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TEMA: UMA IGREJA RECONCILIADA, FERMENTO DE RECONCILIACÃO, DE JUSTIÇA E DE PAZ P Romão Capossa (Chimoio) Introdução A realidade de guerras em muitas regiões da África não deixa despercebida a Igreja. Como sal e fermento, participante da missão de Cristo Redentor, sente o gravíssimo dever de não só reflectir sobre a situação concreta, mas de colaborar para que a paz e a justiça não sejam um sonho jamais alcançado, uma quimera, mas uma realidade desejada por todos. Um exemplo concreto é a participação activa dos bispos de Moçambique na busca de paz para Moçambique. Não há dúvidas que ela chegou para ficar, mas as injustiças nas dimensões sociais, política, económica e, por que não, religiosa perigam a paz e a colocam numa situação de vulnerabilidade. Para sermos realistas, notamos com certa tristeza e amargura como a questão de justiça não está sendo levada com seriedade desejada e esperada. Os meios de informação social dão-nos uma radiografia geral de uma justiça que ainda manca… que o digam os que vivem na carne a situação contínua de injustiça: os pobres, as mulheres desprotegidas, todos aqueles que não têm direito de ser ricos e os que não têm o Bilhete de Identidade Vermelho. Os poucos sinais de justiça, de luz, parecem mais um dos triunfos, carta curinga, o “A” do baralho de jogo político do que uma convicção.

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TEMA: UMA IGREJA RECONCILIADA,FERMENTO DE RECONCILIACÃO, DEJUSTIÇA E DE PAZP Romão Capossa (Chimoio)

Introdução

A realidade de guerras em muitas regiões da África nãodeixa despercebida a Igreja. Como sal e fermento,participante da missão de Cristo Redentor, sente ogravíssimo dever de não só reflectir sobre a situaçãoconcreta, mas de colaborar para que a paz e a justiça nãosejam um sonho jamais alcançado, uma quimera, masuma realidade desejada por todos.Um exemplo concreto é a participação activa dos bisposde Moçambique na busca de paz para Moçambique. Nãohá dúvidas que ela chegou para ficar, mas as injustiçasnas dimensões sociais, política, económica e, por quenão, religiosa perigam a paz e a colocam numa situaçãode vulnerabilidade.Para sermos realistas, notamos com certa tristeza eamargura como a questão de justiça não está sendolevada com seriedade desejada e esperada. Os meios deinformação social dão-nos uma radiografia geral de umajustiça que ainda manca… que o digam os que vivem nacarne a situação contínua de injustiça: os pobres, asmulheres desprotegidas, todos aqueles que não têmdireito de ser ricos e os que não têm o Bilhete deIdentidade Vermelho. Os poucos sinais de justiça, de luz,parecem mais um dos triunfos, carta curinga, o “A” dobaralho de jogo político do que uma convicção.

Todo o tipo de exclusão, injustiça, descriminação, causasofrimento que pode se manifestar em forma defrustração, culpa e ansiedade. Este sofrimento atingepsicologicamente o excluído, o injustiçado, o sofredor.Isso pode até causar, segundo Albert Nolan, doençasmentais que, por sua vez, provocam condiçõespsicossomáticas como a paralisia e outras patologias(NOLAN: 1988, 43-44). Não serão as paralisias, doençasmentais e outras patologias consequência de sofrimento einjustiças? O desafio é aprender a conviver e a amar odiferente com tudo o que tem e é como Deus nos ama anós, uma vez que somos seres em contínua perfeição!

Torna-se necessário e urgente uma reflexão deste temanesta XVa Semana Teológica enquanto se celebra apassagem dos 35 anos de Independência nacional.Todavia, não quero aqui dizer que a nossa reflexão temde ser política. Não. Continua sendo bíblico-teológica, ouseja, uma reflexão a partir da pessoa de Jesus Cristo e doseu Evangelho.Portanto, quero felicitar os organizadores destas semanasteológicas que nos proporcionam um tempo rico dereflexão, apenas como ponto de partida e não de chegada.Aliás, é necessário colocar uma boa base para depois sefazer uma práxis firme e contínua, inspirada pela Palavrae animada pelo Espírito que inspira reconciliação comDeus, consigo mesmo, com o outro e com o cosmos.Uma reconciliação que leva à justiça e à paz.

I. Conceito de justiça1. Antigo Testamento

Em hebraico não se encontra um termo para expressar aideia que temos de justiça. Uma palavra que talvez

corresponda é sadaqah ou sedaqah, dependendo dagrafia, como aparece em Jz 5,9-11. Este conceito talvezrepresente o significado mais primitivo usado pelo povohebreu. A expressão (hw"ëhy> tAqåd> ci) sidekot Yhwh(= justiça de Javé) não está revestido de sentido jurídicoou cósmico, mas é uma expressão de fé, com o sentido deactos salvíficos de Deus. Alias, torna-se pertinente“distinguir este uso do radical hebraico sdq de um outro,decerto mais antigo em Israel: Já o cântico de Déboracanta os actos de justiça ou actos de salvação de Javé (Jz5,11; cf. Dt 33,21 também 1 Sm 12,7; Mq 6,5) ”(SCHMIDT: 2004, 318).É de chamar atenção aqui que o verbo da frase é tenah(WNt;y>).

Portanto, em relação ao conceito de justiça no cântico deDébora, importa referir que existem duas correntes queprocuram interpretar o sentido de sedaqah. Uma,segundo Schmidt, relaciona-o com a criação do mundo(sentido cósmico) e a outra aponta como tento sentido deacções salvíficas de Deus. Há como que uma necessidadede recontar a actuação de Deus na história do povo. Destaactuação, nasce a experiência de fé no Deus libertador.Por isso, o conceito de justiça assim concebido não podeser desvinculado da história salvífica narrada na bíblia.

Esta forma de a “justiça” como auxílio ou até comofidelidade repercute na tradição de Jerusalém, sobretudono Saltério (Sl 50,6: “E os céus anunciarão a sua justiça,pois Deus mesmo é o Juiz.”; Sl 143,1: Javé, ouve aminha oração! […] Responde-me por tua fidelidade e portua justiça”) e nas partes onde é expressa a esperança do

povo nos livros proféticos (cf. Is 11,4-5: “Mas julgarácom justiça os pobres, e repreenderá com equidade osmansos da terra, e ferirá a terra com a vara de sua boca, ecom o sopro dos seus lábios matará o ímpio. E a justiçaserá o cinto dos seus lombos, e a verdade, o cinto dosseus rins”). E algumas vezes a manifestação da justiça deDeus é prometida como salvação: “Faço chegar a minhajustiça […] a minha ajuda não faltará (Is 46,13 cf. 51,5s;Os 2,21s; Jr 23,6 e mais paralelos).

Portanto, podemos dizer que o texto de Jz 5,11 tem umaimportância peculiar na medida em que nos revela o maisoriginal conceito de justiça no Antigo Testamento.

1.1. Outros significados de justiça sedeqahno Antigo Testamento:

O termo foi assumindo outros significados afins.Por exemplo, segundo Mackenzie, “justiça”significou também “inocência de uma acusação,no direito ou em alguma outra situação, ouausência de qualquer acusação (Gn 20,4; 44,16;2Sm 4,11; 1Rs 2,32) ” (MACKENZIE: 1983,526).

Uma vez que a justiça tem a ver com a lei, estaleva o nome, algumas vezes, de justiça.

Sendo assim, adquiriu também facilmente osignificado de conduta segundo a lei. Em algunsprofetas encontramos a expressão “fazer justiça”ligada sobretudo ao rei que é louvado ou

desprezado segundo a forma como age em relaçãoà justiça.

Aliás, quando age segundo a justiça, leva o nomede administrador de justiça – a justiça foiencontrada em grandes reis, sobretudo em David(1 Rs 3,6) e Salomão (1Rs 10,9).

O termo sedaqah também é usado como sinónimode libertação, justificação (Is 24, 16; 45,8.25;62,1).

O próprio Deus é chamado de Justiça. Quando éassim, o termo é acompanhado com a palavra“fidelidade”. Mas a justiça de Javé “está nas suasacções salvíficas, seja na experiência histórica deIsrael, seja no indivíduo no futuro messiânico (Jz5,11; 1Sm 12,7; Sl 103,6; Is 45,24; Dn 9,16; Mq6,5)” (MACKENZIE: 1983, 527).

1.2. O profeta Isaías e a situação do seutempo

(Como era a sociedade em que o profeta vivia? Houveexagero? Embelezaram?)Visão de conjunto:Há 2 momentos:– 1o. preocupação pela questão de justiça social o que o

torna famoso;– 2o, volta-se para o mundo político.“Última palavra é a esperança de sociedade justa”.

1. Denúncias e falhas:- conhece o mundo em que vive. É de pobres

(amplo sector da população) e de ricos (classeopulenta); percebe o contraste entre esses doismundos;

- tem afirmações categóricas e mais ambiciosas.Não é de meias medidas;

- denuncia a cumplicidade descarada dos juízes;- classificou a sua sociedade como sendo cheia de

assassinos e ladrões protegidos pela autoridade;- observa que a queixa dos oprimidos não é

atendida;- o mais agravante é que a situação não é

passageira: vem de longe!2. Quem são as vítimas da opressão?

- os oprimidos (os pobres) de modo geral. Os queele chama de hamôs (1,17);

- dentre eles destaca os órfãos e as viúvas(1,17;1,23;10,2) – presas fáceis dos exploradores.Causas: guerras, epidemias, acidentes de trabalho;sofrem porque:

. 1o: a administração de justiça não faz casodeles;

. 2o: o poder judicial não se interessa por eles;

. 3o: quando há interesse é porque o poderjudicial pretende tirar-lhes suas posses;

- inocentes: todos aqueles que não são feitos justiçaem causas de tribunais. Não são necessariamentepobres;

- pobre: é cidadão livre, com plenos direitos epoucos bens, que deve trabalhar duramente paraganhar a vida, perde facilmente a independência e

necessita de especial protecção nos tribunais.Talvez se tratasse dos pequenos camponeses. Ocampesinato era problema agudo no período doprofeta Isaías;

- portanto, as vítimas de opressão segundo Isaíassão: órfãos, viúvas, camponeses, pessoasinocentes.

3. Responsáveis e opressores:- chefes políticos e militares (1,10);- poderosos(?), gente importante(?) [1,10];- oficiais reais (1,23; 3,14) que não são só

cúmplices dos ladrões, mas também eles o são.- ladrões (1,23);- rei (?), chefes (?), arrecadadores de impostos (?)

[3,12]. Em suma, todos os que ocupam postorelevante na sociedade;

- rainha-mãe (?), mulheres do harém (?), senhorasnobres (?) [3,12];

- credores, usuários (3,12);- dirigentes espirituais (3,12);- anciãos (3,14);- também se fala de outros responsáveis pela

injustiça: “os que acumulam casa e campos

(5,18-10), banqueteiam-se esplendidamente

(5,11-13), imitem sentenças injustas (5,22-23) e

legislam contra os pobres (10,1).

Resumindo: os responsáveis pela opressão são todosaqueles e aquelas que têm poder, especialmente,“autoridades civis, régias, militares e religiosas; juízes,potentados (=pessoas poderosas e influentes),latifundiários”. São esses os causadores e responsáveispelas injustiças. E hoje, quem são os causadores eresponsáveis pela opressão e injustiça?4. Raízes da injustiça:

- coração do homem: o desejo de acumular causadesgraça, faz aliança com ladrões, e leva asuborno, a redigir a leis para melhor explorar opobre, a cobiça, em suma, a corrupção dos valorese das pessoas;

- estruturas quando não funcionam bem. Mas obom funcionamento das instituições e dosresponsáveis é única solução que Isaías encontra epropõe porque resolve os problemas; de queestrutura fala Isaías? Do culto e da administraçãoda justiça. A situação fica pior quando o cultoapóia a injustiça social.

Isaías parece que manteve-se fiel à instituição. Denunciao desgoverno.

5. Finalidade da crítica social de Isaías- pretende a conversão, a mudança na forma de

sentir e de agir. Propõe um agir novo;- anunciar o julgamento punitivo de Deus. Há

ameaças contra os responsáveis da injustiça. Nãousa linguagem exortativa. É dura a linguagem:“ai”;

- unir o anúncio do castigo com a promessa desalvação; há esperança da chegada do fim das

injustiças. Deus vai intervir a favor do seu povo etrocará as autoridades; nesse processo o homemcolabora, mas a intervenção de Deus éimportante. Implicitamente, Isaías apóia amonarquia;

- deixar a palavra de esperança.

6. Base da denúncia de Isaías:a) discute-se se baseia na tradição hierosolimitana,

isto é, a influência Cananéia; os responsáveisteriam-se deixado influenciar pelas leis locais.Muitos negam essa hipótese de Niehr. Pode serque um e outro sim, mas não totalmente;

b) teria Isaías se apoiado em Amós por tê-loconhecido? Se por um lado abordam a questão deinjustiça da mesma forma, por outro, Amós nãomenciona a categoria de órfãos e viúvas; portanto,diferem na expressão e também no conteúdo.Logo, não pode ter tido fundamento exclusivo emAmós;

c) tradições legais de seu povo, se bem que ele vaimais além da lei porque a lei nem pode prevertudo;

d) influência da tradição sapiencial: uso deparábolas, de jogos de palavras, os “ais”.

Todavia, não se nega a originalidade de Isaías.

2. Novo TestamentoUsam-se, sobretudo o adjectivo (dikaios), os substantivos(dikaiosyne, dikaioma e dikaiosis) e o verbo dikaiûn. Ostermos umas vezes têm significado segundo o uso que sefaz no antigo testamento (justo = inocente em Mt

27,4.19) e outras vezes assumem um significadoespecificamente cristã, por exemplo como aquilo que éexigido – quando se fala da justiça que Jesus devecumprir em Mt 3,15.Paulo fala da nova justiça de Deus que se revela nocrescimento da fé. Sendo assim, “a nova justiça doshomens é a justiça conferida a eles pela sua vontadesalvífica. Já não é meramente rectidão moral, que foraalcançada pela observância da lei. É a libertação dopecado (Rm 5,16).” (MCKENZIE: 1983, 529). É vidasegundo o espírito (Rm 8,10). O cristão liberto do pecadose torna escravo da justiça (Rm 6,18-19). O reino deDeus é justiça, no Espírito Santo e o cristão está repletodos frutos da justiça através de Jesus Cristo para louvar eglorificar a Deus (Fl 1,11).Neste contexto, a justiça do cristão torna-se um princípiode conduta que na adopta uma nova praxis que consistena comunhão permanente com o mistério da morte eressurreição de Jesus Cristo. Só este mistério concedevida nova e de verdadeira justiça ao cristão que não sealcança através das obras da lei, mas é gratuidade deDeus.

A – ESCUTEI E VI O SOFRIMENTO DO MEUPOVO E DESCI PARA O LIBERTAR

1. A realidade do sofrimento injusto segundo aSagrada Escritura

Uma das ideias centrais na Sagrada Escritura, sobretudodo Primeiro Testamento, é o tema da justiça, nãoapresentada de forma conceitual e sistemática. Apareceamiúde como justiça distributiva, retribuidora,vindicativa, e também como justiça social que tem em

conta os direitos do homem. O assunto é tal que muitasvezes quase se torna sinónimo de misericórdia e de amor;o respeito concreto e eficaz dos direitos de todos,sobretudo dos fracos. A base torna-se a fraternidade doshomens – embora frequentemente restrita a Israel.O sofrimento injusto não passa despercebido diante deDeus (cf. Am 4, 1-2: “Ouvi esta palavra… vós, queoprimis os fracos e maltratais os pobres…”. Os profetas(os verdadeiros) tiveram sobretudo esse aspecto comorefrão nas suas pregações: denunciam a injustiça socialmuitas vezes acobertada pela religião legalista de cultoexterior.Os promotores deste tipo de sofrimento são os poderososque para se manterem no poder político e religiosoimpõem uma infinidade de obrigações e deveres aospobres que se resume nos impostos elevadíssimos.A partir de Amos (cf. Am 2, 6-8), notamos alguns doscrimes dos chefes e poderosos: Vender o justo por dinheiro – desprezo pelo

devedor Vender o pobre por um par de sandálias –

escravidão por dívidas ridículas… (usura?) Esmagar sobre o pó da terra a cabeça –

humilhação e opressão dos indefesos Desviar os pequenos do caminho certo –

desencaminhar os que anseia pela justiça Pai e filho dormem com a mesma mulher – abuso

dos fracos e falta de moralidade Roubar roupas e apresentar-se com elas diante do

altar – ausência de misericórdia no empréstimo Beber vinho confiscado aos pobres – uso indevido

de impostos e multas – corrupção

[falta reflectir sobre o sofrimento injusto causado entre osexcluídos, pobres… a partir da Bíblia]

2. O Deus Justo e libertador que escuta, vê e ageem favor do povo sofredor

A ideia de Deus que escuta o seu povo e age em seufavor perpassa as escrituras. A experiência do êxodo foiprofunda. Por isso contada de geração em geração. Afesta da Páscoa começava com a pergunta de uma criançapor que o dia era diferente de outros dias. E aí o paicomeçava a narrar a história dos antepassados colocandoênfase no acto libertador e salvífico de Deus em favor deseu povo.Jesus assume esses adjectivos de Deus quando Elemesmo diz, citando o profeta Isaías: “ o Espírito doSenhor está sobre mim porque me enviou a libertar oscativos, dar liberdade aos cativos…” (cf. Lc 4,16-20).A reflexão a respeito de Deus justo e libertador fez surgirao longo do tempo a chamada teologia de libertação quese apoia sobretudo destes pressupostos: construir umateologia não separada da raiz, do chão do povo, dasituação concreta do povo. Da vida do povo nasce ateologia.Para a teologia, a mediação das ciências sociais ehumanas em geral é necessária e urgente, claro livre detodo o dogmatismo marxista para dar lugar à criatividade.A teologia de libertação se interessa pelos factos própriose não sua interpretação e “entra na luta”, aliás, a teologiade libertação é fundamentalmente política (MONDIN:1980, 230).

Mas a pergunta que podia ser feita é: porquê libertar?Libertar de quê? De facto, quando falamos de liberdade eesta ânsia existe, é porque existe uma situação criada ouse torna consequência de uma situação. A consequêncianão é outra coisa senão o abuso de poder que gera osubdesenvolvimento, isto é, o bem-estar de unspouquíssimos e o sofrimento da maioria, cujos direitosfundamentais são violados. É o que chama de “situaçãode pecado” que é inimigo a ser combatido.O próprio Deus não fica indiferente a esta situação. Vemem auxílio do seu povo porque o seu grito e gemidochegam até Ele. “É o próprio Deus que, na plenitude dostempos, envia seu Filho para que, feito carne, libertetodos os homens de todas as escravidões a que o pecadoos mantém subjugados, a ignorância, a fome, a miséria ea opressão, numa palavra a injustiça e ódio que têmorigem no egoísmo humano”, B. Mondin citandoMedellin (MONDIN: 1980, 31). A libertação que serefere não está só na esfera espiritual, mas em todas assituações do ser humano. Tudo o que o oprime, porque“as tristezas e as angústias do homem são também astristezas e as angústias da Igreja” (G.S., 1).Não se pode fazer teologia de libertação deixando de ladoo grito do mutirão oprimido por uma situação estruturalonde uns vivem dos outros como se fossem mais humanodo que outros que eles exploram. O teólogo de libertaçãoé como Cristo que se coloca ao lado de quem é oprimido,marginalizado pelo sistema, tentando ajuda-lo a seorganizar e a encontrar modos de sair desta situação.Ajuda a que o homem e a mulher sejam respeitados emsua dignidade e não sejam descriminados. É um“processo político revolucionário” inserido no mutirão e

daí ser anúncio libertador de Cristo e do seu Amor (cf.MONDIN: 1980, 69).Este mutirão marginalizado e oprimido necessita de fazero seu êxodo. Deus está presente e caminha no meio doseu povo. Este povo não deve cruzar os braços só porqueDeus está presente. Precisa lutar confiado no poder doAmor de Deus. Aliás, o povo depois que saiu do Egiptoteve de arregaçar as mangas e lutar para conquistar aterra onde “mana leite e mel”, esta terra que Javéprometera a Abraão, a Isaac, a Jacob e aos filhos deIsrael. Não se trata, porém, de ter apenas paciência eesperar que as coisas aconteçam. Trata-se de trabalharcom veemência para fazer acontecer a justiça, areconciliação e a paz, promovendo o crescimento dapessoa como um todo.Este povo que caminha necessita de novo Moisés, novoAarão, nova Débora, nova Miriam. Precisa resgatar oprojecto do êxodo, onde todos devem viver como irmãos,partilhando o maná, a terra, evitando o acúmulo. Exigefazer o memorial do êxodo. Deste modo o povo de Deus,a Igreja, não terá a cabeça nas nuvens, com pés evitandopisar a sujeira.Para concluir, apenas citar as palavras de uns dosfundadores da teologia de libertação, Gustavo Gutiérrez,dizendo que “o ponto de partida da teologia de libertaçãoé a situação concreta, é a práxis de libertação hoje de diaactuada pelas populações da América Latina e, emespecial, pela comunidade cristã latino-americana. Aprimeira tarefa do teólogo da liberação é, portanto, a deobter um conhecimento profundo desta práxis, das suasmotivações, dos seus objectivos, obstáculos,movimentos, etc. Para fazer isso, deve-o recorrer,

naturalmente, às ciências históricas, políticas, sociais,económicas e psicológicas que são componentes de talmatéria” (MONDIN: 1980, 69).Infelizmente, tal teologia foi mal percebida por algumaspessoas influentes na hierarquia. Por conta disso, fazeruma opção por um Deus justo e libertador é escolher umcaminho de suspeita… talvez por esta e outras razões quecom dificuldade encontramos espaços de reflexão decontinuidade de teologia de libertação cujo berço foi nochão latino-americano, mas também no solo africano.Infelizmente os promotores receberam ordem de secalarem porque suspeitos de trilhar por caminho perigosoe suspeito!

Deus liberta fazendo justiça. O que ele quer não sãosacrifícios, mas misericórdia (cf. Sl 40,6; 50, 8; 51,17;54, 6; Is 1,11; Jr. 6, 20; Os 6,6; Mc 12,33).

3. A realidade do sofrimento injusto segundo oMagistério da Igreja

Hoje constata-se que o avanço tecnológico, científico,económico, etc., resulta também em crescimento depessoas desfavorecidas, avanço galopante de destruiçãodo ecossistema, crescimento do desnível entre ricos epobres, aumento de guerras, perpetuação de situações deinjustiçasA Igreja, povo de Deus, não compactua com sofrimento ecom a injustiça. Alias, o sofrimento não entra no projectode Deus. Existe sim por causa da dureza do coraçãohumano. Como mestra em humanidade, promove acimade tudo a justiça e o bem-estar da pessoa humana. Mostra

os caminhos a serem percorridos para chegar a tal justiçasegundo o amor gratuito e misericordioso de Deus.Segundo o Papa Leão XIII, “A Igreja não se contentacom o indicar caminho que leva à salvação, mas conduz aela e aplica por sua própria mão ao mal o convenienteremédio. Ela dedica-se toda a instruir e a educar oshomens segundo os seus princípios e a sua doutrina,cujas águas vivificantes tem cuidado de espalhar, tãolonge e tão largamente quanto lhe é possível, peloministério dos bispos e do clero. Depois esforça-se porpenetrar nas almas e por obter das vontades que sedeixam conduzir e governar pela regra dos preceitosdivinos” (RN, 20).A Igreja Família tem consciência de sua missão nestecontinente onde o sofrimento e a injustiça estão de mãosdadas, apesar de sinais de esperança que despontam nohorizonte da vida africana. É diaconisa de paz, justiça ereconciliação. É neste contexto que o InstrumentumLaboris da II Assembleia Especial para a África (IL) diz“a missão de servir a paz há-de consistir, para nós, emconstrui-la em cada um dos membros do Corpo de Cristo,para que todos nós nos tornemos mulheres e homensnovos, capazes de operar esta pacificação de África. Apaz, com efeito, não é antes de tudo produto dasestruturas ou de pessoas externas. Ela nasce sobretudodentro, no interior das pessoas individuais e das própriascomunidades. A conversão do coração «num coraçãonovo» e «num espírito novo» (Ez 36,26) é a fonte de umaacção transformadora eficaz. Graças a uma vida autênticade discípulo, fruto da metanóia (cf. Mc 1,15), esperamosa transformação dos comportamentos, dos hábitos e dasmentalidades” (IL, 47).

Sentindo a necessidade, a Igreja, tem, entre as maisvariadas comissões, a comissão de justiça e paz quedesempenha um papel importantíssimo, não só na África,mas no mundo inteiro. Aliás, segundo o InstrumentumLaboris da II Assembleia Especial dos Bispos para aÁfrica diz que “As Comissões Justiça e Paz foramverdadeiros instrumentos de evangelização para odespertar das consciências cristãs para a defesa dosdireitos do homem, bom governo, etc.; juntamente comoutras organizações eclesiais orientadas para o social,contribuíram para a formação cívica de cristãos e nãocristãos na promoção da justiça, da paz e dareconciliação” (IL, 19).

Na verdade, muitos problemas e conflitos sangrentosforam sanados pela intervenção da Igreja e ajudaram osdirigentes africanos e não africanos a tomaremconsciência da sua responsabilidade de promover ajustiça e paz na África e no mundo. Por isso, a Igrejachama atencao que “o egoísmo alimenta a cobiça, acorrupção e a avareza, conduz ao desvio de bens eriquezas destinados a povos inteiros. A sede de poderprovoca o desprezo por todas as regras elementares deum bom governo, tira proveito da ignorância daspopulações, manipula as diferenças políticas, étnicas,tribais e religiosas, e instala a cultura do guerreiro comoherói e da divida pelos sacrifícios passados ou erroscometidos. O que mancha a sociedade africana, éfundamentalmente o que sai do coração humano (cf. Mt15, 18-19; Mc 7, 15; ver também Gen. 4)” (IL, 11).

4. Justiça transformadoraCostuma-se dizer que não pode haver uma verdadeirareconciliação se não há justiça. Justiça no sentido dereparar os danos causados seguindo um processo próprio.Para o efeito, o causador da injustiça deve reconhecer-seculpado da injustiça cometida. Isso supõe olhar para opassado e assumi-lo como seu, reconhecer os erros demodo que não se repitam no momento presente e nofuturo.No processo de justiça transformadora procura-serestaurar não só as vítimas, mas os autores das injustiças.Olha para a vítima e para os perpetradores das injustiças.Se por um lado é assunto na pauta das igrejas, por outranota-se que se fica muito na teoria, na formulação ecolocação de boas intenções.É um facto que hoje nós a maioria das pessoas aindasofremos injustiças, descriminações, ainda aqui emAfrica, por causa da nossa cor da pele, ideologia, cultura,classe social, etc. Nós nos apresentamos frequentementecomo injustiçados, reclamando para que seja feita ajustiça transformadora. Quase ninguém escuta os maisdesfavorecidos. Nós conhecemos quem são osperpetradores dessa injustiça.Infelizmente, parece-me que o perpetrador da injustiçanão se sente culpado. Olha a situação como um pecadosocial e não individual. Por isso não assume o seupecado. Eis um dos maiores pecados de hoje: não terconsciência dos próprios pecados! Ninguém assumeprivada ou publicamente essa culpa, esse pecado.Enquanto os perpetradores não assumirem seu pecado,continuarem com sua práxis, jamais se cortará esse mal

pela raiz. Isso deveria começar nas nossas igrejas ecomunidades.Em relação ao assumir publicamente o pecado, temos oexemplo do Papa João Paulo II que faz uma confissão depecados cometidos pela Igreja como um todo. Mas issopode não resultar em nada se cada um não faz o mesmo.Quer queiramos quer não, ainda há muita resistênciaquando se fala de justiça, restauração, reparação,restituição, reconciliação, restabelecer relações maishumanas. Não adianta pedir perdão pelos erros dopassado, é necessário evitar os presentes. Acho que oponto de partida em direcção à justiça transformadora éconversão individual e colectiva, e fazer uma verdadeirareconciliação segundo o Evangelho: Se te lembrares queteu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa diante doaltar a sua oferta e vai antes reconciliar-te com ele (cf. Mt5, 24). Só depois vem para apresentar a tua oferta. Eu etu, nos lembramos disso quando vamos apresentar anossa oferta diante do altar?

“A necessidade de reconciliação em África está bem vivana vida da própria Igreja, na qual conflitos entre clero eleigos, entre membros de diferentes etnias, entre clerolocal e missionários estão longe de serem vestígios dopassado e continuam a minar a Igreja desde dentro, comorecentemente se viu na República Centro-Africana, noRuanda, no Burundi, no Malawi, por exemplo”[http://www.combonianosbne.org/node/1084, acessadono dia 3 de Junho de 2010].Portanto, há resistência que infelizmente não se encontrasó a nível social, mas também ao nível das Igrejas. Asrelações nas Igrejas ainda não estão corrigidas pela

justiça transformadora. O poder é distribuído de formainjusto, causando desigualdades. O poder mal distribuídofaz como que sejam os poucos a decidir pela maioria. Aluta por justiça e por uma Igreja que seja comunidadeinclusiva exige uma reordenação dessas relações depoder. O poder precisa de ser re-distribuídoequitativamente nas sociedades e nas Igrejas.Mas é chegada a hora e é já em que a Igreja africana devefazer uma aliança perpétua com os pobres com os quaisse identifica. Por outras palavras, esta Igreja africana nãodeve se apresentar como uma agência, como umainstituição que vem para o povo, mas como uma“comunidade que nasce, que se constrói no povo mesmo,sem deixar de lado sua cultura, sua maneira de ser, sembuscar uma imposição de uma outra linguagem, umamaneira de fazer importada” (Prefácio de Pierre-MarieBEAUDE a MUÑOZ: 1990, 8).Para terminar esta reflexão, dizer que a Igreja sempreapresentou e continua apresentar Cristo como fonte dejustiça, de paz e de reconciliação fundamentando-se naEscritura Sagrada. Não se pode pensar na concretizaçãode uma dessas realidades sem Cristo.

B – O REINO DE DEUS E A SUA JUSTIÇA:REALIDADE OU UTOPIA?[Falta esclarecer antes o conceito de utopia/ideal… edepois refazer texto: utopia que não se contrapõe à

realidade, mas a complementa… é como se fosseenergia que anima na caminhada, nas lutas….]

1. Sinais de esperança a partir do SínodoAfricano, No. 6

Apesar de muitos sinais de morte, encontramos sinais deesperança, uma luz bem forte do fundo do túnel. Semsombras de dúvidas que muita coisa se tem feito emÁfrica em favor de verdadeira justiça e paz. Os modelosde reconciliação e de perdão tradicionais também jáforam usados como formas de levar a cabo o projecto dejustiça, paz e reconciliação. Pena é que estes métodostradicionais não têm sido explorados o suficiente.

Portanto, é necessário dar graças a Deus que vaimodificando a história dos povos africanos. “A acção degraças é a primeira resposta das Igrejas particulares. Comefeito, a emancipação dos povos do jugo dos regimes deditadura anuncia uma nova era e o início, ainda quetímido, de uma cultura democrática como atestam asdiferentes eleições que tiveram lugar em todo ocontinente. O desejo da Igreja de permanecer imparcialna condução dos assuntos políticos foi reconhecido esaudado, durante o período de transição política emcertos países, através da solicitação de bispos parapresidir às Conferências nacionais soberanas e dasiniciativas tomadas pelos fiéis leigos para promover

verdadeiras instituições democráticas. Por outro lado, oexemplo de um acordo-quadro entre a Santa Sé e aRepública do Gabão sobre os princípios e certasdisposições jurídicas relativas às suas relações ecolaboração, assinada a 12 de Dezembro de 1997 eratificada a 2 de Junho de 1999, merece ser destacada”.(IL, 7).O processo de tornar realidade o Reino de Deus e a suajustiça em África, ainda continua sendo um desafio.Apesar dos sinais positivos de generosidade, partilha,busca de paz, tomada de consciência colectiva danecessidade de se trabalhar para justiça em moldesafricanos, há muito mar por navegar. No meio do deserto,há uma sarça-ardente que para se aproximar dela, cadaum tem de tirar as sandálias. Portanto, o esforço de todosé de cada um se torna necessário.A paz e a justiça tornar-se-ão utopia se não haver umaforça de vontade colectiva no sentido de procurar colocarem prática as reflexões lindas que se têm feito a respeitodo assunto. Tudo ficará letra morta se a questão emdiscussão não começar dentro da própria Igreja com osmembros que se dizem comprometidos com ela.Será simplesmente utopia se as assembleias especiaispara a África se limitarem a repetir grandes verdades daIgreja, sem pretender ser ela mesma a resolver osproblemas que lhe dizem respeito, fazendo emergir ummagistério africano.Seja como for, existem sinais bem visíveis da presençaactuante do Espírito de Deus. Muitos esforços se têmfeito em várias partes do continente no sentido deconcretizar as reflexões feitas. Todavia, é de referir queas exortações que são feitas ainda não chegaram em todas

as partes do continente por que ainda não foramsuficientemente difundidas e postas em práticas porvárias razões. Portanto, é necessário levar adiante a tarefade alguns sectores, a saber, família, dignidade da mulher,missão profética, auto-suficiência económica,comunicações e novas tecnologias de informação ecomunicação.

Notamos uma certa abertura por parte de forças políticasem assumir um compromisso de governação aceitável emprol do crescimento da pessoa humana no seu todo.“Nestes últimos anos, no plano político, despontaramsinais que fazem esperar uma maturação das consciênciascívicas: uma sociedade civil activa faz-se cada vez maisvisível na luta pelos direitos humanos; homens emulheres políticos mostram-se desejosos dorenascimento do continente em todos os aspectos, e apreocupação por uma resolução inter-africana dosconflitos, testemunhada aqui e além, atesta que certaspessoas das classes políticas africanas possuem umaconsciência aguda de que lhes incumbe educarpoliticamente os seus povos e guiar as suas nações parauma via de paz e de prosperidade” (IL, 22).

Para além disso, “no mundo dos negócios, algunsdirigentes de empresas e certas corporações de homens emulheres de negócios manifestam uma vontade firme desanear e de reorganizar a economia dos seus países: asvias de comunicação em certas regiões, até mesmo anível continental, melhoraram; instituições financeirassão criadas por Africanos, etc. Enfim, descobre-se uma

vontade de criar riquezas para reduzir a pobreza e amiséria, melhorar a saúde das populações” (IL, 24).Para concluir,dizer que o projecto de Deus não é só“utopia”, mas realidade que se vai concretizando nahistória com a colaboração de pessoas comprometidascom ele, com a justiça, com a reconciliação e com a paz.Quais os sinais concretos de reino de Deus e da suajustiça que encontramos hoje nas nossas comunidades eparóquias?

Perguntas de reflexão:1. A partir de Am 2,6-8, quais os crimes dos

poderosos e chefes de hoje e qual deve ser apráxis do/a cristã/o?

2. Não serão as paralisias, doenças mentais e outraspatologias consequências de sofrimento e deinjustiças? Comente a sua resposta.

3. Contar experiência de libertação de opressão e deinjustiças verificadas na nossa missão.

4. Quais os sinais concretos do reino de Deus e dasua justiça que encontramos hoje nas nossascomunidades e paróquias?

5. Como é feito o processo de perdão e reconciliaçãonas nossas culturas tradicionais?

6. Será que o sacramento de penitência como é feitohoje ajuda no processo de reconciliação e deperdão gerando verdadeira paz e justiça?

Bibliografia

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