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20 GUIA AG DO CRIADOR Tecnologia Da quarta Revolução Industrial para a onda 6.0 Júlio Barcellos* e Tamara Esteves de Oliveira** Nova década requer pessoas e sistemas de produção especializados, mas versáteis e preparados para aproveitar novas oportunidades pecuária brasileira, deitada em ber- ço esplêndido, puxada pelos ventos favoráveis da demanda, prepara-se para a aurora do amanhecer de 2020, logo ali, em uma fração temporal e cronológica quase imperceptível. Novos desafios, no- vas conquistas para a cadeia produtiva da carne bovina, velhos problemas, muitos aprendizados nas últimas décadas e pers- pectivas favoráveis para o amanhã. Nesse contexto, a quarta Revolução Industrial, proposta pelo criador do Fórum Econômi- co Mundial, Klaus Schwab, contempla a fusão de tecnologias e a interação entre os domínios digitais, físicos e biológicos. Ela é a mais complexa das ondas transformado- ras que atingiu a sociedade, pois avança em uma velocidade inimaginável, com ampli- tude mundial e efeitos profundos. Obviamente, a pecuária de corte, como atividade econômica e de grandes conexões com as pessoas, não esteve isolada dessa revolução e até foi reimaginada como Pe- cuária 4.0. A partir do uso da inteligência artificial, da internet das coisas, da robóti- ca, da biotecnologia e da nanotecnologia, o dentro da porteira, com a criação do gado, usufrui, ainda que modestamente, dessa onda. Vale dizer que, aqui, há um grande paradoxo: o mesmo pecuarista que usa um sistema de rastreamento por satélite do re- banho ainda não tem certeza do estoque de gado de sua fazenda. Portanto, aqui pre- tendemos transitar por esses dois mundos: o dentro da porteira (visão do pecuarista) com o depois da porteira (as influências ex- ternas da sociedade). Neste novo mercado, o protagonista é o pecuarista que orienta sua produção para grupos de consumidores e integra-se de maneira vertical com frigoríficos e varejo. Nesse último, ressurge o velho açougue, agora denominado de boutique de carnes ou beef stores. Nele, não há mais o gato sobre o balcão, mas produtos dignos da Revolução Industrial 4.0 – sal gourmet, uti- lidades para o churrasco, carvão especial, madeiras aromatizantes, azeites e vinhos finos, novos cortes de carnes, além de recei- tas do chef – não mais do açougueiro. En- fim, produtos e serviços associados à carne Foto: Nelore Nova Aliança A 19tecnologia.indd 20 16/12/2019 15:43:37

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20 2020GUIA AG DO CRIADOR

Tecnologia

Da quarta Revolução Industrial para a onda 6.0

Júlio Barcellos* e Tamara Esteves de Oliveira**

Nova década requer pessoas e sistemas de produção especializados, mas versáteis e preparados para aproveitar novas oportunidades

pecuária brasileira, deitada em ber-ço esplêndido, puxada pelos ventos favoráveis da demanda, prepara-se

para a aurora do amanhecer de 2020, logo ali, em uma fração temporal e cronológica quase imperceptível. Novos desafios, no-vas conquistas para a cadeia produtiva da carne bovina, velhos problemas, muitos aprendizados nas últimas décadas e pers-pectivas favoráveis para o amanhã. Nesse contexto, a quarta Revolução Industrial, proposta pelo criador do Fórum Econômi-co Mundial, Klaus Schwab, contempla a fusão de tecnologias e a interação entre os domínios digitais, físicos e biológicos. Ela é a mais complexa das ondas transformado-ras que atingiu a sociedade, pois avança em

uma velocidade inimaginável, com ampli-tude mundial e efeitos profundos.

Obviamente, a pecuária de corte, como atividade econômica e de grandes conexões com as pessoas, não esteve isolada dessa revolução e até foi reimaginada como Pe-cuária 4.0. A partir do uso da inteligência artificial, da internet das coisas, da robóti-ca, da biotecnologia e da nanotecnologia, o dentro da porteira, com a criação do gado, usufrui, ainda que modestamente, dessa onda. Vale dizer que, aqui, há um grande paradoxo: o mesmo pecuarista que usa um sistema de rastreamento por satélite do re-banho ainda não tem certeza do estoque de gado de sua fazenda. Portanto, aqui pre-tendemos transitar por esses dois mundos:

o dentro da porteira (visão do pecuarista) com o depois da porteira (as influências ex-ternas da sociedade).

Neste novo mercado, o protagonista é o pecuarista que orienta sua produção para grupos de consumidores e integra-se de maneira vertical com frigoríficos e varejo. Nesse último, ressurge o velho açougue, agora denominado de boutique de carnes ou beef stores. Nele, não há mais o gato sobre o balcão, mas produtos dignos da Revolução Industrial 4.0 – sal gourmet, uti-lidades para o churrasco, carvão especial, madeiras aromatizantes, azeites e vinhos finos, novos cortes de carnes, além de recei-tas do chef – não mais do açougueiro. En-fim, produtos e serviços associados à carne

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que permitem, por meio do QR Code, em tempo real, conhecer o nome da fazenda, a idade do animal e o seu sistema de criação, além da certificação por uma terceira parte.

Da Pecuária 4.0 para a 6.0O atendimento da produção em um con-

ceito que está além da cadeia de suprimen-tos, mas subordinado à força puxadora da demanda (Demand Chain), pressupõe que, dentro da porteira, o pecuarista precisará atender ao que lhe pedem, mas de forma que a atividade lhe aproprie o lucro mínimo à sua sustentação e ao crescimento. A isso, cada vez mais forte, somam-se as imposições es-tabelecidas pelos marcos regulatórios vigen-tes no que diz respeito ao uso dos recursos ambientais e às relações de trabalho. Assim, as preocupações são mais amplas e interli-gadas, pois o gestor, agora, precisa cuidar da produtividade, do meio ambiente, dos custos de produção, dos recursos humanos e, ainda, ter os olhos voltados para o além da porteira – os stakeholders (aqueles que palpitam de longe, mas que influenciam a demanda).

Na primeira metade da última déca-da, houve uma incorporação muito in-tensa de tecnologia aplicada à pecuária

de corte, a maioria ligada aos insumos, pois as relações custo-benefício eram muito favoráveis. Estratégias tecnoló-gicas ligadas ao controle da reprodução e da alimentação animal foram consoli-dadas. Nunca o Brasil inseminou tanto seu rebanho, sendo referência interna-cional no tema.

A suplementação a pasto, o semiconfi-namento e o confinamento cresceram e re-percutiram na redução de idade ao primeiro acasalamento e ao abate. A avaliação gené-tica de touros para as características econô-micas e de qualidade de carne também se estabeleceram nos programas de seleção da maioria das raças bovinas. Aplicativos para smartphone, videoaulas, centenas de con-sultores e técnicos de campo propagaram, nos quatro cantos do País, conceitos e práti-cas revolucionárias na pecuária. Entretanto, com tudo isso, os resultados econômicos para o pecuarista foram muito modestos – inclusive, para muitos, prejuízos na certa. Então talvez não seja apropriado chamar de Pecuária 4.0 uma atividade que ainda tem baixa produtividade e mínimas margens econômicas.

Na visão de um grupo de consultores,

o caminho é o da gestão ou da cogestão, palavras que, nos anos 1970, chamávamos de organização da produção. Estamos ape-nas cinco décadas atrasados, pois, se nesta virada do ano, olhando para os próximos dez anos, o pecuarista insistir que apenas a gestão e o estabelecimento de controles dos processos produtivos são suficientes, pouco se beneficiará dessa nova fase que se aproxima.

Portanto, cabe fazer um atalho e deno-minar, pela primeira vez, uma sexta revo-lução, sem rito de passagem ou transição,

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saindo do movimento 4.0 para o mundo real, que vamos chamar de 6.0, com foco na integração entre os mundos digital e físi-co. A partir da premissa de que os principais indicadores físicos da produção na bovino-cultura de corte são ganho de peso diário e número de animais/hectare (lotação); e os econômicos, custo e margem bruta/kg produzidos, têm-se que buscar o equilíbrio entre esses elementos da complexa equação para apropriar-se do favorecimento do mer-cado. Vale dizer que, embora o produtor não tenha força no mercado, a entrega do bezerro, do boi gordo ou de qualquer ou-tra categoria, sob uma demanda específica, sempre lhe confere certo poder sobre a sua precificação.

Nos processos produtivos, a organi-zação da produção, passará, inicialmente, pela definição dos tipos de sistemas mais ajustados às características regionais ou até locais. A cria, a recria, a engorda, a recria-engorda e o ciclo completo começam, no-vamente, um movimento dos anos 1980, a especialização. Contudo, em uma visão de futuro, com mudanças muito rápidas nos negócios, novas exigências do mercado – e até mesmo legais, pressupõem sistemas no estilo “flex”, especializados, mas versáteis e preparados para aproveitar oportunidades que surgem. O pecuarista deve estar aten-to às demandas momentâneas sobre um “tipo” de gado e, mesmo que não seja o seu foco, vendê-lo sob condições favoráveis de preços.

Um produtor especializado na engorda pode vender animais para reposição, ou ex-portá-los em pé. Assim, o pecuarista deve sair da armadilha de somente vender para pagar

os gastos. Deve também vender por excesso de produção ou

aproveitar oportunidades. Atualmente, 90% dos pe-cuaristas vendem gado porque precisam do di-nheiro; 7%, para deso-cupar o pasto às novas

categorias que entram; e apenas 3%, por oportuni-dade. Dessa forma, ele está

sempre subordinado

ao mercado e às suas flutuações estacionais de preço. Organizar a produção e associar a comercialização ao fluxo de caixa é a ferra-menta mais óbvia e passa, obrigatoriamente, pelo uso de tecnologia.

No que diz respeito à produção, o en-tendimento de um fluxograma com as principais etapas da criação por todos os processos associados, seus procedimentos básicos, como o acasalamento, o desmame, a recria, o processo de engorda, marcados por indicadores de processos e de resul-tados, constituem a base física gerencial. A partir disso, o pecuarista está preparado para escolher o conjunto de tecnologias para cada processo produtivo, pois, para cada um, existem várias opções de tecno-logias. Por exemplo, para a engorda, temos suplementação a pasto, confinamento com alto grão ou com dieta total, engorda exclu-siva a pasto, uso de feno, etc. Cabe ao pe-cuarista, baseado no custo, nos benefícios, na operacionalidade, nos riscos e na flexi-bilidade de cada técnica fazer sua escolha. Ele não pode ficar refém de “modinhas” tecnológicas como se apenas elas fossem aplicáveis à sua realidade.

A próxima década será a da Pecuária 6.0, aquela que incorpora todos os princípios téc-nicos da 4.0 – aplicativos para avaliar a condi-ção corporal do gado, sensores para detectar a variação da temperatura corporal dos animais e leitura por sobrevoo de drones. Integra, ain-da, comedouros destinados a suplementar os animais a campo sem fornecimento diário (quantidade de suplemento liberado de for-ma individual), cercas virtuais para subdivi-dir áreas de cultivos agrícolas em pequenas parcelas para integração com a pecuária, diagnósticos de doenças por fotos ou vídeos encaminhados a clínicas virtuais. Cabe falar, ainda, das rações compostas por um conjun-to de aditivos e novos nutrientes destinados a funções específicas, balanças integradas com sistemas de gestão e controle da fazenda, e também com o frigorífico de destino do gado. Equipamentos que capturam o bezerro no pasto sem o uso do cavalo e do laço.

Neste mundo, a identidade telúrica, atávica, a vinculação do homem com a ter-ra, com o animal, a sua sensibilidade, seu

empirismo geracional e sua capacidade de observar a natureza desapareceu? Na visão da Pecuária 4.0, sim. Na 6.0, não. E é isso que proponho para reflexão do pecuarista e das modinhas de plantão.

Nesta onda de 2020-2030, o papel pre-ponderante e diferencial é a inclusão do ho-mem, dos recursos humanos, do indivíduo como agente ativo do processo. Por mais que queiramos, atender ao parto de uma vaca e curar o umbigo do bezerro, não têm Pecuária 4.0 feita somente pelo homem e pelo seu conhecimento tácito. Então a dife-rença é que a modernidade complementa a pecuária, e não a substitui.

A competitividade estabelecida pela maior produtividade como fator indutor do menor custo/quilo produzido, utilizan-do economia de escala e maior eficiência – fazer mais com menos – será a cereja da década. Denominamos isso de eficiência tecnológica – quanto obtemos de uma téc-nica quando a utilizamos na fazenda. Se a suplementação a pasto na recria tem o po-tencial para o aumento de 1,0 kg/cabeça/dia e alcançamos isso, a ferramenta teve 100% de eficiência tecnológica. Por outro lado, se atingimos apenas 0,500 kg, o custo foi si-milar à situação anterior, mas o resultado é de apenas 50% do esperado. O que determi-nou essa diferença? Na Pecuária 4.0, talvez tenha sido a quebra de um equipamento ou o sensor da distribuição do suplemento. Na 6.0, está e estará associada ao homem que executa isso e a tudo que diz respeito a seu entorno, suas habilidades, sua capacidade de observação, sua motivação, sua remu-neração e sua valorização como indivíduo ativo no processo.

Portanto, a próxima década será cada vez mais dependente do ser humano, e o famoso gap de pessoas para atuarem na pecuária, dentro da porteira, precisará ser superado, pois não haverá equipamento e internet das coisas, impressora 3D ou veículos monitorados que substituam o homem. Preparar pessoas, capacitar as competências necessárias à nova realidade, torná-las mais participativas, ensinar fazen-do, premiá-las por produtividade, inseri-las no conceito do produto final ao consumidor serão os grandes desafios para que o pecua-rista aproveite e consolide tudo o que os bons preços lhe proporcionarão.

*Professor titular da Faculdade de Agronomia – NESPro/UFRGS (foto ao lado)

[email protected]**PhD em Agronegócios, pesquisadora

em Cadeias Produtivas e Sistemas de Produção Animal – NESPro/UFRGS

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