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TEATRO 1 1

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Teatro I inclui: Baal / Tambores na noite/ A boda / O mendigo ou O cão morto / Expulsando um demónio / Lux in Tenebris / A pesca / Na selva das cidades

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Page 1: Teatro I

TEATRO 1

1

Page 2: Teatro I

VOLUMES DA COLECÇÃO

VOLUME IBaal; Tambores na noite; A boda; O mendigo ou O cão morto;

Expulsando um demónio; Lux in tenebris; A pesca; Na selva das cidades

VOLUME IIA vida de Eduardo II de Inglaterra; Um homem é um homem; A ópera de três

vinténs; Ascensão e queda da cidade de Mahagonny

VOLUME IIIO voo de Lindbergh; A peça didáctica de Baden sobre o consenso;

O que diz sim. O que diz não; A decisão; A Santa Joana dos matadouros; A excepção e a regra; A mãe

VOLUME IVAs cabeças redondas e as cabeças bicudas; Os sete pecados mortais

dos pequeno-burgueses; Os Horácios e os Curiácios; Terror e miséria do Terceiro Reich; As espingardas da Sr.ª Carrar

VOLUME VA vida de Galileu; Dansen; Quanto custa o ferro?; Mãe Coragem

e os seus filhos; O julgamento de Lúculo; A boa alma de Sé-Chuão

VOLUME VIA ascensão de Arturo Ui; O Sr. Puntila e o seu criado Matti;

As visões de Simone Machard

VOLUME VIISchweyk na Segunda Guerra Mundial; O círculo de giz caucasiano;

A Antígona de Sófocles; O preceptor de J.M.R. Lenz

VOLUME VIIIOs dias da Comuna; Turandot; Aníbal; A queda do egoísta Johann Fatzer;

A verdadeira vida de Jakob Gehherda; A vida de Confúcio

Page 3: Teatro I

Bertolt Brecht

Teatro 1

Cotovia

Page 4: Teatro I

Baal (1922): © Renewal Copyright 1968 by Helene Brecht-Weigel.Trommeln in der Nacht / Tambores na noite:© Copyright 1953

by Surkamp Verlag, Berlim.Die Hochzeit / A boda: © Copyright Stefan S. Brecht 1966.

Der Bettler oder Der tote Hund / O mendigo ou O cão morto:© Copyright Stefan S. Brecht 1966.

Er treibt einen Teufel aus / Expulsando um demónio:© Copyright Stefan S. Brecht 1966.

Lux in tenebris: © Copyright Stefan S. Brecht 1966.Der Fischzug / A pesca: © Copyright Stefan S. Brecht 1966.

Im Dickicht der Städte / Na selva das cidades: © Renewal Copyright 1968 by Helene Brecht-Weigel.

Todas as peças in: Bertolt Brecht, Große Kommentierte Berliner und FrankfurterAusgabe. Herausgegeben von Werner Hecht, Jan Knopft, Werner Mittenzwei,

Klaus-Detlef Müller.Todos os Direitos: Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main

Traduções: Copyright © dos tradutores e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2003.Prefácio: Copyright © Jorge Silva Melo e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2003.

Introdução: Copyright © Vera San Payo de Lemos e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2003.

Reservados todos os direitos.

ISBN 972-795-065-5

Page 5: Teatro I

Índice

Com Bertolt Brecht. Aprender a impiedade, preparara amabilidade, por Jorge Silva Melo p. 7

Definição de um território. Os primeiros trabalhos dojovem Brecht, por Vera San Payo de Lemos 17

BAAL 37Anexo (versão de 1955) 101

TAMBORES NA NOITE 111Anexo (versão de 1953) 178

A BODA 185

O MENDIGO OU O CÃO MORTO 215

EXPULSANDO UM DEMÓNIO 225

LUX IN TENEBRIS 241

A PESCA 263

NA SELVA DAS CIDADES 285

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Com Bertolt Brecht Aprender a impiedade, preparar a amabilidade

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De aqui em diante e por muito tempoNão haverá neste mundo mais nenhuns vencedores,Só vencidos.

BRECHT, A queda do egoísta Johann Fatzer

“O que quer que pensemos de Brecht, temos pelo menosde reconhecer que o seu pensamento cingiu os grandes temasprogressistas da nossa época: a saber, que os males dos homensestão nas mãos dos próprios homens, que o mundo se podedomar; que a arte pode e deve intervir na História, que trabalhano mesmo terreno que as ciências, de cujo esforço é solidária;que queremos agora uma arte da explicação e não apenas umaarte da expressão, que o teatro deve resolutamente ajudar aHistória desvendando-lhe os processos, que as técnicas dopalco são também comprometidas; que, enfim, não há uma es-sência da arte eterna, mas que cada sociedade deve inventar aarte que a fará gerar melhor a sua própria libertação.”

Assim escrevia Roland Barthes no início dos anos 60, var-rido ele também pelo furacão Brecht que assolou não apenas oteatro e o seu pó-de-arroz mas toda a estética, filosofia, ética epolítica do pós-guerra.

Mas será ainda assim que podemos pensar na obra inter-minável deste homem conflituoso, arrogante, multifacetado,imprevisível, heterodoxo e reduzido durante anos à mais orna-mental das ortodoxias, múmia de Estado imposto?

Será ainda possível pensar com Brecht, contra Brecht, se-guindo-lhe ou invertendo-lhe a passada larga, provocatória esarcástica?

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Cheguei às cidades nos tempos da desordemQuando aí grassava a fome.

BRECHT, Aos que nascerem depois de nós

Foram tempos de trevas aqueles em que viveu Brecht.Nascido em Augsburgo em 10 de Fevereiro de 1898, tinha 16anos na Primeira Guerra. O mundo ruía, os homens morriam.Mas havia quem pensasse que tudo podia ser de outra manei-ra. Que a guerra nascia da crise do capitalismo, que a uniãodos trabalhadores (conquistada, difícil união cheia de cisões)podia dizer não aos patrões, e só assim dizer não à guerra.Foram os anos da mais vibrante produção artística e intelectual.Os anos do pensamento mais livre. Os anos de Rosa Luxem-burgo, a judia polaca. E, ao passarmos à curva decrescente daguerra, rebenta Outubro, há-de rebentar a Revolução Esparta-quista, hão-de implantar-se os Conselhos de Munique. E matamRosa. E não é a paz “dos cemitérios” que se lhe segue que iráaclarar as trevas nem os gritos. A Alemanha perde a guerra. E aRevolução perde na Alemanha. Para logo aí começar a grasnara pestilência nazi.

Quero os campos de tabaco da Virgínia, que-ro a minha liberdade.

BRECHT, Na selva das cidades

Brecht, que chegou às cidades “em tempo de desordem”,viu que “os homens se revoltavam” e “com eles se revoltou”. E aprendeu a não respeitar as leis e a gostar dos canalhas e dasvielas, a proclamar, vaidoso, a poesia das tabernas contra o bru-xulear dolente das academias, a exigir da vida a aventura ilimi-tada. Há neste jovem Brecht, nesta avidez, neste leitor incessan-te de Rimbaud, tocador de guitarra como Wedekind, umímpeto imparável. Para este Brecht, romântico extremo e anti--romântico por ódio à expressão das almas, o teatro (comopara outros, nessa altura ou depois ou ainda agora, o cinema,

8 Jorge Silva Melo

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a pintura, a música) nasce da literatura. Por isso, este homemorgulhosamente novo e assombrado por um cio secular tem quearrombar as portas aveludadas dos palcos com a brutalidade dapalavra. Pois é na palavra roubada a Villon, no escárnio dapobre língua desse e outros salteadores, que o desejo se produz.

Tens de cortar do corpo o próprio pé.

BRECHT, A decisão

Entre Rimbaud e Lenine, o coração vai à tropa. Se Brechtainda anda perto dos Espartaquistas (a recusa da guerra, aconsciência da guerra de classes contra a ideia de guerra nacio-nal, o apelo à deserção), cedo se lhe coloca a questão políticada organização, a pergunta “Como fazer?”: como criar a disci-plina, como organizar um partido. Como crescer. Entre Baal eFatzer corre a vida nessa dolorosa passagem até à maturidade.Até se conseguir pensar com a cabeça de muitos, libertos dasamarras da individualidade, da sensibilidade, na invenção(sangrenta) do colectivo, do Partido. Para Brecht, a chegada aBerlim — onde descobre Marx e Lenine — é também a passa-gem de solteiro a pai. Ávido de experiências, hiper-activo, pre-sente em todos os lados, dos cafés às organizações políticas,dos amores às editoras, das pautas aos teatros, inscreve na história recente da Alemanha a tragédia do comunismo e nestaa do seu crescimento individual. E é a aprendizagem da “impie-dade” a que cresce na sua obra. Que Rimbaud, o das barricadase do álcool, conduz ao desespero do terrorismo é uma verdadeque a tragédia Baader-Meinhof veio de novo evidenciar. Comosobreviver à revolta? Matando. Mas como, se "depois de nós sóhaverá vencidos"? Cresce-se matando dentro de nós e matandoos outros. Com "humildade", diz-se em Fatzer e arrepia. Por-que a questão é aprender a "cortar do corpo o próprio pé".Questão que é posta ora na hesitação anárquica de Fatzer, orana afirmação bolchevique de A decisão.

9Prefácio

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Mas não é este o princípio que justifica todo o poder e osseus abismos? Não foi isso o que foram pelo mundo espalhan-do Loyola & Francisco Xavier?

Nós, que mudámos mais vezes de terraque de sapatos.

BRECHT, Aos que nascerem depois de nós

Dinamarca, Finlândia, Moscovo uns tempos breves, e aAmérica, a América de Nova Iorque mas também a de LosAngeles, a Suíça logo a seguir a MacCarthy, estas as terras doexílio desde que a besta nazi tomou o poder. Exílio em com-panhia das muitas mulheres, ex-amantes, colaboradoras, filhos,uma verdadeira tribo que viaja e sobrevive e com quem conti-nua a escrever. A escrever poesia, as suas peças maiores, ensaios,diários, tentando escrever romances, polémicas sem cessar. E conversando no quintal com Benjamin. Benjamin mata-seem Port Bou em Setembro de 1940. A vida levará Brecht paraHollywood (“essa nova Weimar”, diz Müller).

Quem luta pelo comunismoDeve saber lutar e não lutar;Dizer a verdade e não dizer a verdade;Prestar serviços e recusar serviços;Ter fé e não ter fé;Expor-se ao perigo e evitá-lo;Ser reconhecido e não ser reconhecido.Quem luta pelo comunismo

Só tem uma virtude:A de lutar pelo comunismo.

BRECHT, A decisão

O comunismo nunca se recompôs da morte de Rosa Luxemburgo. E o diálogo frontal com Lenine, apenas esboça-

10 Jorge Silva Melo

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do, logo seria abafado. Sucedem-se-lhe os discursos paralelosde iguais (Stálin/Trotsky) ou opostos (Stálin/Hitler). Ao diálo-go sobrevive o monólogo, ao debate a solidão, às massas o le-ninismo militar. A esta ameaça bolchevique responde a abjec-ção fascista. E o comunismo desfaz-se até à pizza da netinhade Gorby (ex-KGB).

Mas a pergunta continua: como exercer, como conquistaro poder popular? Como guardar a revolta juvenil que surgequando se descobre que o nosso desejo não cabe no mundo?Como fazer ribombar o gesto renovadamente punk dos que seindignam… até casarem?

“Ele pensa que, se Marx e Engels tivessem lido o Barco Bê-bedo de Rimbaud, tê-lo-iam entendido no sentido do grandemovimento histórico em que ele se situa. Teriam claramentepercebido que o que ele descreve não é o passeio de um poetaexcêntrico mas a luta, a fuga de um homem que não suportaviver dentro das barreiras de uma classe que estava nessa alturaa abrir os continentes mais exóticos aos seus interesses mercan-tis”, anota Benjamin nas Conversas de Svendborg.

Com a criação, no pós-guerra, do Berliner Ensemble, Brechttenta criar — como um modelo — uma comunidade. Uma co-munidade, agora, de foras da lei mas dentro do Estado.

A sua extraordinária inteligência, o génio táctico, a suaargúcia infinda, a sua capacidade de entusiasmar os melhoresocupou, e com que brilho, os seus últimos anos. Ocupadocom uma companhia, com as enormes dificuldades políticasperante os “aparatchiks” que cresciam e por todo o lado sesentavam, Brecht escreve menos: a sua última obra não é lite-rária, é a criação política de uma comunidade.

Ora é precisamente na oposição Estado / Comunidadeque se centra o debate político. O que ficou por fazer entreRosa e Lenine, o que apenas se anota nas conversas dinamar-quesas entre Benjamin e Brecht. E foi esse debate o que Fas-cistas e Estalinistas (em campos opostos, repita-se sempre) es-magaram, e com que traições, na Guerra de Espanha.

Sempre tentando criar (pelo diálogo, pelo debate, pela in-cessante polémica) a comunidade ora fora ora dentro do Estado.

11Prefácio

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Que podemos fazer nós, artistas, deste gesto inacabadomas agora suspenso por cima de nós?

Como criar um colectivo? Como fazer fermentar o exem-plo vivo de uma comunidade? Pergunta cristã: a isto respon-deu pela vida Francisco de Assis.

Pouco podia fazer. Mas os senhores do mundoSem mim estavam mais seguros, esperava eu.E assim passou o tempoQue na terra me foi dado.

As forças eram poucas. A metaEstava muito longeClaramente visível, mas nem por issoAo meu alcance.E assim passou o tempoQue na terra me foi dado.

BRECHT, Aos que nascerem depois de nós

Na melancolia destes versos não temos um balanço de vidapessoal mas um balanço histórico. A História e os seus mean-dros, as suas forças em conflito é que estão aqui apontadas. Co-locando-se a si sempre no gesto comum aos outros homens,Brecht sabe-se vivendo na contingência. Esse “pouco” que elediz poder fazer, fê-lo. E, embora pouco e distante da meta, foifeito. Não é por acaso que ao seu diário ele chamou "diário detrabalho". Ele que gostou de publicar textos por acabar, notas,indicações, sugestões, discussões, que foi sempre tornando pú-blico o seu pensamento em formação, que abriu os ensaios aquem quisesse por lá passar, não o fez como um "Ecce Homo"mas sim no ruidoso movimento da História. Se a História é oTrabalho é porque o Tabalho é a História.

Trabalhemos.

Nós que preparámos o terreno para a amabilidadeNão pudemos nós ser amáveis.

BRECHT, Aos que nascerem depois de nós

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olhai para nóscom atençãoBRECHT, Aos que nascerem depois de nós

E o trabalho agora é editar sistematicamente as peças deteatro de Bertolt Brecht finalmente em português e em tradu-ções a partir do original alemão conformes à edição crítica em30 volumes publicada em 1989 pela Suhrkamp Verlag (Großekommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe).

Terá sido em 1940, nas páginas da revista O Diabo que,em tradução de Mário Fonseca de Azevedo, se publicou emportuguês o primeiro texto de Bertolt Brecht, o ensaio “A co-ragem de escrever a verdade”. Na Vértice de Agosto-Setembrode 1954, Ilse Losa traduz o conto “A velha inconveniente”. Eem várias revistas e jornais da segunda metade dos anos 50,com destaque para O Comércio do Porto, a Vértice, o Diário deLisboa e o Diário Ilustrado, vão sendo publicados ensaios (tra-duções de Luiz Francisco Rebello e Redondo Júnior), poesias(em traduções de Jorge de Sena, Egito Gonçalves ou MárioHenrique Leiria). O primeiro texto teatral a ser publicado terásido, em 1957, A excepção e a regra, tradução de Luiz Francis-co Rebello e Fernando Abranches Ferrão na colectânea TeatroModerno. Caminhos e Figuras. Poesias, excertos de peças, tex-tos teóricos vão sendo entretanto traduzidos por Redondo Jú-nior, Mário Vilaça e sobretudo Paulo Quintela que, em 1975,reúne, no volume Poesias e Canções, as suas versões. Em 1962,a Europa-América edita o romance Os negócios do senhorJúlio César em tradução de Ramos Rosa e a Portugália Editorainicia, em 1961, a publicação regular do Teatro em traduçõesde Ilse Losa, com poesias traduzidas por Jorge de Sena e Ale-xandre O’Neill. A publicação destes volumes, em traduçõesque, posteriormente, serão de Yvette Centeno e Fiama HassePais Brandão, teve um ritmo regular até 1970, tendo sido

13Prefácio

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publicados 5 volumes de Teatro e o volume de Estudos sobreteatro. O sexto volume só será publicado em 1975, numa altu-ra em que a editora já abandonara o projecto de publicartodas as peças. É de 1971 a primeira antologia de poesia, tra-duzida por Arnaldo Saraiva (Presença).

A primeira representação de uma peça de Brecht ocor-reu no Teatro Capitólio quando a companhia brasileira deMaria Della Costa trouxe A alma boa de Se Tsuan em tradu-ção de A. Bulhões e J. Campos com direcção de FlaminioBollini, cuja estreia, a 12 de Março de 1960, provocou violen-ta intervenção da polícia política e dos intelectuas da extrema-direita. Se, nos anos finais da ditadura, alguns grupos universi-tários (o CITAC, o Grupo do Instituto Superior Técnico, osalunos do Liceu Padre António Vieira, por exemplo) se lan-çaram na produção de textos de Brecht, é a partir de 1974 edepois da estreia em Almada de Terror e miséria do III Reichpelo Teatro da Cornucópia, a 13 de Julho, que se sucedemmontagens de textos de Brecht por grupos profissionais eamadores em espectáculos dirigidos, entre outros, por ence-nadores como João Lourenço, Mário Barradas, Carlos Avilez,José Gil, Roberto Merino, José Celso Martinez Correia, LuísVarela, Carlos Wallenstein, João Mota, Artur Ramos, Fernan-do Gusmão, Carlos César, José Peixoto, Joaquim Benite, An-tonino Solmer.

Curiosamente, esta produção intensa dos textos, queabrandou nos anos 80, não teve correspondência no planoeditorial onde passam a ser esporádicas as publicações de algumas das traduções utilizadas. E, a partir desses mesmosanos, é quase só João Lourenço e o Novo Grupo que, em co-produções com o Teatro Nacional D. Maria II e o TeatroNacional de São Carlos, ou em produções próprias continuama estrear as obras da maturidade de Brecht em traduções de Vera San Payo de Lemos e João Lourenço. No ano do cen-tenário, a Dinossauro edita uma antologia onde insere doistextos de teatro em tradução de Ana Barradas e são publi-

14 Jorge Silva Melo

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cados os poemas eróticos. Um dos mais importantes textos teóricos, A compra do latão, é apenas publicado, pela Vega, em 1999*.

Voltemos, então, a Brecht. Com atenção.

JORGE SILVA MELO

15Prefácio

* Para uma bibliografia exaustiva, consultar os volumes Do Pobre BB emPortugal. Aspectos da recepção de Bertolt Brecht antes e depois do 25 de Abril de1974 (Aveiro, Editora Estante, 1991) e Do Pobre BB em Portugal. A recepção dosdramas “Mutter Courage und ihre Kinder” e “Leben des Galilei” (Coimbra, LivrariaMinerva / Centro Interuniversitário de Estudos Germanísticos, 1998), coordena-dos por Maria Manuela Gouveia Delille, da editora Estante de Aveiro.

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Definição de um território. Os primeiros trabalhos do jovem Brecht

“De vez em quando assalta-me a ideia de que os meustrabalhos possam ser demasiado primitivos e antiquados, outoscos e pouco ousados. Ando em busca de novas formas efaço experiências com a minha maneira de sentir como osmais jovens. Mas depois volto sempre a reconhecer que a essência da arte é simplicidade, grandeza e sentimento e a es-sência da sua forma, frescura.” — anota o jovem Brecht de 22anos, em 27 de Junho de 1920, nas primeiras páginas do seudiário1. Entre Augsburg, a cidade-natal, onde vive com a famí-lia e tem o seu grupo de amigos, e Munique, a cidade universi-tária mais próxima, onde se inscreve como estudante de Medi-cina e Filologia e frequenta seminários de Teatro, Brecht tentaafirmar-se como autor, desdobrando-se em experiências de es-crita diversificadas: críticas de teatro para o jornal Volkswillede Augsburg, baladas para cantar com os amigos à guitarra,nos bares e nas ruas de Augsburg, sinopses para a arte emer-gente do cinema e peças de teatro de diferentes géneros, ques-tionando não só o repertório clássico, habitual até hoje namaioria dos teatros institucionais no espaço de língua alemã,como também as novas peças, surgidas com o movimento ex-pressionista.

Tanto na reflexão, desenvolvida em cartas, apontamentos,no diário e nas críticas de teatro, como na prática da escrita,Brecht procura definir o seu território e os seus pontos devista no confronto com os modelos literários e teatrais do pas-sado e do presente. Mais do que ser diferente dos demais ape-nas por espírito de contradição ou irreverência, o jovemBrecht pretende descobrir o seu lugar, aquilo que realmentelhe interessa e se coaduna com a sua maneira de pensar e sentir

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o mundo e a arte. O receio de que os seus trabalhos possam ser“demasiado primitivos e antiquados, ou toscos e pouco ousa-dos” resulta de duas tendências que o caracterizam e se irãomanifestar ao longo de toda a sua obra: o pendor para a simpli-cidade do que é concreto e material e o afastamento em relaçãoa todo e qualquer excesso de idealismo e sentimentalismo.Nesse sentido, a “nobre simplicidade e silenciosa grandeza”,que segundo Wieland definem as obras clássicas do passado, es-tariam mais próximas da maneira de sentir e da procura artísti-ca de Brecht do que os “esforços extremos” que tanto critica egostaria de eliminar nos novos dramas expressionistas, como re-fere em Junho de 1921 no diário, a propósito da peça De manhãaté à meia-noite de Georg Kaiser2.

Quando Brecht escreve as primeiras peças, Baal, em1918, Tambores na noite e as peças em um acto, A boda, O mendigo ou O cão morto, Expulsando um demónio, Lux intenebris, A pesca, em 1919, ou começa em 1921 a trabalhar emNa selva, que se tornará em 1927 Na selva das cidades, o ex-pressionismo polarizava círculos significativos da intelectuali-dade alemã e parte da juventude, sobretudo a que tinha sofri-do a experiência das trincheiras na Primeira Guerra Mundial.Tendo surgido no princípio do século XX como movimentode ruptura em relação às concepções e formas de expressãodo naturalismo e do realismo, o expressionismo é inseparávelda crise da sociedade alemã, abalada por fenómenos como aindustrialização crescente, o aparecimento das grandes cida-des, a experiência da guerra e da derrota militar, o fim do im-pério, do peso do seu autoritarismo mas também do confortodas suas crenças seguras, a instauração de uma república deconstituição liberal entre os tumultos gerados em Munique eBerlim em 1919 pela perspectiva de uma revolução socialista,à semelhança da Revolução Russa de 1917. Apesar do carácterheterogéneo dos estilos dos expressionistas, o grito de revoltamoral e existencial contra uma sociedade de valores abaladose a exigência de um mundo ideal são comuns. Proclama-se a

18 Vera San Payo de Lemos

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necessidade de transformar e humanizar o mundo, regeneran-do a condição humana. A transformação do mundo, enten-dida como conversão da humanidade, teria assim de começarpela transformação do homem, pela sua transfiguração numhomem novo, ideal, e não pela transformação política e eco-nómica da sociedade real.

O grito expressionista encontra no teatro o espaço privile-giado para a apresentação do seu ideal de renovação. O palcopode transformar-se numa espécie de tribuna, e a acção dramá-tica e os recursos cénicos dão corpo às ideias. De acordo com oprincípio segundo o qual a transformação do mundo passa pelatransformação do homem, o herói do drama expressionista de-sempenha um papel fundamental, pois funciona como suportede uma ideia e representa o espírito desafiando a matéria. Esteprincípio determina também a estrutura específica do dramaexpressionista, o drama em estações, que rompe com a formafechada do drama clássico, substituindo-a por uma sucessãode episódios, cenas ou quadros que figuram um percurso, aolongo do qual o herói se transforma ou transfigura. A transfi-guração do eu ao longo das estações de um calvário e a crençana conversão da humanidade a partir dessa transfiguração,propagados pelo drama expressionista, estão impregnados dereligiosidade. Na etapa final do seu percurso, o herói vive aexperiência mística das correntes que o ligam à humanidade edescreve a visão de um mundo novo numa linguagem enfáticae exclamativa.

Começando a escrever numa época ainda impregnadadeste ideário e em que os teatros apresentavam muitas peçasexpressionistas, o jovem Brecht demarca-se desde o iníciomuito claramente do expressionismo e segue um caminhopróprio. Apesar das primeiras peças terem surgido na épocado expressionismo e apresentarem algumas das suas caracte-rísticas, o jovem Brecht e a sua produção dramática nãopodem ser considerados expressionistas. Vários factores con-tribuíram para isso. Durante a ascensão do movimento, Brecht

19Introdução

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era ainda estudante de liceu na cidade algo provinciana deAugsburg, onde o movimento pouco se fazia sentir. Mais novodo que os expressionistas propriamente ditos, como Werfel,Becher e Toller, Brecht não participou activamente na guerraque tanto os marcou. Foi chamado para o serviço militar emOutubro de 1918, pouco antes da guerra terminar, e cumpriu--o apenas durante três meses num hospital em Augsburg, apoucos minutos da casa dos seus pais. Não esteve na Frente,nas trincheiras, e, ao contrário de vários expressionistas, tam-bém não se envolveu muito nem depositou grandes esperançasnos movimentos revolucionários de 1918/1919. Nessa altura,não era especialmente politizado. O seu interesse fundamentalera afirmar-se como escritor, como alguém que tinha algo denovo para dizer. O expressionismo, com o idealismo e a lingua-gem excessiva que lhe eram próprios, estimulou Brecht à ex-pressão da diferença, a definir, por contraste, as suas própriasideias sobre a literatura e a arte e a criar uma obra apostadaem ser nova, diferente da dos expressionistas.

A confrontação do jovem Brecht com o drama expressio-nista e as ideias que lhe estão subjacentes articula-se nas cartasque escreve aos amigos, no diário que mantém com regulari-dade entre 1913 e 1922, nos escritos soltos em que desenvolveas suas ideias sobre a literatura e arte, nas críticas de teatroque escreve entre 1919 e 1921 para o jornal Volkswille deAugsburg e nas suas duas primeiras peças, Baal e Tambores naNoite. Numa carta ao amigo Caspar Neher, datada de Junhode 1918, escreve:

“Este expressionismo é horrível. Todo o sentimento relativo ao

corpo belo, redondo ou magnificamente informe, estiola como a es-

perança pela paz. O espírito triunfa em toda a linha sobre o que é

vital. O que é místico, espiritual, tísico, inchado, extático, aparece

empolado e tudo cheira a alho. [...] Vão expulsar-me do céu desses

nobres, idealistas e espirituais. [...] E eu proclamo a minha indepen-

dência e cuspo e estou farto do que é novo e começo a trabalhar

20 Vera San Payo de Lemos

Page 21: Teatro I

com o que é muito antigo, com o que foi experimentado mil vezes,

e faço o que quero, mesmo que aquilo que quero seja mau. E eu

sou um materialista e um malandro e um proletário e um anarquis-

ta conservador e não escrevo para a imprensa, mas para mim, para

ti e para os japoneses.”3

Nos escritos, as críticas ao expressionismo, sobretudo aoteatro expressionista, são contundentes. Assim, num texto in-titulado Über den Expressionismus (Sobre o expressionismo),Brecht apresenta a sua tese logo na primeira frase, afirmando:“Expressionismo significa exagero grosseiro.”4 Num outrotexto, com o título Das Theater als sportliche Anstalt (O teatrocomo instituição desportiva), Brecht vai ainda mais longe e ri-diculariza as representações destes dramas no teatro, chaman-do a atenção para um aspecto que irá desenvolver mais tardena sua teoria do teatro épico: a importância de o espectadorter espaço e tempo para pensar e poder assumir uma atitudecrítica perante aquilo que lhe é apresentado. Considerandoque o drama expressionista é excessivo e irrealista e nada dizàs pessoas, Brecht escreve:

“Os nossos novos reformadores, que ficaram com o governo

do teatro (literário) nas mãos, [...] quiseram transformar o teatro

[...] num templo. Construíram púlpitos e afixaram cartazes verme-

lhos que diziam para se ir aos templos, que eles estavam lá. E as

boas pessoas vestiram os seus melhores fatos e vieram dos seus ne-

gócios, das suas lutas por ovos, amantes e honras, e encontravam-

-nos nos púlpitos a gritar que o homem tinha de se renovar, [...]

que a tirania era extremamente desagradável e ainda por cima des-

prezível, e alguns deles trespassavam os braços com facas ou engo-

liam sapos ou cuspiam fogo ou balançavam oitocentos elefantes ou

mostravam as varizes. E as pessoas em baixo comportavam-se de

forma sossegada e digna, porque pelo menos, felizmente, não per-

cebiam muito bem a linguagem dos reformadores e escancaravam a

boca, podia-se-lhes ver o estômago, e lá dentro não tinham nada.

21Introdução

Page 22: Teatro I

Mas depois de ficarem a saber que a tirania era desagradável, [...]

iam-se embora descansadas e nunca mais voltavam. E contudo esta-

vam apenas a incorrer num erro. Aquelas mesmas pessoas que ali

cuspiam fogo e se trespassavam, tê-las-iam divertido imenso se se

tivessem apresentado noutro lugar, ou seja, no circo. Aquelas mes-

mas pessoas que se iam embora, teriam ali despido o casaco e feito

apostas e assobiado e ter-se-iam divertido imenso. Mas não podiam

fazer isso na igreja…

Portanto eu sugiro, [...] imprimam novos cartazes! Convidem as

pessoas para o circo. E aí elas podem estar em mangas de camisa e

fazer apostas. E assim não precisam de ficar à espera de abalos espiri-

tuais e concordar com os jornais, mas ficam a ver como as coisas cor-

rem bem ou mal a um homem, como ele é oprimido ou festeja os

seus triunfos, e então vão lembrar-se das lutas da manhã […]”5

Baal come, Baal dança, Baal transfigura-se!

A análise das duas primeiras peças de Brecht, Baal e Tam-bores na noite, demonstra que a crítica ao drama expressionis-ta, que enforma a escrita destas duas peças, questiona, recusa,parodia e inverte fundamentalmente o idealismo das suas con-cepções. A primeira versão de Baal, datada de 1918, apresen-ta-se explicitamente como uma réplica a uma peça expressio-nista, estreada nesse mesmo ano: O solitário, de Hanns Johst,centrada na figura do poeta Christian Grabbe (1801-1836).Ao poeta Grabbe, que se considera um génio, se compara aGoethe e a Cristo, sente em si as forças do espírito divino equer redimir com a sua obra toda a humanidade, Brecht con-trapõe o fazedor de poemas e canções Baal para quem a poe-sia não é nada de transcendente, mas sim uma actividade tãoterrena e vital como comer, beber e amar. Na apresentação dasprimeiras versões de Baal, Brecht introduz a figura de Baal em

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claro contraponto às características dos heróis expressionistas:“Baal. Não pensem ver nele uma natureza especialmente trági-ca nem especialmente cómica. Baal tem a seriedade de todosos animais.” Encontra-se o mesmo conjunto de referências notítulo inicialmente pensado para a peça: “Baal come, Baaldança, Baal transfigura-se!”6

Enquanto Grabbe se transfigura na morte, Baal transfigu-ra-se no prazer material e goza a vida com todos os seus senti-dos. Ao louvor do espírito e ao êxtase visionário do génio poé-tico no drama expressionista de Johst, Brecht contrapõe aafinidade de Baal com o reino animal e as forças da natureza.Para Baal, a religião não é um assunto da alma, mas do corpoque vibra com as cores do céu e o vento a soprar por entre asárvores. Enquanto Grabbe se enaltece, escrevendo sobre gran-des figuras do passado, como Cristo, Alexandre, Napoleão,Baal desmistifica qualquer auréola da sua habilidade para apoesia, fazendo o louvor da retrete na canção que canta paraos carroceiros na taberna ou quebrando o contrato com o ca-baret onde actua, porque “Sem aguardente não há poesia.”

Em 1919 Brecht escreve uma segunda versão de Baal, aprimeira versão de Tambores na noite e as peças em um acto A boda, O mendigo ou O cão morto, Expulsando um demónio,Lux in tenebris e A pesca. Neste conjunto de primeiras peças,revelam-se diversos aspectos que irão caracterizar a obra deBrecht e os seus processos de trabalho ao longo da vida: a capacidade de trabalhar em simultâneo em projectos diver-sos, a interacção entre a prática de reflexão e discussão sobre aescrita na prática da escrita e do palco, a reformulação daspeças em novas versões e a concepção do trabalho da escritacomo um processo, dinâmico, experimental, aberto às suges-tões e inflexões do mundo em volta, que o levará mais tarde aintitular a publicação dos seus trabalhos como Versuche (Expe-riências, Ensaios ou Tentativas). Nesta segunda versão, Brechtsolta-se do objectivo de réplica cerrada à peça de Johst e re-

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força o carácter selvagem de Baal assim como a sua atitude dedesprezo pelas convenções sociais. A abertura da peça com O coral do grande Baal, biografia metafórica da figura, cujo nas-cer e morrer surge integrado no ciclo da natureza, acentua ocontraste com a primeira cena em que Baal surge em sociedade,como um poeta centrado no prazer da comida e da bebida, de-safiador dos bons costumes e desinteressado das opiniões ten-dentes a transformar a sua arte em mercadoria e negócio.Brecht envia esta versão a teatros e editoras na esperança da re-presentação e publicação da peça, mas o fracasso destas diligên-cias leva-o a reformular a peça numa terceira versão entre 1919e 1920, atenuando a atitude provocadora de Baal e suprimindocenas, como por exemplo todas as cenas entre Baal e a mãe. Éesta versão que, com novas pequenas modificações, acaba porser publicada em 1922 na editora Kiepenheuer em Berlim, emresultado dos contactos estabelecidos na primeira viagem à ca-pital em Fevereiro de 1920, e estreada no Altes Theater emLeipzig a 8 de Dezembro de 1923. É esta também a versão es-colhida para publicação neste volume.

A estreia de Baal é recebida com muitos protestos, mastambém aplausos por parte do público. A crítica consideraBrecht ora “uma grande esperança do drama alemão” ora ummero “epígono espumejante”, a peça “uma balada cénica ge-nial” que o actor principal não soube interpretar à altura, e oespectáculo, no seu conjunto, “muito à beira do escândalo”,com o público “fora de si como nunca”7. Apesar de as críticasnegativas serem relativamente moderadas, a peça é retirada decartaz logo após a estreia.

Em 1926 Brecht elabora uma quarta versão com o títuloLebenslauf des Mannes Baal (Vida do homem Baal). Concebidacomo uma biografia dramática, esta versão, muito mais curta,desloca Baal da natureza e contextualiza historicamente osepisódios da sua vida (de mecânico que trabalha numa gara-gem) no período antes da guerra, no advento das grandes

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cidades, entre 1904 e 1912. Com encenação de Brecht e ceno-grafia do seu amigo Caspar Neher, esta versão estreia noDeutsches Theater em Berlim em 14 de Fevereiro de 1926, gerando também algum tumulto entre o público, mas com crí-ticas predominantemente positivas. Com outras duas encena-ções, uma estreada no Theater in der Josefstadt em Viena em21 de Março de 1926, outra no Kleines Theater em Kassel em16 de Novembro de 1927, as três encenações de Vida dohomem Baal serão, juntamente com a estreia da versão de1922 em Leipzig, as únicas apresentações de Baal durante avida de Brecht.

Por volta de 1930, a figura de Baal é novamente trabalha-da num texto que ficou fragmento, intitulado Der böse Baalder asoziale (Baal o mau o associal). Em 1953 a editora Suhr-kamp, sediada na Alemanha Ocidental, inicia a publicação dasobras completas de Brecht com as peças de juventude.Embora Brecht pretendesse introduzir alterações em Baal, nãoo chega a fazer por falta de tempo e a versão publicada acabapor ser a terceira, surgida em 1922. As alterações vêm a serfeitas pouco depois para a publicação das obras completas naeditora Aufbau de Berlim Leste. Em 1955, um ano antes damorte de Brecht, surge a quinta versão de Baal, em que Brechtretrabalha sobretudo a primeira e a última cena. Na primeiracena são introduzidos, por exemplo, poemas expressionistasde Johannes R. Becher e Georg Heym que contribuem parasituar a acção de Baal na época em que o jovem Brecht acriou. Por realizar fica o projecto de uma ópera em torno dafigura de Baal, referido em 1953 no texto Bei Durchsicht mei-ner ersten Stücke (Ao rever as minhas primeiras peças). Baalseria aí um “pequeno deus da felicidade” que “vindo doLeste, entraria depois de uma grande guerra nas cidades des-truídas e quereria levar as pessoas a lutar pela sua felicidadepessoal e pelo seu bem-estar.”8

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Queriam que o meu corpo apodrecesse numa sarjeta, sópara as vossas ideias chegarem ao céu? Estão bêbedos?

Em Fevereiro de 1919, no ambiente conturbado das movi-mentações revolucionárias em curso em Berlim, Munique etambém em Augsburg, desencadeadas com o fim da guerra edo império, Brecht escreve em poucos dias a primeira versão deTambores na noite à qual dá o título de Spartakus. Nesta peça,Brecht reporta-se aos acontecimentos político-sociais que domi-nam a actualidade e desenvolve um dos temas recorrentes dodrama expressionista: o regresso do soldado a casa depois daguerra e o confronto com um mundo de valores abalados. Andreas Kragler, a personagem principal de Tambores na noite,regressa a casa depois de ter sido mobilizado, feito prisioneirode guerra e enviado para o Norte de África, de onde, à terceiratentativa de fuga, consegue escapar. Passados quatro anos deausência, em que tinha sido dado como morto, encontra a noivagrávida de um outro homem, um novo rico que lucrou com aguerra e procura ascender socialmente através do casamentocom a filha do proprietário de uma fábrica. A decepção e o de-sespero em que Andreas cai ao confrontar-se com esta situaçãolevam-no a pensar juntar-se aos revolucionários, mas essa inten-ção é apenas emocional e momentânea, resulta do seu desespe-ro e não de uma convicção política profunda. Ao ter de optarentre os revolucionários ou a noiva, a política ou a família, abandeira ou a cama, Andreas opta conscientemente pelo que selhe apresenta mais cómodo e mais seguro e dirige-se para casacom a noiva, dizendo: “Agora é a vez da cama, a cama grande,branca, larga, anda!”

Pegando no tema expressionista do regresso do soldado acasa depois da guerra, tratado por exemplo por Toller emHinkemann, Brecht sublinha nele aspectos diferentes. Ao con-trário de Hinkemann, o soldado da peça de Toller, AndreasKragler não se transfigura num final trágico nem se agarra anenhum ideal, mas decide, de uma forma muito pragmática erealista, regressar a casa e procurar construir uma vida possí-

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vel em família. No diário, a 2 de Setembro de 1920, Brechtdestaca o desfecho não só como o ponto fulcral de toda aacção, mas também como o motivo fundamental que o levou aescrever a peça:

“E o desfecho forte, saudável, não trágico, que a peça teve

desde o início, e devido ao qual foi escrita, é o único desfecho,

qualquer outra coisa é um arremedo, uma mistura frouxa, capitula-

ção frente ao romantismo. Há aqui uma pessoa que, no auge apa-

rente do sentimento, de repente volta para trás, atira o sentimenta-

lismo patético todo para o lixo, deixa-se gozar pelos seus

admiradores e discípulos e vai para casa com a mulher por causa de

quem armou aquela trapalhada toda. A cama como imagem final.

Qual ideia, qual dever!”9

O que Brecht entende aqui por romantismo é precisamen-te o idealismo característico dos dramas expressionistas quevolta a criticar na opção realista e nada heróica de Andreas Kra-gler no final. Embora a primeira versão da peça tenha obtidoum parecer muito favorável de um autor conceituado e influen-te como Lion Feuchtwanger, Brecht não consegue que ela sejalogo publicada e representada. No verão de 1920 tenta escreveruma nova versão, mas o trabalho não se revela fácil. A principaldificuldade deriva da estrutura clássica, em cinco actos, e daconsequente gestão do tempo para o desenvolvimento da acçãoe a preparação da mudança final. Em Baal, a estrutura tinhasido adoptada do drama expressionista de Johst, era um dramaem estações, composto por quadros, que lhe tinha permitidosincopar a linha tradicional da causalidade e criar hiatos detempo e lugar. A forma clássica, escolhida para Tambores nanoite, corrobora a desmistificação operada ao nível do conteú-do. Andreas Kragler não é um verdadeiro herói, o seu dramanão chega a ser uma tragédia e o romantismo é desmascaradono fim como falso: “É teatro barato. São tábuas e uma lua depapel e lá ao fundo o açougue, a única coisa verdadeira.”

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Tanto a primeira versão de Tambores na noite, datada de1919, como o resultado da reformulação empreendida em1920 desapareceram enquanto documentos. Documentadaestá a reformulação seguinte, uma versão de palco, feita em1922 para a estreia da peça, que tem lugar em Munique, noteatro Münchner Kammerspiele, em 29 de Setembro de 1922.É a primeira vez que uma peça de Brecht é representada.A recepção entusiástica por parte do público e da crítica con-tribui para que lhe seja concedido em Novembro o prémioKleist, por Baal, Tambores na noite e Na selva, e para que Tam-bores na noite suba à cena também no Deutsches Theater emBerlim em 20 de Dezembro de 1922. Entre a estreia da peçaem Munique e em Berlim, Brecht volta a reformular o texto,desta vez para uma publicação: o quarto e o quinto acto sãobastante cortados e as movimentações revolucionárias de No-vembro de 1918 e Janeiro de 1919 claramente situadas emBerlim. Esta versão feita para a publicação, também datada de1922 e utilizada para várias publicações e representações aolongo dos anos vinte, é a que integra este volume.

Para a edição das suas obras completas pela editora Suhr-kamp, Brecht elabora em 1953 uma nova versão de Tamboresna noite, alterando bastante o quarto acto e esboçando a figurade um jovem operário, que tomba como revolucionário e servede ténue contraponto à atitude de desistência de Andreas Kra-gler. No texto Ao rever as minhas primeiras peças, o Brecht tar-dio e politizado confessa ter pensado não incluir no volume dasobras completas esta sua peça de juventude e critica o jovemBrecht por nela ter dado expressão ao seu cepticismo quanto àrevolução social romantizada, despegada da realidade. Numoutro texto, intitulado Meine Arbeiten für das Theater (Os meustrabalhos para o teatro) Brecht justifica-se, recordando o factode a peça ter sido originalmente escrita para rebater os excessosidealistas que na altura predominavam:

“Como minha atenuante poderei talvez dizer que a atitude dos

escritores meus contemporâneos e dos seus espectadores, que

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dominavam o teatro, me irritava, porque eles próprios eram todos

uns pequeno-burgueses e participavam com o seu palavreado idea-

lista no engano dos Kraglers, surgiam portanto como provocado-

res, palravam sobre interesses “gerais”, “humanos”, “ideais”, quan-

do também eles não estavam nem por um momento dispostos a dar

aos revolucionários proletários, que travavam a verdadeira luta,

aquilo de que estes precisavam: a transformação completa das rela-

ções de propriedade e de tudo o que fazia parte disso.”10

Agora que encheram a pança, só querem é ir-se embora.Ficamos nós sozinhos e a noite ainda só vai a meio!

As peças em um acto, A boda, O mendigo ou O cão morto,Expulsando um demónio, Lux in tenebris e A pesca, datam todasde 1919 e, com excepção de A boda, que estreou no Schauspiel-haus de Frankfurt am Main em 11 de Dezembro de 1926, ne-nhuma das peças foi publicada ou representada durante a vidade Brecht, mas apenas postumamente, nos anos 60 e 70. Embo-ra pouco se saiba sobre a origem destas peças em um acto,supõe-se que Brecht tenha sido influenciado na sua escrita pelasbaladas e pequenas cenas apresentadas nas barracas do Plärrer,uma feira que se realizava todos os anos na primavera e no ou-tono em Augsburg, e pelos momentos cómicos da vida das pes-soas simples e os jogos de palavras, característicos dos sketchesde Karl Valentin, vistos em Munique. No interesse por este gé-nero de pequenas peças, com elementos da farsa popular, reco-nhece-se também as tentativas de Brecht para ser aceite comoautor fora dos circuitos oficiais do teatro.

Em A boda, desmascara-se a ilusão da prometida felicida-de duradoura e expõe-se a constituição periclitante da novafamília na progressiva destruição, durante a festa do casamen-to, dos móveis que haviam sido construídos pelo próprionoivo para a nova casa. A alegria da boda vai sendo toldada

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por desajustes e tensões, reveladores da farsa de toda a situa-ção. Cenas de casamento com happy end falhado encontram-se também em outras peças de Brecht, como Tambores nanoite, A ópera de três vinténs, A boa alma de Sé-Chuão, O se-nhor Puntila e o seu criado Matti, O círculo de giz caucasiano eno filme Kuhle Wampe, cuja cena do casamento revela a influ-ência muito próxima de A boda. O projecto de fazer um filmesobre A boda, que acabou por não se realizar, terá levadoBrecht a propor no final dos anos 20, a mudança do títulopara A boda dos pequeno-burgueses. Na estreia, A boda nãoobtém especial sucesso: uma parte do público aplaude, outraprotesta, e a crítica considera que a peça é mais uma farsa doque uma comédia e que Brecht não revela ter muito humor.

O mendigo ou O cão morto recria o ambiente e utiliza per-sonagens próprias de um conto, um imperador e um mendigo,para demonstrar, de forma grotesca, como cada um está presoao seu mundo e quanto os dois mundos estão separados. A des-mistificação dos grandes heróis da história pelo olhar plebeu domendigo, para quem existe apenas a história quotidiana, irá sur-gir mais tarde desenvolvida em Mãe Coragem e os seus filhosassim como em outras peças de Brecht. A estreia de O mendigoou O cão morto ocorre em Berlim Ocidental em 27 de Setembrode 1967 no âmbito de oito estreias de peças curtas de outros autores. Apreciando a peça com base nas obras posteriores de Brecht, a crítica mostra-se desiludida e considera-a mais ade-quada para exercícios de leitura nas escolas ou apresentação na rádio.

Expulsando um demónio apresenta-se como uma pequenapeça semelhante às farsas bávaras de Karl Valentin. O diálogocurto e ambíguo, em que o rapaz e a rapariga se provocam, re-velando e escondendo os seus medos e desejos, retrata a situa-ção e os comportamentos de forma muito realista e teatral. O desfecho surpreende pelo facto de a ordem abalada, aonível da família, da igreja e da moral, não ser restabelecida. A peça é estreada por ocasião da abertura do novo teatro

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municipal de Basileia em 3 de Outubro de 1975, no âmbito deuma chamada feira de teatro, em conjunto com vários outrosespectáculos. Anunciada como “estreia mundial”, a peça desi-lude as grandes expectativas da crítica, mas é recebida comagrado pelo público, principalmente devido à encenação.

O título de Lux in tenebris reporta-se a Es werde Licht(Faça-se luz), um filme realizado por Richard Oswald em 1917que, tal como outros filmes destinados a promover a educaçãosexual da população, teve muito êxito nessa época. Duas con-tinuações em 1918 e um novo filme realizado em 1919, Prosti-tution (Prostituição), comprovam o interesse suscitado. Outrainfluência directa resulta provavelmente de uma exposição,mostrada em Augsburg em 1919 pela Sociedade Alemã para oCombate às Doenças Sexuais, em que para além de palestrasmédicas havia imitações dos fenómenos em cera e quadros ex-plicativos. Entre as peças em um acto, escritas em 1919, Luxin tenebris ocupa um lugar de destaque pelo facto de Brechtexpor aqui pela primeira vez o modo como se processam osnegócios numa sociedade capitalista. A educação sexual ven-dida por Paduk e o bordel dirigido pela senhora Hogge sãonegócios rentáveis e interdependentes. O negócio da tenda dePaduk, expondo as doenças venéreas como consequências daprostituição, não afecta o negócio do bordel da senhoraHogge. O perigo está na possibilidade de um dia a luz tornarclaro que o negócio assenta na exploração das raparigas. A peçaestreia em Essen em 12 de Junho de 1969 numa encenaçãoque acentua a comicidade do texto e diverte muito o público.A crítica destaca a actualidade do tema e a actuação chapli-nesca do intérprete de Paduk, mas considera que o acentuado registo cómico atenuou o ataque à duplicidade da moral bur-guesa contido na peça.

A fábula de A pesca baseia-se num episódio, narrado nocanto oitavo, versos 266-366, da Odisseia de Homero. Ares, odeus da guerra, e Afrodite, a deusa do amor, são apanhados acometer adultério por Hefesto, o marido de Afrodite, e presos

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numa rede, tal como acontece com o Primeiro homem e aMulher do pescador em A pesca. A comicidade aqui resulta damistura de registos numa atmosfera com traços realistas e ab-surdos, em que no torpor da bebida e do sono todos os gatossão pardos e as redes não servem para pescar peixe, mas parapunir os pecados da carne. Contudo, a moral dupla não chegapropriamente a ser desmascarada. Apesar das referências à Bíblia e das críticas mútuas, nem o pescador nem a mulher seconsideram pecadores e cada um procura viver a sua vida comomelhor entende, sem se preocupar demasiado com os outros oucom as convenções sociais. A peça estreia em Heidelberg em 11de Janeiro de 1967, em conjunto com a comédia Astutuli deCarl Orff, num espectáculo que pretendia realçar precisamentedois géneros diferentes de teatro. As críticas são de uma manei-ra geral positivas, mas, à semelhança do que aconteceu por oca-sião das restantes estreias póstumas destas peças em um acto dojovem Brecht, não escondem uma certa desilusão.

Vou levar-me em carne vive lá para fora, paraas chuvas geladas. Chicago é fria. Vou lá entrar.

Depois da primeira viagem a Berlim, em Fevereiro de1920, Brecht começa a interessar-se pela descrição da grandecidade a cuja “hostilidade”, “consistência maligna, de pedra”e “confusão linguística babilónica” quer dar forma, comoanota no diário em 4 de Setembro de 1921, quando começa atrabalhar na peça que virá a ser Na selva11. Na “acção metafísi-ca” que se desenvolve entre Garga e Shlink, Brecht irá apre-sentar uma série de situações que caracterizam a vida nas gran-des cidades: a dissolução da família, a solidão, a prostituiçãoque se acentua com a crescente inflação e a procura de contactohumano e evasão num ambiente sentido como frio e anónimo.Embora reconheça estes problemas, o jovem Brecht reconhecetambém a dimensão mítica da grande cidade enquanto espaço

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representativo da época moderna. No diário, a 24 de Novem-bro de 1921, Brecht compara as paisagens de Na selva e Baalda seguinte forma: “Uma coisa está na Selva: a cidade. Quetem outra vez a sua natureza selvagem, a sua escuridão e osseus mistérios. Como Baal é o canto da paisagem, o canto docisne. Aqui fareja-se uma mitologia.”12 Baal morre na florestaentre os lenhadores que todos os dias vão derrubar mais árvo-res. A paisagem (natural) de Baal tende a desaparecer para darlugar a um novo tempo e a uma nova paisagem, a paisagem dagrande cidade, que Brecht descreve em Na selva como umaproblemática existencial. A vida na grande cidade espelha a situação do homem no mundo moderno que Brecht equa-ciona à escala do universo, designando na peça a cidade deChicago por “planeta”.

A paisagem da natureza e a paisagem da grande cidadecontrapõem-se também, em Na selva, na luta entre Garga eShlink. Os valores de Garga, o apego à infância, à família e àsorigens no campo e o idealismo do sonho de evasão para oTaiti, são destruídos por Shlink num processo doloroso quepromove contudo também a indivuação de Garga e a suaaprendizagem, como pessoa adulta, da vida no espaço da gran-de cidade. A moderação das emoções e a reflexão lúcida do es-pectador sobre as situações e as formas de comportamento empalco, mais tarde preconizadas como princípios fundamentaisdo teatro épico, são curiosamente referidas por Brecht no diá-rio, a 10 de Fevereiro de 1922, logo depois de concluir Na selva:

“Espero ter evitado um grande erro de outras obras de arte no

Baal e na Selva: o esforço que fazem para arrebatar o público. Ins-

tintivamente deixo aqui uma certa distância e cuido para que os

meus efeitos (de natureza poética e filosófica) se limitem ao palco.

A splendid isolation do espectador fica intacta, não é a sua res, quae

agitur, ele não é tranquilizado pelo facto de o convidarem a sentir

também, a incarnar-se no herói e, ao mesmo tempo que se contem-

pla simultaneamente em dois exemplares, a actuar de um modo

33Introdução

3

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indestrutível e significativo. Há uma forma superior de interesse: o

interesse pela parábola, pelo outro, pelo que não pode passar desper-

cebido, pelo que nos espanta.”13

A estreia de Na selva tem lugar no Residenz-Theater emMunique em 9 de Maio de 1923, poucos meses antes de umatentativa de golpe feita por Hitler nessa cidade. O públicoreage de forma tumultuosa. Num dos espectáculos os nazischegam a lançar bombas de gás na sala, e a peça é retirada decartaz depois de seis representações. Thomas Mann explica areacção de desagrado do público com o facto de este ser con-servador e não permitir “arte bolchevista”. Para a estreia dapeça no Deutsches Theater em Berlim, em 29 de Outubro de1924, o texto é encurtado, mas continua em grande medidaincompreensível para o público e, embora a actuação do intér-prete de Shlink seja apreciada, a peça sai de cartaz depois decinco espectáculos.

Em 1926, já a viver em Berlim, Brecht reformula a peçapara publicação e, em 1927, surge a segunda versão de Naselva, agora intitulada Na selva das cidades. É esta a versão pu-blicada neste volume. A nova versão é estreada no HessischesLandestheater em Darmstadt em 10 de Dezembro de 1927 e,no ano seguinte, apresentada também em Gotha e Heidel-berg. As dezasseis cenas da primeira versão, que vem a ser pu-blicada só em 1968, depois da morte de Brecht, são reduzidasa onze. Há aspectos novos na narração da fábula, a luta entreShlink e Garga adquire maior relevo e a dimensão de parábolaé acentuada. As modificações mais significativas verificam-seno final da peça: Garga vence Shlink com uma denúncia feitaà polícia, desliga-se da família e, em vez de partir para ocampo, opta por Nova Iorque, uma cidade ainda maior doque Chicago. É um final que se enquadra na reflexão anotadano diário no fim de Julho de 1925, em que, depois de fazerum balanço do seu trabalho, Brecht traça perspectivas para ofuturo, escrevendo:

34 Vera San Payo de Lemos

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“Como paisagem heróica tenho a cidade, como ponto de vista

a relatividade, como situação a entrada da humanidade nas grandes

cidades no começo do terceiro milénio, como conteúdo os apetites

(demasiado grandes ou demasiado pequenos), como treino do pú-

blico as gigantescas lutas sociais.”14

Esta definição das coordenadas do território onde se situae pensa desenvolver os próximos trabalhos surge na sequênciada ansiada mudança para Berlim. É aqui, no bulício da grandemetrópole, que Brecht irá conseguir afirmar-se como escritor,encenador e dramaturgista, escrever Um homem é um homem,Fatzer, O voo de Lindbergh, as chamadas peças didácticas,A mãe, A santa Joana dos matadouros e Ascensão e queda dacidade de Mahagonny, ver subir à cena com inesperado êxitoA ópera de três vinténs (até hoje uma das peças mais repre-sentadas de Brecht), elaborar a teoria do teatro épico, dedicar--se ao estudo do marxismo, interessar-se pelo boxe e pelarádio, realizar com Slatan Dudow o filme Kuhle Wampe,conhecer e colaborar com Helene Weigel, Elisabeth Haupt-mann, Margarete Steffin, Kurt Weill, Hanns Eisler, ErwinPiscator, George Grosz, os irmãos Herzfelde, Walter Ben-jamin – antes de Hitler subir em 1933 ao poder e o levar a sairda Alemanha e a enfrentar duros anos de exílio.

Nos volumes seguintes, com novas peças, novas expe-riências, ensaios e tentativas, essa história poderá ser lida emais uma vez, de novo, interpretada.

VERA SAN PAYO DE LEMOS

35Introdução

Todas as citações são retiradas da edição Große kommentierte Berliner undFrankfurter Ausgabe (GkBFA), seguindo-se número do volume e da página.1 GkBFA, 26, 122.2 GkBFA, 26, 230.3 GkBFA, 28, 58.4 GkBFA, 21, 48.5 GkBFA, 21, 55 ss.

6 GkBFA, 1, 18.7 GkBFA, 1, 534.8 GkBFA, 23, 241.9 GkBFA, 26, 151.10 GkBFA, 24, 23.

11 GkBFA, 26, 236.12 GkBFA, 26, 261.13 GkBFA, 26, 271.14 GkBFA, 26, 282 ss.

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Baal(1922)

Tradução de Jorge Silva Melo, José Maria Vieira Mendes e Vera San Payo de Lemos.Canções traduzidas por João Barrento.

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A primeira tradução, da autoria de Yvette K. Centeno, foi publicada no vo-lume Teatro III da Portugália Editora em 1968.

A estreia da peça, numa versão de José Fanha e João Lourenço publicadapela Barca Nova Editor em 1982, ocorreu em 14 de Novembro de 1980 com a se-guinte ficha técnica: Encenação: João Lourenço; cenário e figurinos: João Vieira;música e direcção musical: Pedro Osório; dramaturgia: Vera San Payo de Lemos;assistência coreográfica: Armando Jorge; interpretação: Mário Viegas (Baal), IreneCruz (Mãe), João Perry (Ekart), Amílcar Botica, António Banha, Baltazar Terlica,Batista Fernandes, Carmen Santos, Catarina Avelar, Fernanda Lapa, José Eduar-do, José Gomes, José Santos, Juvenal Garcês, Luís Pinhão, Lúcio, Manuela Cas-sola, Maria Emília Correia, Margarida Rosa Rodrigues, Maria José Abreu, MárioSargedas, Paiva Raposo, Ruy Furtado, Suzana Borges, Vieira de Almeida, VirgílioCastelo, Waldemar de Sousa e os músicos Carlos Bica, Manuel Fatela, ManuelMartins, Mário Laginha, Tomás Pimentel. Produção do Teatro Nacional D. MariaII no Teatro da Trindade.

Uma versão da presente tradução serviu de base ao espectáculo dos ArtistasUnidos estreado a 7 de Março de 2003 no Teatro Viriato, com a seguinte fichatécnica: Encenação: Jorge Silva Melo; cenário e figurinos: Rita Lopes Alves; inter-pretação: Miguel Borges (Baal), José Airosa (Ekart); Joana Bárcia (Sophie Barger);Pedro Carraca (Johannes); Rita Durão (Johanna); Paulo Moura Lopes; AméricoSilva; Teresa Sobral; Sérgio Gomes; Sérgio Grilo; João Pedreiro; Miguel Telmo;João Meireles; Gustavo Sumpta; João Saboga; Vanessa Dinger; Carla Galvão; An-tónio Simão; Vítor Correia; Hugo Samora; Tiago Damião; Isabel Muñoz Cardoso.

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Ao meu amigo George Pfanzelt

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PERSONAGENS

Baal · Mech · Emilie, sua mulher · Johannes · Dr. Piller · Johanna · Ekart · Luise, criada · As Duas Irmãs · A Dona da Casa · Sophie Barger ·O Vagabundo · Lupu · Mjurk · A Corista · Um Pianista · O Padre · Bolleboll · Gougou · O Mendigo Velho · Maja, a mendiga · A Jovem ·Watzmann · Uma Criada · Dois Guardas · Carroceiros · Camponeses ·Lenhadores · Vários homens.

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O CORAL DO GRANDE BAAL

Já no ventre da mãe Baal cresciaEstava o céu grande, baço, em acalmiaCheio de portentos, jovem e sem fundoComo Baal o queria ao vir ao mundo.

E o céu ali estava, em tristeza, alegria,Quando Baal dormia, era feliz e não o via.De noite, ele violeta, Baal embriagado:Baal de manhã santo, ele desmaiado.

E Baal calcorreia com indiferençaTascas, igrejas, hospitais sem parar,Não há cansaço, minha gente, que o vença,Baal arrasta o céu ao se afundar.

No meio da escumalha dos pecadoresRebola-se Baal, nu, sem histeria:Só o céu, mas sempre céu, senhores,Imponente, a nudez lhe cobria.

E a grande fêmea, a vida, que se of’receRindo àqueles que entre os joelhos apertaDeu-lhe alguns gozos e ele agradece.Mas Baal não morreu: ficou alerta.

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E quando via mortos à sua voltaO prazer era sempre a dobrar.Tanto espaço, diz Baal, há pouca malta,Tanto espaço, diz Baal, dentro desta mulher.

Se uma fêmea, diz Baal, tudo vos derDeixai andar, que mais não deve ter!Uma mulher com homem não tem mal:Mas crianças teme-as até Baal.

Todos os vícios para alguma coisa servemE, diz Baal, também o homem que os tem.Um vício é bom, se souberes p’ra onde vais.Arranja dois: um deles está a mais!

Não sejas sorna, que isso não dá prazer!O que qu’remos, diz Baal, é o que tem de ser.Se fizeres merda, diz Baal, essa paradaÉ melhor do que não fazer nada.

Mas não sejas tão sorna nem tão dócilQue o prazer, sabe Deus, não é fácil!É preciso membros fortes, experiência:E às vezes não dá jeito a grande pança.

Aos abutres anafados que no céuEsperam por Baal morto, ele pisca um olho. Às vezes faz que morre. A ave desceuE Baal, mudo, come-a à ceia com molho.

No vale de lágrimas, sob estrelas de outonoBaal devora vastos campos, vai mascando.Depois de os limpar, Baal segue cantandoAté à eterna floresta, e cai no sono.

42 Baal

Page 43: Teatro I

E quando o ventre escuro o chama afinal,O que é o mundo ainda? Baal está farto.Tanto céu sob os olhos tem BaalQue lhe chega de céu, mesmo já morto.

E já no escuro da terra apodreciaE estava o céu grande, baço em acalmiaCheio de portentos e jovem e sem fundoComo Baal o quis cá neste mundo.

43O coral do grande Baal