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  • FALL 1973 91

    Teatro no Brasil: Como transmitir sinais de dentro das chamas

    FERNANDO PEIXOTO

    No suficiente que nossos espectadores ouam a narrativa de libertao de Prometeu; preciso qus eles se exercitem no prazer de libert-lo.

    (Bertolt Brecht)

    O teatro no Brasil, hoje, no est morto por milagre. Todo o processo cul-tural nacional est interrompido. As perspectivas so difceis, os horizontes quase fechados. Existe em todo o pas uma indisfarvel crise de pensamento e ao. Intelectuais e artistas esto paralizados. Atores, encenadores, cengrafos, dramaturgos, alguns produtores independentesso todos vtimas queimando numa imensa fogueira. So poucos os que ainda conseguem, mantendo lucidez e coragem, transmitir sinais de dentro das chamas. Muitos intelectualmente morrem sem conscincia. Para outros, a conscincia a causa mortis. E o que acontece com o teatro, acontece tambm com o cinema, com a literatura, com a msica, com as artes plsticas, etc. O impasse do teatro, acentuado partir da crise poltica de dezembro de 1968, no somente o impasse de uma dramaturgia castrada e tornada passiva. igualmente o impasse do espetculo, transformado em mquina de produo de risos e emoes fceis. Existe, verdade, uma censura rgida, que no obedece nem a critrios definidos, contraditria, exercida segundo a arbitrariedade de cada censor. Textos so proibidos, outros so cor-tados. Espetculos morrem antes de nascer. Liberdade de expresso existe apenas para os que aceitem passivamente o status e seus dogmas intocveis, valores ticos e scio-polticos que condicionam a manuteno do colonialismo e o capi-talismo, em ntido desenvolvimento. Mas existe, sobretudo, uma censura eco-nmica, consequncia da primeira, claro, que impe um impasse quase in-vencvel; quem no se submete no encontra recursos financeiros para sobreviver. Assim, os produtores mais ousados so vencidos pele medo. Os dramaturgos mais

  • 92 LATIN AMERICAN THEATRE REVIEW lcidos so sero encenados se encontrarem frmulas conciliatrias. Os encena-dores dizem tudo pela metade, acovardados ou submetidos s regras dos em-presrios. So poucos os que ainda resistem, os que ainda procuram encontrar, e elas existem, solues para enfrentar a verdade e trazer ao palco os problemas efetivos da sociedade brasileira de hoje, fornecendo dados ou incentivos sua transformao. O que resta, sobretudo, o silncio.

    O teatro que vem sendo feito no Brasil no tem sentido preciso, no se define diante da realidade do pas. A comunicao que existe mnima. O pblico limitado por mil razes. Uma das mais fortes, certamente, a de que o teatro no constitui estmulo nem no plano intelectual ou poltico-social nem no plano do divertimento. As poucas tentativas srias so ainda superficiais. Em essncia permanece um teatro alienado e, mesmo quando se prope ao contrrio, alienante. A esperana que um novo saia das cinzas. Um teatro que mergulhe com firmeza e deciso na realidade do pas e dela consiga extrair, vencendo a censura, suas frmulas, sua linguagem, suas proposies. O pblico no ficar indiferente, por mais entorpecido que esteja, diante de uma mensagem artstico-social reveladora, objetiva, estimulante. Sem isso o teatro agoniza.

    O teatro brasileiro ainda no existe em termos de instituio. Neste sentido, algumas tentativas isoladas foram realizadas, em pocas diferentes, com pro-psitos ideolgicos diversos, mas, na prtica, nada ou quase nada chegou a ser institucionalizado. Quase tudo est para ser feito. E quase tudo cada vez mais difcil de fazer. Neste impasse reside, entretanto, um dado positivo, se conseguir ser apreendido e utilizado: h um campo aberto para a pesquisa, livre dos entraves que uma institucionalizao geralmente coloca. Todas as contribuies so vlidas, so etapas na configurao de um resultado cultural que ainda no pode ser previsto (sabe-se mais o que no deve ser do que o que deve ser), resultado que vai depender da penetrao e da coragem do prprio trabalho que for sendo desenvolvido na prtica. O perigo maior, desenvolvido nos ltimos dois anos, mais ou menos, ronda o futuro de todo este movimento: nada foi institucionalizado, com razes, at o momento, mas agora tentativas imensas esto sendo feitas no sentido de perpetuar o que existe de pior. Um teatro fundamentado na mentira e na mistificao adquire prestgio. contra isso que se devem voltar os que esto empenhados em construir um teatro crtico par-ticipante, capaz de analisar a verdade de nosso circunstancial momento histrico, capaz de desvendar as contradies de momento, de trazer ao palco os processos sociais atuais revelando ao mesmo tempo suas causas e consequncias. Mais do que nunca o comportamento dos homens entre si, movidos pelo tipo de relaes sociais vigentes, precisa ser estudado de maneira cientfica.

    Uma fbrica de iluses est montada. A mistificao palavra de ordem. A verdade concreta. Mas para garantir uma posio no mercado, o caminho mais seguro abraar a mentira. A prostituio artstica uma realidade pal-pvel. Pouco a pouco o teatro comercial, digestivo, desvinculado das exigncias scio-polticas do pas, isento de qualquer compromisso reconhecvel com a sociedade brasileira de hoje, pouco a pouco este teatro medocre e burgus, superado como forma e ideia, se institucionaliza. Amparado, inclusive, em sub-venes, mnimas mas suficientes para a produo regular de um teatro morto

  • FALL 1973 93 com aparncia de vivo. A infra-estrutura do teatro brasileiro sempre foi absurda e insustentvel. Hoje tende a melhorar, em certo nvel, mas orientada para caminhos errados. Seus reflexos na super-estrutura ideolgica e cultural so ntidos. E certo tipo de pblico, que havia abandonado as salas de espetculos assustado, h alguns anos atrs por espetculos que entusistica e agressivamente colocavam uma viso nova em cena, redescobre agora o teatro. Redescobre, justamente, o teatro do passado, fssil que volta tona. Ou, na melhor das hipteses, aceita, com um sorriso complacente, mas tranquilo, o protesto intil e permissvel de certas experincias jovens aparentemente rebeldes, mas, no fundo, enquadradas nos valores vigentes. A classe mdia e a pequena burguesia dominam as salas e, consequentemente, um teatro de nvel ideolgico pequeno-burgus que toma conta do pas. Este pblico indiscutivelmente aumenta e prestigia um tipo de espetculo isento de condies culturais mnimas, alimento espiritual e inofensivo para sua alienao como classe. Tambm os jovens, entorpecidos por uma intensa campanha publicitria que acentua uma euforia nacional ilusria, descobrem, fascinados, um mundo de sonho e fantasia. Textos e espetculos que aprofundam problemas, e eles certamente existem, mesmo dentro dos valores burgueses vigentes, se limitam a um mergulho na psicologia do indivduo isolado do contexto social, apelando s vezes para uma viso mstica do homen e, no melhor dos casos, para uma viso grotesca e absurda, o que ao menos ainda possui uma conotao crtica mais reconhecvel, mesmo quando inconsciente. claro que neste tipo de teatro o homem est no centro do universo como ser absoluto, eterno, imutvel, examinado como indivduo, cercado por problemas referidos como no sujeitos transformao, inerentes a uma condio humana idealista, no sujeita s contradies provocadas pelas relaes de produo.

    Mas reina, claro, a calma e a tranquilidade em quase toda a classe teatral. Paz e amor escondem uma verdade de guerra e dio. Mas as conscincias esto quase todas tranquilas. A desculpa de cada um estar fazendo o "nico trabalho possvel" dentro das circunstncias propostas pelo status: manter o teatro em funcionamento, agradar ao pblico que procura a diverso, satisfazer suas exigncias mais mesquinhas. Um possvel progresso de pensamento assim paradoxalmente castrado na fonte. Mas h emprego para atores, atrizes, en-cenadores, tcnicos, etc. O nmero de espetculos encenados este ano em So Paulo impressionante. Apenas dois ou trs, no mais que isso, mostravam colocaes vinculadas ao momento nacional. A verdade que palcos tradicionais e espaos cnicos inovadores esto unidos, com excees raras, que confirmam o panorama geral, num mesmo processo: envolver o espectador num mundo irreal, enganador, mas dinmico, cheio de som e fria, cores e bandeiras. Tcnica e dinheiro esto nas mos dos que regem uma grandiosa festa de mentiras. O povo est ausente da plateia, como sempre esteve. Mas agora est tambm ausente dos palcos. A dramaturgia se volta para seus novos e vidos clientes. A verdade concreta, mas no encarada por quase ningum. A classe teatral, salvo excees raras, est entregue. Muitos ao desespero provocado pela con-scincia de beco aparentemente sem sada. Outros fogem para o misticismo. Outros mergulham no irracionalismo desenfreado, no pessimismo absoluto.

  • 94 LATIN AMERICAN THEATRE REVIEW Muitos aceitaram a sentena de morte contra eles pronunciada ou ameaada e desistiram de tudo. Muitos estio perplexos e sem perspectivas. A maioria mergulha no oportunismo fcil e compensador, abdica propsitos anteriores, que certamente no eram verdadeiros, assumindo agora, abertamente, uma postura que os desmascara definitivamente, visando, sem a mscara de antes, os mesmos propsitos, at ento inconfessdos: lucro, posio no mercado e na sociedade, segurana e acomodao. Coerentes com os valores vigentes, triunfam no mercado como comerciantes de entorpecentes. So poucos os que continuam com coragem, e certamente tambm com angstia e dvidas, a buscar vencer as dificuldades de dizer a verdade.

    Apesar de tudo, em muitos pontos do pas, geralmente fora das instituies profissionais, demasiado corrompidas e com mnimas possibilidades de um trabalho cultural mais slido e regular, h muita gente que continua buscando a sada, experimentando nova linguagem, novas frmulas de contato e dilogo com o pblico. Os eventuais resultados so lentos mas valiosos. Em alguns bairros, em algumas cidades distantes das capitais, pequenos grupos trabalham mais junto ao povo. Mas uma atividade obviamente marginalizada, dispersa e dispersiva, sem possibilidade de desenvolvimento num futuro mais prximo, sem condies para atingir nvel mais aprofundado. O teatro feito por estudantes praticamente desapareceu. Ou perdeu o sentido progressista de antes. Os grupos mais importantes foram dissolvidos. Os que restam esto voltados para pesquisas formais, quase abstratas, fascinados pelas perspectivas discutveis da criao coletiva, orientada sem fundamento ideolgico concreto, afastados de uma pre-ocupao social mais consequente, mergulhados numa contestao do prprio teatro, o que poderia ser uma atitude saudvel se partisse de um equacionamento crtico real e objetivo, o que infelizmente no chega a acontecer. Enfim, o teatro que os estudantes propem no momento o reflexo ntido da alienao e super-ficialidades que finalmente tomou conta de grande parte do movimento estu-dantil brasileiro. De qualquer forma, provavelmente fora dos esquemas pro-fissionais regulares que muita coisa poder ser realizada na tentativa de colocar dramaturgia e espetculo mais uma vez a servio da anlise cientfica. Muitos j comeam a perceber que a descentralizao no apenas uma necessidade de ampliao de mercado. tambm uma esperana de pensamento.

    Em termos profissionais, o centro de produo continua a ser a cidade de So Paulo. As verbas so maiores, h uma concentrao maior de produtores. Mas os ltimos anos foram trgicos: as duas companhias profissionais mais ex-pressivas do pas, depois de graves e sintomticas crises internas, provocadas em ltima anlise pela necessidade de se redefinirem diante do momento politico-econmico atual, acabaram morrendo. Neste sentido, o Teatro de Arena ainda conseguiu viajar por diferentes pases (inclusive atravessando todo o territrio norte-americano de costa a costa com dois espetculos de importncia), per-correndo a Amrica Latina, acabando definitivamente no momento em que seu diretor, Augusto Boal, deixou o pas por falta de condies de continuar seu trabalho no Brasil. O Teatro Oficina ainda conseguiu realizar uma viagem de experincia pelo norte do pas, trazendo na volta um espetculo polemico, ideologicamente incerto e confuso, prejudicado por um irracionalismo anrquico

  • FALL 1973 95 mas vlido pela energia e agressividade, pela opo decidida de um teatro (chamado "te-ato") quase auto-destruidor; mas a grupo optou em seguida por um marginalismo cultural (a princpio por recusar-se, com razo, a transformar-se numa instituio cultural), depois de abraar, ou tentar, a contestao da prpria cultura, no momento em que esta tinha que ser revitalizada e transformada em arma valiosa na conscientizao do pas. Mas resta a esperana do Oficina renascer das cinzas. A atividade de contra-cultura chegou a um impasse, produto sem procura por espectadores com poder aquisitivo. Apenas dois pro-dutores independentes, Maurcio Segall e Ruth Escobar, evidenciam a preocu-pao com um repertrio empenhado e com a produo de espeticulos que provoquem impacto entre os espectadores. Segall, sobretudo, mantm um tra-balho isento de concesses. Mas, claro, atinge um pblico menor. Suas pro-dues no caem na demogogia e procuram adquirir sentido scio-cultural, mas, como consequncia lgico, no alcanam a repercusso das demais. le certa-mente no ter condies de prosseguir por muito tempo num empreendimento coerente, mas financeiramente suicida. Apesar de tudo ainda anuncia uma programao estruturada e ousada para a prxima temporada, procurando, mais uma vez, manter vivo o anseio de um teatro com significado real. Os demais, entretanto, esto voltados para o lucro fcil. Um novo tipo de explorao desponta agora no horizonte comercial do teatro de So Paulo: a montagem de espetculos destinados a estudantes, sobretudo de nvel secundrio, com textos selecionados em escolas ou ento peas inspiradas em vultos ou acontecimentos da histria poltica ou literria do pas. Encenados, evidente, sem uma viso crtica concreta, apoiados em subvenes oficiais e no entusiasmo ingnuo das jovens professoras. curioso assinalar, entretanto, que em alguns destes es-petculos, muita coisa tem sido dita at mesmo de forma direta e contundente. Os grandes produtores comerciais se voltam para textos medocres, mercadorias para venda certa e imediata, embaladas com papel de presente e lao de fita colorida. No mximo logram produes artesanalmente bem realizadas, pre-ocupados com aquilo que chamam de qualidade profissional, valor abstrato que geralmente sinonimo de vazio e velho. Esta chamada "qualidade profissional," evidente, fascina a crtica burguesa e tradicional, que fundamenta seus julga-mentos emocionais e suas opinies montonas e frequentemente idiotas, num valor burgus igualmente abstrato e sempre erigido como critrio de avaliao nmero um: o bom gosto. E igualmente evidente que esta crtica atrasada, desvinculada das exigncias de seu tempo, formada em critrios estticos ultra-passados e reacionrios, domina a imprensa teatral do pas. Para quase todos eles (excees mnimas, ineficientes no momento) na verdade o que existe a nostalgia de um passado que j havia sido enterrado pelo teatro novo que surgiu no Brasil h cerca de quinze anos. Foi junto ao movimento desenvolvido, com acentuadas marcas de classe, pelo Teatro Brasileiro de Comdia, templo do teatro burgus, j desaparecido, que estes crticos descobriram o "cultural," fascinados pela ecloso de um teatro que refletia valores esteticistas e decadentes. Mas que, naquele momento, apesar de tudo, serviu para gestao do teatro moderno brasileiro, etapa contraditria e discutvel, mas circunstancialmente til como fase. Durante algum tempo estes crticos procuraram acompanhar o surto

  • 96 LATIN AMERICAN THEATRE REVIEW do teatro novo. Que chegou a ser social, poltico, mesmo agitacional. Discutvel em muitos pontos, mas vivo e participante. O trabalho realizado neste sentido pelo Teatro de Arena (ou ainda mais pelos Centros Populares de Cultura, organi-zaes de agitao poltica orientadas sobretudo por entidades estudantis), ainda est para ser avaliado com iseno de nimos e conscincia crtica concreta. Agora que este teatro novo est quase sufocado, estas pseudo-autoridades teatrais voltam, vencedores, a seus criterios velhos e s suas "verdades" autenticas. O problema da crtica no Brasil dos mais graves. Existe e ao mesmo tempo no existe. Existem crticos porque escrevem em jornais, mas inexistem porque o que escrevem no interessa a ningum, revela total despreparo para a tarefa, das mais importantes para a ecloso de um movimento renovador e vital. Ainda vem os espetculos como acontecimentos isolados, desvinculados do contexto que os produz e determina sua venda no mercado. No percebem a ligao de um espetculo com outro, nem mesmo a dinmica interna de um espetculo, o relacionamento dialtico entre suas partes. So incapazes de analisar o texto em relao escritura cnica, e ambos em relao ao momento histrico, ao pblico ou em referncia aos meios de produo vigentes.

    O que acontece em So Paulo acontece igualmente no Rio de Janeiro, onde os grupos mais inquietos fracassaram (com exceo de um, que ainda mantm uma atividade de excepcional importncia, apesar de isenta de participao ideo-lgica mais definida, pelo cuidado de suas realizaes e pela sensibilidade de seus dirigentes: o Teatro Ipanema). Restam encenadores de valor, que so esporadicamente contratados pela engrenagem para a produo de espetculos-mercadorias. s vezes conseguem impor qualidade superior, mas nem sempre. So via-de-regra tragados pela mquina. As excees, que felizmente chegam a existir, so raras e no logram constituir um movimento. Em outros pontos do pas o teatro no existe em termos profissionais. Grupos amadores ou, no mximo, cooperativas semi-profissionais, seguem os exemplos de So Paulo e Rio, que procuram cooperar dentro de seus recursos limitados. No possuem uma linha definida de ao, nem um propsito concreto. Esto com os olhos voltados para So Paulo e Rio, assim como So Paulo e Rio esto, cada vez mais, com os olhos voltados para Paris, Londres e, sobretudo, New York. O esprito colonialista volta a dominar a cultura brasileira.

    A realidade brasileira de hoje no pode ser apreendida, de forma crtica, transformadora, estimulante, pela dramaturgia convencional. Nem encenada segundo frmulas gastas do espetculo convencional. O momento de hoje pre-cisa ser analisado em profundidade dentro de uma perspectiva histrica concreta. Causas e consequncias do tipo de relacionamento que se estabelece hoje entre os homens, produto das relaes de produo vigentes, dos esquemas poltico-sociais assumidos pelo poder, devem ser equacionados de forma clara e conse-quente. Dentro dos limites do realismo fotogrfico, do ponto de vista individual e por tanto limitado do personagem, do teatro psicolgico burgus, pouco pode ser atingido. J uma viso mais rigorosa, um realismo crtico mais penetrante, examinando o indivduo relacionado com o social, capaz de implicar numa de-nncia das instituies e das foras repressivas, tem possibilidades de chegar a resultados mais teis. Neste sentido, dramatugia e espetculo precisam desem-

  • FALL 1973 97 penhar um papel ativo e novo na divulgao crtica da realidade cotidiana, no enunciado de suas contradies, no ato de desvendar os verdadeiros motivos da vida social de tudo que nos cerca hoje. Para chegar a um resultado no existem regras: preciso trabalhar, pois somente a prtica do teatro pode vir a ser um criterio de verdade. Mas existe a necessidade da renovao, orientada partir da constatao da crise, do difcil impasse. Os postulados tericos e prticos da dramaturgia e do espetculo necessitam sofrer processo violento e impiedoso de crtica e auto-crtica, para serem repensados em funo de uma atividade nova capaz de contribuir com algo de solido para o processo scio-cultural do pas. Na verdade, a situao grave e o pouco de anlise poltica exercida hoje pelo teatro no Brasil est invariavelmente equacionado dentro dos limites de infra-estrutura fornecidos pelos prprios valores burgueses que pretendem contestar. Pois muitos dos que pensam estar denunciando problemas, na verdade esto envolvidos por uma forma de pensamento no dialtica e igualmente aprisionados a uma esttica que contraria, em profundidade, suas aspiraes mais legtimas. Assim muitas realizaes pensadas como ousadas acabam, naturalmente, ab-sorvidas pela engrenagem. Se no pensar em termos de esttica e nas relaes da expresso artstica com os meios de produo, na interdependncia dialtica entre infra e super-estrutura, os que fazem teatro no Brasil no encontraro a sada para a crise. Boas intenes, e mesmo certa dose de coragem, no so o suficiente para vencer uma estrutura cada dia mais rgida. E cada vez mais orientada para a industrializao capitalista de certo tipo mistificador de teatro.

    Um dramaturgo ou um encenador menos conformista no consegue hoje penetrar nas instituies existentes, em seus esquemas de produo amedrontados ou abertamente comerciais. Nem consegue com facilidade desenvolver um tra-balho isolado ou marginal, que tenha sentido social ou artstico. Termina per-dido no marasmo ou no desespero individual, sem objetivar suas inquietaes, sem experimentar suas ideias, sem testar suas propostas, sem se comunicar com o pblico. Sua potencialidade como artista criador est sujeita fatores inad-missveis. Os que possuem posio assegurada precisam lutar com unhas e dentes, e sobretudo com concesses tticas, para continuarem trabalhando. O que desgasta a energia criadora de cada um, favorece a apatia e o desnimo. Muitos perdem, nesta batalha cotidiana e mesquinha, suas convices mais saudveis, suas responsabilidades como trabalhadores empenhados na produo da arte. E assim um teatro novo e uma dramaturgia nova so anseios distantes. Para se tornarem realidade implicariam numa modificao da sociedade, na alterao das condies objetivas de trabalho. No momento, entretanto, preciso descobrir como trabalhar, com dignidade, dentro de uma situao fechada. Para os profissionais, resta aceitar as regras impostas. E tentar ganhar dentro delas. Modific-las no processo de trabalho difcil, mas possvel. evidente que certo tipo de experimentao, e certo tipo de ousadia cnica so tolerados. E at exigidos pelo sistema. A nascente industria teatral brasileira necessita inovaes. Mas inovaes controladas. Que possam ser consumidas. Que no coloquem em perigo a estrutura de produo. Nem alterem o tipo de "con-tribuio" designado para o artista dentro do sistema. Assim, encenadores e escritores que procurem depor com sinceridade sobre o momento, despertar a

  • 98 LATIN AMERICAN THEATRE REVIEW plateia da passividade, que o teatro velho vem alimentando em proveito pr-prio, s entraro em contato com o pblico, mesmo que tenham vencido a cen-sura, se tiverem os meios de produo em suas mos. O produtor "profissional," portanto capitalista, assumiu decididamente sua posio, sabe que, muitas vezes mesmo tendo o beneplcito da censura, prefervel no se comprometer com as foras transformadoras da sociedade, continuando alicerado no lucro e na segurana. Trabalhar nestas condies no fcil. Mas necessrio. Mesmo um idealismo sincero precisa ser preservado. Resta todo um trabalho lento, indispensvel, a ser pacientemente exercido em cada dia de ensaio, em cada nova montagem, mesmo em cada projeto, em cada depoimento ou em cada debate. O importante impedir mais deseres, mais perdas inteis. Para isso preciso descobrir a frmula, sempre diferente, de trabalhar dentro dos esquemas propostos sem se submeter inteiramente a eles. A crena de que isto impossvel tem levado muitos a se entregarem ao sistema ou a se afastarem definitivamente da produo teatral. Sem dvida um dos grandes problemas do processo cul-tural nacional de hoje a falta de conscincia dos fatos cotidianos, de seus sig-nificados, assim como a falta de crena nas possibilidades de superar, de fora ou de dentro, o momento de agora, instante histrico que precisa ser mostrado como passageiro, mutvel. Para isso fundamental que os espetculos coloquem os personagens em cena com suas alternativas visveis. O homem est no centro do universo, mas num centro relativo, modificando e sendo modificado pela vida social. O teatro a ser realizado no Brasil, hoje, um teatro que no se limita simples satisfao dos hbitos de espectadores anestesiados; o pas necessita uma cultura que transforme o pblico, desperte conscincias, coloque dvidas e in-terrogaes, fornea o prazer de se exercitar na transformao. Para isso preciso, sem perder a energia do instinto e o impulso cego do entusiasmo, descobrir, de corpo inteiro, sem preconceitos ou frmulas pr-estabelecidas, o sentido correto e vital da prtica atual, usar a cabea. Enquanto ainda existem cabeas.

    So Paulo, Brasil Outubro 1972