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TEIA DOTEIA DO SABERSABER2005
Fundação de Apoio às Ciências: Humanas, Exatas e Naturais
Produção do Conceitode Natureza
Prof. Dr. Marco A. de Almeida
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULOSECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO
DIRETORIA DE ENSINO - REGIÃO DE RIBEIRÃO PRETOAv. Nove de Julho no. 378 - Ribeirão Preto
METODOLOGIA DE ENSINO DE DISCIPLINAS DA ÁREA DE CIÊNCIAS DA NATUREZA, MATEMÁTICA E SUAS TECNOLOGIAS DO ENSINO
MÉDIO: FÍSICA, QUÍMICA E BIOLOGIA
Material Pedagógico para uso do professorEVenda Proibida Coordenação GeralProf. Dr. Mauricio dos Santos Matos(16) 3602-3670 e-mail: [email protected]
Acompanhe a programação pela internet: http://sites.ffclrp.usp.br/laife
Curso II (Continuidade)
Profa. Dra. Giulia Crippa
TEIA DO SABER 2005 Metodologia de Ensino de Disciplinas da Área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias do Ensino Médio: Física, Química e Biologia (Tuma de Continuidade)
Produção do Conceito de Natureza
Prof. Dr. Marco Antônio de Almeida e Profa Dra Giulia Crippa
APRESENTAÇÃO DOS PROFESSORES RESPONSÁVEIS PELO MÓDULO DE ENSINO
Prof(a). : apresentação do professor.
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APRESENTAÇÃO DAS ATIVIDADES A SEREM DESENVOLVIDAS
Caros Professores:
Na primeira parte, discutiremos a evolução humana, propondo uma possível uma
síntese entre os pontos de vista das ciências biológicas e das ciências humanas.
Recuperaremos aspectos relacionados a velha discussão da natureza humana que envolve a
oposição Natureza X Sociedade. Ressaltaremos também a importância da Cultura no
processo de desenvolvimento das capacidades humanas, inclusive em seus aspectos
biológicos. Na segunda parte, procuraremos mostrar como a idéia de Natureza é construída
através da História, indicando a forma como ela é percebida e operacionalizada em
diferentes contextos sociais. Além disso, procuraremos mostrar como diversas formas de
conhecimento - a Filosofia, as Artes, as Ciências - estabeleceram trocas e diálogos nesse
processo de elaboração do conceito de Natureza.
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PRIMEIRA PARTE – Natureza, Cultura & Hominização
1a Parte: Natureza, Cultura & Hominização Prof. Marco Antônio de Almeida /DFM/FFCLRP/USP
E-mail: [email protected]
O problema da ligação entre o homem e os demais animais é um tema constante nas
discussões científicas. Dois pontos de vista em geral antagônicos monopolizaram essa
discussão durante décadas. O primeiro foi o das ciências biológicas, que tendem a ver uma
continuidade entre as diversas forma de vida, considerando a evolução como um fluxo
relativamente independente, ressaltando nosso parentesco com os demais seres vivos. O
segundo ponto de vista, o das ciências sociais, embora não negue a natureza animal do
homem, tende a considerá-lo como espécime único no seu gênero, diferindo em “grau” e
“qualidade” dos demais seres vivos. Ou seja, para os cientistas sociais
“O homem é um animal que consegue fabricar ferramentas, falar e criar símbolos. Só ele ri; só ele sabe que um dia morrerá; só ele tem aversão a copular com sua mãe ou sua irmã; só ele consegue imaginar outros mundos em que habitar, chamados religiões por Santayana, ou fabricar peças de barro mentais a que Cyril Connoly chamou arte. Considera-se que o homem possui não só inteligência, como também consciência; não só tem necessidades, como também valores, não só receios, como também consciência moral; não só passado, como também história. Só ele __ concluindo à maneira de grande sumário __ possui cultura.” (GEERTZ, 1980:22)
No campo das Ciências Sociais, a Antropologia Física tentou conciliar esses dois
pontos de vista, agregando a história cultural à história física do homem. O problema que
ela buscou inicialmente abordar foi o da origem da cultura. Vamos acompanhar a exposição
que Clifford Geertz faz acerca da maneira pela qual esse debate ocorreu.
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Na segunda metade do século XIX estabeleceu-se a teoria do “ponto crítico”. O
antropólogo Alfred Kroeber resume esse ponto de vista ao dizer que a conquista da
habilidade de adquirir cultura foi uma conquista repentina, uma espécie de salto quântico na
filogenia dos primatas. Ou seja, em algum momento, de uma geração para outra, ocorreu
uma alteração orgânica prodigiosa (mas provavelmente pequena em termos genéticos e/ou
anatômicos) que tornou esses indivíduos, diferentes de seus genitores, capazes de
comunicar, aprender, ensinar, generalizar. Uma transformação quantitativa marginal gerou,
portanto, uma mudança qualitativa radical: surgia assim a cultura. Kroeber utiliza como
exemplo o processo de congelamento da água: a temperatura vai se reduzindo de grau em
grau sem que o líquido perca sua fluidez, até que, subitamente, ao atingir 0o; ele se
solidifica.
Três considerações fundamentais serviram de apoio a essa tese:
1. Abismo entre as capacidades mentais do homem e de seus parentes mais próximos, os
grandes símios.
2. A linguagem, a simbolização, a abstração, não admitem meio-termo: ou existem ou não
existem. Não existiriam religiões parciais, meias-línguas ou meias-artes.
3. A idéia de uma unidade psíquica da humanidade: não existem diferenças importantes na
natureza do processo do pensamento entre as diferentes raças humanas atuais, o que
permite supor que as capacidades culturais do homem surgiram antes da diferenciação
racial, em um ancestral comum.
A “pedra no sapato” em relação a essa teoria foram, justamente, as evidências fósseis
colhidas pela Antropologia Física. Desde a descoberta em 1891, na ilha de Java, do
Pithecanthropus erectus, acumularam-se provas que tornam cada vez mais difícil traçar
uma linha definida entre o homem e o não-homem do ponto de vista anatômico. Apesar de
algumas tênues tentativas de estabelecer um turning point, um tamanho cerebral crítico, as
descobertas paleontológicas suavizaram cada vez mais a curva de ascendência do homem.
A descoberta do Austhralopitecus, em 1924, só colocou mais lenha nessa fogueira. Esse
espécime de ancestral do homem apresentava um grande contraste entre características
morfológicas primitivas e avançadas (formação da pélvis e da perna muito semelhante a do
homem moderno e capacidade craniana pouco maior que a dos símios atuais). Apesar do
cérebro diminuto, os austhralopitecus manifestavam alguns traços da cultura: eram capazes
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de fabricar ferramentas, de caçar animais pequenos e, muito provavelmente, já haviam
estabelecido um sistema de comunicação mais avançado que o dos grandes símios atuais __
embora menos avançado que um efetivo sistema lingüístico.
Na medida em que os austhralopitecus possuíam uma forma de cultura elementar (que
alguns antropólogos denominaram de “proto-cultura”), com um cérebro cujo tamanho era
apenas um terço do homem moderno, apresentavam para os defensores da teoria do “ponto
crítico” um questionamento fundamental. O que se podia inferir das evidências é que a
expansão do córtex cerebral humano seguiu, e não precedeu, o “início” da cultura. A teoria
do ponto crítico pressupunha um ser humano mais ou menos completo, pelo menos
neurologicamente, como condição sine qua non para o desenvolvimento da cultura. Ou
seja, a predisposição biológica para a aquisição de cultura era uma questão de “ou tudo ou
nada”:
“O fato de assim não ter acontecido, segundo se julga, do desenvolvimento cultural se verificar muito antes de terminar o desenvolvimento orgânico, tem uma importância fundamental para a nossa noção de natureza do homem. Ele converte-se, agora, já não só no produtor de cultura, mas também, num sentido biológico específico do termo, no seu produto.” (GEERTZ, 1980: 28,)
O que essas evidências fósseis apontaram, além de um recuo imenso na história da
evolução do homem, foram as pressões exercidas pela cultura sobre o padrão de seleção.
Por exemplo, a dependência de ferramentas confere maior importância à destreza manual e
à previsão, favorecendo os indivíduos que possuíssem essas características em maior grau.
A caça em bando demandava habilidades comunicativas, de previsão e de liderança. As
pressões desse tipo de seleção favoreceram o desenvolvimento do cérebro anterior. Deve-se
considerar, portanto, que uma grande parte de nossa estrutura física decorre de processos
culturais.
A Era Glacial desempenhou um papel importante nesse processo, marcando um
período em que o meio ambiente cultural se sobrepôs ao meio ambiente natural de uma
forma particularmente rápida, em função das condições adversas com as quais o homem
teve que se defrontar. Surgem aí características que são consideradas marcadamente
humanas: o tabu do incesto como base da estrutura social, a capacidade de criar e utilizar
símbolos, o desenvolvimento do sistema nervoso.
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“O fato destas diferentes características da humanidade terem surgido a um mesmo tempo, numa complexa interação e não sucessivamente, como se supôs durante muito tempo, é de excepcional importância para a interpretação da mentalidade humana, uma vez que sugere que o sistema nervoso do homem não só lhe permite adquirir cultura, como também é necessário que o faça para que possa funcionar. Em lugar de considerar a cultura apenas na sua função de suprir, desenvolver e aumentar capacidades com base orgânica, geneticamente anteriores a ela, dever-se-ia considerá-la como integrante das mesmas capacidades. (GEERTZ, 1980:31)”
Desse modo, alguns tópicos relacionados à teoria do “ponto crítico” sofreram uma
reconsideração. Em primeiro lugar, estabeleceu-se uma distância maior entre o homem e os
atuais grandes símios. Estes seriam troncos bastante diferenciados de um ancestral comum,
e que teriam passado por processos diferentes de seleção natural. Em segundo lugar, fez-se
uma necessária revisão de teorias concernentes ao desenvolvimento (gradual) da
comunicação e da linguagem, estabelecendo-se a distância entre ambas __ a distância entre
o sistema de comunicação que é dança das abelhas e a linguagem humana articulada, por
exemplo. O terceiro e talvez mais importante ponto seja a revisão da idéia de “raças”, já
que não há comprovação de diferenças significativas na capacidade mental entre elas. As
raças modernas seriam vistas apenas como adaptações tardias e secundárias, posteriores aos
processos formativos básicos, relacionadas, provavelmente, a diferenças climáticas quando
do processo de expansão do homem pelo globo. Desse modo,
“O fato patente das etapas finais da evolução biológica do homem terem tido lugar depois das etapas iniciais do crescimento da cultura implica, como já foi assinalado, que a natureza humana ‘básica’, ‘pura’ ou ‘não condicionada’, no sentido da constituição inata do homem, é tão incompleta do ponto de vista funcional que se torna impraticável. As ferramentas, a caça, a organização familiar, mais a arte, a religião e uma forma primitiva de ‘ciência’ moldaram o homem somaticamente, e são, portanto, não só necessárias para a sua sobrevivência, como também para a sua realização existencial. É certo que sem homens não existiriam manifestações culturais. Mas é igualmente certo que sem manifestações culturais não existiriam homens.” (GEERTZ, 1980:34)
Conclui-se do exposto que os padrões e as referências externas produzidas pela
cultura são necessidades fundamentais para que o homem consiga manifestar sua condição
humana. Sem esses guias “exteriores” ele não pode efetivar a sua humanidade. O exemplo
de crianças criadas longe do convívio humano é exemplar nesse sentido (vide box).
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BOX: INTERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO HUMANO
Em 1920, Rev. A. L. Singh confirmou um boato que circulava entre os aldeões da Índia rural: a
existência de crianças vivendo com lobos. Colocando uma torre de observação do lado de fora
de uma grande caverna em um formigueiro abandonado, ele e alguns aldeões observaram uma
mãe e seus filhotes, dois dos quais se pareciam com homens, mas não agiam como tal. O povo
local tinha medo de abrir o lugar onde esses “fantasmas” moravam, mas Rev. Singh finalmente
encontrou trabalhadores a fim de abrir o formigueiro. A mãe atacou os trabalhadores e foi
morta, mas uma vez dentro, os trabalhadores encontraram quatro pequenas criaturas __ dois
filhotes de lobo e duas garotinhas. Uma das crianças tinha cerca de oito anos de idade, a outra
cerca de dezoito meses. Elas eram como lobos na aparência e no comportamento. Tinham
calos duros nos joelhos e nas palmas da mão, pois andavam de quatro. Mexiam suas narinas
para cheirar comida, abaixavam seus rostos para comer e beber. Comiam carne crua e caçavam
animais selvagens. Quando trazidas de volta à civilização, Kamala e Amala evitavam outras
crianças e, de fato, preferiam a companhia do cachorro e do gato. Quando dormiam,
enrolavam-se juntas no chão.
Nunca se soube como essas crianças entraram na toca do lobo, mas o que é revelador é o bom
desempenho que tiveram como lobas. Casos como esse demonstram como nossas experiências
sociais influenciam o que nos tornamos. Nós não saímos do útero completamente “humanos”.
Devemos aprender o que ser, como nos comportar e como pensar. Se for criado por um lobo,
você se tornará mais próximo de um lobo, mesmo que sua fisiologia não seja muito adequada
para isso e, no fim, você morrerá por causa disso. Criado por pais humanos, você se torna
humano __ uma direção mais adequada ao seu comportamento biológico.
Nossa composição biológica não assegura nossa “humanização”. Casos de crianças isoladas
dos homens por ocasião do nascimento claramente documentam a necessidade de aprender
como se tornar humano. Lembremos o caso de “Anna do Sótão”, uma criança bastarda cujo
avô a manteve viva no sótão, mas a privou de todo o contato humano. Quando encontrada
por assistentes sociais, Anna não podia andar ou conversar e, porque ela não reagia aos gestos
humanos, inicialmente pensaram que ela fosse surda e muda. Antes que morresse quatro anos
depois, ela tinha conseguido fazer considerável progresso no aprendizado de como
movimentar-se e comunicar-se, mas estava claro que ela jamais seria normal. Outro caso de
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criança isolada, Isabelle, demonstra que, quando o isolamento não é tão completo, deficiências
podem rapidamente ser superadas através de treinamento intenso. Como Anna, Isabelle era
bastarda, e tinha sido isolada por sua mãe que era surda-muda. Ela não tinha aprendido a falar
de forma convencional, mas, ao contrário de Anna, tinha aprendido a se comunicar;
comunicava-se com sua mãe através de uma série de sons guturais, coaxados. Mais tarde, ela
conseguiu se tornar quase normal quando lhe deram treinamento especial.
TURNER, Jonathan H. Sociologia: conceitos e aplicações. São Paulo: Makron Books, 2000, p. 76.
Como bem resume Clifford Geertz,
“O conhecimento no homem, ao contrário do que acontece com os símios, depende da existência de modelos simbólicos da realidade, objetivos e externos. Emocionalmente, a situação é a mesma. Sem o guia das imagens exteriorizadas, dos sentimentos falados no ritual, os mitos e a arte, não saberíamos, de fato, como sentir. Tal como o cérebro anterior, as idéias e emoções são artefatos culturais do homem.” (GEERTZ, 1980:35)
Nossa capacidades humanas mais básicas, como discriminar sons, utilizar e reagir a
gestos, conversar e andar são aprendidas pelo convívio humano. Nosso aparato biológico,
nossa herança genética, possibilita essa aprendizagem, muitas vezes até a direciona, mas
não é uma garantia por si só de que ela ocorra. Nossa condição humana decorre da
interação com outros seres humanos, numa ampla diversidade de contextos sociais e
culturais.
Sugestão de atividade em sala de aula:
Discussão do filme A Guerra do Fogo. Dirigido por Jean-Jacques Annaud, retrata o
cotidiano da humanidade há 80.000 anos atrás. Mostra hominídeos em diferentes estágios
de desenvolvimento evolutivo e sociocultural, mostrando especialmente a relação que o
homem estabelece com o fogo. Baseado no que se conhece cientificamente acerca da
evolução humana, o filme contou com a colaboração do escritor e lingüista Anthony
Burgess, que desenvolveu uma “proto-linguagem” especialmente para o filme, e do biólogo
Desmond Morris, que desenvolveu a linguagem corporal e gestual dos personagens.
Os alunos poderiam ser estimulados a: a-) inventariar as diferenças físicas e
culturais entre as diversas tribos retratadas no filme, correlacionando-as entre si; b-) apontar
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os diversos artefatos culturais mostrados e a maneira pela qual os homens se relacionavam
por meio deles com a natureza; c-) comentar as trocas culturais que se estabelecem no
decorrer do filme.
Outro filme que poderia ser visto e comentado é Greystoke, a lenda de Tarzan. Esta
película traz subsídios para a discussão acerca das visões românticas sobre a relação entre
homem e natureza.
Sugestão de atividade extra-aula:
Leitura do livro Por que almocei meu pai, de Roy Lewis (Companha das Letras,
2000, 155 páginas). De forma romanceada e bem humorada, o autor conta a história de
Edward, homem-macaco criativo, inquieto, preocupado com o progresso da espécie e
obcecado com a idéia de acelerar a evolução e fazer com que sua horda dê passos decisivos
na direção de se tornar a primeira tribo de homo sapiens. Apesar do tom de sátira, quase
tudo o que ocorre tem sólidos fundamentos científicos e exatas reconstruções ambientais.
Referências Bibliográficas
GEERTZ, Clifford (1980). “Transição para a Humanidade”. In: VVAA, O papel da cultura
nas Ciências Sociais. Porto Alegre: Editorial Villa Martha.
MARCONI, Marina A. & PRESOTTO, Zélia Maria N. (2001) Antropologia: uma
introdução. São Paulo: Atlas.
TURNER, Jonathan H. (2000) Sociologia: conceitos e aplicações. São Paulo: Makron
Books.
V.V.A.A./Centro Royaumont para uma Ciência do Homem (1978) A unidade do homem:
invariantes biológicos e universais culturais. São Paulo: Cultrix: EDUSP.
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SEGUNDA PARTE –
Atividade para a aula Produção do Conceito de Natureza
Profa. Giulia Crippa, DFM/FFCLRP/USP
E-mail: [email protected]
A proposta dessa atividade a ser realizada em sala de aula implica em suas
adaptações ao nível da série em que for proposta.
A idéia é introduzir o conceito de Natureza como culturalmente e historicamente
construído através de classificações de ordem diferente ao longo das várias épocas. Se o
mundo natural se torna conhecido, o faz através da linguagem que classifica seus
elementos. A modernidade científica levou à construção de classificações fundamentadas
na observação, dissecação e comparação entre espécimes animais, vegetais, minerais,
eliminando, aos poucos, aqueles conhecimentos fundamentados em narrativas e relatos não
comprovados pela experiência, principalmente de natureza mítica e mágica.
A natureza sempre foi objeto de conhecimento sujeito às construções sociais em
relação à possibilidade de se tornar objeto de discurso, portanto objeto de conhecimento.
Todas as épocas conhecem a natureza, mas a perspectiva desse conhecimento encontra
finalidades diferentes conforme as épocas e culturas. O entendimento disso pode se realizar
através das imagens que ilustraram elementos do mundo natural, nas escolhas das formas e
dos sentidos que cada representação assume.
Em 1749 as tipografias parisienses aprontam rolos e matrizes para realizar o
empreendimento de imprimir os grandes e bonitos volumes da Encyclopedie, resultado de
um longo processo de elaboração da ciência e, ao mesmo tempo, abertura de uma nova
estação cultural, o Iluminismo.
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Diderot e D’ Alembert, filósofos autores da obra, corrigem os esboços dos primeiros
verbetes impressos, no mesmo clima que acompanha a impressão do primeiro dos quarenta
e quatro volumes da Histoire Naturelle, do conde de Buffon, diretor do Jardin des Plantes.
Para completar a edição da obra, quase meio século será necessário. Em termos
cronológicos, a publicação da História Natural acompanha as transformações da Europa
entre o Antigo Regime e o apogeu de Napoleão. Com base na impostação fundamental do
sistema de Lineu, Buffon realiza uma cuidadosa catalogação do mundo natural.
O sistema de Lineu denomina, de forma binária, com duas palavras, o nome do
gênero e um adjetivo específico que distingue a espécie entre todas as outras do mesmo
gênero - analogamente à identificação por nome e sobrenome – de plantas e animais
conhecidos. As formas se reúnem em grupos cada vez mais amplos e abrangentes: raça,
espécie, gênero, família, ordem, classe, tipo (phylum) e reino. O sistema de nomenclatura
binômica permite, na medida em que se conhece a estrutura dele, o acesso a uma
quantidade notável de informações. A identificação da espécie implica não somente sua
distinção entre as outras, mas também as afinidades com aquelas que pertencem ao mesmo
gênero. Cada nível mais restrito da classificação limita progressivamente as propriedades
que deve possuir aquele ser vivo específico, enquanto os mais amplos aumentam também
as propriedades e os organismos afins. Certamente, essa classificação sofreu muitas
mudanças, na medida em que o século XIX coloca o problema da evolução, já revelando
como a grande obra renovadora de Lineu e Buffon, entre outros, reflete, na verdade, a visão
mecanicista dos séculos XVII e XVIII: as espécies eram consideradas fixas, e para os
estudiosos e eruditos, animais e vegetais são iguais ao primeiro dia em que a mão de Deus
os colocou no mundo. A proposta de uma História Natural isenta do mito revela uma
natureza ainda alheia à transformação e, todavia, é a origem do que toma as formas da
ciência moderna. Graças aos cientistas e aos letrados do século XVIII, o conhecimento
humano adquire dimensões concretas e definidas em suas fronteiras.
Todavia, esse processo, realizado através do entendimento comum de que nomear
significa conhecer (como afirma Lineu: “O fundamento da botânica é duplo: a disposição e
a denominação”), se entrelaça com visões da Natureza que, pelo próprio fato de implicar
uma língua que se pretende universal, é, por sua essência, cultural, pois a linguagem é uma
construção cultural não neutra.
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A linguagem visual, por sua vez, possui características próprias, em termos de
forma, cor, textura, relação de afastamento ou proximidade com a observação direta.
Selecionamos, aqui, um pequeno repertório de imagens, tentando mostrar como, ao longo
do tempo, a cultura da Natureza se transforma.
Ao longo do século XVII assiste-se a uma dessas grandes transformações: quando a
wunderkammer, o Gabinete de Curiosidade que recolhia as “maravilhas” naturais e
artificiais do mundo se torna Museu. Na descrição científica anterior à Enciclopédia
rancesa, o mundo natural se carrega de significados simbólicos que não definem uma
classificação unívoca: todos os elementos que compõem o mundo remetem, por analogia, a
hierarquias abertas na fronteira entre o mundo físico e o metafísico. Observe-se, por
exemplo, a figura 1:
Aqui, nessa imagem que ilustra um tratado publicado em 1619, de Robert Fludd, aparece
com clareza a relação que se estabelece entre o microcosmos anatômico do homem e a
estrutura do macrocosmos, do universo, do qual o homem é parte e, ao mesmo tempo,
espelho. Sob essa ótica, é possível entender a relação entre conhecimento científico, ditado
pela lógica, e conhecimento analógico, ditado pela simpatia entre a parte e o todo: na
medida em que existem correspondências entre os elementos singulares, que remetem a
outros, justifica-se a influência dos astros, por exemplo, nas ações humanas. Se cada parte
do corpo é o reflexo de algum elemento natural, a ação sobre o elemento externo, análogo,
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provoca efeitos no âmbito do próprio corpo. É o princípio da magia, que se realiza por
“simpatia” ou antipatia entre os elementos.
Fenômeno dessa natureza pode ser identificado, com os alunos, com os efeitos da
homeopatia, prática que se coloca, na atualidade, em disputas sobre sua cientificidade, pois
se apóia em um esquema de “simpatia” analógica entre uma “memória” diluída (e quanto
mais diluída, mais poderosa será a poção homeopática) do princípio ativo e o estado físico e
mental da pessoa.
A prática das analogias se coloca na origem da anatomia comparada, como pode ser
observado na figura 2:
Aqui, nessa pagina impressa em 1670, obra de Charles Le Brun, observa-se a tentativa de
desvelar o mistério do homem através da analogia com outras espécies animais. Trata-se de
uma prática muito antiga, presente tanto na medicina de Galeno e Orígenes como na
filosofia moral. A anatomia comparada se desenvolve rapidamente no século XVII,
seguindo o modelo de uma comparação que, mesmo eliminando aos poucos as
correspondências espirituais, ainda busca as “regras silogísticas”: pretende, de fato,
descobrir os hábitos das pessoas através da semelhança que os homens possuem com os
animais. Basicamente, os tratos de semelhança com os animais que as pessoas tenham,
revelam as mesmas inclinações.
Transfere-se uma analogia de natureza “simpática”, portanto, mágica, em um plano
de observação do mundo natural. O autor dessa estampa, Le Brun, aproveitando as
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experiências de dissecação dos animais às quais participara na Academia das Ciências,
além de oferecer um retrato constituído por ilustrações científicas, fundamentadas na
observação de dados reais, elabora uma verdadeira teoria das paixões, que expõe em duas
conferências, oferecendo bases “científicas” e experimentais. Vale lembrar que, ainda no
século XX, alguns sistemas de classificações ligados à criminalidade, como Lombroso, ou
Krafft-Ebing, utilizam comparações dessa natureza.
O conhecimento da natureza, como dissemos, atrela-se, por muitos séculos mais ao
“maravilhoso” do que ao cotidiano: o inventário das maravilhas que podiam ser
colecionadas na antiguidade e na Idade Média desemboca na modernidade com
prepotência, quando se observa a busca de uma descrição científica dos seres que povoam a
realidade distante e desconhecida feita de criaturas cujo conhecimento é resguardado pela
tradição.
É o caso dos povos descritos nos livros da História Natural de Plínio, que habitam
as terras desconhecidas: os blêmios, os ciópodes e outros monstros são pontualmente
registrados e classificados por suas características ao mesmo tempo humanas e animais.
Os Blêmios, por exemplo, pertencem ao grupo de monstros sem cabeça, enquanto
os Ciópodes são, em uma descrição do século XV, “pessoas [...] que só têm um pé; e andam
tão depressa que é de maravilhar, e esse pé é tão grande que com ele fazem sombra em todo
o corpo contra o sol, quando se deitam de costas” (Mandeville).
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Um animal controvertido, em sua classificação, é o rinoceronte. Quando Marco
Pólo, no século XIV, se depara com essas criaturas, seu sistema classificatório entra em
crise; apesar de o rinoceronte ser conhecido desde a antiguidade, é interpretado pelo
viajante como unicórnio. O primeiro autor clássico que fala desse animal é Heródoto, e
Plínio, o Velho, assim se refere ao animal:
“[...] foi mostrado também um rinoceronte, com um único corno sobre o nariz [...]. Este
animal, que é o segundo inimigo do elefante, afia seu corno sobre uma pedra e se prepara
ao combate, e na luta procura, principalmente, golpear o ventre do elefante, pois sabe que é
particularmente macio. Possui o mesmo tamanho do elefante, as patas muito mais curtas, a
cor marrom acinzentada”. (N.H. X, 29).
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Todavia, quando Marco Polo encontra, em Java, essa criatura, o identifica com um ser
destinado a ser descartado pela ciência moderna:. Marco Polo distingue o corpo, as quatro
patas e o corno e, por analogia com outros animais conhecidos, utilizando a referência que
a cultura lhe colocava a disposição, o identifica com o unicórnio. Geralmente, este é
representado como um cavalo branco, com um longo corno pontiagudo e espiraliforme na
testa. Aparece também com barbicha de cabrito, rabo de leão e patas bovinas. Mas Marco
Polo se apressa em relatar que estes unicórnios são, na verdade, bastante atípicos, pois
possuem “pelos de búfalo e pés como leonfantes”, o corno é preto e feio, a língua Espinosa
e a cabeça é parecida com a de um javali.
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Sua figura mítica remonta à antiguidade, e é conhecida praticamente no mundo
inteiro. A certeza de sua existência prolongou-se até o século XIX, tornando essa criatura
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fantástica uma das criações humanas sobre a natureza mais duradoura. As primeiras
testemunhas da existência desse animal remontam ao historiador grego Ctesia, entre o V e
VI séc. a.C., que relata, em seus escritos sobre a Índia da existência, nesse país, de um
animal selvagem, parecido com um cavalo, com um corno na testa e dotado de
propriedades terapêuticas extraordinárias. Tratava-se, provavelmente, do rinoceronte
indiano, mas logo esse relato cria raízes no imaginário coletivo, tornando-se emblema de
pureza e castidade na mitologia cristã, que torna suas feições visíveis nos bestiários,
catálogos medievais de uma história natural alegórica e espiritualizada que combina,
analogicamente, a morfologia aos elementos metafísicos, as propriedades terapêuticas para
o corpo às características de virtudes ou pecados dos animais.
O poder do unicórnio reside, para a medicina, no corno, que permite descobrir e
neutralizar venenos. É descrito como um animal bravo e rebelde, impossível de ser
capturado, a não ser com um estratagema. Conforme a tradição, de fato, somente uma
donzela pode se aproximar dele. Os caçadores, então, deixam sozinha a donzela em uma
clareira, deixando o animal, amansado, se aproximar e deitar no seu colo, adormecendo,
permitindo assim sua captura. Nesse estratagema, a “história natural” medieval enxerga
uma alusão à Paixão de Cristo, que se encarna no ventre da Virgem e se submete,
voluntariamente, a seus inimigos. A bem ver, Marco Polo relata, também, que não é
verdade que se deixa capturar por uma donzela, mas sim, o contrário.
Se o caso do unicórnio é de um animal “fantástico”, cuja existência é, todavia
testemunhada pela presença de seus cornos em inúmeras coleções de maravilhas medievais,
de interesse é também a relação que se estabelece com criaturas que povoam realmente o
mundo natural. Se observe, por exemplo, o caso do leão.
Na antiguidade, o leão era emblema de força e coragem, mas com a cristandade
torna-se um animal ambíguo: os bestiários realçam suas qualidades, que correspondem a
outras tantas simbologias.
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Em primeiro lugar, observa-se que o leão apaga, com seu rabo, suas próprias
marcas, assim como Cristo, com sua vinda humana, “apagou” seus vestígios divinos.
Quando a fera dorme, seus olhos permanecem abertos: Cristo também dormia na
cruz e no sepulcro, mas sua natureza divina vigiava. Acreditava-se, enfim, que os filhotes
viessem ao mundo mortos, e assim permanecessem ao longo de três dias, quando o pai,
assoprando em seus rostos, dava-lhes a vida, fenômeno, obviamente, interpretado como
símbolo da Ressurreição de Cristo. Ao mesmo tempo, o leão é emblema do demônio, com
base na primeira epístola de São Pedro, em que se lê: “Vosso inimigo, o demônio, como
leão que ruge anda procurando quem devorar”. Ainda, o leão acompanha alguns santos,
amansado por eles. Representa a virtude da Fortaleza, mas também o vício da Ira, compõe a
alegoria da África e do mês de Julho.
Tentamos fazer um percurso sobre a história da história natural do leão: hoje se
classifica como Pantera Leo, felino de pelo avermelhado, que vive em grupos nas savanas
africanas. É um carnívoro de grandes dimensões de corpo ágil e vigoroso, com patas
dotadas de garras, dentadura muito desenvolvida, cuja fêmea diferencia-se do macho pela
ausência de um manto mais rico em volta da cabeça e dos ombros. A simples designação de
Pantera Leo é suficiente para que o animal seja colocado em um intero sistema. Mas o leão
já teve outras “descrições”, como podemos ver pelos trechos (reduzidos) retirados da
História Natural de Plínio, que assim descreve os leões:
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“Há duas espécies de leões: um menor, pequeno, com o manto encaracolado. Este é menos
corajoso daqueles de tamanho maior, com pelo liso, que não se preocupam quando são
feridos. Os machos urinam como os cachorros, levantando a pata. Emitem um cheiro
revoltante, e o bafo não é melhor. Bebem e comem raramente, em dias alternados; quando
estão satisfeitos, se abstém da comida por três dias (nota nossa: Plínio não é cristão,
todavia a referência ao número três é absorvida pelo mundo cristão). Aquilo que
conseguem comer, devoram-no inteiro, e se o ventre não consegue reter tudo que
ingurgitam por avidez, enfiam as garras na garganta e retiram o excesso. [...] Entre as feras,
somente o leão é clemente com os súplices; poupa quem se prostra na sua frente e, quando
enfurece, ataca preferencialmente os homens do que as mulheres, e as crianças somente
quando estiver muito faminto. Na Líbia, acredita-se que entenda o sentido das orações. Eu
mesmo ouvi uma escrava [...] afirmar que em um bosque ela repeliu um ataque de muitos
leões, graças a um discurso que ousou fazer, afirmando que uma mulher, fugitiva,
enfraquecida, súplice em relação ao animal mais poderoso de todos, e que sobre todos
dominava, era uma presa indigna de sua glória. [...]. Indicador do estado de ânimo do leão é
o rabo [...]. Portanto, o rabo não se agita quando ele está tranqüilo; mexe-se um pouco
quando está feliz, coisa que é rara. Com maior freqüência o leão está com raiva, e nesse
estado o rabo bate com violência no chão e, conforme a ira cresce, o leão bate suas costas,
como para se incitar. Grande é a força que possui. De cada ferida [...] jorra um sangue
preto. Quando alimentados, esses animais são inofensivos. Sua generosidade aparece com
evidência especialmente nos perigos [...]”.
Trata-se de uma pequena amostra de natureza como observada pela antiguidade.
Ainda, no sistema cristão medieval, que utiliza Plínio como referência enciclopédica, se
atribui ao leão o significado de:
Cristo/Ressureição/Demônio/Fortaleza/Orgulho/Ira/Cólera/Coragem/Magnanimidade/Gene
rosidade/Castigo/Força/Obséquio/Razão/Espanto/Virilidade/Vingança (quando ferido),
além de ser o emblema do verão, da África, de julho e da cidade de Veneza.
Todos esses fatores constituíram, até receber uma designação e um lugar em um
sistema classificatório, o conhecimento necessário sobre o Leão.
A representação da natureza, todavia, em seu aspecto iconográfico, antecipa a
observação científica do mundo natural: de fato, desde o século XV, os pintores se
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encarregam da descrição dos objetos naturais, definindo classificações morfológicas
anteriores à construção lingüística dos sistemas de Lineu ou Buffon.
A observação dos dados reais de vegetais, animais, minerais deve ser colocada
ainda nessa lógica descritiva por analogias: o requinte figurativo, a atenção ao dado da
realidade do objeto não mais “imaginado”, mas encontrado e “anatomizado” no desenho e
na pintura compõem, até o século XVIII, um discurso voltado para a apreensão de ensinos
morais e metafísicos, mesmo quando remete à implantação da experiência científica. A
pesquisa se orienta lentamente para um interesse de tipo classificatório, é movida
principalmente pela curiosidade do que é maravilhoso, que se compõe de naturalia, objetos
encontrados, e artificialia, feitos pelos homens. Observe-se, por exemplo, a alegoria da
Europa:
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Jan Van Kessel (1629-1679), autor dessa alegoria, é pintor de gabinetes de curiosidades.
Entre suas ilustrações, encontra-se uma série de quatro representações dos continentes, em
forma alegórica, permitindo uma comparação inter-cultural, quase etnográfica. As cenas se
compõem de quatro painéis centrais, emoldurados por vistas que testemunham a cultura e a
natureza de cada espaço através de coleções de animas, insetos, plantas, flores e frutos. A
Europa é representada através de Castel Sant’Angelo, pois é o centro ideal da fé cristã,
reforçada pela presença de uma bula papal de Alexandre VIII de 1665. No primeiro plano
está a personificação da Europa, ladeada por um querubim e carregando uma cornucópia,
símbolo de abundância. Estão presentes, na frente, objetos que representam a herança dos
vícios: uma garrafa, um tabuleiro de gamão, um baralho de cartas. Ainda, há uma paleta de
pintor, uma raquete, um copo com limão, moedas. O que nos interessa enfocar aqui são as
telas que aparecem com flores, animais e insetos, mais próximas das concepções botânicas
e zoológicas empíricas, como podem ser encontradas nos trabalhos de Malpighi ou
Swammerdam: nesse sentido, ainda não estamos totalmente livres das concepções mágicas,
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como se percebe pelo quadro semi-coberto onde aparecem três criaturas com formas de
mandrágora. Um particular interessante é o homem com barba, talvez o próprio artista que
apresenta uma tela com a assinatura feita através de reproduções de vários tipos de vermes
e minhocas.
Nos gabinetes há, então, quadros, cuja função é a de substituir e representar a
realidade neles reproduzida. As Naturezas Mortas com flores oferecem, nesse sentido, uma
visão concreta das variedades, mas encerram em si os vestígios da concepção mágica em
que as imagens substituem a realidade.
O século XVIII se revela, então a fronteira mais evidente entre o pensamento
analógico, mágico, que realiza o conhecimento do mundo, de suas qualidades e habitantes,
sobre uma máquina científica, na base de uma acumulação de dados que a tradição
preserva em uma cadeia de fenômenos que sempre levam a outros, em busca de uma
explicação, e a lógica da ciência que, através de uma grade classificatória, desbasta e define
o conhecimento que se torna “essencial” do mundo natural.
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Podemos observar, nessa pintura de Joseph Wright de Derby, realizada entre 1764 e
1766, uma aula de ciência. Objeto da representação é uma máquina, inventada pelo conde
de Orrery, que mostra as órbitas dos planetas em volta do sol, compreendendo as
microórbitas das luas em volta dos planetas e os anéis de Saturno. Resultam ocultados o sol
e os mecanismos de alavancas que permitem operar a máquina. O filósofo, vestido com um
casaco vermelho, se sobressai em tamanho sobre as outras figuras, ocupadas em observar e
ouvir as explicações. A presença de uma mulher e duas crianças nos coloca em um
ambiente informal, não universitário. No fundo, aparecem livros, colocando a ação em uma
biblioteca.
Em 1632, Rembrandt colocou, no centro de sua Lição de Anatomia, um corpo
humano, uma imagem destinada a lembrar a fragilidade e caducidade da vida, ainda que em
um contexto de descoberta científica. 130 anos depois, o lugar central da tela é uma
máquina capaz não de desvelar o universo, mas de reproduzir suas leis mecânicas, enquanto
os espectadores observam fascinados os movimentos entre os feixes metálicos. O quadro
de Wright mostra, a esquerda, uma figura masculina, elegante, ocupada em fazer anotações
em uma folha, e foi identificado, graças a um outro retrato, com Pedro Perez, explorador e
cartógrafo, membro, com Wright, da Sociedade Lunar, assim chamada porque seus
membros se encontravam uma vez por mês, na segunda feira em que a lua fosse cheia, uma
escolha talvez mais poética que propriamente científica. A Sociedade era financiada por
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homens de posse interessados nas ciências, tanto engajados na pesquisa, como
simplesmente interessados nas últimas descobertas. A distinção entre os dois grupos não é
ainda definida.
Uma coisa é certa: a demanda de uma educação nas Ciências Naturais é grande,
nesse século, em que as descobertas ainda se chocam com as necessidades religiosas. As
invenções e descobertas tornam-se objeto de aplicação na nascente industria, como no caso
da máquina a vapor inventada por James Watt, outro membro da Sociedade lunar, em 1765.
Testemunha da importância crescente das máquinas é a própria enciclopédia
francesa que ilustra amplamente os inventos e suas aplicações.
O filósofo que leciona no quadro é (ou se inspira) em James Ferguson, astrônomo e
construtor de máquinas planetárias em Londres, do qual se sabe ter feito uma demonstração
em Derby em 1762. Era através de divulgadores como ele e os membros da Sociedade
Lunar, que os novos conhecimentos mecanicistas do universo encontraram um público
atento. De acordo com Ferguson, o objetivo das demonstrações era de explicar, com a ajuda
de expedientes mecânicos, aquelas leis através das quais Deus organizava e regulava os
movimentos dos astros.
Não se trata, aqui de um retrato, mas de uma “alegoria” do filósofo, que poderia
muito bem ser chamado também de Isaac Newton, filósofo que, em termos de influência,
ocupou um espaço enorme no pensamento científico do século XVIII, assim como essa
figura ocupa um volume muito amplo na tela. Consideramos, hoje, o peso das leis da
gravidade de Sir Newton: princípios básicos do mundo natural, pertencem a um espaço
mais histórico do que científico, pois novas teorias revelaram as falhas e contradições da
natureza vista como conjunto de leis mecânicas implacáveis.
A matemática parecia a solução de todos os problemas, mas a transformação do
universo em máquina que podia ser calculada representou um problema em termos do papel
de Deus no seu funcionamento. O mundo como relógio, o cosmos como máquina ou
autômato, essas noções remetem a uma imagem da Natureza de tipo científico, e, ainda
assim, culturalmente construída: uma máquina como esta, presente na pintura, não
representa somente a fascinação do progresso, mas um verdadeiro desafio teológico. As
duas crianças representadas na tela se destacam pela aparência interessada, ativa, revelando,
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nesse sentido, um outro aspecto das mudanças culturais do século XVIII, o surgimento da
concepção de infância como algo novo.
A literatura da época confirma esse aspecto; por exemplo, o filósofo John Locke
(1632-1704), convida os educadores a prestar uma atenção especial nos interesses
peculiares das crianças, e de não limitar o ensino a uma série de noções decoradas. Ao lado
dele, coloca-se também a obra de Jean-Jacques Rosseau. Estamos, aqui, perante o retrato da
educação ideal: as crianças aprendem não forçosamente, mas seguindo sua natural
inclinação ao jogo. A presença da mulher, que observa também a demonstração, revela a
participação do gênero na vida intelectual do tempo. Lembramos na França, exemplos
como a marquesa de Chatelet, amigada com Voltaire, cuja tradução de Newton para o
francês acompanhou os físicos até o começo do século XX. Foram produzidas obras de
divulgação especialmente dirigidas a um público feminino, como as Conversações
astronômicas entre um senhor e uma senhora, de John Harris, publicado em 1719, e
Ciência newtoniana para senhoras, de Francesco Algarotti (por volta de 1740). Todavia, o
conhecimento científico das mulheres era fortemente criticado, como mostarm as palavras
de Samuel Johnson: “O conhecimento de uma mulher é como aquele de um cachorrinho
que senta nas patas traseiras, levantando as dianteiras. Não é bem feito, mas o
surpreendente é que seja realizado”.
A luz não é simplesmente um artifício técnico, nessa pintura, mas sim, novamente,
um reflexo da cultura do tempo, em que ela é o símbolo da razão e do conhecimento. Como
escreveu o poeta Alexander Pope: “ A Natureza e as leis da Natureza estão escondidas na
noite. Deus disse: que seja Newton, e tudo tornou-se luz”.
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A pintura de Wright que segue, Experiência com um pássaro em uma bomba a
vácuo, de 1768, reforça esta nova visão da natureza.
As narrativas visuais revelam, constantemente, a construção da Natureza como
resultado de perspectivas culturais. Através do jogo iconográfico, pode-se articular a
construção científica dos sistemas classificatórios, a validade da noção moderna de ciência,
a leitura mecanicista do universo. A proposta estabelece uma aproximação com os alunos:
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na medida em que as categorias conceituais se articulam em uma linguagem acessível. De
fato, remete a um repertório visual que se articula entre a ciência e sua representação, e,
principalmente, entre o conhecimento sobre o mundo natural e suas representações.
BIBLIOGRAFIAS
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