tema executivo2

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A penhora do estabelecimento comercial tomado de arrendamento – em especial o eventual dever do depositário de pagar a renda do estabelecimento comercial paralisado ou suspenso 1. Delimitação do tema: A penhora do estabelecimento comercial tomado de arrendamento – em especial o eventual dever do depositário de pagar a renda do estabelecimento comercial paralisado ou suspenso Usava-se na jurisprudência e doutrina o termo “penhora do direito ao trespasse e ao arrendamento de estabelecimento comercial”. Tal termo, no entanto, não é terminológica e conceptualmente o mais correcto para transmitir a realidade complexa a que se refere, pois o que está em causa é a penhora do próprio estabelecimento comercial como unidade jurídica, que se define como conjunto de bens e serviços organizado pelo comerciante para o exercício da sua actividade ou exploração comercial, devendo-se entender que é penhorado o próprio estabelecimento comercial enquanto unidade jurídica, abrangendo também o direito ao arrendamento e trespasse quando esteja instalado em prédio arrendado 1 . Temos portanto um estabelecimento comercial que é penhorado, sendo também penhorado o direito de arrendamento do local onde o estabelecimento comercial se encontra por este fazer parte da universalidade, como acima referimos e a jurisprudência corrobora. Assim, encontramos um terceiro devedor (da prestação do gozo da coisa) em relação à 1 Acs do Supremo Tribunal de Justiça de 16/01/2001 e de 8/7/2004 2

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Page 1: Tema Executivo2

A penhora do estabelecimento comercial tomado de arrendamento – em especial o eventual dever do depositário de pagar a renda do

estabelecimento comercial paralisado ou suspenso

1. Delimitação do tema:

A penhora do estabelecimento comercial tomado de arrendamento – em especial o

eventual dever do depositário de pagar a renda do estabelecimento comercial

paralisado ou suspenso

Usava-se na jurisprudência e doutrina o termo “penhora do direito ao trespasse

e ao arrendamento de estabelecimento comercial”. Tal termo, no entanto, não é

terminológica e conceptualmente o mais correcto para transmitir a realidade complexa

a que se refere, pois o que está em causa é a penhora do próprio estabelecimento

comercial como unidade jurídica, que se define como conjunto de bens e serviços

organizado pelo comerciante para o exercício da sua actividade ou exploração

comercial, devendo-se entender que é penhorado o próprio estabelecimento comercial

enquanto unidade jurídica, abrangendo também o direito ao arrendamento e trespasse

quando esteja instalado em prédio arrendado1. Temos portanto um estabelecimento

comercial que é penhorado, sendo também penhorado o direito de arrendamento do

local onde o estabelecimento comercial se encontra por este fazer parte da

universalidade, como acima referimos e a jurisprudência corrobora. Assim,

encontramos um terceiro devedor (da prestação do gozo da coisa) em relação à

execução – o senhorio. É a relação entre exequente/executado/depositário e senhorio

que será objecto de desenvolvimento, e em especial a relação depositário-senhorio

que surge quando a penhora tem como objecto um estabelecimento comercial que

contém um direito de arrendamento (e consequente dever de pagamento de renda)

mas que se encontra paralisado ou suspenso, sendo então entregue ao depositário.

A peculiaridade da organização do tema resulta de o meu objectivo ter

começado por ser o de expor, na generalidade e de forma algo descritiva algumas das

problemáticas levantadas pela penhora de estabelecimento comercial arrendado, mas

1 Acs do Supremo Tribunal de Justiça de 16/01/2001 e de 8/7/20042

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A penhora do estabelecimento comercial tomado de arrendamento – em especial o eventual dever do depositário de pagar a renda do

estabelecimento comercial paralisado ou suspenso

durante a pesquisa de doutrina e jurisprudência ter deparado com o problema mais

específico acima referido, para o qual não encontrei solução satisfatória. Assim, para

além de alguns pontos gerais da penhora do estabelecimento comercial, acabei a

focar-me no referido ponto – o que acabou por absorver a maior parte da minha

atenção.

3

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A penhora do estabelecimento comercial tomado de arrendamento – em especial o eventual dever do depositário de pagar a renda do

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2. Alguns conceitos operativos…

2.1. Natureza Jurídica do Arrendamento

O contrato de arrendamento é uma das duas modalidades do contrato de locação.

Quanto à sua natureza, a maioria da doutrina entende o arrendamento como um

direito pessoal de gozo, embora apontando as suas particularidades, nomeadamente

as que levam o Professor Oliveira Ascensão a entender o arrendamento como um

direito real as características da inerência e da funcionalidade e, como consequências

típicas, a sequela e a preferência em perfeita identidade de funções com outros

direitos reais.

2.2. Conceito de estabelecimento comercial

São várias as definições dadas pela doutrina para tentar abarcar o conceito de

estabelecimento comercial. Segundo o Prof. Coutinho de Abreu, é “uma unidade

jurídica fundada em organização de meios que constitui um instrumento de exercício

relativamente estável e autónomo de uma actividade comercial”2. Para Menezes

Cordeiro é “um conjunto de coisas corpóreas e incorpóreas devidamente organizadas

para a prática do comércio”3. Segundo o artigo 1112º do Código Civil, o

estabelecimento compreende, como se retira interpretativamente, o conjunto “das

instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o

estabelecimento”, sendo estes outros elementos, por exemplo, as posições jurídicas

que são essenciais à caracterização do estabelecimento comercial como tal, i.e.,

aquelas que, sendo retiradas do âmbito do estabelecimento comercial como

universalidade levariam à sua descaracterização, como se pode retirar do conceito

construído doutrinariamente. Podem também as partes, através de um contrato de

2 Curso de Direito Comercial, Vol. I

3 Manual de Direito Comercial Vol.14

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cessão, transmitir os créditos e débitos cujo titular é o dono do estabelecimento, mas

estas posições jurídicas não se encontram abrangidas pela universalidade que é o

estabelecimento comercial.

Este conceito é plenamente utilizável para efeitos do art. 862º-A CPC.

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A penhora do estabelecimento comercial tomado de arrendamento – em especial o eventual dever do depositário de pagar a renda do

estabelecimento comercial paralisado ou suspenso

3. A penhora de estabelecimento comercial antes do Decreto-Lei 38/2003

Até à RPC 95/96 não se encontrava expressamente regulada na lei a penhora de

estabelecimento comercial que assim se deveria considerar compreendida na remissão

do art. 863º. Era então prática geralmente seguida, a penhora do direito de

arrendamento e trespasse (Ac. STJ 24.11.87) a pedido do exequente, que via no

trespasse uma melhor forma de obter a satisfação do seu crédito. Então a penhora

realizava-se pela notificação ao senhorio de que o direito ficava à ordem da execução,

nos termos do 856º CPC.

Na verdade, o que aconteceu com o diploma 38/2003 de 8 e Março foi

simplesmente uma especificação do que antes acontecia já sob o regime de penhora

de créditos.

6

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A penhora do estabelecimento comercial tomado de arrendamento – em especial o eventual dever do depositário de pagar a renda do

estabelecimento comercial paralisado ou suspenso

4. O art. 862.º A CPC inserido pelo Decreto-Lei 38/2003

O art. 862.º A diz-nos que o estabelecimento comercial deve ser penhorado como

uma universalidade, por meio de auto, com a sua entrega a um depositário, à

semelhança do que ocorre com as penhoras de imóveis ou móveis. Aplica-se também

o disposto para a penhora de créditos, se do estabelecimento comercial fizerem ainda

parte bens dessa natureza. E nestes inclui-se o direito ao arrendamento. Donde,

pertencendo o local onde se encontra o estabelecimento a terceiro, deve notificar-se

este de que o direito de arrendamento fica à ordem do agente de execução, segundo

as regras aplicáveis à penhora de créditos. Tal, no entanto, é criticado por alguma

doutrina, como veremos de seguida.

4.1. O regime da penhora de estabelecimento comercial – alguns pontos

relevantes

Amâncio Ferreira considera condenável a a inserção da expressão “incluindo o

direito ao arrendamento” porque defende que não compete ao legislador, mas antes à

doutrina e à jurisprudência apurar face ao direito substantivo, em caso de penhora de

créditos, quais os que reclamam aplicação do regime previsto no art. 856.º n.º 1 a 3

CPC. Em segundo lugar, Amâncio Ferreira afirma que o trespasse a ocorrer na

execução não se encontra dependente, no que toca à transmissão da posição do

arrendatário, da autorização do senhorio4 (art. 1112.º n.º 1 al. a) CC), devendo este

somente deve ser notificado como preferente5 no contexto da venda executiva face ao

disposto nos artigos: 892.º e 905.º, com referência ao art. 1112.º n.º 4 CC. Assim, este

autor afasta a aplicação do artigo 856.º n.º 1 a 3 CPC, defendendo que não deve ser

notificado o senhorio nos termos da penhora dos direitos de crédito por, em face do

4 Amancio Ferreira, p.2365 idem

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estabelecimento comercial paralisado ou suspenso

direito substantivo, ser necessária apenas a comunicação do trespasse. Veja-se que os

efeitos da simples comunicação exigida pelo 1112º nº3 e da notificação feita de acordo

com o artigo referido são muito díspares pois assim não caberá ao senhorio declarar se

concorda ou não com a existência do crédito.

O professor Lebre de Freitas coloca também críticas conceptuais à separação do

“direito ao trespasse” do todo constituído pelo direito ao estabelecimento comercial,

já que o direito ao trespasse mais não é do que a faculdade de alienar o

estabelecimento, que integra o conteúdo do direito que sobre ele incide.

Lebre de Freitas faz ainda uma clarificação terminológica e conceptual: quanto à

penhora do estabelecimento instalado em local arrendado, este tem como objecto

uma universalidade que engloba coisas corpóreas e direitos (ou coisas incorpóreas),

constando entre estes últimos o direito ao arrendamento. E não será absolutamente

rigoroso falar-se no direito ao arrendamento, esquecendo os respectivos deveres do

arrendatário, desde logo o dever de pagamento da renda – devendo falar-se da

posição contratual do arrendatário, num misto de direitos e deveres, cuja cessão, no

seu conjunto, a lei permite sem autorização do senhorio. Tal crítica é sufragada por Rui

Pinto Duarte6, que acrescenta que tal crítica se deve estender também ao facto de o

legislador mandar aplicar-se, sem mais, as regras da penhora de créditos no que toca à

posição do arrendatário face ao senhorio, relembrando que o último não é só devedor

e que a sua posição é mais complexa do que a simples obrigação de prestador do gozo

da coisa.

Remédio Marques nega que haja aqui uma penhora do direito de arrendamento,

pois o bem apreendido é de terceiro – do senhorio-, qualificando-a como uma

apreensão de acautelamento do feito útil da eventual e futura aquisição do bem, após

a conversão da penhora. Já o Prof. Teixeira de Sousa tem outra opinião: se o objecto

da penhora é uma situação jurídica activa do executado, maxime um direito subjectivo,

6 Revista Thémis, ano V, nº9 (2004) Vol II8

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já o objecto dos actos de apreensão são os bens respectivos. É o respectivo direito que

irá ser alienado a final. (exemplo: penhora de casa: direito de propriedade).

4.2. Notificação do senhorio

O senhorio, como a maior parte da doutrina defende7 8 9, e a jurisprudência

confirma10 deve ser notificado nos termos do 856 nº1 a nº3. Contra, parece-nos que

apenas de iure condendo dada a clareza do comando normativo e a sua aplicação

jurisprudencial, Amâncio Ferreira, nos termos que referimos acima.

Assim, tendo sido notificado, o senhorio terá 10 dias para declarar se ocorreu

alguma causa extintiva, modificativa ou impeditiva, v.g. se “o contrato de

arrendamento existe, se contém termos resolutivos […], se se encontra pendente

alguma acção de despejo (…)”11, contestando nos termos do 856º nº3, tornando-se o

crédito litigioso nos termos do 858º.

Pode também reconhecer que o crédito existe mas que a sua exigibilidade

encontra-se dependente de contraprestação – 859º nº1-, assim como reconhecer que

o crédito existe, expressa ou tacitamente.12

4.3. Não afectação dos direitos do senhorio

Como resulta dos artigos 819.º e 820.º do CC, da penhora resulta a ineficácia

relativa de qualquer acto de disposição, oneração ou extinção que o arrendatário

subsequentemente pratique (como o trespasse, o penhor de estabelecimento ou a

7 Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, p.2368 Rui Pinto, Manual p.1879 Lebre de Freitas / Ribeiro Mendes, Código do Processo Civil Anotado, p.48010 Ac. RL Coimbra 14-10-2008, Ac. STJ 5/12/1995, Ac. RL Lisboa 08-07-2004, entre outros11 Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, p.23612 Rui Pinto, A execução e terceiros em especial na penhora e na venda, p. 233

9

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A penhora do estabelecimento comercial tomado de arrendamento – em especial o eventual dever do depositário de pagar a renda do

estabelecimento comercial paralisado ou suspenso

denúncia do arrendamento). Já o senhorio não vê os seus direitos e deveres alterados

com a penhora, como boa jurisprudência nos diz:

“(…) A penhora do "direito ao trespasse e arrendamento" em execução

movida contra o inquilino, deixa intocada a posição do senhorio, em nada a

afectando, só sofrendo limitação os direitos do executado/inquilino que não

pode onerar ou alienar os bens que integram o estabelecimento.

Ou seja, os efeitos da penhora não "invadem" a esfera jurídica do

senhorio, nem interferem nos direitos do senhorio decorrentes da relação

locatícia, pelo que a penhora de um estabelecimento comercial, em processo de

execução, não impede o exercício do direito de resolução do contrato de

arrendamento relativo ao prédio onde está instalado, com fundamento em falta

de pagamento de rendas vencidas antes ou depois da penhora, quem quer que

esteja na administração do locado e do direito de exigir o pagamento das

rendas em dívida.”13

4.4. Exploração do estabelecimento depois da penhora

Da penhora nem sempre resulta a transferência para o tribunal da posse do

estabelecimento e dos respectivos poderes de administração, dadas as especialidades

do art. 862.º -A CPC. Antes disso, importa dizer que constitui efeito geral da penhora a

transferência para o tribunal dos poderes de gozo que integram o direito do

executado, dando-se quando a penhora incide sobre o objecto corpóreo dum direito

real; no caso do estabelecimento comercial, tomado como universalidade, é discutido

se a posse é possível, levando o art. 862.º - A CPC a concluir que sim .. Nos termos do

n.º 2 do art.º 862.º A, a gestão em regra caberá ao executado, com possível

fiscalização; o n.º 3 diz-nos que havendo fundamento para tal, pode – a requerimento

do exequente – ser nomeado administrador, com poderes de gestão ordinária; e em

13 Ac. RL Porto 18/09/200810

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caso de suspensão, actual ou futura, da actividade do estabelecimento, nomeia-se

depositário para mera administração dos bens – n.º 4.

5. O eventual dever de pagar a renda do depositário do estabelecimento

comercial paralisado ou suspenso

Tendo acima ficado claro quem deve administrar o estabelecimento comercial,

devemos descobrir agora quem é que fica encarregue de cumprir o dever de

pagamento de renda. Desde logo afiguram-se várias possibilidades:

- o executado, se tiver ficado como administrador;

- o administrador nomeado;

- o depositário, se tiver sido nomeado nos termos do 862ºnº4.

O Ac. do STJ de 30.01.97 dá-nos a resposta (ao que parece, à primeira vista) a esta

questão:

“(…)O pagamento "radica-se" sempre na pessoa do arrendatário: se for ele a pagar,

por evidencia; se for o depositário, porque administra em nome do executado ou, pelo

menos, com reflexos no património deste; (…). Não sendo as rendas solvidas por

qualquer dos sujeitos, nas condições aludidas, o senhorio tem o direito de obter a

resolução do contrato com fundamento no artigo 1093º, n. 1, alinea a), do Codigo Civil

e o pagamento das rendas em divida”

O Acórdão, sendo anterior à inserção do 862-A não refere a figura do administrador

nomeado (ou utiliza-a de forma diversa?14) Parece-nos óbvio que quer o administrador quer o

executado-arrendatário que tenham ficado encarregues de administrar o estabelecimento têm

14 O Ac. do STJ de 24-11-1987 também não parece fazer a distinção entre administrador e depositário ou fiel depositário: “Penhorado em acção executiva o "direito ao arrendamento e trespasse" de estabelecimento comercial instalado no prédio arrendado e entregue o mesmo a fiel depositario, incumbe a este o giro do estabelecimento bem como a obrigação de pagar as rendas (artigo 843 do Codigo de Processo Civil).

11

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estabelecimento comercial paralisado ou suspenso

o dever de pagar a renda, até porque estão sujeitos aos mesmos deveres do depositário ex vi

art. 862-A nº2, que resultará na aplicação, por exemplo, do artigo 843º. Sendo que o

estabelecimento continua em funcionamento, parece óbvio que o rendimento proveniente do

mesmo servirá para pagar a renda devida ao senhorio.

Mas que dizer do depositário, já que este é nomeado quando o estabelecimento esteja

suspenso ou paralisado e não haverá, nessa medida, qualquer tipo de rendimento?

Uma resposta simples a dar seria que será ele o responsável, também, pelo pagamento

das rendas devidas ao senhorio depois de efectuada a penhora (porque as anteriores à

penhora não se transmitem com o estabelecimento e são da responsabilidade única do

arrendatário, como referimos supra). Também poderíamos suportar tal solução na

jurisprudência, quer no acórdão acima referido quer no acórdão do STJ de 24-11-198715

Tal acórdão também refere que “se o depositario não administrar com a "diligencia de

um bom pai de familia" (artigo 843, n. 1, do Codigo de Processo Civil) e por tal deixar de pagar

as rendas, pode o arrendatario executado requerer a sua remoção nos termos do artigo 845 do

mesmo Codigo.16

No entanto, parece-me que, por tais acórdãos serem anteriores ao decreto-lei 38/2003

e a penhora do estabelecimento comercial ainda não estar regulada, o depositário era a figura

que, sendo associada à penhora de móveis, ficava encarregada da administração ordinária do

estabelecimento comercial em funcionamento. Não coincide, tal figura, com a do depositário

referido no artigo 862-A nº4. Assim, o depositário referido nestes acórdãos será o

administrador porque ao “fiel depositario, incumbe a este o giro do estabelecimento bem como

a obrigação de pagar as rendas”17.

Numa análise económica da situação, parece-nos óbvio que quer o administrador quer

o executado-arrendatário que continua a gerir o estabelecimento sejam responsáveis pelo

pagamento da renda, já que um estabelecimento comercial em funcionamento continua a

15 idem

16 O Ac. do STJ de 24-11-1987

17 idem12

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A penhora do estabelecimento comercial tomado de arrendamento – em especial o eventual dever do depositário de pagar a renda do

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produzir, gerando proveitos que podem beneficiar as partes na execução. No entanto a

situação já será diferente se o depositário, tendo sido nomeado para a “mera administração

dos bens nele (estabelecimento comercial) compreendidos”, tiver de suportar o pagamento de

uma renda de um estabelecimento que não produz, que está paralisado ou suspenso o seu

funcionamento.

Este depositário, e também devido à remissão dos 862ºA nº2 e ao 863º, será escolhido

nos termos do 839º nº1. Aqui, poderíamos defender que a alínea b) deste artigo seria

directamente aplicável, por estar em causa um bem arrendado, sendo que este ficaria à

guarda do próprio arrendatário original. Mas em causa está mais que um bem arrendado, está

uma universalidade, um património autónomo. Além disso, se seguíssemos sem mais esta via,

veríamos que seria o arrendatário-executado, já onerado com a penhora, ainda teria de

suportar o dever de pagamento de renda – estaria criado um desequilíbrio muito desfavorável

ao arrendatário executado. Assim, penso que a teleologia do 862ºnº4 deverá afastar a

aplicação da alínea b), que se justifica quando o arrendatário possa manter o gozo da coisa

como mero detentor, mas agora não em nome do senhorio mas em nome do Estado. Repare-

se que não há qualquer tipo de vantagem que se possa retirar de um estabelecimento

comercial penhorado…

A questão que suscito é, então, se o agente de execução, a pessoa nomeada pelo

oficial de justiça ou qualquer outro depositário que seja nomeado deverão pagar do seu bolso

a renda ao senhorio, ou qualquer outro depositário que seja nomeado, mesmo não tendo

qualquer interesse económico (!) na manutenção do estabelecimento comercial como tal?

É que a penhora do estabelecimento comercial é do interesse do exequente e, quando

muito, do executado, por ser uma melhor forma de satisfazer o crédito exequendo. Além

disso, é uma escolha do exequente, que nomeia o estabelecimento comercial à penhora no

requerimento executivo ou uma indicação do agente de execução que não vincula o

exequente.

Além disso, o agente de execução correria o risco de ter de suportar pessoalmente

uma renda que em nada aproveita para a sua esfera jurídica e parece extravasar os seus

deveres de bonus pater familiae.

13

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estabelecimento comercial paralisado ou suspenso

Posto isto só resta uma solução: o dever de pagamento da renda deverá recair sobre o

exequente ou o executado, os únicos possíveis interessados na manutenção da execução do

estabelecimento comercial como universalidade.

Mas como imputar o dever de pagamento ao exequente, ao executado ou aos dois?

Parece-me que três serão as possibilidades, ambas suportadas pela lei civil:

A) O depositário avança com o dinheiro para pagamento das rendas e, por na sua

maior parte das vezes tal figura coincidir com o agente de execução, imputa-se tal

quantia nas despesas do agente de execução, a serem pagas com a venda

executiva do estabelecimento (artigo 455º e 873ºnº3);

B) O depositário avança também com o dinheiro, mas deverá ser reembolsado das

mesmas pelo “depositante” (exequente?), numa analogia com o depositário do

contrato de depósito, nos termos do 1199º b), que teria de ser aplicado

analogicamente;

C) O exequente, o executado ou ambos assumem o pagamento da renda

directamente, em nome do depositário, por estarem interessados na manutenção

do estabelecimento comercial como tal – porque, como já vimos - e confirma a

jurisprudência-, o senhorio mantém os direitos que advém da relação locatícia18 e

portanto poderá resolver o contrato de arrendamento. Se não são os interessados

a cumprir a obrigação que só lhes aproveita, quem o fará? Aqui, um bom e velho

brocardo latino, Ubi commoda, Ibi incommoda, pode apontar-nos uma possível

solução.

Ora, destas três possíveis soluções, parece-nos que só a última se pode adequar à

realidade prática do direito executivo, mesmo sendo a única que não encontra o seu apoio na

lei.

Veja-se que na hipótese A) as custas são pagas ao agente de execução, deixando de

fora o terceiro que tenha sido nomeado pelo oficial de justiça. Funcionaria apenas nas

18 Ac. do STJ 24-11-1987 “Não sendo as rendas solvidas por qualquer dos sujeitos, nas condições aludidas, o senhorio tem o direito de obter a resolução do contrato com fundamento no artigo 1093, n. 1, alinea a) (actual 1083ºnº3 1ª parte), do Código Civil e o pagamento das rendas em divida.”

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execuções em que tivesse sido o agente de execução a ser nomeado depositário. Garantiria,

no entanto, a equidade na distribuição do sacrifício pois o acumular de custas oneraria a

própria venda do estabelecimento – o montante que dela resulta serve para amortizar ou

pagar na totalidade o crédito exequendo, diminuindo ou solvendo na totalidade a dívida do

executado.

Já a hipótese B) suporta-se em direito substantivo, mas aplica analogicamente uma

situação que não parece encontrar identidade com o problema em questão, pois esta relação

de depósito é estabelecida por contrato e é um contrato nominado do CC, estando no âmbito

da autonomia privada, enquanto o depositário do 839º CPC é apenas um mero elemento

funcional do Processo Civil, que intervém por efeito da lei na execução apenas e nos termos do

CPC.

Em ambas as soluções, no entanto, seria o agente de execução a avançar com o

dinheiro, algo que não está no âmbito funcional do agente de execução e não se adequa com

certeza à realidade do processo executivo. Basta imaginar que um agente de execução pode

ser depositário de um estabelecimento comercial em muito mais que um processo executivo e

que as rendas de vários estabelecimentos comerciais seriam, hipoteticamente, de um peso

económico difícil de comportar.

Resta-nos então a solução C), que nos parece a mais razoável em termos de

distribuição de sacrifícios. Os interessados pagariam a renda e acarretariam com as

consequências da ausência de pagamento, nomeadamente a resolução do contrato de

arrendamento e o possível desaparecimento do estabelecimento comercial por faltar um dos

seus elementos essenciais, sendo apenas possível a penhora dos restantes elementos do

estabelecimento comercial – requerida pelo exequente ou decidida oficiosamente pelo agente

de execução, nos termos do 834ºnº3 a) ou b).

A questão que aqui se poderia levantar era a existência ou não de responsabilidade

civil do depositário. Mas como já afastámos a ideia de o pagamento da renda não ser um dever

do depositário, então tal questão é facilmente respondida: não há responsabilidade civil do

depositário.

15

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A penhora do estabelecimento comercial tomado de arrendamento – em especial o eventual dever do depositário de pagar a renda do

estabelecimento comercial paralisado ou suspenso

Índice

1. Delimitação do tema……………………………………………………………………………….2

2. Alguns conceitos operativos…………………………………………………………………….4

2.1. Natureza jurídica do arrendamento……………………………….…………….4

2.2. Conceito de estabelecimento comercial……………………………….………4

3. A penhora de estabelecimento comercial antes do Decreto-Lei 38/2003…6

4. O art. 862.º A CPC inserido pelo Decreto-Lei 38/2003………………………………7

4.1. O regime da penhora de estabelecimento comercial – alguns pontos

relevantes………………………………………………………………………………………….……8

4.2. Notificação do senhorio…………………………………………………………………….9

4.3. Não afectação dos direitos do senhorio…………………………………………….10

4.4. Exploração do estabelecimento depois da penhora…………………………..10

5. O eventual dever do depositário de pagar a renda do estabelecimento

comercial paralisado ou suspenso…………………………………………………………………11

16