dívidas, em relação às quais

não possam prestar garantia plena. Não aceitem benefícios de que possam

prescindir [...] Queixar-se e gemer, ou até mesmo gritar por causa de uma

dor corporal é já indigno de vós, sobretudo se já estais conscientes de ter

sido culpados [...] Ajoelhar-se ou prostrar-se, ainda que seja para manifestar

deste modo a veneração pelos objetos celestes, é contrário à dignidade

humana [...]”.20 [grifei]

É justamente essa ideia de status que Waldron quer resgatar. E é essa a proposta que me

parece promissora. Ela é complexa e não será aqui esmiuçada, mas simplesmente assumida como

um germe razoável a dar à dignidade um conteúdo mais palpável, bastante próximo à igualdade.

Nas palavras de Waldron, “dignidade e igualdade são interdependentes”.21 E, embora

Waldron nesta parte do seus escritos não cite expressamente Kant, parece-me que poderia fazê-lo

com proveito: no mesmo parágrafo da Metafísica sobre o servilismo, mas um pouco antes da

passagem acima citada, Kant se refere à dignidade como “valor intrínseco absoluto” que “obriga

17 WALDRON, Dignity, Rights and Responsibilities. p. 1120; WALDRON, Dignity, Rank, & Rights. p. 34. 18 Ver WALDRON, Dignity, Rank, & Rights.. p. 24-5. A ideia do parágrafo tomo toda de Waldron. Usarei aqui sempre a tradução portuguesa de José Lamego para a obra de KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005 [1797]. Deixarei entre parênteses e precedido de Ak a pág. da edição da Academia das Ciências da Prússia (Akademie Textausgabe). 19

KANT, A Metafísica dos Costumes. p. 204-5 (Ak 328-9). 20 KANT, A Metafísica dos Costumes. p. 369-70 (Ak 436). 21 WALDRON, Dignity, Rank, & Rights. p. 55.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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todos os demais seres racionais do mundo a guardarem-lhe [a ele homem] respeito, podendo

medir-se com qualquer outro desta espécie e valorar-se em pé de igualdade.”22 [grifei]

Por fim, anote-se somente que, na proposta teórica de Waldron, a dignidade não opera

sempre da mesma forma: ela pode operar tanto como fundamento de alguns (não todos) os

direitos como quanto conteúdo de direitos.23 Tentarei sugerir como isso poderia auxiliar na busca

de encontrar sentido nas decisões do STF, tarefa que empreendo abaixo.

2. O STF e a dignidade em matéria de direito administrativo.

A busca no STF por decisões que contenham as expressões “dignidade humana” ou

“dignidade da pessoa humana” trazia, na última semana de maio de 2014, exatos 260 documentos.

As que dizem direta ou indiretamente com o direito administrativo não chegam a vinte, e somente

onze delas serão aqui tratados. Esse corte é menos arbitrário que o anterior: eu tratarei somente

dos acórdãos, e não de decisões monocráticas, e deixarei de fora os acórdãos que mencionam a

dignidade apenas lateralmente.24

2.1 Dignidade humana e concurso público

Quem conhece a jurisprudência do STF sabe que desde o final do século passado começou a

ser discutida uma alteração da interpretação da Corte no que toca ao direito subjetivo à nomeação

do candidato aprovado em concurso público. O STF entendeu uma vida toda que o candidato

aprovado em concurso público teria direito subjetivo somente a não ser preterido por outro

candidato também aprovado mas pior colocado no certame, isso se a Administração Pública

entendesse de nomear algum candidato. Essa nomeação, entretanto, estaria compreendida no

poder discricionário da Administração, i.e., a nomeação do candidato dar-se-ia ou não segundo a 22

KANT, A Metafísica dos Costumes. p. 367 (Ak 435). 23

WALDRON, Dignity, Rank, & Rights. p. 17. 24

São excluídos deste estudo acórdãos que (1) só trazem a expressão “dignidade (da pessoa) humana” desacompanhada de qualquer análise, como por exemplo nos Agravos Regimentais nos RE 648.622/DF, j. em 20.11.2012, e RE 632.644, j. em 10.04.2012, ambos unânimes e pela 1ª Turma, nos quais se encontra a mesma referência genérica de que a “dignidade da pessoa humana” é fundamento do Estado Democrático de Direito; ou que (2) foram captados na busca do sistema em razão de terem citado alguma obra em cujo título apareceu o termo, como por exemplo no RE 579.915-4/RN, j. em 20.08.2008 pelo Pleno (acórdão sobre nepotismo, citando a obra de Ana Paula de Barcelos intitulada A Eficácia Jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Renovar, 2008); ou que (3) usam a ideia de dignidade de forma quase vulgar para referir-se a fatos que todos concordariam serem afrontosos à “dignidade humana”, como os serviços de saúde em alguns hospitais, como por exemplo o caso refletivo no Agravo Regimental no AI 850.017/RJ, j. em 11.09.2012 à unanimidade pela 2ª Turma (acórdão que nega recurso do Município do RJ contra acórdão do TJ local que determina à Administração Pública que dotasse o Hospital Salgado Filho de condições mínimas para o tratamento “digno” do cidadão).

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Temas de filosofia política e jurídica

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oportunidade e conveniência da Administração; assim, o candidato aprovado teria somente

expectativa de direito.25

Ocorre que alguns ministros do STF passaram a entender que o candidato aprovado tem sim

direito subjetivo à nomeação até o número de vagas oferecido pelo edital do concurso. Essa

questão teve repercussão geral reconhecida, e ainda não julgada, já em 2009,26 mas desde antes

disso há decisões do STF entendendo que quem faz concurso público e tira, por exemplo, o 20º

lugar tem sim direito subjetivo a ser nomeado acaso o edital do certame tenha previsto no mínimo

vinte vagas. É a história dessa mudança ––– e o papel que a dignidade joga nessa mudança ––– que

vou tentar contar.

A mudança de posição começa a operar-se por meio de alguns votos vencidos que surgem

na virada do século. O debate travado nos acórdãos que interessam aqui tinha como pano de fundo

a validade da norma contida no inc. VII do art. 77 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que

basicamente criava, de forma expressa, direito subjetivo à nomeação, em 180 dias, ao cargo

público para candidato aprovado dentro no número de vagas obrigatoriamente constante do

edital.27 Ao criar esse direito ao cidadão, a CE do RJ ia aparentemente de encontro à então

dominante jurisprudência do STF que, ao menos desde a CF 1946, entendia, como acima referi, que

o cidadão não tem direito subjetivo à nomeação, mas somente expectativa de direito, e que a

Administração tem discricionariedade para optar por nomear ou não o candidato. A questão em

jogo era esta: poderia a CE do RJ conferir ao cidadão o direito subjetivo de ser nomeado (no caso,

em 180 dias)?

Em no mínimo três julgados o Pleno STF enfrentou o tema e respondeu negativamente à

pergunta, sempre por maioria de votos: são o RE 190.264-7/RJ, julgado em 10.02.2000; o RE

229.450-8/RJ, cujo julgamento iniciou em 04.11.1999 e terminou em 10.02.2000; e finalmente a

ADIn 2.931-2/RJ, julgada em 24.02.2005.28 Em todos esses casos o STF manteve sua tese clássica,

assim resumida pela Corte: a Constituição Federal esgotava a matéria conferindo ao candidato tão-

25

A melhor e mais clara exposição da antiga posição do STF encontra-se no voto do Min. Néri da Silveira no RE 229.450-8/RJ, j. 10.02.2000, Pleno, acórdão referido no texto logo na sequência. 26 RG no RE 598.099-5/MS, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 24.04.2009. 27 Eis o texto em discussão: “VII – a classificação em concurso público, dentro do número de vagas obrigatoriamente fixado no respectivo edital, assegura o provimento no cargo no prazo máximo de cento e oitenta dias, contado da homologação do resultado”. 28

Os dois primeiros declararam incidentalmente a inconstitucionalidade do referido inc. VII do art. 77 da CE do RJ, e o último acórdão declarou a inconstitucionalidade em abstrato, invalidando a norma e retirando-a definitivamente do ordenamento jurídico.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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somente dois direitos subjetivos: (1) o direito implícito de ser recrutado segundo a ordem de

classificação no certame e dentro do prazo do concurso; e (2) o direito explícito de precedência de

todos os candidatos aprovados em concurso anterior sobre os candidatos aprovados em concurso

posterior. Ambos os direitos, frisou o STF, estariam condicionados ao querer discricionário da

Administração Pública. Por isso a CE do RJ não poderia determinar à Administração Pública um

prazo (180 dias, no caso) para nomear os candidatos aprovados. O que estava realmente em jogo e

quais os argumentos do STF para manter suas teses é o que importa aqui.29

O argumento central, construído ao longo dessas decisões, parece ser o de que a CF teria

esgotado a matéria nos seus art. 37, I a IV, não deixando margem a tratamento diferente nas

Constituições dos Estados-membros ou normas infraconstitucionais. O STF também retirou do texto

da CF norma que dá à Administração Pública o poder discricionário de nomear ou não os

candidatos aprovados, norma essa que faria parte da estrutura federativa do Estado. Neste sentido,

o Ministro Carlos Ayres Britto, relator da ADIn 2.931, julgada em 2005, referiu que essa norma seria

cláusula pétrea, e que o dispositivo da CE do RJ feria não só a forma federativa de Estado mas

também a separação de poderes (art. 60, § 4º, I e III, CF).

Alguns ministros, porém, discordaram ––– e são os argumentos discordantes que

interessam –––, porque eles passaram a balizar o entendimento atualmente predominante no STF,

que defende posição diversa, como já referido. O Ministro Sepúlveda Pertence, por exemplo, em

curtíssimo voto ainda em 04.11.1999 no RE 229.450, rechaçou o argumento da discricionariedade

com um raciocínio simples: a CE do RJ teria simplesmente antecipado o juízo discricionário da

necessidade do preenchimento dos cargos para o momento do edital, o qual vincularia o

administrador. O Ministro Octávio Gallotti, também no RE 229.450, entendeu que o direito

subjetivo à nomeação não nascia do edital, mas que a Constituição ou a Lei estaduais poderiam sim

estabelecer esse direito sem ferir a CF.

O Ministro Marco Aurélio, que era o Relator originário do RE 190.264, pediu vista no

referido RE 229.450 e levou os feitos a julgamento conjunto no mesmo dia 10.02.2000. Veio dele a

29 O que segue abaixo é a minha interpretação da forma com que foram construídos os argumentos do STF, e não uma descrição desses argumentos; também não sigo a sequência cronológica dos argumentos do STF, e tampouco analiso os acórdãos nessa ordem. Estou tentando, a bem da verdade, ler as decisões sob a sua “melhor luz”, embora eu discorde tanto da forma quanto do conteúdo da maioria dos argumentos vencedores e vencidos. Não é, contudo, a minha interpretação que importa aqui, nem importa como eu julgaria os casos; quando minha opinião importar para o ponto central deste ensaio (a análise do papel da dignidade nas decisões do STF), isso ficará claro no texto, ou ao menos essa é minha intenção.

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Temas de filosofia política e jurídica

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argumentação mais contundente do lado dos ministros então vencidos: a CE do RJ estava a dar

aplicação ao princípio da moralidade administrativa “em homenagem à fé daqueles que

acreditaram na seriedade da proposta, abandonando a vida normal para dedicarem-se com

exclusividade [...] ao concurso em si”. A Corte, entretanto, seguiu caminho diverso.

Somente cinco anos mais tarde, no seu voto vencido proferido na ADIn 2.931, é que o

Ministro Marco Aurélio invoca expressamente a dignidade: o voto começa com a afirmação de que

o “texto da Constituição do Estado do Rio de Janeiro [...] homenageia um fundamento básico da

República: a preservação da dignidade do homem”.30 Para o Ministro, se o edital do certame

anuncia um determinado número de vagas, a Administração Pública tem o dever de preenchê-las. E

agora a linguagem passa a ser mais contundente: “A Administração Pública não pode brincar com o

cidadão, convocando-o para um certame e depois, simplesmente, deixando esgotar o prazo de

validade do concurso sem proceder às nomeações”. Com esses argumentos, o Ministro Marco

Aurélio propunha mais uma vez abandonar a jurisprudência do STF para conferir direito subjetivo à

nomeação aos candidatos aprovados em concurso público. Só que desta vez, em 2005, ele lança

mão da dignidade humana, o que não ocorrera em 2000.

Essa mesma estratégia argumentativa foi apresentada ––– outra vez sem sucesso ––– no

Ag. Reg. no AI 501.573-1/DF, julgado pela 1ª Turma em 12.04.2005, ficando outra vez vencido o

Min. Marco Aurélio, que novamente fez questão de frisar que a questão do direito subjetivo à

nomeação passa pelos “fundamentos da própria República: a dignidade do homem”. Não sendo

conferido o direito subjetivo ao candidato, a Administração estaria “a brincar com o cidadão”.

Três anos mais tarde, em 16.09.2008, no julgamento do RE 227.480-7/RJ, a tese do direito

subjetivo fez-se enfim vencedora, mas agora na 1ª Turma do STF. O caso tratava exatamente da

existência ou não de direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado em concurso para Oficial

de Justiça Avaliador do Quadro Permanente da Sessão Judiciária do Estado do Rio de Janeiro; dois

ministros entenderam não haver direito subjetivo à nomeação, mas os três restantes entenderam o

contrário. Do voto do Min. Marco Aurélio, sucinto, vê-se o mesmíssimo raciocínio anteriormente

30 Digo inequivocamente porque no RE 192.568-0/PI, 2ª Turma, j. em 23.04.1996, decisão por maioria, o Min. Marco Aurélio, que relatava o processo, já havia feito menção à dignidade para resolver caso que envolvia direito à nomeação em concurso público. São duas as razões para não incluir esse caso como o pioneiro, nem analisá-lo: (1) a invocação da dignidade aparece mais en passant e sem função definida (em meio a longa justificativa, vem dito que “[e]m um Estado Democrático de Direito, exsurge a constância na manutenção da dignidade do homem, exigindo, por isso mesmo, postura exemplar [do Estado]”; (2) o próprio Relator fundamenta longamente o voto em vários princípios: legalidade, moralidade, impessoalidade, sem nada referir sobre a dignidade.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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exposto: “simplesmente atinge a dignidade do homem anunciar-se um concurso público,

sinalizando-se a necessidade de preenchimento de vagas e, existentes as vagas, o Estado

simplesmente não preenchê-las. Não posso conceber isso.”31 Desde então, a tese antes vencida

passou, nalguns casos, dependendo da composição do STF e da Turma, a ser vencedora.

O que importa destacar de toda essa história, que foi propositadamente longa, é que

nenhum outro ministro do Tribunal ofereceu nem eco nem repúdio às insistentes provocações do

Min. Marco Aurélio ao argumento de que estaria violada a dignidade humana enquanto

fundamento da República. Na verdade, a dignidade parece funcionar mais como obiter dictum ou

como retórica apelativa. Como diria Michael Rosen, nada se perde se tirarmos ela do debate. Na

questão em tela, isso é inteiramente verdadeiro. Explicito.

Todo o debate havido entre os ministros girou em torno da existência ou não de direito

subjetivo à nomeação versus poder discricionário da Administração. Mais importante, a tese do

Ministro Marco Aurélio (e outros), antes vencida, de que há direito subjetivo à nomeação parece

ser mais consistentemente sustentada sem o apelo à dignidade, bastando a invocação do princípio

da confiança e da boa-fé objetiva, ou, como eu prefiro, da moralidade administrativa.32 Aliás, o

próprio Min. Marco Aurélio invocou, como vimos, a moralidade administrativa em casos anteriores,

sem apelar à retórica da dignidade, a qual nada tem a fazer na temática.

Alguém dirá que ferir a moralidade administrativa (ou a confiança do administrado ou sua

boa-fé) já é ferir a dignidade humana, talvez porque a dignidade seria um sobreprincípio,33 ou

talvez uma “metanorma”.34 Isso não foi dito pelo Min. Marco Aurélio, mas suponhamos uma tal

proposta, i.e., a dignidade como sobreprincípio, ou como compondo outros princípios, ou sendo

“superior” a todos eles. Ocorre que, no caso específico, não parece haver, salvo se estendermos

demais os significado dos vocábulos, qualquer linha genealógica entre moralidade administrativa,

boa-fé e confiança, de um lado, e dignidade humana, de outro.

31

Citação expressa do voto proferido no RE 227.480-7/RJ, j. por maioria em 16.09.2008 pela 1ª Turma, rel. para o acórdão Min. Cármen Lúcia. A decisão foi dada por três votos a dois, e nem os demais votos majoritários nem os votos vencidos fizeram qualquer referência à dignidade. 32 Para a aproximação da boa-fé objetiva, confiança e moralidade, ver GIACOMUZZI, José Guilherme. A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2013. 33

Parece ser essa a tese, um tanto confusa, de JUSTEN FILHO, Curso de Direito Administrativo. p. 179-80. O autor refere que a dignidade humana é “transcendental”. 34 Ver abaixo item 2.3.

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Temas de filosofia política e jurídica

131

A premissa do Min. Marco Aurélio supõe que a Administração Pública levou a efeito

concurso público ou (i) para deliberadamente não chamar os candidatos ou (ii) sem cuidado de

aquilatar se precisava mesmo dos servidores. E que isso seria “brincar com o cidadão” e trair sua

confiança, ferindo sua dignidade. Não concordo, por no mínimo duas razões.

Primeiro, porque o próprio sistema jurídico ––– com o aval do próprio STF ––– dava à

Administração o direito de realizar concurso e discricionariamente não chamar candidatos. Se no

caso a Administração “brincou” com o cidadão, o ato administrativo é nulo, por desvio de finalidade

(art. 2º, parágrafo único, “e”, Lei 4.717/65), e nesse caso poderíamos concluir, com razão, que

estaríamos diante de uma imoralidade administrativa, uma vez que a moralidade administrativa

prevista como “bem jurídico” protegido no art. 5º, LXXIII, da CF sempre me pareceu a

constitucionalização da teoria francesa do desvio de finalidade.35 Mas nada disso consta do voto, e

nem ––– mais importante ––– a dignidade tem algum papel a jogar aqui. Ela é, parece-me,

desnecessária (assim foi, ao menos, para todos os demais ministros).

Segundo, porque, seguindo o raciocínio do ministro, poderíamos também inferir que toda a

vítima de estelionato (art. 171 do Código Penal brasileiro) tem sua “dignidade” violada, ou mesmo

que a quebra de confiança ou boa-fé no direito privado equivaleria à violação da dignidade.

Parece-me que cairíamos na satírica crítica lembrança de Rosen: “quando todo mundo é

alguém, joão-ninguém é qualquer um”, i.e., se a dignidade é tudo, então ela é nada ao mesmo

tempo ––– em suma, ela não tem função para além da ornamental. Argumentar assim é rebaixar a

dignidade, e não exaltá-la. E repito: a dignidade não parece contribuir em nada para o julgamento

dos feitos, nem sequer foi referida por qualquer dos demais ministros do STF.

Seja como for, a vinculação entre dignidade humana, segurança jurídica, boa-fé e

moralidade administrativa foi feita de forma mais sutil e quiçá interessante em no mínimo duas

outras oportunidades pelo STF, o que nos levará a outro tópico.

35 Ver GIACOMUZZI, A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública. p. 23-194.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

132

2.2 Dignidade humana e demora de apreciação de aposentação pelos Tribunais de Contas –––

segurança jurídica e moralidade

Nos Mandados de Segurança 25.116/DF, julgado por maioria pelo Pleno em 08.09.2010, e

28.720/DF, julgado à unanimidade pela 2ª Turma em 20.03.2012, ambos de Relatoria do Ministro

Ayres Britto, o STF fez expressa vinculação entre dignidade humana, segurança jurídica, boa-fé e

moralidade.

Mais especificamente, foi dito de forma expressa ––– e posto na ementa do acórdão –––

que o princípio da segurança jurídica é “projeção objetiva do princípio da dignidade da pessoa

humana e elemento conceitual do Estado de Direito”. Essa premissa, somada à da “lealdade, um

dos conteúdos do princípios constitucional da moralidade administrativa (caput do art. 37)”, fazem

com que seja necessário, diz o STF, “se reconhecer [...] certas situações jurídicas subjetivas ante o

Poder Público”. Nos casos concretos, a “situação” a ser reconhecida foi o direito subjetivo do

cidadão a ver a legalidade do ato de aposentadoria apreciada pelos Tribunais de Contas no prazo de

cinco anos. Findo esse prazo, passa o cidadão a ter o direito subjetivo de exercitar o direito ao

contraditório e à ampla defesa nos processos perante o Tribunal de Contas que aprecia a sua

aposentação. Antes disso, não há esse direito, por tratar-se de relação administrativa interna entre

Poderes, i.e., antes disso o TC pode apreciar o ato concessivo de aposentadoria sem dar ao agente

público ciência do procedimento.

Como sabemos, dentre as atribuições dos Tribunais de Contas está a de “apreciar, para fins

de registro, a legalidade [...] das concessões de aposentadorias” (art. 71, III, CF). A rigor, os atos de

aposentadoria dos agentes públicos são exemplos clássicos de atos complexos, i.e., que só se

aperfeiçoam com a integração da última vontade, ou seja, no caso, somente com o registro no

Tribunal de Contas. Pois o STF disse, em apertado mas suficiente resumo, que a demora de mais de

cinco anos em apreciar a legalidade da aposentadoria do agente público fere a segurança jurídica, a

qual, na linguagem do Min. Ayres Britto, é a “projeção objetiva da dignidade humana”, bem como a

moralidade administrativa, da qual decorre o dever de lealdade. O administrado não pode esperar

tanto tempo pela resposta do Estado: ele confia de boa-fé que o Estado em cinco anos haverá de

dar-lhe uma resposta.

Não houve grande debate na Corte sobre a inserção da “dignidade humana” no argumento

(dado relevante: o acórdão tem 149 laudas), e é fácil ver que ela poderia ter sido, mais uma vez,

retirada do raciocínio sem qualquer perda de significado ou de clareza. Aliás, a prova disso está nos

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Temas de filosofia política e jurídica

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próprios acórdãos referidos, os quais citam como referência o MS 24.268-0/MG, j. em 05.02.2004,

decisão por maioria, relator Ministro Gilmar Mendes, no qual o mesmíssimo tema foi debatido,

tendo chegado o STF à idêntica solução e usado, no seu raciocínio, os mesmos princípios da

confiança, proteção à segurança e Estado de Direito, mas absolutamente nada dizendo sobre a

dignidade. O que choca o leitor atento é que as ementas e as partes dos acórdãos de relatoria do

Ministro Ayres Britto são quase idênticas à ementa e à parte do acórdão de relatoria do Ministro

Gilmar Mendes. A diferença é que o Min. Ayres Britto ornamentou os feitos de sua relatoria com a

menção expressa à dignidade.

É ainda e por fim importante notar que o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto vista no MS

25.116, relata longamente o feito, as conclusões e os fundamentos do voto do Min. Ayres Britto,

mas nem aí ele menciona a dignidade. Consciente ou inconsciente, a cautela do Min. Gilmar

Mendes em não fazer qualquer referência à dignidade, mesmo quando relata o voto do relator,

contrasta nitidamente com a vontade, consciente ou inconsciente não importa, do Min. Ayres

Britto em exaltar a dignidade.

Mas talvez possamos retirar da linguagem do voto (ou melhor, da frase) do Min. Ayres Britto

algo mais que ornamento. Segundo a linguagem do Min. Ayres Britto, a dignidade seria algo a ser

“protegido” pela segurança jurídica. Embora o voto não contenha nenhum desenvolvimento nesse

sentido, a ideia que parece subjacente é a de que a dignidade é um bem, e não o fundamento do

direito. Aqui parece haver espaço para a ideia de Waldron, brevemente referida no item 1.3 supra,

de que a dignidade não opera somente como fundamento de (alguns) direitos, mas também como

conteúdo de direitos. O problema seria saber qual direito conteria a dignidade neste caso. Seria o

“direito à razoável duração do processo” (art. 5º, LXXVIII, CF)? É difícil dizer que esse direito

contenha a ou sirva para proteger um status normativo superior do cidadão, i.e., sua dignidade,

como por exemplo o direito a não ser torturado (art. 5º, III, CF) ou mesmo o direito a não ser

processado sem o devido processo (art. 5º, LIV, CF), instrumentos pelo qual podemos entender que

o Direito se utiliza para proteger a dignidade.36

36 Ver WALDRON, How Law Protects Dignity? p. 203.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

134

2.3 Dignidade humana e serviço público de transporte coletivo de passageiros –––Metanorma?

Igualdade?

Em 08.05.2008 o Pleno do STF julgou a ADIn 2.649-6/DF, que tratava de apreciar a

constitucionalidade da Lei Federal 8.899, de 1994, a qual concedia passe livre no sistema de

transporte coletivo interestadual às pessoas portadoras de deficiência comprovadamente carentes.

Por nove votos a um, o STF julgou improcedente o pedido da ABRATI, entidade privada

representante das transportadoras de passageiros.37

O voto da Relatora, Ministra Cármen Lúcia, elogiado e endossado pela quase totalidade dos

ministros, é uma ode à solidariedade social e à teoria francesa do serviço público; a Ministra

inclusive cita, em francês e sem tradução, a obra de Gilles Guglielmi e Geneviève Koubi, Droit du

service public, de 2000, um dos mais completos estudos sobre o tema na França.38

É possível resumir assim os argumentos do longo voto: como a CF prevê que o Estado deve

concretizar os valores do bem-estar, da justiça social, da sociedade fraterna, pluralista e sem

preconceitos; como a mesma CF assegura a igualdade material de todos; como dentre os objetivos

da República está o da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem discriminações

etc., decorreria da CF, no entender da Ministra, “o princípio jurídico da solidariedade”; soma-se a

isso o fato de que o serviço público é marcado e norteado mais pelo interesse público do que pelo

interesse particular, o que dá ao Estado o “dever constitucional incontornável” de moldar as

estruturas públicas para o “atingimento dos fins estabelecidos e das ordens que nele [Estado]

atuam”; e, por fim, como tanto os fins como as ordens ––– e aqui o que nos importa ––– “têm o

seu fundamento da busca incessante da dignificação do ser humano, na igualação jurídica de todas

as pessoas pela oferta igual de oportunidades na participação da vida social” [grifei], então não

haveria inconstitucionalidade alguma em impor às transportadoras a gratuidade no transporte de

pessoas deficientes.

37

Este acórdão serviu de paradigma para caso análogo, o Ag. Reg. no AI 847.845/RJ, j. em 11.12.2012 à unanimidade pela 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, no qual se discutia a gratuidade de transporte para deficientes mentais. Esse acórdão simplesmente reproduziu os fundamentos da ADIn 2.649, comentada no texto. 38 Desde 2007 o leitor tem edição mais recente a consultar. Ver GUGLIELMI e KOUBI, GUGLIELMI, Gilles J.; KOUBI, Geneviève. Droit du service public. 2.ed. Paris: Montchrestien, 2007. É tradição do STF (e de outros tribunais) citar em francês (e outras línguas estrangeiras) e não traduzir. Não quero exagerar na crítica e por isso não vou nem de longe sugerir que deixar de traduzir ao português a passagem escrita idioma estrangeiro fere a “dignidade humana” dos jurisdicionados que não leem em francês (a esmagadora maioria da população brasileira); mas isso me parece um comportamento que dá ares de status “superior” à linguagem do STF, para dizer o menos. Quem quer igualar não pode supor que escrever em francês ajudará a elevar o status dos que não leem em francês. Curiosamente, a própria CF dispõe expressamente, no art. 13, que “A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”.

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Temas de filosofia política e jurídica

135

Este voto merece atenção e parece conter um germe de razoável sentido à dignidade: de

forma clara, a Ministra quis “dignificar” os deficientes por meio da interpretação de que é

constitucionalmente válida a gratuidade de passagens de ônibus intermunicipais. Qual o sentido de

“dignidade” aqui? Da linguagem parece claro o propósito que a Min. Cármen Lúcia viu na lei sob

julgamento: o de elevar o status dos deficientes carentes (a “igualação jurídica”, nas palavras da

Min. Cármen Lúcia). O aplauso de Waldron seria pleno, ao menos no que toca a identificação do

sentido e do papel que a dignidade teve no propósito da lei. Antes de explorar esse viés, contudo,

faço alguns comentários contra o pano de fundo crítico.

Sob esse ponto de vista crítico, a fundamentação do voto da Relatora permite concluir que

qualquer serviço público poderia ser gratuito para deficientes comprovadamente carentes, desde

que houvesse lei assim instituindo. No entanto, se assim fosse, a dignidade poderia ser utilizada

para qualquer propósito “igualador” por meio de lei, sobrepondo-se aprioristicamente sobre todo e

qualquer outro “princípio”. Seria então a dignidade uma “metanorma”?

Essa visão é encontrada no mesmo julgado, no voto do Ministro Ricardo Lewandowski: “A

nossa Constituição, como sabemos, em homenagem ao princípio ou, na verdade, da verdadeira

metanorma da dignidade humana, foi extremamente pródiga no que diz respeito à proteção do

deficiente físico” [grifei]. Logo depois, o ministro cita três artigos da CF: arts. 23, II; 227, §§ 1º e 2º;

e 244 que embasariam sua tese.

É difícil saber qual o significado de “metanorma” no voto. Façamos um esforço analítico e

tomemos uma proposta teórica desenvolvida entre nós, a de Humberto Ávila, para tentar elucidar o

argumento: segundo essa proposta dogmática, metanormas seriam “normas de segundo grau”,

“normas sobre a aplicação de outras normas”, i.e., seriam “postulados”, os quais na verdade

“estabelecem a estrutura de aplicação de outras normas, [os] princípios e [as] regras”.39 Segundo

esse entendimento, “sempre há outra norma por trás da aplicação [dos postulados] da

razoabilidade, da proporcionalidade e da excessividade”40. Voltando ao acórdão: será que a

dignidade teria sido tratada (talvez indiretamente, pela Min. Cármen Lúcia, mas diretamente, pelo

Min. Lewandowski) como uma norma estruturante da aplicação de outra norma?

39

Tomo os conceitos de “metanorma” e “postulados” a ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 15.ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 175 e ss. 40 ÁVILA, Teoria dos Princípios. p. 180.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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Penso que não. A proposta teórica da metanorma como norma estruturante de princípios e

regras é uma proposta metodológica acerca do como devam ser aplicadas outras normas, sobre

quais as relações e vinculações entre “elementos (bens, interesses, valores, direitos, princípios,

razões)”.41 Nessa proposta não parece haver espaço para a dignidade como “norma estruturante”.

Aliás, essa mesma proposta teórica apresenta a dignidade como princípio violado no caso em que o

STF declarou inválida, porque desproporcional, ordem judicial para submissão do paciente a exame

de DNA (1ª Turma, HC 76.060-SC, j. 31.03.1998). O princípio da dignidade teria sido violado, “na sua

inter-relação horizontal com os princípios da autodeterminação da personalidade e da

universalidade da jurisdição, que deixaram de ser aplicados adequadamente”.42

Mas pode, claro, o Min. Lewandowski tenha usado “metanorma” noutro sentido, por

exemplo, como algo “superior” ou talvez “fundante” de outras normas, no sentido de ser a

dignidade um “valor maior”. Aceitemos essa premissa e, embora o voto não indique esta direção de

forma explícita (não seria difícil fazê-lo, uma vez que essa posição parece ser sustentada por parte

da doutrina nacional),43 assumamos a seguinte linha argumentativa: a dignidade humana é uma

metanorma que fundamentaria tanto o dever do Estado de proteger os deficientes físicos quanto

os direitos desses deficientes a serem protegidos pelo Estado. O problema deste raciocínio é que

não fica claro que direitos a “metanorma” fundamentaria. Temos aqui duas possibilidades: (i) todos

os direitos; (ii) alguns.

Sigamos a primeira possibilidade: se a dignidade fundamenta todos os direitos, por qual

razão ela não fundamentaria o direito oposto em questão, o da livre iniciativa, que aliás aparece na

CF 1988 tanto como princípio que fundamenta a ordem econômica (art. 170, caput) quanto no

mesmo artigo da dignidade humana como “fundamento da República” (art. 1º, IV)? Neste caso, por

que razão o Min. Lewandowski pinçou somente o “fundamento” da dignidade, e não o da livre

iniciativa? Cairíamos no mesmo problema de normatividade identificado por Rosen e Möllers: se a

dignidade é uma “metanorma” que fundamenta tanto o direito dos deficientes quanto a liberdade

de comércio, então ela é imprestável como regra normativa. Para usar a linguagem corrente,

teríamos que ver qual direito tem “mais peso” por meio de um balanceamento entre “dignidades”?

E nenhum balanceamento foi feito no voto.

41

ÁVILA, Teoria dos Princípios. p. 184. 42 ÁVILA, Teoria dos Princípios. p. 176-7. 43 Ver notas 4 e 33 supra.

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Temas de filosofia política e jurídica

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Sigamos agora a segunda possibilidade, i.e., a dignidade fundaria somente alguns direitos

(humanos ou fundamentais). Para além do fato de absolutamente nada no acórdão indicar fosse

essa a intenção do Min. Lewandowski, é claro que a argumentação agora desborda do dogmático-

jurídico para o filosófico: nada na CF ou no ordenamento jurídico brasileiro sugere isso. Mas a

possibilidade, como já referido acima, não é estranha a filósofos que se têm dedicado ao estudo

dos direitos humanos e da dignidade. Penso que vale a pena explorá-la, ainda que brevemente,

porque aqui talvez haja um germe de racionalidade argumentativa, ou pelo menos possamos

escapar da crítica de do “quando todo mundo é alguém, joão-ninguém é qualquer um”.

Partindo da premissa de que não há outra opção para os filósofos, teóricos do direito e da

política senão desenvolver, influenciar e completar o discurso dos direitos humanos,44 o filósofo

James Griffin sustenta haver largo consenso entre os filósofos que o direito a “férias remuneradas

periódicas” (previsto no art. 24 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948) não é um

“direito humano” no mesmo sentido do que o direito à liberdade de expressão.45 É essa também a

visão de Waldron, para quem a dignidade humana, como antes mencionei, pode ser fundamento

de alguns direitos (como por exemplo o direito a não ser torturado, ou preso ilegalmente), mas não

de outros (o referido direito às férias remuneradas).

Pois bem, aqui é o momento de recuperar o argumento antes suspenso quando da análise

do voto da Min. Cármen Lúcia na ADIn 2.649-6/DF. É possível, como eu referi antes, emprestar ao

seu raciocínio o sentido de que ela estaria querendo “elevar” a dignidade, i.e., a posição dos

portadores de deficiência carentes a outro patamar. A mencionada igualdade material referida no

voto convida essa interpretação, e, também como já vimos, a posição de dignidade como status

está diretamente relacionada à igualdade. Mas o fato de se pretender dignificar ––– elevar o status,

igualar ––– certa categoria de pessoas (deficientes carentes) não encerra a questão do ponto de

vista da constitucionalidade da norma examinada.

Olhemos a questão pelo prisma da igualdade: qual o critério igualador? Seria o de igualação

de status entre os portadores de deficiência e os não portadores? Se é assim, poderíamos

questionar se a gratuidade da tarifa é a melhor forma de promover a igualdade, ou, se quisermos,

dignificar as pessoas portadoras de deficiência. É que, neste caso específico, dignificar uns será

feito a custa de outros (os que financiarão a tarifa não paga). A ideia de status não parece permitir a

44 Ver GRIFFIN, James. On Human Rights. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 19. 45 GRIFFIN, On Human Rights. p. 16.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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conclusão, tout court, que para que o status de um grupo seja elevado, outros tenham que pagar

por isso.

E mais: a igualdade sempre pressupõe o exame de critérios de igualação (homem e mulher

são iguais para fins tributários, mas não para licença maternidade); será que o critério da deficiência

é o melhor para (des)igualar carentes e não carentes? É importante ver que o resultado da política

legislativa é este: não são todos os carentes que gozarão de gratuidade, mas sim o deficientes

carentes. Por que não as crianças carentes? Ou os idosos? Ou os estudantes? Valeria aqui o mesmo

raciocínio?

Em suma, há no voto da Min. Cármen Lúcia, mais do que no do Min. Lewandowski, um

germe de racionalidade a ser explorado na direção do sentido normativo da dignidade como status.

No entanto, se o sentido da dignidade fica mais claro neste caso, ele não resolve a questão tout

court.

2.4 Dignidade e provimento de cargo público por estrangeiro.

Ao julgar por unanimidade, em 14.06.2011, o Ag. Reg. no RE 346.180/RS, a 2ª Turma do STF

entendeu que, embora o “núcleo essencial” dos direitos atribuídos aos estrangeiros antes das

Emendas Constitucionais 11/1996 e 19/1998 compreendesse as prerrogativas necessárias ao

resguardo da dignidade humana, isso não abrangia o direito de ocupação de cargos públicos na

estrutura administrativa brasileira.

O caso era este: um cidadão alemão integrava o quadro técnico da Universidade Federal de

Santa Maria desde 1996, na condição de empregado público contratado pela CLT. Esse cidadão

queria ver reconhecido o vínculo estatutário, para isso precisando afastar a incidência do óbice

contido no §6º do art. 243 da Lei Federal 8.112/1990 (Estatuto dos Servidores Públicos Civis da

União), o qual determina, em disposição transitória, que os estrangeiros com estabilidade no

serviço público contratados pela lei anterior (Lei Federal 1.711/1952) passariam a integrar tabela

em extinção, respeitados os direitos adquiridos, enquanto não adquirissem a nacionalidade

brasileira. O cidadão alemão entendeu que essa norma era discriminatória dos estrangeiros.

O Ministro Joaquim Barbosa, relator, em fundamentação sucinta, resolveu o caso em quatro

parágrafos curtos, numa sequencia argumentativa assim resumida: (1) os direitos e garantias

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Temas de filosofia política e jurídica

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individuais, igualdade inclusive, aplicam-se aos estrangeiros → (2) o núcleo essencial dos direitos

dos estrangeiros abrangia a proteção à dignidade, mas isso não significava, até o advento das

Emendas 11/1996 e 19/1998, que os estrangeiros poderiam ocupar cargos públicos, uma vez que o

primitivo inc. I do art. 37 da CF contemplava apenas cidadãos brasileiros → (3) essa configuração

normativa brasileira anterior configurava uma “tutela mais severa da soberania estatal”, soberania

essa que é “fundamento da República (art. 1º, I, CF) → (4) por tudo isso, o §6º do art. 243 do

Estatuto não fere a CF e permanece em vigor até que surja outra lei regulando o atual art. 37, I,

CF.46

Em suma, a dignidade aparece en passant no voto, mas não tem papel maior. Fosse

suprimida, não haveria qualquer prejuízo à conclusão. No entanto, para os propósitos deste ensaio,

é importante frisar que o raciocínio levado a efeito pelo Ministro relator parece limitar a dignidade

e conformá-la ao disposto na lei ––– é a lei que conforma e configura a dignidade, a qual “não

abrange” o que não estiver estabelecido no Estatuto. A igualdade ––– que foi de certa forma

equiparada à dignidade, ou, como querem os críticos da dignidade, a igualdade foi “ornamentada”

pela dignidade ––– é a igualdade perante a e nos limites da lei.

Neste julgado é possível novamente notar a vinculação entre dignidade e igualdade. Com

boa vontade talvez possamos ver que a ideia do status pode ajudar a compreender melhor o qual o

papel do termo “dignidade” no acórdão: é um papel “igualador”, i.e., a dignidade pretenderia

elevar os status do professor estrangeiro ao do brasileiro; noutras palavras, o estrangeiro queria a

mesma “dignidade” do brasileiro. Isso, porém, foi negado pelo STF sobre o fundamento de que a

igualdade (ou a dignidade) deve dar-se nos limites legais.

2.5 Dignidade e serviço de táxi.

O último acórdão a analisar é o RE 359.444-3/RJ, j. em 24.03.2004, por maioria, pelo Pleno

do STF, relator para o acórdão o Min. Marco Aurélio. O caso era bastante interessante: no

Município do RJ, foi aprovada lei municipal transformando os motoristas auxiliares de táxi em

permissionários autônomos. Essa lei foi julgada constitucional pelo Tribunal de Justiça do RJ, e o

46 A redação atual do inc. I do art. 37 da CF, dada pela EC 19/1998, é esta: “os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei”. Para comparar, eis a redação original: “I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei” [grifei].

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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Prefeito do RJ recorreu ao STF, que manteve a decisão.47 Várias questões de direito administrativo

e constitucional estavam envolvidas: se há necessidade de licitação em matéria de serviço de táxi,

princípios da separação de poderes, isonomia, impessoalidade. Embora não fossem para o acórdão,

essas questões são laterais aqui. O que importa é o voto do Min. Marco Aurélio, que abriu a

divergência (ficou vencido o relator originário, Ministro Carlos Velloso) e, na sua argumentação,

lançou mão da dignidade humana. Vejamos como e por quê.

A situação fática importa muito aqui. No Município do RJ (como talvez em todos os

municípios de grande porte do Brasil) há um sério problema social na prestação de serviço de táxi,

consistente na “exploração” dos motoristas por parte dos “donos da placa”, da seguinte forma: o

Município autoriza um determinado número de pessoas a explorar o serviço de táxi, mas essa

pessoa “terceiriza”, na maioria das vezes ilicitamente, a exploração do serviço para quem de fato

dirige o táxi. Na prática, o autorizatário oficial, muitas vezes, não dirige o veículo; ele é o “dono da

capelinha”, como referiu o Min. Nelson Jobim no seu voto; quem dirige o táxi são chamados no

acórdão de “motoristas auxiliares” ou “diaristas”. O que a lei municipal fez foi, segundo o STF,

buscar proteger esses auxiliares. E aqui entrou, pela voz de um só Ministro, o argumento da

dignidade, o qual foi alocado na ementa do acórdão, como se fosse a razão de decidir da decisão.

Explicito.

O voto do Min. Marco Aurélio inicia e termina falando do aspecto social da lei. Na parte que

interessa, o Ministro toca no ponto nevrálgico da questão: os motoristas auxiliares são em verdade

explorados pelos “donos da capelinha”. Dessa “exploração” o Min. Marco Aurélio entendeu estar

violada a dignidade humana, que aparece no seu voto somente assim: “Atuou a Câmara,

disciplinando a matéria, para finalizar algo que não poderia viger, em face de novos ares

constitucionais e democráticos, no que dão ênfase maior, homenageiam a dignidade do homem”.

Nenhum outro ministro fez referência à dignidade. Ainda assim ela terminou posta na ementa,

assim redigida:

TAXISTA – AUTONOMIA – DIARISTA – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA –

TRANSFORMAÇÃO – LEI MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO Nº 3.123/2000 –

CONSTITUCINOALIDADE. Sendo fundamento da República Federativa do

47 Quem for conferir o acórdão do STF verá que há um equívoco no relatório do Min. Carlos Velloso, o qual informa ––– eis o engano ––– que o TJ RJ julgou inconstitucional a lei municipal do RJ, Lei 3.123/2000, quando o TJ RJ entendeu o contrário. A correção consta dos Embargos Declaratórios opostos ao acórdão e julgados à unanimidade pelo Pleno em 08.09.2004, rel. Min. Marco Aurélio.

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Temas de filosofia política e jurídica

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Brasil a dignidade da pessoa humana, o exame da constitucionalidade de

ato normativo faz-se considerada a impossibilidade de o Diploma Maior

permitir a exploração do homem pelo homem. O credenciamento de

profissionais do volante para atuar na praça implica ato do administrador

que atende às exigências próprias à permissão e que objetiva, em

verdadeiro saneamento social, o endosso de lei viabilizadora da

transformação, balizada no tempo, de taxistas auxiliares permissionários.

[grifei]

Essa ementa é rica para análise, desde a forma como foi produzida ao seu conteúdo. Ela em

verdade não reflete fielmente a discussão havida no acórdão (de 49 laudas), que tratou de

inúmeros temas de direito constitucional e administrativo, todos omitidos na ementa. Mas ela

claramente vincula a dignidade ao imperativo moral kantiano que proíbe tratar homem como meio

a atingir determinado fim.48 Todo o problema aqui é saber quando alguém é tratado como meio.

Ocorre que estamos no campo do que Kant chamava autonomia (ou liberdade), e talvez não

precisássemos nada além do conceito de autonomia para resolver a questão.

Vou colocar de outra forma o problema: seria possível “universalizar” o raciocínio do

acórdão, i.e., estender a premissa a todos os casos de “exploração”? Noutra palavras, seguindo-se o

raciocínio do acórdão, sempre que há “exploração do homem pelo homem”, haveria afronta à

dignidade, o que violaria um “fundamento da República Federativa do Brasil”. A questão passa a ser

esta: definir o que seja “exploração”. Não arrisco resposta, mas quero ser bem compreendido:

penso que a invocação da dignidade pelo STF (na verdade, por um único ministro) foi mais uma vez

retórica e ornamental.

Entretanto, é claro que a questão da “exploração” pode estar sim ligada à dignidade

enquanto status, e aqui a invocação da dignidade faz sentido, ao menos se aceitarmos a proposta

de Waldron. Ao longo da história, a escravidão e a servidão foram reservadas aos que tinham status

inferior, aos que não eram “dignos” de tratamento da nobreza.49 Se esse é o pressuposto teórico

do Min. Marco Aurélio, não tenho qualquer objeção. O problema aqui, no entanto, parece ser de

interpretação da força dos fatos: comparar os taxistas auxiliares a escravos parece exagero.

48 Eis o imperativo prático de Kant: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. p. 69. 49 Ver notas 20 a 22 supra e texto correspondente.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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Em outras palavras, o silogismo do Min. Marco Aurélio este: Premissa Maior: explorar o

homem é ferir sua dignidade → Premissa menor: o tratamento dados aos taxistas auxiliares é

exploratório → Conclusão: o tratamento dados aos taxistas auxiliares fere a dignidade humana.

Como comumente acontece com o raciocínio jurídico, o problema está na discordância quanto à

formação das premissas. Neste caso, é certamente possível concordar com a premissa maior, mas

não com a premissa menor.

Considerações finais

Muitos defensores incondicionais da dignidade humana e quiçá alguns

neoconstitucionalistas, com sua fé nos princípios,50 talvez vejam demasiado pessimismo nas linhas

acima. O tema é sério, diriam eles, e o melhor que podemos fazer como juristas é tentar dar

alguma racionalidade ao debate em torno da dignidade, que seria um “sobreprincípio” ou

metanorma ou algo superior e fundante de todos os direitos; e citariam, com razão, o próprio

Michael Rosen (mas contra Möllers), que propugna não o abandono da dignidade, mas sim o uso

público do conceito de dignidade de forma menos retórica e mais consequente.

Concordo plenamente. O tema é seriíssimo, e que faríamos melhor se tentássemos

construir um sentido à dignidade. Vou então ser mais direto, para não correr o risco de ser mal

compreendido: o STF, ao menos nas decisões comentadas acima, parece estar dando razão aos

críticos da dignidade ao empregá-la no discurso público sem muito critério ou preocupação em

melhor fundamentá-la, uma vez que não ofereceu ainda uma boa especificação de sentido do que

entende por dignidade, se é que ofereceu alguma. Na maioria dos casos comentados, o papel da

dignidade parece ser predominantemente retórico, ornamental. E no mais das vezes a dignidade é

referida por somente um ministro, sendo difícil saber o que os demais pensam sobre o tema. O uso

ornamental da dignidade, parece a mim, diminui a dignidade, não a eleva; isso equivale a degradar

o status do conceito, não dignificá-lo.

Um leitor crítico pode fazer, contudo, ao menos uma contestação séria ao que está exposto

acima. Essa contestação poderia ser formada por um argumento de dois estágios: no primeiro, ela

50 O tema do neoconstitucionalismo é um mundo à parte. Tenho aqui em mente a caracterização feita por Humberto Ávila de que o neoconstitucionalismo se caracterizaria, dentre outras coisas, por preferir os princípios às regras. Ver ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo": entre a "Ciência do Direito" e o "Direito da Ciência". Star Virgem, v. 21, p. 131-150, 2010 (criticando a visão “princípios em vez de regras”).

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Temas de filosofia política e jurídica

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objetaria que a relação entre as duas partes deste ensaio é despropositada para efeitos de

supostamente provar que o STF faz uso ornamental da dignidade. É que, diria o mesmo leitor, não

se espera de juízes que façam filosofia ou teoria do direito em seus votos: juízes precisam resolver

casos. Minha comparação implícita entre o filósofo Michael Rosen e, digamos, o Min. Marco Aurélio

ou qualquer outro seria no mínimo descabida (para além de ser desigual), porque a atividade de

ambos é e talvez mesmo deva ser essencialmente diversa. Assim, o ensaio acima só poderia mesmo

ter o resultado que teve, e, no limite, acaba sendo uma empreitada fácil: conclusão parecida

poderia provavelmente ser atingida tomando por base outros institutos ou conceitos jurídicos. Em

suma, diria o leitor crítico, qualquer tema escolhido para análise em decisão do STF, se escrutinado

analiticamente, levaria a conclusão de que o STF não usa critérios firmes ou coerentes.

No segundo estágio, o leitor crítico poderia elevar o tom do debate e aduzir que um

empreendimento teórico mais consequente deveria não somente desconstruir as decisões do STF

(essa é a tarefa fácil) mas sim tentar ajudar a construir um conceito de dignidade encontrando

elementos comuns nas decisões judiciais que talvez possibilitassem encontrar o fundamento último

tomado do conjunto das decisões judiciais, levando em conta não as palavras exatas utilizadas pelo

STF, e sim o contexto no qual essas decisões foram tomadas, talvez sendo possível extrair delas um

melhor e mais coerente sentido. É assim, concluiria o leitor crítico, que são construídos os institutos

jurídicos nas culturas jurídicas desenvolvidas.51 Esse é, aliás, o papel mais fundamental da doutrina,

concluiria o mesmo leitor. Preciso responder a essas objeções e vou tentar fazê-lo igualmente em

dois estágios.

Primeiro, dizer que o trabalho de um juiz é diverso do de um filósofo ou teórico do direito e

que seria despropositado compará-los só é correto se investigamos no que consiste essa

diversidade e para que fins é feita a comparação. No que interessa aqui, qual seja, dar sentido ao

conceito de dignidade humana, não me parece que haja diferença essencial no trabalho do teórico

do direito ou filósofo e o do juiz, nem que seja indevida a comparação. O que fazem teóricos do

direito e filósofos é tentar clarear os conceitos para que se operacionalizem na prática de forma

minimante coerente; eles tentam, enfim, racionalizar os conceitos, explicá-los, para que sejam

51 Esses dois últimos parágrafos são construídos com base nas objeções críticas que em boa hora recebi de Ronaldo Porto Macedo Jr. quando da apresentação deste ensaio. Não faço aqui uma reprodução fiel da crítica, e provavelmente Ronaldo discorde da forma com que apresento aqui seu pensamento. Ele por certo reconstruiria suas objeções de forma mais sólida e coerente, talvez substancialmente diversa. Sei porém que na ocasião não fui capaz de refutá-las, nem tive tempo de sobre elas refletir. O que está no texto acima é uma tentativa de resposta a essas críticas, pelas quais agradeço.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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operacionalizados praticamente, para que sirvam, no caso do direito, como parâmetros normativos

de conduta, acaso sejam juridicizados.

Ocorre que os juízes fazem algo bastante parecido, valendo-se no mais das vezes da

racionalização levada a efeito pelos teóricos do direito e filósofos políticos, com a diferença de que

os juízes têm em regra menos preparo para essa específica empreitada (para além de não terem

muitas vezes consciência dela). Mais importante, contudo, é que, quando os juízes dão sentido e

concretizam um conceito como o de dignidade humana, o que resulta dessa interpretação é uma

normatividade jurídica, i.e., uma norma coativamente imposta pelo Estado. E aqui sim há uma

diferença brutal entre teóricos e filósofos versus juízes: o posição dos primeiros, por mais coerente

ou correta ou brilhante, pode ter alguma influência, mas não tem força cogente direta, enquanto

que a decisão judicial obriga e coage. Aliás, qual seria a finalidade da teoria do direito e da filosofia

do direito se não pudéssemos usá-las como parâmetro de comparação para a argumentação

utilizada pelos Tribunais? Por outro lado, qual a razão da empreitada teórica se não

compartilharmos a visão de que é possível manejar o direito com um mínimo de racionalidade e

oferecer ao operador jurídico um mínimo de previsibilidade na aplicação das normas jurídicas?

A resposta ao segundo estágio do argumento começa por acatá-lo na sua essência: sim,

descontruir as decisões do STF e escancarar suas inconsistências é uma tarefa mais fácil do que

construir um conceito de dignidade (e talvez de qualquer outro conceito ou instituto jurídico). No

entanto, qualquer tarefa de construção deve começar por limpar o terreno no qual será erguida a

obra. Também essa limpeza é importante. Analisar criticamente as decisões judiciais do STF em

relação à dignidade e concluir que dessas decisões não se tem nada de muito consistente ––– ao

contrário ––– não significa necessariamente propugnar pela extinção do uso do conceito (seja ele

qual for).

Depois, devo dizer ainda que foi em resposta ao segundo estágio do argumento que

empreendi, minimamente, o trabalho de sugerir que um germe talvez mais fértil para a solução do

problema do emprego vazio, ornamental e perigoso da dignidade está na concepção de dignidade

como status, entendendo-a como inter-relacionada à igualdade, um status a ser intentado e

protegido pelo sistema jurídico. Não desenvolvi o argumento, é verdade, tarefa que mereceria

maior elaboração. Mesmo assim, e ainda que a ideia de dignidade como status não seja a melhor e

que o germe não dê frutos, não me parece que o trabalho de descontruir seja vão. Saber o que não

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Temas de filosofia política e jurídica

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se dever fazer é uma forma importante do saber o que fazer. E o que não se deve fazer é utilizar a

dignidade ter uma concepção do que ela significa propriamente.

Em certos momentos deste ensaio falei de fachadas e arquitetura. Quero recuperar a

metáfora agora. Um dos maiores administrativistas do Brasil, o Professor Almiro do Couto e Silva, o

“último dos humanistas”, como seus amigos costumamos carinhosamente chamá-lo, sempre disse

que a CF de 1988 é um documento de arte barroca, rico em ornamentos, repetições e abundância

de reiterações, mas que essa característica foi pensada deliberadamente pelo legislador

constituinte para deixar bem claro que precisávamos nos livrar, com as mesmas repetidas armas,

dos desmandos reiterada e repetitivamente cometidos pelo Estado brasileiro e pela sociedade ao

longo da nossa história; para o Professor Almiro, jurista sensível, culto e digno do nome como

poucos, muito do que consta explícito na CF poderia ser dela facilmente extraído pela

interpretação.52

É bem possível que seja assim. E talvez isso esteja se passando também com a ideia, ou

conceito, ou princípio, ou metanorma, da dignidade humana. Mas eu gostaria de lembrar o outro

lado da moeda, também espelhado no nosso passado: a história brasileira é a história da

sobreposição de instituições, da repetição de ordens e comandos normativos, de todas as esferas,

da jurídica em especial, no intuito de aplacar justamente os mesmos desmandos acima referidos.

Não parece, contudo, que estejamos colhendo frutos dessa sobreposição normativa e institucional.

Talvez sejam muito duras as palavras utilizadas por Michael Rosen na conclusão ao seu

ensaio crítico, ao dizer que, ao melhor especificar o uso da “dignidade humana”, evitaríamos que

ela fosse usada como “cloaca na qual partes interessadas pretendem impor suas prescrições

morais”. Agrada-me, entretanto, o espírito da crítica de Rosen, e é ele que eu gostaria de enfatizar

aqui: há alguma crueldade no uso da dignidade como fachada para esconder posições subjetivas e

não racionalmente explicadas. Não creio que haja ganho na invocação ornamental da dignidade

como “fundamento” de decidir casos jurídicos. Nem me parece que elevar a dignidade ao posto de

“metanorma” possa reforçar-lhe a normatividade.

Meu desejo é que possamos, no futuro, repetir, sobre a Dignidade Humana, o mesmo que

Marguerite Yourcenar fez o Imperador Adriano dizer das palavras Humanidade, Liberdade e

Felicidade: que não desvalorizemos a dignidade pelo excesso de aplicações ridículas. Neste meu

52 Ver o Prefácio de Almiro do Couto e Silva ao meu livro em GIACOMUZZI, A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública. p. 7.

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Dignidade Humana e Direito Administrativo no STF: uma breve análise crítica- José Guilherme Giacomuzzi

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desejo há, claro, um exagero retórico de minha parte. A diferença é que o meu ornamento não tem

força normativa. E o do STF tem. Dignificar a dignidade passa antes por não dar-lhe uso ornamental.

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2005.

Acórdãos do STF analisados:

RE 359.444-3/RJ, j. 24.03.2004, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio Mello.

Ag. Reg. no RE 346.180/RS, j. 14.06.2011, 2ª Turma, rel. Min. Joaquim Barbosa.

Ag. Reg. no AI 847.845/RJ, j. 11.12.2012, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux.

ADIn 2.649-6/DF, j. 08.05.2008, Pleno, rel. Min. Cármen Lúcia.

RE 227.480-7/RJ, j. 16.09.2008, 1ª Turma, rel. Min. Cármen Lúcia.

RE 190.264-7/RJ, j. 10.02.2000, Pleno, rel. Min. Nelson Jobim.

RE 229.450-8/RJ, j. 10.02.2000, Pleno, rel. Min. Maurício Corrêa.

ADIn 2.931-2/RJ, j. 24.02.2005, Pleno, rel. Min. Carlos Ayres Britto

MS 25.116/DF, j. 08.09.2010, Pleno, rel. Min. Carlos Ayres Britto

MS 28.720/DF, j. 20.03.2012, 2ª Turma, rel. Min. Carlos Ayres Britto

MS 24.268-0/MG, j. em 05.02.2004, Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes.

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Em defesa da abstração em teoria da justiça

Paulo Baptista Caruso MacDonald Professor da Faculdade de Direito, UFRGS.

O debate entre John Rawls e Amartya Sen iniciou antes mesmo da publicação de Uma teoria

da justiça pelo primeiro, como revela o prefácio da obra de 1971. Desde então, Sen foi um dos seus

principais críticos, mas o conteúdo e o alcance dessas críticas modificaram-se bastante ao longo das

décadas.

Em um resgate sintético desse debate, poder-se-iam agrupar as principais críticas de Sen a

Rawls em dois conjuntos distintos de acordo com o seu teor. Em um primeiro momento, Sen

sustentou que os princípios de justiça de Rawls, mesmo se seguidos à risca, não garantiriam uma

sociedade justa segundo algumas de nossas concepções compartilhadas, na medida em que

ignoravam diferenças relevantes entre os indivíduos que determinavam capacidades desiguais de

conversão de recursos materiais em funcionamentos humanos valiosos1. Um de seus exemplos

mais famosos foi a distribuição da mesma quantia de dinheiro para quem depende e para quem

não depende de cadeira de rodas para sua locomoção: o deslocamento do cadeirante certamente

seria mais dispendioso. No diagnóstico de Sen, já se encontrava presente uma crítica ao caráter

abstrato tanto do indivíduo da posição original (procedimento teórico que tinha dificuldade em dar

conta das referidas diferenças intersubjetivas em virtude do espaço informacional extremamente

reduzido) quanto da utilização do dinheiro, meio universal de acesso aos bens em uma economia

de mercado, como métrica do princípio da diferença (de que as desigualdades apenas seriam

aceitáveis na medida em que melhorassem a situação dos menos favorecidos). No entanto, como o

próprio Sen viria a admitir, tais problemas ainda poderiam ser resolvidos dentro do marco teórico

de Rawls2.

A novidade das críticas feitas por Sen em A ideia de justiça consiste em não apenas se limitar

a apontar falhas na teoria ou nos princípios de Rawls, mas sim em rejeitar por completo o tipo de

1 SEN, Amartya. Equality of what? The Tanner Lecture on Human Values delivered at Stanford University in May 22nd,

1979. 2 SEN, Amartya. The idea of justice. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2009, p. 65-66.

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Temas de filosofia política e jurídica

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empreendimento teórico realizado pelo autor norte-americano. Nas suas próprias palavras, "[s]e

uma teoria da justiça deve guiar a escolha fundamentada de políticas públicas, estratégias ou

instituições, então a identificação de arranjos sociais inteiramente justos não é nem necessária,

nem suficiente."3 O grau de abstração com que a teoria de Rawls trabalha seria responsável por

afastá-la das circunstâncias concretas de escolha nas sociedades reais, tornando-a supérflua para

realizar o que Sen considera ser a tarefa da investigação sobre justiça, a saber: que essa escolha

seja fruto de um juízo refletido sobre como injustiças devem ser reduzidas ou eliminadas.

O objetivo deste trabalho consiste em mostrar que há pelo menos uma função ao mesmo

tempo relevante e imprescindível para a Filosofia Política que a abstração desempenha na

construção da teoria da justiça de Rawls: relevante por auxiliar na solução de aporias decorrentes

da noção de Estado Democrático de Direito; imprescindível em razão das demandas de justificação

impostas por essa noção às instituições da estrutura básica da sociedade.

Não se consegue, com isso, demonstrar que o caráter abstrato da construção teórica de

Rawls seja necessário para a realização de tal tarefa. No entanto, pretende-se deixar o ônus

argumentativo com quem alega que uma teoria construída em um grau menor de abstração seria

igualmente capaz de executá-la.

I.

Não há nada que seja mais clara e frontalmente contrário à noção de Estado Democrático

de Direito do que o fato de a lei não ser a mesma e aplicada igualmente a todos. Em 1788, muito

antes de essa noção ou de seus equivalentes tornarem-se um ponto de acordo entre diversas

posições políticas antagônicas, Sieyès dirigia nestes termos seu ataque ao regime então vigente na

França:

Todos os privilégios, sem distinção, têm certamente

por objeto ou dispensar da lei, ou conceder um

direito exclusivo a qualquer coisa que não seja

proibida pela lei. O que constitui o privilégio é estar

fora do direito comum, e ele só pode surgir de

alguma dessas duas maneiras.4

3 SEN, Amartya. The idea of justice. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2009, p. 15. 4 SIEYÈS, Emmanuel-Joseph. Essai sur les privilèges, p. 02.

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Em defesa da abstração em teoria da justiça- Paulo Baptista Caruso MacDonald

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O mesmo autor relaciona à injustiça os dois modos pelos quais os privilégios se originam. No

caso da dispensa da lei, a concessão de privilégios equivale a uma permissão para prejudicar os

demais, o que quebra o sistema de restrição mútua de condutas danosas. Nas suas palavras, “se a

lei é boa, ela deve obrigar a todos; se ela é má, deve-se aniquilá-la: ela é um atentado contra a

liberdade.” A concessão de um direito exclusivo a qualquer coisa que não seja proibida por lei, por

sua vez, consiste em “arrebatar dos cidadãos uma porção de sua liberdade”, pois reduz o domínio

compartilhado da liberdade civil, o que “prejudica a todos em nome de alguém”5.

Aceitamos que o ordenamento jurídico imponha consequências distintas para o cidadão que

matou alguém daquelas previstas a quem furtou, e distinga esses casos daquele do cidadão que

não cometeu crime algum; do mesmo modo, não há privilégio no sentido de Sieyès se forem

discriminadas as situações de quem pagou e de quem não pagou sua dívida na data do vencimento,

ou de haver diferentes alíquotas de tributação de acordo com a renda. A fundamentação da

restrição da liberdade em uma norma geral assinala que o tratamento dispensado ao caso

corresponde ao tratamento devido aos demais casos que se enquadrarem em seu suporte fático.

Desse modo, o ordenamento jurídico apresenta-se como igualmente válido para todos, sem que

haja, em princípio, indivíduos privilegiados, os quais seriam, sem fundamento normativo, isentados

dos deveres jurídicos e das sanções que devem seguir o seu descumprimento impostas aos demais.

O privilégio ocorre quando algumas pessoas são designadas para compor uma casta que

não é alcançada pelos termos universais das regras jurídicas, possuindo um estatuto jurídico

próprio. A existência de pessoas que se encontram fora do alcance do ordenamento jurídico não

denota uma situação em que os indivíduos possam receber tratamento desigual apenas quanto a

um aspecto (a saber, aquele previsto pela norma), mas sim um estado em que concidadãos se

encontram em desigualdade absoluta, uma vez que não serão as mesmas normas que

determinarão o que lhes é devido juridicamente.

A incidência do mesmo conjunto de normas gerais a todos cidadãos por si só não assegura,

contudo, que todos sejam tratados com igual consideração e respeito, não havendo privilegiados,

nem – seu correlato – indivíduos injustamente desfavorecidos. O problema é que casos particulares

jamais são absolutamente idênticos: eles só são considerados iguais ou diferentes com relação a

um critério, o que, em direito, é estabelecido pelo suporte fático de uma regra. Uma regra que

estabeleça um imposto a ser pago por todos aqueles que nasceram em terças-feiras será aplicada

5 SIEYÈS, Emmanuel-Joseph. Essai sur les privilèges, p. 04-05.

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Temas de filosofia política e jurídica

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de modo não-arbitrário na hipótese de sofrerem as consequências jurídicas por ela previstas para a

sua desobediência apenas as pessoas nascidas em terças-feiras que o sonegarem, não havendo

discriminação em virtude de nenhuma outra característica (gênero, raça, religião, preferência

política etc.). O critério utilizado para selecionar os contribuintes (ter nascido terça-feira) é,

contudo, arbitrário, uma vez que, para fins de tributação, não há razão plausível para discriminar-se

pelo dia do nascimento. A arbitrariedade, portanto, pode-se dar não apenas no plano da aplicação

da norma jurídica ao caso particular, mas também na seleção de critérios para relacionar certos

tipos de casos a conjuntos de consequências jurídicas. Nessas hipóteses, as normas jurídicas não

são introduzidas com vistas a especificar os deveres recíprocos da cooperação entre os cidadãos,

mas sim para conceder privilégios através das mesmas formas descritas por Sieyès, só que, no lugar

de concedê-los a indivíduos designados, conferi-los a determinadas classes de cidadãos distinguidas

pelo suporte fático da regra. Esse é o caso das sociedades em que as restrições à liberdade são

distribuídas de maneira díspar entre raças, gêneros, religiões etc.

II.

Embora não seja matéria de grande controvérsia que a noção de Estado Democrático de

Direito exija que as normas jurídicas valham igualmente para todos os cidadãos e devam ser

imparcialmente aplicadas, sem que haja pessoas acima da lei, a determinação de quais critérios de

igualdade são próprios para uma sociedade que visa tratar a todos com o mesmo respeito e

consideração – isto é, sem conceder privilégios a alguns em detrimento de outros – está longe de

ser consensual.

A própria noção de Estado Democrático de Direito parece apresentar aporias incontornáveis

para a eleição desses critérios. A primeira delas diz respeito à tensão entre o conjunto de direitos e

liberdades individuais que devem ser garantidos em um Estado de Direito e a possibilidade que o

governo democrático restrinja ou viole alguns desses direitos utilizando-se da regra da maioria.

Nas palavras de Isaiah Berlin, esse seria um conflito entre algumas liberdades negativas, as

quais garantiriam um espaço livre de impedimentos externos às escolhas individuais, e a liberdade

positiva contida na noção democrática de autodeterminação. Sendo inconciliáveis, na sua opinião,

as duas formas de liberdade, restaria conferir prioridade à liberdade tangível do indivíduo

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Em defesa da abstração em teoria da justiça- Paulo Baptista Caruso MacDonald

152

(liberdade na acepção negativa) do que à liberdade de um ente abstrato como o povo (liberdade na

acepção positiva)6.

O dilema posto por Berlin entre liberdade negativa ou positiva, entretanto, pode ser

mitigado. Obviamente é impossível, em uma comunidade política, obter ambas em extensão

máxima. No entanto, é possível especificar os tipos de liberdade negativa e em que medida são

essenciais para a cidadania em um Estado Democrático de Direito, sem abrir-se mão de regular os

pormenores da interação das esferas de liberdade de cada indivíduo por meio de regras jurídicas

resultantes do processo democrático.

Rawls, com seus princípios de justiça, os quais contemplam e coordenam tanto liberdades

negativas quanto liberdades políticas, certamente não é o único autor a oferecer uma saída ao

dilema. Todavia, uma estratégia de saída que, em vez de usar um argumento abstrato para justificar

os princípios, como é o argumento da posição original, tentasse mostrar contraexemplos de

sociedades em que os dois tipos de liberdade convivem em harmonia seria inevitavelmente uma

petição de princípio. Afinal, o contraexemplo serviria apenas para quem concordasse de antemão

que, naquele arranjo institucional, tanto as liberdades negativas essenciais quanto as positivas

estariam contempladas em um grau satisfatório.

O argumento a partir da posição original oferece um fundamento independente. Sob o véu

da ignorância, os indivíduos buscam garantir em sua deliberação que aquele que se encontrar

sistematicamente em minoria nas deliberações da comunidade política real não será afetado nos

seus direitos e liberdades fundamentais, tampouco em seus direitos de participação política, que

formarão em conjunto um esquema plenamente adequado para o exercício da cidadania

compatível com o mesmo esquema concedido aos demais. Dadas as garantias de imparcialidade

dessa deliberação, não há se falar nem em exercício tirânico da regra da maioria nas leis que

respeitarem os princípios de justiça tanto no seu conteúdo quanto no seu processo de aprovação,

nem em privilégios atribuídos aos membros das minorias.

A segunda aporia diz respeito à compatibilidade entre os sentidos jurídico e econômico de

liberdade. A posse desigual de recursos materiais não afeta a igual liberdade de adquiri-los (isto é, a

igual capacidade de ser titular de direitos reais) e, uma vez adquiridos, convertê-los em qualquer

mercadoria (liberdade de contratar). No entanto, o fato de as normas jurídicas incidirem

6 BERLIN, Isaiah. Two concepts of liberty. The proper study of mankind. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2000, p. 237-242.

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Temas de filosofia política e jurídica

153

igualmente a todos os casos que se enquadrarem em seu suporte fático, desconsiderando as

demais circunstâncias do indivíduo concreto – o que, conforme visto, é necessário para a sua

aplicação imparcial –, pode servir para encobrir os valores necessariamente díspares que algumas

das liberdades fundamentais possuem para as pessoas. Basta pensar, por exemplo, que a liberdade

de viajar para fora do país carece de valor para aqueles que não dispõem dos recursos para fazer a

viagem, ou lembrar as famosas acusações de Anatole France contra o formalismo da igualdade

jurídica, pela qual tanto o rico quanto o miserável são igualmente proibidos de “dormir debaixo de

pontes, mendigar nas ruas e roubar pão”7.

A noção de liberdade parece esvaziar-se de sentido quando denota a ausência de

impedimento para se fazer aquilo que se encontra fora da esfera de escolha do sujeito por lhe

faltarem os meios para a consecução de um fim desejado, assim como não parece relevante como

restrição da liberdade o impedimento de se fazer aquilo que nunca se reputou desejável. Desse

modo, a lei igual para todos, em vez de imparcial, poderia servir para garantir liberdades que

apenas os mais abastados teriam como desfrutar e para privar os mais pobres dos únicos meios

disponíveis para satisfazer suas necessidades mais básicas.

Como então preservar o caráter abstrato da lei, necessário para a sua aplicação imparcial a

todos os casos que se enquadrarem em seu suporte fático, sem com isso favorecer alguns cidadãos

em detrimento de outros? A condição que Rawls impõe à desigualdade com respeito a renda e

riqueza por meio do princípio da diferença8 confere ao esquema de liberdades dos menos

favorecidos um valor maior do que ele teria em qualquer arranjo alternativo, preservando-se o

caráter da sociedade como um empreendimento cooperativo entre indivíduos igualmente livres

com vistas ao benefício de todos, conforme o próprio autor explica:

[...] a estrutura básica em duas partes permite uma

reconciliação entre liberdade e igualdade. Assim,

liberdade e valor da liberdade se distinguem desta

maneira: a liberdade é representada pelo sistema

completo das liberdades de igual cidadania,

enquanto que o valor da liberdade para pessoas e

grupos depende da sua capacidade em promover os

7 FRANCE, Anatole. Le lys rouge. Paris: Calmann-Lévy, 1894, p. 118. 8 “As desigualdades socioeconômicas devem satisfazer a duas condições: em primeiro lugar, devem estar vinculadas a cargos e posições abertos a todos sob condições de igualdade equitativa de oportunidade; em segundo lugar, devem beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (princípio da diferença).” RAWLS, John. Justice as fairness: a restatement. Ed. Erin Kelly. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2001, p. 42-43.

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Em defesa da abstração em teoria da justiça- Paulo Baptista Caruso MacDonald

154

seus fins dentro da moldura que o sistema define. A

liberdade [freedom] entendida como igual liberdade

[liberty] é a mesma para todos; a hipótese de

compensação por uma liberdade menor do que a

igual não se levanta. Mas o valor da liberdade não é

o mesmo para todos. Alguns possuem mais

autoridade e riqueza e, por conseguinte, mais meios

de atingir seus objetivos. O valor menor da liberdade

é, contudo, compensado, uma vez que a capacidade

dos membros menos afortunados da sociedade de

atingir seus objetivos seria ainda menor se eles não

aceitassem as desigualdades existentes toda vez em

que o princípio da diferença é satisfeito. Porém, não

se deve confundir a compensação por um valor da

liberdade menor com a indenização por uma

liberdade desigual. Tomando-se os dois princípios em

conjunto, a estrutura básica deve ser ordenada com

vistas a maximizar para os menos favorecidos o valor

do esquema completo de igual liberdade

compartilhado por todos. Isso define a finalidade da

justiça social.9

O princípio da diferença, todavia, está longe de ser incontroverso. Ao condicionar a

desigualdade de renda e riqueza ao incremento na posse desses bens por parte dos menos

favorecidos, parece falhar em reconhecer o mérito individual como critério de alocação de

recursos, criando uma sociedade na qual os talentosos e esforçados são compelidos a transferir

parte do produto de seu talento e esforço a quem em nada contribuiu para sua geração.

A objeção apenas sustentar-se-ia se a distribuição de renda e riqueza baseada no mérito

mostrar-se superior àquela fundada no princípio da diferença enquanto parte de uma concepção

de justiça para o Estado Democrático de Direito. Com isso, excluem-se os argumentos que se

apresentam como metafísicos – e, portanto, moralmente neutros – em seu favor, tais como o de

que a pessoa estende a propriedade que possui sobre o seu próprio corpo àquilo que é produzido

por meio de seu trabalho. Em uma discussão sobre justiça, afirmar que o bem produzido deve ser

distribuído integralmente ao seu produtor com fundamento na tese da aquisição pelo trabalho

constitui petição de princípio.

9 RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge, Mass.: Harverd University Press, 1999, p. 179. Embora tenha havido uma

evolução na formulação do primeiro princípio e na sua relação de prioridade com o segundo, creio que o ponto da distinção permanece o mesmo.

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Temas de filosofia política e jurídica

155

A questão deve ser posta da seguinte forma: na medida em que se reconhece que a

avaliação do resultado da conjunção de aptidão e esforço corresponde a um critério legítimo de

distribuição de certo tipo de bem em determinados contextos, como as notas na universidade ou

prêmios em festivais de cinema, não seria o caso de abandonar o princípio da diferença e também

empregá-la como critério para a distribuição de bens materiais no âmbito da estrutura básica da

sociedade?

Os princípios de justiça de Rawls não acolhem a noção de mérito tal como ela aparece nos

exemplos acima. Sua teoria da justiça, ao invés, rejeita-a explicitamente por considerá-la fundada

em fatores moralmente arbitrários, os quais não devem determinar por si sós a parcela de bens

primários que cabe a cada um. Afinal, não é objeto de escolha de ninguém as suas aptidões e

disposições inatas, nem tampouco as oportunidades que terá de desenvolvê-las. Além disso, a

estrutura básica de uma sociedade pluralista não deve promover uma concepção de bem em

detrimento das demais, o que está por trás da definição de mérito nos âmbitos da universidade

(onde se devem promover determinadas formas de conhecimento) e das premiações de artistas (as

quais devem ser guiadas pelos critérios de excelência de cada arte).

Pode-se dizer, todavia, que a noção de mérito é antes redefinida do que abandonada por

Rawls, que prefere falar em expectativas legítimas10. A redefinição consiste em adaptá-la às

condições de imparcialidade de uma concepção de justiça como equidade. Em primeiro lugar, cabe

lembrar que os menos favorecidos a serem beneficiados pela aplicação do princípio da diferença

participam do empreendimento comum de cooperação. Não há espaço, portanto, para a acusação

de que viveriam às custas dos demais, sem a necessidade de esforço: não há expectativa legítima

de compartilhar as vantagens da vida em sociedade para aqueles que não contribuem

minimamente.

Em segundo lugar, o mesmo princípio da diferença permite que aqueles responsáveis por

uma contribuição efetiva maior para elevar o nível de vida de todos comparativamente com outros

arranjos distributivos (o que se afere pela situação dos menos favorecidos) tenham a expectativa

legítima de usufruir uma parcela maior da riqueza socialmente produzida. Na base da noção de

expectativa legítima, a qual deve orientar as instituições da estrutura básica da sociedade, não se

encontra uma das diversas concepções abrangentes de bem existentes em uma sociedade

10 RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge, Mass.: Harverd University Press, 1999, p. 74.

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Em defesa da abstração em teoria da justiça- Paulo Baptista Caruso MacDonald

156

pluralista a orientar a distribuição, mas sim o interesse comum de concidadãos que se veem como

igualmente livres:

[...] os princípios de justiça são os princípios da

cooperação voluntária entre iguais. Privar alguém da

justiça significa ou recusar reconhecê-lo como um

igual (alguém em função do qual estamos

preparados a reprimir nossas ações em virtude de

princípios que escolheríamos em uma situação de

igualdade que é equitativa [fair]), ou manifestar uma

disposição em explorar as contingências da sorte e

do acaso naturais com vistas à nossa própria

vantagem.11

Concordando-se ou não com os argumentos de Rawls para que se considerem moralmente

arbitrárias certas características individuais, destaca-se a importância do artifício teórico da posição

original para que se tenha em conta aquilo que é relevante em oposição àquilo que deve ser

desconsiderado na deliberação acerca dos princípios de justiça (isto é, coberto pelo véu da

ignorância). Sem tal exercício de abstração, ao recusar-se o utilitarismo, ou restaria comprometida

a clareza sobre os fatores que devem influenciar a distribuição (o que ocorria com as teorias

intuicionistas), ou abrir-se-ia mão da imparcialidade entre as diversas concepções abrangentes de

bem que se encontram presentes nas sociedades contemporâneas para definir-se mérito

exclusivamente a partir de uma delas. Mais uma vez, cabe àqueles que recusam a abstração em

Filosofia Política o ônus de provar que logram tanto ou mais êxito que Rawls em sair dessa aporia.

Por fim, a imparcialidade obtida por meio da posição original acaba por enfraquecer a crítica

marxista segundo a qual o Estado seria necessariamente um instrumento para a promoção dos

interesses de uma classe. Se os princípios de justiça escolhidos nessa situação realmente redundam

em um empreendimento cooperativo do qual até mesmo os menos favorecidos se beneficiam, na

medida em que se encontram na melhor situação possível no que diz respeito à atribuição de bens

primários, a noção de exploração parece esvair-se. Não foi por excesso de zelo, aliás, que o próprio

autor impôs a publicidade acerca do efetivo comprometimento das instituições da estrutura básica

com os princípios de justiça como condição para que sua teoria da justiça como equidade não

11 RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge, Mass.: Harverd University Press, 1999, p. 336-337.

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Temas de filosofia política e jurídica

157

servisse como ideologia a encobrir a exploração com a falsa aparência de desigualdade permitida

pelo segundo princípio.12

III.

Ainda que se tenha concordado com o argumento apresentado até o momento para

sustentar que uma teoria abstrata da justiça consegue fornecer uma base de justificação mais

sólida para lidar com as aporias apresentadas, poder-se-ia objetar que tudo isso não passaria de

mero exercício acadêmico. Há milhões de pessoas no mundo sujeitas à fome, à doença, à violência,

à discriminação e ao exercício arbitrário do poder – por que se ocupar de questões abstratas de

fundamentação teórica quando existem tantos casos inequívocos de injustiça que, pela sua

gravidade, exigem urgentemente uma resposta prática?

De fato, os princípios de justiça de Rawls não passam de um ideal distante para sociedades

fortemente marcadas por esses problemas, sendo incapazes de ter relevância significativa na sua

resolução. Trata-se de uma limitação da qual o autor estava consciente desde Uma teoria da

justiça.

Entretanto, isso de modo algum implica que sua concepção de justiça como equidade não

tenha nenhum papel importante a desempenhar em sociedades reais, as quais são, em maior ou

menor medida, deficientes segundo os seus princípios. Em uma comunidade política que almeja ser

um Estado Democrático de Direito, tratando todos seus cidadãos com igual respeito e

consideração, tais princípios não apenas servem de parâmetro para a avaliação das instituições de

sua estrutura básica, mas também constituem a própria prática institucional de buscar agir com

base em razões às quais todos devam dar seu consentimento. Nas palavras de Rawls, “o nosso

exercício do poder político é apropriado apenas quando sinceramente acreditamos que as razões

que oferecemos para a nossa ação política podem razoavelmente ser aceitas pelos outros cidadãos

como uma justificação dessas ações.”13

Outra passagem demostra claramente a preocupação de sua teoria em fornecer certos

parâmetros para essa tarefa:

12

RAWLS, John. Justice as fairness: a restatement. Ed. Erin Kelly. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2001, p. 04, 79, 121-122. 13 RAWLS, John. Political liberalism. New York: Columbia University Press, 2005, p. xliv.

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Em defesa da abstração em teoria da justiça- Paulo Baptista Caruso MacDonald

158

A ideia de cooperação inclui a ideia de termos

equitativos [fair] de cooperação: esses são termos

que cada participante pode razoavelmente aceitar, e

por vezes deve aceitar, desde que todos os demais da

mesma maneira os aceitem. Os termos equitativos

de cooperação especificam uma ideia de

reciprocidade, ou mutualidade: todos que fazem a

sua parte conforme requerem as regras reconhecidas

devem beneficiar-se consoante o especificado por

um padrão público acordado.14

Nesse sentido, as aporias expostas acima constituiriam argumentos que comprometeriam a

justificação da imposição de obrigações jurídicas aos cidadãos, colocando em xeque a própria

noção de Estado Democrático de Direito, até que uma solução satisfatória seja apresentada. Salvo

prova em contrário, o recurso à abstração empregado por Rawls na construção de sua teoria

revela-se a maneira mais adequada de realizar essa tarefa, na medida em que apresenta tanto os

requisitos para que os processos de criação de regras jurídicas sejam dotados de legitimidade

democrática quanto a determinação da margem de critérios aceitáveis para conectar as hipóteses

de incidência dessas regras às suas consequências normativas. Com respeito a esse último aspecto,

as regras da sociedade bem ordenada não seriam apenas aplicadas de forma imparcial a cada caso

(como exige a noção de Estado de Direito), mas também estariam comprometidas em seu

conteúdo com o tratamento imparcial de todos os cidadãos, os quais são dignos de igual respeito e

consideração em uma democracia.

14 RAWLS, John. Justice as fairness: a restatement. Ed. Erin Kelly. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2001, p. 06.

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Relendo o Capítulo 2 de O Conceito de Direito1

Alfredo Storck Professor do Departamento de Filosofia, UFRGS/CNPq.

Em 1961, H. L. A. Hart publicou The Concept of Law2, obra destinada a balizar as principais

discussões em filosofia jurídica desde então. Hart pretendia dar continuidade à tradição do

positivismo jurídico o qual diferenciava perguntas sobre a existência ou conteúdo do Direito de

questões acerca de seu mérito. Para essa tradição, a existência e conteúdo do Direito dependeria

de fatos sociais e não do mérito das leis. Obviamente, isso não significa dizer que questões de

mérito não sejam importantes e mesmo fundamentais para se avaliar um sistema jurídico. Significa

apenas que a existência do sistema é independente da avaliação de seu mérito. Essa tese foi

expressa por John Austin de modo célebre ao afirmar que a existência do Direito é uma coisa, seu

mérito é outra3.

Hart filia-se a essa tradição, mas o faz maneira de crítica, pois o CD começa justamente por

uma crítica à teoria do Direito desenvolvida por John Austin. Mais propriamente falando,

encontramos no capítulo 2 de CD uma reconstrução da teoria de Austin sob o que Hart considera

ser a sua melhor luz. Isso significa, como Hart faz questão de assinalar, que a teoria é apresentada

acompanhada de teses enunciadas não apenas pelo próprio Austin, mas também de contribuições

de outros pensadores que teriam avançado a teoria em diversos e importantes aspectos. A

intenção de Hart é, portanto, apresentar uma teoria na sua formulação mais forte não apenas para

poder criticá-la, mas, como ele faz questão de enfatizar, para aprender com os seus erros. A teoria

1 Publica-se aqui versão revista daquela apresentada no III Colóquio de Filosofia Jurídica e Política. O autor agradece aos

colegas participantes do evento, em especial a Luís Duarte d’Almeida, Paulo MacDonald e Wladimir Lisboa pelos comentários e sugestões. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil. 2 HART, H.L.A., The Concept of Law, second edition with a Postscript edited by P. A. Bulloch and J. Raz, Oxford, Clarendon Press, 1994. Tradução portuguesa: HART., H. L. A., O Conceito de Direito, tradução A. R. Mendes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. Faremos referência ao texto da tradução, designado pela abreviatura CD. 3 “The existence of law is one thing; its merit and demerit another. Whether it be or be not is one enquiry; whether it

be or be not conformable to an assumed standard, is a different enquiry.” AUSTIN, J. The Province of Jurisprudence Determined. Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 157.

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Relendo o Capítulo 2 de O Conceito de Direito- Alfredo Storck

160

de Austin, mesmo errada, apontaria para a verdade e indicaria a direção correta a ser seguida na

investigação acerca da natureza do Direito.

Quando da comemoração dos 50 anos da publicação de CD, em 2011, ocorreu na Faculdade

de Direito de Oxford evento no qual importantes filósofos políticos e do Direito foram convidados a

comentar cada um dos capítulos que formam a obra. O sucesso alcançado pela série de palestras

levou a sua edição por Luís Duarte d'Almeida, James Edwards e Andrea Dolcetti e lançamento, na

forma de livro, em 2013, sob o título: “Reading HLA Hart's The Concept of Law”4. O renome dos

comentadores e a qualidade das intervenções rapidamente concederam à obra título de referência

indispensável nos estudos sobre o pensamento jurídico de Hart. Nossa intenção no presente

capítulo reside em discutir o modo como um dos autores dessa coletânea analisa e critica o

segundo capítulo de CD, justamente aquele no qual Hart reconstrói a teoria de Austin. A tarefa

pode, portanto, ser vista como bastante simples, pois pretende-se uma mera análise do capítulo

intitulado The Generality of Law, escrito Timothy Endicott5. No entanto, julga-se ser ela

indispensável, pois, como buscaremos mostrar, esse intérprete distorce profundamente tanto o

modo como Hart reconstrói o pensamento de Austin quanto os principais objetivos e pretensões do

capítulo 2 de CD. Para tanto, proporemos inicialmente um resumo bastante introdutório do que

julgamos ser o modo como Hart apresenta a teoria de Austin. Em seguida, contrastar-lo-emos com

alguns pontos da interpretação de Endicott, chamando a atenção para aspectos de sua análise com

os discordamos e julgamos comprometerem a correta interpretação do texto hartiano.

1. Austin e os elementos do conceito de Direito

Hart inicia o capítulo 2 de CD justificando a escolha da teoria de Austin como seu ponto de

partida. Segundo ele, a escolha deve-se por ser esta “a tentativa mais clara e completa de análise

do conceito de direito em termos de elementos aparentemente simples de comandos e hábitos”

(CD, p. 23). Não se trata, todavia, de reconstruir o pensamento de Austin nos seus moldes

históricos, mas de estabelecer “as credenciais de um certo tipo de teoria que tem actrativos

perenes”. (CD, p. 23). O objetivo é, portanto, o de identificar os pontos que credenciariam a teoria a

almejar ser a melhor explicação do fenômeno jurídico. Sendo assim, onde a teoria revelar-se

4 DUARTE D’ALMEIDA, L. D., EDWARDS, J. and DOLCETTI, A. (ed). Reading HLA Hart’s The Concept of Law. Oxford, Hart Publishing, 2013. 5 ENDICOTT, E. “The Generality of Law”, in DUARTE D’ALMEIDA, L. D., EDWARDS, J. and DOLCETTI, A. (ed). Opus Cit., pp. 15-36. Doravante, EGL.

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Temas de filosofia política e jurídica

161

problemática em sua formulação original, Hart preferirá socorrê-la apelando para os

desenvolvimentos de outros teóricos, em especial de Kelsen, garantindo que ela seja “exposta na

sua forma mais intensa” (CD, p. 23)6. Por motivos que mais tarde se mostrarão decisivos,

chamamos a atenção que Hart identifica a força atrativa da teoria no fato de serem dois os

elementos simples que estarão na sua base: comandos e hábitos de obediência. A razão para serem

dois os elementos não é inicialmente explicitada, mas podemos antever que a noção simples de

comando servirá de fundamento para explicação da natureza das regras jurídicas, de sua forma e

estrutura, ao passo que a noção de hábito de obediência permitirá explicação da continuidade

temporal de um sistema jurídico.

O primeiro passo da reconstrução de Hart consiste na análise da noção austiniana de

comando. Trata-se de um tipo de enunciado empregado para expressar-se um desejo (wish) não

apenas de modo informativo, mas com a intenção de que o destinatário realize algo conforme o

desejo expresso. Enunciados (statements) desse tipo possuem a forma imperativa e são usados em

grande variedade de situações sociais, como pedidos, súplicas, avisos, etc. A forma mais importante

ocorre em situações de ordem, como quando um assaltante dá uma ordem preferindo a frase:

"Passe-me o dinheiro ou eu atiro." Como Hart salienta, talvez esse não seja o melhor exemplo de

utilização da expressão “ordenar”, pois esse verbo parece remeter a situações nas quais existe uma

autoridade prévia e mesmo deferência à autoridade, o que visivelmente não é o caso. Ainda assim,

parece natural dizer-se que o ladrão “deu uma ordem”. Buscando evitar sutilezas expressivas

desnecessárias, Hart adota essa formulação por ela explicitar um aspecto fundamental, a saber, o

caráter coercitivo envolvido e capturado na noção de ordem baseada em ameaças (orders backed

by threats), sendo esse o sentido em que a expressão deve ser compreendida. Essa restrição tem

por finalidade evitar uma possível objeção à noção de comando empregada na formulação original

austiniana. Ao falar-se de comando, diria o objetor, faz-se referência a uma estrutura hierárquica

(como no caso militar), pressupondo-se assim uma relação direta com a noção de autoridade e com

estruturas jurídicas. Ora, como o objetivo é apresentar os elementos mais simples que permitirão

precisamente explicar o que é o Direito, a noção de comando não é a mais adequada. Hart optará

por substitui-la pela de ordem baseada em ameaça. Para explicar o Direito, parte-se de ordens

6 Pode-se discutir se a reconstrução e críticas de Hart fazem justiça a Austin. Em todo caso, convém salientar, juntamente com Rumble, que, durante o século XIX, outros pensadores ingleses endereçaram a Austin críticas semelhantes. Veja-se: RUMBLE, W. E., Doing Austin Justice: The Reception of John Austin's Philosophy of Law in Nineteenth-Century England, Londres, Continuum, 1995, em particular o capítulo 9: “Nineteenth-century precursors of H. L. A. Hart’s critique of Austin: Frederic Harrison, Thomas Erskine Holland, and James Bryce”, pp. 225-241.

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Relendo o Capítulo 2 de O Conceito de Direito- Alfredo Storck

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dadas por alguém de forma direta, pessoal e respaldada pela ameaça com o objetivo de que outra

pessoa realize a vontade de quem ordena. Todavia, os ordenamentos jurídicos não se esgotam em

ordens dadas por alguém de forma direta, pessoal e respaldada pela ameaça. Assim a pergunta de

Hart passa a ser: quais as modificações que devem ser introduzidas nesse modelo para que ele

possa ser suficientemente forte para capturar os traços distintivos do Direito?

A ordem de um assaltante é direta e proferida por um indivíduo particular. No Direito,

encontramos tais situações como, por exemplo, quando um policial ou agente da administração dá

uma ordem direta a um motorista. Todavia, esse não pode ser o padrão, pois o modelo exigiria que

todo membro da sociedade fosse informado, de forma oficial e individualizada (separately, diz Hart)

de cada ação que ele devesse realizar e isso não é algo praticável. Hart tira então uma lição que

será cara a Endicott:

“Em vez disso, tais formas particularizadas de fiscalização (control) ou são

excepcionais, ou são acompanhamentos ou reforços ancilares de formas gerais

diretivas que não contêm o nome de, nem são dirigidas a indivíduos determinados e

não indicam um acto específico que deva ser feito.” (CD, p. 26)

Será o caráter excepcional e subsidiário (ancillary) que será criticado por Endicott, como

veremos a seguir. Para Hart, no entanto, o padrão jurídico (standard form) é o de ordens gerais e

“este é o primeiro aspecto que temos de acrescentar ao modelo simples do assaltante se

quisermos que ele reproduza as características do direito”. (CD, p. 26) A generalidade deve ser

considerada de dois modos, pois ordens gerais: i) indicam um tipo geral de comportamento; e ii)

aplicam-se a um grupo de pessoas das quais se espera que compreendam que as leis se aplicam a

elas e que as acatem. Note-se que, mais uma vez, Hart modifica o vocabulário de Austin visando

torná-lo mais preciso. Em sociedades modernas, as leis aplicam-se a todos, caso não haja alguma

restrição. Austin e os juristas, no entanto, usam a formulação das leis "dirigirem-se" a um grupo de

pessoas, o que tem certamente a vantagem de ser mais próxima da formulação do assaltante, pois

este dirige-se diretamente ao assaltado. Contudo, o vocabulário tem a desvantagem de não

capturar um aspecto do direito, a saber, “as leis são feitas validamente, mesmo se se deixar que os

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Temas de filosofia política e jurídica

163

afectados descubram por si próprios quais as leis que forma feitas e quem é por elas afectado."

(CD, p. 29)

Após a introduzir, no modelo austiniano, a noção da generalidade, Hart faz a seguinte

afirmação:

“Além da introdução do aspecto da generalidade, deve fazer-se uma alteração mais

fundamental na situação do assaltante, se quisermos ter um modelo plausível da situação

em que existe direito”. (CD, p. 28)

A citação deixa claro que a segunda mudança é de natureza distinta da generalidade e esse

parece ser um dos pontos ausentes da leitura proposta por Endicott. Para Hart, as leis são

permanentes no sentido de permanecerem válidas ou persistirem por um certo período de tempo.

Esse traço não é exatamente capturado pelo modelo do assaltante, para quem a ascendência

temporária e imediata é suficiente. Ou seja, há, da parte daqueles a quem a lei se aplica, uma

crença geral de que a desobediência será seguida do cumprimento da ameaça desde a

promulgação da lei até o momento de ela ter sido retirada ou cancelada. A continuidade não da

validade da lei, mas da crença da aplicação da sanção, é que Hart não encontra no modelo da

assaltante. Para que o modelo austiniano funcione, é necessário "supor que há uma crença geral da

parte daqueles a quem as ordens gerais se aplicam, em que a desobediência será provavelmente

seguida pela execução da ameaça, não só no momento primeiro da promulgação da ordem, mas

continuamente, até que a ordem seja retirada ou revogada." (CD, p. 29-30) Hart sugere, então, um

terceiro e mais crucial elemento a ser introduzido. Ele reconhece tratar-se de uma noção

essencialmente vaga e obscura e apresentada por Austin como hábito geral de obediência. Isso

significa ser preciso ainda considerar que parte considerável da população estaria disposta a

obedecer voluntariamente às leis, independentemente do medo da ameaça, e cooperar na

execução das ameaças em relação aos desobedientes. A obediência é indubitavelmente um

elemento central, mas o quanto geral deve ser a obediência é variável nos diversos ordenamentos

jurídicos.

Até aqui, o modelo obtido explica o Direito tendo por base ordens gerais baseadas em

ameaças dadas por alguém obedecido de forma habitual por grande parte da sociedade. Esse

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Relendo o Capítulo 2 de O Conceito de Direito- Alfredo Storck

164

modelo parece aplicar-se bastante bem para explicar a natureza das leis penais emitidas pelo poder

legislativo de um Estado moderno, as quais podem ser ditas serem obedecidas em virtude das

sanções a elas associadas. Todavia, para que o modelo possa explicar o fenômeno jurídico em sua

totalidade, é preciso defender-se a redução das outras formas de leis à lei penal, sustentando que,

a despeito das aparências, todas as leis compartilham de uma mesma forma. Os relativos sucessos

e malogros dessa tentativa de redução não foram tratados por Hart no capítulo 2 de CD, de

maneira que podemos deixar de lado essa parte da crítica. Para nossos propósitos, basta seguir os

passos do autor e acrescentar dois traços característicos da pessoa ou instância jurídica produtora

das normas: a sua supremacia interna e independência externa.

O sistema jurídico de um Estado moderno caracteriza-se por uma espécie de supremacia

em seu território e independência em relação a outros sistemas. Essas características podem ser

capturadas no modelo austiniano mostrando-se que a unidade de um sistema jurídico somente não

é rompida quando as diversas instâncias legislativas estão subordinadas a uma instância superior.

As instâncias inferiores obedecem habitualmente às ordens da superior, mas esta não obedece

habitualmente às ordens dos outros. Assim, haveria supremacia interna da instância superior a qual

é, em relação a mesma instância de outros ordenamentos, totalmente independente. Nos

exemplos de Hart, os legisladores subordinados obedecem a Queen in Parliament, mas essa não

obedece a ninguém, assim como ela mesma não é obedecida pelas instâncias supremas de outros

ordenamentos, o soviético, por exemplo.

Estamos cientes de termos realizado um resumo bastante óbvio das principais teses e

etapas argumentativas do capítulo 2 do CD. Optamos por manter grande proximidade ao texto de

Hart com o objetivo de poder melhor apreciar a reconstrução proposta por Endicott. Com isso,

ficarão claros os momentos em que Endicott afasta-se do texto hartiano, deturpando, a nosso juízo,

o capítulo em foco.

2. Endicott e a generalidade do Direito

A tese central de Endicott é que o capítulo 2 de O Conceito de Direito pode ser visto como

um ensaio sobre a generalidade. Essa razão o leva a intitular o seu estudo A Generalidade do

Direito. Todavia, tratar-se-ia de um ensaio levado a cabo de modo acidental, uma vez que, sem ter

pretendido fazer um ensaio sobre a generalidade, é isso que Hart acaba fazendo. Sem dúvida, essa

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Temas de filosofia política e jurídica

165

é uma proposta de leitura bastante contundente do capítulo que acabamos de resumir, na medida

em que pretende simultaneamente revelar um traço inusitado da obra e endereçar-lhe uma crítica.

Se o capítulo 2 é, de fato, um ensaio sobre a generalidade do Direito, então ele é original, mas

confuso e incompleto. Afirma Endicott:

“Este ensaio leva a forma de uma lista. Ele é original, um pouco distraído e incompleto. Hart

começa enumerando os traços que distinguem leis de comandos de um assaltante, mas

interrompe a enumeração sem nunca deixar muito claro quantos traços são. E nunca indica

o que os unifica”. (EGD, p. 16)

O que os unifica, diz Endicott, é a generalidade. A tarefa que o intérprete passa então a se

dar é a de reconstruir o capítulo 2 apresentando os principais modos nos quais o Direito possui

generalidade, acrescentando aspectos que o ensaio de Hart não teria apontado. Contudo, além de

completar o ensaio de Hart sobre a generalidade, o que consistiria em mera tarefa de continuação

do ensaio, Endicott pretende ainda corrigir Hart afirmando que o tratamento da generalidade é

incompleto por não oferecer análise adequada para um outro traço necessário do Direito e

associado à generalidade, a saber, a particularidade. Hart teria corretamente visto que a

generalidade é um traço necessário dos ordenamentos jurídicos, mas teria falhado em oferecer

uma boa explicação da noção de particularidade. O intérprete examina ainda o que significa dizer

que o direito possui traços necessários, explicita o que a necessidade significa nesse contexto e

conclui com uma discussão sobre o valor do Direito. Para esse autor, Hart possuiria uma atitude

ambivalente sobre o valor do Direito e teremos oportunidade de, ao final do capítulo, tecer alguns

comentários sobre esse ponto. Todavia, importa-nos principalmente discordar da tese segundo a

qual o capítulo 2 de CD é um ensaio sobre a generalidade. Ao nosso ver, a tese é fruto de uma

decisão interpretativa forte que obscurece alguns dos propósitos de Hart. Essa suposição projeta

sobre o capítulo perguntas que Hart não pretendia responder e torna menos claros os reais

propósitos de pensador inglês.

A reconstrução de Endicott do capítulo 2 toma por fio condutor a identificação de quatro

traços da generalidade do Direito: 1. A generalidade das leis; 2. A autoridade geral das instituições

jurídicas; 3. A generalidade do sistema; e 4. O hábito geral de obediência. Endicott reconhece que

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Relendo o Capítulo 2 de O Conceito de Direito- Alfredo Storck

166

Hart não chama a todos de traços da generalidade. A terminologia é do próprio intérprete e deveria

ser esclarecedora da estrutura adota pelo capítulo bem como dos lapsos cometidos pelo seu autor.

Vejamos o primeiro traço. Uma lei é geral primeiramente em dois sentidos:

a) quanto ao tipo de conduta que pretende regular, ou seja, como especificando um tipo de

ação vista como proibida ou obrigatória;

b) quanto às pessoas a quem se aplica.

Ambos os sentidos não necessitam estar simultaneamente presentes, pois a lei pode ser

geral quanto a um sem o ser quanto ao outro. Conforme exemplo do próprio Endicott, a lei que

determina que uma rua particular passe a ter mão única é particular por especificar que a

obrigação vale para aquele logradouro específico. Ainda assim, a mesma lei é geral no sentido de

que todos os motoristas que circularem pelo local devem adotar o comportamento previsto.

O terceiro sentido em que a lei pode ser geral diz respeito a seu âmbito temporal. Uma lei

existe e regula condutas dentro de um certo período de tempo, ou seja, desde quando passa a

vigorar e até que seja revogada. Endicott está correto em chamar a atenção para a validade

temporal da lei. Esse ponto é simultaneamente simples e importante e ninguém o negaria. Todavia,

gostaríamos de salientar que Endicott sustenta ter Hart identificado essa característica ao dizer que

as leis são permanentes. Ora, se voltarmos ao resumo acima, lembraremos que Hart distingue

claramente a permanência das leis de sua generalidade ao sustentar que “além da introdução do

aspecto da generalidade, deve fazer-se uma alteração mais fundamental na situação do assaltante,

se quisermos ter um modelo plausível da situação em que existe direito”. (CD, p. 28). Por que Hart

considera a persistência das leis no tempo não ser um caso de generalidade temporal? Claro, o

filósofo pode estar errado ou pode ter-se expressado mal, e Endicott pode estar certo ao dizer que

permanência é um tipo de generalidade. Parece-nos, todavia, que Hart pretendeu explicar a

permanência da força coercitiva do Direito e não o lapso tempo em que a uma ordem particular é

dita dever ser obedecida. Ilustremos a diferença com o seguinte exemplo adaptado do modelo do

assaltante. Em t1, o assaltante diz: “Fique calado”. Em t2, 15 segundos após t1, diz: “Me diz agora

onde está a chave do cofre”. A segunda ordem pode ser vista como revogando a primeira (pelo

menos em parte). O permanente no exemplo não é a ordem, mas a força coercitiva que faz de

ambas as afirmações do assaltante ordens ao assaltado. No capítulo 2, Hart não explica o que

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Temas de filosofia política e jurídica

167

garante a permanência de um ordenamento jurídico, nem o poderia fazer. O capítulo pretende

apenas apresentar a melhor versão da teoria de Austin e não resolver as dificuldades que levarão

ao seu abandono. Por essa razão, Hart limita-se a afirmar que a permanência é um problema para o

modelo do assaltante e a ser posteriormente abordado durante a parte construtiva de sua própria

teoria. A interpretação de Endicott, por sua vez, apresenta a permanência como uma característica

da lei. Reduzida à generalidade, a permanência estaria presente e não traria problemas para o

modelo do assaltante, como se vê no exemplo acima em que a primeira ordem perdurou durante

um certo lapso de tempo. A falha na leitura de Endicott reside, portanto, em não conseguir explicar

por que a permanência acarretaria problemas ao modelo austiniano, obliterando assim uma das

dificuldades que conduzirão Hart a propor sua nova teoria acerca da natureza do Direito. Em uma

palavra, é a economia argumentativa da obra hartiana que se vê comprometida pela interpretação

de Endicott.

O quarto sentido de generalidade apontado por Endicott é o escopo espacial de aplicação

da lei, como no caso de leis válidas no território nacional, mas não além desses limites. Esse aspecto

poderia ser identificado como decorrente do problema da supremacia e independência dos

ordenamentos jurídicos apontado por Hart ao final do capítulo 2. Os limites da validade espacial

poderiam ser vistos como os limites territoriais em que se encontram aqueles que habitualmente

obedecem ao legislador supremo. Essas considerações conduzem-nos ao segundo traço da

generalidade identificado por Endicott: a autoridade geral das instituições jurídicas. Endicott

interpreta a generalidade das leis como refletindo a autoridade dos legisladores para regular, de

modo geral, a vida na comunidade, aspecto que estaria vinculado à supremacia do Direito tal como

descrita por Hart.

Endicott pretende que a autoridade suprema tenha poder para legislar de forma geral e isso

pode ser verdade. Todavia, se o poder para legislar pode ser repartido em áreas de competência,

então seriam possíveis diversas autoridades em um mesmo sistema, cada qual suprema em seu

âmbito de competência. O autor parece contemplar essa possibilidade ao sustentar que “as leis são

feitas por instituições que são supremas no interior do sistema e são independentes de outras

instituições e pessoas” (EDG, p. 19) A caracterização de Endicott conduz a um conceito de

supremacia relativa ao passo que Hart pretende apresentar o de supremacia absoluta, como se

depreende da seguinte passagem:

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Relendo o Capítulo 2 de O Conceito de Direito- Alfredo Storck

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“Podemos exprimir esta relação [de subordinação] na simples terminologia dos

hábitos, dizendo que enquanto que a Rainha no Parlamento, ao fazer as leis, não obedece

habitualmente a ninguém, os legisladores subordinados mantêm-se dentro dos limites

legalmente prescritos e, por isso, pode dizer-se que, ao fazerem leis, são agentes da Rainha

no Parlamento. Se assim não procedessem, não teríamos um sistema de direito na

Inglaterra, mas uma pluralidade de sistemas (...) ”. (CD, p. 30)

Se Endicott pôde alcançar conclusões contrárias ao texto que estaria lendo, isso deve-se,

sem dúvida, à decisão interpretativa de encontrar no capítulo 2 um ensaio sobre a generalidade e

de utilizar os conceitos ali expostos como pretextos para introdução de temas e problemas

estranhos ao desenvolvimento argumentativo de Hart. Evidência disso é conceito de supremacia.

Ambos os autores concordam que não há autoridade suprema sem poder para legislar. No entanto,

o seguinte deslocamento semântico passa a ser efetuado por Endicott. Inicialmente, ele acrescenta

que o poder para legislar deve ser geral, pois “supremacia é poder geral”. (EDG, p. 19) A

supremacia passa, em seguida, a ser vista como autoridade geral para regular a vida em

comunidade, e, por conseguinte, como poder para regular, de modo geral, a vida e comunidade.

Nessa formulação, a noção de generalidade qualifica tanto a autoridade quanto a classe de

condutas reguladas. A autoridade geral produz leis gerais. Endicott pode então concluir que “a

supremacia do direito implica ao menos quatro modos de generalidade: o escopo da autoridade

das instituições como pessoas e temas, a persistência no tempo das instituições legais e sua

autoridade no interior de um território”. (EDG, p. 19) Já no modelo austiniano, tal como

reconstruído por Hart no capítulo 2 e criticado nos capítulos seguintes, as noções de supremacia e

independência são definidas em termos de hábitos de obediência. A autoridade suprema é

internamente soberana pois, ao legislar, é obedecida de modo habitual e não obedece a ninguém. É

externamente independente por não obedecer a outras autoridades de forma habitual. Note-se

que a noção de hábito de obediência, central na reconstrução da teoria austiniana, desaparece da

definição de soberania proposta por Endicott, sendo relegada a uma análise em separado como um

quarto tipo de generalidade. Com isso, o intérprete rompe elos conceituais que se mostrarão

centrais na sequência da obra, chegando mesmo a ignorar completamente a noção de

independência com a qual Hart encerra o capítulo. Endicott prefere antes defender que Hart teria

realizado uma apresentação incompleta da generalidade por não mencionar o papel da lei na

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Temas de filosofia política e jurídica

169

delimitação das funções executivas do Estado. O argumento soa estranho, pois Hart não pretendeu

exaurir no capítulo todos os tipos de generalidade. Prova disso está no fato de Hart reconhecer

outros tipos de regras gerais (regras de modificação, extinção, julgamento) que também não são

analisadas no capítulo 2. Antevendo a objeção, Endicott sustenta que as regras executivas não são

analisadas nem no capítulo 2 nem em outro capítulo do CD. Entretanto, mesmo que aceitemos essa

tese, ela não implica que o ensaio sobre a generalidade no capítulo 2 devesse incluir as regras

gerais executivas. Se devesse, deveria também incluir regras gerais de modificação e mesmo a regra

de reconhecimento. Todavia, não seria razoável esperar esse tipo de análise no capítulo. Para que,

como pretende Endicott, o capítulo 2 possa ser visto como um ensaio sobre a generalidade, ele

deve ser lido como contendo lacunas na forma de regras gerais que Hart não poderia ter

apresentado sob pena de prejudicar o percurso argumentativo que desenvolverá no restante da

obra. Em uma palavra, Hart não poderia ter proposto um ensaio sobre a generalidade no capítulo 2

e manter a estratégia argumentativa que ele pretende adotar no restante da obra.

O terceiro tipo de generalidade listado por Endicott é a generalidade do sistema. O próprio

sistema, e não suas leis particulares, possui autoridade sobre pessoas regulando condutas por um

certo tempo em um certo território e de modo temporalmente permanente. Trata-se novamente

de tese simples que não deveria gerar polêmicas. O problema, contudo, é que com ela fica claro

que não é mais do capítulo 2 que Endicott está falando, mas de um ensaio sobre a generalidade

feito por ele Endicott. Hart não afirma no capítulo 2 que o sistema tem generalidade. O que Hart

afirmará, mas isso será feito apenas nos capítulos posteriores, é que para que exista um sistema,

uma certa regra geral deve ser aceita. O que diferencia um simples conjunto de regras particulares

de um sistema é a existência de regras de segunda ordem que estabelecem quando uma regra

pertence ao sistema e por quais critérios elas são identificadas. Todavia, esse não poderia ter sido

um ponto defendido por Hart no capítulo 2.

O último tipo de generalidade listado por Endicott é o hábito geral de obediência. Hábitos,

diz Endicott, são também modos de generalidade que, por serem disposições, aplicam-se de forma

geral a instâncias de uma classe de conduta e possuem certa permanência no tempo. Hábitos

possuem ainda generalidade no sentido de serem compartilhados de modo geral pelos membros

de uma comunidade. Salientemos que não é qualquer forma de habitualidade que interessa a Hart,

mas a da obediência. Há um hábito geral de obediência entre os membros de uma comunidade.

Endicott apenas lista o hábito geral de obediência como um tipo de generalidade, ao passo que o

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Relendo o Capítulo 2 de O Conceito de Direito- Alfredo Storck

170

que Hart parece estar fazendo no capítulo 2 é algo distinto. Ele está identificando uma

característica no modelo do assaltante que poderia ser o único elemento nele presente capaz de

explicar a permanência do sistema. Mesmo assim, como os capítulos seguintes do CD mostrarão,

esse tipo de hábito é incapaz de garantir a continuidade de um ordenamento jurídico.

Passemos agora à segunda seção na qual Endicott aborda a noção de particularidade.

Segundo o intérprete, Hart teria dado um tratamento insuficiente à particularidade, pois a reduz

apenas a formas subsidiárias de leis gerais. Ora, leis particularidades possuem um papel muito mais

forte no Direito do que o atribuído por Hart. Leis particulares não podem servir de padrão para o

Direito pois, como Hart afirma, um ordenamento em que as leis particulares é o padrão torna-se

impraticável. No entanto, é também verdade que o Direito não funciona apenas com normas gerais

e que as normas particulares são imprescindíveis. Hart teria enfatizado a necessidade de leis gerais

e teria minimizado o papel das particulares. Ao nosso ver, o argumento avançado é um tanto

confuso. Primeiramente, não fica claro se a crítica é endereçada ao capítulo 2 ou se ao Conceito de

Direito como um todo, uma vez que ela não parece comprometer a estratégia argumentativa

desenhada no capítulo 2. Em segundo lugar, Endicott acrescenta que o que foi dito é plenamente

consistente com Hart e termina a seção enfatizando, talvez de um modo diferente do de Hart, o

caráter subsidiário da particularidade. Cito o intérprete:

“E devemos ter em mente um traço último e crucial do Estado de Direito (rule of law) (com

respeito ao qual você poderia dizer que ordens particulares são, em um sentido, “ancilares”

às regras gerais): em um sistema jurídico, não podem existir regras particulares com efeito

legal a não ser que o agente legal que cria a nova obrigação o faça no exercício de uma

autorização jurídica geral.” (EDG, p. 28)

Parece então que todas as qualificações, por mais importantes que sejam, levam-nos a

concordar com Hart naquilo que é central para o capítulo 2. A dificuldade que persiste, portanto, é

novamente a tentativa de ler o capítulo como um ensaio sobre a generalidade, tese que, pelas

razões já apresentadas, não parece sustentar-se.

As terceira e quarta seções de Endicott mudam, em grande medida, o foco do capítulo, pois

o alvo das críticas não é apenas o CD, mas principalmente um artigo de Brian Leiter sobre o clássico

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Temas de filosofia política e jurídica

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problema de separação entre Direito e moralidade7. As referências a Hart deixam claro que o CD

está sendo lido no contexto das críticas endereçadas por autores como Lon Fuller, John Finnis e

Joseph Raz ao modo como Hart defendeu a separação do Direito e da moral. Retomando a crítica

em aspectos centrais, Endicott sustenta, contra Leiter, a existência de um vínculo entre esses dois

domínios. Sem descer aos detalhes desse complexo debate, apresentaremos alguns pontos que nos

permitem melhor identificar o modo como Endicott critica o CD.

No artigo de 2011 atacado por Endicott, Leiter parte do chamado Problema da Demarcação,

que consiste em estabelecer a distinção entre ciência e pseudo-ciência, e procura aplicar os

resultados de discussões em Filosofia da Ciência para o caso da Filosofia do Direito. O pressuposto

de base é que tanto as teorias científicas quanto os ordenamentos jurídicos são artefatos que,

como as cadeiras, resistem a análises em termos de seus atributos essenciais. Artefatos são

refratários a tentativas de definição em termos de condições necessárias e suficientes para sua

identificação, pois, por exemplo, se diversos artefatos, com as formas mais diversas (com ou sem

braços) e as funções mais distintas (decorativa, para sentar), podem ser cadeiras, então cadeiras

não possuem atributos essenciais. O mesmo valeria, não obstante as diversas tentativas de filósofos

como Popper, Carnap e Hempel, para as teorias científicas, uma vez que todas as tentativas de

estabelecer quais as condições necessárias e suficientes para uma teoria ser dita científica

fracassaram, segundo Leiter, de modo espetacular. Constatado o fracasso, uma pergunta deveria

ser feita: por que seria ainda importante buscar resolver o Problema da Demarcação no caso das

ciências? Em última instância, a resposta é: por razões práticas, pois saber o que é conhecimento

possui repercussões práticas em diversas áreas. Assim, mesmo não sendo possível resolver o

Problema da Demarcação por meio da apresentação de condições necessárias e suficientes, o

problema persiste e precisa ser resolvido analisando-se cada teoria em particular e perguntando

por sua correta justificação. Para Filosofia do Direito, a situação seria análoga. As melhores

tentativas de estabelecer condições necessárias e suficientes para identificar o Direito foram as

realizadas por autores positivistas como Kelsen, Hart e Raz. Todavia, todos fracassaram em

distinguir o Direito e a moralidade de tal modo que a pergunta pela necessidade ou não de se

continuar buscando atributos essenciais passa a impor-se. Leiter resume sua tese do seguinte

modo:

7 LEITER, B. “The Demarcation Problem in Jurisprudence: A New Case for Scepticism”, Oxford Journal of Legal Studies,

(2011), pp. 1-15. Citamos o artigo a partir da versão disponível online em: http://ojls.oxfordjournals.org/content/early/2011/08/22/ojls.gqr020.full.pdf?keytype=ref&ijkey=71cpTy7j9Eybp97

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Relendo o Capítulo 2 de O Conceito de Direito- Alfredo Storck

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“Mesmo que não possamos demarcar a ciência da não-ciência, continuamos a atribuir graus

de crenças epistêmicas para distinguir reivindicações sobre como o mundo é. E mesmo que

não consigamos precisamente demarcar direito e moral, continuamos a precisar decidir o

que devemos fazer e o que temos obrigação de fazer. Soluções para os Problemas de

Demarcação, se funcionassem, nos forneceriam atalhos. Mas se elas não funcionam, então

devemos atacar as questões práticas de forma direta. Na filosofia da ciência, isso significa

concentrar a atenção na epistemologia das várias ciências, da física à biologia e à psicologia

e se suas reivindicações distintivas recebem suporte das evidências disponíveis. Na filosofia

do direito, isso significa focar em sistemas legais particulares e nas demandas práticas que

fazem a seus oficiais.”8

Endicott pretende refutar Leiter adotando a seguinte estratégia. Em sua seção 3 (Necessity),

procura determinar, partindo de observações de Hart, o que significa para um critério ser

necessário e, na seção 4 (Value), identifica um desses critérios, propondo, então, a existência de um

vínculo entre Direito e moralidade. Novamente, será a noção de generalidade que servirá de fio

condutor para ambas as seções. A seção 3 começa com considerações sobre o método de

elucidação conceitual empregado por Hart o qual consiste em partir de certos usos correntes de

expressões usadas para caracterizar o Direito e, em as analisando, apresentar características que

pertencem necessariamente ao conceito de ordenamento jurídico. Isso pode ser ilustrado pelo

percurso argumentativo que leva Hart a acrescentar característica faltantes no modelo do

assaltante para que ele possa capturar adequadamente o conceito de Direito. Portanto, por próprio

método que adota, a teoria hartiana estaria comprometida com a existência de traços necessários

do conceito Direito. Diz Endicott:

“Ao fazer afirmações sobre a necessidade, Hart não está fazendo algo distinto do que dizer

o que é característico, recorrente, familiar, normal, natural, padrão, costumeiro, usual,

apropriado ou próprio. Ele usa todos esses termos, juntamente com ‘necessidade’, para

8 Idem, p. 30.

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Temas de filosofia política e jurídica

173

apontar aquelas características que devemos alcançar quando elucidamos o conceito de

direito.” (EDG, p. 30)

Em seguida, Endicott analisa o modo como Leiter conclui não haver traços essenciais para

artefatos baseando-se no fato de que cadeiras podem ter diversas características, estilos e funções.

Leiter deveria reconhecer que as funções de um artefato são dependentes da finalidade para a qual

o artefato foi concebido. Essa função pode mudar alterando-se assim as características. Sendo

assim, deve-se distinguir os casos paradigmáticos de um conceito dos casos em conceito é aplicado

por analogia.

“Nada é o paradigma de um conceito a menos que possua características em virtude das

quais podemos considerar útil explicar a aplicação do conceito. Um objeto é uma instância

de um conceito se é um paradigma. E um objeto é uma instância do conceito se analogias a

paradigmas justificam a extensão do termo ao objeto”. (EDG, p. 30)9

Não se trataria, portanto, de recusar que artefatos não possuem propriedades essenciais,

mas de sustentar a distinção entre o caso central ou paradigmático de aplicação de um conceito e

sua extensão, por diversas razões, a casos análogos. Obviamente, para os casos paradigmáticos, a

definição do conceito emprega noções essenciais ou propriedades necessárias que o objeto deve

possuir para pertencer ao conceito. Essas propriedades podem, contudo, não estar presentes

quando a extensão do conceito por analogia. Como tanto Hart quanto Leiter aceitam e empregam

esse procedimento, ambos devem aceitar, e Hart o faz explicitamente, a existência de propriedades

necessárias para definir artefatos.

O segundo passo da crítica endereçada a Leiter inicia com a aceitação da tese segundo a

qual ordenamentos jurídicos são artefatos e devem ser avaliados pelos seus fins e propósitos. Claro

que um sistema jurídico pode não ser bom. Todavia, “para que possam ser realizados os fins

moralmente bons que levam a criar um sistema jurídico, é necessário fazer-se regras gerais. Um

sistema legal precisa oferecer os modos de generalidade que a comunidade necessita para seu

9 Compare-se com o uso que Finnis faz da noção de focal meaning: FINNIS, J. Natural Law and Natural Rights, second edition, Oxford, Oxford University Press, 2011, p. 9-11.

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Relendo o Capítulo 2 de O Conceito de Direito- Alfredo Storck

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governo”. (EDG, p. 34)10 Para que se realizem os bens que podem ser realizados por meio de um

sistema jurídico, então regras gerais são necessárias. Endicott lembra que Hart é reticente em ligar

seu reconhecimento de que existem traços necessários de todo ordenamento jurídico com

enunciados valorativos, pois Hart não gostaria de caracterizar o Direito como uma coisa

necessariamente boa quando ele não é uma coisa necessariamente boa. Todavia, essa atitude é um

erro. Pode-se corretamente reconhecer, como Hart o faz, que regras e sistemas jurídicos não são

necessariamente bons. Mas se aceita que nenhum sistema jurídico pode ser bom sem generalidade

e particularidade, deve-se aceitar que esses traços são condições necessárias para a realização da

boa finalidade que o direito pode ter. Para que o direito possa servir à comunidade, ele deve tanto

regras gerais e particulares. Há, assim, um vínculo necessário entre a natureza do Direito e o bem

da comunidade, defendida nos seguintes termos:

“A conexão entre a natureza do direito e o bem de uma comunidade deve estar óbvia. Uma

comunidade é uma generalidade. A aplicação do direito de forma geral a mais de uma

pessoa é essencial para seu papel como o sistema da comunidade para boa regulação da

vida na comunidade. E um sistema jurídico não pode ser um sistema jurídico se apenas uma

única pessoa o obedece, (obediência geral é “crucial”, como afirma Hart), pois não estaria

realizando os bens que um sistema jurídico é capaz de realizar. Assim, a generalidade do

direito está necessariamente associada ao bem da comunidade”. (EGD, p. 35)

Estabelecida a conexão entre Direito e o bem da comunidade, Endicott pode propor, contra

Leiter, a seguinte solução para o Problema da Demarcação, pois basta salientar a distinção entre a

generalidade das leis jurídicas e das regras morais. As primeiras, contrariamente as segundas, não

podem ser entendidas sem referência à jurisdição.

Assim, teria ficado estabelecido, contra Hart, a existência de vínculo necessário entre Direito

e moralidade e, contra Leiter, a distinção entre os dois domínios. Para os nossos propósitos, não

precisamos buscar, no capítulo 9 do CD, as razões que levaram Hart a recusar a separação entre

Direito e moralidade. Basta-nos salientar três pontos na argumentação de Endicott. Em primeiro

10

Compare-se com a seguinte afirmação de Fuller: “The first desideratum of a system for subjecting human conduct to the governance of rules is an obviuos one: there must be rules. This may be stated as the requirement of generality”. FULLER, L. The Morality of Law, New Haven, Yale University Press, revised edition, 1969, p. 46.

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Temas de filosofia política e jurídica

175

lugar, os traços que deveriam ser considerados necessários para a existência do Direito não podem

ser encontrados no capítulo 2. Se Endicott buscou encontrá-los e projetou no texto características

que ele não possui, isso deve-se, em parte, ao modo como o conceito de generalidade foi

empregado nas críticas de autores como Fuller, Finnis e Raz a Hart, mas em parte também à

tentativa de usar a mesma estratégia para resolver, contra Leiter, o Problema de Demarcação.

Em segundo lugar, Endicott parece ter razão, contra Leiter, de que as perguntas pela

constituição e pela avaliação de um artefato devem ambas ser feitas levando-se em conta de que

se trata de uma relação entre meios e fins. Artefatos são meios para certos fins. Portanto, quando

um artesão ou um projetista concebe um artefato (uma panela ou uma aeronave), ele o faz tendo

em vista a finalidade para o qual o artefato é destinado. O erro de Leiter consistiria em olhar

apenas para o produto final e perguntar por suas propriedades constitutivas, ignorando as razões

que levaram o objeto a ser concebido e executado de um certo modo. No entanto, a introdução da

finalidade não acarreta que as pergunta pelas propriedades constitutivas e avaliativas sejam

idênticas. As propriedades constitutivas que um objeto x deve possuir para ser um artefato do tipo

y (panela ou aeronave) não necessariamente são as mesmas que o tornam um bom artefato do tipo

y (uma boa panela ou uma boa aeronave). Endicott parece oscilar entre, por um lado, reconhecer a

distinção e, por outro, tirar consequências que a distinção não autorizaria. Analisemos a seguinte

afirmação de Endicott:

“O paradigma de um sistema jurídico é bom para os propósitos para os quais é valioso

produzir ou manter um sistema jurídico. Sistemas jurídicos não são necessariamente bons.

Como cadeiras, eles podem ser mal feitos e podem ser usados para propósitos ruins. Uma

comunidade necessita mais do que um sistema jurídico. Mas aqui há uma conexão entre

direito e moralidade: para realizar os propósitos moralmente bons para os quais um sistema

jurídico pode ser adotado, estabelecido e mantido, é necessário (por exemplo) criar regras

gerais. Um sistema jurídico necessita oferecer modos de generalidade que a comunidade

necessita para o seu governo” (EGD, p.34, grifos nossos.)

A primeira frase afirma que um sistema jurídico, considerado em abstrato, deve ser avaliado

pela sua finalidade e acrescenta que ele será considerado bom quando satisfizer os critérios para os

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Relendo o Capítulo 2 de O Conceito de Direito- Alfredo Storck

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quais um sistema dito é valioso (portanto, bom). A frase é pouco informativa, assim como é pouco

informativo dizer que um sistema jurídico é ruim quando não satisfaz os critérios pelos quais ele é

valioso (bom). Em ambos os casos, a pergunta permanece: o que torna um sistema valioso (bom)?

A segunda frase refere-se não a um sistema considerado em abstrato, mas a sistemas particulares

concretos e afirma que não são necessariamente bons devido a: 1) uma falha na execução,

buscava-se criar um sistema bom, mas isso não ocorreu; 2) a finalidade buscada ser ruim.

Novamente, resta demonstrar quais os propósitos que confeririam a um ordenamento jurídico ser

avaliado como bom. A terceira frase sugere que esses são os propósitos moralmente bons (o que

não avança muito o problema) e que, para sua realização, são necessárias regras gerais, não

deixando claro se elas são necessárias para a existência de um sistema ou para que o sistema seja

dito moralmente bom. Ora, dadas as críticas endereçadas a Hart sobre a noção de generalidade,

essa deveria ser uma característica necessárias não apenas dos bons ordenamentos. Mesmo os

sistemas jurídicos ruins deveriam ter regras gerais. Todavia, se isso é assim, por razões de

consistência, a tese de Endicott somente poderia ser a seguinte: para que um ordenamento jurídico

exista, ele necessita apresentar regras gerais, mas para que ele seja considerado um bom

ordenamento, ele deve ser constituído buscando-se realizar bons propósitos morais.

Muito mais poderia ser dito sobre as influências e detalhes da argumentação de Endicott.

Gostaríamos, para concluir, apenas de salientar um ponto. A distinção entre condições necessárias

para a existência de um ordenamento jurídico e sua avaliação não demonstra um vínculo

necessário entre o conceito de Direito e a moralidade. Ao contrário do que pretende o autor, no

máximo afirma-se a tese de John Austin que citamos no início: a existência do Direito é uma coisa,

seu mérito é outra, tese que Hart defenderá, mas fora do capítulo 2 de CD.

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