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A RESISTÊNCIA ESCRAVA INSERIDA NA OBRA VÍTIMAS-ALGOZES DE JOAQUIM MANUEL DE MACEDO 1 Bruna Montor Vasconcelos (MestrandaPPH/UEM) Zeus Moreno Romero (Professor de História da UNESPAR/Paranavaí) Palavras-chave: Literatura; Escravidão; Resistência Escrava. Este estudo busca analisar a obra “As vítimas Algozes: Quadros da escravidãode Joaquim Manuel de Macedo que foi escrita com o objetivo de convencer a elite brasileira da necessidade da emancipação dos escravos através de relatos literários que focavam nas resistências mediante as ações perversas dos escravos. Neste artigo apresentamos a concepção de Laviña acerca da resistência escrava, na qual considera que todas as manifestações dos escravos eram ativas e tinham como propósito provocar lenta ou rapidamente o fim do sistema escravista. Neste sentido, Laviña discorda da classificação de que existiam distinções entre resistências pacíficas e ativas. Segundo Izard (2002) a resistência escrava é um campo muito amplo e variado que agrupa atos e atitudes muito diversos, mas que tinha um objetivo comum que era a criação de um espaço de liberdade. O autor trabalha com o objetivo de ampliar o significado de resistência, considerando, inclusive, as resistências individuais, como roubos, desinteresse no trabalho e a religião afro-brasileira. Neste sentido, no recorte temporal (1850-1869) da pesquisa, faz-se necessário analisar o contexto em que a escravidão, no Brasil, passou a sofrer os primeiros impactos legislativos que impunham obstáculos a sua permanência e crescimento e, ao mesmo tempo, anunciavam a sua finitude como forma de organização do trabalho no Brasil (1850), até o ano de publicação da obra analisada As vítimas Algozes: Quadros da escravidão 1869. O objetivo geral é refletir, por meio da obra As vítimas Algozes: Quadros da escravidão de Joaquim Manuel de Macedo, a importância da resistência negra para o fim da escravidão, demonstrando que esta resistência frente ao sistema, foi utilizada por 1 Este artigo está adaptado do trabalho de conclusão do Curso de Especialização em História e Humanidades, apresentado à Universidade Estadual de Maringá, como requisito para a obtenção do título de Especialista em História e Humanidades.

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A RESISTÊNCIA ESCRAVA INSERIDA NA OBRA VÍTIMAS-ALGOZES DE

JOAQUIM MANUEL DE MACEDO1

Bruna Montor Vasconcelos (MestrandaPPH/UEM)

Zeus Moreno Romero (Professor de História da UNESPAR/Paranavaí)

Palavras-chave: Literatura; Escravidão; Resistência Escrava.

Este estudo busca analisar a obra “As vítimas Algozes: Quadros da escravidão”

de Joaquim Manuel de Macedo que foi escrita com o objetivo de convencer a elite

brasileira da necessidade da emancipação dos escravos através de relatos literários que

focavam nas resistências mediante as ações perversas dos escravos.

Neste artigo apresentamos a concepção de Laviña acerca da resistência escrava,

na qual considera que todas as manifestações dos escravos eram ativas e tinham como

propósito provocar lenta ou rapidamente o fim do sistema escravista. Neste sentido,

Laviña discorda da classificação de que existiam distinções entre resistências pacíficas e

ativas.

Segundo Izard (2002) a resistência escrava é um campo muito amplo e variado

que agrupa atos e atitudes muito diversos, mas que tinha um objetivo comum que era a

criação de um espaço de liberdade. O autor trabalha com o objetivo de ampliar o

significado de resistência, considerando, inclusive, as resistências individuais, como

roubos, desinteresse no trabalho e a religião afro-brasileira.

Neste sentido, no recorte temporal (1850-1869) da pesquisa, faz-se necessário

analisar o contexto em que a escravidão, no Brasil, passou a sofrer os primeiros

impactos legislativos que impunham obstáculos a sua permanência e crescimento e, ao

mesmo tempo, anunciavam a sua finitude como forma de organização do trabalho no

Brasil (1850), até o ano de publicação da obra analisada As vítimas Algozes: Quadros

da escravidão 1869.

O objetivo geral é refletir, por meio da obra As vítimas Algozes: Quadros da

escravidão de Joaquim Manuel de Macedo, a importância da resistência negra para o

fim da escravidão, demonstrando que esta resistência frente ao sistema, foi utilizada por

1Este artigo está adaptado do trabalho de conclusão do Curso de Especialização em História e

Humanidades, apresentado à Universidade Estadual de Maringá, como requisito para a obtenção do título

de Especialista em História e Humanidades.

Macedo como argumento para justificar a necessidade da emancipação.

Sendo assim, a metodologia será pautada na análise da obra literária, como fonte

primária deste trabalho e o discurso emancipacionista presente no livro de Joaquim

Manuel de Macedo, traçando um paralelo com o contexto social, político e econômico

no período onde são discutidos projetos emancipacionistas que posteriormente

culminaram na Lei de 1871 que considerava livre todos os filhos de mulheres escravas

nascidos a partir da data de promulgação.

A CONDIÇÃO DO NEGRO ESCRAVO NO BRASIL ENTRE OS ANOS DE 1850-

1869

É importante salientar as limitações do presente trabalho, no qual não se

pretende fazer uma análise exaustiva, aprofundada e conclusiva dos fenômenos aqui

analisados, nem relatar dados e informações suficientes para fundamentar conclusões

teóricas, mas refletir sobre os discursos emancipacionistas apontados na literatura e a

importância da resistência do povo negro.

O romance As vítimas Algozes: quadros da escravidão foi publicado em 1869,

século em que a escravidão no Brasil, alcança seu auge, mas também em que se

intensifica o processo para sua queda. Desde sua formação, no Brasil colonial, os

protagonistas deste sistema sempre lutaram por liberdade através de inúmeras

resistências.

Para Machado (1987, p. 9), o resistir não tinha de ser necessariamente manifesto

por atos violentos. “Em geral as atitudes extremas como fugas, crimes, suicídios só

entravam em cena quando a negociação falhava ou não acontecia por intransigência

senhorial ou impaciência escrava”.

O livro de Macedo utiliza-se destas resistências escravas, a fim de convencer a

elite brasileira que apenas a emancipação poderia acabar com os conflitos que barravam

o desenvolvimento da nacionalidade brasileira. O autor aproveita-se destas resistências

publicando um romance, que em sua totalidade conta histórias de escravos de confiança

que traíram seus senhores, praticando roubos, assassinatos, feitiçarias, e corrompendo a

moral das famílias. “As vítimas algozes é, portanto, uma obra de tese, onde o autor,

manipulando o imaginário do medo da classe senhorial, tenta convencer o leitor da

necessidade da emancipação gradual dos escravos” (AMARAL, 2007, p. 204).

O contexto internacional, no momento em que o livro foi escrito, era favorável a

medidas e pensamentos que reviam a prática da escravidão, julgando-a como inaceitável

moralmente e retrógrada para o desenvolvimento da economia.

Abolicionistas britânicos, franceses e norte-americanos elaboraram um conjunto

de argumentos essencialmente morais, religiosos e por vezes econômicos de medidas

contra a escravidão negra. No entanto, segundo Conrad, no Brasil não houve até a

década de 1860 qualquer organização antiescravista que adquirisse significativa

popularidade.

O relato do cientista inglês Charles Darwin acerca da prática da escravidão no

Brasil é um exemplo do quanto este sistema passa a ser criticado e visto como algo

injusto e criminoso:

Em uma casa onde estive antes, um jovem criado mulato era, todos os dias e a todo o momento, insultado, golpeado e perseguido com um

furor capaz de desencorajar até o mais inferior dos animais. Vi como

um garotinho de seis ou sete anos de idade foi golpeado na cabeça

com um chicote (antes que eu pudesse intervir) porque me havia servido um copo de água um pouco turva… E essas são coisas feitas

por homens que afirmam amar ao próximo como a si mesmos, que

acreditam em Deus, e que rezam para que Sua vontade seja feita na terra! “O sangue ferve em nossas veias e nosso coração bate mais

forte, ao pensarmos que nós, ingleses, e nossos descendentes

americanos, com seu jactancioso grito em favor da liberdade, foram e são culpados desse enorme crime” (DARWIN, 2008, p. 69).

Em relação às manifestações sociais, houve ainda no século XVIII a

transferência das ideias de liberdade e igualdade pronunciadas durante a Revolução

Francesa de 1789 para o continente americano, incentivando os que eram escravos da

própria colônia francesa de Saint-Domingue, a darem início ao fim do sistema

escravista entre os anos de 1791 no Haiti, que posteriormente estenderiam ameaça a

uma revolução escrava vitoriosa para o resto do mundo.

Portanto, como já dito, apesar do contexto internacional no século XIX ser

favorável para o fim completo da escravidão negra, no Brasil prevalecia o discurso da

necessidade deste sistema. Este contexto, no Brasil, justifica a escolha de Macedo em

apelar para uma literatura que alimentava o imaginário do medo nos senhores de

escravos para convencê-los da necessidade da emancipação.

Macedo direciona o seu livro, portanto, para uma elite agrária receosa e

resistente em cogitar o fim da escravidão, por receio da insuficiência de mão de obra e

também pela preocupação com a inviolabilidade da propriedade privada.

O primeiro grande golpe que a escravatura brasileira recebeu, de acordo com

Conrad (1978) foi a lei Eusébio de Queiróz2, que cortava a fonte de abastecimento de

escravos. Segundo interesses ingleses, esta medida de cessar a fonte de escravos já

deveria estar em vigor a cerca de duas décadas quando em 1831 foi assinado um acordo

em que todos os escravos que entrassem no Brasil a partir deste ano seriam declarados

livres. No entanto, na prática, o tráfego de mão de obra africana continuou com

impunidade quase completa.

Com as péssimas condições de sobrevivência dos escravos não era possível que

esta população se mantivesse por meios naturais, ocorrendo após 1851 um significativo

declínio em seus números, convergindo o Brasil para uma crise de mão de obra.

Mesmo com este declínio significativo gerado pelo entrave do fim do tráfico, por

durante mais de 15 anos, a escravatura conseguiu manter seu lugar dominante na

economia e no social do Império, de forma que os brasileiros continuavam convencidos

da necessidade da escravidão.

Ainda que convencidos do fim inevitável da escravidão, a grande maioria da

população se mantinha resistente à ideia. Isto porque a emergência do café no Brasil

fortaleceu ainda mais o domínio da escravidão na economia, o que justifica o fato de

que nos seus últimos 30 anos as províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo

eram as mais interessadas na defesa da escravidão, enquanto que no Nordeste, por

exemplo, o interesse se esvanecia rapidamente.

A década de 1860, no entanto, trouxe os primeiros debates emancipacionistas

significativos no Brasil, que resultaram em um consenso de que o fim da escravidão

seria de forma lenta e gradual. De acordo com Conrad (1978), esta mudança expressiva

de pensamento de uma década para outra foi resultado do reconhecimento de que a

escravatura era uma instituição desacreditada no mundo ocidental.

O autor elenca uma série de acontecimentos no exterior que teriam condicionado

o pensamento das autoridades brasileiras, como por exemplo: fim da escravidão em

Portugal, França e Dinamarca. No entanto, segundo Conrad (1978), as discussões

2 Em 1850, a Lei Eusébio de Queirós aboliu definitivamente o tráfico do cenário nacional. Tornava-se

necessário, então, pensar na substituição do trabalho escravo. Este seria um dos argumentos utilizados nos

debates que girariam em torno das novas formas de distribuição da terra no Brasil. Lei Eusébio de

Queirós: Disponível em: http://www.slavevoyages.org .

emancipacionistas foram motivadas essencialmente pela ratificação da Décima Terceira

Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, que condenava a escravatura,

uma vez que a permanência da escravidão neste país sempre serviu de argumento para

os pró-escravidão.

Segundo Conrad (1978, p. 36): “os senhores foram obrigados a olharem para as

condições de vida dos escravos após o fim do tráfico”. Enquanto durou o tráfico

atlântico foi mais fácil e menos dispendioso para o senhor comprar o escravo segundo

sua necessidade, sem ter que se preocupar com a mortalidade e qualidade de vida dos

cativos.

Segundo Alves (2012), no prefácio do livro, Joaquim Manuel de Macedo aborda

esse contexto histórico internacional que condena a escravidão. Menciona a abolição

nos Estados Unidos da América e o fato do Brasil, juntamente com o Cuba e Porto Rico,

serem os únicos países a manter a escravidão.

Macedo lembra os leitores que para o fim do tráfico negreiro bastou às pressões

da Inglaterra e o Brasil teve que ceder, mas adverte que agora não é só a Inglaterra, mas

o mundo que deseja o fim da escravidão: “Agora é o mundo, agora são todas as nações,

é a opinião universal, é o espírito a matéria, a ideia e a força a reclamar a emancipação

dos escravos” (MACEDO, 2010, p.15).

Macedo, portanto, considera o contexto internacional como sendo decisivo para

o término da escravidão no Brasil, e prevê que a emancipação dos escravos aconteceria

dentro de poucos anos. Porém o que motivou Macedo a escrever um livro que

convencesse a população da necessidade inadiável de terminar com a escravidão foi o

perigo iminente e constante que esta prática trazia para a sociedade, especialmente para

as pessoas livres. Os “quadros da escravidão”, que se referem ao título da obra, são na

realidade quadros da resistência escrava, assassinatos, feitiçarias, fugas e uma série de

corrupções que Macedo considerou como frutos da escravidão e que foram utilizados

em favor da emancipação dos escravos.

ANÁLISE DAS RESISTÊNCIAS NA OBRA VÍTIMAS-ALGOZES QUADROS DA

ESCRAVIDÃO DE JOAQUIM MANUEL DE MACEDO.

A estratégia da narrativa de Macedo consiste em convencer a sociedade de que a

emancipação era necessária em razão do medo “Serão romances sem atrativos, contos

sem fantasias poéticas, tristes histórias passadas a nossos olhos e a que não poderá

negar-se o vosso testemunho” (MACEDO, 2010, p. 1).

O intuito do autor é colocar para o leitor, os senhores de escravos em situação de

vítimas dos seus escravos. Assim, narrava fatos, ditos verídicos, de negros roubando,

assassinando, envenenando e corrompendo os seus senhores e apelando para o

convencimento dos proprietários de escravos quanto à necessidade da emancipação,

porém sem que acarretasse prejuízo à lavoura. Haja vista que o autor defendia também a

indenização dos senhores de escravos pelo governo.

Macedo trouxe para a literatura uma realidade monstruosa na figura do negro

escravo. Pode-se confirmar isso com Novais (2008) no qual trata da obra de Macedo

sobre as crueldades de que os escravos eram capazes por conta do sistema escravagista:

Macedo tinha razão. Veja-se, por exemplo, uma notícia sobre uma escrava cozinheira, publicada nos jornais da corte. Depois de

envenenar seis pessoas da mesma família, a escrava foi, apesar de

tudo, vendida, porque seus senhores não queriam perder o dinheiro

mandando prendê-la. Na cozinha dos novos donos, voltou a envenenar a comida, fazendo duas outras vítimas. Não obstante essa família

ainda a alugou para terceiros, permitindo que continuasse temperando

seus quitutes com veneno. Ao comentar os crimes desta serial-killer oitocentista, o Jornal do Commercio adverte: “Desgraçadamente

abundam os fatos de escravos perversos e assassinos vendidos pelos

senhores que os reconhecem criminosos, para salvarem seu valor, nem se importam com os males que irão causar aos novos senhores”

(NOVAIS, 2008, p. 91).

As revoltas e crimes cometidos pelos negros já era fato real nas famílias da elite.

Então Macedo transportava isso para sua literatura e afirmava serem reais as histórias

narradas. A intenção era que o leitor acreditasse na veracidade dos fatos narrados, a fim

de assombrar os senhores que faziam uso da mão de obra escrava e pressionar suas

decisões em abolir seus escravos.

As Vítimas algozes mostra uma oposição social entre escravos e senhores e não

racial. Era o escravo o inimigo do senhor e não o negro do branco. Apresentar o negro

como cruel, perigoso, inimigo do seu senhor não é tentado de maneira pejorativa pela

intenção de Macedo e sim por uma maneira de compreender que o negro se tornava

assim, por conta de seus maus tratos, a violência dos castigos, o açoite nos troncos. A

violência o instigava a ser violento, a trair e matar. Como afirma Macedo (2010, p.

103):

Eles prejudicam aos senhores: trabalhando maquinalmente, sem ideia de melhoramentos, de progresso e de aperfeiçoamento do sistema de

trabalho, sem os incentivos de interesse próprio e com desgosto e má

vontade. Furtando nas roças, nas fábricas e nos armazéns produtos que vão vender para embebedar-se. [...] Suicidando-se subitamente,

ou aos poucos, quando por nostalgia, enfezação ou desespero morno e

profundo contraem e alimentam enfermidades que acabam por matá-

los. Fugindo à escravidão por dias, semanas, meses ou para sempre, e nos quilombos, seduzindo outros escravos para fugir como eles. Não

poupando o gado e os animais, não zelando os instrumentos rurais,

não compreendendo a necessidade de cuidados não tendo nem podendo ter amor à propriedade do senhor, não se ocupando das

perdas ou os lucros do senhor [...].

Entretanto, caso a liberdade fosse dada, o negro poderia sim, tornar-se uma boa

pessoa como podemos observar nesse trecho de Macedo: “Não condeneis o crioulo;

condenai a escravidão. O crioulo pode ser bom, há de ser bem amamentado, educado,

regenerado pela liberdade” (MACEDO, 2010, p. 6).

O livro Vítimas-Algozes quadros da escravidão foi estruturado (três novelas),

que compõem a obra “Simeão, o crioulo”; “Pai-Raiol, o feiticeiro”; e “Lucinda, a

mucama”. Nessas histórias, Macedo tenta, por meio da persuasão da literatura, atingir os

senhores mostrando-lhes que estavam se tornando verdadeiros algozes e vítimas dos

escravos por conta de suas rebeldias, de suas agressividades, e sustentava que a melhor

solução para tal cenário seria a emancipação.

Simeão, o crioulo.

A primeira novela da obra de Joaquim Manuel de Macedo narra a história do

crioulo Simeão, que não era perfeitamente livre e nem escravo. Simeão foi adotado por

Domingos Caetano e por Angélica depois que sua mãe, ama de leite de sua filha

Florinda, faleceu. Simeão foi criado diferente dos outros escravos, possuía regalias e

não trabalhava, vivendo em completa ociosidade. No entanto, permanecia escravo.

A história gira em torno da promessa de que com a morte do senhor Domingos

Caetano, Simeão receberia alforria através da carta de testamento. Quando Domingos

Caetano adoece, Macedo descreve minunciosamente o caráter de Simeão, que era

essencialmente ingrato e desejava a morte do seu Senhor. No entanto, além da

liberdade, o crioulo desejava também dinheiro, desta forma permanecia presente

cuidando do senhor, afim de que no momento de sua morte pudesse se aproveitar da

situação de desespero e furtar as riquezas da família.

O clímax da novela acontece quando a morte de Domingos Caetano demora a

acontecer, e para não deixar sua esposa e filha desamparadas ele planeja rapidamente o

casamento de sua filha Florinda com Hermano Sales. Alguns dias após o casamento,

Domingos Caetano falece, no entanto em seu testamento não liberta Simeão, mas o

deixa na condição de escravo de Angélica até que esta morra.

O desfecho da novela acontece com o assassinato cruel de Angélica, Florinda e

seu marido Hermano Sales, executados por Simeão e um amigo conhecido da venda,

José Borges, o Bardudo, com a ajuda de mais dois escravos e da mucama de confiança

da família.

Nessa novela, de acordo com Cruz (2011), o personagem central é um crioulo

criado no seio da família, porém, não há benefício que possa neutralizar o ódio que os

escravos nutrem por seus senhores: nem mesmo todo o zelo da criação. Nesse cenário, o

que predomina por parte dos cativos é sempre a ingratidão e o ódio contra seus

opressores sejam eles os senhores, administradores, feitores e suas respectivas famílias.

Com esta narrativa, Macedo demonstra para os leitores que mesmo os escravos

mais amados e cuidados não são confiáveis, e que todos eles possuem sentimentos de

vinganças não havendo amor ou amizade possível entre escravos e senhores. Nesta

história a resistência à escravidão aparece em forma de homicídio, e é utilizada por

Macedo para amedrontar os senhores e senhoras de escravos, mostrando a face terrível

da escravidão.

Pai-Raiol, o Feiticeiro

A segunda novela Pai-Raiol, o Feiticeiro, assim como a primeira novela,

Macedo tem o intuito de relatar possíveis perigos que os negros escravos poderiam

trazer aos seus senhores. O enredo se dá com os personagens Paulo Borges e Teresa;

casal simples que se dedicava somente aos filhos e à fazenda do Rio de Janeiro na qual

moravam. Pai-Raiol foi um negro comprado em uma arrematação de escravos, dentre

outros vinte escravos que Paulo comprou com a intenção de aumentar suas terras e

também sua mão de obra.

Macedo se refere a Pai-Raiol como um "negro feio e desfigurado por moléstia

ou por castigos". Atribuindo ainda a ele características como: assassino, ladrão e

escravo que gostava de tumultuar e criar confusões. Paulo, mesmo sabendo desses

desvios de Pai-Raiol, arrematou-o juntamente com Esméria, pois os mesmos viviam

juntos e, por isso, Pai-Raiol teria se tornado melhor devido à companhia de Esméria.

Entretanto, na verdade, Pai-Raiol tinha uma influência satânica sobre a moça, dessa

forma, ela só estava junto dele por medo e por acreditar em seu suposto poder.

A novela de Pai-Raiol trás muitas informações acerca das tradições, crenças e

culturas trazidas da África, bem como a opinião particular do narrador, que não hesita

em fazer julgamentos destas práticas. Pai-Raiol na concepção de Macedo é um

feiticeiro, profundo conhecedor de plantas, raízes e venenos. O autor analisa que esta

prática é comum no Brasil e tenta por meio deste personagem emblemático demonstrar

os perigos de tais crenças, afirmando que enquanto a “luz sagrada da liberdade não

destruir todas as sombras” ainda haverá ameaças no Brasil.

Macedo (2010, p.37), considera que a feitiçaria é uma forma de resistência

escrava utilizada como meio para vingar-se da violência da escravidão: “O feitiço, como

a sífilis, veio d’África. Ainda nisso o escravo africano, sem o pensar, vinga-se da

violência tremenda da escravidão.” Considerando também que como forma de oposição

à escravidão acabou por africanizar os lugares para onde foram levados, como podemos

notar neste trecho:

E assim, o negro d’África, reduzido à ignomínia, malfez logo e naturalmente a

sociedade opressora, viciando-a, aviltando-a pondo-a um pouco asselvajada, como ele.

O negro d’África africanizou quando pôde e quanto era possível todas as colônias e

todos os países, onde a força o arrastou condenado aos horrores da escravidão.

A trama se desenvolve quando Esméria, juntamente com Pai-Raiol são vendidos

a Paulo Borges. A escrava, para conseguir melhores condições de vida e tornar menos

dolorosa e torturadora a sua vida de escrava, utiliza-se do fingimento e da dissimulação

para conseguir trabalhar dentro da casa grande, cativando o respeito e o amor de sua

senhora Teresa. Macedo analisa que todas as ações, aparentemente boas de Esméria, são

na realidade fingimento.

Quando a luxúria de Esméria encontra abrigo nos planos de Pai-Raiol, que

desejava utilizar da proximidade da Escrava com Paulo Borges e Teresa para matá-los e

tornar-se assim o senhor da propriedade. Esméria, por desejo e por medo de Pai Raiol

aceita fazer parte do plano e encontra maneiras de seduzir Paulo Borges.

Após algumas tentativas de Esméria, Paulo Borges passa a vê-la não mais como

escrava e sim como mulher, e se rende a sua sedução e encantamento. “tornou-se

escravo da escrava.” A partir deste fato, acontece uma série de coisas ruins na família de

Paulo Borges: Teresa descobre a traição do marido, em seguida é assassinada por

envenenamento por Esméria a mando de Pai-Raiol. Esméria, após ficar grávida do

senhor, mata os filhos que Paulo Borges tinha com Teresa, e por fim passa a envenena-

lo dia-a-dia. Novamente, a principal forma de resistência narrada, é a tentativa de

assassinato dos senhores, desta vez por meios silenciosos, o envenenamento. Segundo

Cruz (2011), Macedo busca com a segunda novela enfatizar os perigos aos quais os

senhores ficavam expostos, por pensar apenas em expandir sua produção sem abrirem

mão do trabalho escravo.

Lucinda Mucama.

A terceira novela “Lucinda, a Mucama” conta a historia de Lucinda uma menina

negra de doze anos que se tornou um presente de aniversário de Plácido Rodrigues, um

grande e poderoso fazendeiro, para sua afilhada Cândida que completaria onze anos.

Plácido Rodrigues queria dar uma escrava de presente para Cândida por causa de Joana,

a senhora que foi sua ama de leite e que havia partido com um novo amor. Como se

pode comprovar no trecho de Macedo (2011, p. 90):

E em substituição da companheira livre, amiga, e devotada, recebeu

alegre a crioula quase de sua idade, a mulher escrava, uma filha da

mãe fera, uma vítima da opressão social, uma onda envenenada desse oceano de vícios obrigados, de perversão lógica, de imoralidade

congênita, de influência corruptora e falaz, desse monstro

desumanizador de criaturas humanas, que se chama escravidão.

Cândida demostrou um carinho e empatia fáceis por Lucinda que a conquistou

por saber fazer bonecas. O que parecia ser duas crianças brincando, Macedo explora de

uma maneira que Lucinda acaba por se tornar má influência para Cândida, pois a ensina

a namorar e a se envolver com vários rapazes. Cândida acaba mudando seu

comportamento e até a sua relação com os pais.

Na sequência, Lucinda se envolve com um professor de francês de Cândida

chamado Souvanel que, na verdade, era um criminoso fugitivo da França que tinha

como verdadeiro nome Dermany, que mais tardiamente, Frederico, filho do padrinho de

Cândida, desmarcara-o. Anterior a isso, Souvanel tira a virgindade de Cândida e a

engravida. Porém, depois do escândalo, como Frederico sempre foi apaixonado por

Cândida, resolve protege-la das calúnias e acaba a assumindo e também ao seu filho.

Essa passagem é capaz de ilustrar a visão do autor sobre os males que a

escravidão expunha a todos os que com ela viessem a se envolver. No lugar de sua

companheira livre, a pequena Cândida teria agora como companheira uma mucama, a

qual exatamente por ser escrava trazia consigo um mar de vícios e imoralidade.

Nessa novela Macedo foca o grande perigo que as famílias brasileiras passam a

correr no momento em que deixam mucamas perto de suas jovens filhas inocentes,

ainda em formação da moral. Lucinda não atenta contra a vida física de seus senhores,

no entanto, dissimula, engana, ataca a moralidade da jovem Cândida e desvirtua a moça

dos bons costumes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se considerar que os discursos emancipacionistas da época não obtinham

razões puramente humanitárias e, sim questões politicas e econômicas. Não foram

somente as forças externas e nem as pressões de países já aderidos à emancipação e

abolição que cravaram o processo abolicionista no Brasil. Os próprios negros escravos

tiveram um papel de protagonistas principais da sua liberdade.

A obra As Vítimas algozes tem uma narrativa interessante, na qual Macedo

defendia a emancipação dos escravos, mas pensando no bem dos senhores. Investiu no

viés de cativar a elite, donos de escravos, por meio da inserção do pensamento da

emancipação ser benéfica para os donos de escravos e não para os escravos.

Macedo não buscava despertar a piedade pelos negros, pois para ele não seria o

caminho certo, mas sim o medo, a ameaça constante daqueles que ansiosos por

liberdade e cometedores de crimes escabrosos contra seus senhores e suas famílias,

ressaltando ainda, como sendo consequências das condições degradantes e desumanas

dos próprios senhores para com seus escravos sendo um retrato da violência física e a

violência moral dos mesmos.

O intuito do autor era convencer os senhores da necessidade de colocar um fim à

escravidão, argumentando e defendendo a emancipação para beneficiar a classe

senhorial. Podendo assim, ser considerada uma estratégia narrativa centrada no público

alvo, uma maneira envolvente de leitura, na qual vai se trabalhando a reflexão dos

pontos positivos que havia na emancipação dos escravos.

Ainda que defenda a libertação dos escravos pelo bem do branco proprietário e

não do negro escravo, Macedo ao escrever pela emancipação, inegavelmente defendeu

uma ideia que mais favoreceu ao negro, que deixa a condição de escravo, coisa, objeto,

para ser humano.

A luta e resistência dos escravos serviram como transformação social da época,

mas até hoje não são reconhecidas, porém serviram de exemplo na luta pela igualdade,

contra a discriminação racial e na busca de todos exercerem a cidadania e requererem

respeito e dignidade.

REFERÊNCIAS

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