tÉcnica processual e tutela coletiva de interesses
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
JOÃO HUMBERTO CESÁRIO
TÉCNICA PROCESSUAL E TUTELA COLETIVA DE INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS: Os Provimentos Mandamentais como Instrumentos de Proteção da Saúde do Cidadão-Trabalhador
CUIABÁ - MT
2011
JOÃO HUMBERTO CESÁRIO
TÉCNICA PROCESSUAL E TUTELA COLETIVA DE INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS: Os Provimentos Mandamentais como Instrumentos de Proteção da Saúde do Cidadão-Trabalhador
Dissertação apresentada como requisito
final para a obtenção do título de mestre
em Direito Agroambiental no Programa de
Pós-Graduação em Direito Agroambiental
oferecido pela Universidade Federal de
Mato Grosso, sob a orientação da
Professora Doutora Carla Reita Faria
Leal.
CUIABÁ - MT
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
C421t Cesário, João Humberto.
Técnica processual e tutela coletiva de interesses ambientais
trabalhistas: os provimentos mandamentais como instrumentos de pro-
teção da saúde do cidadão-trabalhador / João Humberto Cesário. –
2011.
299 f.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Carla Reita Faria Leal.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso,
Faculdade de Direito, Pós-Graduação em Direito Agroambiental, 2011.
Bibliografia: f. 292-299.
1. Direito do trabalho. 2. Direito ambiental. 3. Crise ambiental tra-
balhista. 4. Trabalhador – Proteção da saúde. I. Título.
CDU – 349.2
Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931
JOÃO HUMBERTO CESÁRIO
TÉCNICA PROCESSUAL E TUTELA COLETIVA DE INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS: Os Provimentos Mandamentais como Instrumentos de Proteção da Saúde do Cidadão-Trabalhador
Dissertação apresentada como requisito
final para a obtenção do título de mestre
em Direito Agroambiental no Programa de
Pós-Graduação em Direito Agroambiental
oferecido pela Universidade Federal de
Mato Grosso, sob a orientação da
Professora Doutora Carla Reita Faria
Leal.
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Dra.ª Carla Reita Faria Leal
Prof. Dr. Marcelo Antonio Theodoro
Prof. Dr. Guilherme Guimarães Feliciano
Externo a minha gratidão à Professora
Doutora Carla Reita Faria Leal, que no
exercício da orientação acadêmica
concedeu-me ampla liberdade para a
realização da presente pesquisa,
indicando-me, sempre com extrema
elegância, as imperfeições que
reclamavam por correção.
Agradeço, ainda, a todos os demais
professores do programa de mestrado em
Direito Agroambiental da Universidade
Federal de Mato Grosso, em especial aos
Professores Doutores Bismarck Duarte
Diniz, Marcelo Antonio Theodoro, Patrick
de Araújo Ayala e Valerio de Oliveira
Mazzuoli, pelas reflexões jurídicas
proporcionadas ao longo do curso.
Lo que es verdaderamente fundamental,
por el mero hecho de serlo, nunca puede
ser puesto, sino que debe ser siempre
presupuesto. Por ello, los grandes
problemas jurídicos jamás se hallan en las
constituciones, en los códigos, en las
leyes, en las decisiones de los jueces o
en otras manifestaciones parecidas del
<derecho positivo> com las que los
juristas trabajan, ni nunca han encontrado
allí su solución. Los juristas saben bien
que la raíz de suas certezas y creencias
comunes, como la de sus dudas y
polémicas, está en outro sitio. Para
aclarar lo que de verdad les une o les
divide es preciso ir más al fondo o, lo que
es lo mismo, buscar más arriba, en lo que
no aparece expresso.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho
dúctil: ley, derechos, justicia. 9 ed. Madrid:
Editorial Trotta, 2000, p. 9.
RESUMO
A presente dissertação é focada na utilização da técnica processual para a tutela
coletiva de interesses ambientais trabalhistas. Tece, inicialmente, algumas reflexões
sobre os fatores históricos que desencadearam a criação do Direito do Trabalho, a
fim de aclarar as premissas que embasaram a sua conformação clássica. Denuncia,
a partir daí, o que denomina como sendo o engodo juslaboral originário, entendido
como a opção jurídica de se remeter para um segundo plano o estabelecimento de
obrigações laborais de adequação ambiental, a fim de privilegiar o pagamento de
adicionais econômicos que nada contribuem para a preservação da saúde dos
trabalhadores. Sugere, então, um modelo de aproximação entre o Direito do
Trabalho e o Direito Ambiental, que permita ao primeiro, embebido da principiologia
do segundo, cumprir adequadamente a sua promessa tuitiva. Estuda, na sequência,
as possibilidades de utilização do direito processual na perspectiva da inibição e/ou
debelação das crises ambientais trabalhistas, fazendo-o com foco na ação civil
pública. Demonstra, por fim, tanto em perspectiva doutrinária quanto prática, as
variadas formas de utilização dos provimentos mandamentais para a redução dos
riscos inerentes ao trabalho, centrando a atenção nas tutelas inibitória, de remoção
do ilícito e ressarcitória na forma específica.
Palavras-chave: Redução dos Riscos Inerentes ao Trabalho. Provimentos
Mandamentais. Tutelas de Urgência. Tutela Inibitória. Tutela de Remoção do Ilícito.
Tutela Ressarcitória na Forma Específica.
ABSTRACT
The current dissertation is focused on the use of the procedural technic for the
collective protection of environmental labor concerns. It considers, initialy, some
reflections on the historical factors that led to the creation of the labor law, in order to
clarify the premises that have been the basis of its classic conformance. It
denounces, afterwards, what it names as the the original lure of labour law,
understood as the juridical option of postponing the establishment of labour law
obligations, concerning to the adequacy of the working environment, intending to
prioritize the payment of economic benefits, unhelpful to preserv the health of
workers. Then, it suggests a model of approach between labour law and
environmental law, which allows the first, based on the principles of the second, to
suitably fulfill its defensive promise. Subsequently, it studies the possibilities of using
the procedural law to inhibit and / or to overcome the labour environment crisis,
mainly from the utililization of the class action. It shows, eventually, from doctrinal
and practical perspectives, the different ways to use the commandment decisions to
reduce the risks of work, focusing attention on inhibitory, ilicit removal and in the
specific way idemnifying proceedings.
Keywords: Reduction of the Risks Inherent to Work. Commandment Decisions.
Emergency Proceedings. Inhibitory Proceeding. Ilicit Removal Proceeding.
Idemnifying Proceeding in the Specific Way.
RESUMEN
Esta tesis se centra en el uso de la técnica procesal para intereses
medioambientales de tutela colectiva laboral. Trata, inicialmente, de algunas
reflexiones sobre los factores históricos que desencadenaron en la creación del
Derecho Laboral a fin de aclarar las hipótesis que dieron forma a su conformación
clásica. Denuncia, desde allí, lo que se conoce como el pecado original del Derecho
Laboral, entendido como la opción legal de tener como segundo plan de costo el
establecimiento de obligaciones laborales de adecuación ambiental, a fin de
privilegiar el pago de adicionales que en nada contribuyen para la preservación de la
salud de los trabajadores. Sugiere, pues, un modelo de acercamiento entre el
Derecho Laboral y el Derecho Ambiental, que permite al primero, embebido en los
principios del segundo, realizar su promesa (función) tuitiva. Estudia, como
resultado, las posibilidades de uso del derecho procesal en la perspectiva de
inhibición y/o coacción de las crisis ambientales laborales, haciéndolo con énfasis en
la acción civil pública. Demuestra, por último, tanto en perspectiva doctrinal como en
práctica, las variadas formas de uso de los mandamientos para reducir los riesgos
inherentes en el trabajo, centrándose en las tutelas inhibitoria, de extracción del
Ilícito y resarcitoria en forma específica.
Palabras clave: Reducción de los Riesgos Inherentes al Trabajo. Decisiones
Mandamentales. Tutelas de Urgencia. Tutela inhibitoria. Tutela de Extracción del
Ilícito. Tutela Resarcitoria en forma específica.
LISTA DE SIGLAS
ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ANAMATRA Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho
CDC Código de Defesa do Consumidor
CIPA Comissão Interna de Prevenção de Acidentes
CLT Consolidação das Leis do Trabalho
CONAMP Confederação Nacional do Ministério Público
CPC Código de Processo Civil
CRFB Constituição da República Federativa do Brasil
DORT Distúrbios Osteomusculares Relacionados a Trabalho EPI Equipamento de Proteção Individual
FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador
INSS Instituto Nacional do Seguro Social
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
LACP Lei de Ação Civil Pública
LER Lesão por Esforço Repetitivo
MPT Ministério Público do Trabalho
NR Norma Regulamentadora
NTEP Nexo Técnico Epidemiológico
OIT Organização Internacional do Trabalho
OMS Organização Mundial de Saúde
PCMSO Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional
PETROBRAS Petróleo Brasileiro S/A
PPRA Programa de Prevenção de Riscos Ambientais
SDC Seção de Dissídios Coletivos
SDI-1 Subseção 1 Especializada em Dissídios Individuais SDI-2 Subseção 2 Especializada em Dissídios Individuais
STJ Superior Tribunal de Justiça
STF Supremo Tribunal Federal
TRT Tribunal Regional do Trabalho
TST Tribunal Superior do Trabalho
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1 PREMISSA, ITINERÁRIO E OBJETIVOS DA DISSERTAÇÃO..............................18 2 METODOLOGIA UTILIZADA NA ELABORAÇÃO DA DISSERTAÇÃO..................21
CAPÍTULO I
A EVOLUÇÃO DO ESTADO MODERNO E AS SUAS RELAÇÕES COM O MEIO AMBIENTE NATURAL E DO TRABALHO 1 O ESTADO LIBERAL..............................................................................................22 1.1 NOTÍCIA HISTÓRICA......................................................................................22 1.2 A ORDEM JURÍDICA LIBERAL-BURGUESA..................................................24 1.3 A RELAÇÃO DO ESTADO LIBERAL COM O MEIO AMBIENTE....................27 2 O ESTADO SOCIAL................................................................................................28 2.1 JUSTIFICAÇÃO HISTÓRICA...........................................................................28 2.2 A ORDEM JURÍDICA NO ESTADO SOCIAL...................................................32 2.3 A RELAÇÃO DO ESTADO SOCIAL COM O MEIO AMBIENTE......................33 3 O ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO.......................................35 3.1 PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO HISTÓRICA: O ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO.....................................................................................................................35
3.2 A ORDEM JURÍDICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO...............37 3.2.1 – O Estado Democrático de Direito e os Direitos Fundamentais............40 3.3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A QUESTÃO AMBIENTAL:
SURGE A IDEIA DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO.....44
3.3.1 Dissecação do Epíteto “Estado Democrático-Ambiental de Direito”.......47
3.3.1.1 Algumas peculiaridades do Estado Democrático-Ambiental de
Direito.........................................................................................................................49
3.3.1.1.1 – transcendência da propriedade..................................49 3.3.1.1.2 – ampliação dos sujeitos de direito...............................50 3.3.1.1.3 – privilégio da prevenção em detrimento da repressão....................................................................................................................52 3.3.1.2 O Estado Democrático-Ambiental de Direito e a fundamentalidade
do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado .........................................53
4 AS RELAÇÕES DO ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO COM O
UNIVERSO JURÍDICO TRABALHISTA.....................................................................56
CAPÍTULO II
OS PRINCÍPIOS JUSAMBIENTAIS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E DO POLUIDOR-PAGADOR: INSTRUMENTOS DE AFIRMAÇÃO DA PROMESSA TUITIVA DO DIREITO DO TRABALHO
1 DIREITO DO TRABALHO: CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E CONFORMAÇÃO IDEOLÓGICA.............................................................................................................60 2 O ENGODO JUSLABORAL ORIGINÁRIO..............................................................62 3 DIREITOS HUMANOS E DIREITO DO TRABALHO: REPENSANDO
AMBIENTALMENTE O MODELO JUSTRABALHISTA VIGENTE ............................64
4 PRINCÍPIOS DE DIREITO DO TRABALHO: NUANCES E INSUFICIÊNCIAS.......67 5 PRINCÍPIOS DE DIREITO AMBIENTAL: INSTRUMENTOS DE AMPLIAÇÃO DA
PROTEÇÃO TRABALHISTA......................................................................................70
5.1 PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.................................72 5.2 PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR..........................................................74 5.2.1 Subprincípio da Prevenção.....................................................................78
5.2.1.1 Subprincípio da prevenção: direito à informação.........................81 5.2.1.2 Subprincípio da prevenção: extrafiscalidade................................82 5.2.2 Subprincípio da Precaução (Releitura do Princípio In Dubio Pro
Operario)....................................................................................................................84
5.2.2.1 Subprincípio da precaução: a questão do amianto......................85
5.2.3 Subprincípio da Responsabilidade Fundada nos Riscos Ambientais.....88 6 EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL PARA O DIREITO AMBIENTAL DO
TRABALHO................................................................................................................93
CAPÍTULO III
RESSIGNIFICAÇÃO DA TEORIA GERAL DO PROCESSO TRABALHISTA A PARTIR DOS VALORES ÍNSITOS AO ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO
1 O ENGODO JUSLABORAL ORIGINÁRIO E SEU REFLEXO NA TEORIA E NA
PRÁTICA PROCESSUAL..........................................................................................95
2 EXISTEM OUTROS CAMINHOS?..........................................................................96 3 O ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO, A TÉCNICA
PROCESSUAL E A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO TRABALHISTA.......98 4 O DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONALMENTE ESTRUTURADO E
AMBIENTALMENTE JUSTO....................................................................................102
5 A JURISDIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO........109 6 O DIREITO DE AÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE
DIREITO...................................................................................................................113
6.1 AÇÕES COGNITIVAS: TEORIA TRINÁRIA X TEORIA QUINÁRIA..............117 7 O PROCESSO NO ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO.........125
7.1 A ADAPTABILIDADE DO PROCEDIMENTO COMO PRESSUPOSTO PARA
O ACESSO A UMA ORDEM JURÍDICA EFICIENTE E AMBIENTALMENTE
JUSTA......................................................................................................................130
7.1.1 A Adaptabilidade do Procedimento: Legitimidade Democrática do Poder
Judiciário..................................................................................................................132
7.1.2 A Adaptabilidade do Procedimento: Limites e Possibilidades...............137
CAPÍTULO IV
AS CRISES AMBIENTAIS TRABALHISTAS E OS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS QUE DELAS DEFLUEM 1 UM BREVE INTRÓITO..........................................................................................145 2 MEIO AMBIENTE DO TRABALHO EQUILIBRADO: INSTRUMENTO DE
PROMOÇÃO DA SADIA QUALIDADE DE VIDA DO CIDADÃO-
TRABALHADOR.......................................................................................................145
3 CRISES AMBIENTAIS TRABALHISTAS..............................................................148
3.1 CRISES AMBIENTAIS TRABALHISTAS DE DIMENSÃO
DESUMANIZANTE...................................................................................................149
3.2 CRISES AMBIENTAIS TRABALHISTAS DE DIMENSÃO FÍSICO-
ERGONÔMICA.........................................................................................................153
3.2.1 – Aspectos Físicos, Químicos e Biológicos...........................................153 3.2.2 Aspectos Propriamente Ergonômicos...................................................157 3.3 CRISES AMBIENTAIS TRABALHISTAS DE DIMENSÃO PSÍQUICO-
MORAL.....................................................................................................................159
4 OS INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS...............................................163 4.1 À GUISA DE INTRODUÇÃO..........................................................................163
4.2 INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS DIFUSOS.............................164 4.3 INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS COLETIVOS........................168 4.4 INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS INDIVIDUAIS
HOMOGÊNEOS.......................................................................................................170
CAPÍTULO V A AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO TÉCNICA PROCESSUAL ADEQUADA PARA A TUTELA COLETIVA DE INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS 1 BREVE INTRÓITO................................................................................................173 2 AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL TRABALHISTA: COMPETÊNCIA MATERIAL,
HIERÁRQUICA E TERRITORIAL............................................................................175
2.1 COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA..................................................175 2.2 COMPETÊNCIA HIERÁRQUICA...................................................................176 2.3 COMPETÊNCIA TERRITORIAL....................................................................177 3 AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL TRABALHISTA: LEGITIMIDADE ATIVA E
PASSIVA..................................................................................................................183
3.1 LEGITIMIDADE ATIVA...................................................................................183 3.1.1 Ministério Público (Trabalhista e Comum).............................................187 3.1.2 Defensoria Pública................................................................................189 3.1.3 Sindicatos.............................................................................................191 3.2 LEGITIMAÇÃO PASSIVA...............................................................................194 4 AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL TRABALHISTA: PROVAS..........................196 4.1 O JUIZ E A ATIVIDADE PROBATÓRIA........................................................196 4.2 ÔNUS DA PROVA.........................................................................................199
4.3 UTILIZAÇÃO DE ELEMENTOS ESTATÍSTICOS COMO MEIO
PROBATÓRIO..........................................................................................................207
5 AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL TRABALHISTA: PARAMETRIZAÇÃO
DECISÓRIA (ADSTRIÇÃO DA SENTENÇA AO PEDIDO?)....................................212
6 AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL TRABALHISTA: COISA JULGADA...........215 6.1 INTRODUÇÃO...............................................................................................215 6.2 OS INTERESSES DIFUSOS E OS COLETIVOS E A COISA JULGADA
AMBIENTAL TRABALHISTA....................................................................................217
6.2.1 O Transporte In Utilibus da Coisa Julgada Difusa e Coletiva para o
Âmbito Individual......................................................................................................219
6.3 OS INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS E A COISA JULGADA
AMBIENTAL TRABALHISTA....................................................................................221
6.3.1 Existe Litispendência entre as Ações Coletivas versando sobre
Interesses Individuais Homogêneos e as Reclamações Individuais?......................222
CAPÍTULO VI OS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS E A TUTELA EFETIVA DOS INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS
1 AS TUTELAS DE MÉRITO E O ACESSO A UMA ORDEM JURÍDICA EFICIENTE
E AMBIENTALMENTE JUSTA.................................................................................227 2 OS PROVIMENTOS PROCESSUAIS MANDAMENTAIS.....................................229 3 EXEMPLOS PRÁTICOS DE USO DOS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS PARA
A TUTELA DO EQUILÍBRIO AMBIENTAL TRABALHISTA.....................................234
4 AS TUTELAS INIBITÓRIA, DE REMOÇÃO DO ILÍCITO E DE RESSARCIMENTO
NA FORMA ESPECÍFICA: EXPRESSÕES MÁXIMAS DOS PROVIMENTOS
MANDAMENTAIS....................................................................................................236
4.1 A TUTELA INIBITÓRIA..................................................................................237 4.2 TUTELA DE REMOÇÃO DO ILÍCITO............................................................240 4.3 TUTELA RESSARCITÓRIA NA FORMA ESPECÍFICA.................................241 5 URGÊNCIA DAS TUTELAS E TÉCNICA DAS TUTELAS DE URGÊNCIA..........248 5.1 INTRODUÇÃO...............................................................................................248 5.2 ANTECIPAÇÃO DE TUTELA NAS OBRIGAÇÕES DE DAR.........................249 5.2.1 Concessão a Requerimento: Possibilidade da Antecipação de
Ofício?......................................................................................................................250
5.2.2 Prova Inequívoca que Conduza à Verossimilhança da Alegação.........252 5.2.3 Tutela de Urgência: Fundado Receio de Dano Irreparável ou de Difícil
Reparação................................................................................................................255
5.2.4 Tutela de Evidência ou Sancionatória: Abuso do Direito de Defesa,
Manifesto Propósito Protelatório do Réu ou Existência de Pedidos
Incontroversos..........................................................................................................257
5.2.5 Possibilidade de Reversão do Provimento Antecipado?.......................259 5.2.6 – A Efetivação dos Efeitos da Tutela Antecipada de Obrigação de
Dar............................................................................................................................261
5.3 ANTECIPAÇÃO DE TUTELA NAS OBRIGAÇÕES DE FAZER, NÃO FAZER E
ENTREGAR COISA.................................................................................................265
5.3.1 Breve Introdução...................................................................................265 5.3.2 Possível a Antecipação de Ofício?........................................................266 5.3.3 Relevante Fundamento da Demanda e Fundado Receio de Ineficácia do
Provimento Final.......................................................................................................266
5.3.4 A Questão da Reversibilidade do Provimento Antecipado....................269
6 CUMPRIMENTO DOS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS ANTECIPADOS E
DEFINITIVOS...........................................................................................................271
6.1 A TUTELA ESPECÍFICA................................................................................271 6.2 AS ASTREINTES...........................................................................................274 6.3 A RESPONSABILIZAÇÃO DO SÓCIO GESTOR..........................................280 6.4 A PARTICIPAÇÃO DE TERCEIROS.............................................................282 CONCLUSÃO...........................................................................................................286 PARA ALÉM DE UMA CONCLUSÃO: APONTANDO AO
FUTURO...................................................................................................................289
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................292
18
INTRODUÇÃO
1 PREMISSA, ITINERÁRIO E OBJETIVOS DA DISSERTAÇÃO
O raciocínio que permeia toda a presente dissertação é o de que direito
processual possui natureza instrumental-axiológica, o que lhe impõe a necessidade
de estar atento às necessidades do direito material a ser tutelado.
O objetivo do primeiro capítulo é o de traçar uma breve evolução do Estado
moderno, partindo da sua vertente liberal, passando pelo seu viés social, até chegar
ao projeto político de uma organização estatal que se enxerga como sendo o Estado
Democrático-Ambiental de Direito.
Será desvendado, na análise dos noticiados modelos estatais, o espírito
ideológico que embalou as concepções liberal e social, clarificando-se os seus
pressupostos centrais.
Uma vez cumpridas tais etapas, será delineado o perfil do antedito Estado
Democrático-Ambiental de Direito, almejando-se evidenciar a primazia do direito ao
meio ambiente equilibrado na sociedade contemporânea.
Em arremate, o tema do meio ambiente do trabalho será analisado,
buscando-se demarcar as implicações do Estado Democrático-Ambiental de Direito
sobre o juslaboralismo.
Já no capítulo de prosseguimento, o estudo intentará construir um ponto de
interseção entre o Direito Ambiental e o Direito do Trabalho, que permita a este
último, devidamente impregnado da principiologia que inspira aquele primeiro,
cumprir com eficiência a sua promessa tuitiva.
Para tanto serão tecidas algumas reflexões sobre os fatores históricos que
desencadearam a criação do Direito do Trabalho, a fim de serem aclaradas as
premissas que embasaram a sua conformação clássica.
Denunciar-se-á aquilo que a dissertação denomina como sendo o ‘engodo
juslaboral originário’, compreendendo-o como a opção pragmática de se remeter
para um plano remoto o estabelecimento de obrigações laborais de adequação
ambiental, a fim de ser privilegiado o pagamento de adicionais econômicos que nada
contribuem para a preservação da saúde dos trabalhadores.
Após serem plantadas tais balizas, o Direito do Trabalho será repensado por
um prisma comprometido com a prevenção, a precaução e a responsabilidade
19
fundada nos riscos decorrentes dos fatores ambientais do trabalho, propondo-se,
para tanto, um necessário diálogo entre os diversos dispositivos da Constituição que
regem as matérias ambiental e laboral.
Estabelecidas as bases estruturantes do Estado Democrático-Ambiental de
Direito e ampliada a essência do núcleo protecionista justrabalhista, propor-se-á,
com arrimo no direito processual, algumas estratégicas de implementação do novo
modelo trabalhista preconizado.
Dando início ao desvencilhamento da prefalada tarefa, será realizada no
terceiro capítulo uma análise da importância da técnica processual para a tutela de
direitos, com enfoque na proteção jurisdicional dos interesses ambientais
trabalhistas, cujo escopo será o de ressignificar a jurisdição, a ação e o processo,
fazendo-o em consonância com a coletivização processual e a preventividade
inerentes ao Estado Democrático-Ambiental de Direito.
Visando o alcance do desiderato em questão, a noção de devido processo
legal será desconstruída, sendo reconformada na perspectiva de um ‘devido
processo constitucionalmente estruturado e ambientalmente justo’, capaz de garantir
o acesso substancial a uma ordem jurídica verdadeiramente eficiente, na qual a
preventividade seja priorizada em relação à repressividade.
Para tanto a ideia de jurisdição será transportada da feição individualista e
pretensamente neutra que lhe emprestou o liberalismo, para uma outra dimensão,
coletiva e proativa, capaz de contribuir para a redução dos riscos inerentes ao
trabalho.
Por corolário lógico, o direito de ação, enxergado pelo liberalismo em um viés
eminentemente subjetivo e repressivo, será reconceituado como um instituto
prioritariamente transindividual e potencialmente preventivo, que para muito além de
meramente destinar-se ao ressarcimento pecuniário dos danos físicos e psíquicos
individualmente suportados pelos obreiros, haverá de ser manejado em abrangência
coletivizada, como instrumento de proteção da saúde do cidadão-trabalhador.
Como objetivo final do capítulo em questão, será questionada a visão
reducionista do liberalismo, que sempre tratou o processo como um simples método
estatal de resolução de conflitos destinado à mera declaração da vontade da lei,
defendendo-se, outrossim, as possibilidades de o magistrado conformar os
procedimentos abstratamente traçados pelo legislador às necessidades dos casos
concretos submetidos à sua apreciação.
20
Já no quarto capítulo, a dissertação adentrará na análise do fenômeno que
denomina como sendo as ‘crises ambientais trabalhistas’. Visando melhor estudá-
las, a pesquisa proporá que elas sejam catalogadas em três dimensões, que,
embora distintas, encontram-se interrelacionadas, a saber: a) crises ambientais
trabalhistas de dimensão desumanizante; b) crises ambientais trabalhistas de
dimensão físico-ergonômica; c) crises ambientais trabalhistas de dimensão psíquico-
moral.
Uma vez esmiuçado o conteúdo de cada uma das dimensões das chamadas
crises ambientais laborais, serão revelados os interesses que delas defluem,
iniciando-se pela ótica difusa, passando-se pela coletiva de sentido estrito até
chegar-se à individual homogênea.
Já o quinto capítulo intentará evidenciar, a partir dos alicerces anteriormente
edificados, que a ação civil pública é a técnica processual que se mostra mais
adequada para a tutela do equilíbrio ambiental, seja no plano natural e/ou no
artificial-laboral.
Fundamentado o ponto de vista em questão, a dissertação estudará na
perspectiva da jurisdição coletiva os institutos processuais da competência, da
legitimidade ativa e passiva, das provas, da parametrização decisória e da coisa
julgada, pontuando, sempre que necessário, observações críticas à jurisprudência
dos tribunais trabalhistas, focando a sua atenção no Tribunal Superior do Trabalho.
Cumprida esta penúltima etapa, o estudo adentrará no seu ponto nevrálgico,
passando a detalhar, no sexto capítulo, o uso dos provimentos mandamentais no
âmbito processual trabalhista, encarando-os como o centro da proteção jurídica no
Estado Democrático-Ambiental de Direito, imprimindo-se ênfase, sobretudo, à
necessidade da obtenção da tutela específica em detrimento da pecuniário-
repressiva, bem como nas técnicas processuais que estão à disposição dos juristas
para a efetivação de tais provimentos jurisdicionais.
Intentar-se-á que fique claro o imperativo de que a técnica processual seja
preferencialmente comprometida com as tutelas inibitória e de remoção do ilícito,
quando muito com a tutela ressarcitória na forma específica, que são aquelas aptas,
respectivamente, a evitarem a consumação de danos à saúde dos trabalhadores, ou
à restauração específica do bem-estar esvaído pelos abalos físicos e psíquicos
suportados pelos obreiros.
21
2 METODOLOGIA UTILIZADA NA ELABORAÇÃO DA DISSERTAÇÃO A natureza da pesquisa será exploratória, pois que apesar de se debruçar
sobre um território jurídico pouquíssimo examinado pela ótica do juslaboralismo,
almejará, basicamente, sorver os elementos que vêm sendo contemporaneamente
delineados em vários campos do saber jurídico, como, por exemplo, na Teoria Geral
do Estado, no Direito Ambiental e no Direito Processual Civil, para, então,
transportá-los e adequá-los à realidade do Direito Material do Trabalho e do Direito
Processual do Trabalho, de modo a potencializar as possibilidades destes dois
últimos quanto à concretização da promessa constitucional de redução dos riscos
inerentes ao trabalho (artigo 7º, XXII, da CRFB).
A aproximação do objeto pesquisado se dará por via de uma abordagem
essencialmente dialética, o que significa dizer que permanentemente serão
confrontadas tese e antítese em busca de novas sínteses. Vale dizer que os
fundamentos da substituição do velho pelo novo serão buscados nas fraturas do
ordenamento justrabalhista, cujas fissuras haverão de ser colmatadas pelo cimento
da axiologia ambiental.
Como restará claro no item destinado à bibliografia, muitos serão os
doutrinadores invocados. Na obra de vários deles serão denunciados traços de
conservadorismo jurídico. De outros tantos serão extraídos aportes ético-positivistas,
úteis à contribuição que se intentará emprestar para a construção de um ramo
jurídico que poderá ser autonomamente reconhecido como Direito Ambiental do
Trabalho, cuja tutela jurisdicional coletiva demandará a conformação de um ‘devido
processo constitucionalmente estruturado e ambientalmente justo’.
22
CAPÍTULO I
A EVOLUÇÃO DO ESTADO MODERNO E AS SUAS RELAÇÕES COM O MEIO AMBIENTE NATURAL E DO TRABALHO
1 O ESTADO LIBERAL
1.1 NOTÍCIA HISTÓRICA
Como é de elementar domínio, o acontecimento histórico que mais
marcadamente contribuiu para o advento do Estado Liberal foi a chegada da
burguesia ao poder na França revolucionária do final do século XVIII1.
Não interessa ao presente trabalho, contudo, analisar os meandros da ruptura
dos burgueses com o absolutismo do ancien régime2. Impõe-se, notadamente, a
tarefa de perquirir as bases jurídicas que caracterizaram o Estado que emergiu da
hegemonia burguesa.
Assim é que serão abordados, na estrita medida do necessário – não mais – ,
os principais aspectos envolvidos no rompimento ocorrido, pois que eles explicarão,
satisfatoriamente, os fundamentos característicos do Estado Liberal.
Na França que antecedeu à revolução, consoante se sabe, os servos eram
separados das pessoas livres. Já esta última faceta da população (a das pessoas
livres) era basicamente dividida em três estamentos, conhecidas como clero (1º
estado), nobreza (2º estado) e povo (3º estado), estando inserida, nesta última
categoria (povo ou terceiro estado), a burguesia. Acima dos mencionados estados
sobrepairava o poder absoluto e autoritário do rei.
Com o impulso do capitalismo, porém, principalmente a partir do século XVIII,
a parcela do povo conhecida como burguesia ascende ao domínio econômico, mas,
paradoxalmente, continua politicamente subjugada ao império absolutista do
monarca. Embora parasitários, ademais, o clero e a nobreza gravitavam muito mais
1 Tal assertiva não significa menosprezo, evidentemente, a outros elementos que contribuíram, notadamente na Inglaterra, para o estabelecimentos dos alicerces do Estado Liberal, como as proposições de John Locke, nas quais se enxergam, por exemplo, o embrião da teoria de separação dos poderes, melhor desenvolvida na França, ao depois, por Montesquieu. Vide, a propósito, BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 44 et seq. 2 Sugere-se, para aqueles que desejarem se aprofundar nos aspectos históricos da revolução burguesa, a leitura de TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. 2 ed. São Paulo: Livraria Peirópolis, 2002, p. 43 et seq.
23
próximos ao centro do poder político do que a burguesia. Estava montado, a partir
de então, o cenário propício à ruptura institucional.
A respeito do relacionamento da burguesia com os reis, bem como dos
contornos conjunturais que abririam ensanchas à revolução liberal-burguesa, vale
transcrever a lição de José Damião de Lima Trindade:
(...) Entre os séculos XV e XVII, quando os reis europeus
foram bem-sucedidos na luta contra a antiga dispersão do poder entre os senhores feudais, a burguesia deu-lhes apoio, pois isso representava certo alívio dos laços senhoriais sobre suas atividades econômicas nas cidades e no comércio entre as regiões de cada país. Vários desses soberanos chamados de absolutistas – porque concentraram poderes políticos absolutos em suas mãos – notabilizaram-se como ‘déspotas esclarecidos’, sensíveis às renovações que estavam em curso, estimulando a economia e as artes. (...) Mas, na segunda metade do século XVIII, essa utilidade inicial do absolutismo se esvaíra para a burguesia, pois, sendo já uma classe muito forte, ele passou a significar apenas sua eterna marginalização do poder político.
(...) Esse quadro logo seria piorado dramaticamente por uma séria crise econômica e política, que lançaria as massas populares numa atividade contestatória sem precedentes e possibilitaria o florescimento dos porta-vozes revolucionários da burguesia – que, então, passaria a falar em nome de todo o terceiro estado. (...)3
Como pontuado mais atrás, o presente trabalho não se guia pelo intento de
detalhar o processo político que culminou na tomada do poder pela burguesia, o que
de resto seria tarefa de uma pesquisa histórica e não jurídica.
Vale tão-somente realçar, neste contexto, que a revolução burguesa, na
essência, significou a reunião do domínio econômico com o poder político nas mãos
de uma nova elite dirigente burguesa, que, assim, superou historicamente o
absolutismo monarca.
Para que esta nova ordem pudesse se estabelecer, foi necessária,
obviamente, a criação de um novo modelo de Estado, chamado liberal, que trouxe
consigo todo um arcabouço de novos direitos, hoje conhecidos como direitos de
liberdade ou de primeira geração, que, basicamente, reclamavam um
comportamento abstencionista do Estado em relação à dinâmica da vida em
sociedade.
3 TRINDADE, José Damião de Lima. Ibid. p. 32 e 33.
24
1.2 A ORDEM JURÍDICA LIBERAL-BURGUESA
Consoante se sabe, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão -
aprovada pela Assembléia Nacional Constituinte francesa em 26 de agosto de 1789
– foi o documento histórico que inaugurou a ordem jurídica liberal.
Não é a toa que Norberto Bobbio esclarece que “os historiadores estão de
acordo em considerar que esse ato representou um daqueles momentos decisivos,
pelo menos simbolicamente, que assinalam o fim de uma época e o inicio de outra,
e, portanto, indicam uma virada na história do gênero humano”4. Afinado no mesmo
diapasão, José Damião de Lima Trindade aduz, sem meias palavras, que a Carta
em questão “é considerada o atestado de óbito do Antigo Regime”5.
Ocorre que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão consagrou no
seu bojo os chamados direitos de liberdade. Não é por outro motivo, aliás, que logo
no seu artigo 1º estabeleceu que os homens nascem e são livres e iguais em
direitos, explicitando, no artigo 2º, que os direitos naturais e imprescindíveis do
homem são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
Pode-se afirmar, sem maior temor de equívoco, que a opção da burguesia em
aclamar como os seus postulados máximos o direito à liberdade, à propriedade e à
segurança seja autoexplicativa.
A liberdade, obviamente, fundamenta-se na afirmação do desprendimento
burguês do jugo absolutista da monarquia. Se o rei controlava com mão de ferro a
vida dos indivíduos, o novo centro do poder deveria adotar um comportamento
passivo, não se imiscuindo no interior das relações contratuais protagonizadas por
homens naturalmente iguais.
A propriedade, outrossim, não passa de uma reproclamação de que os meios
de produção pertencem à nova elite dirigente, que deles podem se valer sem
amarras ou quaisquer limitações, pois, afinal, do Estado se espera uma conduta
abstencionista em face dos interesses de índole privada.
A segurança, enfim, é o elemento imprescindível para que a burguesia
mantenha a hegemonia do pensamento liberal através dos tempos. A previsibilidade
jurídica, com efeito, passa a ser um valor cultuado incessantemente e com férrea
devoção. 4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 1 ed. (14 tiragem). Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 85. 5 TRINDADE, José Damião de Lima. Op. Cit. p. 53.
25
Percebe-se, pois, que muito embora sejam inegáveis os avanços históricos
empreendidos pelo liberalismo, a real intenção da classe que assumiu o poder era o
de, dissimuladamente, reerguer o absolutismo sobre o alicerce da sua égide.
Foi justamente por isso que, no dizer de Luiz Guilherme Marinoni, “o Estado
Liberal de Direito (...) erigiu o princípio da legalidade como fundamento para a sua
imposição”6. É de se indagar nesta quadra do estudo, de tal arte, quais teriam sido
as conseqüências concretas da assunção do legalismo como o principal vetor
jurídico do liberalismo.
Como é de curial inferência, a noção de legalidade reside na corriqueira
formulação de que a lei é a fronteira da liberdade. Deste modo, ao mesmo passo
que o cidadão pode fazer tudo o que não esteja expressamente proibido em lei, o
administrador público somente pode atuar dentro daquilo que a lei explicitamente lhe
permite. Resta claro, com efeito, que o princípio da legalidade, em última instância,
visa proteger a burguesia, enquanto classe dirigente, de todo e qualquer desmando
estatal.
É certo que o leitor mais desavisado poderia redargüir a conclusão contida no
final do parágrafo anterior, sob a alegação de que mais do que à burguesia, a
legalidade almejaria tutelar todos os indivíduos do arbítrio do Estado. Nada mais
equivocado. Ocorre que muito embora a questão da igualdade seja uma das
preocupações do Estado Liberal, ela sempre foi encarada, nos estreitos limites do
legalismo, por uma ótica meramente formal. Aos olhos do liberalismo, afinal de
contas, todos os homens são naturalmente - e convenientemente - iguais.
Vale transcrever aqui, a propósito do quanto asseverado, o magistério de
Dalmo de Abreu Dallari, que sem deixar de realçar os avanços históricos do
liberalismo, demonstra, muito claramente, a sua despreocupação para com a
questão da igualdade substancial:
O Estado liberal, com um mínimo de interferência na vida
social, trouxe, de início, alguns inegáveis benefícios: houve um progresso econômico acentuado, criando-se as condições para a revolução industrial; o indivíduo foi valorizado, despertando-se a consciência para a importância da liberdade humana; desenvolveram-se as técnicas de poder, surgindo-se e impondo-se a idéia do poder legal em lugar do poder pessoal. Mas, em sentido contrário, o Estado liberal criou as condições para sua própria
6 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 23.
26
superação. Em primeiro lugar, a valorização do indivíduo chegou ao ultra-individualismo, que ignorou a natureza associativa do homem e deu margem a um comportamento egoísta, altamente vantajoso para os mais hábeis, mais audaciosos e menos escrupulosos. Ao lado disso, a concepção individualista da liberdade, impedindo o Estado de proteger os menos afortunados, foi a causa de crescente injustiça social, pois, concedendo-se a todos o direito de ser livre, não assegurava ninguém o poder de ser livre. Na verdade, sob pretexto de valorização do indivíduo e proteção da liberdade, o que se assegurou foi uma situação de privilégio para os que eram economicamente fortes. E, como acontece sempre que os valores econômicos são colocados acima de todos os demais, homens medíocres, sem nenhuma formação humanística e apenas preocupados com o rápido aumento de suas riquezas, passaram a ter o domínio da Sociedade.7
Dito de outro modo, pode-se afirmar que o liberalismo jamais importou-se com
as diferenças concretamente existentes entre as classes sociais. Ao desprezar a
noção de hipossuficiência, o novo modelo estatal abortou todas as possibilidades de
se mirar o tema da igualdade por um viés substancial, delegando esta tarefa
histórica, como adiante demonstrar-se-á, ao Estado de raiz social. Pode-se dizer,
conclusivamente falando, que direito liberal sempre foi e sempre será um direito de
classe, apto a satisfazer, juridicamente, os intentos da burguesia.
Feitas tais considerações, não chega a ser uma empreitada demasiadamente
complexa a de compreender por qual motivo alguns juristas ainda teimam em reduzir
a grandeza do direito à indigência da lei. Surge, aqui, o problema do positivismo
jurídico, sobre o qual Luiz Guilherme Marinoni manifesta-se de modo magistral:
O positivismo jurídico é tributário da concepção liberal do
direito, pois, partindo da idéia de que o direito se resume à lei, limita a vontade do jurista à descrição da lei e à busca da vontade do legislador.
(...) A mera observação e descrição da norma constitui o ponto
caracterizador do positivismo jurídico, que dessa forma pode ser visto como uma ciência cognoscitiva ou explicativa de um objeto, isto é, da norma positivada. Por constituir explicação da norma, o positivismo difere nitidamente da atividade de produção do direito, ou da atividade normativa, pois a tarefa do jurista positivista é completamente autônoma em relação à atividade de produção do direito (...).
(...) O positivismo jurídico não apenas aceitou a idéia de que o
direito deveria ser reduzido à lei, mas também foi o responsável por 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 19 ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 235.
27
uma inconcebível simplificação das tarefas e das responsabilidades dos juízes, promotores, advogados, professores e juristas, limitando-se a uma aplicação mecânica das normas jurídicas na prática forense, na universidade e na elaboração doutrinária.
Isso significa que o positivismo jurídico, originalmente concebido para manter a ideologia do Estado Liberal, transformou-se, ele mesmo, em ideologia. Nessa dimensão, passou a constituir a bandeira dos defensores do status quo ou dos interessados em manter a situação consolidada pela lei. Isso permitiu que a sociedade se desenvolvesse sob um asséptico e indiferente sistema legal ou mediante a proteção de uma lei que, sem tratar de modo adequado os desiguais, tornou-os iguais em carne e osso mais desiguais ainda.8
Da assunção do positivismo como aspecto particular da ideologia liberal, são
passíveis de serem extraídas algumas conclusões que, muito embora se constituam
em verdadeiros obviedades, não chegam a ser de domínio geral.
Ora, se a lei é o epicentro do universo jurídico liberal-burguês, é de se
perceber que o Legislativo - com as suas cadeiras devidamente ocupadas pelos
prepostos do grupo social hegemônico - será encarado pelo liberalismo como o mais
estratégico dos Poderes, na medida em que ele sempre estará apto a subjugar, com
o seu vigor desmesurado, o Executivo e o Judiciário. Não é por outra razão que na
célebre formulação de Montesquieu, ao juiz não seria destinado nada além do que o
aviltante papel de mera bouche de la loi.
Em última instância, portanto, tudo o que importava ao Estado Liberal era que
a lei, encarada como a máxima expressão do direito, fosse capaz de garantir a
necessária segurança jurídica para que a classe dirigente pudesse exercitar, sem
quaisquer freios, o seu sagrado direito de propriedade. Isso explica, como se verá
adiante, a atitude permissiva do liberalismo para com a degradação ambiental.
1.3 A RELAÇÃO DO ESTADO LIBERAL COM O MEIO AMBIENTE
Até mesmo em virtude do momento em que o Estado Liberal nasceu e se
desenvolveu, a questão ambiental jamais esteve inserida nas suas preocupações.
Ocorre que entre o final do século XVIII e o início do século XX, os bens naturais
eram enxergados como inesgotáveis, ficando, pois, à mercê da exploração ilimitada
para fins econômicos.
8 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit. p. 29 e 30.
28
Tudo o que interessava à burguesia, dessarte, era o estabelecimento de um
padrão dito desenvolvimentista, que lhe permitisse a ampliação indefinida da sua
riqueza.
Aliás, como já entrevisto anteriormente, o liberalismo possuía uma visão
sacralizada do direito de propriedade, que fora proclamado, ao lado da liberdade
burguesa e da segurança jurídica, como um dos seus pilares essenciais.
Esse ideal de quase deificação do direito de propriedade, reconhecia ao
proprietário a possibilidade de fruir irrestritamente do seu domínio patrimonial, sem
se ver compelido a cumprir qualquer compromisso de utilização socialmente
responsável dos bens naturais que estavam à sua disposição.
Nos dias atuais, uma vez pousados os olhos no passado, fica fácil
compreender, com efeito, os fatores políticos e estruturais que culminaram na
geração de uma sociedade altamente consumista, alienada e descomprometida com
a questão ambiental, que assume, consciente ou mesmo inconscientemente, o
perigo de conviver, quotidianamente, com os riscos de uma crescente degradação
da experiência humana no planeta Terra.
Diante de todo o contexto descrito, torna-se quase despiciendo realçar que o
liberalismo, que sequer ajustou o seu pacto político fundacional à necessidade de
preservação do equilíbrio ambiental natural, jamais se preocupou com as questões
que diziam respeito a uma dimensão racionalizadora do meio ambiente artificial, nele
envolvidos, evidentemente, os aspectos urbanos e trabalhistas.
Não é por outra razão que os problemas ambientais laborais advindos da
Revolução Industrial foram um dos elementos que conspiraram a favor da superação
do Estado Liberal pelo social.
Mas este é um aspecto a ser estudado em apartado.
2 O ESTADO SOCIAL
2.1 JUSTIFICAÇÃO HISTÓRICA
“Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo”9. Foi justamente
com tais palavras que Friedrich Engels e Karl Marx iniciaram, em 1848, as primeiras
9 ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 65.
29
linhas do preâmbulo do Manifesto do Partido Comunista. Na seqüência
acrescentaram: “todas as potências da velha Europa uniram-se numa santa caçada
a esse espectro, o papa e o czar, Metternich e Guizot, radicais franceses e policiais
alemães”10.
Aqui há de se pontuar, antes de tudo, que Engels e Marx não renegaram, no
mencionado documento, a relevância do processo histórico de tomada do poder pela
burguesia. Traz-se, a corroborar o afirmado, um breve excerto do Manifesto:
(...) Vemos, portanto, como a própria burguesia moderna é o
produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções nos meios de produção e de troca.
Cada uma dessas etapas de desenvolvimento da burguesia foi acompanhada por um progresso político correspondente. (...)
A burguesia desempenhou na história um papel extremamente revolucionário.
Onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Dilacerou impiedosamente os variegados laços feudais que ligavam o ser humano a seus superiores naturais (...).11
Por outra vertente, no entanto, faz-se ainda necessário deixar bastante claro
que Marx e Engels, ao redigirem o Manifesto do Partido Comunista, estavam ditando
– com o perdão da máxima acaciana - as bases teóricas da substituição da
burguesia pelo proletariado enquanto classe dirigente. Colaciona-se, a propósito do
quanto asseverado, vez mais, alguns fragmentos do Manifesto:
Na mesma proporção em que se desenvolve a burguesia, ou
seja, o capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários modernos, que vivem apenas na medida em que encontram trabalho e só encontram trabalho na medida em que seu trabalho aumente o capital. Tais operários, obrigados a se vender peça por peça, são uma mercadoria como qualquer outro artigo do comércio e estão, portanto, expostos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado.
(...) Qual a relação dos comunistas com os proletários em geral? Na prática (...) os comunistas constituem a parte mais
resoluta dos partidos operários de todos os países, a parte que impulsiona sempre mais avante; quanto à teoria, têm sobre a restante massa do proletariado a vantagem de uma compreensão das condições, do andamento e dos resultados gerais do movimento proletário.
10 ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Id. 11 ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Ibid. p. 68.
30
O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários: constituição do proletariado em classe, derrubada da dominação da burguesia, conquista do poder político pelo proletariado.
(...) Todas as relações de propriedade estiveram sempre
submetidas a uma contínua modificação histórica, a uma contínua transformação histórica.
A Revolução Francesa, por exemplo, aboliu a propriedade feudal em favor da propriedade burguesa.
O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa.
Mas a moderna propriedade privada burguesa é a última e mais perfeita expressão da fabricação e apropriação de produtos que se baseia em antagonismos de classes, na exploração de uns por outros.12
Sintetizando as idéias veiculadas no instrumento em estudo, pode-se dizer
que o objetivo estratégico dos comunistas, enquanto vanguarda do proletariado, era
o de arrancar o poder político das mãos da burguesia, fazendo-o em nome da classe
trabalhadora pela via da ruptura revolucionária, para, enfim, expungir o sacrossanto
direito burguês à propriedade privada.
Assim é que não custa reenfatizar que Engels e Marx advertiram, já no
primeiro parágrafo do preâmbulo do Manifesto, que todas as forças antagônicas aos
comunistas, desde o Papa até os radicais franceses, passando pelo czar, se
organizaram para combater o fantasma do comunismo.
Um dos efeitos dessa organização, sem dúvida, foi estabelecimento das
bases do chamado Estado Social, que se fez substituir historicamente ao Estado
Liberal, em um processo de mimetização que garantiu a permanência dos donos do
capital no centro do poder político.
Calha iluminar, à guisa de exemplificação acerca do verberado, o lapidar
raciocínio empreendido por José Damião de Lima Trindade, ao aduzir que o Papa
Leão XIII, em 1891, “preocupado em (...) assegurar a sobrevivência da igreja,
publicou sua encíclica Rerum Novarum (‘Das coisas novas’), evidente esforço de
réplica a O capital, de Karl Marx”13.
Importante recordar, na esteira dos fatos, que o ápice da luta política do
proletariado para chegar ao poder ocorreu na Rússia, em outubro de 1917, ocasião
em que os bolcheviques - depois da derrubada do czar Nicolau II pelas massas
12 ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Ibid. p. 72, 79 e 80. 13 TRINDADE, José Damião de Lima. Op. cit. p., 149.
31
populares em fevereiro daquele mesmo ano -, liderados por Lênin, tomaram o
governo nas suas mãos, passando a construir, a partir de então, os alicerces de uma
sociedade que, abolindo a propriedade privada, se reivindicava sem classes.
Intuitivamente, foi justamente em 1917 que uma Constituição, no caso a
mexicana, inseriu pela primeira vez no seu corpo os chamados direitos sociais de
índole trabalhista. Seguindo seus passos, também a Constituição alemã de Weimar,
já em 1919, adotou idêntica conduta.
Tais cartas políticas, obviamente, não eram documentos propriamente
generosos e impregnados de grandeza humana, seus respectivos propósitos, às
escâncaras, eram o de fazer algumas pequenas concessões às forças
potencialmente revolucionárias, colimando o escopo inescondível de inviabilizar
qualquer insurreição capaz de cambiar o centro do poder político. Calha trazer a
lume, relativamente ao asseverado, as palavras de Cláudia Derani:
O direito de propriedade do século XX transforma a antiga
visão individualista, pela prescrição do princípio da função social da propriedade, que encontra nas Constituições do México, 1917, e de Weimar, 1919, suas primeiras manifestações. Esta gênese, há de se ver, não foi aleatória. O que havia no México de 1917 e na Alemanha de 1919 era a forte ameaça de um choque social desintegrador nas relações de propriedade instituídas, respectivamente pelos movimentos Zapatista e operários-socialistas que se opunham ao egoísmo legalizado e à exclusão dos indivíduos da sociedade em fruir de um patrimônio que, embora sob domínio privado, são bens que referenciam uma sociedade e concorrem para a formação de sua identidade.14
O fragmento retro transcrito reforça a ideia esgrimida no trabalho vertido, no
sentido de que os ideais socializantes não passaram de um engodo, que no afã de
evitar os efeitos devastadores das insurreições em curso, trouxeram à ribalta um
antídoto poderoso contra a insatisfação popular.
Percebe-se, pois, que tais soluções históricas sinalizam, insofismavelmente,
para um rearranjo ideológico do poder hegemônico, que no afã de perpetuar
inalterado o statos quo, deliberou por fazer algumas concessões aos setores
marginalizados da sociedade. Estavam plantadas as balizas, a partir de então, para
o nascimento do Estado Social.
14 DERANI, Cristiane. Tutela jurídica da apropriação do meio ambiente e as três dimensões da propriedade. In Hiléia: Revista de direito ambiental da Amazônia, Manaus, v.1, n.1, agosto-dezembro 2003, p. 73.
32
2.2 A ORDEM JURÍDICA NO ESTADO SOCIAL
Muito embora seja possível elencar algumas lutas organizadas dos
trabalhadores - tais como as reivindicações obreiras surgidas com as mazelas da
Revolução Industrial - no processo de afirmação dos direitos sociais, o fato concreto,
como já elucidado, é que os anteditos direitos foram muito mais uma concessão
calculista dos burgueses para com os operários, do que propriamente uma conquista
destes últimos em face daqueles primeiros.
Transcreve-se mais uma vez, para ilustrar o afirmado no parágrafo anterior,
as palavras de José Damião de Lima Trindade, que embora focadas na problemática
do trabalho escravo, calham justas para confirmarem o ponto de vista defendido:
(...) no século XIX, a experiência européia ocidental já
demonstrava que, com a consolidação do capitalismo, era mais barato empregar trabalhadores assalariados (isso limitava a responsabilidade patronal ao pagamento de salários e a pouca coisa mais), os operários produziam mais (aterrorizados pelo desemprego) e o trabalho remunerado favorecia a criação de mercados para produtos das indústrias. Além disso, o capitalismo já havia ‘resolvido’ à sua maneira o problema da escassez de força de trabalho: as fábricas, mecanizadas de propriedade burguesa (...) haviam gerado na Europa uma superpopulação relativa (o ‘exército industrial de reserva), que se tornava ainda mais vasta a cada nova crise econômica, colocando à disposição dos empresários das Américas ondas inesgotáveis de imigrantes resignados a qualquer trabalho para não sucumbirem à fome. (...)15
Assentada esta primeira premissa, faz-se necessária, doravante, a
demonstração das principais conseqüências políticas do reconhecimento dos direitos
sociais na ordem jurídica emergida com o Estado Social, sendo de se afiançar, de
antemão, que elas não foram demasiadamente drásticas.
Não há como negar, obviamente, que os chamados direitos sociais, ainda que
paliativos, possuem extraordinária importância. Basta compreender que se de um
lado os direitos de primeira geração são afinados com a liberdade, os de segunda
geração são comprometidos com a igualdade, encarada, finalmente, em uma
perspectiva substancial e não mais meramente formal.
Dito de outro modo, pode-se afirmar que o Estado Social reconheceu aquilo
que embora óbvio, não era admitido pelo seu antecessor: o fato de que os cidadãos
15 TRINDADE, José Damião de Lima. Op. cit. p. 141.
33
não são iguais. Ao aceitar a diferença, o Estado necessariamente se desloca do
abstencionismo para o proativismo, enaltecendo, com o status da fundamentalidade,
os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer e que tais, que
devem, a partir de então, ser implementados pelo ativismo estatal.
Demais disso, no campo do Direito do Trabalho, que é aquele que mais de
perto interessa ao presente estudo, o Estado Social apreende a lancinante
disparidade existente entre os sujeitos do contrato trabalhista, razão pela qual
decide se imiscuir na contenda entre capital e labor, para, com o seu comportamento
tuitivo da hipossuficiência obreira, equilibrar legislativamente uma relação
naturalmente desequilibrada. Nesse momento, com efeito, o direito contratual deixa
pela primeira vez de ser o campo privilegiado da ilimitada autonomia privada.
Politicamente, contudo, o Estado Social não carrega consigo maiores
diferenças do seu predecessor liberal. Ocorre que, na essência, o Estado nascente
prosseguiu absolutamente comprometido com o princípio da legalidade, que, sob a
égide doutrinária do positivismo, continuou a garantir aos detentores do capital a
inviolabilidade da propriedade e a mais absoluta previsibilidade jurídica.
Para a demonstração do anteriormente afirmado, é de se reproduzir mais uma
vez a preleção de Lima Trindade sobre o conteúdo da encíclica Rerum novarum,
documento que mais do que qualquer outro inspirou, consabidamente, o Estado
então nascente: Ao mesmo tempo em que demarcava escrupulosa distância
do socialismo – qualificado como ateu, falso, inoculador do ódio entre as classes, sociais -, essa encíclica lamentava os males sociais produzidos pelo capitalismo, defendia salários justos e o direito à reivindicação dos trabalhadores, admitindo até que, em situações extremas, fizessem greves. Mas sentenciava que a desigualdade, o direito de propriedade e a existência de classes sociais são ‘naturais’ na condição humana e, portanto, impassíveis de serem alteradas.16
Como consequência natural desta visão enviesada, o Código Civil continuou,
ao fim e ao cabo, a ser centro do universo jurídico no Estado Social, ficando a
Constituição, mais do que nunca, relegada à condição de mera norma programática.
2.3 A RELAÇÃO DO ESTADO SOCIAL COM O MEIO AMBIENTE
16 TRINDADE, José Damião de Lima. Ibid. p. 149.
34
Historicamente falando, o Estado Social foi iniludivelmente o primeiro a se
defrontar concretamente com a questão ambiental, fazendo-o, ao contrário do que
poderia ser imaginado pelos mais desavisados, por via do meio ambiente artificial,
mais precisamente do meio ambiente de trabalho.
Como é palmar, muito antes da Conferência de Estocolmo de 1972, tida pelos
juristas como a certidão de nascimento do Direito Ambiental, o ainda incipientíssimo
Estado Social foi obrigado a dar resposta aos dramáticos infortúnios ambientais-
laborais vivenciados pelos trabalhadores nas fábricas que emergiram no mundo
civilizado a partir do advento da Revolução Industrial.
O fato, entrementes, foi que o direito social de natureza trabalhista nem de
longe conseguiu outorgar solução adequada aos problemas desde sempre
enfrentados pela classe trabalhadora, que, diga-se de passagem, até hoje vem
pagando com a vida dos seus membros pela negligência do Estado Social que,
convenientemente, optou - conforme se demonstrará pormenorizadamente no
momento adequado - pela monetização da saúde dos trabalhadores, como se
integridade física do ser humano pudesse ser tratada em consonância com a lógica
de um simples contrato de compra e venda.
No âmbito natural, como entrevisto, foi somente em 1972, já na transição para
o Estado Democrático de Direito, que o Estado Social passou a demonstrar alguma
preocupação palpável para com as catástrofes ambientais que vinham se
acumulando ao longo dos tempos.
E não poderia ser diferente. Ocorre que como efetivamente demonstrado
alhures, o Estado Social que muito mais se sobrepôs do que efetivamente substituiu
o Estado Liberal, continuou notadamente comprometido com égide do legalismo que
mantinha inalterada a inviolabilidade da propriedade, além de preservar o ideal
capitalista da previsibilidade jurídica.
Em última razão, o Estado Social, ambientalmente falando, muito pouco se
diferiu do Liberal, vez que continuou apegado à lógica pura e simples do
desenvolvimentismo, sem demonstrar qualquer compromisso sincero para com a
sustentabilidade, fato que conduziu o professor Vasco Pereira da Silva, catedrático
da Universidade Clássica de Lisboa, a vaticinar que “o Estado Social desconhecera
em absoluto o problema da ecologia, imbuído como estava da ‘ideologia optimística’
35
do crescimento econômico, qual ‘milagre’ criador de progresso e de qualidade de
vida” 17.
Obviamente, um Estado de natureza tão condescendente para com os
interesses do capital, decididamente não seria aquele que exigiria do proprietário,
para além da retórica, um efetivo cumprimento da função social da propriedade. O
desvencilhamento desta tarefa histórica, como adiante ver-se-á, estava reservado
para o Estado Democrático-Ambiental de Direito.
3 O ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO
3.1 PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO HISTÓRICA: O ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO
Chega-se, agora, a um dos pontos sensíveis do trabalho que vem sendo
desenvolvido, já que será necessária, doravante, a demonstração de que as
instituições políticas contemporâneas estão a desenhar o projeto político de um
Estado tachado como Democrático-Ambiental de Direito.
Assinala-se, logo de plano, que a presente dissertação não defende, de modo
algum, que o aludido Estado já exista. Tudo o quanto foi escrito anteriormente, aliás,
deixa no mínimo subentendida a noção de que os diversos modelos estatais são
dialeticamente constituídos em permanentes processos de interpenetração. Assim é
que as diversas gerações de direitos transmutam-se pelos tempos em intermináveis
ciclos de teses, antíteses e sínteses.
Todos e quaisquer modelos estatais, em resumo, começam a ser gestados
antes mesmo que os seus antecessores feneçam. A bem da realidade, pelo menos
no atual estágio do desenvolvimento humano, as dimensões de direitos muito mais
se somam que se subtraem, ressignificando, paulatinamente, os valores éticos da
vida em sociedade.
Os Estados Liberal e Social apostavam todas as suas fichas no legalismo em
nome da segurança jurídica. Neles, o Direito, diminuído à esterilidade da lei, apartou-
se completamente da moral. Não era por outro motivo que as universidades 17 SILVA, Vasco Pereira da. Verdes são também os direitos do homem. In Verdes são também os direitos do homem; responsabilidade administrativa em matéria de ambiente. Cascais: Principia, 2000, p. 09.
36
despejavam sobre os jejunos, logo nas primeiras lições da disciplina chamada de
Introdução ao Estudo do Direito, a teoria dos círculos concêntricos de Bentham18, de
modo a enfatizarem o limbo jurídico a que estavam relegadas os condutas morais. A
ciência jurídica, em última instância, ansiava por mostrar-se neutra.
Apesar disso tudo, alguns eventos nefandos para a história da civilização
humana, como, por exemplo, o fascismo e o nazismo, se incumbiram de demonstrar
aos povos, principalmente no cenário pós segunda guerra, o quanto a idéia do
legalismo exacerbado se mostrava equivocada, já que foi justamente em nome da
reverência à legalidade que se cometeram as maiores barbaridades de que se têm
notícias na história recente. Tem-se, a respeito, o escólio de Luís Roberto Barroso: (...) a decadência do positivismo é emblematicamente
associada à derrota do fascismo na Itália e do Nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da segunda Guerra Mundial, a idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido.19
A irrefutável constatação da estreiteza do positivismo, abriu as portas para
mais um salto qualitativo na evolução do Direito. Estava iniciada, a partir de então, a
era do Estado Democrático de Direito, que apostando na força normativa dos
princípios, viu-se compelido a transferir os valores constitucionais do patamar
subalterno da coadjuvância para o andar elevado protagonismo jurídico. Direito e
moral, finalmente, se amalgamavam. Inaugurava-se, pois, o pós-positivismo jurídico,
também conhecido por positivismo ético, como demonstra Luís Roberto Barroso: A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político
do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A
18 Conferir, v.g., PAUPÉRIO, Artur Machado. Introdução ao estudo do direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 55, ao dizer: “Bentham representou a moral e o direito por dois círculos concêntricos, dos quais o menor representaria o campo do direito e o maior o campo da moral.” 19 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 351.
37
valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre o Direito e a ética.20
A grande novidade que aparece no cenário jurídico com a superação do
legalismo, de tal arte, é a constatação de que os princípios constitucionais, além de
possuírem força normativa, não raramente entram em rota de colisão uns com os
outros, sem que entre eles exista uma graduação prévia, seja valorativa ou temporal,
capaz de apontar com clareza as respostas necessárias para a solução dos
imbróglios que se instauram na pluralidade social.
Descortina-se para o exegeta, daí em diante, o problema da ponderação de
valores constitucionais, com o qual foram derruídas, via de consequência, as
vetustas regras hermenêuticas de resolução de antinomias legais baseadas em
anterioridade e hierarquia. A ordem jurídica sofre, com efeito, a mais extraordinária
transformação que se tem notícia.
3.2 A ORDEM JURÍDICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Como já suficientemente apontado, o centro da ordem jurídica, tanto no
Estado Liberal quanto no Social, era o direito de propriedade. Foi justamente para a
sua honra e louvor que a legalidade sempre exibiu e manejou as poderosas armas
de que dispunha.
Consoante igualmente restou esclarecido, outrossim, a noção do Estado
Democrático de Direito nasceu na quadra histórica da violação dos direitos de
personalidade pelo nazismo e pelo fascismo. Ficou muito evidente para todos,
politicamente falando, que em nome da legalidade foram cometidas inenarráveis
atrocidades contra a espécie humana.
Ocorre, com a vinda a lume do Estado Democrático de Direito, via de
consequência, uma amplíssima ressignificação do princípio da legalidade. A lei,
muito embora conservando grande importância, deixa finalmente de ser a expressão
máxima do Direito. Como não poderia deixar de ser, o papel do juiz também se 20 BARROSO, Luís Roberto. Ibid. p. 351 e 352.
38
transforma por completo. O magistrado, que até então era a mera boca da lei, passa
a ser o aquele sujeito que, interpretando o texto legal, dele extrai a norma enquanto
ideal de justiça21.
O ofício de julgar, dessarte, deixa de ser visto como uma simples operação
silógica de subsunção do fato à lei, para, então, ser exercitado dentro de um
paradigma essencialmente axiológico, cujo valor primordial é a exaltação
constitucional das virtudes humanas em detrimento do patrimonialismo.
Sobre a extraordinária ressignificação do princípio da legalidade, calha
reproduzir, mais uma vez, a primorosa preleção do Professor Luiz Guilherme
Marinoni, citando, dentre outros, autores de nomeada como Gustavo Zagrebelsky: Diante do atual contexto de formação da lei e das novas
fontes de produção do direito, não há mais como pensar em norma geral, abstrata, coerente e fruto da vontade homogênea do parlamento.
Por consequência, o princípio da legalidade obviamente não pode mais ser visto como à época do positivismo clássico. Recorde-se que o princípio da legalidade, no Estado legislativo, implicou na redução do direito à lei, cuja legitimidade dependia apenas da autoridade que emanava. Atualmente, como se reconhece que a lei é o resultado da coalizão das forças dos vários grupos sociais, e que por isso freqüentemente adquire contornos não só nebulosos, mas também egoísticos, torna-se evidente a necessidade de submeter a produção normativa a um controle que tome em consideração os princípios de justiça.
Na verdade, ainda que não houvesse a consciência do pluralismo, somente com uma ausência muito grande de percepção crítica se poderia chegar à conclusão de que a lei não precisa ser controlada, por ser uma espécie de fruto dos bons, que se colocam acima do bem e do mal, ou melhor, do executivo e do judiciário. Ora, a própria história se encarregou de mostrar as arbitrariedades, brutalidades e discriminações procedidas por leis formalmente perfeitas.
Portanto, ainda que se ignorasse a idéia de pluralismo, jamais se poderia concluir que o texto da lei é perfeito, e assim deve ser simplesmente proclamado pelo juiz, apenas por ser o resultado de um procedimento legislativo regular. De modo que se tornou
21 Sobre a diferença entre texto legal e norma, vale reproduzir, aqui, a extraordinária lição de GRAU, Eros Roberto. Interpretação/aplicação do direito.3 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 23: “O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é interpretação do texto normativo. A interpretação é, portanto, atividade que se presta a transformar textos – disposições, preceitos, enunciados – em normas. Daí, como as normas resultam da interpretação, o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, um conjunto de normas. O conjunto dos textos – disposições, enunciados – é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais [Zagrebelsky]. O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. Por isso dizemos que as disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; eles dizem o que os intérpretes dizem que eles dizem [Ruiz e Cárcova].”
39
necessário resgatar a substância da lei e, mais do que isso, encontrar os instrumentos capazes de permitir a sua limitação e conformação aos princípios de justiça. Tal substância e esses princípios tinham que ser colocados em uma posição superior e, assim, foram infiltrados nas Constituições. (...) ‘A lei, dessa forma, perde o seu posto de supremacia, e agora se subordina à Constituição.’
Ao se dizer que a lei encontra limite e contorno nos princípios constitucionais, admite-se que ela deixa de ter apenas uma legitimação formal, ficando amarrada substancialmente aos direitos positivados na Constituição. A lei não vale mais por si, porém depende de sua adequação aos direitos fundamentais. Se antes era possível dizer que os direitos fundamentais eram circunscritos à lei, torna-se exato afirmar que as leis devem estar em conformidade com os direitos fundamentais.
Mas, se essa nova concepção de direito ainda exige que se fale de princípio da legalidade, restou necessário dar-lhe uma nova configuração, compreendendo-se que, se antes esse princípio era visto em uma dimensão formal, agora ele tem conteúdo substancial, pois requer a conformação da lei com a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais.
Diante disso, alguém poderia pensar que o princípio da legalidade simplesmente sofreu um desenvolvimento, já que a subordinação à lei passou a significar subordinação à Constituição, ou melhor, que a subordinação do Estado à lei foi levada a uma última consequência, que nada mais seria do que a ‘lei maior’.
Contudo, essa leitura constitui um reducionismo do significado da subordinação da lei à Constituição. Na verdade, a subordinação da lei à Constituição não pode ser compreendida como mera ‘continuação’ dos princípios do Estado legislativo, pois significa uma ‘transformação’ que afeta as próprias concepções de direito e de jurisdição. 22
Como consequência natural de toda essa avassaladora transformação do
fenômeno jurídico, o direito de propriedade, embora mantendo a nota da
fundamentalidade, deixou de ser a referência gravitacional do ordenamento no
Estado Democrático de Direito, que assim foi transferida para a dignidade da pessoa
humana. A partir de então, passou-se a exigir da propriedade, para muito além de
um mero discurso de boas intenções, o efetivo cumprimento de uma função social.
Nesse instante, os direitos do homem, que no máximo tinham albergue no
leito do jusnaturalismo, são transformados em direitos humanos e direitos
fundamentais, consoante neles se falem, respectivamente, no âmbito do direito
internacional ou do direito constitucional23. Sobre esse processo histórico de
22 MARINONI, Luiz Guilherme. Op, Cit. p. 43 e 44. 23 Acerca das diferenças entre “direitos do homem”, “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, tem-se como de bom alvitre transcrever o escólio de SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10 ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 29 e 30: “Em que pese sejam ambos (‘direitos humanos’ e ‘direitos fundamentais’) comumente utilizados como
40
afirmação da dignidade humana como valor primordial das democracias ocidentais,
afigura-se importante a leitura das palavras de Flávia Piovesan:
É justamente sob o prisma da reconstrução dos direitos
humanos que é possível compreender, no Pós-Guerra, de um lado, a emergência do chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, e, de outro, a nova feição do Direito Constitucional ocidental, em resposta ao impacto das atrocidades cometidas. No âmbito do Direito Constitucional ocidental, são adotados Textos Constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque para o valor da dignidade humana. Esta será a marca das Constituições europeias do Pós-Guerra. Observe-se que, na experiência brasileira e mesmo latino-americana, a abertura das Constituições a princípios e a incorporação da dignidade humana demarcarão a feição das Constituições promulgadas ao longo do processo de democratização política. Basta atentar à Constituição brasileira de 1988, em particular à previsão inédita de princípios fundamentais, entre eles o princípio da dignidade da pessoa humana.24
Como no presente estudo a atenção está centrada nos ordenamentos
ocidentais, e, mais especificamente falando, no plano do constitucionalismo
brasileiro, os pontos de vista adiante alinhavados terão amirada pousada na relação
do Estado Democrático de Direito com os direitos fundamentais.
4.2.1 – O Estado Democrático de Direito e os Direitos Fundamentais
sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é que o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). A consideração de que o termo ‘direitos humanos’ pode ser equiparado ao de ‘direitos naturais’ não nos parece correta, uma vez que a própria positivação em normas de direito internacional, de acordo com a lúcida lição de Bobbio, já revelou, de forma incontestável, a dimensão histórica e relativa dos direitos humanos, que assim se desprenderam – ao menos em parte (mesmo para os defensores do jusnaturalismo) – da idéia de um direito natural. Todavia, não devemos esquecer que, na sua vertente histórica, os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento, pelo direito positivo, de uma série de direitos naturais do homem, que, neste sentido, assuma uma dimensão pré-estatal e, para alguns, até mesmo supra-estatal. Cuida-se, sem dúvida, igualmente de direitos humanos – considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condição humana – mas, neste caso, de direitos não-positivados. Assim, com base no exposto, cumpre traçar uma distinção, ainda que de cunho predominantemente didático, entre as expressões ‘direitos do homem’ (no sentido de direitos naturais não, ou ainda não positivados), ‘direitos humanos’ (positivados na esfera do direito internacional) e ‘direitos fundamentais’ (direitos reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado).” 24 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 28 e 29.
41
Aqui, antes de tudo, importa definir o que são os direitos fundamentais, além
de delinear quais seriam as suas funções essenciais. Transcreve-se, para a
desincumbência desta tarefa, o sintético e significativo escólio do Professor Paulo
Bonavides, que, diga-se de passagem, escorou-se no pensamento do juspublicista
Konrad Hesse:
Criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na
liberdade e na dignidade humana, eis aquilo que os direitos fundamentais almejam segundo Hesse, um dos clássicos do direito público alemão contemporâneo. Ao lado dessa acepção lata, que é a que nos serve de imediato no presente contexto, há outra, mais restrita, mais específica e mais normativa, a saber: direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tais.25
Vê-se da lição retro transcrita, que os objetivos específicos dos direitos
fundamentais são os de garantir uma vida livre e digna. Esta constatação, embora
importantíssima, não chega propriamente a ser revolucionária, pois, como visto
anteriormente, ao mesmo tempo em que o Estado Liberal intentava tutelar o valor
liberdade – na perspectiva de um ideário burguês, é bem verdade -, o Estado Social,
pelo menos no discurso, almejava garantir a todos um padrão existencial mínimo.
O que haveria, então, de verdadeiramente novo na concepção de direitos
fundamentais arquitetada sob a égide do Estado Democrático de Direito? A
construção da resposta à pergunta formulada, além de multifacetada, é das mais
estimulantes.
Há de se ver, primeiramente, que o Estado Democrático de Direito assume,
abertamente, a ideia de ruptura com o matiz individualista que até então impregnava
a ciência jurídica. Nesta novel etapa histórica, os juristas não têm mais como fugir da
óbvia constatação de que na sociedade de massas e de riscos, os interesses
juridicamente tuteláveis tendem a uma natural transindividualização.
Surgem, pois, para além dos direitos de liberdade e de igualdade, os direitos
de solidariedade, inaugurando-se, via de consequência, uma terceira geração de
interesses, cujo exemplo mais emblemático seria o direito das presentes e futuras
25 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 560.
42
gerações a um meio ambiente equilibrado, capaz de garantir a vida com qualidade e
em abundância26.
Já por outra vertente, aquilo que verdadeiramente distingue no Estado
Democrático de Direito a relação dos juristas com os direitos fundamentais, é a
constatação de que estes últimos, além de possuírem uma dimensão subjetiva e
uma outra objetiva, têm aplicação imediata, sendo dotados de eficácia não só
vertical mas também horizontal. A explicação de todas estas características merece
um estudo mais pormenorizado.
Relativamente às dimensões subjetiva e objetiva, insta enfatizar que se por
um lado os direitos fundamentais geram garantias para os cidadãos, por outro eles
se espraiam ao mesmo tempo pelo interior de todo o ordenamento jurídico, servindo,
assim, de vetor hermenêutico para uma boa subministração da justiça. Pode-se
assentar, em resumo, que a poliface subjetiva dos direitos fundamentais se revela na
capacidade que eles possuem de gestarem interesses a serem concretamente
tutelados em prol do cidadão, ao passo em que o seu aspecto objetivo se materializa
na tarefa que o exegeta desenvolve ao interpretar, seja abstrata ou concretamente,
o fenômeno jurídico.
De outra vertente, a aplicação imediata significa que os direitos fundamentais
não são simples pautas programáticas a serem implementadas no decorrer do
tempo e na medida do possível. Como esclarece Luiz Guilherme Marinoni, se “as
normas constitucionais têm força vinculante, não há razão para o juiz se curvar à
ausência de lei, permitindo que os direitos fundamentais se tornem letra morta”27.
Assim é que, independentemente de regulamentação, o Poder Judiciário tem
a obrigação de materializar todas as promessas fundamentais estampadas no corpo
das Magnas Cartas. Não é por outra razão, por exemplo, que o § 1º do artigo 5º da
Constituição brasileira assevera, com tintas fortes, que “as normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” A corroborar o raciocínio
empreendido, traz-se a lume a preleção do jurista e constituinte originário de 1988,
professor Michel Temer:
26 Existem autores que falam, ainda, na existência da quarta e quinta gerações de direitos, que corresponderiam, respectivamente, aos direitos à democracia e à paz. Vide, a propósito, BONAVIDES, Paulo. Ibid. p. 570 a 572 e 579 a 593. 27 MARINONI. Luiz Guilherme Op. cit. p. 77.
43
É importante observar que os direitos e garantias fundamentais previstos no artigo 5o têm aplicação imediata, segundo o comando expresso no parágrafo 1o do aludido dispositivo. Significa, a nosso ver, que os princípios fundamentais ali estabelecidos podem ser invocados na sua plenitude, até que sobrevenha legislação regulamentadora, quando for o caso de sua utilização. (...)28
Por fim, a eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais aponta,
iniludivelmente, para o princípio da cooperação entre o Estado e os particulares.
Na perspectiva clássica, como é palmar, os direitos fundamentais sempre se
dirigiram contra o Estado, que, assim, estava obrigado a adotar um comportamento
omissivo, sem gerar entraves ao pleno exercício da liberdade burguesa, ou a tomar
um procedimento comissivo, capaz de prover ao cidadão o direito ao trabalho, ao
lazer, à previdência social e outros de semelhante jaez.
Já no desenho contemporâneo, não só o Estado, mas também os particulares
ficam obrigados a satisfazerem os direitos fundamentais dos indivíduos. Um
excelente exemplo desta nova visão transparece, manifestamente, na seara
ambiental, quando o artigo 225, caput, da Constituição brasileira vaticina ser não
apenas da atribuição do Poder Público, mas igualmente da coletividade, o dever de
defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes
e futuras gerações.
É fato que, ainda hoje, ressoa um tanto estranha para alguns a idéia de que
os particulares também estejam obrigados a respeitar e até mesmo a fomentar os
direitos fundamentais dos seus próximos. Tal representação jurídica, porém, não
deveria causar nenhum espanto, na medida em que consabidamente existem em
todo o mundo alguns enormes conglomerados econômicos muito mais poderosos
que a maioria das nações existentes, os quais possuem, de tal arte, um potencial
opressor muito superior ao das mais sangrentas tiranias. Reproduz-se, neste
sentido, a lição de Ingo Sarlet, falando sobre o postulado axiológico da dignidade da
pessoa humana:
Para além desta vinculação (na dimensão positiva e negativa)
do Estado, também a ordem comunitária e, portanto, todas as entidades privadas e os particulares encontram-se diretamente vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, o que
28 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 16 ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 25.
44
implica a existência de deveres de proteção e respeito também na esfera das relações entre particulares. Com efeito, também (mas não exclusivamente) por sua natureza igualitária e por exprimir a idéia de solidariedade entre os membros da comunidade humana, o princípio da dignidade da pessoa vincula também no âmbito das relações entre os particulares. No que diz com tal amplitude deste dever de proteção e respeito, convém que aqui reste consignado que tal constatação decorre do fato de que há muito já se percebeu – designadamente em face da opressão socioeconômica exercida pelos assim denominados poderes sociais – que o Estado nunca foi (e cada vez menos o é) o único e maior inimigo das liberdades e dos direitos fundamentais em geral. Que tal dimensão assume particular relevância em tempos de globalização econômica, privatizações, incremento assustador dos níveis de exclusão e, para além disso, aumento do poder exercido pelas grandes corporações, internas e transnacionais (por vezes, com faturamento e patrimônio – e, portanto, poder econômico – maior que o de muitos Estados), embora não se constitua objeto desta investigação, não poderia passar desapercebido e, portanto, merece ao menos este breve registro.29
Feitas todas estas considerações sobre a ordem jurídica no Estado
Democrático de Direito, será de se demonstrar, adiante, que este novo modelo
estatal tende, atualmente, a solidificar os seus valores na perspectiva de um enfático
compromisso político para com a preservação do equilíbrio ecológico, que aponta
para a gestação do projeto político-constitucional de um Estado Democrático-
Ambiental de Direito.
3.3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A QUESTÃO AMBIENTAL:
SURGE A IDEIA DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO
A agonia do Estado Social - que não conseguiu levar adiante as suas
promessas paternalistas -, associada aos desastres ambientais acontecidos tanto no
âmbito dos regimes capitalista quanto socialista, fizeram com que o Estado
Democrático de Direito viesse a se preocupar cada vez mais com a preservação
ambiental, dando margem à eclosão de um movimento de ecologização do direito
internacional, que, por extensão, atingiu as Constituições nacionais.
O meio ambiente, como se sabe, é uma realidade complexa, que não se
dobra às fronteiras artificialmente estabelecidas pelos homens. Assim é que a
poluição gerada em um território soberano pode tanto atingir outro espaço de igual 29 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 8 ed. rev., atual e
45
natureza, quanto uma zona geográfica comum às civilizações. Tal constatação,
muito embora elementar, é essencial para a compreensão do quanto o mundo, dito
globalizado e interconectado, não passa de uma simples aldeia, cuja administração,
paradoxalmente, se revela cada vez mais complexa e desafiadora.
Reconhecendo tais problemas, os representantes dos diversos países têm se
reunido de tempos em tempos para dialogarem sobre o problema, fazendo-o em
conferências cujo o objetivo primordial é o da extração de consensos, com a
respectiva criação de declarações hábeis à regência da matéria ambiental no plano
internacional. Reproduz-se, fazendo uma retrospectiva não exaustiva dos principais
encontros já ocorridos, a explanação do professor Valerio de Oliveira Mazzuoli:
Somente após a segunda metade do século XX é que
questões ligadas à proteção da natureza passaram a se tornar viáveis no cenário internacional. O primeiro evento internacional de peso, relativo à proteção internacional do meio ambiente, ocorreu em Estocolmo, na Suécia, de 5 a 16 de junho de 1972, com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, na qual se adotou a Declaração sobre o Meio Ambiente Humano, instrumento que viria marcar definitivamente o futuro sistema internacional de proteção ambiental. (...)
Vinte anos mais tarde, realizou-se no Rio de Janeiro (de 3 a 14 de junho de 1992) a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que ficou conhecida com o ECO-92, tendo a ela comparecido delegações de 175 países. A conferência ECO-92 foi a primeira reunião internacional de magnitude a se realizar após o fim da Guerra Fria, tendo representado um marco de revisão conceitual em relação à Conferência de Estocolmo. Tal reunião não foi apenas consequência de um intenso processo de negociações internacionais acerca de questões ligadas à proteção do meio ambiente e ao desenvolvimento. Seus resultados significaram, também, a reafirmação de princípios internacionais de direitos humanos, como os da indivisibilidade e interdependência, agora conectados com as regras internacionais de proteção ao meio ambiente e aos seus princípios instituidores. Os compromissos específicos adotados pela ECO-92 incluem duas convenções, uma sobre Mudança do Clima e outra sobre Biodiversidade, e também uma Declaração sobre Florestas, além de um plano de ação que se chamou Agenda 21, criado para viabilizar a adoção do desenvolvimento sustentável (e ambientalmente racional) em todos os países.
(...) A terceira conferência ambiental das Nações Unidas (a
Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável) aconteceu em Joanesburgo, na África do Sul, em 2002. Sua finalidade foi implementar os princípios aprovados e discutidos no Rio de Janeiro dez anos antes. (...)
ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 127 e 128.
46
A consequência de todo esse processo normativo internacional no campo ambiental tem também reflexos na seara da proteção internacional dos direitos humanos, ainda mais quando se leva em consideração que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, apesar de não ter sido expressamente colocado no texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (na qual somente constam direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais), pertence ao ‘bloco de constitucionalidade’ dos textos constitucionais contemporâneos, dentre eles o texto constitucional brasileiro de 1988. (...)30
O excerto doutrinário retro transcrito demonstra, claramente, na sua parte
final, que a consequência primordial deste rearranjo normativo-internacional no
âmbito jusambiental interno de cada uma das nações, foi a incorporação do direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no bloco de constitucionalidade dos
mais diversos países. Eis aí, sem dúvida, o fenômeno primordial para a
compreensão do Estado contemporâneo, que dissertação denomina pelo epíteto de
Democrático-Ambiental de Direito.
Para ilustrar essa faceta esverdeada do Estado Democrático de Direito,
fazendo-o pela ótica do Direito Constitucional Português, é de bom alvitre
transcrever o escólio do Professor José Joaquim Gomes Canotilho:
No seu conjunto, as dimensões jurídico-ambientais e jurídico-
ecológicas permitem falar de um Estado de direito ambiental e ecológico. O Estado de direito, hoje, só é Estado de direito se for um Estado protector do ambiente e garantidor do direito ao ambiente; mas o Estado ambiental e ecológico só será Estado de direito se cumprir os deveres de juridicidade impostos à actuação dos poderes públicos. Como se irá ver nos desenvolvimentos seguintes, a juridicidade ambiental deve adequar-se às exigências de um ‘Estado constitucional ecológico e de uma democracia sustentada’. A natureza de princípio conferida a muitas normas estruturantes da Constituição ambiental – princípio do desenvolvimento sustentável, princípio do aproveitamento racional dos recursos, princípio da salvaguarda da capacidade de renovação e de estabilidade ecológica, princípio da solidariedade entre gerações – obrigará a uma metódica constitucional de concretização particularmente centrada nos critérios de ponderação e de optimização dos interesses ambientais e ecológicos. 31
30 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4 ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 878 e 879. 31 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional ambiental português e da união européia. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 5 e 6.
47
O Brasil, como era de se esperar, não passou incólume por este fenômeno
internacional de ecologização do Direito. No plano interno, uma das primeiras
manifestações do compromisso brasileiro para com a sustentabilidade adveio da Lei
nº 6.938-81, que ainda hoje rege a Política Nacional do Meio Ambiente. Mas pode-se
dizer que foi com a Constituição de 1988, que no seu artigo 225 consagrou a
fundamentalidade do direito ao meio ambiente equilibrado, que o país inseriu-se
definitivamente na era do Estado Democrático-Ambiental de Direito.
3.3.1 Dissecação do Epíteto “Estado Democrático-Ambiental de Direito”
Aqui, antes de tudo, há de se esclarecer que o arranjo estatal que se desenha
contemporaneamente como Estado Democrático-Ambiental de Direito32 não se trata
propriamente de um modelo organizacional autônomo, mas de uma vertente mais
evoluída do próprio Estado Democrático de Direito.
Feito este registro inicial, vale agora dizer que a Constituição brasileira, ao
ditar no seu artigo 225, caput, que “todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, carrega consigo,
embora que de modo não explícito, um excelente indicativo de quais seriam as
qualidades distintivas do Estado Democrático-Ambiental de Direito.
Tais características, além disso, sobressaem-se ainda mais nítidas quando
associado o prefalado dispositivo (artigo 225 da CRFB) a outros emblemas
constitucionais, como os vetores da cidadania, da dignidade da pessoa humana e do
pluralismo político (artigo 1º, II, III e V da CRFB).
Impende-se pontuar, genericamente falando, que o Estado Democrático-
Ambiental de Direito é democrático por ser aberto à pluralidade, apostando, para a
boa consecução do processo de proclamação e afirmação dos direitos ambientais,
32 É de se alertar que inexiste consenso entre os autores jusambientais acerca da denominação em questão. Basta ver, a propósito do quanto afiançado, o registro de FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 94, que elenca, na sua obra doutrinária, sem qualquer pretensão exaustiva, uma série bastante expressiva de denominações usadas pela doutrina para o mesmo fenômeno, dentre elas as seguintes: Estado Sociambiental, Estado Pós-Social, Estado Constitucional Ecológico, Estado de Direito Ambiental, Estado do Ambiente, Estado Ambiental de Direito e Estado de Bem-Estar Ambiental.
48
na colaboração externa entre todos os países, bem como na repartição interna de
responsabilidades entre a sociedade civil e o próprio organismo estatal.
Insta realçar, no que diz respeito às assertivas lançadas no parágrafo anterior,
que o artigo 4º, inciso II, da CRFB estabelece que a República Federativa do Brasil
rege-se, nas suas relações internacionais, dentre outros princípios, pela cooperação
dos povos para o progresso da humanidade. De igual sorte, o artigo 225 da CRFB
estatui, com colores acentuados, que é da responsabilidade não apenas do Poder
Público, mas também da coletividade, o dever de defender e preservar o meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
O Estado Democrático-Ambiental de Direito, portanto, vai muito além do
liberalismo ao arrimar-se na idéia de que o Estado não pode ser abstencionista,
impondo-se-lhe, pois, o dever de garantir um meio ambiente ecologicamente
equilibrado. Do mesmo modo, supera a social democracia, vez que ao exigir o
envolvimento da sociedade na afirmação dos seus direitos, rompe abertamente com
a idéia de um Estado provedor, paternalista por excelência, que muito quis garantir,
mas pouco ofertou ao cidadão.
Já por outra vertente, este novo Estado Democrático é de raiz ambiental por
aprofundar o seu compromisso para com a defesa dos bens ambientais naturais e
artificiais, detendo, com efeito, a exata noção de que nenhum dos direitos
fundamentais será plenamente exercitado se não houver um sério comprometimento
para com a manutenção do equilíbrio ecológico em padrões que viabilizem a vida
com qualidade.
Poder-se-ia dizer em outras palavras, sem que se estivesse cometendo
qualquer arroubo dissertativo, que o direito ao meio ambiente equilibrado possuiria
primazia em relação aos demais direitos fundamentais, já que sem ele não se teria
condições de garantir-se a perpetuação da vida de animais humanos e não-
humanos na Terra.
Não é por outra razão, dessarte, que o artigo 225, caput, da CRFB vaticina,
destacadamente, logo na sua parte inicial, que o meio ambiente ecologicamente
equilibrado é essencial à sadia qualidade de vida, sendo importante assentar,
ademais, que somente a vida com qualidade viabilizará o exercício da cidadania
plena e da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, II e III, da CRFB).
Faz-se necessário verberar, por fim, que o Estado Democrático-Ambiental é
também de Direito, pois que se estriba, externamente, em vários diplomas
49
normativos internacionais, tais como na Declaração de Estocolmo sobre o Meio
Ambiente Humano e na Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente
Humano e Desenvolvimento, e, internamente, entre outros regramentos que
poderiam ser sublinhados, na Constituição da República Federativa no Brasil e na
Lei nº 6.938-81, que traça a Política Nacional do Meio Ambiente.
Vê-se, em conclusão, que o equilíbrio ambiental depende, visceralmente, de
um diálogo profícuo entre as mais variadas fontes jurídicas, que seja capaz de
racionalmente impor aos seres humanos um padrão ambiental-vivencial que, sem
negar o direito fundamental ao desenvolvimento econômico, sensibilize-os para a
adoção de padrões comportamentais essencialmente sustentáveis, sancionando,
duramente, aqueles que relutarem no atendimento de tal conclamação.
3.3.1.1 Algumas peculiaridades do Estado Democrático-Ambiental de Direito
O Estado Democrático-Ambiental de Direito, enquanto experiência
aprofundada do Estado Democrático de Direito, possui uma série de peculiaridades,
a seguir arroladas: a) a transcendência da propriedade; b) a ampliação dos sujeitos
de direito; c) o privilégio da prevenção em detrimento da repressão. Passa-se,
doravante, a estudar cada uma dessas singularidades em tópicos apartados.
3.3.1.1.1 – transcendência da propriedade
Consoante já explicado alhures, o centro da ordem jurídica, tanto no Estado
Liberal quanto no Social, era inquestionavelmente o direito de propriedade. Foi para
a reverência da sua incolumidade que a legalidade, até pouco tempo histórico atrás,
sempre deflagrou a sua munição mais robusta.
No Estado Democrático de Direito, porém, ocorreu uma completa
transmutação desta noção, de modo que a propriedade deixou de ser o ponto de
convergência do ordenamento, o qual foi deslocado para a dignificação humana.
Tal experiência, como não poderia ser diferente, é agora aprofundada no
Estado Democrático-Ambiental de Direito, bastando ver, para tanto, que a cabeça do
artigo 225 da CRFB estatui, sem margem para vacilos, que todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, qualificado, enfaticamente, como um bem de
uso comum do povo.
50
Percebe-se, pois, que uma das mais representativas características do
Estado Democrático-Ambiental de Direito é justamente a transcendência da
propriedade, de modo que os microbens que compõem o meio ambiente,
sinergicamente considerados, sobrepujam acentuadamente a noção primitivo-
privatística de domínio.
Há no continente da propriedade, por assim dizer, duas modalidades de
conteúdos, cujos titulares são marcadamente diferenciados. Tem-se, de um lado, o
direito individual do proprietário, convivendo, por outra vertente, com o interesse
difuso da sociedade na preservação do equilíbrio ecológico em níveis que viabilizem
a vida com qualidade33.
Neste diapasão, é de se ver, v.g., que a função social da propriedade rural,
nos termos expressos do artigo 186, incisos I e II, da Constituição da República,
somente será satisfeita quando atender aos requisitos de um aproveitamento
racional, com a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a
preservação do meio ambiente. Fora deste padrão, competirá à União, de acordo
com o estatuído no caput do artigo 186 da Magna Carta, desapropriar por interesse
social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não cumprir a função social a
que está jungido.
Assim é que a assunção da plena função social da propriedade, tal como
concebida no Estado Democrático-Ambiental de Direito, revela-se absolutamente
revolucionária, pois que além de romper com a arcaica idéia do direito absoluto de
propriedade ínsita ao liberalismo, rechaça, por completo, a noção autoritária da
concentração da propriedade nas mãos do Estado, tão cara ao socialismo outrora
existente no leste europeu.
3.3.1.1.2 – ampliação dos sujeitos de direito
33 Vale transcrever aqui a lição de RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo civil ambiental. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 60: “Com a célebre frase ‘de quem é o ar que respiro?’, Mauro Cappelletti procurou demonstrar que a dicotomia entre o público e o privado do Estado Liberal, a summa diviso, já não mais atendia aos fenômenos de massa. O que quis dizer o autor é que a definição do que é público não pode ser por negação àquilo que seja privado e vice-versa. Em outras palavras, é carcomido e obsoleto, para não dizer ilegítimo, o art. 98 do CC/2002, que define como bens públicos aqueles que não são particulares. Ora, o que se quer dizer é que, nesse meio entre o interesse público e o privado, muita coisa passou a ter visibilidade para o direito, fazendo com que revisitemos os conceitos de interesse particular e até mesmo o conceito de interesse público.”
51
No plano internacional, de acordo com o que já foi estudado algures, os dois
principais marcos normativos do Estado Democrático-Ambiental de Direito são a
Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano de 1972 e a Declaração
do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992.
Em ambos os diplomas está asseverado, com tintas carregadas, nos seus
Princípios I e III, respectivamente, que não apenas os interesses das gerações
presentes merecem proteção, mas, também, o das futuras gerações.
Sintonizado com este raciocínio, a Constituição brasileira não titubeou ao
estabelecer no caput do seu artigo 225, que o Poder Público e a coletividade têm o
dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, tanto
para as presentes quanto para as futuras gerações.
Muito ao contrário do que poder-se-ia imaginar, a jurisprudência
contemporânea começa a outorgar notável concretude a esta possibilidade, sendo
relevante a transcrição, para fins de comprovação do afirmado, de uma importante
decisão da Suprema Corte da República das Filipinas, que no Caso Minors Opos
versus Secretaria do Departamento de Meio Ambiente e de Recursos Naturais (no
qual era intentada a vedação de licenciamento para a exploração madeireira, em
virtude dos desflorestamentos até então ocorridos terem gerados danos ambientais
de grande monta) tratou o mencionado regramento num plano bastante superior ao
da simples retórica:
Os requerentes menores afirmam que representam sua
geração assim como as gerações ainda não nascidas. Não encontramos nenhuma dificuldade em julgar que eles podem para si mesmos, para outros de sua geração e para as gerações futuras, impetrar um processo judicial. Sua capacidade para ingressar em juízo no interesse das sucessivas gerações pode ser fundamentada no conceito de responsabilidade intergeracional, assim como no direito a um meio ambiente sadio e equilibrado. A natureza significa o mundo em sua totalidade como foi criado. Tais ritmo e harmonia incluem indispensavelmente, inter alia, a cuidadosa disposição, utilização, gestão, renovação e a conservação das florestas do país, dos minerais, da terra, das águas, das indústrias de pesca, da vida selvagem, das áreas costeiras e de outros recursos naturais a fim de que sua exploração, seu desenvolvimento e sua utilização sejam equitativamente acessíveis à geração presente, assim como às futuras gerações. Desnecessário dizer que cada geração tem como responsabilidade preservar para a geração futura o ritmo e a harmonia para um completo desfrute de uma ecologia equilibrada e saudável. De forma um pouco diferente, a assertiva dos menores terem um direito a um ambiente em boas condições constitui ao
52
mesmo tempo a concretização de sua obrigação em assegurar a proteção daquele direito para as gerações vindouras.34
Consoante se pode visualizar, portanto, o Estado Democrático-Ambiental de
Direito apresenta ao universo jurídico uma regra extraordinariamente visionária, que
para além daquilo que o ordenamento já fazia em relação aos nascituros (vide, v.g.,
o artigo 2º do Código Civil brasileiro), reconhece às futuras gerações o status de
sujeito de direitos, cujos interesses podem ser tutelados administrativa e
judicialmente.
3.3.1.1.3 privilégio da prevenção em detrimento da repressão
De tudo o quanto antes foi dito, resta claro que o Estado Liberal, juridicamente
falando, era extremamente passivo, a ponto permanecer inerte ante a iminência dos
danos que seriam suportados pelos cidadãos, para somente após a consumação do
infortúnio agir em uma perspectiva meramente repressiva, apta, quando muito, a
resolver os prejuízos dos indivíduos em indenização por perdas e danos.
No Estado Democrático-Ambiental de Direito, outrossim, a questão cambia
radicalmente de figura, bastando ver, por exemplo, que o Princípio 15 da Declaração
do Rio de Janeiro estabelece que para proteger o meio ambiente a diretiva
precaucional deverá ser amplamente observada pelos Estados, estatuindo, ademais,
que a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o
adiamento de medidas que visem prevenir a degradação ambiental.
No âmbito interno, do mesmo modo, o artigo 5º, XXXV, da CRFB esclarece
que não somente as lesões, mas também as ameaças a direitos jamais escaparão
da apreciação do Poder Judiciário.
Corroborando tal regramento, demais disso, os incisos I, II, III, IV, V, VI e VII
do § 1º do artigo 225 da CRFB estabelecem que para assegurar a efetividade do
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao Poder Público - nele
incluído, obviamente, o Poder Judiciário, quando devidamente instado - incumbe as
seguintes missões: a) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais; b)
preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país; c) definir
34 KISS, Alexandre. Os direitos e interesses das gerações futuras e o princípio da precaução. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros (orgs). Princípio da Precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 9.
53
espaços territoriais a serem especialmente protegidos; d) exigir, para a instalação de
obra ou atividade potencialmente nociva ao meio ambiente, estudo prévio de
impacto ambiental; e) controlar a produção, comercialização e emprego de técnicas,
métodos e substâncias que comportem risco para a vida e o meio ambiente; f)
promover a educação ambiental; g) proteger a fauna e a flora.
O fato é que os danos ambientais - sejam eles de ordem natural ou artificial -,
quando ocorridos, acabam sendo de difícil ou mesmo de impossível reparação, já
que quando não ceifam a vida das pessoas, acabam por reduzir-lhes drasticamente
a qualidade existencial.
Justamente por isso é que o Estado Democrático-Ambiental de Direito acaba
por apostar todas as suas fichas na prevenção, relegando a repressão a um patamar
inferior.
Tal opção, como se verá no momento oportuno, além de gerar efeitos no
direito material, muda completamente a estruturação do direito processual, que
passa a trabalhar prioritariamente com as técnicas mandamentais ao invés das
condenatórias.
3.3.1.2 O Estado Democrático-Ambiental de Direito e a fundamentalidade do
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
Não são poucos aqueles que discutem a conveniência de se considerar o
direito ao meio ambiente equilibrado como fundamental.
Argumentam alguns, em perspectiva formal, que o fato do mencionado direito
não estar expressamente catalogado no título II da CRFB, inviabilizaria o seu
reconhecimento como tal.
Outros tantos, de modo mais substancial, aduzem que o equilíbrio ambiental
seria apenas uma decorrência da observância dos direitos fundamentais
preexistentes, o que comprometeria o reconhecimento da sua fundamentalidade.
Por este o último raciocínio, o meio ambiente equilibrado não seria
propriamente um direito (e muito menos um direito fundamental), mas apenas o
resultado da observância de outros interesses constitucionalmente tutelados.
Apenas para a exemplificação do debate doutrinário que se trava em torno da
matéria, reproduzo, abaixo, um fragmento da obra do professor Luiz Guilherme
Marinoni:
54
É aqui que se torna interessante, até mesmo para fins
didáticos, o problema relacionado ao direito ambiental. Há quem pense que o direito ambiental não é fundamental, apenas por não estar incluído no Título II da CF, o que não merece maiores considerações, diante do que já foi dito quando se tratou da fundamentalidade material dos direitos fundamentais. Contudo, há outros que entendem que o direito ambiental é dependente apenas de prestações fáticas de natureza social, que assim poderiam ser enquadradas entre as prestações em sentido estrito. (...).35
O pensamento ora desafiado, mutatis mutandis, é parecido com o de Ingo
Sarlet quando demonstra que a dignidade humana não é um direito fundamental,
mas sim um princípio republicano. Colaciona-se o pensamento do aludido jurista:
Embora entendamos que a discussão em torno da
qualificação da dignidade da pessoa como princípio ou direito fundamental não deva ser hipostasiada, já que não se trata de conceitos antitéticos e reciprocamente excludentes (...) compartilhamos do entendimento de que, muito embora os direitos fundamentais encontrem seu fundamento, ao menos em regra, na dignidade da pessoa humana e tendo em conta que (...) do próprio princípio da dignidade da pessoa (isoladamente considerado) podem e até mesmo devem ser deduzidos direitos fundamentais autônomos, não especificados (...), não há como reconhecer que existe um direito fundamental à dignidade, ainda que vez por outra se encontra alguma referência neste sentido. Com efeito, parece-nos já ter sido suficientemente repisado que a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, não poderá ser ela própria concedida pelo ordenamento jurídico. Tal aspecto, embora seguindo sentido inverso, chegou a ser objeto de lúcida referência feita pelo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, ao considerar que a dignidade da pessoa não poderá ser retirada de nenhum ser humano, muito embora seja violável a pretensão de respeito e proteção que dela (da dignidade) decorre. Assim, quando se fala – no nosso sentir equivocadamente – em direito à dignidade, se está, em verdade, a considerar o direito a reconhecimento, respeito, proteção e até mesmo promoção e desenvolvimento da dignidade, podendo inclusive falar-se de um direito a uma existência digna, sem prejuízo de outros sentidos que se possa atribuir aos direitos fundamentais relativos à dignidade da pessoa. Por esta razão, consideramos que neste sentido restrito – de um direito à dignidade como concessão – efetivamente poder-se-á sustentar que a dignidade da pessoa humana não é e nem poderá ser, ela própria, um direito fundamental.36
35 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit. p. 72. 36 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 8 ed. rev., atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 79 e 80.
55
Parece evidente, pois, que a dignidade humana, per se, não pode ser
encarada como um direito, mas sim como um princípio ou valor republicano, embora
ela possa, naturalmente, ser reverenciada por via da concretização dos direitos
fundamentais. Circunstância diferente, no entanto, ocorre com o meio ambiente
equilibrado, que, ao revés, possui destacada natureza de direito fundamental.
Quanto à objeção formal que se faz à fundamentalidade do direito ao meio
ambiente equilibrado, faz-se importante retornar à advertência já verberada pelo
professor Marinoni, para quem o argumento “não merece maiores considerações”.
Como é básico até mesmo para os jejunos, nos termos do § 2º do artigo 5º da
Constituição brasileira, os direitos e garantias nela expressos não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, como, por exemplo,
aqueles emanados da contundente dicção do seu artigo 225.
É de enfatizar, por outra vertente, que o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado é o mais primário dos direitos fundamentais, já que a
vida sem ele sequer continuará a existir no planeta Terra. Traz-se, de modo a
corroborar o raciocínio empreendido, o pensamento de Antônio Herman Benjamin:
Além da instituição desse inovador ‘dever de não degradar’ e
da ecologização do direito de propriedade, os mais recentes modelos constitucionais elevam a tutela ambiental ao nível não de um direito qualquer, mas de um direito fundamental, em pé de igualdade (ou mesmo, para alguns doutrinadores, em patamar superior) com outros também previstos no quadro da Constituição, entre os quais se destaca, por razões óbvias, o direito de propriedade.
Assim posta, a proteção ambiental deixa, definitivamente, de ser um interesse menor ou acidental no ordenamento, afastando-se dos tempos em que, quando muito, era objeto de acaloradas, mas juridicamente estéreis, discussões no terreno não jurígeno das ciências naturais ou da literatura. Pela via da norma constitucional, o meio ambiente é alçado ao ponto máximo do ordenamento, privilégio que outros valores relevantes, só depois de décadas, ou mesmo séculos, lograram conquistar.
(...) Concretamente, portanto, pode-se ganhar muito, no terreno
dogmático e da implementação, com o estabelecimento de um direito fundamental dessa natureza. Assim, dentre outros benefícios diretos, temos que, como direito fundamental, sua norma estatuidora conta com aplicabilidade imediata (...).37
37 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 73.
56
É claro que o puro e simples reconhecimento da fundamentalidade do direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não possui, por si só, o condão de
concretizá-lo. Mas, por outro lado, é inequívoco que esse reconhecimento o insere
na pauta política da sociedade. O fato é que a Constituição, enquanto texto, pouco
ou quase nada significa. Ela sempre será, em última instância, aquilo que os
aplicadores do direito dela fizerem.
Consoante adverte o professor Luiz Guilherme Marinoni, “para a
caracterização de um direito fundamental a partir de sua fundamentalidade material,
é imprescindível a análise de seu conteúdo, isto é, da circunstância de conter, ou
não, uma decisão fundamental sobre a estrutura do Estado e da sociedade”38.
Por corolário lógico, se hoje inelutavelmente existe em avançada gestação
jurídica o projeto político-estatal formatado na geometria de um Estado Democrático-
Ambiental de Direito, nada mais razoável do que concluir-se pela fundamentalidade
do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Faz-se mister deixar claro, todavia, que o Estado Democrático-Ambiental de
Direito não renega a importância dos direitos fundamentais de primeira e segunda
gerações. Será, portanto, o somatório-sinérgico das várias dimensões de direitos,
dentro de um contexto de protagonismo do direito fundamental ao meio ambiente
equilibrado, que materializará o fundamento axiológico central da República
Federativa do Brasil, arrimado na dignificação da pessoa humana.
4 AS RELAÇÕES DO ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO COM O UNIVERSO JURÍDICO TRABALHISTA
Como já sinalizado ao longo desta explanação, o meio ambiente, muito ao
contrário do que poderia parecer aos olhos dos mais desavisados, não possui
apenas uma dimensão natural, detendo, para além desta, algumas outras potências,
consubstanciadas no meio ambiente cultural, no meio ambiente urbano e no meio
ambiente do trabalho39.
Sobreleva pontuar, aliás, que o meio ambiente laboral possui expressa
previsão constitucional, na medida em que o artigo 200 da CRFB estabelece, em 38 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 65. 39 Ver, a respeito do asseverado, v.g., FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasilieiro. 6 ed. ampl. São Paulo: São Paulo, 2005, p. 20 a 23.
57
tonalidades intensas, nos seus incisos I e VIII, que compete ao Sistema Único de
Saúde, dentre outras missões, executar as ações de saúde do trabalhador,
colaborando, ainda, na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do
trabalho.
Plantada esta primeira baliza, afigura-se evidente a necessidade de que a
presente dissertação, cujo escopo primordial está ligado à demonstração de que o
meio ambiente do trabalho equilibrado é um direito fundamental do cidadão-
trabalhador, se debruce sobre a investigação das principais relações do Estado
Democrático-Ambiental de Direito com o universo jurídico trabalhista.
Significa dizer, em outras palavras, que a noção preconizada deste novo
modelo estatal deve ser pensada em perspectiva alargada, para contemplar também
os interesses dos trabalhadores
De acordo com tudo o quanto antes foi estudado, poder-se-ia proclamar, em
síntese apertadíssima, que o Estado Democrático-Ambiental de Direito, mais do que
permitir a sobrevivência dos cidadãos, almeja garantir-lhes uma vida abundante e de
qualidade, a ser tutelada, colaborativamente, pelo Estado e a sociedade.
Lado outro, não custa rememorar, consoante adverte o professor Sebastião
Geraldo de Oliveira, que “o homem passa a maior parte da sua vida útil no trabalho,
(...) daí porque o trabalho (...) determina o seu estilo de vida, influencia nas
condições de saúde, interfere na aparência e apresentação pessoa e até determina,
muitas vezes, a forma da morte”40.
Nada obstante, o fato é que o Direito do Trabalho, em (des)virtude do seu
excessivo apego à monetização da saúde do operariado, não consegue garantir ao
cidadão-trabalhador, nos moldes em que atualmente estruturado, o prefalado direito
à vida abundante e de qualidade, necessitando, urgentemente, ser repensado à luz
dos valores ínsitos ao Estado Democrático-Ambiental de Direito, de modo a
transmudar, radicalmente, o seu perfil de ramo jurídico meramente comprometido
com a perpetuação da força de trabalho humana no interesse do capital.
Emerge daí, com efeito, a indispensabilidade de se um conceber um outro
Direito do Trabalho, que comprometido com a prevenção e a precaução, seja capaz
de romper com a priorização dos adicionais econômicos que tanto o caracterizam,
assumindo, para si, a tarefa de eliminar ou neutralizar todas as anomalias estruturais
40 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à saúde do trabalhador. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2010, p. 118.
58
que no meio ambiente laboral conspiram contra a vida em abundância e de
qualidade a que fazem jus tanto os trabalhadores do presente quanto os do futuro.
Aliás, quanto à possibilidade de se reconhecer direitos não só aos
empregados do presente, mas também aos do futuro, faz-se pertinente transcrever
parte da ementa de um interessante julgado do Superior Tribunal de Justiça:
É cabível ação civil pública com o objetivo de afastar danos físicos a empregados de empresa em que muitos deles já ostentem lesões decorrentes de esforços repetitivos (LER). Em tal caso, o interesse a ser defendido não é de natureza individual, mas de todos os trabalhadores da ré, presentes e futuros, evitando-se a continuidade do processo de degeneração física.41
Acredita-se, de tal arte, que na perspectiva de um Estado Democrático-
Ambiental de Direito, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de
normas de segurança, higiene e saúde (artigo 7º, XXII, da CRFB), deva ser
considerado como o mais primordial dos direitos trabalhistas, vez que a afirmação da
dignidade da pessoa humana, como visualizado mais atrás, depende umbilicalmente
da primazia das práticas preventivas ante as repressivas.
É claro que não se quer aqui proclamar, com a assunção do antedito ponto de
vista, que as várias dimensões de direitos fundamentais - nelas incluídas os direitos
sociais-laborais de segunda geração - se excluiriam.
Antes, ao contrário, elas se somam, sem que isso seja, todavia, um empecilho
para que certo modelo estatal, em dado momento histórico, se empenhe na
priorização de determinado interesse juridicamente tutelável em detrimento de outro.
O Estado Democrático-Ambiental de Direito, portanto, tem absoluta clareza
sobre a importância do somatório-sinérgico de todos os direitos fundamentais para a
consecução da dignidade humana, mas não tem dúvidas, outrossim, do
protagonismo do equilíbrio ambiental, seja ele natural ou artificial, no desempenho
da sua tarefa histórica42. 41 STJ, Resp. 207.336/SP, 3ª T., unânime, rel. Min. Antonio de Pádua Ribeiro, Disponível em: http://tinyurl.com/3wgno8j. Acesso em: 18.08.2011 42 É de se deixar claro, que nem de longe o presente trabalho deseja contrariar a viabilidade de o magistrado, na subministração de justiça aos casos concretos que estejam sob a sua responsabilidade, proceder a um juízo de ponderação frente a direitos fundamentais que estejam em rota de colisão. O que na verdade se deseja frisar, é que cada modelo estatal, coerente com as escolhas políticas que o caracterizam, acaba por priorizar, previamente, determinados valores em prejuízo de outros. Cita-se, para ilustrar o aludido ponto de vista, a preleção de Luiz Guilherme Marinoni, que invoca, no desenvolvimento do seu raciocínio, ninguém menos do que Robert Alexy. MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 66: “Uma teoria axiológica não se realiza sem os princípios.
59
Vive-se atualmente, com efeito, o momento propício para que o Direito do
Trabalho, sem necessariamente romper com a segunda dimensão de direitos que o
distingue, possa mergulhar nos domínios da terceira geração, de modo a se
preocupar, mais acentuadamente, com os interesses difusos e coletivos dos
trabalhadores, mormente com o direito à vida em abundância e de qualidade,
proporcionada por um meio ambiente do trabalho equilibrado.
Na verdade, a teoria dos princípios pressupõe uma teoria axiológica. Basta voltar a lembrar o exemplo da teoria liberal, esclarecendo que essa teoria é uma simples manifestação de uma teoria axiológica ‘com determinado conteúdo’. Ou seja, as teorias liberal, democrática e do Estado social não podem ser classificadas ao lado, por exemplo, da teoria axiológica. Isso porque as teorias liberal, democrática e do Estado social já pressupõem determinados valores”.
60
CAPÍTULO II
OS PRINCÍPIOS JUSAMBIENTAIS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E DO POLUIDOR-PAGADOR: INSTRUMENTOS DE AFIRMAÇÃO DA PROMESSA TUITIVA DO DIREITO DO TRABALHO
1 DIREITO DO TRABALHO: CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E CONFORMAÇÃO IDEOLÓGICA
Diante das suas peculiaridades, o presente trabalho43 se absterá de tecer
comentários em relação às fases embrionárias de construção do justrabalhismo, a
fim de centrar a atenção, na medida do necessário - não mais -, no fenômeno da
Revolução Industrial.
Tal opção se justifica no fato de que naquele momento histórico houve a
introdução da máquina a vapor no processo produtivo, criando-se as bases para a
existência de uma produção em grande escala e da criação de uma economia
verdadeiramente de mercado, a demandar a contratação de um crescente
contingente de trabalhadores colimando suprir a demanda cada vez maior de força-
labor, o que promoveu a transformação do trabalho em emprego e desaguou na
ocorrência de uma série de conflitos coletivos de natureza reivindicatória, que
serviram para a propulsão da criação do Direito do Trabalho, obviamente que dentro
de determinados arranjos ideológicos, na essência ainda intactos nos dias atuais.
Foi em tal contexto que começaram a surgir as mazelas inerentes a um meio
ambiente de trabalho desequilibrado, já que as fábricas, até então inexistentes,
apareceram no mundo laboral como uma necessidade intrínseca do próprio
processo produtivo emergente, mas organizadas de modo precário do ponto de vista
da preservação da integridade física e psicológica do trabalhador, nelas reinando a
insalubridade - caracterizada pela falta de higiene, luz e ventilação, bem como pela
ocorrência de ruído excessivo e de fuligem tóxica no ar rarefeito -, onde era exigido,
43 Vale ressaltar que o presente tópico (Direito do Trabalho: Construção Histórica e Conformação Ideológica), assim como o próximo (O Engodo Juslaboral Originário), serão desenvolvidos a partir de outro estudo realizado pelo autor da presente pesquisa. Vide, a propósito, CESÁRIO, João Humberto. A tutela processual mandamental como fator de promoção do equilíbrio ambiental trabalhista: um pequeno discurso sobre a lei, a ideologia, o direito e a justiça. In: CESÁRIO, João Humberto (org). Justiça do Trabalho e dignidade da pessoa humana: algumas relações do direito do trabalho com os direitos civil, ambiental, processual e eleitoral. São Paulo: LTr, 2007, p.17 a 33.
61
indiscriminadamente, o trabalho de homens, mulheres e crianças, em jornadas
excessivamente longas e sem duração predeterminada, que se estendiam de sol a
sol.
Dentro deste caldo social, emergiu uma nova consciência jurídica coletiva, na
qual o proletariado, classe até então desconhecida, passou a se organizar para
pugnar por melhores salários, diminuição de jornadas e proteção ao trabalho de
menores e mulheres, o que fez premido pelo imperativo de autodefesa, haja vista
que seus membros estavam expostos à ocorrência dos mais variados acidentes de
trabalho, bem como ao aparecimento de uma série de doenças como asma,
pneumonia e tuberculose, dentre outras.
Antevendo as proporções catastróficas que tal revolta poderia atingir, as
elites dirigentes, representadas principalmente pela Igreja Católica, se adiantaram
aos fatos, para defender a posição estratégica de que o Estado deixasse de ser
abstencionista, passando, por conseguinte, a interferir diretamente nos conflitos
trabalhistas pela via da edição de legislação supostamente protetiva.
Tal comportamento, obviamente louvável sob certo aspecto, não deixava de
dialeticamente possuir um outro lado nefasto, já que embora fosse hábil a gerar um
mínimo de justiça social, acabava por proteger as colunas de sustentação da
perversa estrutura econômico-social então surgida, carregando em si a idéia da
concessão de pequenos favores em troca da inalterabilidade do status quo.
Aliás, possibilitando entrever a ambivalência da política de colaboração de
classes que inspirava a atuação da igreja, pontificou o Papa Leão XIII, na Encíclica
Rerum Novarum, a clássica assertiva de que não pode haver capital sem trabalho,
nem trabalho sem capital. Foi dentro desta lógica conciliacionista, portanto, que se
editaram os primeiros atos legislativos sobre a questão trabalhista na Inglaterra
industrial.
Ainda que incorrendo no risco da simplificação, sempre perniciosa à
construção de uma análise científica rigorosa, pode-se dizer que tais atos, como,
v.g., o Moral and Health Act, ficaram circunscritos à diminuição de jornada e à
proibição de labuta de menores em horário noturno, sem portarem no seu bojo
maiores preocupações com a eliminação das condições adversas de trabalho, no
que foram secundados por toda a legislação posterior, inclusive aquela oriunda do
chamado constitucionalismo social emergido no início do século XX, de que são
62
exemplos emblemáticos a Constituição do México de 1917 e a Constituição de
Weimar de 1919.
Esta opção legislativa foi intuitiva quanto ao seu desiderato, trazendo consigo
a matriz da criação de uma série de adicionais econômicos que ainda hoje perduram
no Direito do Trabalho, inclusive na vigente Constituição brasileira (horas extras;
adicional noturno; insalubridade; periculosidade; penosidade...), como se a saúde do
trabalhador fizesse parte do mercado capitalista de consumo, passível de ser
comprada como simples mercadoria, sem que seja necessária a superação das
mazelas ambientais que persistem no cotidiano laboral, em moldes
surpreendentemente similares àqueles descritos no contexto da Revolução
Industrial44.
2 O ENGODO JUSLABORAL ORIGINÁRIO
Embora o juslaboralismo tenha surgido a partir das lutas dos operários
ingleses contra as condições de labuta a que estavam submetidos, constata-se
ainda hoje, passados dois séculos, que paradoxalmente os trabalhadores convivem
com as mais degradantes situações ambientais.
Para explicar essa realidade angustiante, será necessário desmistificar aquilo
que esta dissertação denomina pelo epíteto de engodo juslaboral originário, a fim de
que sejam aclaradas as bases ideológicas que permearam a construção do Direito
do Trabalho.
44 Confirmando o diagnóstico em questão, reproduz-se, adiante, as palavras de OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidentes do trabalho ou doença ocupacional. São Paulo: LTr, 2005, p. 26 e 27: “De acordo com levantamento da OIT divulgado em 1985, a cada três minutos um trabalhador perdia a vida no mundo em conseqüência de acidente do trabalho ou de doença profissional, e a cada segundo, pelo menos, quatro trabalhadores sofriam algum tipo de lesão. Em menos de duas décadas a situação piorou amargamente. Estatísticas da mesma OIT divulgadas em 2003 asseveram que ocorrem por ano no mundo 270 milhões de acidentes, representando uma média aproximada de 740 mil por dia ou nove por segundo. Desse elevado número de ocorrências, resultam a cada ano por volta de dois milhões de acidentes do trabalho com óbito, quase quatro mortes por minuto. Além das perdas humanas e todos os efeitos colaterais dolorosos, há um custo econômico extraordinário que ultrapassa anualmente um trilhão de dólares americanos, por volta de 4% do produto interno bruto global, o que demonstra a necessidade urgente de adoção de políticas efetivas voltadas para o enfrentamento do problema. Essas estatísticas lamentáveis reforçam o paradoxo da situação: o local de trabalho, que deveria servir para o homem ganhar a vida, está se transformando, em muitas ocasiões, em lugar sinistro para encontrar a morte!”
63
A verdade é que o juslaboralismo, balizado pela lógica do capitalismo a que
serve45, preferiu monetizar a saúde do trabalhador, como se a integridade física e
psíquica do ser humano pudesse ser objeto de um contrato de compra e venda.
Afinal, tudo pode ser adquirido no mundo capitalista; inclusive a dignidade das
pessoas...
Ademais, como o capitalismo dispõe, na perfeita expressão de Marx, de todo
um exército industrial de reserva46, o detentor do capital pode tranquilamente tratar o
trabalho humano como mera mercadoria descartável, passível de aquisição a
baixíssimos salários, que servem de base de cálculo para o pagamento dos ínfimos
adicionais criados para supostamente proteger o trabalhador.
Como se não bastasse, as táticas de diluição contábil dos salários em
adicionais são extremamente simples e eficazes para a extração de mais-valia. Se,
por exemplo, um empregado for contratado para auferir o salário mensal de
R$654,00 (seiscentos e cinquenta e quatro reais), para trabalhar em um ambiente
insalubre de grau médio, será muito simples para o empregador contabilizar no
recibo de pagamento o mínimo de R$545,00 (quinhentos e quarenta e cinco reais)
pagos a título de salário de sentido estrito, mais o montante de R$109,00 (cento e
nove reais) pretensamente adimplidos como o adicional de 20% da insalubridade.
Tudo aparentemente dentro da lei! Mas a rigor, o trabalhador nada receberá
para esvair sua saúde em um ambiente insalubre...
Colaciona-se, de modo a desnudar o equívoco da opção juslaboral, as
palavras de Sebastião Geraldo da Silva:
De fato, a justificativa para o pagamento do adicional pelo
trabalho em condições adversas não resiste a cinco minutos de reflexão séria. O adicional – não há como deixar de perceber –
45 A corroborar a assertiva de que o Direito do Trabalho serve à estabilização da sociedade capitalista, colaciona-se a lição de RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo civil ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.p. 49 e 50: “A transformação do Estado liberal em Estado Social deve-se a uma série de mudanças de comportamento, inclusive do próprio sistema capitalista, que passou a ser refém da necessidade de proteger em certa dose o trabalho humano que explorava (o lado social), porque em última análise dele dependia para a formação da riqueza e a manutenção do status quo. Nesse processo de mudança destaca-se o importante pioneiro papel da carta constitucional norte-americana, onde já se fazia presente a necessidade de um Estado intervencionista, com deveres negativos (não ferir as garantias dos indivíduos), mas também com prestações positivas a cumprir, mormente no campo social. A verdadeira transformação vem, no entanto, com a Constituição Mexicana de 1917, a de Weimar em 1919 e da Polônia e Iuguslávia em 1921.” 46 Sobre a teoria do Exército Industrial de Reserva, ver MARX, Karl. O Capital. Edição Resumida por Julian BORCHARDT. 7 ed., Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982, p. 152 et seq.
64
significa venda da saúde ou de parte da própria vida, daí o rótulo que vem recebendo de adicional de suicídio ou da morte.47
Vale dizer que o fenômeno legislativo da monetização da saúde do
trabalhador atende por completo a lógica capitalista, estando em perfeita harmonia
com as suas pilastras ideológicas básicas, já que o suposto pagamento dos
adicionais, sempre mais barato e conveniente do que a tomada de medidas aptas à
promoção do equilíbrio ambiental trabalhista, mascara a realidade de tal forma, a
ponto de os empregados não questionarem o mal a que estão expostos48.
Eis aí o que o presente trabalho chama de engodo juslaboral originário, que
nada mais é do que a opção pragmática de se remeter para um plano remoto o
estabelecimento de obrigações laborais de adequação ambiental, a fim de privilegiar
indiscriminadamente o pagamento de adicionais econômicos que nada contribuem
para a preservação da saúde dos trabalhadores, gerando no inconsciente destes
uma falsa sensação de proteção.
3 DIREITOS HUMANOS E DIREITO DO TRABALHO: REPENSANDO
AMBIENTALMENTE O MODELO JUSTRABALHISTA VIGENTE
De tudo o quanto antes foi dito, parece verdadeira obviedade que o modelo
juslaboral vigente passa por um momento de esgotamento, sendo imperiosa a
necessidade de repensá-lo por um prisma comprometido com a prevenção, a
precaução e a responsabilidade fundada nos riscos decorrentes dos fatores
ambientais do trabalho.
É claro que o vaticínio contido no parágrafo anterior não deseja fazer coro
com os arautos do liberalismo, que pregam, incessantemente, a morte do Direito do
Trabalho. O seu desiderato, muito ao contrário, é o de revitalizá-lo, dotando-o de
ferramentas que bem lhe propiciem o cumprimento do seu compromisso para com a
proteção da integridade física e psicológica dos trabalhadores.
47 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à saúde do trabalhador. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2010, p. 132. 48 Vale reproduzir aqui, mais uma vez, tratando especificamente do adicional de insalubridade, as palavras de OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Ibid., p.168: “(...) Percebe-se agora que o pagamento do adcional de insalubridade acabou se transformando num permissivo institucionalizado para expor o trabalhador ao agente nocivo. Para a empresa mostrou-se menos dispendioso pagar o adicional do que realizar os investimentos para tornar o ambiente de trabalho saudável”.
65
Trata-se de verdadeiro truísmo que todos aqueles que trabalham devem ser
adequadamente remunerados, a fim de que possam prover as suas necessidades
vitais básicas, sejam elas pessoais ou familiares.
Nessa linha, o artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos é
de clareza ímpar quando diz que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida
capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação,
vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis (...)”49.
Tal obviedade, entrementes, não pode fazer com que o justrabalhismo olvide
os motivos históricos da sua criação, que, como visto, se sustentaram na
necessidade de superação das condições ambientais desfavoráveis a que estavam
expostos os operários da Revolução Inglesa.
A excessiva preocupação do Direito do Trabalho para com os adicionais
econômicos acabou por gerar, a bem da verdade, um cenário incômodo e até
mesmo paradoxal, no qual os trabalhadores, sem jamais terem galgado um poder
aquisitivo significativo, estão cada vez mais expostos a acidentes de trabalho e a
doenças ocupacionais50.
Para se ter uma dimensão mais exata desta assertiva, basta ver que somente
no ano de 2009 houve no Brasil, segundo os últimos dados disponíveis no sítio
eletrônico do Ministério da Previdência Social, uma morte a cada três horas e meia
motivada pelos riscos decorrentes dos fatores ambientais do trabalho, além de 83
acidentes e doenças do trabalho a cada uma hora na jornada diária, excluídos da
estática, diga-se de passagem, os trabalhadores autônomos e as empregadas
domésticas51.
49 Disponível em: http://tinyurl.com/3na75n6. Acesso em: 18.08.2011. 50 Destaca-se aqui, a preleção de BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Trabalho Decente –análise jurídica da exploração do trabalho humano – trabalho forçado e outras formas de trabalho indigno. São Paulo: LTr, 2004, p. 57: “(...) De nada adianta ao trabalhador um emprego mesmo que com remuneração razoável, se sua saúde é comprometida. A primeira meta em condições de trabalho, então, deve ser a preservação do ambiente em condições de salubridade e segurança, pois a qualidade de vida é o ponto de partida para qualquer forma de relacionamento ou de atividade.” 51 Disponível em http://tinyurl.com/yagezug. Acesso em: 06.09.2011. Mais detalhadamente falando, eis o que a página eletrônica da Previdência Social esclarece sobre o tema: “Em 2009 foram registrados 723.452 acidentes e doenças do trabalho, entre os trabalhadores assegurados da Previdência Social. Observem que este número, que já é alarmante, não inclui os trabalhadores autônomos (contribuintes individuais) e as empregadas domésticas. Estes eventos provocam enorme impacto social, econômico e sobre a saúde pública no Brasil. Entre esses registros contabilizou-se 17.693 doenças relacionadas ao trabalho, e parte destes acidentes e doenças tiveram como conseqüência o afastamento das atividades de 623.026 trabalhadores devido à incapacidade temporária (302.648 até 15 dias e 320.378 com tempo de afastamento superior a 15 dias), 13.047 trabalhadores por incapacidade permanente, e o óbito de 2.496 cidadãos. Para termos uma noção da importância do tema saúde e segurança ocupacional basta observar que no Brasil, em 2009, ocorreu
66
Tais dados, alarmantes que são, evidenciam, com colores acentuados, que o
Direito do Trabalho necessita ser repensado à luz das tutelas preventivas e
precaucionais, sem com isso abrir mão, evidentemente, da sua potencialidade
distributiva de riqueza.
Nunca será demais sublinhar que o Direito do Trabalho está situado no
campo maior dos direitos humanos, sendo da sua atribuição, portanto, a promoção
da dignidade humana.
Sobreleva destacar, a propósito, que o artigo XXIII da Declaração Universal
dos Direitos Humanos prevê para o cidadão-trabalhador o direito a condições justas
e favoráveis de trabalho; condições estas que, para além do plano econômico,
incluem no seu bojo, evidentemente, aspectos ambientais asseguradores da
integridade física e mental dos obreiros.
Não é por outro motivo, aliás, que o artigo 7º, “b”, do Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, preocupado em imprimir concretude à
Declaração Universal dos Direitos Humanos52, estatui que “os Estados-partes no
presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa gozar de condições de trabalho
justas e favoráveis, que assegurem especialmente: (...) b) condições de trabalho
seguras e higiênicas (...)”53.
Não bastassem os indicativos existentes no plano global, o sistema regional
interamericano reconhece aos trabalhadores, no Protocolo Adicional à Convenção
Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (Protocolo de San Salvador)54, dentre várias outras garantias laborais, o
cerca de 1 morte a cada 3,5 horas, motivada pelo risco decorrente dos fatores ambientais do trabalho e ainda cerca de 83 acidentes e doenças do trabalho reconhecidos a cada 1 hora na jornada diária. Em 2009 observamos uma média de 43 trabalhadores/dia que não mais retornaram ao trabalho devido a invalidez ou morte”. 52 Aclarando a natureza jurídica do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, vale transcrever a Lição de MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 813: “De qualquer forma, o que é importante saber agora é que tanto um como o outro pacto [referindo-se ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais] surgiram com a finalidade então premente de conferir-se dimensão técnico-jurídica à Declaração Universal de 1948, tendo o primeiro pacto regulamentado os arts. 1º ao 21 da Declaração, e o segundo os arts. 22 a 28. Ambos esses tratados compõem hoje o núcleo-base da estrutura normativa do sistema global de proteção dos direitos humanos, na medida em que ‘judicizaram’, sob a forma de tratado internacional, os direitos previstos pela declaração. A partir desse momento forma-se então a Carta Internacional dos Direitos Humanos (International Bill of Human Rights) (...)”. 53 Disponível em http://tinyurl.com/3o3eujw. Acesso em: 18.08.2011. 54 Disponível em: http://tinyurl.com/3cmgtvc. Acesso em: 18.08.2011.
67
direito à segurança e higiene no trabalho (artigo 7º, b) e à prevenção e tratamento de
doenças profissionais (artigo 10, d).
Demonstrada à exaustão a natureza humanista do Direito do Trabalho, a
indagação a ser enfrentada é a de saber se o juslaboralismo tem dado conta da
missão que lhe foi confiada. A resposta, lamentavelmente, parece ser negativa.
Os dados, como visto, são impiedosos. Insista-se: somente no ano de 2009
houve no Brasil, segundo dados colhidos no sítio eletrônico do Ministério da
Previdência Social, uma morte a cada três horas e meia, motivada pelos riscos
decorrentes dos fatores ambientais do trabalho.
Poderia o Direito do Trabalho, cuja essência repousa nos direitos humanos,
fazer mais pela preservação da vida e da saúde dos trabalhadores? É evidente que
sim. Um dos aspectos da solução deste problema tem morada na confluência do
juslaboralismo com o Direito Ambiental. É sobre esse tema que se discorrerá nos
próximos tópicos.
4 PRINCÍPIOS DE DIREITO DO TRABALHO: NUANCES E
INSUFICIÊNCIAS
O protecionismo, como é palmar, é a marca emblemática do Direito do
Trabalho, constituindo-se, com efeito, no seu mais relevante princípio. O fato
concreto, porém, é que o vetor em questão não vem sendo adequadamente
compreendido, nas suas variadas nuances e possibilidades, pela doutrina e pela
jurisprudência.
Ocorre que os juristas do mundo do trabalho têm outorgado importância
quase que exclusiva à face do protecionismo estatal que intenta diminuir a
autonomia da vontade dos empregadores e empregados no âmbito contratual, para,
em decorrência, impor no interior da relação empregatícia um padrão supostamente
mais encorpado de direitos econômicos em prol dos trabalhadores.
Essa visão fragmentada das qualidades do protecionismo reduz a influência
do Direito do Trabalho a um espaço quase que estritamente privado, contratual por
excelência, relegando ao esquecimento as regras justrabalhistas tipicamente
públicas, principalmente aquelas que almejam o estabelecimento de um modelo
ambiental-laboral protetivo da saúde do trabalhador, hábil a ser imposto tanto
68
administrativamente quanto judicialmente, pelas respectivas vias do direito
administrativo sancionador e das tutelas judiciais inibitória e de remoção do ilícito.
Calha transcrever, a propósito do quanto foi alinhavado até aqui, alguns
excertos doutrinários sobre a essência do princípio protecionista. Reproduz-se,
primeiramente, o escólio de José Augusto Rodrigues Pinto:
Forjado por fatos econômicos e sociais típicos, o Direito do
Trabalho assentou neles seus preceitos estruturais, de modo a ganhar identidade própria e marchar na direção de sua autonomia científica.
Não duvidamos em afirmar que seu princípio primário, do qual emergiram, por desdobramento, todos os demais, é o da proteção do hipossuficiente econômico.
Dos embates gerados pela Revolução Industrial nasceu a certeza de que, nas relações de trabalho subordinado, a igualdade jurídica preconizada pelo Direito Comum para os sujeitos das relações jurídicas se tornaria utópica em virtude da deformação que o poder econômico de um provocaria na manifestação de vontade do outro.
Firmou-se, então, o preceito fundamental que dá o traço mais vivo do Direito do Trabalho: é imperioso amparar-se com a proteção jurídica a debilidade econômica do empregado, na relação individual de emprego, a fim de restabelecer, em termos reais, a igualdade jurídica entre ele e o empregador.
Esse princípio expandiu-se em três direções tão marcantes que costumam ser vistas como outros tantos princípios, embora concordemos com o lúcido raciocínio de Plá Rodrigues sobre tratar-se de simples regras de aplicação do princípio da proteção: a do in dubio pro misero ou pro operario, a da aplicação da norma mais favorável e da observância da condição mais benéfica.55
Colhe-se, na sequência, a lição de Maurício Godinho Delgado:
Princípio da Proteção – Informa este princípio que o Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia – o obreiro -, visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho. 56
Colaciona-se, enfim, a preleção de Sérgio Pinto Martins: Princípio da proteção. Temos como regra que se deve
proporcionar uma forma de compensar a superioridade econômica do empregador em relação ao empregado, dando a este último uma
55 PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de direito individual do trabalho. 4 ed. São Paulo: LTr, 2000, p. 71. 56 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 2 ed. São Paulo: LTr, 2003, p. 197.
69
superioridade jurídica. Esta é conferida ao empregado no momento em que se dá ao trabalhador a proteção que lhe é dispensada por meio da lei.
Pode-se dizer que o princípio da proteção pode ser desmembrado em três: (a) o in dubio pro operario; (b) o da aplicação da norma mais favorável ao trabalhador; (c) o da aplicação da condição mais benéfica ao trabalhador.
Na dúvida, deve-se aplicar a regra mais favorável ao trabalhador ao se analisar um preceito que encerra regra trabalhista, o in dubio pro operario.
A regra da norma mais favorável está implícita no caput do art. 7º da Constituição, quando prescreve ‘além de outros que visem a melhoria de sua condição social’.
A condição mais benéfica ao trabalhador deve ser entendida como o fato que vantagens já conquistadas, que são mais benéficas ao trabalhador, não podem ser modificadas para pior. (...) Ao menor aprendiz é garantido o salário mínimo horário, salvo condição mais favorável (§ 2º do art. 428 da CLT).57
Após a reprodução dessas partículas doutrinárias, cumpre esclarecer que os
autores citados não foram escolhidos aleatoriamente. Na realidade, os três, em
conjunto, podem delinear um quadro bastante expressivo do pensamento trabalhista
nacional, vez que cada um deles pertence a uma das três mais importantes escolas
juslaborais brasileiras, quais sejam, a baiana (José Augusto Rodrigues Pinto), a
mineira (Maurício Godinho Delgado) e a paulista (Sérgio Pinto Martins).
Importa sublinhar ainda, por motivos de justiça, que os fragmentos transcritos,
evidentemente, não representam a completude do pensamento de cada um dos
doutrinadores nominados, já que as suas contribuições doutrinárias estão lapidadas
em obras variadas, extensas e vigorosas.
Servem eles, todavia, para demonstrar que a doutrina, ainda que
involuntariamente, enfatiza os aspectos econômicos do princípio protecionista, não
trazendo nos seus aportes qualquer indicativo mais explícito de que o núcleo
essencial da proteção perpassa pelas normas de medicina e segurança no trabalho,
que visam resguardar a inteireza física e mental dos trabalhadores.
É de se ver, por exemplo, que Sérgio Pinto Martins, ao exemplificar a variável
protecionista da condição mais benéfica, fala na garantia do salário mínimo horário
ao menor aprendiz (salvo condição mais benéfica), silenciando-se, no decorrer da
sua explanação, por exemplo, sobre a regra inserta no artigo 7º, XXXIII, da
Constituição da República, que num claro esforço tuitivo da saúde dos menores de
57 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do trabalho. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p.p. 75 e 76.
70
dezoito anos, impede que eles trabalhem em condições ambientais insalubres ou
periculosas.
Parece elementar que essa forma pouco abrangente de se enxergar o
princípio protetivo tem como causa determinante o fenômeno retro nomeado pelo
epíteto de engodo juslaboral originário, que, encarado como o próprio pecado
original do Direito do Trabalho, nada mais faz do que legitimar a monetização da
saúde do trabalhador, como se a integridade física e psíquica do ser humano
pudesse ser adquirida à semelhança de mercadoria em prateleiras de
supermercados.
Não por outra razão, várias faculdades de direito nada mais fazem do que
ensinar cálculos aos seus alunos nas aulas em que eles deveriam tomar contato
com a verdadeira essência do juslaboralismo, calcada, como já visto, na
concretização dos direitos humanos.
É notório, pois, o depauperamento do modelo trabalhista em voga. O grande
desafio imposto à doutrina e à práxis contemporânea, assim, é o de refundar o
Direito do Trabalho, erguendo-o sobre o arrimo de uma base sólida, capaz de
sustentar na máxima extensão a dignidade do cidadão-trabalhador, conferindo-lhe,
para além de uma imprescindível distribuição de renda, um meio ambiente de
trabalho apto à preservação da sua saúde.
É imperioso, portanto, redimensionar a extensão do núcleo da proteção, para
que nele sejam incorporadas as mais notáveis balizas do Direito Ambiental,
estribadas nas idéias de prevenção, precaução e responsabilidade fundada nos
riscos ambientais. Faz-se necessário, em síntese, redesenhar a defasada idéia
tuitiva impregnada no imaginário dos juristas do mundo do trabalho, de modo a que
o juslaboralismo alargue as importantes, mas, porém, estreitas lindeiras do
protecionismo econômico.
5 PRINCÍPIOS DE DIREITO AMBIENTAL: INSTRUMENTOS DE AMPLIAÇÃO DA PROTEÇÃO TRABALHISTA
O marco histórico mais relevante do nascimento do Direito Ambiental foi a
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, ocorrida em
Estocolmo, na Suécia, no ano de 1972.
71
Firmou-se, como fruto de tal evento, o documento conhecido como
Declaração sobre o Meio Ambiente Humano, consubstanciado em vinte e seis
princípios que possuem, no dizer de Valerio de Oliveira Mazzuoli, “a mesma
relevância para os Estados que teve a Declaração Universal dos Direitos
Humanos”58.
Logo no princípio 1 da aludida Declaração está estatuído que o homem tem o
direito fundamental à liberdade, igualdade e adequadas condições de vida, num
meio ambiente cuja qualidade permita uma existência caracterizada pela dignidade e
o bem-estar.
Consoante se percebe, o documento em questão destaca, logo no seu início,
que o ser humano possui direito a um meio ambiente que lhe proporcione uma vida
digna e confortável. Não se pode concluir diferentemente, a não ser para se
compreender que na ampla expressão ‘meio ambiente’, contida no enunciado em
questão, está inserido o ‘meio ambiente do trabalho’.
Como resultado da assunção constitucional deste postulado internacional, o
artigo 225 da Constituição da República dispõe que todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
No mesmo diapasão, o artigo 7º, XXII, da Constituição estabelece como
direito do cidadão-trabalhador, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio
de normas de saúde, higiene e segurança.
Estabelecidos tais indicativos normativos, é de se sondar, agora, o que eles
de fato almejam. Ressoa inegável que ambos colimam agregar qualidade ao direito
fundamental à vida (artigo 5º, caput, da CRFB). Dito de outro modo, pode-se ficar
assentado que mais do que o direito de viver, as pessoas possuem o direito
fundamental de viver com qualidade, em um meio ambiente natural, urbano ou
trabalhista que lhes permita o exercício concreto desta prerrogativa.
Conforme já indicado ao longo do presente estudo, a monetização da saúde
do trabalhador, permitida e até mesmo estimulada pelo Direito do Trabalho,
decididamente não se mostra capaz de garantir ao cidadão-trabalhador o direito a
uma vida sadia. Assim é que o núcleo da proteção laboral deve ser enriquecido com
58 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Op. cit., p. 889.
72
as noções ambientais de desenvolvimento sustentável, poluidor-pagador,
prevenção, precaução e responsabilidade fundada nos riscos ambientais.
Serão doravante abordadas, nos tópicos que se seguem, cada uma dessas
facetas.
5.1 PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Um dos principais direitos que as diversas sociedades modernas possuem,
inegavelmente, é o direito ao desenvolvimento. É indene de dúvidas que tanto o
crescimento econômico quanto a distribuição de renda devem ser perseguidos em
um mundo que já ultrapassou a marca de seis bilhões de habitantes.
Crescimento, porém, não é necessariamente sinônimo de desenvolvimento.
Para que haja verdadeiro progresso, o desenvolvimento há de ser, nos seus mais
variados aspectos, ambientalmente sustentável. Faz-se necessário encontrar, com
efeito, um ponto de equilíbrio entre o crescimento econômico e a sadia qualidade de
vida.
Foi com os olhos voltados para tal necessidade que o mundo se reuniu no Rio
de Janeiro, de 3 a 14 de junho de 1992, por ocasião da Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
Como resultado desse grandioso evento, que historicamente representa a
certidão de maioridade do Direito Ambiental, foi firmada a Declaração do Rio de
Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que logo no seu Princípio 1 realça
que os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento
sustentável. Além disso, o seu Princípio 4 assevera que para alcançar o
desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante do
processo de desenvolvimento e não poderá ser considerada isoladamente deste.
Ainda que tal assertiva incorra em verdadeiro truísmo, há de se ressaltar que
o cidadão-trabalhador, naturalmente, está incluído entre os seres humanos que
estão no centro da preocupação com o desenvolvimento sustentável. Assim é que
também ele merece, na perspectiva da preservação da sua inteireza física e mental,
a proteção ambiental integrante do processo de desenvolvimento.
O grande repto, nesta quadra, é o de saber se o empregador, enquanto ente
privado, estaria compelido, ao lado do Poder Público, a promover políticas
empresariais de concretização do direito à sadia qualidade de vida do seu
73
empregado. Ocorre que, classicamente, os direitos fundamentais vinculam apenas o
Estado, já que os particulares tão-somente seriam os seus beneficiários, não
estando obrigados, por isso, a dar-lhes implementação.
O fato, entrementes, é que contemporaneamente essa chamada eficácia
vertical dos direitos fundamentais convive, sem quaisquer sobressaltos, com uma
outra de índole horizontal. Constata-se, dessarte, que para além da obrigação do
Estado de promover e respeitar os direitos fundamentais do cidadão, existe uma
outra dimensão jurídica que igualmente sujeita os particulares a imprimir-lhes
concretude.
A resposta ao desafio antes lançado, como se vê, é abertamente positiva.
Calha assentar, a propósito, que o artigo 225, caput, da Constituição da República,
ao depois de vivificar a fundamentalidade do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, estabelece, com tintas fortes e sem margem para
tergiversações, que não apenas o Poder Público, mas também a coletividade deve
promovê-lo.
Há de se visualizar, ademais, que toda a Magna Carta é permeada por essa
perspectiva. À guisa de exemplificação, é de se notar que embora o inciso XXII do
seu artigo 5º garanta o direito de propriedade, o inciso XXIII estabelece, já na
sequência, que tal garantia está jungida ao cumprimento de uma função social, que
no âmbito rural, v.g., somente será satisfeita quando a propriedade respeitar, dentre
outros requisitos, as disposições que regulam as relações de trabalho, obedecendo,
ainda, a um padrão exploratório que promova o bem-estar não só dos proprietários,
mas também dos trabalhadores (artigo 186, III e IV, da CRFB).
Demais disso, o artigo 170 da Constituição assume de vez a eficácia
horizontal dos direitos fundamentais ao esclarecer, já na sua cabeça, que a ordem
econômica, além de ser fundada na livre iniciativa, igualmente se arrima na
valorização do trabalho humano; e depois ao assentar em alguns dos seus incisos,
como princípios desta mesma ordem econômica, a função social da propriedade, a
defesa do meio ambiente e a busca do pleno emprego (incisos III, VI e VIII).
Aliás, a expressão “pleno emprego”, inserta no inciso VIII do artigo 170 da
CRFB, rechaça, por completo, qualquer iniciativa, seja estatal ou privada, de
precarização das relações de trabalho.
Isso significa dizer que a ordem econômica, além de ser comprometida com a
distribuição de renda por via do Direito do Trabalho, almeja garantir aos
74
trabalhadores um meio ambiente laboral equilibrado, livre de fatores que
comprometam a sua saúde física, mental e emocional.
Seria em honra do princípio do desenvolvimento sustentável, portanto, que
nenhum estabelecimento poderia iniciar suas atividades sem prévia inspeção e
aprovação das respectivas instalações pela autoridade regional competente em
matéria de segurança e medicina do trabalho (artigo 160 da CLT), sendo certo,
ademais, que a autoridade administrativa, ou mesmo a Justiça do Trabalho (esta se
devidamente provocada) poderia, uma vez demonstrado grave risco para o
trabalhador, interditar estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento,
ou mesmo embargar obra, indicando na decisão, tomada com a brevidade que a
ocorrência exigir, as providências que deveriam ser adotadas para prevenção de
infortúnios de trabalho (artigo 161 da CLT).
A realidade, entretanto, conspira letalmente contra tais possibilidades. Ocorre
que, lamentavelmente, o Ministério do Trabalho e Emprego não possui tentáculos
organizacionais suficientes para exercitar com eficiência o seu poder administrativo
sancionador.
Do mesmo modo, o Ministério Público do Trabalho, em que pese os seus
louváveis esforços recentes de capilarização pelo interior do Estado brasileiro,
igualmente não consegue, em virtude da sua fragilidade estrutural, trazer com a
necessária freqüência tais questões à Justiça do Trabalho59.
Já os sindicatos, de outro viés, embora possuam legitimidade para o
ajuizamento de ações civis públicas de natureza ambiental-trabalhista, mostram-se
muito mais preocupados com a defesa dos interesses puramente econômicos das
categorias que representam, comportamento que deve ser creditado à vertente
autoritária e patrimonialista que caracteriza o sindicalismo brasileiro, que em pleno
século XXI convive com as teratologias do sindicato único (artigo 8º, II, da CRFB) e
do financiamento não espontâneo (artigos 578 e seguintes da CLT).
5.2 PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR
59 Invoca-se, aqui, a experiência profissional do autor, para comprovar o asseverado. Ocorre que em dezesseis anos de atuação na Justiça do Trabalho, mais de uma década deles como juiz, teve ele em mãos apenas um processo em que o MPT solicitou a interdição de estabelecimento por motivos ambientais laborais, no qual, diga-se de passagem, prontamente deferiu a pretensão ministerial (conferir os autos do processo nº 00503.2007.061.23.00-4. Disponível em http://tinyurl.com/45yebzo).
75
Como visto no tópico anterior, o Direito Ambiental, nos seus mais variados
aspectos, quer sejam eles naturais ou laborais, deve se pautar pelo princípio do
desenvolvimento sustentável.
Ainda que tal diretriz seja respeitada, não raramente as chamadas
externalidades ambientais negativas acabam se configurando como resultado
prático do processo produtivo. Para um melhor compreensão do significado do
fenômeno em questão, reproduz-se, abaixo, a preleção de Luiz Guilherme Marinoni:
(...) sabe-se que a atividade produtiva pode gerar efeitos
secundários, que podem significar perdas ou benefícios que não foram previamente considerados. Quando esses efeitos são sinônimos de prejuízos, há o que se chama de externalidades negativas. Todavia, as externalidades negativas devem ser vistas como custos da produção, já que alguém estará sendo por elas prejudicado. A poluição, considerada como efeito secundário da atividade empresarial, constitui uma espécie de externalidade negativa, cujo custo deve ser suportado pelo empresário, que é quem aufere lucros por meio da atividade que expõe o meio ambiente a riscos.60
As externalidades ambientais negativas, como se vê, nada mais são do que
os prejuízos que a atividade produtiva gera para o meio ambiente. Pode-se dizer,
por exemplo, que se uma empresa poluir um curso d’água com os seus dejetos,
estará causando um prejuízo à sociedade, caracterizando-se, com efeito, uma
externalidade ambiental negativa emergida do seu processo produtivo.
Esta idéia, em essência, amolda-se perfeitamente ao Direito do Trabalho.
Deste modo, todas as vezes que o meio ambiente de trabalho causar um prejuízo à
saúde do trabalhador, como, v.g., uma doença ocupacional, estar-se-á diante
daquilo que a presente dissertação cognomina pelo epíteto de externalidade
ambiental-laboral negativa.
O grande debate a se travar no campo jurídico, como não poderia deixar de
ser, é o de saber quais são os efeitos das externalidades ambientais negativas, quer
sejam elas naturais ou laborais. Vale indagar: a) será lícito que a sociedade como
um todo, e os trabalhadores em específico, arquem com as ditas externalidades? b)
será plausível a privatização do lucro da atividade poluidora e a socialização das
suas perdas?
60 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 370.
76
A resposta, como se percebe, é intuitiva. Entra em jogo, na sua formulação, o
princípio do poluidor-pagador, cujo sentido ético aponta para a justa distribuição das
externalidades ambientais, de modo a que o poluidor61 arque com o ônus da
prevenção e da precaução (pagando para não poluir) e dos danos gerados pela sua
atividade (pagando porque poluiu).
Não se pode imaginar aqui, evidentemente, que o princípio do poluidor-
pagador outorga uma carta branca ao poluidor, para que uma vez pagando, possa
livremente poluir. Decididamente não. Tal sorte de raciocínio, aliás, é bastante
comum no Direito do Trabalho, onde se imagina que o empregador, uma vez
pagando os adicionais trabalhistas, não se veria compelido a tomar as medidas
preventivas e precaucionais de adequação ambiental aptas à preservação da saúde
dos trabalhadores. Cuida-se de verdadeira obviedade, no entanto, que um raciocínio
como tal não pode prevalecer.
Ocorre que a Constituição é mais do que clara quando assevera, no seu
artigo 7º, XXII, que a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas
de saúde, higiene e segurança, é um direito fundamental dos trabalhadores urbanos
e rurais. A propósito do quanto afirmado, vale dizer que o professor Sebastião
Geraldo de Oliveira denomina a prefalada regra sob o epíteto de princípio do risco
mínimo regressivo62, aduzindo, com colores acentuados, que a redução dos riscos
inerentes ao trabalho deve ser vista como “o norte, a preocupação central, o ponto
de partida e de chegada de qualquer programa sério sobre prevenção de acidentes
do trabalho ou doenças ocupacionais”63.
Em que pese todas essas considerações, o fato é que os juslaboralistas
continuam conservadoramente imbuídos do propósito de tão-somente reconhecer
aos trabalhadores os tradicionais adicionais econômicos que tanto caracterizam – às
vezes até pejorativamente – esse ramo do conhecimento jurídico especializado,
descurando-se, por completo, da responsabilidade que possuem em concretizar a
promessa constitucional de redução dos riscos inerentes ao trabalho.
61 É pertinente transcrever aqui os conceitos legais de poluição e poluidor, previstos, respectivamente, nos incisos III e IV do artigo 3º da Lei 6938-81, verbis: Art. 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental. 62 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 5 ed. São Paulo: LTr, 2010, p. 124. 63 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Ibid., p.123.
77
Raciocínio de tal jaez, entretanto, não merece prosperar, pois que dentre
outros motivos, acaba por malferir letalmente o princípio do poluidor-pagador. Vale
dizer que a lógica estruturante do Direito do Trabalho precisa ser urgentemente
invertida, para que se compreenda, dentro de um novel paradigma de
abalançamento de interesses jurídicos, que o principal direito dos trabalhadores é
aquele previsto no artigo 7º, XXII, da CRFB, que preconiza a redução dos riscos
inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Os adicionais econômicos, nesta perspectiva, somente devem incidir nas
relações de emprego quando os perigos inerentes à atividade laboral forem
impossíveis de serem eliminados ou pelo menos neutralizados.
Falando sobre a escala de prioridades em termos ambientais trabalhistas,
calha trazer a lume, vez mais, o magistério de Sebastião Geraldo de Oliveira:
A medida mais eficaz de combate ao agente agressivo,
obviamente, é a sua eliminação. Como isso nem sempre é possível tecnicamente ou viável economicamente, em último caso, a legislação permite que o agente seja apenas neutralizado, de modo a resguardar a saúde do trabalhador. (...)
Segundo a OIT, há quatro modalidades principais de prevenção contra os agentes danosos, relacionados na ordem decrescente quanto à eficácia: a) eliminação do risco; b) eliminação da exposição do trabalhador ao risco; c) isolamento do risco; d) proteção do trabalhador.
A primeira opção para eliminar o risco é a mais radical e também a mais eficaz. Elimina-se o ‘problema na sua fonte e trajetória, como, por exemplo: a instalação de um sistema de exaustão sobre uma bancada de polimento, onde há grande geração do poeira’. (...)
Na segunda opção indicada pela OIT, quando não for possível eliminar o risco, devem-se deslocar os empregados expostos, fracionando as operações em diversos estabelecimentos ou setores, para que o agente nocivo fique restrito aos trabalhadores diretamente envolvidos.
A hipótese seguinte é parecida porque determina o isolamento da atividade de risco, como, por exemplo: estabelecimento de barreiras absorventes que vedem a propagação do agente, providenciando o confinamento da área de processamento, adotando o enclausuramento de máquinas barulhentas, adquirindo equipamentos modernos com recursos de proteção ao trabalhador etc.
Quando nenhuma das alternativas anteriores for possível, quando as medidas de ordem geral não oferecerem completa proteção contra os riscos de acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais, como último recurso é que se deve adotar a opção da neutralização do agente por intermédio dos EPI. Só haverá neutralização quando a intensidade do agente agressivo for reduzida a limites toleráveis, considerando-se como tal a concentração ou
78
intensidade máxima ou mínima, relacionada com a natureza e o tempo de exposição do agente, que não causará dano à saúde do trabalhador, durante sua vida laboral.
(...) Uma das formas de combater o agente agressivo à saúde do
trabalhador é promover o agravamento financeiro dos adicionais, com o propósito de estimular o empregador no sentido de eliminar ou neutralizar o agente nocivo, em vez de continuar pagando os adicionais respectivos.
Especificamente no caso do adicional de insalubridade, o valor pago é tão reduzido que o empresário – na análise superficial de custo-benefício – não tem incentivo econômico para adotar medidas de melhoria do ambiente laboral, uma vez que o desembolso é de apenas 10%, 20% ou 40% do salário mínimo por mês, conforme previsto no art. 192 da CLT.64
Adensando a parte final da lição reproduzida, não custa lembrar que além da
ínfima base de cálculo dos adicionais ser um verdadeiro estímulo à perpetuação das
condições ambientais laborais em patamares degradantes, as práticas de diluição
contábil do salário de sentido estrito, gerando a ilusão do adimplemento dos
mencionados adicionais econômicos, contribuem ainda mais para tanto.
Nos próximos tópicos os subprincípios da prevenção, da precaução e da
responsabilidade fundada nos riscos ambientais serão analisados apartadamente,
para que o princípio do poluidor-pagador possa ser melhor compreendido.
5.2.1 Subprincípio da Prevenção
O subprincípio da prevenção65 trabalha com a noção de que o dano de
natureza ambiental, uma vez configurado, será, no mais das vezes, de
recomposição praticamente impossível.
Assim é que a atuação preventiva, no dizer de José Rubens Morato Leite, “é
um mecanismo para a gestão dos riscos, voltado, especificamente, para inibir os
64 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Ibid., p. 361, 362 e 367. 65 Vale advertir que uma boa parte da doutrina não considera a prevenção um subprincípio do poluidor- pagador. Considera-o, ao contrário, um superprincípio de direito ambiental. Tome-se, v.g., a lição de MELO, Raimundo Simão. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador. São Paulo: LTr, 2004, p. 48: “O princípio da prevenção é considerado um megaprincípio ambiental, o princípio-mãe da ciência ambiental, e tem fundamento no princípio n.15 da Declaração do Rio de Janeiro de 1992: Para proteger o meio ambiente medidas de precaução devem ser largamente aplicadas pelos Estados segundo suas capacidades. Em caso de risco de danos graves e irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para procrastinar a adoção de medidas visando a prevenir a degradação do meio ambiente.”
79
riscos concretos ou potenciais, sendo esses visíveis e previsíveis pelo conhecimento
humano”66.
Transplantando a discussão para o foco do estudo em desenvolvimento,
pode-se dizer que o meio ambiente laboral desequilibrado poderá gerar, por via de
acidentes do trabalho, neles incluídas, por suposto, as doenças ocupacionais67,
danos absolutamente irreversíveis à saúde dos trabalhadores.
Convém, por conseguinte, operar o Direito do Trabalho na lógica da
prevenção, a fim de que o ambiente laboral ofereça as condições necessárias para a
manutenção da higidez física e mental dos operários que nele labutam.
De tal arte, todas as vezes em que se estiver diante de um risco previsível,
será obrigação do empregador tomar as medidas preventivas capazes de inibir a sua
consumação.
Eis aí, no âmbito laboral, a tradução do princípio do poluidor-pagador, quando
mirado pela faceta da prevenção. O empresário, neste caso, pagará para não poluir,
ou seja, para não gerar acidentes de trabalho.
Frise-se, aliás, que o Direito Internacional do Trabalho, atento a esta
necessidade, vem se comprometendo com a lógica em questão. É de se sublinhar, a
propósito, que existe uma série de convenções da Organização Internacional do
Trabalho que tocam no tema da prevenção trabalhista, como, por exemplo, as de
número 148, 155, 161 e 187.
Dentre elas a de maior relevo é a Convenção n. 187, já que a própria OIT a
chancela, logo no seu preâmbulo, como “el marco promocional para la seguridad y
salud en el trabajo”, sendo o seu desiderato principal, certamente, o de “promover la
mejora continua de la seguridad y salud en el trabajo con el fin de prevenir las
lesiones, enfermedades y muertes ocasionadas por el trabajo” (item 2.1)68.
De modo a demonstrar a extraordinária magnitude do mencionado documento
normativo internacional, reproduz-se, abaixo, o escólio do professor Sebastião
Geraldo de Oliveira:
66 LEITE, José Rubens Morato; CANOTILHO, José Joaquim Gomes (orgs.). Sociedade de risco e estado. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 172. 67 Insta realçar que nos termos do artigo 20 da Lei 8.213-91 as doenças ocupacionais, como tais entendidas a doença profissional e a doença do trabalho, estão inseridas no conceito amplo de acidente de trabalho. 68 Disponível em: http://tinyurl.com/3zuqbx5. Acesso em: 18.08.2011.
80
Por ocasião da 91ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada em 2003, foi adotada uma Resolução relativa à segurança e saúde no local de trabalho, prevendo a inclusão do tema nas futuras atividades normativas da OIT. Concluiu-se que era necessário fomentar, com máxima prioridade, uma cultura preventiva a respeito da segurança e saúde do trabalhador, em nível internacional, nacional e empresarial. Para alcançar êxito, seria adotada uma estratégia global e articulada para aprovar um documento impactante, de grande prestígio e respaldo político dos Estados-Membros, que passaria a representar, verdadeiramente, um marco nas medidas preventivas de segurança e saúde nos locais de trabalho.
Dando cumprimento ao que foi planejado, a OIT, após estudos aprofundados, colocou o projeto da Convenção para ser apreciado nas Conferências de 2005 e 2006, com amplos debates e interesses dos Estados-Membros. Finalmente, em junho de 2006, foi aprovada a Convenção n. 187 por esmagadora maioria (455 votados a favor, 2 votos contra e 5 abstenções), o que demonstra o consenso internacional sobre a importância da segurança e saúde nos ambientes de trabalho e necessidade de implementação das medidas propostas.69
Como se percebe, a Convenção n. 187 da OIT é um verdadeiro paradigma
internacional da cultura da prevenção no trabalho. Lamentavelmente, no entanto, o
Brasil não se dignou a ratificá-la até a presente data, o que se espera aconteça em
breve70.
Mas ainda que o Brasil esteja inerte quanto à internalização do diploma
normativo em tela, é de se ver que existem na legislação brasileira, tanto no plano
constitucional quanto no infraconstitucional, os mais variados instrumentos que
justificam, de imediato, a adoção da cardeal preservacionista no universo laboral.
Basta notar, como já exaustivamente assentado no decurso desta
explanação, que o artigo 7º, XXII, da CRFB honorifica como direito fundamental dos
trabalhadores urbanos e rurais, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio
de normas de saúde, higiene e segurança.
69 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 5 ed. São Paulo: LTr, 2010, p. 86. 70 Destaca-se aqui, vez mais, as palavras de OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Ibid., p.88: “No Brasil, a Portaria Interministerial n. 152, de 13 de maio de 2008, instituiu a Comissão Tripartite de Saúde e Segurança no Trabalho, com o objetivo de avaliar e propor medidas para implementação, no país, da Convenção n. 187. Essa Comissão deverá elaborar a proposta da Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador – PNSST, de forma a atender às diretrizes da OIT, bem como elaborar um Programa Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho, com definição de estratégias e planos de ação para sua implementação, monitoramento, avaliação e revisão periódica, no âmbito das competências do Trabalho, da Saúde e da Previdência Social. Tudo indica, portanto, que brevemente a Convenção n. 187 da OIT será ratificada pelo Brasil, instituindo um novo paradigma quanto ao direito ao meio ambiente do trabalho seguro e saudável para todos.”
81
Afinada neste diapasão, a Consolidação das Leis do Trabalho estabelece, nos
seus artigos 154 a 201, toda uma série de regras de medicina e segurança do
trabalho, que podem e devem ser contemporaneamente justificadas no princípio da
prevenção.
Infelizmente, porém, esses dispositivos são quase que absolutamente
desconhecidos pelos juslaboralistas. Além da precariedade dos órgãos estatais da
fiscalização trabalhista, tal fato se justifica no fenômeno antes estudado do engodo
juslaboral originário, que tem permitido, propositadamente, a monetização da saúde
dos trabalhadores.
Vale destacar, diante deste cenário, que um dos principais aspectos da
prevenção no âmbito trabalhista está intimamente ligado ao direito à informação de
que são titulares os trabalhadores. Devido à notável importância desta faceta
preventiva, ela será tratada na seqüência, em tópico próprio.
5.2.1.1 Subprincípio da prevenção: direito à informação
Como já se sublinhou alhures, o artigo 225 da Constituição da República
vaticina, no seu caput, que todos têm direito ao meio ambiente equilibrado.
Na esteira desta disposição, o § 1º, inciso VI, do prefalado artigo 225, estatui
que incumbe ao Poder Público, para assegurar a efetividade do mencionado direito,
promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização
pública para a preservação do meio ambiente.
Em consonância com esse notável regramento constitucional, a Lei 9.795-99
instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental, na qual foi delineado um
sistema sinérgico de obrigações educacionais de conteúdo ambiental repartidas
entre o Poder Público e a sociedade civil.
Sobreleva realçar, quanto às obrigações dos particulares, o disposto no artigo
3º, V, do aludido diploma legal, que impõe às empresas, entidades de classe,
instituições públicas e privadas, o dever de promover programas destinados à
capacitação dos trabalhadores, visando à melhoria e ao controle efetivo sobre o
ambiente de trabalho, bem como sobre as repercussões do processo produtivo no
meio ambiente.
Tais disposições protecionistas merecem destaque por serem os principais
vetores de um sistema preventivo digno de credibilidade. Não é por outro motivo,
82
aliás, que o item 7.2 da Convenção 148 da OIT prevê que “los trabajadores o sus
representantes tendrán derecho a presentar propuestas, recibir informaciones y
formación, y recurrir ante instancias apropiadas, a fin de asegurar la protección
contra los riesgos profesionales debidos a la contaminación del aire, el ruido y las
vibraciones en el lugar de trabajo”71.
Assim é que o subprincípio da prevenção, quando mirado pela ótica
juslaboral, impõe não só ao Poder Público, mas também aos empregadores, o dever
de prestar todas as informações que forem necessárias ao resguardo da integridade
física e moral dos seus empregados.
Justamente por isso é que o artigo 157, II, da CLT, dirige às empresas a
obrigação de instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às
precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças
ocupacionais.
Do mesmo modo, o artigo 19, § 3º da Lei 8.213-91 aduz que é dever da
empresa prestar informações pormenorizadas sobre os riscos da operação a
executar e do produto a manipular.
Antes de se passar a discorrer sobre o subprincípio da precaução, será ainda
necessário abordar, no próximo tópico, a possibilidade de uso da tributação como
mecanismo preventivo indireto no meio ambiente de trabalho.
5.2.1.2 Subprincípio da prevenção: extrafiscalidade
A prevenção trabalhista pode ser estimulada por meio de uma série de
iniciativas legislativas. Uma delas, seguramente, tem morada no campo da
tributação. Ocorre que a extrafiscalidade, ao atuar pela imposição de uma escala
tributária móvel, que oscile para cima e para baixo a depender dos resultados
ambientais-laborais dos contribuintes72, pode ser um importantíssimo elemento de
incremento da saúde e segurança no trabalho.
71 Disponível em: http://tinyurl.com/3e3mhyy. Acesso em: 18.08.2011. 72 Não se deseja aqui defender, obviamente, o uso da tributação como sanção. Intenta-se, tão-somente, demonstrar que o direito tributário pode cumprir uma função preventiva importante no campo ambiental, capaz de estimular a sociedade, pela lógica das “green taxes”, a adotar comportamentos sustentáveis. Colaciona-se, por pertinente, a lição de FERRAZ, Roberto. Tributação ambientalmente orientada e as espécies tributárias no Brasil. In: TÔRRES, Heleno Taveira (org). Direito tributário ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 341: “Seria portanto impróprio e errado sancionar atividades poluidoras com tributos mais pesados. Quando o objetivo seja sancionar, o instrumento próprio será a proibição sancionada com multa ou outra pena que o sistema jurídico
83
Em consonância com tal possibilidade, o artigo 10 da Lei 10.666-200373
manda reduzir, em até 50%, ou aumentar, em até 100%, os valores das
contribuições relativas ao Seguro de Acidente de Trabalho - SAT, conforme o
desempenho da empresa quanto à ocorrência de acidentes de trabalho e doenças
ocupacionais no seu quadro de empregados.
Tal medida é de acerto indiscutível. Ora, se um estabelecimento empresarial
possui níveis de acidentes de trabalho maiores do que aqueles relativos à média da
atividade econômica em que está inserido, a única conclusão que se pode extrair do
fato é que o empresário não investe a contento na segurança dos trabalhadores.
Ao agir assim, o empregador desidioso, além de lucrar, penaliza em muito a
sociedade.
Lucra porque reduz substancialmente os custos da sua atividade produtiva,
fazendo-o por via da debilitação da saúde dos seus empregados, em verdadeira
afronta aos fundamentos republicanos da dignidade da pessoa humana e dos
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, III e IV, da Constituição da
República).
Penaliza a sociedade porque lhe transfere, por via do Sistema Único de
Saúde (artigo 200, II e VIII, da CRFB), o custo do tratamento dos empregados
acidentados.
Esse mal empresário, como se vê, de uma só tacada privatiza lucros e
socializa perdas, sendo mais do que natural, de tal arte, que se responsabilize,
relativamente ao Seguro de Acidentes de Trabalho – SAT (artigo 7º, XXVIII, 1ª parte,
da CRFB), por uma alíquota maior do que aquela dirigida àqueles que se esmeram
na redução dos riscos inerentes ao trabalho.
Tem-se aí, com efeito, mais um dos sentidos ético-jurídicos do princípio do
poluidor-pagador, quando encarado, nos âmbitos tributário e juslaboral, pela ótica da
prevenção.
possa indicar; mas nunca o tributo. Isso não significa que não se possa tributar diferenciada e mais pesadamente uma atividade nociva ao meio ambiente, mas não como sanção. A tributação ambientalmente orientada haverá de respeitar a estrutura a regras próprias do tributo, que, repita-se, jamais poderá caracterizar sanção.” 73 Note-se que o artigo 10 da Lei 10.666-2003 foi regulamentado pelo artigo 202-A do Decreto nº 3.048-1999, com a redação dada pelo Decreto nº 6.957-2009. Não são poucos aqueles que questionam a constitucionalidade formal da mencionada regulamentação, ao argumento de que ao estabelecer critérios de identificação de alíquotas, ela acabou por se imiscuir em campo reservado à lei, malferindo, assim, o princípio de legalidade estrita próprio do direito tributário.
84
5.2.2 Subprincípio da Precaução (Releitura do Princípio In Dubio Pro
Operario)
A primeira tarefa que se impõe aqui, é a de diferenciar os subprincípios da
precaução e da prevenção. Apresenta-se, para tanto, a preleção de José Rubens
Morato Leite e Melissa Ely de Melo:
Tendo em vista o princípio da precaução, sempre que houver
perigo da ocorrência de um dano grave ou irreversível, a ausência de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como razão para se adiar a adoção de medidas eficazes, a fim de impedir a degradação ambiental. Com efeito, este princípio reforça a regra de que as agressões ao meio ambiente, uma vez consumadas, são normalmente, de reparação difícil, incerta e custosa, e pressupõem uma conduta genérica in dubio pro ambiente. (...)
Comparando-se o princípio da precaução com o da atuação preventiva, observa-se que o segundo exige que os perigos comprovados sejam eliminados. Já o princípio da precaução determina que a ação para eliminar os possíveis impactos danosos ao ambiente seja tomada antes de um nexo causal ter sido estabelecido com evidência científica absoluta. 74
A prevenção, como se percebe, opera no contexto da eliminação do perigo
certeiro, enquanto que a precaução se justifica na necessidade de exclusão do risco
potencial.
Ao contrário do que se possa imaginar, a conduta precaucional possui
concreto respaldo jurídico, estando expressamente albergada no princípio 15 da
Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que
estabelece, sem margem para tergiversações, que “quando houver ameaça de
danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser
utilizada como razão para a postergar medidas eficazes e economicamente viáveis
para prevenir a degradação ambiental”75.
Tal lógica, evidentemente, merece ser transposta para o Direito do Trabalho.
Seu sentido ético, no interior do ramo juslaboral, aponta para uma releitura do
princípio in dubio pro operario.
74 LEITE, José Rubens Morato; MELO, Melissa Ely. As funções preventivas e precaucionais da responsabilidade civil por danos ambientais. In: PES, João Hélio Ferreira; OLIVEIRA, Rafael dos Santos de (orgs). Direito ambiental contemporâneo: prevenção e precaução. Curitiba: Juruá, 2009, p. 62. 75 Disponível em: http://tinyurl.com/3f25hjx. Acesso em 18.08.2011.
85
Ocorre que a doutrina clássica analisa a mencionada diretriz em perspectiva
estreita, cingindo-a ao status de mera regra de hermenêutica trabalhista. Traz-se,
neste diapasão, a lição de Arnaldo Sussekind:
Os fundamentos jurídico-políticos e sociológicos do princípio
protetor geram, sem dúvida, outros, que deles são filhos legítimos: a) o princípio ‘in dubio pro operario’, que aconselha o intérprete a escolher, entre duas ou mais interpretações viáveis, a mais favorável ao trabalhador, desde que não afronte a nítida manifestação do legislador, nem se trate de matéria probatória.76
Todavia, como já se assentou no início do presente estudo, o modelo
justrabalhista vigente merece ser repensado ambientalmente, de modo a que os
princípios de Direito Ambiental se transformem em instrumentos de ampliação da
proteção laboral.
Faz-se imprescindível, em tal contexto, alargar-se as potencialidades do
adágio in dubio pro operario, a fim de que para além do seu viés interpretativo, ele
assuma as nobres possibilidades precaucionais.
Dessarte, mesmo nos contextos de dúvida, dúvida séria, evidentemente, a
precaução justificará a necessidade de exclusão de todo e qualquer risco potencial à
saúde dos trabalhadores.
Entra em jogo aqui, mais uma vez, a lógica do poluidor-pagador que, também
pela ótica precaucional, pagará para não poluir, ou seja, para não gerar acidentes
de trabalho ou doenças ocupacionais
Um bom exemplo de incidência do subprincípio da precaução ao Direito do
Trabalho reside no tema do amianto, que diante das suas especificidades será
enfrentado em apartado.
6.2.2.1 Subprincípio da precaução: a questão do amianto
O amianto ou asbesto, como se sabe, trata-se de uma fibra mineral presente
em grande quantidade na natureza, que em virtude de não ser combustível passou a
ser extraído das minas rochosas para ser usado em larga escala nos sistemas
76 SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. Vol. 1. 21 ed. São Paulo: LTr, 2004, p. 145.
86
produtivos que emergiram da Revolução Industrial no século XIX, principalmente
para fins de isolamento térmico.
A partir do século XX, o seu uso expandiu-se, por exemplo, para a fabricação
de caixas d’água, telhas, além de freios e embreagens na indústria automotora.
Hodiernamente, no entanto, inexistem maiores dúvidas sobre a sua
nocividade, tanto para o meio ambiente quanto para o ser humano, sendo certo que
a sua inalação provoca neste último doenças como a asbestose, vulgarmente
conhecida como endurecimento do pulmão, e cânceres diversos, dentre eles os de
pulmão, de pericárdio e do trato gastrointestinal.
Aqueles que mais sofrem com esses problemas, por certo, são os integrantes
da classe trabalhadora, na medida em que participam ativamente do processo de
extração e industrialização do mineral em questão. Justamente por isso, o seu uso
foi completamente banido em mais de cinquenta países, dentre eles nações
civilizadas como a Alemanha, a Bélgica, a Espanha, a França, a Holanda, a Itália, o
Japão, a Noruega, a Suécia e a Suíça.
No Brasil, entrementes, a questão ainda não se encontra adequadamente
resolvida. Ocorre que o nosso país, valendo-se de permissivo contido na Convenção
162 da OIT, editou a Lei 9.055-95 para reger a matéria, a qual fez diferenciação
entre duas variedades da fibra em questão.
Relativamente ao primeiro grupo, dos anfibólios (asbesto marrom e azul), o
artigo 1º da antedita lei vedou, peremptoriamente, em todo o território nacional, a
sua extração, produção, industrialização, utilização e comercialização.
No concernente ao segundo, conhecido por crisotila (asbesto branco),
possibilitou, no seu artigo 2º, a extração, industrialização, utilização e
comercialização em consonância com as disposições contidas nos artigos
subsequentes.
Tal permissivo, no entanto, é de conveniência no mínimo duvidosa, pois que
se de um lado temos as indústrias que se beneficiam da sua exploração econômica
defendendo a visão que o seu uso controlado não acarretaria danos à saúde
humana, temos, de outro, vários estudos que apontam para o contrário.
Aliás, como bem advertem Arnoldo Wald e Donaldo Armelin, o tratamento
diverso que a Lei 9.055-95 estabeleceu para as duas modalidades de asbesto
“decorreu (...) menos da sua intrínseca nocividade e sim da combinação de seu
menor potencial ofensivo com a inexistência, naquela oportunidade, de sucedâneo
87
idôneo inócuo para a saúde humana para substituir o amianto crisotila nas inúmeras
modalidades de sua utilização”77.
Vê-se daí que, na pior das hipóteses, existe iniludível controvérsia sobre a
nocividade do amianto crisotila para a saúde humana, circunstância que recomenda,
à luz da vertente precaucionista, o seu completo e imediato banimento no território
nacional.
É inelutável, aliás, a inconstitucionalidade dos artigo 2º e seguintes da Lei
9.055-95, quando cotejados com os artigos 7º, XXII, e 196 da CRFB, que apregoam,
respectivamente, a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de
saúde, higiene e segurança, e a saúde como um direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos.
Poder-se-ia esboçar, contrariamente à tese defendida no parágrafo anterior,
que o puro e simples banimento do amianto crisotila certamente causaria ainda mais
desemprego no país.
Esta é, sem dúvida, uma observação embaraçosa.
Não custa rememorar, contudo, que a ordem econômica brasileira, fundada
na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, devendo respeitar,
além de outros, os princípios da função social da propriedade, da defesa do meio
ambiente e da busca do pleno - e não do precário - emprego (artigo 170, caput, III,
VI e VIII, da CRFB).
Não basta à ordem econômica brasileira, dessarte, gerar empregos; mais do
que isso, a ela interessa criar empregos dignos e decentes, que além de propiciar ao
trabalhador o seu sustento pessoal e familiar, não lhe comprometam a integridade
física e psíquica.
Associado a esta observação, não custa pontuar que do ano de 1995 - ano da
edição da malfadada Lei 9.055-95 - para cá a técnica industrial alterou-se
substancialmente, tendo sido criadas uma série de fibras artificiais capazes de
substituir, até mesmo vantajosamente, o amianto crisotila na fabricação dos mais
variados artefatos.
77 WALD, Arnoldo; ARMELIN Donaldo. A disciplina jurídica do amianto no ordenamento jurídico nacional. Disponível em: http://tinyurl.com/63bzk4d. Acesso em: 12.09.2011.
88
O uso amplificado destes mencionados materiais, tais como as fibras de
polipropileno (PP) e de poli álcool vinílico (PVA), será capaz, certamente, de gerar
empregos hábeis a absorver o operariado que hoje labuta na industrialização do
asbesto.
Demais disso, o Estado deverá gerar políticas públicas especiais de conteúdo
inclusivo, que propiciem a reincorporação dos trabalhadores que atualmente laboram
na extração do amianto crisotila ao mercado de trabalho.
5.2.3 Subprincípio da Responsabilidade Fundada nos Riscos Ambientais
Como já exaustivamente pontuado ao longo da presente explanação, o
sentido ético-jurídico do princípio do poluidor-pagador aponta para a justa
distribuição das externalidades ambientais negativas, de modo a que o poluidor
arque com o ônus da prevenção e da precaução, pagando para não poluir, e dos
danos gerados pela sua atividade, pagando porque poluiu.
Como ficou assentado, a prevenção e a precaução trabalham com as tutelas
inibitória e da remoção do ilícito, a fim de que eventuais danos concretos ao meio
ambiente ou à saúde dos trabalhadores não se consumem. Pode-se dizer, em
síntese, que a prevenção e a precaução privilegiam a lógica preventiva em
detrimento da repressiva.
O fato, entrementes, é que nem sempre os danos são evitados. A grande
questão a ser respondida, nesse contexto, é quem deverá responder pelos prejuízos
ambientais - naturais e laborais - acontecidos.
Em uma perspectiva conservadora, poder-se-ia aduzir que sendo o dano
oriundo de um ilícito, a obrigação reparatória incidiria sobre aquele que culposa ou
dolosamente abriu ensanchas à sua ocorrência. Inexistindo, por outro lado, ilicitude
na sua origem, não haveria que se cogitar na responsabilização civil de quem quer
que seja.
Não parece correto, contudo, que seja esta a diretriz jurídico-ambientalista
para o tema, haja vista que o beneficiário da externalidade negativa deverá arcar,
pela lógica do poluidor-pagador, com o risco da sua atividade, independentemente
da licitude ou ilicitude da sua conduta.
89
Vale dizer, nesta última perspectiva, que o poluidor deverá pagar por ter
poluído, já que não faz sentido que ele privatize os seus lucros e socialize as suas
perdas.
Ocorre que nos termos do artigo 225 da CRFB, o ambiente ecologicamente
equilibrado é um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.
Dito de outro modo, o meio ambiente é um bem jurídico imaterial, que transcende
em muito a propriedade particular.
Assim é que não se mostra razoável cogitar que um ente privado possa
explorá-lo em benefício próprio, degradá-lo, e ao depois deixar de recompor o dano
em prol da sociedade (lembre-se que o meio ambiente é um direito de todos e
essencial à sadia qualidade de vida), ainda que a sua atividade esteja demarcada
pelas balizas da licitude.
Não custa destacar, ainda, que a responsabilidade fundada no risco possui a
virtude de indiretamente homenagear os postulados da prevenção e da precaução,
já que o empreendedor, ciente desta possibilidade, fatalmente agirá com mais
cautela na condução das suas iniciativas.
Importante transcrever, a propósito do quanto asseverado no parágrafo
anterior, a lição de José Rubens Morato Leite e Patrick de Araújo Ayala, invocando,
na defesa do ponto de vista que esgrimem, o pensamento de José de Souza Cunhal
Sendim:
Ao discutir as potencialidades do sistema da responsabilidade
civil no que tange ao dano ambiental, Sendim destaca que os eventuais poluidores, cientes de que serão responsáveis economicamente pelos danos ambientais, têm forte motivo para evitar e prevenir a ocorrência destes danos. Assim, além de contribuir para a compensação dos custos sociais do dano ambiental, a responsabilidade civil pode fazer com que o poluidor atue ante a degradação ambiental e, como consequência, diminua os riscos ambientais.
Nesta linha desempenhada por Sendim verifica-se, claramente, que o sistema da responsabilidade civil tem uma clara vocação preventiva, pois de além de trazer segurança jurídica, pela certeza da imputação, e fazer com que o eventual poluidor evite o dano, contribuirá para a conscientização da preservação.78
78 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribuanais, 2010, p. 66.
90
Atenta a estas e outras obviedades, a legislação de regência não deixa
qualquer margem para dúvidas, ao vaticinar, no § 1º do artigo 14 da Lei 6.938-81,
que o poluidor fica obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar
ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua
atividade.
A grande indagação a ser desafiada, dessarte, é se esta responsabilização
objetiva pode ser transportada para aqueles casos em que o trabalhador se acidenta
ou adquire doença profissional no meio ambiente de trabalho em que ativa.
A resposta afigura-se intuitiva, vez que no caso está-se diante de mais uma
externalidade ambiental-laboral negativa, que obriga a sociedade a suportar, por via
da Previdência Social, os custos da incapacitação do trabalhador.
Também não se mostra plausível aqui, que o empresário privatize num
primeiro momento os lucros obtidos às custas da saúde do empregado, para ao
depois, pura e simplesmente, socializar os custos do tratamento e da manutenção
do obreiro com a sociedade.
A questão, todavia, é de intrincado enfrentamento no plano legislativo.
Ocorre que o artigo 7º, XXVIII, da Magna Carta, aparentemente trabalha com
a idéia da responsabilidade subjetiva, ao ditar que é direito do trabalhador o seguro
contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a
que está obrigado quando incorrer em dolo ou culpa.
O tratamento da matéria, porém, não é tão simplista quanto possa parecer de
uma leitura isolada e açodada do mencionado preceptivo.
O fato é que se por um lado o inciso XXVIII do artigo 7o da CRFB de fato
prevê a obrigação de o empregador indenizar o empregado acidentado nos casos de
dolo ou culpa, por outro não é menos certo que os itens elencados no aludido artigo
se constituem num rol mínimo de direitos do cidadão-trabalhador, que podem ser
aumentados por legislação infraconstitucional, sem que disso redunde eiva de
inconstitucionalidade.
Em verdade, como é básico para os profissionais do Direito do Trabalho, o
constituinte originário de 1988, quando vaticinou no caput do artigo 7o da CRFB que
“são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social”, fez uma inequívoca opção de outorgar status
constitucional ao princípio juslaboral da norma mais favorável, que assim deve ser
encarado pelo legislador ordinário como critério de política legislativa, cabendo-lhe,
91
portanto, a partir do rol mínimo de direitos estampados nos incisos do artigo 7o da
Constituição, ampliar o padrão setorial de direitos dos trabalhadores brasileiros,
sempre que conveniente.
Plantada esta primeira estaca, faz-se imprescindível perquirir, doravante,
sobre a existência de legislação infraconstitucional mais benéfica, que acolha no seu
interior a objetivação da responsabilidade civil-trabalhista.
Suponha-se, por exemplo, que haja lacuna celetista sobre o tema. Neste
caso, poder-se-ia aplicar à espécie, com fulcro no parágrafo único do artigo 8º da
CLT, supletivamente falando, a prefalada disposição inserta no § 1º do artigo 14 da
Lei 6.938-81.
Não parece ser esta, contudo, a hipótese a ser eleita.
Ocorre que da Consolidação das Leis do Trabalho pode-se perfeitamente
extrair, uma vez lido o mencionado diploma em conformidade com os postulados do
Estado Democrático-Ambiental de Direito, a consagração da teoria civilista do risco
profissional, já que o seu artigo 2º define a figura jurídica do empregador como a
empresa individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica,
admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços.
Frise-se: o empregador, juridicamente falando, é aquele que assume os riscos
da atividade econômica. Nem se objete que a intenção original da Consolidação não
seria a de trazer para o âmbito da relação juslaboral a teoria do risco. Se por um
lado isso seria verdade, não se poderia deixar de enxergar, por outra vertente, que o
texto legal assume significâncias múltiplas e diversas ao longo do tempo, havendo
de ser interpretado em consonância com o momento histórico da sua aplicação.
Tratando da necessidade de alargamento contemporâneo da noção do risco
organizacional, tem-se o magistério de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka,
que embora não seja propriamente voltado para a questão trabalhista, calha justo à
hipótese vertida:
Não resta nenhuma dúvida a respeito da urgência de se
instalar, no contexto de responsabilização civil contemporâneo, uma ampliação significativa do espectro do risco que permeia e caracteriza uma mise en danger, quer dizer, alargar as fronteiras de conformação deste risco, para não entendê-lo apenas como um risco material ou técnico, mas senão, ainda, como um risco pelo fato da organização e mesmo como um risco pelo fato de outrem, por que não?
92
Por risco pelo fato da organização se tem entendido como aquele advindo de atividades empresariais que exijam, para a sua execução, uma extraordinária complexidade estrutural, resultando numa periculosidade vinculada especialmente às automatizações, às uniformizações, às especializações, às produções e aos serviços mais específicos, implicando uma organização do trabalho e uma repartição das responsabilidades quase sempre muito ramificadas. Mas este risco pelo fato da organização pode se manifestar, igualmente, por ocasião de importantes aglomerações de pessoas (...). A instauração de uma responsabilidade sem culpa pelo fato da organização é, igualmente, defendida na Suíça e transparece como preferência em alguns setores italianos, franceses e belgas.
E essas são, portanto, algumas das anotações que a doutrina contemporânea tem feito acerca da insuficiência da noção atual de mise en danger como critério fundante de um sistema geral de responsabilidade sem culpa. E por conta dessa verificação de insuficiências é que têm os cientistas do direito (...) buscado a conformação de um novo padrão de caracterização da mise en danger que pudesse ser portador de um critério mais geral de fundamentação do regime objetivo da responsabilidade civil. Um critério mais abrangente, mais consentâneo com a elevação de valores humanos, constitucionalmente assegurados, como a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social.79
Falando em termos trabalhistas específicos, faz-se importante trazer, ainda, a
lição de Raimundo Simão de Melo sobre os contornos da teoria do risco profissional: Teoria do Risco Profissional. Trata-se, na verdade, da
teoria objetiva transportada para o âmbito das relações de trabalho, embasada no risco laboral, pelo que, aquele que se beneficia de uma atividade deve indenizar os trabalhadores vitimados por acidentes. O empregado não precisa, de acordo com essa teoria, demonstrar a culpa do empregador, bastando que o acidente ocorra dentro dos riscos normais inerentes ao trabalho.80
Registra-se, assim, que é no mínimo preocupante que a jurisprudência
trabalhista esteja até hoje discutindo o tema da responsabilidade civil oriunda de
acidentes e doenças ocupacionais à luz da vertente subjetiva. Faz-se imperioso que
a magistratura laboral permita, urgentemente, que os seus fundamentos decisórios
sejam permeados pelo princípio jusambiental do poluidor-pagador, encarado pelo
viés da responsabilidade fundada nos riscos ambientais trabalhistas.
79 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 340, 341. 80 MELO, Raimundo Simão de. Op.cit., p. 249.
93
6 EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL PARA O DIREITO AMBIENTAL DO TRABALHO
Como assumido no início do presente capítulo, o seu objetivo foi o de
construir um ponto de interseção entre o Direito Ambiental e o Direito do Trabalho,
capaz de permitir a este último, devidamente impregnado da principiologia que
inspira aquele primeiro, cumprir a sua promessa tuitiva.
Vislumbra-se, no entanto, que o seu intento possa estar inserido em projeto
estratégico de maior fôlego. Ressoa plausível que em futuro de médio a longo prazo
se possa discutir, de modo academicamente vigoroso e sem açodamento, uma
possível autonomização da disciplina jurídica que muito provavelmente será
conhecida pelo epíteto de ‘Direito Ambiental do Trabalho’.
Parece certo, aliás, que a Organização Internacional do Trabalho, ao vaticinar
que a sua Convenção de n. 187 - ainda não ratificada pelo Brasil - deverá ser
enxergada como “el marco promocional para la seguridad y salud en el trabajo”,
reconhece que o Direito do Trabalho, nos contornos meramente econômicos em que
vem sendo praticado, não se mostrou capaz de cumprir a sua missão histórica de
promover a completa dignificação do cidadão-trabalhador.
Trata-se de uma obviedade, com efeito, a constatação de que o
juslaboralismo precisa ser repensado. Além de conferir à classe trabalhadora um
padrão econômico verdadeiramente inclusivo, o que de resto ainda não aconteceu,
os institutos jurídico-laborais devem ser redesenhados na perspectiva de garantirem
a plena qualidade de vida dos trabalhadores.
Abre-se daí, iniludivelmente, a possibilidade da formatação de um ramo
jurídico autônomo, com institutos e princípios próprios, cujo objetivo maior será o de
tutelar a saúde daqueles que colocam sua força de trabalho à disposição de um
tomador de serviços. Faz-se imperioso, dentro deste contexto, que se alinhavem
desde já os elementos que, reunidos, apontarão para a gradativa construção da sua
teoria geral.
Por ora, contudo, o presente articulado se limita a contribuir para o
alargamento dos horizontes juslaborais. Proclama, de tal arte, que aliado à
liberdade, o mais fundamental dos direitos dos trabalhadores é o da redução dos
riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
94
Cumprida esta primeira parte do estudo proposto, a dissertação em curso
debruçar-se-á, adiante, nas possibilidades de utilização da técnica processual, para,
nos marcos alargados do juslaboralismo, promover-se desde já uma nova cultura
jurídica de proteção da higidez física e mental dos trabalhadores.
95
CAPÍTULO III
RESSIGNIFICAÇÃO DA TEORIA GERAL DO PROCESSO TRABALHISTA A PARTIR DOS VALORES ÍNSITOS AO ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO
1 O ENGODO JUSLABORAL ORIGINÁRIO E SEU REFLEXO NA TEORIA E NA PRÁTICA PROCESSUAL
Como é curial, pelo menos num plano ideal, o processo é concebido como um
instrumento de efetivação do direito material.
Logo, na medida em que a legislação objetiva é construída a partir de
premissas ideológicas que interessam às elites econômicas, não será difícil intuir
que o direito adjetivo acaba por absorver os anseios do capital, reproduzindo e
efetivando toda uma cadeia de dominação, cujo efeito final é a geração de um
círculo vicioso de alienação e opressão.
Com efeito, se no âmbito do Direito do Trabalho interessa ao capitalista que a
legislação determinante do cumprimento de obrigações laborais de adequação
ambiental passe despercebida, já que a aparência do pagamento de adicionais
melhor convém ao atingimento do seu objetivo acumulatório, não será difícil concluir
que as técnicas processuais de índole individual e condenatória serão privilegiadas
em detrimento daquelas de caráter coletivo e mandamental81.
Justamente por isso é que, mesmo diante de todos os avanços do Processo
Civil, a doutrina processual trabalhista ainda hoje permanece renitentemente fiel ao
postulado da teoria trinária de classificação das ações de conhecimento, como se a
81 Reproduz-se, almejando o intento de demonstrar o quase absoluto desprezo do direito material do trabalho para com as obrigações de fazer e não fazer, bem como do Direito Processual do Trabalho para com as técnicas mandamentais, as palavras de GIGLIO, Wagner Drdla. Direito Processual do Trabalho. 10 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1997, p. 267e 268: “São raras, se existentes, as obrigações de não fazer, nos processos trabalhistas. Não temos notícia de um exemplo, sequer, além da medida liminar para sustar a ordem de transferência de empregado (...). (...) Nos processos do trabalho, as obrigações trabalhistas de fazer mais ocorrentes, na prática (sem ordem de importância ou frequência), são as de anotar ou retificar as anotações da Carteira de Trabalho, de entregar as guias de levantamento dos depósitos do FGTS, de fornecimento dos documentos necessários à obtenção do seguro-desemprego, de promover, de reintegrar o empregado e de fazê-lo retornar às atividades laborativas.” Das palavras do Professor Giglio podem-se extrair, de tal arte, pelo menos duas conclusões: a) as potencialidades das obrigações de fazer e não fazer são pouquíssimo exploradas pela praxe trabalhista; b) o processo do trabalho não vem se valendo da técnica mandamental para a tutela do equilíbrio ambiental trabalhista.
96
tese quinária fosse um estandarte meramente exótico, assim insuscetível de ser
desfraldado, já que os provimentos mandamentais e cognitivos executivos lato sensu
não passariam de um certo delírio visionário.
Lamentavelmente, esta forma estrábica de visualização do processo
trabalhista, acaba por produzir efeitos danosos e duradouros na jurisprudência, já
que a postulação em juízo, em claro apego à teoria trinária de classificação das
ações cognitivas, continua a privilegiar indiscriminadamente os provimentos
condenatórios, permanecendo descrente para com as infindáveis e eficazes
possibilidades mandamentais, em um evidente desprezo da teoria quinária.
2 EXISTEM OUTROS CAMINHOS?
Na resposta da pergunta acima formulada, os conformados dirão que a busca
de outros caminhos não é necessária. Por sua vez, os céticos dirão que eles não
existem. Acredita-se, entrementes, que nenhuma destas respostas seja satisfatória.
A bem da verdade, está posta para a vanguarda do pensamento justrabalhista
uma tarefa impostergável. Mais do que nunca, este é o momento de se trabalhar
pela construção de um novo campo hegemônico no pensamento jurídico, que seja
capaz de fazer uma releitura progressista do direito, embebida nos fundamentos
constitucionais da República, principalmente os da cidadania plena, da dignidade da
pessoa humana e da função social do trabalho (artigo 1º, II, III e IV da CRFB).
Trata-se de inverter a lógica estruturante do Direito do Trabalho, a fim de que
as obrigações de fazer, principalmente aquelas de caráter preventivo, que
determinam a adequação ambiental trabalhista, visando a preservação da saúde dos
empregados, passem a ser vistas como prioritárias em relação àquelas repressivas.
Ocorre que estas últimas, como já visto, destinam à saúde da classe
trabalhadora o tratamento de mercadoria, se limitando, quando muito, a indenizar
infimamente o operário que venha a se tornar vítima de um acidente ou de uma
doença profissional, depois de um longo, tormentoso e tumultuado processo, onde
lhe pesa o ônus de provar a culpa do empregador, como se esta não fosse
eloqüente na maioria dos casos ou se não existissem as modalidades de
responsabilização objetiva.
97
Para isso os juristas do mundo do trabalho deverão detectar, dentro do amplo
catálogo dos direitos constitucionais-fundamentais, as ferramentas disponíveis para
o cumprimento satisfatório desta tarefa histórica.
Além dos fundamentos republicanos já nominados - cidadania, dignidade da
pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa -, é preciso se ter em
mente que são objetivos centrais da República a construção de uma sociedade, livre
justa e solidária, capaz de erradicar a pobreza e a marginalização (artigo 3º I e III da
CRFB).
Demais disso, embora na dicção constitucional o direito de propriedade seja
classificado como fundamental, também é certo que ele não chega a ser absoluto,
haja vista que limitado pela obrigação de atendimento da sua função social (artigo
5º, XXII e XXIII da CRFB), somente alcançável, no caso da propriedade rural, v.g.,
quando utilizada dentro de parâmetros úteis à preservação do meio ambiente,
atendendo a um padrão exploratório que favoreça ao bem-estar não só dos
proprietários mas também dos trabalhadores (artigo 186, II e IV da CRFB).
Por outra vertente, não custa sublinhar que a ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano, deve se sustentar no atendimento da função social
da propriedade, na defesa do meio ambiente e na promoção do pleno emprego
(artigo 170, III, VI e VIII da CRFB).
É de se pontuar, enfim, que embora a Magna Carta arrole no seu bojo uma
série de adicionais econômicos, também elenca, como direito fundamental dos
trabalhadores o imperativo de construção de uma política de redução dos riscos
inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (artigo 7º,
XXII, da CRFB), estabelecendo, ainda, que mais do que indenizar o cidadão pelas
lesões jurídicas sofridas, interessa ao Poder Judiciário repelir as ameaças de direito
(artigo 5º, XXXV, da CRFB), para atuar não só repressivamente, mas também em
perspectiva inibitória e de remoção do ilícito.
A Constituição brasileira, como visto, oferece uma série de transístores
capazes de adequadamente promover a defesa da saúde e da integridade física dos
trabalhadores, trazendo-os ao albergue de um patamar civilizatório jurídico mais
adequado, onde a prevenção seja uma prioridade e a repressão uma segunda
possibilidade, passível de ser utilizada somente depois que todas as medidas
inibitórias e de remoção do ilícito se mostrarem ineficazes.
98
3 O ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO, A TÉCNICA PROCESSUAL E A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO TRABALHISTA
Não é excessivo rememorar, ao início do presente tópico, e por mais óbvia
que tal assertiva possa ressoar, que o meio ambiente possui, para além da sua
dimensão natural, uma outra artificial-laboral.
A questão primordial a saber, no interior deste contexto, é aquela relativa à
persecução das interações do Estado Democrático-Ambiental de Direito com o
universo jurídico trabalhista.
Como visualizado algures, a preocupação deste novo modelo estatal de
organização é a de garantir aos indivíduos, para além da mera sobrevivência, uma
vida abundante e de qualidade. Tal inquietação, obviamente, tem a sua mirada
pousada também sobre os interesses do cidadão-trabalhador.
Vale dizer que no Estado Democrático-Ambiental de Direito é imperioso que o
juslaboralismo abrace os postulados preventivos e precaucionais, assumindo,
enfaticamente, o compromisso para com a eliminação e/ou a neutralização das
irregularidades estruturais que inviabilizam a fruição do direito à vida em abundância
que merecem os trabalhadores como quaisquer outros cidadãos do planeta.
Não se pode deixar de registrar, dentro de tal cenário, que a redução dos
riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de segurança, higiene e saúde
(artigo 7º, XXII, da CRFB), deve ser encarada como o mais primordial dos interesses
trabalhistas nos domínios do Estado Democrático-Ambiental de Direito.
A questão que se impõe agora, com efeito, é de saber como a técnica
processual pode colaborar para que o Direito do Trabalho cumpra esta nobre missão
histórica.
Antes de tudo, porém, merece resposta a indagação sobre qual seria a
relação existente entre a técnica processual e o direito material. Mostra-se
importante transcrever, no pertinente, a preleção de Marcelo Abelha Rodrigues:
Técnica e direito são, respectivamente, o instrumento e o fim,
a forma e a essência. A técnica, digo, o processo, é a ferramenta ou método quase sempre necessário para se obter a tutela jurisdicional. O que se quer é a solução e a tutela dada pelo Poder Judiciário, e o caminho é o processo. Mas não se pense que ainda estamos naqueles tempos em que a técnica era padrão para que todo e qualquer tipo de direito. Não mesmo. Não estamos mais naquela
99
época em que, por mais diferente que fosse o direito material em conflito, o jurisdicionado deveria se valer do mesmo modelo processual, tal como se estivéssemos em uma sociedade de iguais. Enfim, para cada tipo de crise jurídica levada ao Poder Judiciário existe um tipo específico de técnica processual a ser utilizada, e cabe ao jurisdicionado valer-se daquela que seja adequada (eficiente e efetiva) à tutela do seu direito.82
Vê-se, do escólio reproduzido, que entre a técnica adjetiva e o direito
substantivo existe uma relação de instrumentação a serviço da finalidade. Dito de
outro modo, o direito processual é o mecanismo de concretização judicial da tutela
normativa inadimplida. Todas as vezes que o Estado-administrador tiver fracassado
na imposição de uma determinada conduta almejada, haverá no caso uma crise de
cooperação83 a justificar a atuação do Estado-juiz.
Percebe-se daí, que se o direito laboral clama por ser repensado a partir dos
valores ínsitos ao Estado Democrático-Ambiental de Direito, também o processo
trabalhista haverá de ser reconstruído em moldes que lhe permitam contribuir
instrumentalmente para a redução dos riscos inerentes ao trabalho. Se assim não o
for, a processualística especializada servirá para pouco ou quase nada.
Não se pode concluir de modo diverso, dessarte, a não ser para se
compreender que a técnica processual, muito antes de ser cultuada como um
autovalor para o deleite intelectual do processualista, deverá se revelar como um
mecanismo de materialização efetiva dos valores estatais cultivados em determinado
momento histórico.
É de se veicular a propósito do quanto alinhavado no parágrafo anterior, as
desconcertantes palavras de José Roberto dos Santos Bedaque:
82 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo civil ambiental. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 66. 83 Sobre as modalidades de crises jurídicas, mostra-se de bom alvitre a transcrição de novo excerto da obra de RODRIGUES, Marcelo Abelha, Ibid., p. 68: “Se pretendêssemos reduzir todos os tipos de conflitos de interesses a três categorias, certamente estas se enquadrariam nas seguintes modalidades de crises jurídicas: certeza, situação jurídica e cooperação (adimplemento, descumprimento). A crise de certeza constitui um conflito de interesses tipificado pela necessidade de se obter, do Poder Judiciário, uma certeza jurídica acerca da existência ou inexistência de uma relação jurídica ou, excepcionalmente, sobre a autenticidade ou falsidade de um documento. Já a crise de situação jurídica constitui-se em um conflito de interesses tipificado pela necessidade de se obter, do Poder Judiciário, uma situação jurídica nova, que represente uma mudança jurídica da situação anterior em que se encontrava um conflito. Já a crise de cooperação (adimplemento ou descumprimento) constitui-se em modalidade de crise tipificada pela necessidade de se obter, do Poder Judiciário, o cumprimento da norma jurídica descumprida (cooperação ou adimplemento).”
100
A natureza instrumental do direito processual impõe sejam seus institutos concebidos em conformidade com as necessidades do direito substancial. Isto é, a eficácia do sistema processual será medida em função de sua utilidade para o ordenamento jurídico material e para a pacificação social. Não interessa, portanto, uma ciência processual conceitualmente perfeita, mas que não consiga atingir os resultados a que se propõe. Menos tecnicismo e mais justiça, é o que se pretende.
(...) Na medida em que a atuação da vontade concreta do
ordenamento jurídico material e a pacificação da sociedade dependem, muitas vezes, da atuação jurisdicional, como esta desenvolve suas atividades e procura atingir tais escopos por meio do processo, a preocupação fundamental daqueles que procuram estudar esse instrumento com que a jurisdição opera está voltada para os resultados que ele deve produzir. Busca-se, pois, a efetividade do processo..
(...) Por isso, o instrumento precisa ser desenvolvido a partir das
necessidades peculiares a cada área de atuação. Primeiro verificam-se as necessidades, detectam-se os problemas; depois, procura-se desenvolver instrumentos adequados.
Nessa medida, o processualismo exagerado normalmente acaba por criar enormes dificuldades para o próprio escopo do processo. A grande atenção que se dá para os conceitos processuais configura inversão de valores, pois o que realmente importa são os resultados alcançados pelo processo no plano do ordenamento material e da pacificação. A preocupação com a técnica é justificável por ser ela meio para atingir fins. A precisão conceitual é necessária a qualquer ciência. Apenas não se pode transformar a técnica, os conceitos e as definições em objeto principal da ciência processual.
Pretende-se demonstrar que todos os fenômenos inerentes ao processo devem ser concebidos em função do direito material. A técnica adequando-se ao objeto, com vistas ao resultado.84
Feitas tais ponderações, chega-se a um momento propício para se começar a
dar resposta à indagação anteriormente formulada, que almeja saber como que a
técnica processual poderá contribuir para a redução dos riscos inerentes ao trabalho.
Para a construção da solução esperada, faz-se imprescindível reafirmar que a
transição do Estado social para o democrático de direito importou em uma aberta
ruptura com a visão legalista que colocava a lei no andor da sacralidade.
Houve neste momento, por assim dizer, uma notável inflexão jurídica, que
redundou na óbvia revelação de que a lei, embora importante, não poderia continuar
a ser o centro gravitacional do universo jurídico85.
84 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 19, 20, 21. 85 Vale, aqui, transcrever, as palavras de PADILHA, Norma Sueli. Colisão de direitos metaindividuais e a decisão judicial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 61, 62: “Releva destacar que,
101
Afinal de contas, o direito, enquanto ideal de justiça, possui uma amplitude
extraordinariamente maior do que a verbetização legal. O positivismo, com efeito,
teve que finalmente se render ao postulado da eticidade, nascendo, a partir daí, o
pós-positivismo, também conhecido por positivismo ético.
Nesta quadra histórica, como não poderia deixar de ser, a técnica processual
começa a se libertar das amarras que lhe atavam à insanidade do culto acrítico do
legalismo, para se transformar, finalmente, em um instrumento potencialmente
distribuidor de justiça.
A instrumentalidade das formas, mais do que nunca, ganha espaço entre os
processualistas, embora ainda hoje sejam poucos aqueles que captam com precisão
essa nova realidade.
Neste novel contexto, o magistrado se vê livre das algemas liberais que o
reduziam ao indigente papel de bouche de la loi, passando a ter em mãos, via de
consequência, a possibilidade de moldar o procedimento enquanto manifestação da
técnica processual, às necessidades de afirmação da axiologia constitucional e
ambiental.
O devido processo, na prática, deixa de ser legal, para ser
constitucionalmente estruturado e sobretudo justo. Assim é que se tem delineado
hoje - embora esse fato ainda não tenha sido apreendido com a necessária
naturalidade pela doutrina e pela jurisprudência -, em consonância com os
fundamentos do Estado Democrático-Ambiental de Direito, um devido processo
constitucionalmente estruturado e ambientalmente justo.
Esta visão inovadora possui o inegável condão de ressignificar a jurisdição, a
ação e o processo, pondo a técnica processual a serviço da consecução dos
objetivos estratégicos do Estado Democrático–Ambiental de Direito, que, no âmbito
laboral - insista-se – devem estar comprometidos, por via da perspectiva preventiva
e precaucional, com a tutela jurisdicional de redução dos riscos inerentes ao
no contexto histórico, o próprio princípio da legalidade se transmuda no princípio da constitucionalidade, quando o que se tem, na verdade, conforme Bonavides, nada mais é do que do que o mesmo princípio da legalidade posto no invólucro formal da Constituição, acentuando o advento histórico de duas concepções de Estado de Direito. A primeira, vinculada ao velho princípio da legalidade em declínio, nos termos de sua visão clássica, de fundo e inspiração liberal (o apogeu do direito positivo da Constituição de Weimar). E a outra, em ascensão, atada ao princípio da constitucionalidade, hegemônico e moderno e que principiou, a partir do momento em que as declarações de direito, ao invés de ‘declarações político-filosóficas’, se tornaram ‘atos de legislação vinculantes’ e, portanto, plenos de juridicidade.”
102
trabalho, rompendo abertamente, pois, com a perversa lógica de monetização da
saúde do trabalhador.
4 O DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONALMENTE ESTRUTURADO E AMBIENTALMENTE JUSTO
Historicamente falando, embora seja possível cogitar-se do registro de
rudimentos históricos pretéritos, a idéia de um devido processo legal, nos moldes em
que hoje concebida, tem o seu nascedouro na Inglaterra, no ano de 1215, no
documento conhecido por Magna Charta Libertarum, editado pelo Rei João-Sem-
Terra86.
Já o epíteto devido processo legal propriamente dito, cunhado originalmente
como due process of law, vai aparecer no universo jurídico no ano de 1354, ocasião
em que o Rei Eduardo III, ao editar o Statute of Westminister of the Libertics of
London, reformulou a Magna Charta Libertarum, para incorporá-lo, como tal, ao
documento em questão.
Para a melhor compreensão do contexto ideológico que justificou o
nascedouro e o desenvolvimento do princípio do devido processo legal, tem-se como
de bom alvitre a transcrição das palavras de Júlio César Bebber:
A cláusula do devido processo legal teve sua origem no ano
de 1073, com o Edito Conrad III, que dispunha: “nisi secundum constitutionem antecessorum et judicium parium suorum”. Contudo, a
86 Reproduz-se, sobre a figura do Rei João-Sem-Terra e o advento da Magna Charta Libertarum, a título de ilustração histórica, as anotações de ALBERGARIA, Bruno. Histórias do direito: evolução das leis, fatos e pensamentos. São Paulo: Atlas, 2011, p. 117, 118: “João sem Terra (1166-1216) ou John Lackland ascendeu ao trono inglês com a morte de seu pai, Henrique II. Apesar de ser coroado rei, John perdeu muitas terras em guerras, o que lhe valeu o apelido de ‘João sem Terra (John Lackland em inglês). Antes de assumir o trono, o pai de John, Ricardo II, foi feito prisioneiro de guerra pelo Imperador do Sacro Império, Henrique VI, que cobrou pela a sua libertação 150 mil marcos – uma verdadeira fortuna para a época – e, ainda, fez com que a Inglaterra perdesse suas possessões francesas em 1204. Para arrecadar esse dinheiro, John, substituindo o seu pai no governo inglês, impôs principalmente à nobreza pesados impostos especiais. Com essa cobrança excessiva de tributos tornou-se um governante impopular. (...) Para piorar a sua situação, ainda tentou interferir na escolha do Arcebispo de Cantuária, o que desagradou o Papa Inocêncio III, que acabou por excomungá-lo em 1211. (...) Finalmente, após novo fracasso na tentativa de recuperar suas possessões na França, e completamente debilitado internamente, rendeu-se ao Papa e aos nobres, sendo obrigado pelos lords a jurar a Magna Carta em 1215. O texto é considerado um dos documentos jurídicos mais importantes feitos pelo homem. Caracteriza o início do constitucionalismo e o primeiro passo histórico para o fim do absolutismo. Pela Carta Magna, João sem Terra teve que renunciar a vários direitos e, principalmente, a respeitar procedimentos legais (due process of law). É, ainda, através da Carta Magna que o rei reconhecia que não estava mais acima da lei: O Estado também deveria respeitar as suas normas pré-instituídas (lei). É o surgimento do Estado de Direito.”
103
caracterização da cláusula due process of law se deu efetivamente com a Magna Charta Libertarum. Esse conhecido documento histórico, também chamado simplesmente de Magna Carta ou Carta da Liberdade, foi outorgado em 15 de junho de 1215, pelo Rei João-Sem-Terra, na Inglaterra.
Anteriormente à assinatura da Magna Carta da Liberdade, o direito de propriedade das terras conquistadas pertencia ao rei, o qual as distribuía entre os nobres da corte.
Exatamente por esse fato, a realeza, por muitas vezes, e sem explicações, violava as prerrogativas dos barões, os quais se viam desapossados das terras antes a eles dadas. Estes, então, como integrantes do parlamento, e apoiados pelo Clero, não mais suportando os abusos da coroa inglesa que violava as suas garantias e privilégios, passaram a pressionar o Rei João-Sem-Terra, o qual acabou outorgando a Magna Charta Libertarum.
O dispositivo da Carta da Liberdade que interessava aos barões, era o artigo 39, que dispunha: “Nenhum homem livre será preso ou privado de sua propriedade, de sua liberdade ou de seus hábitos, declarado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo destruído, nem o castigaremos nem mandaremos força contra ele, senão mediante um julgamento legal feito pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país.”
Com a edição da Carta da Liberdade, então, limitou-se os poderes da coroa inglesa sobre os direitos da nobreza, tais como direitos à vida, à liberdade e à propriedade.
O documento histórico, que ainda nos dias atuais provoca a admiração dos que se dedicam ao estudo do direito, não fazia expressa referência ao due process of law. As limitações dos poderes do Rei estavam contidas nas expressões: per legale judicium e per legale terrae.
Tais expressões significam que o homem livre somente poderia ser preso ou detido, e ter privada ou limitada a sua propriedade, através e de acordo com uma lei preexistente no país, ou por um julgamento regular; não pela única e especial vontade do Rei.
Em 1354, o então Rei Inglês Eduardo III editou o Statute of Westminister o the Libertics of London, denominado Estatuto de Eduardo III.
Tal Estatuto reformulou a Magna Charta Libertarum, tendo utilizado, pela primeira vez a designação da cláusula due process of law. Dispunha o artigo 29 do referido instrumento: “Ninguém deve ser condenado sem julgamento. Também nenhum homem daquele estado ou condição deve ser expulso da terra do Tenement, ou aprisionado ou condenado a morte, sem lhe ser dado o direito de resposta através do devido processo legal”.
A cláusula do devido processo legal foi repetida mais de trinta vezes no texto dos trinta e sete capítulos do Estatuto de Eduardo III, sendo utilizadas expressões sinônimas: due course of law e law of the land, para significar a lei que primeiro ouve para depois condenar.87
87 BEBBER, Júlio César. Princípios do processo do trabalho. São Paulo: LTr, 1997, p. 163, 164, 165.
104
Consoante se pode perceber do quanto até aqui alinhavado sobre a matéria,
muito embora o princípio do devido processo legal tenha começado a ganhar
formato em um momento histórico em que as monarquias fruíam o seu apogeu, tal
instituto carregava consigo, a bem da realidade, o gérmen do liberalismo jurídico, já
que notoriamente intentava proteger os súditos de todo arbítrio estatal que
conspirasse contra os direitos à propriedade e à liberdade.
Dito de outro modo, pode-se assentar que na sua concepção originária o due
process of law muito mais se assemelhava a uma garantia tão-somente reconhecida
aos réus, capaz de colocá-los a salvo da tirania do Estado, impondo a este último
um comportamento abstencionista, hábil à garantia da incolumidade dos direitos -
hoje ditos de primeira geração – dos acusados em geral.
Embora de lá para cá a sociedade moderna tenha passado pelos adventos
dos Estados Liberal e Social, estando a vivenciar, atualmente, o processo de
afirmação do Estado Democrático de Direito, que, repise-se, vem se formatando em
harmonia com um ideário ambientalmente sustentável, e, por isso, comprometido
com a preservação dos interesses das presentes e futuras gerações, o fato concreto
é que a noção do devido processo legal, lamentavelmente, continua a ser enxergada
em uma perspectiva que, embora detenha óbvia importância, está muito aquém das
suas reais possibilidades.
Vale dizer que o universo jurídico, ainda hoje, não se deu conta plenamente
de que o Estado – nele incluído o Estado-juiz – além de estar obrigado a respeitar os
direitos de primeira geração dos cidadãos, eximindo-se de qualquer conduta
autoritária capaz de impor-lhes um sacrifício injustificado, necessita estar ainda
disposto a concretizar, até mesmo judicialmente se for a hipótese, os seus
interesses de segunda geração, tais como o direito ao lazer, ao trabalho, à saúde e
à previdência, tomando, ademais, todas as medidas concretas para que os valores
fundantes da sociedade contemporânea, consubstanciados na transindividualidade
democrático-ambiental, possam ser adequadamente tutelados nas esferas natural e
artificial.
Ainda nesta perspectiva, faz-se imperioso sublinhar uma outra faceta
absolutamente nefasta do tratamento que a doutrina e a jurisprudência legalista vêm
imprimindo ao postulado do devido processo legal.
Ocorre que em função de uma compreensão claudicante da expressão anglo-
saxônica “due process of law”, o direito brasileiro a trata como devido processo legal,
105
outorgando, conforme ver-se-á adiante, um tratamento nada elástico ao pressuposto
da legalidade, descurando-se, com efeito, do ideário jurídico pós-positivista, que
clama, contemporaneamente, pela edificação de uma noção justa e
constitucionalmente estruturada do devido processo, que, rompendo abertamente
com qualquer resquício de uma inapropriada – e mesmo inatingível – neutralidade,
seja capaz de ativamente transformar em realidade os valores fundantes do pacto
constitucional-republicano.
O fato é que a utilização legal e doutrinária do epíteto devido processo legal,
resultante de uma vulgar conformação semântica erigida vernacularmente ao pé da
letra, conduz o jurista a imaginar, sem maior preocupação crítica, que o processo,
para ser verdadeiramente hígido, deve se conformar insanamente à estreiteza da
dicção legal88.
Redunda deste comportamento inadequado uma exótica tendência da
jurisprudência brasileira em interpretar a Constituição em conformidade com a
legislação infraconstitucional, enquanto que o óbvio nesta senda seria interpretar-se
a lei de regência em consonância com a Carta Maior.
Como ressoa óbvio para aqueles que possuem alguma intimidade, mínima
que seja, com o idioma inglês, a expressão ’law’ carrega consigo um sentido muito
mais abrangente do que a palavra portuguesa ‘lei’, já que se esta última, para os
lusófonos, possui o sentido de um texto geral, abstrato e impessoal, editado em
precisa consonância com o procedimento legislativo, aquela outra, aos ouvidos dos
anglo-saxões, possui um significado transcendente, que para muito além do que é
legal, abarca tudo aquilo que na essência é jurídico89.
Não por outra razão é que o direito de origem inglesa, por exemplo, quando
quer se referir ao Direito Ambiental, vale-se da expressão environmental law, ou 88 Reproduz-se, ilustrativamente, não sem antes registrar o nobre esforço do autor em conformar o seu escólio aos princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade, as palavras de RODRIGUES, Douglas Alencar. Princípios constitucionais e infraconstitucionais do processo. In: CHAVES, Luciano Athayde (org). Curso de Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2009, p. 72 e 73: “Sob o prisma estritamente adjetivo ou processual, o postulado do devido processo legal expressa o direito de residir em juízo segundo as regras previamente estabelecidas em conformidade com o regular processo legislativo, afastados eventuais critérios normativos que se mostrem despidos de razoabilidade e proporcionalidade ou ainda contrários aos critérios mais gerais de justiça.” 89 Mostra-se pertinente, relativamente às observações em questão, trazer-se a lume as precisas ponderações de GAMA, Lidia Elizabeth Peñaloza Juramillo. O devido processo legal. Leme: Editora de Direito, 2009, p. 19: “A locução da língua inglesa due process of law não foi devidamente traduzida para a língua portuguesa pelos nossos juristas. O vocábulo due realmente corresponde à palavra devido, igualmente o process equivale ao processo. Contudo, o termo law não pode ser traduzido
106
quando deseja aludir a Direito do Trabalho, utiliza-se da expressão labour law. Tais
assertivas demonstram, a mancheias, o sentido dilatado que o direito anglo-saxão
atribui à expressão ‘law’.
Sobreleva realçar que no Brasil há ainda uma excessiva tendência a
confundir-se processo com procedimento, fato que somado àqueles outros antes
ventilados, amplia ainda mais a já anunciada deturpação do princípio do devido
processo legal, vez que não são poucos aqueles que ainda hoje teimam em
imaginar que o processo, para ser ‘legal’ (mas não necessariamente justo...), deve
obedecer cegamente a um rito ordinariamente esquadrinhado nos preceptivos legais
infraconstitucionais, como se todas as situações da vida fossem idênticas e sem
peculiaridades distintivas.
Não se quer com isso sustentar que a noção de procedimento não seja
importante para a conformação da ideia de processo. Decididamente não. Mas o fato
é que embora se mesclem, o processo e o procedimento não se confundem, até
mesmo porque este último, como ser verá oportunamente, deve estar a serviço dos
escopos daquele primeiro.
Assim é que o princípio do devido processo legal deve assumir uma feição
completamente diferenciada em um Estado Democrático-Ambiental de Direito que
se estriba no amplo diálogo das fontes jurídicas e cujas nótulas distintivas são a
transcendência da propriedade, a ampliação dos sujeitos de direito e o privilégio da
prevenção em detrimento da repressão.
É a partir desta constatação, que a presente dissertação defende o ponto de
vista de que atualmente se mostra mais adequado falar-se em um devido processo
constitucionalmente estruturado e ambientalmente justo, que seja capaz de outorgar
a ambas as partes - e não somente ao réu como parece sugerir a insuficiente
redação do artigo 5º, LIV, da Constituição da República (ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal) - as garantias processuais
do amplo e eficiente acesso à jurisdição, do contraditório e da ampla defesa, do juiz
natural, imparcial e competente, da licitude das provas, da publicidade processual e
da motivação decisória, sem que para tanto se veja compelido a observar
patologicamente um procedimento infraconstitucional rigorosamente predeterminado
para toda e qualquer crise jurídica.
como legal. Assim, dentro da coerência, a tradução deste termo deveria ser direito, haja vista o entendimento de lei como act of parliament”.
107
Sobre a questão da adaptabilidade do procedimento como pressuposto para o
acesso a uma ordem jurídica eficiente e ambientalmente justa, o presente trabalho
tornará à carga oportunamente, quando, naturalmente, enfrentará a embaraçosa
questão da legitimação democrática do Judiciário para a conformação dos ritos
previstos pelo Legislativo no desempenho da sua atividade legiferante.
De qualquer modo, afigura-se importante pontuar, ainda agora, que a doutrina
possui a propensão de demarcar, relativamente ao princípio do devido processo
legal, dois campos que ao seu ver seriam distintos, um ligado à sua noção
propriamente processual (procedural due process) - acima descrita - e um outro de
índole substancial (substantive due process).
Transcreve-se, abaixo, para a ilustração da versão substantiva do devido
processo, respectivamente, os escólios de Nelson Nery Junior e Júlio César Bebber:
O devido processo legal se manifesta em todos os campos do direito, em seu aspecto substancial. No direito administrativo, por exemplo, o princípio da legalidade nada mais é do que manifestação da cláusula substantive due process. (...) Já se identificou a garantia dos cidadãos contra os abusos do poder governamental, notadamente pelo exercício do poder de polícia, como sendo manifestação do devido processo legal. No direito privado prevalece o princípio da autonomia da vontade com a conseqüente liberdade de contratar, de realizar negócios e praticar atos jurídicos. Podem ser praticados quaisquer atos, mesmo que a lei não os preveja, desde que não atentem contra normas de ordem pública ou contra os bons costumes: o que não é proibido é permitido. (...) A origem do substantive due process teve lugar justamente com o exame da questão dos limites do poder governamental, submetida à apreciação da Suprema Corte norte-americana no final do Século XVIII. Decorre daí a imperatividade de o legislativo produzir leis que satisfaçam o interesse público, traduzindo-se essa tarefa no princípio da razoabilidade das leis. Toda lei que não for razoável, isto é, que não seja a law of the land, é contrária ao direito e deve ser controlada pelo Poder Judiciário.90
O exame do direito constitucional norte-americano possibilita
a exata compreensão da garantia do devido processo legal na fase do substantive due process. É exatamente voltado no sentido material que a cláusula due process of law revela-se como “uma inesgotável fonte de criatividade constitucional, a ponto de haver se transformado, ao lado do princípio da igualdade (equal protection of the laws), no mais importante instrumento jurídico protetor das liberdades públicas, com destaque para a sua novel função de controle do arbítrio legislativo e da discricionariedade governamental, notadamente da ‘razoabilidade’ (reasonableness) e da ‘racionalidade’
90 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 38.
108
(rationality) das normas jurídicas e dos atos em geral do Poder Público. Neste contexto, o papel desempenhado pelo instituto do devido processo legal, como autêntico paradigma de justiça e como limite perene à atuação do Estado intervencionista, em particular no que tange ao exercício do poder regulamentar de Polícia, é verdadeiramente estupendo e de inexcedível relevância para a organização democrática”.
No sentido substantive due process, têm-se as garantias da igualdade material das partes, o direito à intimidade, o direito à lei preestabelecida, e, em especial à lei corretamente elaborada, razoável e não arbitrária. Neste sentido, o princípio diz respeito à efetividade das garantias individuais e sociais.91
Deflui dos excertos doutrinários transcritos, consoante se percebe, a noção de
que a cláusula due process of law, quando encarada pela sua faceta substantiva,
remete o legislador à tarefa de elaboração de leis racionais e razoáveis, que sejam
hábeis a garantir ao cidadão, dentre outros desideratos, plataformas legislativas
capazes de adequadamente tutelar os seus interesses.
Demais disso, impõe ao Poder Público em geral – para além, portanto, da
vertente do Estado-legislador – a tarefa de agir dentro de um padrão governamental
capaz de respeitar os direitos individuais de primeira geração, de implementar os
direitos sociais de segunda dimensão e de fazer valer os direitos solidários de
terceira linhagem.
Assim é que não se pode concluir de modo diverso, a não ser para se
compreender que a mensagem emanada do substantive due process também se
dirige ao Poder Judiciário, a quem incumbe, quando necessário, o dever de
conformar os procedimentos previamente traçados pela legislação aos valores
constitucionais que garantem à sociedade, para além de um acesso meramente
formal à jurisdição, uma efetiva, célere e justa prestação jurisdicional.
Neste sentido, afigura-se extremamente pertinente realçar aqui a breve mas
certeira lição de Fredie Didie Jr, quando pondera, aludindo à poliface substantiva do
due process of law, que “devido é o processo que gera decisões substancialmente
devidas “92.
Plantados tais delineamentos, o presente trabalho sente-se à vontade para
sustentar a tese de que as perspectivas formal e substancial da cláusula due
process of law, embora distintas, devem atuar sinergicamente, outorgando ao
91 Bebber, Júlio César. Op. cit., p. 169. 92 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. Vol. 1. 12 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 38
109
Judiciário, no âmbito formal, a possibilidade de estruturar o processo em
consonância com os vetores constitucionais fundamentais, para, no viés substantivo,
produzir resultados ambientalmente equilibrados, que, no recorte desta dissertação,
possuem estrita ligação com a necessidade de se promover a redução dos riscos
inerentes ao universo laboral.
Com efeito, pode-se asseverar - parafraseando a clássica assertiva de
Liebman, bem conhecida de todos, ao se referir ao instituto processual da coisa
julgada – que o devido processo formal e o devido processo substantivo são dois
degraus de um mesmo fenômeno, sendo esta, iniludivelmente, a mirada necessária
para se conceber a existência de um devido processo constitucionalmente
estruturado e ambientalmente justo.
Constitucionalmente estruturado na medida em que apto a garantir aos
contendores, procedimentalmente falando, um processo que lhes permita, sem ficar
insanamente apegado a um rito prévia e legalmente traçado, o exercício pleno do
contraditório e da ampla defesa.
Ambientalmente justo por ser capaz de produzir, na seara material, resultados
que sejam comprometidos com uma vida plena e abundante tanto no âmbito natural
quanto no artificial-laboral.
De agora em diante, uma vez ventiladas as considerações anteriores, é
chegado o momento de se estudar os elementos arquitetônicos da teoria geral do
processo - jurisdição, ação e processo - na perspectiva do Estado Democrático-
Ambiental de Direito.
5 A JURISDIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO
A liberdade, a propriedade e a segurança, consoante estudado mais ao início
do presente estudo, sempre foram as pilastras mestras do direito liberal.
Relativamente à liberdade, a elite dirigente almejava que o Estado não se
imiscuísse nas suas atividades, deixando-a livre para negociar sem peias as suas
relações contratuais, já que todos os pactuantes seriam naturalmente iguais.
Com a propriedade, esta mesma elite intentava proclamar que os meios de
produção eram sagrados e intangíveis, reafirmando, com isso, a necessidade de que
o Estado se abstivesse de interferir na sua fruição.
110
Já a segurança constituía-se em um item absolutamente necessário para que
fossem mantidas escamoteadas a relações de dominação existentes na ordem
jurídico-sociológia então instaurada.
A previsibilidade jurídica, neste contexto, passou a ser um elemento buscado
a todo custo, de modo que o legalismo, intuitivamente construído sobre o alicerce
meramente formal da igualdade, foi assumido como o mais vigoroso arrimo jurídico
do liberalismo.
Na angulação liberal, se todos os homens eram convenientemente iguais, a
jurisdição, como não poderia ser diferente, desprezava por completo a noção de
hipossuficiência jurídico-econômica, intentando, cegamente, adotar um padrão
procedimental que se reivindicava neutro - como se isso fosse possível -,
abdicando, dessarte, de toda e qualquer possibilidade de encarar o tema da
isonomia de modo substancial.
Assim é que a jurisdição, na perspectiva liberalizante, sempre foi enxergada
como o poder e o dever que o juiz possui de meramente dizer o direito aos casos
concretos submetidos à sua apreciação, dela desvencilhando-se por via da atividade
processual, somente naquelas circunstâncias em que a tanto instado.
Nesta mirada, a jurisdição é poder, uma vez que transparece ao
jurisdicionado, individualmente considerado, enquanto manifestação da soberania
estatal.
É obrigação, não se podendo denegá-la ao cidadão, mais uma vez concebido
na sua individualidade, na medida em que subtrai-lhe o exercício forçado das
próprias razões.
É, outrossim, atividade estatal, já que se revela em consonância com os atos
predeterminados e impostos ao magistrado pelo Poder Legislativo.
Conforma-se, finalmente, na estampa da inércia, já que atua somente nos
contextos em que previamente invocada.
Esta concepção liberalizante da noção de jurisdição - individualista, neutra,
inerte e insípida – intentava vincular a judicatura a uma lógica reducionista de
subsunção dos fatos à legislação, impondo ao Poder Judiciário a tarefa de dizer um
direito que, reduzido à pequenez da lei, em quase nada era capaz de contribuir para
a elevação dos patamares mínimos de dignificação clamados pela sociedade
difusamente considerada.
111
Dito de outro modo, ao Estado Liberal interessava que o julgador fosse a
simples boca da lei, não lhe sendo conveniente que ele, por via da atividade
jurisdicional, viesse a se transformar na cabeça e nos membros do direito.
Não estaria reservada à jurisdição, nesta diretriz, a tarefa de concretização
dos direitos substancialmente prometidos pelo Poder Público, sendo-lhe permitido,
quando muito, meramente proclamá-los após um longo e formal procedimento
cognitivo.
A partir daí a implementação dos direitos demandaria, novamente, diante da
inércia caracterizadora da jurisdição, a iniciativa do interessado, por via do
manejamento de um burocrático processo de execução de sentença93, que muito
antes de ser comprometido com a efetividade da tutela jurisdicional anunciada na
sentença, estava patrimonialisticamente alinhado com as intermináveis e às vezes
inexplicáveis garantidas reconhecidas ao devedor, em uma clara subversão do
postulado da isonomia, que, para ser verdadeiramente respeitado, depende de uma
distribuição racional do ônus do tempo no processo.
Não é necessário dizer, diante do retro alinhavado, que no contemporâneo
contexto de um Estado Democrático-Ambiental de Direito, a noção liberal da
jurisdição a pouco ou nada se presta.
Ocorre que este novo modelo estatal parte do suposto elementar de que a lei
não é nem de longe a expressão mais bem acabada do direito, sendo imperioso que
o magistrado se disponha, contemporaneamente, a interpretar o texto legal para
dele extrair a norma enquanto ideal de justiça, exercitando, assim, o seu poder
jurisdicional em uma perspectiva vigorosamente valorativa, de modo a pôr em
protagonismo a dignificação humana em detrimento do patrimonialismo.
Mostra-se importante transcrever, diante de tais considerações, a lição de
Eduardo Cambi:
93 Aqui é de se realçar o esforço da Consolidação das Leis do Trabalho quando, por exemplo, permite que o Juiz do Trabalho, nos termos do seu artigo 878, execute de ofício as suas sentenças. Vale destacar ainda, nesta mesma perspectiva, o acerto da Lei 11.232-2005, que no âmbito do Processo Civil amalgamou os processos de conhecimento e de execução, criando, por assim dizer, nos artigos 475-I a 475-R do Código de Processo Civil vigente, um incidente de cumprimento de sentença. Lamentavelmente, no entanto, não se pode deixar de registrar, neste último caso, o desacerto do disposto no artigo 475-J do CPC, que continua a exigir a iniciativa do credor para deflagração do procedimento de satisfação do julgado.
112
A tutela dos direitos fundamentais sociais não se contenta com o reconhecimento apenas normativo, formal, dependendo de ações positivas, visando a sua implementação.
Sempre que os demais poderes comprometerem a integridade e a eficácia dos fins do Estado, impedindo a concretização de direitos fundamentais, o Judiciário tem a função de controlá-los.
Com isso, é alterada a função do Poder Judiciário, que não apenas se restringe a tarefa de subsunção do fato à letra da lei, ou seja, não basta dizer o que é certo ou errado com base na lei (responsabilidade condicional do juiz politicamente neutralizado), mas, principalmente, examinar se o exercício discricionário do poder de legislar e de administrar conduzem à efetivação dos resultados objetivados (responsabilidade finalística do juiz).
O Poder Judiciário é chamado a exercer uma função socioterapêutica, corrigindo desvios na consecução das finalidades a serem atingidas para a proteção dos direitos fundamentais, além de assumir a gestão da tensão entre a igualdade formal e a justiça social. O conceito de juiz social é consectário de uma teoria material da Constituição e da legitimidade do Estado Social, fundadas em postulados de justiça, inspirados na universalidade, eficácia e aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.
O exercício da jurisdição contemporânea depende da sensível pré-compreensão social das questões envolvendo a efetivação dos direitos fundamentais. Não está o magistrado, para isso, mais condicionado à estrita legalidade (dura lex), assumindo, ao lado do Poder Executivo e do Legislativo, a responsabilidade pelo sucesso político das exigências do Estado Social. Neste sentido, Charles Warren, famoso juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, já disse que ‘os juízes da Corte Suprema do país devem ser não somente grandes juristas, senão também estadistas construtivos’.” 94
Sobreleva acentuar, neste diapasão, que o Estado Democrático-Ambiental de
Direito não possui qualquer compaixão para com o individualismo sacralicamente
cultuado pelo liberalismo, já que não pode desconsiderar o fato de que na atual
quadra histórica tem-se estruturada uma sociedade de riscos e de massas, na qual
os direitos tuteláveis - que têm no interesse das presentes e futuras gerações a um
meio ambiente equilibrado o seu exemplo mais destacado - tendem a uma inevitável
metaindividualização.
Como não poderia deixar de ser, o Estado Democrático-Ambiental de Direito
tem em mãos a missão de redesenhar a jurisdição, de modo a que ela, a um só
tempo, possa ser exercitada coletivamente, dentro de uma lógica essencialmente
preventiva e precaucional, capaz de outorgar ao magistrado a possibilidade de
contribuir ativamente para a afirmação dos valores ambientais naturais e/ou
94 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 195, 196.
113
artificiais, já que a eficácia de todo e qualquer direito fundamental depende
inexoravelmente, no plano mais geral, da manutenção do equilíbrio ecológico dentro
de níveis viabilizadores de uma vida abundante e de qualidade, e, no enfoque da
dissertação em curso, da redução dos riscos inerentes ao labor, por meio de
provimentos jurisdicionais que consagrem a saúde, a higiene e a segurança no meio
ambiente de trabalho.
6 O DIREITO DE AÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO
A jurisdição, como antevisto, subtrai do indivíduo a possibilidade de fazer
prevalecer, por via do império da força particular, os seus interesses resistidos.
Neste contexto de subtração do exercício das próprias razões, o direito de
ação é compreendido como uma contraprestação outorgada ao cidadão, que lhe
permite invocar perante o Poder Judiciário a função jurisdicional.
Costuma-se conceituá-la, dentro desta lógica, como o direito subjetivo público
de invocar, via de regra após a consumação de um dano, o exercício estatal da
jurisdição.
Consoante se pode ver, o direito de ação - tanto quanto a jurisdição - foi
formatado a partir de uma noção essencialmente subjetivista e repressiva, não tendo
passado incólume ao modelo de justiça formal e individualista adotado pelo
liberalismo.
Ora, como demonstrado mais atrás, o Estado Democrático-Ambiental de
Direito está estruturado em consonância com a sociedade de riscos e de massas
atualmente existente, na qual os direitos tuteláveis caminham para uma inelutável
transindividualização, circunstância esta que lhe atribui a missão de ressignificar a
jurisdição.
Como não poderia ser diferente, portanto, também o direito de ação está a
clamar por um inequívoco rebalizamento, que seja hábil a imprimir-lhe as tintas
exuberantes do exercício coletivo, dentro de um viés preventivo e precaucional, que
rendendo-se aos encantos das tutelas inibitórias e de remoção do ilícito, rompa
abertamente com os comandos repressivos que denunciam o desdém do direito
liberal para com a materialização de fundamentos constitucionais da mais alta
envergadura, como, v.g., a dignificação humana e a cidadania plena.
114
Calha trazer a lume, tratando das limitações pertinentes à noção subjetivista
do direito de ação, as apropriadíssimas palavras de Carlos Henrique Bezerra Leite:
(...) a doutrina tradicional conceitua a ação como o direito
subjetivo, público, constitucional, autônomo e abstrato de invocar a tutela jurisdicional do Estado.
Cabe advertir, por oportuno, que essa conceituação da ação como direito subjetivo concerne apenas à ação individual, uma vez que, em se tratando de ação coletiva lato sensu, o seu autor não é o titular do direito ou interesse material nela veiculado. Dito de outro modo, nos domínios da ação coletiva, esta deixa de ter conotação de “direito subjetivo”, pois o seu titular não é o indivíduo, mas sim entes coletivos.
É preciso deixar claro, neste passo, que a concepção da ação como direito subjetivo repousa na clássica formulação dicotômica direito público e privado, sendo certo que essa formulação entra em xeque quando se está diante dos chamados direitos ou interesses difusos e coletivos, que, na verdade, não são nem públicos nem privados.
Para nós, os direitos subjetivos são direitos humanos de primeira geração, também chamados de direitos civis ou individuais, e constituem uma conquista dos súditos em face do Estado absoluto. Mas não há negar que os ordenamentos jurídicos modernos reconhecem outras dimensões dos direitos humanos, entre elas os de segunda dimensão, que são os direitos sociais, econômicos e culturais, e os de terceira dimensão, como atualmente são denominados os interesses ou direitos globais, também chamados de interesses metaindividuais, transindividuais, ou direitos de solidariedade.
Ora, para judicializar esses novos direitos difusos e coletivos é condição necessária uma nova formulação conceitual para a ação, no sentido de suprimir a expressão “subjetivo”.
Modestamente, eis o nosso conceito de ação: ação é o direito público, autônomo e abstrato, constitucionalmente assegurado à pessoa, natural ou jurídica, e a alguns entes coletivos, para invocar a prestação jurisdicional do Estado, objetivando a tutela efetiva dos direitos materiais.95
A preleção atrás reproduzida é magistral e fala per se. Ainda assim, afigura-se
importante tecer algumas breves notas e apontamentos sobre o seu conteúdo.
Assim é que se mostra pertinente destacar a noção de que os direitos
subjetivos nada mais são do que os direitos humanos de primeira geração,
individuais por excelência, que são encarados como conquista dos súditos em face
do Estado absolutista.
95 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 6 ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 300.
115
Como se mostra palmar, portanto, a construção de que o direito de ação seria
o direito subjetivo público de invocar, via de regra após a consumação de um dano,
o exercício estatal da jurisdição, se presta tão somente à proteção dos direitos de
primeira geração, quando muito dos direitos sociais de segunda dimensão, mas
jamais dos direitos transindividuais, ditos de solidariedade ou de terceira geração,
cujo exemplo mais bem acabado é o interesse juridicamente tutelável das presentes
e futuras gerações a um meio ambiente equilibrado.
Faz-se necessário, com efeito, que o jurista contemporâneo rompa de vez
com a noção subjetivista do direito de ação, que, ainda hoje, é inexplicavelmente
cultuada como um mantra pela doutrina e pela prática processual, assumindo, por
assim dizer, um compromisso inequívoco para com a sua transindividualidade, de
modo a concebê-la, efetivamente, como um remédio capaz de dar resposta às crises
jurídicas adjetivadas pela coletivização de direitos.
A propósito das chamadas ações coletivas, tem-se como de bom alvitre a
reprodução do escólio de Luiz Guilherme Marinoni, que, diga-se de passagem,
adianta o tema que mais à frente será enfrentado, da necessidade da estruturação,
quer legislativa, quer jurisdicional, de procedimentos verdadeiramente adequados às
necessidades da tutela jurisdicional intentada:
O Estado contemporâneo realçou a existência de direitos
transindividuais, assim compreendidos os direitos que não pertencem apenas a uma, mas sim a várias pessoas. O Código de Defesa do Consumidor, ao tratar dessa modalidade de direitos, definiu a existência de direitos difusos e coletivos. Afirmou que ambos são ‘transindividuais, de natureza indivisível’, mas, enquanto difusos são pertencentes a ‘pessoas indeterminados e ligadas por circunstâncias de fato’, os coletivos são do ‘grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica de base’ (art. 81, parágrafo único, I e II, CDC).
Para a proteção desses direitos, o legislador instituiu técnicas ou modelos processuais diferenciados, isto é, voltados a atender as suas especificidades. (...)
Mas, para o efeito da compreensão da ‘jurisdição’, mais do que a constatação da existência de tais direitos e de técnicas processuais voltadas à sua tutela, importa identificar a razão de ser da idealização desses novos modelos processuais dirigidos à tutela jurisdicional.
As ‘ações coletivas’ – como podem ser chamados os modelos concebidos para a tutela dos direitos transindividuais – têm importante relação com os direitos fundamentais prestacionais. Tais ações permitem a tutela jurisdicional dos direitos fundamentais que exigem prestações sociais (direito à saúde etc.) e adequada proteção - inlusive contra os particulares (direito ambiental etc.) -, mas, além
116
disso tudo, constituem condutos vocacionados a permitir ao povo reivindicar os seus direitos fundamentais materiais.
As ações coletivas, ainda que vistas apenas como módulos processuais organizados pelo legislador, representam muito mais do que simples procedimentos concebidos para a tutela jurisdicional, pois são verdadeiros instrumentos de uma faceta muito especial dos direitos fundamentais. Ora, (...), os direitos fundamentais requerem a possibilidade de participação na estrutura social e no poder mediante instrumentos e procedimentos voltados a decisões públicas, mas também mediante procedimentos judiciais aptos à tutela dos direitos transindividuais.
A ação coletiva, ainda que compreendida apenas como instrumento para a proteção dos direitos fundamentais – como o direito ambiental e o direito do consumidor -, é, por si só, uma resposta aos direitos fundamentais, ou melhor, a realização de prestação, por parte do legislador, destinada a viabilizar a participação na reivindicação de direitos fundamentais.
Se a ação coletiva é via ou conduto, a jurisdição se torna, inegavelmente, um local que acolhe a participação, viabilizando a realização de uma prestação estatal imprescindível aos direitos fundamentais.96
É de se intuir, de tudo o quanto ponderado até aqui, que tanto a jurisdição
quanto o direito de ação devem ser relidos, contemporaneamente, através da noção
alhures formatada de um devido processo constitucionalmente estruturado e
ambientalmente justo, que, em verdade, apresenta-se para o exegeta como um hiper
princípio processual, capaz de influir na significação de todas as demais garantias
processuais, dentre elas a da inafastabilidade da jurisdição.
Mostra-se adequado sublinhar, neste diapasão, que o artigo 5º, XXXV da
Magna Carta preceitua, em redação que mereceria ser mais clara e abrangente, que
a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Assentada nesta diretriz, a máxima processual em destaque parece dizer que
a Constituição estaria meramente responsabilizando-se pelo acesso formal dos
cidadãos à jurisdição, impedindo o legislador, que seria o único destinatário da sua
mensagem, de editar qualquer documento legislativo capaz de inibir o day in court
dos jurisdicionados.
Como ressoa natural a esta altura do estudo desenvolvido, o compromisso da
inafastabilidade de jurisdição vai muito além de possibilitar, por via da atividade
legiferante, o simples acesso formal dos indivíduos ao Poder Judiciário.
96 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 109, 110, 111.
117
O que a Constituição almeja, ao proclamar o princípio em questão, é
proporcionar à coletividade a certeza de que a magistratura estará empenhada em
garantir a todos o acesso substancial a uma ordem jurídica eficiente e
ambientalmente justa, hábil a transformar em realidade palpável as promessas
republicanas de construção de uma sociedade livre e solidária, na qual a
dignificação humana e a cidadania plena sejam mais do que alegorias e adereços de
um texto constitucional despido de concretude.
Dito de modo mais claro, aquilo que se deseja defender no presente trabalho
é que o ideário do direito de ação deve ser visto como um consectário lógico do
postulado constitucional fundamental da inafastabilidade substancial da jurisdição,
que uma vez moldado na forja de um devido processo constitucionalmente
estruturado e ambientalmente justo, será capaz de efetivamente tutelar – e não
apenas proclamar - os direitos transindividuais inerentes à consecução das
finalidades preconizadas pelo Estado Democrático-Ambiental de Direito.
Para tanto, entrementes, será necessário ainda que se rompa com alguns
ranços ainda hoje existentes, como, por exemplo, a insistência da prossessualística
tradicional em apresentar aos juristas uma teoria trinária de classificação das ações
cognitivas, tema que será mais aprofundadamente analisado no tópico em
sequência.
6.1 AÇÕES COGNITIVAS: TEORIA TRINÁRIA X TEORIA QUINÁRIA
De acordo com aquilo que foi estudado algures, a burguesia aclamou a
liberdade – juntamente com a propriedade e a segurança - como uma das vigas de
sustentação do seu direito de classe.
Nela assentada, a elite econômico-dirigente intentava se ver solta de qualquer
grilhão absolutista que fosse capaz de justificar a interferência estatal na esfera da
sua autonomia privada.
O Estado – principalmente o Estado-juiz -, com efeito, deveria se pautar por
uma conduta leniente, abstendo-se de interferir no cumprimento das obrigações de
fazer e não fazer infungíveis pactuadas entre homens convenientemente tidos por
iguais, de modo a que o inadimplemento voluntário das cláusulas contratuais dessa
natureza se resolvesse em perdas e danos, sem que fossem cumpridas
especificamente.
118
Vigorava idealmente nesse momento histórico, como se percebe, a máxima
nemo praecise potest cogi ad factum, que sustentando o mito liberal da
incoercibilidade da vontade, acabou por gerar efeitos diretos e deletérios no direito
até bem pouco tempo atrás, se é que ainda não os gera em decorrência da herança
cultural plantada.
Colaciona-se, colimando o fito de corroborar o asseverado, dois excertos
doutrinários do século passado, das respectivas lavras dos professores Caio Mário
da Silva Pereira e Silvio Rodrigues:
Impossibilitando-se a prestação [referindo-se à obrigação de
fazer] sem culpa do devedor resolve-se a obrigação; não há o que prestar, ou não há meio de prestar, já que ninguém pode ser compelido a realizar o impossível: ad impossibililia nemo teneiur.
Mas, se o devedor der causa a isto [hipótese que interessa à dissertação] e for por culpa sua que a impossibilidade sobrevenha, o credor não pode exigir o fato e responde então o devedor pelas perdas e danos.
Na obligatio faciendi, é importante fixar os efeitos da recusa do devedor à prestação a que está sujeito. Como princípio geral é assente que não pode o credor compeli-lo ao cumprimento em espécie, já que em nosso direito, ao contrário do sistema inglês [já mais evoluído, ainda que de origem liberal], tem vigorado a velha parêmia nemo ad factum praecisi cogi potest (Código Civil, art.879) [remissão feita ao Código de Beviláqua], e é por isto que prospera a regra segundo a qual o inadimplemento da obrigação de fazer converte a prestação no seu equivalente pecuniário. Naquelas obrigações em que somente o devedor pode realizar a prestação, a sua recusa terá como consequência sujeitá-lo a indenizar o credor por perdas e danos. Nas demais, de prestação fungível, regra é que ou o credor é autorizado a mandá-la executar a expensas do devedor ou fica subrogado nas perdas e danos. E tão insistentes aparecem estas que se costuma dizer que, na recusa ou na impossibilidade culposa de implemento, o devedor vê convertida a prestação devida, nas perdas e danos, a símile do que vigora no Código francês, art. 1.142 [a remissão ao Código francês evidencia, a mais não poder, a influência do liberalismo que esteve na base da Revolução Francesa sobre a ideia desenvolvida].97 (as observações entre colchetes, naturalmente, não fazem parte do texto original)
O legislador considera também a hipótese de inadimplemento
voluntário da obrigação [referindo-se à obrigação de fazer], que se não tornou impossível. O devedor poderia cumprir a obrigação, apenas não o faz, por não lhe convir. Trata-se de mero descumprimento do dever.
Aqui o legislador distingue as obrigações infungíveis, isto é, as que são impostas ao devedor tendo em vista suas qualidades, ou
97 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. II. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 44, 45.
119
condições pessoais, ou só por ele exeqüíveis, das obrigações fungíveis, ou seja, aquelas que podem ser indiferentemente realizadas pelo devedor ou por outrem.
a) quando infungível a obrigação de fazer, não pode o credor, em regra, obter a sua execução direta, posto que isso envolveria odioso agravo à liberdade individual do devedor. Com efeito, ninguém poderia forçar um arquiteto a projetar um prédio, um decorador a desenhar os adornos de uma residência ou uma bailarina a dançar certa peça. Em todos estes casos, a execução compulsória da prestação envolveria um procedimento incompatível com o estado de liberdade, proclamado nas constituições modernas [modernas para a época, evidentemente]. Pois, como vimos, prevalece o princípio de que ninguém pode ser compelido a prestar um fato contra sua vontade: nemo praecise potest cogi ad factum.
Por conseguinte, o remédio que remanesce ao credor é obter a reparação do prejuízo experimentado através do sucedâneo das perdas e danos. É o que, de resto, determina o artigo 880 do Código Civil [referindo-se ao Código de Beviláqua]:
Art. 880.Incorre também na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exequível.
b) Quando fungível a obrigação e o devedor for moroso ou inadimplente, abre a lei ao credor uma alternativa. Faculta-lhe, de um lado, o pedido de perdas e danos, na forma já explicada; e, de outro, confere-lhe a possibilidade de mandar executar o fato por terceiro, à custa do faltoso (Cóg. Civ., art. 881) [referindo-se ao Código de Beviláqua]. Assim, se o empreiteiro não der andamento à obra, compete ao outro contratante ou resolver o contrato, pleiteando a indenização do dano, ou obter a execução do empreendimento por terceiro, cobrando a despesa do inadimplente.
Todavia, não pode o credor, sem mais formalidades, optar por esta última solução, encomendando desde logo a terceiro a feitura da obra. Cumpre-lhe recorrer à via judicial [por via do processo exasperantemente formal do direito liberal, que nem de longe pode ser considerado com um devido processo justo constitucional e ambientalmente estruturado], para que fique comprovada a recusa do devedor, e se alcance a aprovação da substituição pretendida.98 (vale ressaltar mais uma vez aqui que as observações entre colchetes, naturalmente, não fazem parte do texto original)
É certo que a redação do artigo 247 do atual Código Civil praticamente repete
o disposto no artigo 880 do Código de Beviláqua, quando dita que incorre na
obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que se recusar a prestação só a
ele imposta ou só por ele exequível.
Tal circunstância, uma vez aceita sem uma boa dose de criticismo, manteria
aparentemente intacta a lógica estampilhada na parêmia “nemo praecise potest cogi
ad factum”.
98 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral das obrigações. Vol. II. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 38, 39.
120
Ocorre, todavia, que a doutrina contemporânea tem lido o mencionado
preceptivo (artigo 247 do Código Civil) em conformidade com a Constituição da
República, preconizando, exuberantemente, que a tacanha visão de que ninguém
pode ser compelido a prestar um fato contra a sua vontade não passa de um mito
liberalóide, de há muito superado pelos valores inerentes ao Estado Democrático de
Direito.
A corroborar o afirmado, tem-se o magistério de Pablo Stolze Gagliano e
Rodolfo Pamplona Filho:
No presente tópico, analisaremos a tutela jurídica do
descumprimento das obrigações de fazer quando tal inadimplemento se dá de forma culposa.
Isso porque, consoante já visto, na hipótese de descumprimento sem culpa do devedor, não há como, em regra, responsabilizá-lo, uma vez que ausente um dos requisitos básicos para a responsabilidade civil no direito brasileiro.
Havendo culpa, contudo, outras considerações devem ser feitas.
A visão tradicional do direito das obrigações, pelo seu cunho intrinsecamente patrimonialista, sempre defendeu que seria uma violência à liberdade individual da pessoa a prestação coercitiva de condutas, ainda que decorrentes de disposições legais e contratuais.
Tal concepção de intangibilidade da vontade humana, embora possa identificar-se com vetustas regras romanas, reflete, em verdade, a essência dos princípios liberais que influenciaram a formação e consolidação do Direito Civil, em especial no século XIX, com o advento do Códe Napoleón. (...)
Assim, pela convicção de que a liberdade humana é o valor maior na sociedade, a resolução em perdas e danos seria a única consequência para o descumprimento das obrigações de fazer e não fazer.
Essa visão, em nosso entendimento, é, todavia, inaceitável na atualidade.
Isso porque o vigente ordenamento jurídico brasileiro há muito vem relativizando o princípio tradicional do nemo praecise potest cogi ad factum, reconhecendo que a incoercibilidade da vontade humana não é um dogma inafastável, desde que respeitados direitos fundamentais.99
As lições trazidas a lume não deixam margens para tergiversação,
demonstrando, vigorosamente, que o direito oriundo do liberalismo, cultivando uma
visão um tanto permissiva da liberdade, ditava, enfaticamente, que a vontade
humana não poderia ser objeto de coerção.
99 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: obrigações. Vol. II. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 57, 58.
121
Pode-se afirmar assim, dando um passo mais à frente, que o direito liberal
sempre ostentou uma lógica meramente repressiva - ressarcitória por assim dizer -,
jamais se ocupando da tarefa de construir um modelo jurídico comprometido com as
tutelas processuais de matiz inibitório.
Dito de outro modo, mostra-se lícito sustentar que se o direito liberal partia do
suposto de que a vontade humana não seria passível de coerção, as suas estruturas
estatais, passivas e modorrentas, ainda que diante da configuração de um ilícito e
na iminência da ocorrência de um dano, não eram capazes de agir para impedir a
sua consumação.
Toda essa lógica sombria, obviamente, fincou as suas garras perniciosas
sobre o dorso fragilizado do direito processual, seja ele civil ou do trabalho, fazendo
com que a clássica Teoria Geral do Processo preconizasse a existência de apenas
três classes de ações (e de decisões, via de consequência) cognitivas, quais sejam,
as declaratórias, as constitutivas e as condenatórias, fazendo tábula absolutamente
rasa, lamentavelmente, das mandamentais e das autoexecutivas (cognitivas
executivas lato sensu).
Ocorre que a técnica processual, como se sabe, possui íntima correlação com
o direito substantivo que intenta pôr em prática. Assim é que as elites dirigentes,
para garantirem a hegemonização de uma plataforma jurídica intimamente ligada às
suas conveniências econômicas, se apressaram em construir um direito adjetivo
compromissado com a afirmação dos seus valores primordiais.
Aliás, consoante já se constatou ao longo do presente trabalho, tudo se
resolve em perdas e danos no universo jurídico liberal, até mesmo a hostilização da
dignidade humana. De modo a demonstrar a incidência da lógica antes descrita
sobre o Processo do Trabalho, mostra-se importante transcrever abaixo a preleção
de Wagner Drdla Giglio, que, citando outros processualistas de nomeada, dá o norte
da doutrina laboral sobre a obrigação do empregador em reintegrar ao trabalho o
empregado arbitrariamente dispensado:
Transitada a sentença em julgado [note-se que doutrina
clássica, embora implicitamente, sequer cogita da possibilidade da antecipação da tutela reintegratória], cita-se o empregador para que cumpra a condenação [aqui é muito intuitivo o uso da expressão “condenação”, afinal, no contexto da processualística clássica, o vigor das decisões mandamentais é pasteurizado na generalização
122
dos provimentos condenatórios] no prazo previsto na decisão ou, não havendo previsão, no que for determinado pelo juiz (CPC, art. 632).
Cogita a doutrina das conseqüências da recusa do empregador em permitir a reintegração. Partindo da premissa de que ninguém pode ser coagido, manu militari, ao cumprimento de obrigação de fazer (nemo ad faciendi cogi potest), duas são as correntes: uma entende ser possível apenas a conversão da reintegração em pagamento de indenizações dobradas se a sentença condenatória for alternativa, prevendo essa solução; caso contrário, serão executados unicamente os efeitos pecuniários da condenação, a saber, os salários vencidos e os que vencerem, até efetiva reintegração, inclusive as gratificações natalinas, que têm inquestionável natureza salarial, a remuneração dos períodos de férias vencidos e vincendos (CLT, art. 131, V), a multa diárias de três quintos a três valores de referência regional por dia de atraso no cumprimento da decisão, prevista no art. 729 da CLT, e as custas (Antônio Lamarca e Campos Batalha, entre outros); outra, entendendo que a conversão em pagamento da indenização em dobro deve ser feita na execução, ainda que prevista na sentença (Mozart V. Russomano e Pires Chaves, entre outros).100 (as observações entre colchetes não fazem parte do texto original)
Para a doutrina convencional, como ressoa notório do fragmento doutrinário
retro transcrito, o cumprimento da obrigação de reintegração fica relegada ao livre
talante do empregador, que pode se libertar do mandamento judicial se estiver
disposto a custear o equivalente monetário da tutela reintegratória.
Uma construção que tal, evidentemente, não pode de modo algum ser
respaldada por um juízo formulado à luz dos valores constitucionais que inspiram o
Estado Democrático-Ambiental de direito.
Pense-se, v.g., com os olhos pousados nos interesses ambientais laborais.
Suponha-se, para tanto, que o empregado a ser reintegrado seja um cipeiro
combativo, eleito pela coletividade dos trabalhadores justamente para velar pela
existência de um meio ambiente de trabalho equilibrado, capaz de garantir a eles
condições verdadeiramente hígidas de saúde, higiene e segurança.
No caso, sendo do interesse de um mau empregador, poderia ele
perfeitamente desdenhar da decisão de reintegração emanada do Estado-juiz, para,
uma vez pagando o montante indenizatório correlato, livrar-se da combatividade do
cipeiro em questão, que, assim, se veria impedido de cumprir o mandato que lhe foi
outorgado pelos seus pares.
100 GIGLIO, Wagner Drdla. Op. cit., p. 478.
123
Teríamos aí, à toda clareza, a utilização do direito processual para a
frustração dos fundamentos centrais do Estado Democrático-Ambiental de Direito,
fazendo com que a inviabilização da tutela específica da reintegração se tornasse
em instrumento de aviltamento de cânones constitucionais centrais como a
dignificação humana (artigo 1º, III, da CRFB), a valorização social do trabalho e da
livre iniciativa (artigo 1º, IV, da CRFB), bem como a redução dos riscos inerentes à
atividade laboral por meio de normas de saúde, higiene e segurança (artigo 7º, XXII,
da CRFB).
Faz-se urgente que nos domínios do Estado Democrático-Ambiental de
Direito a Teoria Geral do Processo seja repensada, para, assim, incorporar
definitivamente aos seus postulados a teoria quinária de classificação das ações
cognitivas.
Ocorre que o Estado Liberal, compromissado com o padrão comportamental
passivo que interessava às elites econômicas, sempre permitiu, como decorrência
da sua pretensa neutralidade, que os danos se consumassem, ainda que fossem
iminentes.
A tradução desse comportamento abstencionista no campo processual, como
não poderia ser diferente, foi a assunção da teoria trinária do direito de ação, pela
qual as técnicas condenatórias eram vistas como centro do universo jurídico, sendo
assessoradas, quando muito, pelos provimentos declaratórios e constitutivos.
Dito de outro modo, pode-se se assentar que para a configuração do
interesse processual de agir, encarado enquanto condição indispensável para o
exercício do direito de ação, seria rigorosamente necessário que o autor somente
viesse a juízo após a ocorrência do dano, para então arguir, abstratamente que o
fosse, a resistência do réu à sua pretensão ressarcitória.
Como se vê, a prática do Estado Liberal em relação ao direito de ação era
absolutamente repressiva, sendo apta, se tanto, a meramente resolver os infortúnios
pela lógica - importante mas insuficiente - da indenização por perdas e danos.
No Estado Democrático-Ambiental de Direito, todavia, este enfoque limitador
do acesso à jurisdição anseia por receber uma guinada paradigmática, que seja apta
a colocar o exercício do direito de ação a serviço das técnicas processuais
mandamentais, de modo a que as tutelas inibitórias e de remoção do ilícito,
trabalhadas na perspectiva da afirmação da dignificação humana, inviabilizem a
consumação dos danos. Não é por outra razão, aliás, o artigo 5º, XXXV, da
124
Constituição estatui que não somente as lesões, mas também as ameaças a direitos
jamais serão excluídas da apreciação do Poder Judiciário.
É desnecessário enfatizar, de tal arte, que esta lógica se revela de suma
importância na esfera jusambientalista, haja vista que os danos ambientais, sejam
eles de origem natural ou artificial, uma vez consolidados, invariavelmente se
mostram de difícil ou impossível reparação, já que além de ceifarem a vida de
inúmeras pessoas, restringem dramaticamente a qualidade existencial de outros
tantos sobreviventes.
Justamente por isso é que o Estado Democrático-Ambiental de Direito deve
gastar toda a sua energia - seja ela legislativa, administrativa ou jurisdicional - na
consecução das possibilidades prevencionistas, de modo a que as práticas
repressivas atuem apenas supletivamente, subministradas, demais disso,
prioritariamente na busca da tutela ressarcitória na forma específica (tutela
ressarcitória in natura), em detrimento, via de consequência, da tutela pelo
equivalente monetário (tutela ressarcitória in pecunia).
Tal opção, como se verá no momento oportuno, além de gerar efeitos no
direito material, mudará completamente a estruturação do direito processual, que
passará a trabalhar prioritariamente com as técnicas mandamentais ao invés das
condenatórias, numa clara e definitiva superação da teoria trinária de classificação
das ações cognitivas pela teoria quinária.
Desnudando magistralmente a tibieza da teoria trinária, reproduz-se, abaixo, o
magistério de Luiz Guilherme Marinoni:
Com o surgimento das novas relações jurídicas,
freqüentemente de conteúdo não-patrimonial, tornou-se evidente a inefetividade das sentenças da classificação trinária. Os direitos não-patrimoniais, como é curial, não podem ser efetivamente tutelados através da sentença condenatória. Essa sentença, por correlacionar-se com a execução por sub-rogação, somente mostra-se adequada para permitir a reparação do direito violado ou o cumprimento forçado da obrigação inadimplida. A sentença condenatória, como já foi dito, não se presta a impedir alguém de praticar um ilícito, exatamente porque não se relaciona com a execução indireta, ou seja, com meios que possam atuar sobre a vontade do devedor para convencê-lo a adimplir. A sentença declaratória, por outro lado, se não é ligada a qualquer meio de execução, limitando-se a declarar algo a respeito de uma relação jurídica, também é evidentemente impotente para impedir a prática do ilícito. Diante da sentença declaratória, o réu não se vê compelido a não praticar o ilícito. Sabe o demandado que a única sanção que sofrerá, diante da prática do
125
ilícito, é a ressarcitória, o que lhe permite transformar, livremente, o direito do autor em tutela ressarcitória, que na maioria das vezes será prestada pelo equivalente em pecúnia. As sentenças de classificação trinária, em outras palavras, não tutelam de forma adequada os direitos que não podem ser violados, seja porque têm conteúdo não-patrimonial, seja porque, tendo natureza patrimonial, não podem ser adequadamente tutelados pela via ressarcitória. Pior do que isso, a classificação trinária, por sua inefetividade, permite a qualquer um expropriar direitos não-patrimoniais, como o direito à higidez do meio ambiente, transformando o direito em pecúnia. Na verdade, e por incrível que possa parecer, um sistema que trabalha exclusivamente com as três sentenças clássicas está dizendo que todos têm direito a lesar direitos desde que se disponham a pagar por eles!101
Veiculados estes primeiros apontamentos, a presente dissertação retomará
oportunamente a questão, a fim de demonstrar, detalhadamente, as vantagens das
técnicas mandamentais sobre as condenatórias no plano jusambiental, mormente no
âmbito do meio ambiente do trabalho.
Abordará em capítulo próprio, demais disso, o estudo da ação civil pública
ambiental e as suas múltiplas possibilidades tutelares, além de minudenciar, sob o
enfoque do direito processual coletivo, as peculiaridades de institutos processuais
como a competência, a legitimidade, as provas, a parametrização decisória e a coisa
julgada, tudo na perspectiva da proteção da dignidade e da saúde do cidadão-
trabalhador, que é aquela que mais de perto interessa ao estudo que vem sendo
desenvolvido.
Doravante, já no arremate do capítulo em curso, serão enfrentadas as
principais nuances do processo no Estado Democrático-Ambiental de Direito.
7 O PROCESSO NO ESTADO DEMOCRÁTICO-AMBIENTAL DE DIREITO
Processo, na consagrada construção liberal, não passa de um método estatal
de resolução de conflitos. A sua função, com efeito, é a de promover a composição
da lide, por via da estrita aplicação da legislação prévia, genérica e abstratamente
criada pelo Estado-legislador.
Não por outra razão é que o ato de compor a lide, no dizer da doutrina
formatada sob a égide do liberalismo jurídico, “significa resolvê-la conforme a
101 MARINONI, Luiz Guilherme Marinoni. Tutela específica - Arts. 461, CPC e 84, CDC, 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 38 e 39.
126
vontade da lei reguladora da espécie”102. O processo, nos marcos do Estado Liberal,
possui, com efeito, o objetivo de “obter a declaração ou a atuação da vontade
concreta da lei”103.
É desnecessário dizer, à esta altura, que a concepção processual emanada
do liberalismo, excessivamente apegada à régia subsunção silógica dos fatos ao
comando legal abstrato, não pode ser prevalente na perspectiva de um Estado
Democrático-Ambiental de Direito.
Um bom parâmetro para se compreender o aludido vaticínio, reside na
advertência de Kazuo Watanabe, quando ensina que o processo, antes de ser um
mecanismo de realização da vontade formal da lei, é “um instrumento de tutela
efetiva dos direitos”104.
Vale assentar, nesta diretriz, que antes mesmo de ser considerado um
utensílio meramente técnico, o processo deve ser compreendido como um
instrumento ético, cuja essência reside, contemporaneamente, na implementação
dos valores preconizados pelo projeto jurídico-ambiental delineado na Carta
Constitucional.
Expressado de modo mais explícito, pode-se ditar que para muito além da
atuação da vontade formalmente procedimentalizada da legislação, os escopos do
processualismo devem estar ligados à substancialização dos fundamentos
republicanos ligados à plenitude de uma existência sã, digna e equilibrada, de modo
a que processo, na dicção de Luiz Guilherme Marinoni, deixe “de ser um instrumento
voltado à atuação da lei para passar a ser um instrumento preocupado com a
proteção dos direitos”105.
Todos sabem que a autonomização do direito processual é um fato recente
na história jurídica106. Justamente por isso é que não são poucos aqueles
102 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. Vol. 1. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 265. 103 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Vol. I. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 42. 104 WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Perfil, 2005, p. 104. 105 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 405. 106 Vide, acerca do quanto asseverado, CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 280, quando esclarecem que a obra de Oskar Von Bulow, intitulada Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias, datada de 1868, é “unanimemente considerada a primeira obra científica sobre direito processual e que abriu horizontes para o nascimento desse ramo
127
processualistas que ainda receosos quanto às possibilidades de refluição da
independência do jusprocessualismo, cultivam o processo a uma inapropriada
distância do direito material, abstendo-se, pois, de fertilizá-lo com o sêmen da
eticidade.
Anseiam, como se possível fosse, que o direito processual resida em uma
dimensão não axiológica, neutra por assim dizer, esquecendo-se, lamentavelmente,
que o processo, embora autônomo, possui como única e inequívoca grandeza a sua
instrumentalidade, apta à implementação, no plano jurisdicional, dos valores morais
que inspiram o pacto estatal vigorante.
Assim é que nos domínios do Estado Democrático-Ambiental a legitimação do
processo depende, umbilicalmente, da sua mirada teleológica essencial. Vale dizer,
com efeito, que o direito processual, para ser digno de credibilidade, deve ter
objetivos claros, devidamente formatados em conformidade com os fundamentos
que inspiram a República, além de possuir, evidentemente, tentáculos suficientes
para implementá-los.
É de se transcrever, na linha do retro afirmado, a preleção do professor
Cândido Rangel Dinamarco, lavrada na mais clássica obra nacional acerca da
instrumentalidade do processo:
É vaga e pouco acrescenta ao conhecimento do processo a
usual afirmação de que ele é um instrumento, enquanto não acompanhada da indicação dos objetivos a serem alcançados mediante o seu emprego. Todo instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que se destina. O raciocínio teleológico há de incluir então, necessariamente, a fixação dos escopos do processo, ou seja, dos propósitos norteadores da sua instituição e das condutas dos agentes estatais que o utilizam. Assim é que se poderá conferir um conteúdo substancial a essa usual assertiva da doutrina, mediante a investigação do escopo, ou escopos em razão dos quais toda ordem jurídica inclui um sistema processual.
Fixar os escopos do processo equivale, ainda, a revelar o grau de sua utilidade. Trata-se de instituição humana, imposta pelo Estado, e a sua legitimidade há de estar apoiada não só na capacidade de realizar objetivos, mas igualmente no modo como estes são recebidos e sentidos pela sociedade. Daí o relevo de que é merecedora a problemática dos escopos do sistema processual e do exercício da jurisdição. A tomada de consciência teleológica, incluindo especificação de todos os objetivos visados e do modo como se interagem, constitui peça importantíssima no quadro
autônomo na árvore do direito e para o surgimento de uma verdadeira escola sistemática do direito processual civil.”
128
instrumentalista do processo: sem compreender a sua instrumentalidade assim integralmente e apoiada nessas colunas, não se estaria dando a ela a condição de verdadeira premissa metodológica, nem seria possível extrair dela quaisquer conseqüências cientificamente úteis ou aptas a propiciar a melhoria do serviço jurisdicional. Em outras palavras: a perspectiva instrumentalista do processo é teleológica por definição e o método teleológico conduz invariavelmente à visão do processo como instrumento predisposto à realização dos objetivos eleitos.107
Devidamente alicerçado o processo no baldrame instrumental-axiológico, faz-
se imperioso rememorar agora, ainda que ligeiramente, algumas das peculiaridades
distintivas do Estado Democrático-Ambiental de Direito, tais como a função social da
propriedade e o privilégio da prevenção em detrimento da repressão.
Mais importante ainda no recorte juslaboral da presente dissertação, é
assentar as influências exercidas por tal modelo estatal sobre o justrabalhismo, a
preconizarem a superação da lógica da pura e simples monetização da saúde do
trabalhador pela eliminação e/ou a neutralização das anomalias ambientais laborais.
Afinado neste diapasão, o Processo do Trabalho deverá, sem abrir mão da
sua autonomia científica, incorporar no seu desiderato maior a consecução dos
valores ínsitos ao Estado Democrático-Ambiental de Direito, de modo a que os seus
institutos sejam moldados às necessidades consumatórias do novo modelo
justrabalhista que clama por ser implementado.
Sobre a necessidade de uma releitura do direito processual, que seja capaz
de comprometê-lo, sem quaisquer temores autonômicos, com a nobilíssima tarefa de
se transformar em um efetivo instrumento de substancialização de interesses
juridicamente tuteláveis, tem-se o escólio de José Roberto dos Santos Bedaque,
cuja reprodução, embora longa, mostra-se extremamente recomendável, diante de
todas as considerações antes formuladas:
A partir do momento em que se aceita a natureza instrumental
do direito processual, torna-se imprescindível rever seus institutos fundamentais, a fim de adequá-los a essa nova visão. Isso porque toda a construção científica desse ramo do direito deu-se na denominada fase autonomista, em que, devido à necessidade de afirmação do direito processual, valorizou-se demasiadamente a técnica. Passou-se a conceber o instrumento pelo próprio instrumento, sem a necessária preocupação com seus objetivos, cuja identificação é feita à luz de elementos externos ao processo. Seu
107 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 177, 178.
129
escopo é a eliminação da crise de direito material, formulando e atuando a regra jurídica ao caso concreto. A técnica adotada pelo legislador, visando ao adequado desenvolvimento do método por ele criado para solução dos litígios (processo équo e justo), é simples meio. Em nenhum instante pode o processualista esquecer-se de que as questões internas do processo devem ser solucionadas de modo a favorecer os resultados pretendidos, que são exteriores a ele.
O Código de Processo Civil brasileiro, não obstante exemplo de aprimoramento técnico, constitui diploma distante das necessidades da sociedade moderna, voltada precipuamente para uma categoria de interesses, cujas características e peculiaridades foram praticamente ignoradas pelas regras instrumentais. As normas codificadas têm em vista tão-somente os conflitos envolvendo direitos individuais. Não são adequadas, pois, à regulamentação de processos cujo objeto sejam interesses coletivos e difusos.
(...) Essa ‘revisitação’ requer nova análise interna do sistema
processual, para adaptá-la às necessidades externas. Trata-se de tomar consciência de que os institutos processuais são concebidos à luz do direito material. Implica reconhecer que a distância entre direito e processo é muito menor do que se imaginava e que a reaproximação de ambos não compromete a autonomia da ciência processual. O reconhecimento da necessidade de os institutos processuais serem concebidos a partir do direito material resulta da inafastável coordenação entre tais ramos da ciência jurídica. Preserva-se a autonomia do processo com a aceitação de se tratar de realidades que se referem a patamares dogmáticos diferentes.108
Constatada a necessidade do processo ser revisitado com os aportes próprios
ao Estado Democrático-Ambiental de Direito, a grande questão a ser doravante
eriçada é aquela relativa às possibilidades de o aplicador do direito conformar o
procedimento, construído abstrata e uniformemente pelo legislador para toda e
qualquer crise jurídica, aos desideratos processuais jusambientais.
Não se quer aqui, obviamente, tratar processo e procedimento como se
fossem expressões sinônimas. Longe disso. O fato, no entanto, é que não se pode
perder de vista que o procedimento dá vida ao processo, consubstanciando-se, pois,
na sua faceta tangível109.
A questão que se impõe, neste contexto, é a de saber se a adaptabilidade do
procedimento pode ser vista como um pressuposto para o acesso do cidadão - mais
108 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Op. cit., p. 15, 16. 109 Sobreleva trazer, acerca do afirmado, a lição de WATANABE, Kazuo. Op. cit., p. 140: “(...) Sem a noção de procedimento, afigura-se bastante difícil compor um conceito preciso de processo, pois é o procedimento, ao que nos parece, que dá a própria estrutura da relação jurídica processual, que por meio dele assume uma configuração definida. Sem ele, a relação jurídica processual seria algo amorfo, disforme e sem ossatura.”
130
especificamente do cidadão-trabalhador - a uma ordem jurídica eficiente e
ambientalmente justa. Mas este é um tema para ser tratado em tópico apartado.
7.1 A ADAPTABILIDADE DO PROCEDIMENTO COMO PRESSUPOSTO
PARA O ACESSO A UMA ORDEM JURÍDICA EFICIENTE E AMBIENTALMENTE
JUSTA
Para que se possa construir uma resposta satisfatória à indagação formulada
na parte final do tópico anterior, faz-se necessário, antes de tudo, relembrar-se a
notável observação de Luiz Guilherme Marinoni, quando admoesta que “o direito
fundamental à tutela efetiva incide sobre o legislador e o juiz, ou seja, sobre a
estruturação legal do processo e sobre a conformação dessa estrutura pela
jurisdição”110.
É de se enfatizar: o dever de promover a tutela efetiva de direitos não incide
apenas sobre o legislador, mas também - e principalmente - sobre o julgador.
Se por um lado é correto dizer-se que o Poder Legislativo possui a obrigação
de construir procedimentos que bem permitam ao Poder Judiciário desvencilhar-se
da sua missão de distribuir justiça, por outro não é menos acertado afirmar-se que o
magistrado pode e deve conformar tal procedimento ao objetivo constitucional de
garantir a quem de direito o acesso substancial à jurisdição.
Afigura-se óbvia a constatação de que o legislador não pode prever de
antemão um rito processual que seja capaz de dar resposta pronta e adequada para
toda e qualquer situação da vida. É óbvio, nesta esteira, que o juiz não detém
apenas o poder, mas, também, o dever de conformar o procedimento – obviamente
que sem comprometer as cláusulas do contraditório e da ampla defesa – à
necessidade indeclinável de que o acesso a uma ordem jurídica eficiente seja algo a
mais do que mera ficção.
Consoante já se sublinhou em múltiplas oportunidades ao longo do trabalho
que vem sendo desenvolvido, as noções de processo e procedimento,
evidentemente, não podem ser tecnicamente confundidas.
110 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 113.
131
Sem embargo, não se pode deixar de enfatizar que o procedimento, encarado
como a realidade tangível do processo, é intrinsecamente relevante para que este
último atinja os resultados prometidos pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição.
O processo, por suposto, muito antes de ser um instrumento de simples
atuação formal da vontade legal, deve ter o escopo centrado na tutela real e não
apenas fictícia de direitos. Para tanto ele depende, inexoravelmente, das
possibilidades que o procedimento lhe concede. São dignas de reprodução, nesta
linha de raciocínio, as sempre elucidativas palavras de Luiz Guilherme Marinoni:
A percepção da autonomia e da natureza pública do direito
processual não constitui fundamento para se perguntar apenas pelo fim do processo, esquecendo-se do procedimento. Na realidade, a definição de processo que não considera procedimento encobre uma porção essencial do objeto a ser elucidado. Tal definição manipula o conceito de processo, negando parcela da realidade a ser compreendida.
(...) Engana-se quem imagina que o procedimento, apenas por
também poder ser visto como uma seqüência de atos, não tem finalidade e não se destina a atender a objetivos e a necessidades específicas.
O procedimento, em abstrato – como lei ou módulo legal – ou no plano dinâmico – como seqüência de atos -, tem evidente compromisso com os fins das jurisdição e com os direitos dos cidadãos.
Ver o processo apenas como instrumento para a atuação da lei não permite perceber que o exercício da jurisdição depende do modo como o procedimento é fixado em abstrato – pelo legislador – e é aplicado e construído no caso concreto e, assim, compreendido pelo juiz.111
É certo que os representantes do Poder Legislativo são diretamente eleitos
pelo voto popular, enquanto que os juízes, ao menos no Brasil, ascendem aos seus
cargos por concurso público de provas e títulos. Essa verdade inarredável, como não
poderia ser diferente, coloca em xeque a legitimidade democrática dos magistrados
para conformarem o procedimento legalmente estruturado no exercício da atividade
legiferante às necessidades da jurisdição.
A verdade suprema, no entanto, é que as chagas da população são expostas,
nua e cruamente, todos os dias, nas mesas de audiências dos juízes, enquanto que
os parlamentares, não raro enclausurados no aconchego dos conchavos palacianos,
111 MARINONI, Luiz Guilherme. Ibid., p. 401..
132
nem sempre conseguem escutar, com a intensidade que seria necessária, os
decibéis estridentes do clamor verberado nas ágoras populares.
Isso talvez explique, em boa medida, o motivo de o Supremo Tribunal Federal
estar sendo convocado, dia após dia, por via do remédio jurídico conhecido por
mandado de injunção, a estruturar o exercício de direitos fundamentais - como o
direito de greve dos servidores públicos ou o aviso prévio proporcional ao tempo de
serviço dos trabalhadores em geral - que o Congresso Nacional não conseguiu – ou
deliberadamente não quis – regulamentar após duas décadas de vigência da atual
Constituição.
Arroubos à parte, pode-se assentar, sem maiores temores de equívoco, que a
realidade bate com muito maior intensidade e frequência na porta dos juízes, que,
assim, necessitam de procedimentos cada vez mais específicos, peculiares e
apropriados para darem a quem de direito o bem da vida perseguido em juízo. A
questão a saber, neste contexto, é se o Poder Legislativo conseguirá, a tempo e
modo, dar resposta a necessidades tão variadas, importantes e prementes.
A resposta a tal indagação, como não poderia deixar de ser, é
desbragadamente negativa. É notadamente elementar a inviabilidade de o
Legislativo conseguir estabelecer, abstrata e genericamente, procedimentos
processuais que aplicados rigidamente, sem qualquer elasticidade, se traduzam em
um ferramental apto às necessidades de um exercício jurisdicional que consiga,
mais do que proclamar, outorgar concretude à promessa constitucional de
construção de uma sociedade justa, livre e solidária, que seja capaz de erradicar a
marginalização e a miséria.
Antes de se enfrentar o tormentoso assunto das possibilidades e dos limites
de conformação dos ritos processuais, faz-se necessário aprofundar o tema alusivo
à legitimidade democrática do Poder Judiciário para tanto.
7.1.1 A Adaptabilidade do Procedimento: Legitimidade Democrática do Poder
Judiciário
Na quadra das indagações antes delineadas, faz-se importante a retomada de
algumas premissas algures demarcadas. É de se relembrar, por exemplo, que os
Estados Liberal e Social apostaram as suas fichas tão enfaticamente no legalismo, a
ponto de esterilizarem a fecundidade do direito, apartando-o sem nenhuma
133
preocupação crítica do campo ético, até que regimes totalitários, estribados em leis
formalmente perfeitas mas absolutamente despidas de substrato moral, cometessem
inenarráveis afrontas à espécie humana.
Foi necessária, com efeito, a odiosa instauração da barbárie em pleno século
XX, para que ficasse escancarada a insuficiência da pretensa neutralidade
positivista. Neste cenário, finalmente, a estreiteza da lei foi obrigada a ceder espaço
à força normativa dos princípios, exigindo-se, em decorrência, que direito e eticidade
se amalgamassem. Uma vez refundada a ordem jurídica sob a égide do pós-
positivismo, os fundamentos constitucionais deixaram de ser meras abstrações
programáticas, para se transformarem em preceitos políticos-normativos de
concretização impostergável.
A partir de então, a função jurisdicional do Estado teve que ser
completamente ressignificada pela doutrina, reclamando-se do julgador, por corolário
lógico, uma outra postura diante dos conflitos submetidos à sua apreciação. Daí em
diante, no dizer do Professor Marinoni, “a obrigação do jurista não é mais apenas a
de revelar as palavras da lei, mas sim a de projetar uma imagem, corrigindo-a e
adequando-a aos princípios de justiça e aos direitos fundamentais”112.
Insta realçar que uma das funções precípuas do Poder Judiciário no Estado
Democrático de Direito é justamente a de promover o controle da constitucionalidade
das leis, o que pode ser realizado, no caso brasileiro, tanto difusa quanto
concentradamente.
Vale dizer, com efeito, que a própria Magna Carta, enquanto fruto
documentado da soberania popular, legitima o Poder Judiciário como o supremo
guardião da mensagem constitucional, sem que o exercício desta grave tarefa se
preste ao malferimento do princípio da separação e da harmonia dos Poderes.
Aliás, nada poderia maltratar o princípio da separação e harmonia dos
Poderes com maior intensidade, do que a submissão inconsequente do Judiciário
aos caprichos do Legislativo, como quando no Estado Liberal se reservava ao
magistrado o aviltante papel de bouche de la loi, transformando-o, via de
consequência, em mero despachante dos interesses do legislador, ainda que estes
não coincidissem com os valores éticos democraticamente pactuados pela
sociedade.
112 MARINONI, Luiz Guilherme. Ibid., p. 45.
134
Por mais paradoxal que possa parecer, a pior das distorções de um sistema
que se deseja democrático, é justamente a imposição do pensamento majoritário
sobre os grupos não hegemônicos. Assim é que o Poder Judiciário deve ser
considerado como uma verdadeira válvula de respiro, hábil à tutela das garantias
atribuíveis às classes não prevalecentes.
Para tanto não será raro que os juízes tenham de controlar a
constitucionalidade das leis, não apenas para pura e simplesmente, sem maiores
implicações práticas, declará-las inconstitucionais, mas, sobretudo, para atribuir-lhes
um sentido aplicativo que se conforme com os cânones constitucionais que
estruturaram o modelo estatal prometido pela aliança constituinte.
Evidentemente que, no plano processual, toda e qualquer conformação do
procedimento infraconstitucional às necessidades de substancialização da
inafastabilidade da jurisdição, deverá ser realizada de modo a que o jurisdicionado
não seja apanhado de surpresa, garantindo-se-lhe, indeclinavelmente, o exercício do
contraditório e da ampla defesa, com todos os meios e recursos que lhe são
inerentes.
Em hipóteses que tais, invariavelmente ligadas aos chamados hard cases, a
opção procedimental do magistrado se legitimará, para muito além das atribuições
formais que Constituição lhe destina, pela combinação do contraditório com a
argumentação.
Argumentar, nesse caso, será muito mais do que simplesmente fundamentar.
Dito de outro modo, não bastará ao magistrado justificar fundamentadamente a sua
construção procedimental, sendo imperioso que ele convença a sociedade de um
modo geral, e o jurisdicionado em específico, do acerto do seu ponto de vista pelo
esmero argumentativo.
Importa carrear para cá, no pertinente ao asseverado no parágrafo anterior, a
sempre precisa exposição doutrinária de Luís Roberto Barroso, quando apresenta
alguns parâmetros que necessariamente devem balizar a atividade argumentativa da
jurisdição no pós-positivismo:
Em primeiro lugar, a argumentação jurídica deve ser capaz de
apresentar fundamentos normativos (implícitos que sejam) que apoiem e lhe dêem sustentação. Ou seja: não basta o bom senso e o sentido de justiça pessoal – é necessário que o intérprete apresente elementos da ordem jurídica que referendem tal ou qual decisão. Embora óbvia, essa exigência tem sido deixada de lado com mais
135
frequência do que se poderia supor, substituída por concepções pessoais embaladas em uma retórica de qualidade. Não custa lembrar que, em um Estado democrático de direito, o Judiciário apenas pode impor coativamente determinada conduta a alguém com fundamento em lei. A argumentação jurídica deve preservar exatamente seu caráter jurídico – não se trata apenas de uma argumentação lógica ou moral. (...)
(...) um segundo parâmetro útil para o controle da argumentação jurídica, em especial quando ela envolve a ponderação, diz respeito à possibilidade de universalização dos critérios empregados para a solução de um determinado caso concreto possam ser transformados em regra geral para situações semelhantes. (...)
Por fim, um último parâmetro capaz de balizar de alguma forma a argumentação jurídica, especialmente a constitucional, é formado por dois conjuntos de princípios: o primeiro, composto de princípios instrumentais ou específicos de interpretação constitucional; o segundo, por princípios materiais propriamente ditos, que trazem em si a carga ideológica, axiológica e finalística da ordem constitucional. Ambas as categorias de princípios orientam a atividade do intérprete, de tal maneira que, diante de várias soluções igualmente plausíveis, deverá ele percorrer o caminho ditado pelos princípios instrumentais e realizar, tão intensamente quanto possível, à luz dos outros elementos em questão, o estado ideal pretendido pelos princípios materiais.113
Não se cuida de defender, evidentemente, que o magistrado subtraia do
parlamentar a atividade legiferante, mas que ele possa, à luz das imposições
concretas, cimentar o procedimento legal em consonância a necessidade de
materialização das tutelas prometidas pelo próprio Legislativo, colmatando, sempre
que necessário, as lacunas literais e axiológicas existentes na legislação.
Calha trazer a lume, em diapasão atonado na formulação de políticas
públicas, mas cuja inteligência se aplica, mutatis mutandis, às necessidades de
conformação procedimental, o magistério de Eduardo Cambi:
A Constituição traça parâmetros normativos para a
concretização dos direitos fundamentais, predeterminando a necessidade de políticas públicas inerentes à realização destes direitos. Cabe aos juízes apenas dar força normativa à Constituição, sem, como isso, absorver o espaço político reservado à deliberação majoritária acerca das políticas públicas.
A tarefa do juiz, ao preencher uma lacuna jurídica, ao considerar uma regra inconstitucional, ao concretizar um princípio jurídico ou mesmo ao formular uma política pública, para dar efetividade à Constituição, não se compara à atividade do legislador.
(...)
113 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 365 e 367.
136
Os fundamentos políticos que o juiz usa para decidir não se confundem com os de política partidária (v.g., não julga a favor de uma pretensão sustentada por um sindicato, porque foi membro do partido dos trabalhadores), apesar de que os princípios políticos em que acredita (v.g., de que a igualdade é um objetivo político fundamental) possam ser característicos de um determinado partido político.
Os juízes não desenvolvem atividade política stricto sensu. Não decidem com fundamentos de política partidária, mas apenas concretizam a Constituição. Julgam com base em fundamentos de políticas constitucionais, devendo, as decisões, ser pautadas por valores, princípios e regras contidos no ordenamento jurídico.
Por outro lado, negar a legitimidade democrática do Judiciário para aplicar, imediatamente, direitos fundamentais seria ignorar a submissão do legislador à Constituição e o papel da jurisdição constitucional na efetivação do Estado Democrático de Direito. O Judiciário deve zelar pelo respeito aos direitos fundamentais que são as bases substanciais para a realização da democracia. Sem a permanente vigilância na observância dos direitos fundamentais, não há democracia.114
Vê-se, pois, que o julgador não pode e nem deve se imiscuir, ainda que
retoricamente, na atividade política de cunho partidário. Tal constatação,
entrementes, não lhe exime do poder/dever de agir como verdadeiro agente político
estatal, de modo a que a sua atuação judicante se preste, em consonância com as
atribuições que a Constituição lhe impõe em um Estado Democrático de Direito, à
materialização dos direitos fundamentais prometidos no texto constitucional.
Laborando em tom mais correlato à questão procedimental, mas permeado
pelas indagações filosóficas que pertinem ao assunto que vem sendo desafiado,
mostra-se importante a reprodução da lição lançada ao universo jurídico pelo tinteiro
do jurista argentino Ricardo Luis Lorenzetti:
No campo da filosofia do direito trabalha-se formulando uma
interrogação como modo de instigar o raciocínio: por qual razão debatemos arduamente, votamos, elegemos, etc., se logo há um grupo de juízes, não eleitos, que decidem por nós?
Essa colocação assiná-la que os juízes, que são uma minoria, substituem a maioria, e afetam a base da democracia. Para que isso ocorra deve haver uma justificação e um limite. A justificação está sustentada na noção de democracia constitucional, posto que a ela interessa não só a regra da maioria, senão a tutela das minorias. Nesse sentido, os juízes são guardiões da Constituição, e, portanto, das instituições e dos direitos fundamentais.
O limite é importante, porque a atuação não deve estar destinada a substituir a vontade das maiorias ou minorias, mas a
114 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 270, 271.
137
assegurar o procedimento para que ambas se expressem. De tal modo, a atuação dos juízes não deve ser, neste sentido, substantiva, mas procedimental, garantindo os instrumentos para uma expressão diversificada e plural, em vez de substituí-la por opiniões próprias.
Devem sustentar as regras da Democracia e a República, que são essenciais para que a sociedade discuta e resolva seus problemas, e não tentar substituir esse debate, salvo situações extremas.115
Suficientemente justificada a legitimação democrática do Poder Judiciário
para a conformação do procedimento às especificidades do caso concreto, que,
como visto, lastreia-se primordialmente nas noções de jurisdição constitucional,
contraditório, participação e argumentação, afigura-se importante debater,
doravante, quais seriam os limites e as possibilidades desta mesma conformação, o
que será feito com os olhos mais voltados à processualística laboral, que é aquela
que de perto interessa à presente dissertação.
7.1.2 A Adaptabilidade do Procedimento: Limites e Possibilidades
Quanto à indagação acerca dos limites da adaptabilidade procedimental, uma
primeira preocupação que se apresenta ao jurista é aquela que diz respeito à
necessidade ou não de previsão legal expressa que permita ao aplicador do direito a
utilização concreta de tal possibilidade.
A resposta, à esta altura, é demasiado intuitiva, já que parece ter ficado
suficientemente claro no curso desta explanação que este é um poder e um dever
que se impõe constitucionalmente ao julgador, a quem a Constituição atribui,
independentemente de qualquer permissivo infraconstitucional, a missão de
concretizar as suas promessas.
Pode-se dizer, com efeito, que o princípio da inafastabilidade de jurisdição
(artigo 5º, XXXV, da CRFB) detém per se suficiente autoridade para permitir que o
juiz, sempre que necessário, possa justificadamente, calcado em argumentação
vigorosa, adaptar o rito processual aos desideratos centrais do projeto político
contido na ideia de Estado Democrático-Ambiental de Direito, garantindo-se ao
jurisdicionado, para muito além de um acesso meramente formal ao Poder
Judiciário, o engajamento em uma ordem jurídica verdadeiramente eficiente e
115 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 336.
138
ambientalmente justa, que preze, preferencialmente, as práticas preventivas em
detrimento das repressivas.
Sobreleva repisar, dessarte, que o processo, bem como a sua realidade
perceptível, consubstanciada na noção de procedimento, mais do que legal deverá
ser constitucionalmente estruturado e ambientalmente justo, para verdadeiramente
proteger o direito do cidadão a uma vida plena e abundante.
Não se deseja defender aqui, naturalmente, a noção de que não seja
conveniente que o legislador albergue a diretiva da conformação procedimental no
seio da legislação ordinária.
Esta possibilidade, diga-se de passagem, revelaria a nobreza do parlamento
em admitir que não pode, prévia e abstratamente, dar resposta para todas e
quaisquer crises jurídicas que venham a se instaurar concretamente perante o Poder
Judiciário.
Demais disso, ela por certo evitaria que o ranço cultural liberal continuasse a
sistematicamente conspirar contra a efetividade da tutela jurídica.
Há que se pontuar, aliás, que não são poucas as iniciativas legislativas que
atualmente se preocupam com esta questão.
À guisa de exemplificação, os artigos 107, V e 151, § 1º do anteprojeto de
Código de Processo Civil que está sendo discutido no Congresso Nacional
estabelecem, respectivamente, a possibilidade de o juiz “adequar as fases e os atos
processuais às especificações do conflito, de modo a conferir maior efetividade à
tutela do bem jurídico, respeitando sempre o contraditório e a ampla defesa”, além
de estatuir que “quando o procedimento ou os atos a serem realizados se revelarem
inadequados às peculiaridades da causa, deverá o juiz, ouvidas as partes e
observados o contraditório e a ampla defesa, promover o necessário ajuste” 116.
Comentando tais preceptivos, assim se manifestam Luiz Guilherme Marinoni
e Daniel Mitidiero:
É o que dizemos há bastante tempo. Trata-se de medida que
visa a retirar do procedimento ‘todas as potencialidades para a justa solução do caso concreto’. A previsão de normas processuais abertas tem a virtude de permitir a construção do direito à ação adequada às peculiaridades do direito material, permitindo primeiro olhar para a tutela do direito para depois perguntar pelas técnicas
116 MARINONI, Luis Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 256 e 270.
139
processuais necessárias para a sua promoção. Promove-se a adequação do processo à tutela do direito. Semelhante técnica deve ser concretizada pelo juiz em diálogo com as partes, respeitado o contraditório. A previsão de respeito à ampla defesa, aliás, é supérflua. Rigorosamente, basta a alusão ao contraditório para a legitimação da adequação do processo às necessidades evidenciadas pelo direito material.117
Em perspectiva semelhante, tem-se, ademais, os comentários de Gustavo
Quintanilha Telles de Menezes, enfatizando, com absoluta propriedade, a
importância da força argumentativa do magistrado para o bom uso da faculdade em
discussão:
Como causas que justificam a adequação, indica-se a
necessidade de fazê-lo para atender às especificações do conflito e ser a forma implementada em substituição àquela expressamente prevista, mais apta a garantir concretamente a efetividade à tutela do bem jurídico.
Evidente que o legislador, ao definir as formas dos procedimentos, considera estas duas circunstâncias. Todavia, a experiência comprova que ante a multiplicidade de fatores existentes na realidade e a dinamicidade da própria sociedade, nem sempre as formas de antemão estipuladas são as melhores para atender o caso concreto, quer por ser o conflito dotado de características não previstas – ou até inexistentes – ao tempo da formulação legislativa do procedimento, que por serem capazes as partes ou o magistrado de elaborar uma forma viável de proteger com mais sucesso o bem jurídico.
Instituto essencial para a compreensão da atividade do magistrado, ao exercitar o poder de adaptação procedimental, trata-se da compreensão do ônus argumentativo (...).
Com efeito, a decisão de adequar o procedimento e alterar as formas legais deve ser particularmente bem fundamentada, notadamente para justificar porque, no caso concreto, a forma legal – preferência normativa – não deve ser seguida, apresentando-se as razões claras do motivo da adoção da forma ou meio que se preferiu.118
Vale reproduzir finalmente, por importante, o escólio de Bruno Vinícius da Rós
Bodart, quando adverte que tal poder não pode ser utilizado pelo juiz abusivamente:
Em razão dos princípios constitucionais da segurança jurídica,
da igualdade e da legalidade, não se podem interpretar os artigos 107, V, e 151, § 1º, do anteprojeto como autorizadores de um
117 MARINONI, Luis Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Ibid., p. 88, 89. 118 MENEZES, Gustavo Quintanilha Telles de. A atuação do juiz na direção do processo. In: FUX, Luiz. O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa (reflexões acerca do projeto do novo código de processo civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 201.
140
ilimitado poder de criação judicial. Não se pode aceitar que cada magistrado crie o procedimento que melhor lhe aprouver, como se cada Vara dispusesse de um Código de Processo Civil próprio. O que se faz é substituir um regime em que a inobservância das formas legalmente prescritas gera nulidade por outro, no qual o juiz é estimulado a se afastar do que as regras legais determinam sempre que desse modo for possível a maior promoção dos princípios processuais fundamentais. Entretanto, a princípio deve ser observado o procedimento legal.(...)
Ora, se o juiz pudesse a todo o momento deixar de aplicar a regra valendo-se do princípio que a justifica, a existência das regras seria absolutamente irrelevante, pois o magistrado estaria vinculado apenas a princípios. Maior aprofundamento nessa discussão jusfilosófica fugiria aos estritos limites deste trabalho. O que se quer deixar claro é que o princípio da adaptabilidade não é um ‘cheque em branco’ para o juiz, não o autoriza a desconsiderar por qualquer pretexto os ditames legais.119
Na mesma perspectiva do direito processual comum, também as iniciativas
legislativas processuais trabalhistas vêm se ocupando do tema, sendo de se citar,
v.g., o projeto de revisão das disposições processuais insertas na Consolidação das
Leis do Trabalho recentemente apresentado pelo Tribunal Superior do Trabalho
visando o debate da comunidade jurídica120, que prevê a criação do artigo 878-D
para estabelecer que “havendo mais de uma forma de cumprimento da sentença ou
de execução do título extrajudicial, o juiz adotará sempre a que atenda à
especificidade da tutela, à duração razoável do processo e ao interesse do credor”,
além de modificar a atual redação do artigo 876-A, a fim de estatuir que aplicar-se-á
“ao cumprimento da sentença e à execução dos títulos extrajudiciais as regras de
direito comum, sempre que disso resultar maior efetividade do processo”.
Aliás, independentemente da aprovação ou não das disposições legais retro
enfocadas, o fato é que mesmo no atual estado da arte nenhum outro ramo do
direito processual se presta tão abertamente à possibilidade da conformação do
procedimento pelo magistrado quanto o Processo do Trabalho.
Vale recordar, a propósito, que tendo em conta a lacunosidade inerente ao
sistema processual laboral, o artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho
preconiza que “nos casos omissos, o direito processual comum será fonte
subsidiária do direito processual do trabalho” , sendo certo, ademais, que o artigo
889 do mesmo diploma estabelece que “aos trâmites e incidentes do processo da
119 BODART, Bruno Vinícius da Rós. Simplificação e adaptabilidade no anteprojeto do novo CPC brasieiro. In: FUX, Luiz. Ibid., p. 101, 102. 120 Disponível em: http://tinyurl.com/3jkl4xq. Acesso em: 18.08.2011.
141
execução são aplicáveis, naquilo em que não contravier ao presente título [referindo-
se capítulo V que trata da execução trabalhista], os preceitos que regem o processo
dos executivos fiscais para a cobrança judicial da Fazenda Pública Federal”.
É certo que não são poucos aqueles que ponderam que os artigos 769 e 889
da CLT respaldariam tão-somente a colmatação do procedimento trabalhista pelo
Processo Civil ou pela Lei de Execuções Fiscais naquelas hipóteses de ocorrências
de omissões literais no seu corpo demasiadamente poroso.
Nesta perspectiva, não seria legítimo que o Juiz do Trabalho se valesse do
procedimento comum, ainda que mais eficiente para a prestação da tutela laboral, se
a legislação processual trabalhista fosse dotada de um rito predeterminado para a
situação enfrentada.
Uma conclusão tão primária quanto esta, evidentemente, não pode prevalecer
em tempos de positivismo ético. Faz-se fundamental, assim, que o juslaboralista se
disponha a rediscutir o sentido da expressão “omissão” de que fala o artigo 769 da
CLT, deslocando-o do seu viés literal para o instrumental-axiológico, relendo-a,
portanto, a partir do direito fundamental à tutela jurídica célere e eficaz.
A respeito do asseverado, tem-se por bem em trazer o ensinamento do
Professor Júlio César Bebber, que chega a ser desconcertante quando propõe o
assentamento do debate sob o prisma histórico:
As normas da CLT que impedem a aplicação primária do
Direito Processual Comum (arts. 769 e 889) estão diretamente ligadas ao momento histórico da sua edição.
Em 1943, quando editada a CLT, vigia o CPC de 1939. A execução fiscal, por sua vez, era regida pelo Decreto-lei nº 960-1938. Como a CLT previa regras mais avançadas e simplificadas, tomou-se a precaução de impedir a aplicação do CPC e da LEF por meio dos artigos 769 e 889 da CLT, que funcionavam, então, como regras de contenção.
Evitava-se, com isso, que as regras processuais comuns e especiais da execução fiscal ingressassem no processo do trabalho sobrepondo-se a este que, reconhecidamente, era melhor. Em outras palavras, pretendeu-se evitar que normas retrógradas e deficitárias interferissem no curso de um processo que se pretendia fosse simples e ágil.
Passados mais de 60 anos da edição da CLT, porém, muita coisa mudou. O CPC de 1939 foi substituído pelo CPC de 1973 que já nem é mais o mesmo, diante das várias reformas por que passou ao longo do tempo, com o escopo de mantê-lo atualizado. A execução fiscal também sofreu mudanças. Primeiro, deixou de ser regida pelo Decreto-lei n. 960/1938, uma vez que o CPC de 1973 o revogou expressamente. Em 1980, porém, editou-se a Lei n. 8.630,
142
que novamente estabeleceu regras especiais para a execução fiscal, e é o texto normativo hoje vigente com pequenas modificações.
Enquanto as regras processuais comuns foram se modificando rumo à efetividade e tempestividade, as regras da CLT mantiveram-se inalteradas, ou, quando modificadas, o foram sem grande expressão. O legislador, inexplicavelmente, mostrou-se omisso diante da realidade de um sistema processual que exige modificações profundas para reger as relações do mundo atual.
Essa lacuna na história evolutiva do sistema processual trabalhista deve, então, ser suprida com criatividade pelo aplicador da lei. É míope a visão daqueles que adotam comportamento de apenas lamentar a deficiência e o anacronismo da legislação. As regras de contenção (CLT, arts. 769 e 889) devem, por isso, ser aplicadas com o mesmo espírito justificador de suas existências. Ou seja: deve-se impedir que as regras processuais comuns e especiais da execução fiscal ingressem no processo do trabalho sobrepondo-se a este somente quando se mostrarem retrógradas e deficitárias.
Com isso se obtém certo grau de flexibilização relativamente ao requisito da omissão, de modo que os avanços e melhorias da legislação processual comum sejam aproveitados no processo do trabalho sempre que se apresentem condizentes com um processo tempestivo e de resultados.121
Ante a grandeza científica do escólio reproduzido, pode-se afirmar agora, sem
que com isso se incorra em qualquer arroubo dissertativo, que quando analisada a
questão da adaptabilidade do procedimento trabalhista a partir dos fundamentos
constitucionais da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho
(art. 1º, III e IV, da CRFB), associados aos objetivos republicanos de construção de
uma sociedade livre justa e solidária capaz de erradicar a pobreza e a
marginalização (art. 3º, I e III, da CRFB), bem como dos direitos fundamentais à
tutela jurisdicional eficaz e da razoável duração do processo (art. 5º, XXXV e
LXXVIII, da CRFB), não será nenhum exagero afirmar que a Constituição se dispõe
a respaldar, imediatamente, o transplante para o âmbito laboral das disposições
processuais comuns que sejam mais aptas a garantir ao cidadão-trabalhador o
acesso substancial à tão almejada ordem jurídica eficiente e ambientalmente justa
preconizada pelo Estado Democrático-Ambiental de Direito.
É de se realçar, a propósito, que a Súmula nº 66 da 1ª Jornada de Direito
Material e Processual na Justiça do Trabalho dispõe no seguinte sentido:
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DE NORMAS DO PROCESSO
COMUM AO PROCESSO TRABALHISTA. OMISSÕES
121 BEBBER, Júlio César. Cumprimento da Sentença no processo do trabalho. 2 ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 19, 20, 21.
143
ONTOLÓGICA E AXIOLÓGICA. ADMISSIBILIDADE. Diante do atual estágio de desenvolvimento do processo comum e da necessidade de se conferir aplicabilidade à garantia constitucional da duração razoável do processo, os arts. 769 e 889 da CLT comportam interpretação conforme a Constituição Federal, permitindo a aplicação de normas processuais mais adequadas à efetivação do direito. Aplicação dos princípios da instrumentalidade, efetividade e não-retrocesso social.122
Falando sobre os poderes e os deveres do Poder Judiciário diante das
deficiências legislativas, tem-se a lição de Luiz Guilherme Marinoni, que embora
voltada para o Processo Civil aplica-se ainda mais justa ao Processo do Trabalho
tendo em vista a sua lacunosidade literal e axiológica:
O que falta, porém, é atentar para que, se é técnica
processual é imprescindível para a efetividade da tutela dos direitos, não se pode supor que, diante da omissão do legislador, o juiz nada possa fazer. Isso por uma razão simples: o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional não se volta apenas contra o legislador, mas também se dirige contra o Estado-juiz. Por isso é absurdo pensar que o juiz deixa de ter dever de tutelar de forma efetiva os direitos somente porque o legislador deixou de editar uma norma processual mais explícita.
Como consequência disso, há que se entender que o cidadão não tem simples direito à técnica processual evidenciada na lei, mas sim direito a um determinado comportamento judicial que seja capaz de conformar a regra processual com as necessidades do direito material e dos casos concretos.
Como é óbvio, não se pretende dizer que o juiz deve pensar o processo civil segundo seus próprios critérios. O que se deseja evidenciar é que o juiz tem o dever de interpretar a legislação processual à luz dos valores da Constituição Federal. Como esse dever gera o de pensar o procedimento em conformidade com as necessidades do direito material e da realidade social, é imprescindível ao juiz compreender as tutelas devidas ao direito material e perceber as diversas necessidades da vida das pessoas.
(...) Diante de uma visão simplificadora, alguém poderia supor que
estamos propondo que o juiz retire a máxima efetividade da regra processual, pouco importando o resultado de sua interpretação. Não se trata disso, porém. Deixe-se claro que o juiz não tem a
122 MONTESSO, José Cláudio, STERN, Maria de Fátima Coelho Borges; ELY, Leonardo (coords). 1ª jornada de direito material e processual na Justiça do Trabalho: enunciados aprovados. São Paulo: LTr, 2008, p. 45. Vale ressaltar, à guisa de esclarecimento, que a 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho foi um evento realizado, conjuntamente, pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) e pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), contando com o apoio do Conselho de Escolas da Magistratura Trabalhista (CONEMATRA), ocorrido de 21 a 23 de novembro de 2007, na sede do Tribunal Superior do Trabalho em Brasília – DF, no qual diversos juristas, dentre eles magistrados, procuradores do trabalho e professores universitários das mais renomadas universidades brasileiras se reuniram para debater os temas polêmicos do direito material e processual do trabalho.
144
possibilidade – nem poderia ter – de interpretar a regra processual como se fosse alheio aos valores da Constituição. O seu dever é interpretar a regra processual, ou mesmo suprir eventual omissão legislativa, para dar máxima efetividade à tutela jurisdicional, compreendidas as necessidades do caso concreto e considerados os valores constitucionais que dão proteção ao réu, como o direito de defesa.123
Não se pode jamais olvidar, afinal, o caráter escopista do direito processual,
que até mesmo na tradução da sua expressão normativa mais ferranhamente liberal
consagra o postulado da instrumentalidade das formas, apregoando, enfaticamente,
que “quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz
considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade”
(artigo 244 do Código de Buzaid).
Como é palmar, o processo é um meio destinado à obtenção de determinado
fim, que no caso trabalhista é a satisfação de direitos que sejam capazes de garantir
ao cidadão-trabalhador uma existência digna e sadia, o que impõe à Justiça do
Trabalho a missão de bem tutelar, com imparcialidade mas sem neutralidade, não
somente a satisfação dos seus créditos alimentares, mas, primordialmente, o seu
direito à saúde (artigos 7º, XXII e 196 da CRFB).
Vale sublinhar, por mais óbvia que ressoe a assertiva, que o processo não é
um fim em si próprio. A sua aplicabilidade não pode ficar condicionada, pois, a um
legalismo infecundo, que não se presta mais do que a depauperar o significado
abrangente que o princípio da legalidade assume na égide do pós-positivismo.
123 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 224, 225, 226.
145
CAPÍTULO IV
AS CRISES AMBIENTAIS TRABALHISTAS E OS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS QUE DELAS DEFLUEM
1 UM BREVE INTRÓITO
Faz-se importante, logo na abertura deste novo capítulo, tocar em uma
questão metodológica sensível para o bom desenvolvimento da pesquisa em curso.
Com já se assinalou exaustivamente mais atrás, o processo somente se
legitima a partir do estabelecimento preciso da sua mirada teleológica essencial, o
que implica em dizer que o direito adjetivo deve estar disposto a ser um instrumento
de satisfação dos direitos substantivos, devendo, com efeito, se moldar às
peculiaridades e necessidades destes últimos para bem cumprir a sua missão.
Assim, muito embora a presente dissertação já tenha destinado todo o seu
segundo capítulo a uma releitura do Direito do Trabalho sob a orientação dos
paradigmas do Estado Democrático-Ambiental de Direito, faz-se imprescindível,
ainda agora, que sejam tecidos alguns pormenores dos distúrbios ambientais
laborais, para, somente ao depois, já nos capítulos de derradeiros, se passar à
conformação da ação civil pública à necessidade de inibição e/ou debelação das
crises trabalhistas de fundo ambiental, propondo-se, então, a utilização das tutelas
inibitória, de remoção do ilícito e ressarcitória na forma específica para o adequado
cumprimento da tarefa em questão.
2 MEIO AMBIENTE DO TRABALHO EQUILIBRADO: INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DA SADIA QUALIDADE DE VIDA DO CIDADÃO-TRABALHADOR
Aqui, antes de tudo, recomenda-se deixar claro que o meio ambiente do
trabalho não deve jamais se dissociar da noção mais ampla de meio ambiente.
Vale dizer que os grandes problemas ambientais, ao revés do que se
imaginou por muito tempo, não se resolvem magicamente nas portas das fábricas.
Muito ao contrário, a temática ambiental apenas ganha novos e não raro mais
dramáticos contornos no âmbito laboral, circunstância que aconselha, por mera
estratégia pedagógica, o seu estudo em apartado.
146
É precioso, em tal sentido, o magistério de Liliana Allodi Rossit:
Meio Ambiente de trabalho. De início, é importante fazer a
seguinte indagação: o meio ambiente de trabalho está separado do conceito de Meio Ambiente? Diante do que foi exposto até o momento, a resposta que reputamos acertada é não.
De fato, como foi apresentado, tudo o que estiver ligado à sadia qualidade de vida insere-se no conceito de meio ambiente, sendo o meio ambiente de trabalho apenas uma concepção mais específica, ou seja, a parte do direito ambiental que cuida das condições de saúde e vida no trabalho, local onde o ser humano desenvolve suas potencialidades, provendo o necessário ao seu desenvolvimento e sobrevivência. Não se limita ao empregado; todo trabalhador que cede a sua mão-de-obra exerce sua atividade em um ambiente de trabalho.124
No mesmo diapasão, a preleção de Sebastião Geraldo de Oliveira:
O meio ambiente do trabalho está inserido no meio ambiente geral (art. 200, VIII, da Constituição da República), de modo que é impossível alcançar qualidade de vida sem ter qualidade no trabalho, nem se pode atingir meio ambiente equilibrado e sustentável, ignorando o meio ambiente do trabalho.125
Consoante se extrai límpido das lições retro reproduzidas, tudo aquilo que
está ligado à fruição de uma vida sã e decente diz respeito ao meio ambiente. É de
se concluir, assim, que o equilíbrio trabalhista é uma das plurifacetas do fenômeno
ambiental, já que o seu propósito é o de garantir ao trabalhador condições hígidas
para o desenvolvimento da atividade necessária ao ganho digno do seu sustento.
A partir destas balizas mestras, a doutrina tem se preocupado em responder
qual seria a natureza jurídica do meio ambiente de trabalho equilibrado, chegando à
firme conclusão que ele seria um bem difuso, na medida em que se destina a
garantir a todos os trabalhadores, indistintamente considerados, um padrão mínimo
de conforto laborativo, apto à promoção do direito fundamental à saúde física e
mental. Tem-se, nesta diretiva, as palavras de Raimundo Simão de Melo:
124 ROSSIT, Liliana Allodi. O meio ambiente de trabalho no direito ambiental brasileiro. São Paulo: LTr, 2001, p. 67. 125 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à saúde do trabalhador. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2010, p. 118.
147
O meio ambiente de trabalho adequado e seguro é um direito fundamental do cidadão trabalhador (lato sensu). Não é um mero direito trabalhista vinculado ao contrato de trabalho, pois a proteção daquele é distinta da assegurada ao meio ambiente do trabalho, porquanto esta última busca salvaguardar a saúde e a segurança do trabalhador no ambiente onde desenvolve as suas atividades.
De conformidade com as normas constitucionais atuais, a proteção do meio ambiente de trabalho está vinculada diretamente à saúde do trabalhador enquanto cidadão, razão por que se trata de um direito de todos, a ser instrumentalizado pelas normas gerais que aludem à proteção dos interesses difusos e coletivos. O Direito do Trabalho, por sua vez, regula as relações diretas entre empregado e empregador, aquele considerado estritamente.
(...) Portanto, o Direito Ambiental do Trabalho constitui direito
difuso fundamental inerente às normas sanitárias e de saúde do trabalhador (CF, art. 196), que, por isso, merece proteção dos Poderes Públicos e da sociedade organizada, conforme estabelece o art. 225 da Constituição Federal. É difusa a sua natureza, ainda, porque as conseqüências decorrentes da sua degradação, como, por exemplo, os acidentes de trabalho, embora com repercussão imediata no campo individual, atingem, finalmente, toda a sociedade, que paga a conta final.126
Vale enfatizar, a propósito da sua conotação difusa, que o meio ambiente do
trabalho, conforme exaustivamente visto mais atrás, não deve jamais se dissociar da
noção mais ampla de meio ambiente, sendo certo que nos termos do artigo 225 da
CRFB, “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”127. Tal
constatação, por si só, justifica, com sobras, que a higidez da ambiência laboral é de
fato e por excelência um bem difuso.
É indubitável que se mostra importante assentar a natureza difusa do direito
ao meio ambiente de trabalho equilibrado, já que isto reafirma, no plano processual,
a conclusão a que esta dissertação chegou no capítulo anterior, no sentido de que
os interesses ambientais trabalhistas somente podem ser adequadamente tutelados
nos quadrantes amplos e arrojados da jurisdição coletiva.
Embora elogiável, entretanto, esta revelação é insuficiente. Mais relevante do
que ela, é o realce da inegável angularidade instrumental do meio ambiente do
trabalho, o que significa dizer que a sua tutela não se justifica per se, possuindo o 126 MELO, Raimundo Simão. Op. cit., p. 32. 127 Sobre a mensagem advinda da parte inicial do caput do artigo 225 da CRFB, mostra-se pertinente sublinhar as palavras de PADILHA, Norma Sueli. Op. cit., p. 39: “Mas destaca-se, também, do conteúdo normativo incluso no texto do artigo 225 da CF, a afirmação de que se trata de um ‘direito de todos’, o que claramente rompe com qualquer concepção tradicional de apropriação privada de parcelas do meio ambiente equilibrado, denotando a natureza diferenciada desse direito, para além
148
seu escopo centrado, a bem da verdade, na promoção da sadia qualidade de vida
do cidadão-trabalhador128.
Sobreleva neste contexto, a necessidade de se investigar mais a fundo o
significado e a abrangência das crises ambientais trabalhistas, para somente ao
depois se perquirir a natureza jurídica dos interesses que delas defluem (aquilo que
a presente dissertação descreve como sendo os interesses ambientais trabalhistas),
de modo a que os elementos processuais coletivos sejam finalmente moldados na
perspectiva da superação dos efeitos malévolos de todas e quaisquer anomalias
ambientais laborais.
3 CRISES AMBIENTAIS TRABALHISTAS
A doutrina justrabalhista, embora quase nunca faça remissão expressa à
temática ambiental, muito tem escrito sobre os problemas ambientais laborais. Para
se demonstrar o acerto desta assertiva, basta rememorar o raciocínio desenvolvido
um pouco mais atrás, a dar conta de que tudo aquilo o que está afetado à fruição de
uma vida sã e decente diz respeito ao meio ambiente.
De tal arte, todas as vezes em que um texto jurídico debate, por exemplo, o
tema da redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo por submissão
a condições degradantes de labor, ele está discutindo, a bem da verdade, uma
questão ligada à ambiência trabalhista. Do mesmo modo, quando a doutrina se
debruça sobre o fenômeno do terror psicológico no trabalho, ela está a teorizar,
ainda que não perceba, sobre uma das vertentes da problemática ambiental laboral.
da dimensão do indivíduo ou de grupos de indivíduos, reclamando uma titularidade de característica nitidamente ‘difusa’.” 128 O presente trabalho não desconhece que o Direito Ambiental assenta-se, contemporaneamente, na lógica de um antropocentrismo alargado, existindo margem, portanto, para que os bens ambientais sejam tutelados em si mesmos. Basta ver, por exemplo, que a Constituição brasileira estabelece no seu artigo 225, § 1º, inciso VII, que para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbe ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”. Tal fato, entretanto, não esmaece o ponto de vista de que a tutela ambiental é dotada de um inescondível caráter instrumental, cujo escopo reside, essencialmente, na promoção da sadia qualidade de vida dos animais humanos. Transcreve-se, nesta perspectiva, a lição de SOARES, Evanna. Ação ambiental trabalhista. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004, p. 59: “O objeto da tutela jurídica do meio ambiente é, antes do próprio ‘meio ambiente considerado nos seus elementos constitutivos’, a proteção da ‘qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida’ – como observa José Afonso da Silva – para quem esse objeto se desdobra em imediato (a qualidade do meio ambiente) e mediato (a qualidade de vida ou a ‘saúde e a segurança da população’)”.
149
Percebe-se, a partir desta constatação, que se faz urgente a sistematização
do quanto se tem escrito e ponderado acerca do assunto enfocado, de modo a que
os diversos matizes ambientais trabalhistas sejam finalmente enxergados a partir de
uma perspectiva organizada e holística, o que certamente viabilizará o alcance do
escopo maior da presente pesquisa, consubstanciado na busca de técnicas mais
eficientes de prestação da tutela processual necessária à obtenção de padrões
ambientais-laborais verdadeiramente hígidos.
Atenta a tal necessidade, a dissertação vertida propõe-se a descrever, ainda
que brevemente, a anatomia das variadas crises ambientais trabalhistas,
catalogando-as, à guisa de contribuição acadêmica, em três dimensões distintas e
ao mesmo tempo interrelacionadas, que serão nominadas pelos seguintes epítetos:
• Crises ambientais trabalhistas de dimensão desumanizante;
• Crises ambientais trabalhistas de dimensão físico-ergonômica;
• Crises ambientais trabalhistas de dimensão psíquico-moral.
3.1 CRISES AMBIENTAIS TRABALHISTAS DE DIMENSÃO
DESUMANIZANTE
Antes de mais nada, afigura-se relevante esclarecer, logo na abertura do
presente tópico, que toda e qualquer crise ambiental trabalhista, em maior ou menor
grau, acaba por aviltar a condição humana do cidadão-trabalhador.
O fato concreto, porém, é que algumas delas o fazem de um modo tão
acentuado, a ponto de poderem ser perfeitamente encaradas como crises
ambientais trabalhistas de dimensão desumanizante, vez que conspurcam a
dignidade do obreiro com intensidade suficiente para reduzi-lo à condição de coisa,
o que implica em renegar, ao fim e ao cabo, a sua categorização como sujeito de
direitos.
Via de regra, as condutas que as caracterizam são tão repugnantes, que a
legislação penal acaba por tipificá-las criminalmente. É o que se dá, por exemplo,
com a redução de trabalhadores a condição análoga à de escravo, prevista como
crime no artigo 149 do Código Penal brasileiro, verbis:
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Artigo 149 do Código Penal – Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além de pena correspondente à violência. § 1º - Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – Mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º - A pena é aumentada de metade se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Como se pode inferir com facilidade da leitura do texto legal, a redução de
trabalhadores a condição análoga à de escravos se amolda perfeitamente no âmbito
das crises ambientais trabalhistas de dimensão desumanizante. Vale insistir, para
melhor se compreender a antedita afirmação, na máxima veiculada mais atrás, a
dizer que tudo aquilo o que está afetado à fruição de uma vida sã e decente diz
respeito ao meio ambiente.
Assim é se pode assentar, em uma perspectiva mais ampla, que quaisquer
dos comportamentos insertos no artigo 149 do Código Penal, como, por exemplo, a
submissão a jornada exaustiva ou a prática de vigilância ostensiva no local de
trabalho, têm íntima ligação com a questão ambiental laboral.
Já em uma mirada específica, todavia, a conduta que mais estreitamente
possui correlação com as crises ambientais trabalhistas, é aquela relativa à
imposição aos trabalhadores de condições degradantes de trabalho, tais como:
• O não fornecimento de alojamentos condignos, expondo os obreiros a
dormirem ao relento ou no máximo sob o abrigo das chamadas “lonas
pretas”, não raro à mercê de animais selvagens;
• O não fornecimento de local adequado para a tomada de refeições, que
via de regra são ingeridas sob o sol escaldante, e às vezes até mesmo
misturadas com terra;
• O não fornecimento de água potável, o que obriga os trabalhadores a
saciarem sua sede em lagoas salobras, nas quais têm que disputar a água
com animais domésticos e não domésticos;
151
• O não fornecimento de local adequado para que os trabalhadores façam
as suas necessidades fisiológicas, obrigando-os, por exemplo, a
defecarem próximo aos locais de onde extraem a água necessária para a
hidratação dos seus corpos;
• O não fornecimento aos trabalhadores de materiais de primeiros socorros,
impelindo-os, em situações extremas, até mesmo a cuidarem da
amputações de dedos, causadas pelo manejamento de foices, apenas
com óleos extraídos da flora nativa;
• O transporte de obreiros em veículos não adaptados às regras legais de
segurança129.
Há, ainda, algumas atividades que, embora formalmente lícitas, possuem
peculiaridades operacionais tão infamantes, que inelutavelmente se prestam à
instauração das chamadas crises ambientais trabalhistas de dimensão
desumanizante. É o que dá, v.g., com o trabalho braçal realizado pelos cortadores
de cana.
Para uma melhor compreensão do asseverado, alvitra-se importante detalhar
como é desenvolvida a aludida atividade. Colhe-se, para tanto, um fragmento do
estudo desenvolvido por Cristiane Maria Galvão Barbosa, em tese apresentada à
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de
Doutor em Ciências:
O processo manual de corte é uma atividade laboral que
impõe o trabalhador a uma carga física intensa, com execução de movimentos rápidos, repetitivos e em sobrecarga com o corpo. O ciclo de trabalho pode ser assim resumido: abraçar um monte de cana (com 3-10 canas), golpear com o facão, uma ou várias vezes até cortá-los, o mais próximo possível do solo, preservando a raiz. Para isto, o trabalhador faz uma série de torções e flexões do tronco ao se agachar, realiza movimentos contínuos, vigorosos e repetitivos com os braços, através dos golpes com o facão. Ainda, realiza caminhada pelo canavial com os montes de cana cortados, arrumando-os em fileiras, nos eitos ou ruas estabelecidas para cada
129 Não se deseja aqui, por motivos óbvios, confundir a atividade acadêmica com a atividade judicante, mas vale ressaltar, pela estreita pertinência com o estudo desenvolvido, que todas as condutas elencadas, a maioria delas inverossímeis aos olhos dos habitantes dos grandes centros urbanos, já foram enfrentadas pelo responsável por esta pesquisa na sua atividade profissional de Juiz do Trabalho. Conferir, a propósito, dentre outros, os autos dos processos nº 00177.2005.061.23.00-3, nº 00232.2006.061.23.00-6 e nº 00177.2007.061.23.00-5 (Disponível, respectivamente, em: http://tinyurl.com/3fv9dx6, http://tinyurl.com/3glvkw2 e http://tinyurl.com/3hfsokz) .
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cortador. A cana amontoada é carregada mecanicamente em caminhões, que a transporta até a usina.130
Consoante se denota, a labuta desenvolvida no corte de cana, em virtude do
seu bárbaro modo de realização, possui o condão de colocar em xeque, per se, a
conveniência da sua operação por intermédio da força humana.
Nada obstante, para que se melhor a compreenda como um vetor de
desencadeamento de uma crise ambiental trabalhista de dimensão desumanizante,
importa clarificar o contexto da ambiência em que ela é praticada. Vale-se, para o
cumprimento desta tarefa, de mais um excerto do estudo desenvolvido por Cristiane
Maria Galvão Barbosa:
O trabalhador ao chegar ainda cedo no canavial enfrenta em
seu ambiente de trabalho, temperatura bastante elevada, decorrente do aquecimento pela queima da cana e que pode se intensificar durante o dia pelo ação solar. Deste modo, o calor pode ser um fator de risco que, somado ao exercício excessivo, pode levar a hipertermia e desidratação. O desconforto térmico e a hipertemia também são aumentados pelo uso de vestimentas grossas e sobrepostas, uma vez que se faz necessária proteção para todo corpo: botina, perneira de couro até o joelho, calças grossas, camisa de manga comprida com mangote, luvas, lenço no pescoço e chapéu (...). Estas vestimentas dificultam a dissipação de calor, aumentado a possibilidade de ocorrência de hipertemia.131
Extrai-se límpido do estudo médico retro reproduzido, com efeito, que o
trabalho desenvolvido no corte de cana (assim como outros, como, por exemplo,
aqueles relativos à extração e industrialização do amianto, a que já se fez remissão
no segundo capítulo desta pesquisa), embora formalmente lícito, possui um grau de
nocividade à dignificação humana quase tão acentuado como o próprio trabalho
escravo, prestando-se, perfeitamente, para a configuração de uma crise ambiental
trabalhista de dimensão desumanizante, capaz de desencadear uma série de
interesses ambientais trabalhistas dignos de tutela processual, os quais serão
melhores estudados no momento mais oportuno.
130 BARBOSA, Cristiane Maria Galvão. Avaliação cardiovascular e respiratória em um grupo de trabalhadores cortadores de cana-de-açúcar queimada no estado de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências – Programa de Pneumologia) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. 128 f. PDF. 131 BARBOSA, Cristiane Maria Galvão. Id.
153
3.2 CRISES AMBIENTAIS TRABALHISTAS DE DIMENSÃO FÍSICO-
ERGONÔMICA
De tudo o quanto se discutiu no item anterior, resta nítida a constatação de
que o Brasil ainda não conseguiu colocar os dois pés sequer na modernidade
trabalhista, pois se por um lado é certo que o país possui parques industriais
avançados e mesmo algumas ilhas de excelência no plano tecnológico, por outro
ficou evidente que os seus trabalhadores ainda convivem, por exemplo, com a
mácula desumanizante do trabalho escravo em pleno século XXI.
Todavia, superada pelo menos por ora a incursão da presente dissertação na
primeira dimensão das crises ambientais trabalhistas, faz-se necessário que ela
doravante adentre à chamada modernidade laboral, muito embora nem mesmo a
iniciativa privada e o Estado brasileiros - em iniludível desdém para com o projeto
político delineado na vigente Constituição - tenham cumprido a mencionada tarefa a
contento.
É chegado o momento, assim, de se estudar a organização ambiental do
trabalho no âmbito daquele setor empreendedorista que se reivindica moderno. A
questão a ser desafiada, com efeito, é aquela atinente aos problemas laborais
oriundos do agrupamento de trabalhadores em torno de um sistema de produção
seriada, que se mostra potencialmente capaz de desencadear as crises ambientais
trabalhistas de dimensão físico-ergonômica.
Cumpre indagar, pois: a) quais seriam os principais vetores das anteditas
crises? b) quais as suas implicações práticas? Para a melhor organização das
respostas às perguntas formuladas, a abordagem da temática será veiculada em
tópicos distintos.
3.2.1 – Aspectos Físicos, Químicos e Biológicos
Logo no intróito do tópico, faz-se imprescindível a veiculação de um pequeno
esclarecimento. Como visto mais atrás, os embaraços ambientais trabalhistas de
segunda dimensão foram batizados de crises ‘físico-ergonômicas’. Vale deixar claro,
no entanto, que a expressão ‘físico’ que compõe a primeira parte do epíteto foi
utilizada de modo propositadamente genérico, visando apenas facilitar a reprodução
gráfico-sonora da expressão proposta, sem que com isso se quisesse ocultar que
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para além dos problemas propriamente físicos, existem outros de natureza química e
biológica que caracterizam as abalos em questão.
O que é certo, na verdade, é que as crises ambientais trabalhistas ligadas aos
prefalados fatores físicos, químicos e biológicos estão intrinsecamente atadas às
conhecidas situações de insalubridade e periculosidade tão conhecidas do universo
juslaboral, as quais, diga-se de passagem, talvez sejam o emblema maior da
equivocada opção do Direito do Trabalho pela monetização da saúde do cidadão-
trabalhador.
Colimando o fito de definir e diferenciar a insalubridade e a periculosidade,
bem como o de trazer alguns elementos reflexivos quanto à inconveniência de
traduzi-las em expressões pecuniárias, reproduz-se, abaixo, o magistério de Arnaldo
Sussekind et al, citando, ademais, alguns outros autores de nomeada:
A – Conceitos e adicionais. Em face do estatuído nos arts.
189 e 190 da CLT, há insalubridade, para os efeitos das normas pertinentes da legislação do trabalho, quando o empregado sofre agressões de agentes físicos ou químicos acima dos níveis de tolerância fixados pelo Ministério do Trabalho, em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos (critério quantitativo); ou, ainda, de agentes biológicos e alguns agentes químicos relacionados pelo mesmo órgão (critério qualitativo).
Bem observa Antonio Carlos Vendrame que a agressão do agente insalubre opera de forma cumulativa e paulatina. ‘Cumulativa porque, na sua grande maioria, os males que acometem os trabalhadores são progressivos e irreversíveis, a exemplo da perda auditiva, pneumoconioses e intoxicações por fumos de metais. Paulatina, já que, exceto em intoxicações agudas, o organismo do trabalhador vai sendo lesado aos poucos, como é o caso da silicose’.
Conforme se trate de insalubridade de grau mínimo, médio ou máximo, o trabalhador fará jus ao adicional de 10%, 20% ou 40%, calculado sobre o salário mínimo (art. 192). Mas o objetivo da lei, nem sempre observado, é a eliminação ou neutralização da insalubridade, seja pela adoção de medidas de engenharia que conservem o ambiente de trabalho dentro dos limites de tolerância, seja com a utilização de equipamentos de proteção individual, que reduzam a intensidade do agente agressivo aos mencionados limites (art. 191). A empresa é obrigada a fornecer tais equipamentos gratuitamente aos empregados, os quais devem usá-los, sob pena de praticarem ato faltoso, ensejador de penalização (art. 158).
Como advertiu Camille Simonin, ‘o adicinal de insalubridade é imoral e desumano; é uma espécie de adicional do suicídio; ele encoraja os mais temerários a arriscar a saúde para aumentar seu salário; é contrário aos princípios da Medicina do Trabalho e à Declaração dos Direitos do Homem’. (...)
A Consolidação das Leis do Trabalho considera atividade ou operação perigosa aquela que, por sua natureza ou método de
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trabalho, implica o contato permanente do empregado com inflamáveis ou explosivos, em condições de risco acentuado (art. 193). O adicional de periculosidade corresponde a 30% do salário do empregado, excluídas as parcelas referentes a gratificação, prêmios ou participação nos lucros da empresa (§ 1º do art. 193). Por sua vez, a Lei n. 7.369, de 1985, estendeu o direito a esse adicional ao empregado que exerce atividade em setor de energia elétrica em condições de periculosidade. (...)
(...) Como se infere, a periculosidade se distingue da
insalubridade, porque esta, enquanto não houver sido eliminada ou neutralizada, afeta continuamente a saúde do trabalhador; já a periculosidade corresponde apenas a um risco, que não age contra a integridade biológica do trabalhador, mas que, eventualmente (sinistro), pode atingi-lo de forma violenta.132
Denota-se pois, em apertada síntese, que a insalubridade e a periculosidade
são originadas de agentes físicos, químicos e biológicos, sendo ambas fatores
potenciais de subtração da vida dos trabalhadores. O que marcadamente as
diferencia, é o fato de que enquanto a insalubridade assassina o trabalhador
lentamente e com requintes de perversidade, a periculosidade o mata abruptamente
e com violência extrema.
É ainda importante apontar, relativamente ao assunto, uma outra faceta no
mínimo intrigante, mas paradoxalmente pouco ou nada questionada pelos
juslaboralistas.
Ocorre que nos termos da legislação de regência (artigos 190 e 193 da
Consolidação das Leis do Trabalho), a atividade para ser considerada insalubre ou
periculosa deverá estar formalmente prevista como tal em regulamentação
administrativa do Ministério do Trabalho e Emprego.
A jurisprudência sobre o tema, inclusive aquela verbetizada pelo Tribunal
Superior do Trabalho, no seu apego liberal costumeiro, leva a mensagem legislativa
em tela às últimas consequências, sem se atentar para a necessidade premente de
moldá-la aos aspectos mais plurais do Estado Democrático-Ambiental de Direito.
Reproduz-se, para comprovar o afirmado, as Orientações Jurisprudenciais nº
4 e nº 170 da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal
Superior do Trabalho:
132 SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. Vol. 2. 21 ed. São Paulo: LTr, 2004, p. 924, 925, 927.
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OJ SDI-1- Nº 4 ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. LIXO URBANO. I - Não basta a constatação da insalubridade por meio de laudo pericial para que o empregado tenha direito ao respectivo adicional, sendo necessária a classificação da atividade insalubre na relação oficial elaborada pelo Ministério do Trabalho.
II - A limpeza em residências e escritórios e a respectiva coleta de lixo não podem ser consideradas atividades insalubres, ainda que constatadas por laudo pericial, porque não se encontram dentre as classificadas como lixo urbano na Portaria do Ministério do Trabalho.
Nº 173 ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. RAIOS SOLARES.
INDEVIDO. Em face da ausência de previsão legal, indevido o adicional de insalubridade ao trabalhador em atividade a céu aberto (art. 195, CLT e NR 15 MTb, Anexo 7).
Toda e qualquer crítica, naturalmente, pode até ser dura, mas jamais poderá
ser desrespeitosa. Calcado nesta premissa, a presente dissertação não pode deixar
de dizer, em tom honestamente construtivo, que os verbetes sumulares retro
reproduzidos são duas das mais lamentáveis manifestações jurisprudenciais do
Tribunal Superior do Trabalho em todos os tempos, já que colocam os trabalhadores
que labutam em tais situações ambientais até mesmo aquém do pretenso
protecionismo monetarista que ainda hoje insiste em caracterizar o Direito do
Trabalho.
Aliás, consoante o responsável pela presente pesquisa já teve oportunidade
de registrar em outra obra, a mencionada manifestação jurisprudencial está “a
perpetrar grave ofensa ao princípio juslaboral da primazia da realidade sobre as
formalidades, conspirando, como se não bastasse, contra o cânone constitucional da
dignidade da pessoa humana, premissa axiológica central do Estado brasileiro”133.
Vale trazer a lume, sobre a plêiade de materiais gravemente tóxicos que
todos os dias se incorporam ao mercado laborativo, de modo a inviabilizar,
completamente, que o Ministério do Trabalho os catalogue com a necessária
diligência nas suas diretivas administrativas, as densas palavras de Sebastião
Geraldo de Oliveira, citando no interior delas, ainda, o magistério do higienista
Sérgio Colacioppo:
133 CESÁRIO, João Humberto. Provas e recursos no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2010, p. 157.
157
À medida que avançam as pesquisas da higiene ocupacional, da toxicologia e da medicina do trabalho, observa-se, com mais nitidez, a extensão dos danos à saúde do trabalhador e, ainda, que muitos produtos nocivos não foram considerados nas relações oficiais ou têm limites inadequados. Diariamente são lançados no mercado novos produtos químicos, muitas vezes com elevado grau de toxidez, provocando, frequentemente, danos irreparáveis. Esclarece o higienista Sérgio Colacioppo, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, que ‘o número de substâncias químicas conhecidas hoje ultrapassam a marca de sete milhões, das quais cerca de 65.000 são de uso industrial, e destas somente cerca de 1.000 possuem algum estudo de proposta de Limites de Exposição. Na legislação brasileira, contam-se 136 substâncias com limites de tolerância estabelecidos’.134
Tais observações, tomadas na sua completude, evidenciam o quanto as
chamadas crises ambientais trabalhistas originadas de aspectos físico-ergonômicos
estão longe de serem debeladas, não sendo poucos, portanto, os interesses
ambientais laborais delas emanados que clamam por soluções jurisdicionais. Posto
isto, passa-se ao momento de se estudar os aspectos propriamente ergonômicos
das aludidas crises.
3.2.2 Aspectos Propriamente Ergonômicos
As questões ergonômicas, na sua essência, dizem respeito, nos termos da
Norma Regulamentara nº 17 do Ministério do Trabalho (Portaria nº 3.214-1978 do
Ministério do Trabalho e Emprego), à necessidade de se “estabelecer parâmetros
que permitam a adaptação das condições de trabalho às características
psicofisiológicas dos trabalhadores, de modo a proporcionar um máximo de conforto,
segurança e desempenho eficiente”.
Pode-se dizer, ainda tomando por base a prefalada Norma Regulamentadora
nº 17, que nas mencionadas condições de trabalho estão incluídos os “aspectos
relacionados ao levantamento, transporte e descarga de materiais, ao mobiliário, aos
equipamentos e às condições ambientais do posto de trabalho, e à própria
organização do trabalho”.
Sem embargo, se por uma vertente a NR nº 17 se diz preocupada em
proporcionar máximo conforto e plena segurança para o trabalhador na sua
134 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à saúde do trabalhador. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2010, p. 168.
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ambiência laboral, por um outro ângulo a realidade está a denunciar, de modo
estridente e sem cerimônias, que os seus nobres objetivos não passam de uma
abstração de longínqua concretização.
O fato é que as crises ambientais trabalhistas de dimensão ergonômica têm
íntima ligação com as chamadas doenças ocupacionais equiparadas ao acidente do
trabalho, como, v.g., aquelas do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo, que
têm nas lesões por esforços repetitivos (distúrbios osteomusculares relacionados ao
trabalho) uma das suas máximas e mais conhecidas expressões.
Para se ter uma ideia do abismo que separa as boas intenções da Norma
Regulamentadora nº 17 da realidade, basta ver que os índices estatísticos oficiais da
Previdência Social demonstram o contínuo crescimento da concessão de auxílio-
doença acidentário oriundo de LER/DORT no Brasil, que do ano de 2006 para o ano
de 2008 passaram de 19.956 (dezenove mil, novecentos e cinquenta e seis) para
117.353 (cento e dezessete mil, trezentos e cinquenta e três)135, em um crescimento,
portanto, de estarrecedores 588% (quinhentos e oitenta e oito por cento), tudo isso
sem levar em conta os acidentes do trabalho típicos, muitos deles causados,
naturalmente, também por fatores ergonômicos.
Nunca é demais lembrar que nos termos do artigo 225 da Constituição da
República todos (inclusive os trabalhadores) têm direito a um meio ambiente
equilibrado (seja ele natural ou artificial), impondo-se ao Poder Público e à
coletividade (nesta última inserida a comunidade empresarial) o dever de defendê-lo
e de preservá-lo para as presentes e futura gerações, sendo tal disposição
constitucional a própria tradução da faceta cooperativa do Estado Democrático-
Ambiental de Direito, capaz de diferenciá-lo, com eloquência, da indiferença própria
do Estado Liberal, bem como do paternalismo caracterizador do Estado Social.
Lamentavelmente, no entanto, os dados estatísticos oficiais (não é demais
rememorar, no pertinente, a escandalosa subnotificação acidentária consabidamente
existente no Brasil) retro reproduzidos demonstram, iniludivelmente, que nem o 135 Dados colhidos da obra de OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Ibid., p. 305. Vale reproduzir, a propósito do assustador aumento verificado na concessão de auxílio-doença acidentário oriundo de LER/DORT, os comentários do mencionado autor, vazados logo antes dos dados estatísticos em questão: “No Brasil, os afastamentos decorrentes de LER/DORT têm peso importante nas estatísticas das doenças ocupacionais há mais de 15 anos. No entanto, ocorreu um aumento expressivo da patologia a partir de 2007, em decorrência da implantação do nexo técnico epidemiológico pela Lei n. 11.430/2006 (...). Com efeito, muitos agravos à saúde, que não apareciam na estatística como relacionados ao trabalho, passaram a figurar de forma presumida na lista de doenças ocupacionais,
159
Estado brasileiro tem exercido adequadamente o seu poder administrativo
sancionador, e muito menos a comunidade empresarial tem se desvencilhado das
suas responsabilidades ambientais. Não são poucos, pois, os interesses ambientais
trabalhistas carentes de tutela processual adequada na dimensão ergonômica.
3.3 CRISES AMBIENTAIS TRABALHISTAS DE DIMENSÃO PSÍQUICO-
MORAL
As crises ambientais trabalhistas de dimensão psíquico-moral estão
diretamente atreladas a um fenômeno antigo mas que somente há pouco tempo
passou a ser estudado com a devida atenção. Trata-se do terror psicológico no
trabalho, também conhecido por moobing, harcèlement, bullying, acoso ou assédio
moral trabalhista.
A origem do problema está intrinsecamente ligada ao tema plurifacetado do
exercício do poder de mando no ambiente empresarial, que se revela por aspectos
diretivos, regulamentares, fiscalizatórios e disciplinares no âmbito da relação
empregatícia.
Como é de curial inferência, o poder empregatício está concentrado nas mãos
do empregador no interior do contrato de emprego, conferindo-lhe suficiente
autoridade para, nos termos do artigo 2º da Consolidação das Leis Trabalho, dirigir a
prestação pessoal de serviços.
O fato, porém, é que o aludido poder convive em permanente tensão com o
direito de resistência dos empregados, de modo que estes últimos podem, pelo
menos em tese, deixar de seguir as orientações dos empregadores, todas vezes que
elas se revelarem desarrazoadas.
Pode-se assentar, nesta perspectiva, que o poder empregatício deve ser
exercitado de modo razoável e proporcional, sem desbordar para o puro e simples
abuso de direito, já que o empregador inelutavelmente estará cometendo um ilícito,
quando, ao exercê-lo, vier a exceder os limites impostos pelo seu fim econômico ou
social (artigo 187 do Código Civil).
Acontece que as conclusões contidas no parágrafo anterior são aquelas
possíveis de serem extraídas apenas em um plano ideal. Não se pode perder de
em razão da comparação estatística da patologia com a atividade ergonômica do empregador, de acordo com os fundamentos científicos da epidemiologia.”
160
vista, ao se voltar os olhos para a realidade mais palpável, que em um sistema
jurídico no qual o princípio juslaboral da continuidade da relação de emprego não
passa de uma falácia, os trabalhadores encontram-se alquebrados diante do
autoritarismo empresarial, sem condições, portanto, de exercitarem apropriadamente
o direito fundamental de resistência que idealmente deteriam.
Como conhecedores e senhores desta realidade perversa, não são poucos os
empregadores que se valem do poder empregatício para deliberadamente aviltarem
a dignidade dos seus prestadores de serviços, fazendo-o às vezes em virtude de
traços psicopáticos que se traduzem no puro e simples prazer da humilhação, mas
na maioria das ocasiões com objetivos premeditados e minuciosamente
arquitetados. Nasce, a partir daí, o chamado terror psicológico no trabalho.
Para uma melhor definição do fenômeno em questão, mostra-se conveniente
trazer à tona a lição de Márcia Novaes Guedes, citando, no reforço do seu
magistério, a psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen:
Mobbing ou assédio moral, embora implique uma violação da
intimidade do trabalhador, é algo muito mais grave. Enquanto a violação da intimidade decorre do uso abusivo do poder diretivo do empregador, muitas vezes exagerando no uso de certas práticas voltadas para a proteção do patrimônio da empresa, o assédio moral, na realidade, decorre da atitude deliberada de um perverso cujo objetivo é destruir a vítima e afastá-la do mundo do trabalho. Para a vitimóloga Marie-France Hirigoyen, entende-se por assédio moral no local de trabalho ‘toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho’.136
As palavras atrás reproduzidas são irretocáveis e falam com vigor próprio.
Ainda assim, delas vale extrair, com especial destaque, o prenúncio de que para
muito além da pura e simples violação dos direitos de personalidade do trabalhador,
o assédio moral é algo ainda mais mortificante.
Ocorre que não são poucas as vezes em que o bullying trabalhista é imposto
pelo empregador coletivamente, com o propósito de deliberadamente degradar o
meio ambiente de trabalho, almejando os mais variados propósitos, como, por
exemplo, o de implantar um sistema de gestão por estresse (como se ele fosse um
136 GUEDES, Márcia Novaes. Terror psicológico no trabalho. São Paulo: LTr, 2003, p. 32.
161
método eficiente para o alcance de metas inatingíveis...), ou o de promover o
enxugamento empresarial pelo estímulo aos pedidos de demissão.
A tal fenômeno, enxergado coletivamente e com escopos empresariais bem
definidos, dotado, ademais, de reflexos ambientais laborais inescondíveis, a doutrina
contemporânea tem dado o nome de ‘assédio moral organizacional’, de modo a
diferenciá-lo do acosso interpessoal (que não tem objetivos estratégicos
estabelecidos, cingindo-se ao simples desiderato de prejudicar a vítima ou as vítimas
elegidas).
Calha transcrever, a propósito, o escólio de Thereza Cristina Gosdal e outros,
que embora um tanto longo, merece detida análise, não só pelo seu excelente
aspecto conceitual, mas, principalmente, pelo seu riquíssimo caráter exemplificativo:
Para nós o assédio organizacional é um conjunto sistemático
de práticas reiteradas, inseridas nas estratégias e métodos de gestão, por meio de pressões, humilhações e constrangimentos, para que sejam alcançados determinados objetivos empresariais ou institucionais, relativos ao controle do trabalhador (aqui incluído o corpo, o comportamento e o tempo de trabalho), ou ao custo do trabalho, ou ao aumento de produtividade e resultados, ou à exclusão ou prejuízo de indivíduos ou grupos com fundamentos discriminatórios.
São exemplos de assédio organizacional as seguintes situações, que se referem, em sua maior parte a denúncias de assédio moral já investigadas pelo Ministério Público do Trabalho:
1 - empresas que desenvolvem atividade de teleatendimento ou telemarketing, ou outra, em que os trabalhadores: precisam atingir metas exageradas; têm o tempo de banheiro controlado, geralmente em cinco minutos; precisam seguir o manual quanto ao que deve ser dito ao cliente, normalmente com o oferecimento de produtos e serviços, sob pena de frequentes advertências e outras sanções disciplinares; não podem apresentar atestados médicos para não ficarem visados ou serem despedidos. Nestas empresas o assédio organizacional é utilizado como estratégia para controle dos empregados, coibição da formação de demandas individuais e coletivas e, especialmente, aumento da produtividade, com o controle do tempo de trabalho e do conteúdo das conversas com o cliente.
2 - empresas que sofrem processo de fusão ou incorporação e que não estão dispostas a assumir determinados trabalhadores da empresa que sofreu a fusão ou incorporação. Normalmente são trabalhadores que a empresa adquirente encara como um problema, como lideranças sindicais, trabalhadores acometidos de doenças crônico-degenerativas (ou de LER/DORT), ou trabalhadores com muito tempo de serviço, ou algum tipo de estabilidade provisória. A desqualificação do trabalhador, de seu discurso e de suas ações, o processo de pressões e humilhações, surge como estratégia para
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forçar pedidos de demissão e desonerar-se de verbas rescisórias que seriam devidas em razão da dispensa sem justa causa.
3 - empresas que adotam o assédio moral em substituição à dispensa sem justa causa, para reduzir os custos de sua mão-de-obra, deixando de pagar aviso prévio, com suas projeções, e a multa de 40% do FGTS, quando conseguem que o trabalhador peça demissão, ou quando em sua reação ao assédio dá ensejo à caracterização de uma justa causa.
4 - empresas que trabalham com vendas e se utilizam de técnicas de humilhação e perseguição como estratégia de estímulo para aumento das vendas. São já conhecidas pelos Tribunais do Trabalho as situações de empresas que penalizam publicamente e com ridicularização os empregados ou equipes que vendem menos, ou não alcançam metas de vendas, com o pagamento de prendas, como ter que deixar um abacaxi sobre a mesa, como troféu, durante um determinado período de tempo, ou vestir-se de mulher e desfilar para os demais empregados, ou imitar animais, ou expor-se de qualquer outra forma ao ridículo.137
Os exemplos retro elencados são por demais esclarecedores. Não é nada
difícil imaginar, a partir deles, o meio ambiente de trabalho hostil e aterrorizante que
se instaura nos conglomerados empresariais que adotam essas bizarras práticas
gerenciais, calcadas na humilhação, na perseguição, na ridicularização e no
estabelecimento de metas impossíveis de serem galgadas.
Menos complexa ainda, é a tarefa de vislumbrar o quanto elas interferem na
saúde mental dos trabalhadores, que além do abalo moral que experimentam,
acabam por desenvolver, como consequência dos eventos estressores repetitivos,
uma série de transtornos ansiosos e/ou depressivos, tais como a dependência de
álcool e outras substâncias, transtorno do estresse pós-traumático e transtorno do
pânico.
Eis aí a exata tradução das crises ambientais trabalhistas de dimensão
psíquico-moral. O desequilíbrio ambiental, no caso, transcende a esfera puramente
física, para atingir os aspectos etéreos da psique.
Embora às vezes equilibrado do ponto de vista químico, biológico, físico e
ergonômico, o ambiente possui um nível de degradação moral tão acentuado, que
acaba por fragilizar inteiramente a estrutura emocional do cidadão-trabalhador,
corroendo, por completo, a sua saúde mental.
137 GOSDAL, Thereza Cristina; SOBOLL, Lis Andrea; SCHATZMAM, Mariana; EBERLE, André Davi. Assédio moral organizacional: esclarecimentos conceituais e repercussões. In: GOSDAL, Thereza Cristina; SOBOLL, Lis Andrea (orgs). Assédio Moral Interpessoal e Organizacional. São Paulo: LTr, 2009, p. 37, 38.
163
Tratando da interação entre os eventos psicossociais e a saúde dos
trabalhadores, vale transcrever, abaixo, as palavras de Sebastião Geraldo de
Oliveira, estribando-se, diga-se de passagem, nas concepções mais avançadas da
Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Internacional do Trabalho
(OIT):
O conceito de saúde, conforme previsto pela OMS, deixou de
ser apenas a ausência de doenças para representar o completo bem-estar físico, mental e social. As normas jurídico-trabalhistas, que em princípio visavam proteger apenas a integridade física do empregado, passaram a contemplar os fatores psicossociais, especialmente com relação à saúde mental do trabalhador. A convenção n. 155 da OIT, adotada em 1981, e já ratificada por 56 países, representa um avanço, pois abarca ‘os elementos físicos e mentais que afetam a saúde’.138
Insta realçar, do inteiro teor da preleção antes reproduzida, o fragmento que
adverte para a necessidade de que o conceito de saúde não fique cingido à
perspectiva da pura e simples ausência de doenças.
Pode-se intuir, a partir daí, que da debelação das crises ambientais
trabalhistas de dimensão psíquico-moral, dependerá o atingimento do patamar de
saúde preconizado pela OMS, representado, como antes visto, pelo mais completo
bem-estar físico, mental e social, até mesmo porque, ao fim e ao cabo, as pessoas
com transtornos mentais têm muito maior propensão ao desenvolvimento de
doenças orgânicas como as osteoarticulares, musculoesqueleticas e
gastrointestinais.
4 OS INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS
4.1 À GUISA DE INTRODUÇÃO
Consoante assentado alhures, o meio ambiente de trabalho equilibrado é um
bem difuso, já que o seu escopo é o de garantir aos trabalhadores em geral um
padrão básico de bem-estar laborativo, hábil a proporcionar-lhes uma vida despida
de sequelas físicas e/ou mentais.
138 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à saúde do trabalhador. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2010, p. 92.
164
Também como se viu, existem no mundo do trabalho pelo menos três níveis
interrelacionados de crises laborais, chamadas de crises ambientais trabalhistas de
dimensão desumanizante, crises ambientais trabalhistas de dimensão físico-
ergonômica e crises ambientais trabalhistas de dimensão psíquico-moral, que
teimam em conspirar sistematicamente contra o direito dos trabalhadores a uma vida
abundante e de qualidade, além de atentar, evidentemente, contra o interesse da
sociedade na preservação da integridade do ordenamento jurídico.
Uma vez esmiuçada, o que esta equação está a anunciar é que se por um
lado é certo que o meio ambiente de trabalho equilibrado é um bem difuso, por um
outro não é menos correto que as crises ambientais trabalhistas geram uma série de
interesses139, muitos deles difusos, outros tantos coletivos, e vários individuais
homogêneos, que devem ser necessariamente tutelados, sob pena do direito à
ambiência trabalhista harmonizada não passar de uma promessa sem lastro.
Dito de modo mais direto, pode-se sumarizar que o atingimento do equilíbrio
ambiental laboral depende de que as crises ambientais trabalhistas sejam
preferencialmente inibidas. Em não sendo atingido este primeiro desiderato,
entretanto, elas deverão ser debeladas a partir da satisfação concreta dos interesses
jurídicos que delas defluem.
Com os olhos voltados para tais necessidades, a presente dissertação se
propõe, doravante, a pesquisar mais detidamente cada um dos feixes de interesses
que nascem do ventre das crises ambientais trabalhistas, para somente ao depois, já
no seu ápice, estudar como o direito processual poderá dar resposta satisfatória à
necessidade de implementação do equilíbrio ambiental laboral, colimando, em última
instância, atender a expectativa do cidadão-trabalhador em fruir uma vida digna e
sadia, o que fatalmente acabará por suprir o interesse da sociedade, difusamente
considerada, na preservação do ordenamento jurídico.
4.2 INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS DIFUSOS
139 Vale enfatizar que no âmbito da jurisdição coletiva a presente dissertação prefere trabalhar com a ideia da tutela de ‘interesses’ e não propriamente da proteção de ‘direitos’ difusos, coletivos ou individuais homogêneos. É certo que não há muito sentido prático em se diferenciar os ‘interesses’ dos ‘direitos’, já que o ‘direito’, a bem da verdade, não passa de um ‘interesse juridicamente tutelável’. O que parece certo, contudo, é que o termo ‘interesse’, ao se afastar semanticamente da noção de ‘direito subjetivo’ tão cultivada pelo liberalismo jurídico, parece melhor traduzir as preocupações plurais da ordem jurídica no Estado Democrático-Ambiental de Direito.
165
Logo no descortinar do presente tópico, faz-se necessária a definição do que
seriam os interesses difusos. São vários os caminhos que poderiam ser seguidos
para o cumprimento da antedita tarefa. Aquele que parece ser o mais conveniente,
até mesmo por ser o mais direto, é de se buscar na legislação uma diretiva para a
significação almejada.
Como é por demais sabido, o artigo 81, parágrafo único, inciso I, do Código
de Defesa do Consumidor, estabelece que são entendidos como interesses ou
direitos difusos aqueles transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam
titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.
Pode-se dizer, a partir do enunciação legal enfocada, que os interesses
difusos não são passíveis de fracionamento, na medida em que não possuem
titularidade individualizável, já que os seus potenciais beneficiários estão
pulverizados por toda a sociedade.
Plantada esta primeira baliza conceitual, a tarefa que agora se impõe é a de
perquirir, no interior das crises ambientais trabalhistas antes estudadas, quais seriam
os possíveis interesses difusos delas extraíveis.
Antes de se passar propriamente ao desvencilhamento da empreitada em
questão, vale desde já assentar que uma mesma crise será capaz de gerar, a partir
da ótica em que visualizada, uma série de diferentes interesses dignos de tutela,
como, por exemplo, no caso das crises ambientais trabalhistas de dimensão
desumanizante geradas pelo trabalho escravo oriundo da imposição de condições
ambientais degradantes aos trabalhadores.
Ocorre que esta modalidade de aviltamento da condição humana se revela
capaz de justificar o interesse da sociedade em ressarcir-se, por ter sido obrigada a
conviver, em pleno século XXI, com uma chaga social tão repudiável. Do mesmo
modo, justifica o interesse do grupo de trabalhadores, coletivamente considerados,
em ter um meio ambiente de trabalho condigno. Impõe, por fim, a necessidade de
que cada um dos obreiros, individualmente delimitados, recebam os créditos
decorrentes do dano de origem comum que suportaram.
Feita esta breve digressão, cujo o tema será adiante retomado
compartimentadamente, a matéria dos interesses ambientais trabalhistas de índole
difusa será agora melhor esmiuçada. A grande questão a saber, no pertinente, é se
a sociedade, pensada na sua mensuração mais alargada, pode sofrer algum abalo
na sua estrutura a partir da configuração de uma crise ambiental trabalhista.
166
A resposta para a aludida indagação, naturalmente, há de ser construída com
temperanças. É evidente que nem toda crise de natureza ambiental-laboral será
capaz de gerar um abalo tão monumental. Tal constatação, contudo, não se mostra
capaz de impedir que em algumas situações caracterizadas pela barbárie a
comunidade social venha a sofrer um inequívoco abalo na sua estrutura emocional.
É o que marcadamente ocorre, como mais atrás já se deixou entrever, nas
crises ambientais trabalhistas de dimensão desumanizante, como naquelas
hipóteses em que os trabalhadores, submetidos à servidão contemporânea por
degradação ambiental, são obrigados a dormirem ao relento, tomarem refeições
misturadas com terra, saciarem a sua sede em lagoas nas quais têm que disputar a
água com animais domésticos e não domésticos, ou tratarem a amputação de
membros apenas com óleos extraídos da natureza.
Há, em situações que tais, um desrespeito tão intenso à ordem jurídica e ao
fundamento republicano da dignidade da pessoa humana, a ponto de justificar um
interesse amplificado de ressarcimento moral dotado de transcendência difusa.
Configura-se, a partir de então, o chamado dano moral coletivo140, cujas
bases serão doravante delineadas. Para tanto insta salientar, logo de plano, que em
consonância com a lição de Thereza Cristina Gosdal, o fundamento normativo para
a tutela do dano moral coletivo encontra morada na própria Constituição da
República, pois que “no art. 5º, inc. XXXV, resta garantida a inafastabilidade da
jurisdição, assegurando-se a tutela judicial a qualquer direito lesado, não apenas
àqueles de cunho individual ou individualizável”141.
Já em perspectiva mais abrangente, a doutrina esclarece que o dano moral
coletivo é um fenômeno emergido do avanço experimentado pela teoria da
140 Importa salientar aqui que a Justiça Comum - ao contrário da Justiça do Trabalho - tem se mostrado vacilante em reconhecer a figura do dano moral coletivo. Basta ver que o seu órgão de cúpula (Superior Tribunal de Justiça) em algumas oportunidades o tem acolhido e em outras tem rejeitado até mesmo a viabilidade jurídica da sua configuração. Ao que tudo indica, tal vacilo se arrima em uma boa dose de reverência ao conservadorismo próprio do direito individual emanado do liberalismo jurídico, consoante se pode inferir da ementa adiante transcrita, oriunda de julgado da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça: “Processual Civil. Ação Civil Pública. Dano Ambiental. Dano Moral Coletivo. Necessária vinculação do dano moral à noção de dor, de sofrimento psíquico, de caráter individual. Incompatibilidade com a noção de transindividualidade (indeterminabilidade do sujeito passivo e indivisibilidade da ofensa e da reparação). Recurso Especial improvido.” (STJ, Resp. 598.281/MG, 1ª T., não unânime, rel. desig. Min. Teori Albino Zavascki - rel. orig. Min. Luiz Fux, DJ de 01.06.2006) Disponível em: http://tinyurl.com/3g8y5xk. Acesso em: 15.07.2011. 141 GOSDAL, Thereza Cristina. Dano moral coletivo trabalhista e o novo código civil. In: DALEGRAVE NETO, José Affonso; GUNTHER, Luiz Eduardo. O impacto do novo código civil no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2003, p. 205.
167
responsabilização civil, como reflexo direto da sociedade de massas hoje existente.
Tem-se, em tal sentido, as palavras de Xisto Tiago de Medeiros Neto:
A idéia e o reconhecimento do dano moral coletivo (lato
sensu), bem como a necessidade de sua reparação, constituem mais uma evolução nos contínuos desdobramentos do sistema da responsabilidade civil, significando a ampliação do dano extrapatrimonial para um conceito não restrito ao mero sofrimento ou à dor pessoal, porém extensivo a toda modificação desvaliosa do espírito coletivo, ou seja, a qualquer ofensa aos valores fundamentais compartilhados pela coletividade, e que refletem o alcance da dignidade dos seus membros.142
Uma vez alinhavados os fundamentos da novel figura discutida, faz-se mister
investigar, agora, qual seria o sentido jurídico da dor capaz de abrir margem à
configuração do dano extrapatrimonial difuso. Vale-se, para a construção da
resposta almejada, da lição de José Rubens Morato Leite e Patrick de Araújo Ayala,
tratando da temática justamente no seu viés ambiental:
No contexto brasileiro (...) há fundamento legal para este
dano extrapatrimonial difuso ligado à personalidade, que tem seu escopo na proteção de um interesse comum de todos, indivisíveis e ligados por uma premissa de solidariedade. Com efeito, os direitos de personalidade evoluem e já podem ser visualizados e inseridos como valores ambientais de caráter difuso, posto que atingem direitos essenciais ao desenvolvimento de toda a coletividade. Sendo o direito ao ambiente um direito fundamental (...), pode ser também qualificado como direito da personalidade de caráter difuso, que comporta dano extrapatrimonial.
Deve-se registrar também que o dano extrapatrimonial ambiental não tem mais como elemento indispensável a dor em seu sentido moral de mágoa, pesar, aflição, sofrido pela pessoa física. A dor, na qual se formulou a teoria do dano moral individual, conforme esboçada anteriormente, acabou abrindo espaço a outros valores que afetam negativamente a coletividade, como é o caso da lesão imaterial ambiental.
Assim, deve-se destacar que a dor, em sua acepção objetiva, é ligada a um valor equiparado ao sentimento moral individual, mas não propriamente este, uma vez que concerne a um bem ambiental, indivisível, de interesse comum, solidário e relativo a um direito fundamental de toda coletividade. Trata-se de uma lesão que traz desvalorização imaterial ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, concomitantemente, a outros valores inter-relacionados como a saúde e a qualidade de vida. A dor, referida ao dano extrapatrimonial ambiental, é predominantemente objetiva, pois se procura proteger o ambiental em si (interesse objetivo) e não o interesse particular subjetivo. Outrossim, refere-se,
142 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. São Paulo: LTr, 2003, p. 136.
168
concomitantemente, a um interesse comum de uma personalidade em sua caracterização coletiva.
De fato, se há possibilidade de responsabilização do dano patrimonial coletivo, porque não ampliá-la à sua configuração extrapatrimonial? A diminuição da qualidade de vida, através da degradação ambiental, traz enormes transtornos imateriais à coletividade. Assim, cabe ao Estado, por meio do Poder Judiciário, abrir o acesso jurisdicional, contando com o auxílio do instituto da responsabilidade civil, visando, desta forma, a trazer uma ampla possibilidade de reparação do dano ambiental.
Deve-se, contudo, advertir que não é qualquer dano que pode ser caracterizado como dano extrapatrimonial ambiental; é o dano significativo, isto é, aquele que ultrapassa o limite de tolerabilidade, sendo que cada caso deverá ser examinado em concreto.143
Estabelecidas estas imprescindíveis premissas, pode-se agora prognosticar,
sem qualquer dúvida, que a odiosa mácula do trabalho escravo, renitente no país
em pleno século XXI, suscita inquestionável dano moral de disseminação
transcendente na sociedade brasileira, hábil a gerar um interesse ressarcitório,
difuso por excelência, passível, pois, de pronta e adequada tutela.
Aliás, na medida em que os valores atacados nas crises ambientais
trabalhistas de dimensão desumanizante constituem-se nos mais sagrados
fundamentos republicanos, cuja violação gera irreparável lesão ao tecido social,
impondo à coletividade um sentimento angustiante de déficit democrático, parece
palmar que o ofensor deva ser exemplarmente compelido a ressarcir a sociedade
pelos danos morais que lhe causou.
A questão a saber é qual seria a melhor forma de tutelar o interesse em
questão. Digladiam-se, no caso, a tutela ressarcitória de índole puramente
pecuniária (tutela in pecunia) e a tutela ressarcitória na forma específica (tutela in
natura). Mas a questão somente será adequadamente enfrentada no momento mais
apropriado.
4.3 INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS COLETIVOS
Aqui, mais uma vez, será na legislação que se buscará a definição do que
vêm a ser os interesses coletivos. Vale-se, para tanto, do artigo 81, parágrafo único,
inciso II, do Código de Defesa do Consumidor, a dizer que como tais devem ser
143 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribuanais, 2010, p. 285, 286.
169
entendidos aqueles transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular
grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por
uma relação jurídica de base.
Infere-se, portanto, que por não possuírem titularidade subjetivável, os
interesses coletivos, assim como os difusos, não são passíveis de fracionamento,
muito embora os seus potenciais beneficiários possam ser enxergados enquanto um
agrupamento determinável de pessoas.
Imagine-se um grupo, classe ou categoria de trabalhadores reduzidos por um
mesmo tomador de serviços, em um único ambiente de trabalho, a condição análoga
à de escravos. Se tais trabalhadores, por exemplo, estiverem expostos ao relento e
por isso à mercê de animais silvestres, configurado estará um interesse ambiental
trabalhista de índole coletiva, consubstanciado na necessidade de que o
empregador imediatamente providencie um alojamento hábil a garantir-lhes um
patamar mínimo de conforto, higiene e segurança.
Visualize-se, outrossim, as crises ambientais laborais de dimensão físico-
ergonômica. Pense-se, v.g., em um grupo de trabalhadores ligados entre si por
laborarem para um mesmo tomador de serviços, em um único ambiente insalubre,
desequilibrado por excesso de ruídos advindos do maquinário operado.
Cuida-se de verdadeiro truísmo que o bem ambiental, seja natural ou artificial,
não comporta divisão na sua tutela. Dito de modo mais explícito, não há
possibilidade de que a ambiência laboral, encarada enquanto instrumento da vida a
ser protegido em prol da preservação da saúde do cidadão-trabalhador, seja
pulverizada de modo a de entregar a cada um dos obreiros, individualmente
considerados, a sua respectiva parcela hígida de meio ambiente do trabalho.
De tal arte, a eliminação da prefalada distorção sonora somente será
alcançada coletivamente, em benefício de todo o agrupamento de trabalhadores
ligados entre si por labutarem em um mesmo espaço físico, fazendo-o em prol de
um único empregador, com o qual mantêm uma relação jurídica de base
consubstanciada em vários contratos de emprego.
Do mesmo modo, também as crises ambientais trabalhistas de dimensão
psíquico-moral se prestam à configuração de interesses coletivos dignos de tutela
judicial. É o que sói acontecer, exemplificativamente falando, no caso de uma
empresa que adote o modelo de gestão por estresse, capaz de configurar o
chamado assédio moral organizacional em detrimento do acosso interpessoal.
170
No caso específico, estarão abertas ensanchas para a busca de uma tutela
inibitória coletiva, que se preste impedir que esse repudiável comportamento
empresarial se perpetue no tempo, de modo que a saúde mental dos trabalhadores
seja preservada em patamares adequados, sem que eles se vejam acometidos,
portanto, por transtornos psíquicos como a ansiedade ou a depressão.
4.4 INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS INDIVIDUAIS
HOMOGÊNEOS
Ao contrário dos difusos e coletivos, os interesses individuais homogêneos,
consoante a própria denominação jurídica deixa entrever, não são caracterizados
pela metaindividualidade.
Via de consequência, a inteligência do artigo 81, parágrafo único, inciso III, do
Código de Defesa do Consumidor, carrega consigo um indicativo que como tais
devem ser considerados os direitos ou interesses que, embora individuais, e,
portanto, quotizáveis, possuam uma origem comum, sendo passíveis, somente por
isso, de tutela coletiva.
São infindáveis, com efeito, os exemplos de interesses individuais
homogêneos de índole ambiental-laboral. Tome-se, primeiramente, as chamadas
crises ambientais trabalhistas de dimensão desumanizante, decorrentes do trabalho
prestado nos canaviais.
Rememore-se que os cortadores de cana laboram em um ambiente com
temperatura absolutamente elevada, decorrente não apenas da exposição à luz
solar intensa, mas, também, da queima da palha seca, fato que não raro os conduz
a situações corpóreas de hipertermia e desidratação, ficando ainda expostos, como
se não bastasse, à ocorrência de outros tantos danos orgânicos. É oportuno, acerca
do asseverado, trazer-se à tona, mais uma vez, as palavras de Cristiane Maria
Galvão Barbosa:
É provável que na atividade de corte de cana devido ao ritmo
de trabalho intenso, os ajustes fisiológicos que ocorrem em resposta ao exercício físico não consigam dar suporte à demanda do organismo para manter o equilíbrio interno, e com isto resposta anômala e/ou patológica passe a ocorrer, refletindo em níveis diversos de fadiga e insuficiência dos músculos envolvidos no trabalho e de órgão alvos exigidos acima do limite e analogamente
171
ao que ocorre com os atletas, estes trabalhadores podem desenvolver quadro semelhante a “Síndrome de overtraining”.144
Obviamente, ao labutarem em uma situação como tal, tais trabalhadores,
individualmente considerados, no mínimo fazem jus, em frações predeterminadas do
dia, ao recebimento gratuito por parte do empregador de bebidas isotônicas capazes
de promover um abaixamento da temperatura corporal a níveis seguros, além de
repor os eletrólitos perdidos durante a execução da tarefa braçal a que estão
premidos.
Eis aí um exemplo bem talhado de interesse individual homogêneo, já que na
situação perfilhada os trabalhadores receberão individualizadamente o benefício,
sendo certo, porém, que o direito em questão possui origem comum, sendo passível,
pois, de tutela processual coletiva.
Pense-se, outrossim, na hipótese alhures descrita, de uma crise ambiental
trabalhista de dimensão físico-ergonômica, na qual exista poluição auditiva no
ambiente de trabalho.
Já se disse, naquele caso, que a ‘eliminação’ do problema em questão seria
um interesse coletivo. Há na mesma situação, no entanto, uma diferença sutil no que
diz respeito à ‘neutralização’ (diferentemente da eliminação) dos efeitos da
deturpação sonora, na medida em que esta pode ser buscada por cada um dos
trabalhadores individualmente considerados, que podem requerer, v.g., que o
empregador seja compelido a entregar-lhes os equipamentos de proteção individual
a tanto necessários.
Nesta última hipótese, portanto, existe configurado um interesse ambiental
trabalhista de índole individual homogênea, pois que embora o direito dos
trabalhadores possa ser fracionado pela entrega dos protetores auriculares
individualizadamente, a tutela jurisdicional deverá preferencialmente ser prestada
coletivamente, haja vista que os interesses a serem amparados possuem origem
comum, baseada na exposição a um mesmo ambiente de trabalho sonoramente
comprometido.
O mais comum em hipóteses que tais, contudo, é que os sindicatos, enquanto
um dos entes legitimados ao ajuizamento da ação coletiva, e desde sempre
comprometidos com a monetização da saúde daqueles a quem bem deveriam
144 BARBOSA, Cristiane Maria Galvão. Op. cit. PDF.
172
proteger, postulem em juízo do pagamento do respectivo adicional de insalubridade,
seja ele em grau mínimo, médio ou máximo.
O pleito de tal natureza, evidentemente, não desnatura a índole individual
homogênea do interesse a ser tutelado, já que o adicional em questão será
pulverizado em um pagamento individualizado, isso após um longo e tormentoso
procedimento de liquidação por artigos, com a posterior execução forçada da
obrigação de dar, que nem sempre chega a bom termo.
Este último exemplo, por suposto, afronta letalmente a teleologia da presente
dissertação, cujo escopo está centrado na inversão da lógica estruturante do Direito
do Trabalho, a fim de que as obrigações de fazer, aptas à promoção do equilíbrio
ambiental trabalhista, sejam priorizadas em detrimento das obrigações de pagar, já
que estas últimas não se prestam mais do que a gerar no íntimo do cidadão-
trabalhador uma falsa sensação tuitiva.
173
CAPÍTULO V
A AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO TÉCNICA PROCESSUAL ADEQUADA PARA A TUTELA COLETIVA DE INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS
1 BREVE INTRÓITO
O objetivo deste penúltimo capítulo, como o seu próprio título denuncia, é o
de estudar a ação civil pública como um vetor apto à promoção da tutela coletiva de
interesses ambientais trabalhistas.
Por uma questão de método, faz-se necessário, inicialmente, que se justifique
a opção pelo uso do remédio processual em questão, já que existem outras ações,
tais como o mandado de segurança coletivo ou a ação popular, que igualmente se
propõem a serem instrumentos de proteção coletivizada de direitos.
A questão é singela e não demanda comentários demasiadamente
alongados. Basta ver, a propósito, que a ação civil pública, no dizer de Marcelo
Abelha Rodrigues, “é a técnica processual (módulos, provimentos e procedimentos)
que mais vantagens oferece à tutela jurisdicional do meio ambiente”145.
Ocorre que a sua lei de regência açambarca em uma única plataforma
legislativa vários elementos processuais que muito bem se prestam à tutela do meio
ambiente natural e/ou artificial-laboral, como, por exemplo, uma ampla legitimidade
ativa concorrente (artigo 5º da Lei 7.347-85), a previsão da implementação coercitiva
dos provimentos mandamentais inibitórios (artigo 11 da Lei 7.347-85), a
possibilidade de concessão de liminares satisfativas (artigo 12 da Lei 7.347-85), a
regra geral da inexistência de suspensividade recursal (artigo 14 da Lei 7.347-85), a
viabilidade de se intentar nova ação com idênticos pedidos no caso de rejeição
anterior por insuficiência de provas (artigo 16 da Lei 7.347-85) e a gratuidade
processual (artigo 18 da Lei 7.347-85).
Demais disso, ao assentar no seu artigo 21 a previsão expressa do uso
supletivo das disposições insertas no título III do Código de Defesa do Consumidor à
tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, a Lei da Ação Civil
Pública (Lei 7.347-85) criou as bases sinérgicas da formatação de um microssistema
145 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo civil ambiental. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 102.
174
normativo bastante eficiente – se bem manejado - para a proteção de todos e
quaisquer direitos coletivizados, neles inseridos, obviamente, aqueles de natureza
ambiental-trabalhista.
Como se não bastasse, o fato é que no âmbito da processualística laboral o
uso da ação civil pública se mostra ainda mais recomendável para a tutela do meio
ambiente do trabalho na perspectiva da promoção da saúde do cidadão trabalhador,
já que os contornos da ação popular (artigo 5º, LXXIII, da CRFB) tornam quase que
absolutamente cerebrinas as possibilidades da sua utilização para tanto146, sendo
certo, além disso, que estando a polaridade passiva na ação coletiva de segurança
jungida a uma pessoa jurídica de direito público, encarnada na figura de uma
autoridade coatora (artigo 5º, LXIX e LXX, da CRFB), o seu potencial de utilização à
hipótese queda substancialmente reduzido147.
146 À guisa de curiosidade, calha transcrever, discorrendo sobre a possibilidade de utilização da ação popular para a tutela de interesses ambientais trabalhistas, a lição de MELO, Raimundo Simão. Op. cit., p. 130: “Com efeito, o desemprego abrangente faz com que se coloque em segundo plano a defesa do meio ambiente pelos sindicatos, até mesmo por receio dos trabalhadores em perderem o emprego. Nesse contexto, pode ser de grande valia a atuação do cidadão, por exemplo, um ex-empregado aposentado, sem qualquer receio frente à hierarquia patronal e à subordinação econômica, utilizando a ação popular para buscar melhoria das condições laborais para os seus colegas de trabalho. Pode haver, aliás, casos em que a ação popular ambiental terá maior amplitude, quando visar, por exemplo, a prevenir ou eliminar a poluição causada pelas chaminés de uma fabrica que atinge concomitantemente os trabalhadores e a população local. Vislumbra-se plausível, portanto, para a tutela do meio ambiente do trabalho, a ação popular com relação ao ato comissivo ou omissivo de empresa pública, sociedade de economia mista ou de qualquer outro ente público ou pessoa subvencionada pelos cofres públicos, na qualidade de empregador poluidor do meio ambiente de trabalho ou em face de atos por eles praticados ou não praticados a respeito de suas atribuições com órgãos fiscalizadores ou detentores do poder de polícia ambiental. Mas também podem ser legitimadas passivas na ação popular ambiental as pessoas físicas ou jurídicas de natureza privada, empregadoras ou não, poluidoras do meio ambiente, independentemente de agirem na qualidade de agentes públicos, como é o caso dos tomadores de serviços e empregadores. Esse entendimento decorre cristalinamente da redação ampliativa do inciso LXXIII, do art. 5º, da Constituição Federal de 1988. Cabe ressaltar que para o caso da ação popular ambiental – inovação constitucional -, o leque de legitimados passivos é maior ainda, pois, conforme assevera Celso Antônio Pacheco Fiorillo, ‘poderá figurar no pólo passivo qualquer pessoa responsável pelo ato lesivo ao meio ambiente, de acordo com o conceito de poluidor estabelecido pela Política Nacional do Meio Ambiente, além de inexistir vedação constitucional no tocante à questão ”. 147 Para se dar um ideia mais exata do quão pouco são manejados mandados de segurança coletivos na Justiça do Trabalho, mostra-se pertinente reproduzir, adiante, as observações de ARAUJO, Edson Gramuglia. O mandado de segurança coletivo na Justiça do Trabalho. In: MALLET, Estêvão; SANTOS, Enoque Ribeiro dos (coords). Tutela Processual Coletiva Trabalhista. São Paulo: LTr, 2010, p. 270: “Pesquisa realizada em 16.6.2009 na base de dados da jurisprudência unificada do TST (...) revela que não há registro de súmula ou orientação jurisprudencial sobe o tema do mandado de segurança coletivo. Dentre 138 acórdãos, em cujo corpo contam a expressão ‘mandado de segurança coletivo’, apenas uma minoria deles efetivamente tratava de tal ação. A maior parte dos julgados, ainda prolatada à sombra da Súmula (enunciado) 310, valeu-se de citar o mandado de segurança coletivo como tipo restrito de ação em que os sindicatos, as entidades de classe e associações civis poderiam atuar em nome do grupo representado ou para citar jurisprudência do STF sobre plano econômico (‘Plano Collor’). Dentre os recursos que realmente tratavam de mandado de segurança coletivo, quase todos foram impetrados por servidores de sindicatos da Justiça do Trabalho e associações de juízes em razão de atos decorrentes do art. 4º da EC 41/2003. Com a
175
Entrelaçados, todos esses elementos justificam, a mancheias, a opção da
presente dissertação em fixar a sua atenção na Ação Civil Pública. De tal arte, o
remédio processual em questão será doravante analisado quanto às suas principais
peculiaridades.
Finda tal etapa, a dissertação atingirá o seu ponto nevrálgico, quando então
analisará, pormenorizadamente e em capítulo apartado, a importância das tutelas
inibitória, de remoção do ilícito e ressarcitória na forma específica para a redução
dos riscos inerentes ao trabalho, com a consequente proteção da saúde física e
mental do cidadão-trabalhador.
2 AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL TRABALHISTA: COMPETÊNCIA MATERIAL, HIERÁRQUICA E TERRITORIAL
A competência, como se sabe, é a medida de jurisdição atribuída a cada um
dos órgãos que compõem o Poder Judiciário. São pelo menos três, nesta
perspectiva, as nuances competenciais que merecem análise no âmbito da ação civil
pública ambiental trabalhista.
A primeira delas diz respeito ao ramo do Poder Judiciário que detém a
atribuição judicial para a cognição da matéria em questão. A segunda, naturalmente,
relaciona-se com a competência hierárquica. Já a última, como não poderia deixar
de ser, está ligada à problemática territorial.
Os dois primeiros aspectos da questão, levado em conta o atual estado
jurisprudencial, estão mais do que maturados, não merecendo análise detida. O
derradeiro, no entanto, ainda se ressente de maior sedimentação, razão pela qual
será desafiado com uma carga mais intensa de esmero.
2.1 COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
No caso, a competência em razão da matéria pertence à Justiça do Trabalho,
na medida em que o artigo 114, I, da Constituição da República, estabelece, sem
margem para tergiversações, que é da atribuição jurisdicional do ramo laboral do
declaração de inconstitucionalidade de tal dispositivo, os mandados restaram prejudicados, sendo julgados extintos sem debates que aprofundassem o seu uso em matéria de competência da Justiça do Trabalho”.
176
Poder Judiciário a cognição de todas as ações oriundas da relação de trabalho, não
importando serem elas de natureza individual ou coletiva.
Adensando tal disposição, o incisivo VI do mesmo artigo 114 da CRFB
estatui, no âmbito repressivo, que compete ao Judiciário Trabalhista o conhecimento
das ações por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho.
Como se não bastasse, a Súmula nº 736 do Supremo Tribunal Federal, já
com os olhos pousados no viés preventivo, assevera que “compete à Justiça do
Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de
normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”,
espancando, de vez, qualquer dúvida que pudesse ser eriçada sobre o tema.
2.2 COMPETÊNCIA HIERÁRQUICA
Quanto à competência hierárquica para a cognição das ações civis públicas
na Justiça do Trabalho (dentre elas as de natureza ambiental), já houve quem
defendesse o ponto de vista de que elas deveriam ser originariamente conhecidas
nos Tribunais Regionais do Trabalho ou mesmo no Tribunal Superior do Trabalho,
conforme a extensão da contenda fosse de abrangência regional ou nacional.
Aqueles que assim pensavam, argumentavam que diante dos interesses
coletivos lato sensu discutidos nas ações civis públicas, tais remédios jurídicos
deveriam receber tratamento análogo àquele conferido para os dissídios coletivos de
natureza econômica, regidos, em seara competencial, pelos artigos 678, I, “a”, da
Consolidação das Leis do Trabalho e 2º, I, “a”, da Lei nº 7.701-88 (e,
excepcionalmente, pelo 1º da Lei nº 9.254-96, que alterou o artigo 12 da Lei nº
7.520-86).
Por suposto, era inescondível o desacerto do aludido modo de enxergar a
matéria. Como é palmar, a competência dos órgãos jurisdicionais de primeira
instância é residual. Dessarte, todas as ações que não estão inseridas na
competência legal dos tribunais devem ser conhecidas nas varas. Não se pode
concluir de modo diferente, portanto, senão para se compreender que não estando
as ações civis públicas previstas na atribuição jurisdicional dos Tribunais Regionais
do Trabalho (artigos 678, 679 e 680 da CLT) ou do Tribunal Superior do Trabalho
(Lei 7.701-88), elas devem ser instruídas e julgadas nas Varas do Trabalho (ainda
que os artigos 652 e 653 da CLT nada disponham sobre o tema).
177
Laborando na diretriz contida no parágrafo anterior, a jurisprudência do
Tribunal Superior do Trabalho assim se manifesta:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. COMPETÊNCIA FUNCIONAL.
COMPETÊNCIA TERRITORIAL. 1. Ação civil pública intentada pelo Ministério Público do
Trabalho diretamente no Tribunal Superior do Trabalho visando à imposição de obrigações de fazer e de não fazer em favor de empregados de empresa de âmbito nacional.
2. A ação civil pública "trabalhista" não é causa que se inscreve na competência originária dos Tribunais do Trabalho, pois: a) assemelha-se mais a um dissídio individual plúrimo; b) a Lei Complementar nº 75/93 deferiu ao Ministério Público do Trabalho a titularidade para a ação civil pública "junto aos órgãos da Justiça do Trabalho" (art. 83 "caput" e inc. III); c) não há lei que cometa aos Tribunais do Trabalho tal competência, mostrando-se tecnicamente insustentável para tanto a invocação da analogia. Assim, como todo dissídio individual, deve ingressar perante uma Vara do Trabalho.148
Tal e qual ocorre na Justiça Comum, seja ela estadual ou federal, as ações
civis públicas ajuizadas na Justiça do Trabalho devem ser conhecidas nos órgãos de
primeira instância, não havendo qualquer motivo razoável que justifique um
tratamento diferenciado do instituto nos diversos ramos que compõem o Poder
Judiciário brasileiro.
2.3 COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Aqui, conforme já entrevisto mais atrás, a matéria em epígrafe, pelo menos
sob o ponto de vista da presente dissertação, ainda não se encontra
adequadamente resolvida.
Para se justificar a conclusão retro, faz-se necessário verificar, inicialmente,
que o artigo 2º da Lei nº 7.347-85 estabelece que as ações civis públicas “serão
propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência
funcional para processar e julgar a causa”, aduzindo ainda, no parágrafo único do
antedito preceptivo, que “a propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para
todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou
o mesmo objeto”.
148 TST, ACP-92.867/93.1, SEDC, não unânime, rel. Min. João Oreste Dalazen, Disponível em: http://tinyurl.com/3pfx2x8. Acesso em: 02.08.2011.
178
Como se denota, o artigo 2º da Lei nº 7.347-85 regula a matéria
exaustivamente, não existindo à espécie qualquer lacuna, seja literal ou axiológica,
que justifique colmatação por via de outro preceito legal de incidência supletiva.
Vale dizer, de tal arte, que as ações civis públicas devem ser ajuizadas no
local onde o dano tenha se consumado (tutela repressiva) ou esteja em vias de se
concretizar (tutela inibitória ou de remoção do ilícito). Outrossim, no caso de
configuração da chamada competência concorrente, como naquelas hipóteses em
que o dano venha se estender pela jurisdição territorial de mais de um juízo,
prevento será o foro no qual a ação vier a ser ajuizada primeiramente.
A lógica do comando em tela é irretocável. Ocorre que a Lei da Ação Civil
Pública, construída no específico sob a inspiração do princípio da inafastabilidade
substancial - e não apenas formal - da jurisdição, intenta que o juízo da instrução e
respectiva colheita das provas seja aquele mais próximo possível do local dos fatos,
colimando, ademais, a facilitação do acesso dos litigantes ao Poder Judiciário, além
da obtenção da máxima eficiência na atuação jurisdicional e a viabilização plena da
satisfação do julgado.
Vale reproduzir, a propósito do quanto asseverado no parágrafo anterior, o
magistério de Marcelo Abelha Rodrigues, tratando das ações coletivas de índole
ambiental:
No direito ambiental, mais do que a existência de varas
especializadas na questão ambiental, que demanda conhecimento jurídico específico do órgão julgador, é preciso que a competência seja fixada de forma que o órgão jurisdicional seja aquele que esteja mais próximo da situação tutelanda, ou seja, é preciso que o juízo e respectivo juiz da causa situem-se em local em que seja possível o maior rendimento do princípio da oralidade, bem como a efetividade das decisões por ele proferidas.
No tocante à coleta e ao acesso aos meios e fontes de prova, não raramente serão necessárias inspeções judiciais ao local do fato ou ato que deu origem à demanda ambiental, pois só assim se conseguirá ter a exata noção do alcance do que estaria documentado nas petições (ação e defesa) contida nos autos do processo. A realidade ambiental nem sempre é muito bem tratada ou retratada nas provas documentais, e muitas vezes é a sensibilidade do magistrado, in loco, que permitirá colher e verificar as provas necessárias à solução do litígio. O magistrado de primeiro grau, aquele que julga a demanda coletiva ambiental em primeiro lugar, tem um papel fundamental na formação da norma concreta, especialmente porque é no seu degrau jurisdicional que se dará a atividade probatória, e é especialmente aí que se colherão os elementos de prova que estarão à disposição de outros magistrados
179
de graus superiores. Por isso, sob a perspectiva da coleta e obtenção da prova, a competência do ‘local do dano’ deve ser compreendida como a competência firmada pelo critério geográfico (territorial), inderrogável pelas partes, cujo fator determinante para a sua fixação deve ser, propriamente, o local onde a obtenção da prova seja mais eficiente para a futura revelação da norma jurídica concreta.
Mas não é apenas sob a perspectiva da revelação da norma concreta que a competência do local do dano deverá ser fixada. Deve-se pensar no ‘local do dano’, também, sob a perspectiva de cumprimento dos provimentos jurisdicionais, ou seja, onde a decisão judicial (ou título extrajudicial) possa ser cumprida com maior eficiência sobre o objeto tutelando e atingir de forma direta o maior número de pessoas que representam a coletividade tutelada. É preciso dar à competência um critério mais pragmático, e, neste particular, não se pode aceitar que um juízo e juiz, longe do fato ensejador da demanda ambiental (...), possam exercer a sua atividade da melhor forma.149
A lição retro transcrita é das mais elucidativas, trazendo no seu interior os
motivos ideológicos e pragmáticos que justificam a necessidade de o juízo da
instrução e da satisfação do julgado estar o mais próximo possível do local dos fatos
debatidos, revelando, como se não bastasse, a inexistência de lacuna literal ou
instrumental no artigo 2º da Lei 7.347-85 que clame por preenchimento subsidiário.
Nada obstante, o fato é que a Subseção 2 Especializada em Dissídios
Individuais (SDI-2) do Tribunal Superior do Trabalho acabou por editar a sua
Orientação Jurisprudencial nº 130, na qual apregoa que “para a fixação da
competência territorial em sede de ação civil pública, cumpre tomar em conta a
extensão do dano causado ou a ser reparado, pautando-se pela incidência analógica
do art. 93 do Código de Defesa do Consumidor. Assim, se a extensão do dano a ser
reparado limitar-se ao âmbito regional, a competência é de uma das Varas do
Trabalho da Capital do Estado; se for de âmbito suprarregional ou nacional, o foro é
o do Distrito Federal”.
Conforme se percebe, o mencionado verbete jurisprudencial possui inspiração
confessa no artigo 93 do Código de Defesa do Consumidor, o qual é tido pelo
Tribunal Superior do Trabalho como de aplicação analógica à espécie, muito embora
inexista, como já visto, qualquer lacuna no artigo 2º da Lei de Ação Civil Pública que
mereça colmatação.
149 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo civil ambiental. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 118, 119.
180
Aos olhos do Tribunal Superior do Trabalho, em resumo, se o dano (ou o
ilícito) ficar circunscrito à jurisdição de uma única Vara do Trabalho, será nela que a
ação civil pública será conhecida. Outrossim, se o dano (ou o ilícito) ultrapassar a
jurisdição de mais de uma Vara do Trabalho, mas permanecer restrito ao âmbito de
um único Regional, o processo será analisado na capital do respectivo Estado. Por
fim, no caso do dano (ou do ilícito) expandir-se para além da jurisdição de um único
Regional, o dissídio civil coletivo será julgado em uma Vara do Distrito Federal.
O ângulo de visada da mencionada corte trabalhista, à toda evidência,
conspira letalmente contra o espírito do artigo 2º da Lei 7.347-85. Ainda assim, para
melhor a melhor visualização do afirmado, alvitra-se relevante para a presente
dissertação o estudo de um dos precedentes que renderam ensejo à edição da
prefalada Orientação Jurisprudencial da SDI-2 do TST, na medida em que o seu
objeto perpassou pelo viés ambiental-laboral.
Cuida-se do discutido nos autos da Ação Civil Pública nº 92.867/93.1, na qual
o Ministério Público do Trabalho buscava em face da PETROBRÁS e de algumas
empresas prestadoras de serviços subaquáticos, dentre outros desideratos, as
seguintes pretensões: a) limitar a seis horas diárias a jornada de trabalho dos
mergulhadores saturados, dos mergulhadores rasos em atividade diurna e noturna
ininterrupta, das equipes de apoio ao mergulho saturado e dos subaquáticos que
atuavam em determinadas operações; b) limitar a oito horas diárias a jornada de
trabalho dos mergulhadores rasos que laboravam apenas no período diurno.
Na hipótese, depois de se pronunciar, como visto anteriormente (vide a nota
de rodapé nº 152) e com indiscutível acerto, pela competência hierárquica das Varas
do Trabalho para a cognição da matéria, a Seção Especializada em Dissídios
Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho acabou concluindo que não obstante o
inquérito civil público deflagrador da mencionada ação coletiva tivesse colhido
elementos probatórios na Bacia de Campos, em área abrangida pela jurisdição da
Vara do Trabalho de Macaé-RJ, o dissídio haveria de ser instruído e julgado por uma
das Varas do Trabalho de Brasília-DF, já que a tutela pretendida se destinava à
proteção de mergulhadores que labutavam em plataformas marítimas da
PETROBRÁS situadas em vários pontos do litoral brasileiro.
No que importa, a decisão da SDC do TST restou vazada nos seguintes
termos:
181
Como visto, postula-se na ação civil pública a emissão de provimento jurisdicional em prol de trabalhadores subaquáticos que prestam labor a empresa de âmbito nacional, em diversos pontos do território brasileiro.
É certo que na instrução do inquérito civil público que precedeu a presente ACP, as provas foram colhidas junto aos trabalhadores na Bacia de Campos (RJ).
Entretanto, os alegados danos trabalhistas que aqui se objetiva coibir não se limitam à área onde se deram as investigações, pois sabidamente a PETROBRAS mantém plataformas de extração de petróleo em outros pontos do território nacional.
Em suma, a macrolesão objeto da presente ação civil pública não é local, tampouco regional: é nacional, pois pode espraiar-se por diversos pontos do território nacional, onde a PETROBRAS utilize-se de trabalhadores subaquáticos.
Em semelhante contexto, entendo que a competência territorial para a ação civil pública fixa-se em uma das Varas do Trabalho do Distrito Federal, com fundamento no aludido art. 93, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), combinado com o art. 21 da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85).
É certo que a presente ação civil pública também é dirigida em desfavor de diversas empresas de prestação de serviço subaquático, litisconsortes da demandada PETROBRAS e a quem esta terceiriza o labor de mergulho. Considerando-se que tais empresas têm sede na cidade do Rio de Janeiro e que a prestação de serviços em favor da PETROBRAS deu-se também na Bacia de Campos (RJ) --- onde se concentrou a prova ao tempo do inquérito civil ---, poder-se-ia cogitar da competência territorial da Vara do Trabalho de Macaé (RJ), a cuja jurisdição submetem-se os conflitos trabalhistas oriundos da Bacia de Campos.
Penso que, na espécie, configura-se conexão de causa, pela identidade de causa de pedir, entre a pretensão jurídica de direito material dirigida à PETROBRAS e a pretensão cumulativa dirigida às demais Empresas litisconsortes. Havendo conexão, até mesmo para evitar decisões discrepantes, envolvendo as Reclamadas, o que poderia suceder em caso de desmembramento do processo, impõe-se a unidade de julgamento da causa e a prorrogação de competência territorial da Vara do Trabalho do Distrito Federal, como deflui do art. 102 do CPC.
Ante o exposto, declaro, de ofício, a incompetência funcional do Eg. Tribunal Superior do Trabalho, determinando a remessa dos autos a uma das Varas do Trabalho do Distrito Federal, para que prossiga no exame e julgamento da causa, como entender de direito.150
Não é sequer necessário registrar que a decisão enfocada, oriunda da
máxima corte trabalhista brasileira, merece todo o respeito. Ainda assim, não se
pode deixar de dizer que o seu desacerto é mais do que evidente.
150 TST, ACP-92.867/93.1, SEDC, não unânime, rel. Min. João Oreste Dalazen, Disponível em: http://tinyurl.com/3pfx2x8. Acesso em: 02.08.2011.
182
Ocorre que nos termos do artigo 2º da Lei de Ação Civil Pública a
competência para a análise do imbróglio deveria ser dirigida para a Vara do Trabalho
de Macaé-RJ, já que esta possuía jurisdição sobre a Bacia de Campos, onde as
provas que lastreavam o inquérito civil público que rendeu azo ao ajuizamento do
dissídio foram coletadas. Fazendo tábula rasa do mencionado preceito, entretanto, a
SDC do TST acabou por privilegiar a dicção do artigo 93, II, do CDC, para proclamar
a competência de uma das Varas do Trabalho do Distrito Federal.
Ao fim e ao cabo, o que fez a Seção Especializada em Dissídios Coletivos do
Tribunal Superior do Trabalho, foi subtrair a competência de um juízo acostumado a
julgar questões afetas às plataformas petrolíferas situadas no oceano, para destiná-
la a um outro juízo que no máximo conhece as águas do Lago Paranoá.
Pior que isso, parece ser verdadeiro truísmo que no caso concreto a dilação
probatória acabou ficando comprometida, sendo certo, aliás, que muitas devem ter
sido as deprecatas expedidas pelo juízo candango ao fluminense (além de outros
tantos situados no litoral). Mais tormentoso ainda, por motivos óbvios, tornou-se a
busca do cumprimento do julgado.
Tais constatações demonstram, a mais não poder, que o critério consumerista
(93, II, do CDC) à toda evidência não pode se sobrepor, principalmente em seara
ambiental, ao raciocínio próprio da Lei de Ação Civil Pública (artigo 2º da Lei 7.347-
85), já que se por um lado é certo que este último não resolve todos os problemas
concernentes ao tema, por outro não é menos correto dizer que ele é o mais
adequado para o enfrentamento dos entraves inerentes à tutela dos interesses
trabalhistas coletivos.
Não é por outro motivo, aliás, que o artigo 2º da Lei 7.347-85 acabou por
amalgamar no seu bojo o critério competencial territorial ao funcional, preconizando,
enfaticamente, que as ações civis públicas devem ser ajuizadas no foro do local
onde ocorrer o dano (ou o ilícito, no caso das tutelas preventivas), cujo juízo detém
competência ‘funcional’ para processar e julgar a causa.
A competência funcional, como é de elementar sapiência, muito ao contrário
da territorial, é imantada de iniludível interesse público, circunstância que a insere no
campo da competência absoluta, não sendo possível, pois, que as partes, ex vi do
disposto no artigo 111 do Código de Processo Civil, a derroguem seja tácita (pelo
não eriçamento de exceção) ou expressamente (pela eleição de foro), valendo dizer,
portanto, que o intento do legislador, no caso, foi o de garantir que o juízo
183
competente para a cognição das ações civis públicas seja aquele com melhores
condições de bem tutelar os interesses coletivos lato sensu, vez que eles, mais do
que aos particulares, dizem respeito à sociedade como um todo.
Uma vez somados, todos os argumentos antes alinhavados são um claro
indicativo de que a Orientação Jurisprudencial nº 130 da Subseção 2 Especializada
em Dissídios Individuais (SDI-2) do Tribunal Superior do Trabalho merece urgente
cancelamento.
3 AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL TRABALHISTA: LEGITIMIDADE ATIVA E PASSIVA
3.1 LEGITIMIDADE ATIVA
No âmbito da jurisdição individual, subjetivista por excelência, a legitimidade
ativa, à luz da teoria da asserção151, pertence àquele que na petição inicial se diz
detentor dos direitos postulados no libelo. Dito de outro modo, pode-se assentar que
pelo menos no terreno da abstração, a legitimação para a invocação da prestação
jurisdicional pertence ao titular da pretensão tutelanda.
151 De acordo com a teoria da asserção, tanto os pressupostos processuais, quanto as condições da ação, devem ser apurados em abstrato, sob pena da ciência processual retornar aos seus primórdios, com a inimaginável reabilitação da doutrina imanentista, pela qual ação e processo eram considerados simples capítulos do direito material, sem que fossem dotados de qualquer autonomia científica. Assim é que o magistrado, quando do recebimento da inicial, deve verificar os seus contornos in statu assertionis, tendo por verdadeiros, a princípio, os fatos nela narrados, de forma a apurar, a partir daí, a presença dos requisitos necessários ao alcance do provimento meritório. Almejando corroborar o antes afirmado, traz-se, tratando do pressuposto processual objetivo intrínseco da competência, mas em lição que se amolda perfeitamente à questão da legitimidade, o escólio de DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. I. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 421, 422: “A Determinação Da Competência: Elementos da Demanda e do Processo (in statu assertionis) Para determinar o órgão jurisdicional competente em cada caso, é nos elementos da demanda a propor e do processo a instaurar que o constituinte e o legislador foram buscar critérios norteadores. (...) A determinação da competência faz-se sempre a partir do modo como a demanda foi concretamente concebida – quer se trate de impor critérios colhidos nos elementos da demanda (partes, causa de pedir, pedido), quer relacionados com o processo (tutelas diferenciadas: mandado de segurança, processos nos juizados especiais cíveis etc.), quer se esteja na busca do órgão competente originariamente ou para os recursos. Não importa se o demandante postulou adequadamente ou não, se indicou para figurar como réu a pessoa adequada ou não (parte legítima ou ilegítima), se poderia ou deveria ter pedido coisa diferente da que pediu etc. Questões como essa não influem na determinação da competência e, se algum erro dessa ordem houver sido cometido, a conseqüência jurídica será outra e não a incompetência. Esta afere-se invariavelmente pela natureza do processo concretamente instaurado e pelos elementos da demanda, in statu assertionis”.
184
Nos domínios da jurisdição coletiva, porém, a questão é um tanto mais
complexa. Fixe-se a atenção, por exemplo, na temática ambiental, que é aquela que
diretamente interessa ao presente estudo.
Consoante já demonstrado alhures, o meio ambiente é um bem difuso. Tanto
é assim, que o artigo 225 da Constituição da República apregoa que todos -
inclusive cidadão-trabalhador - têm direito ao meio ambiente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Por corolário lógico, também
como antes visto, o bem ambiental pode gerar uma série de interesses,
transindividuais ou individuais homogêneos, dignos da tutela processual coletiva.
Em tal caso, como se pode intuir desde agora, a legitimação para agir em
juízo, tal como tratada no âmbito do direito processual liberal de índole individualista,
não se mostra adequada para fazer frente aos desafios propostos pela coletivização
dos direitos.
Como é por demais sabido, o artigo 6º do Código de Processo Civil, orientado
pelo subjetivismo inerente ao Estado Liberal, estatui que ninguém poderá pleitear
direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado por lei.
Pode-se perceber, portanto, que o preceptivo em questão trabalha com a
lógica da apreensão individualizada dos direitos, pois que em regra somente o titular
da pretensão singular poderá viabilizá-la em juízo.
Quando muito, o que o processo individualista permite é a chamada
substituição processual, pela qual um terceiro, desde que autorizado por lei, vem ao
Poder Judiciário defender um direito consabidamente pertencente a outrem.
O fato inolvidável, contudo, é que os interesses ambientais são
costumeiramente metaindividuais, ou, quando propriamente individuais, têm uma
origem comum, hábil a transformá-los em interesses individuais homogêneos.
Em circunstâncias que tais, naturalmente, a jurisdição individual, a partir das
suas limitações em termos de legitimação ativa, não possui suficiente vigor para dar
adequada resposta aos reclamos complexos da sociedade de massas e de riscos
que se têm instituída nos dias atuais.
Atento a tal evidência, o artigo 5º da Lei 7.347-85 procura resolver o impasse
detectado, ao atribuir legitimação ativa para que uma série de entes ideológicos,
legalmente elencados, possam ajuizar as ações civis públicas (e suas respectivas
cautelares) necessárias à tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais
homogêneos. Diz o dispositivo legal em questão, na sua atual redação:
185
Art. 5º - Têm legitimidade para propor a ação principal e a
ação cautelar: I - o Ministério Público; II - a Defensoria Pública; III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de
economia mista; V - a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da
lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao
meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
§ 1º O Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei.
§ 2º Fica facultado ao Poder Público e a outras associações legitimadas nos termos deste artigo habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes.
§ 3° Em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa.
§ 4.° O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.
§ 5.° Admitir-se-á o litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União, do Distrito Federal e dos Estados na defesa dos interesses e direitos de que cuida esta lei.
§ 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.
Nem se argumente que no preceito legal retro reproduzido estaria inscrita
uma simples modalidade de substituição processual, sem o condão, portanto, para
romper com a lógica contida na ressalva inserta na parte final do artigo 6º do Código
de Processo Civil.
Decididamente não. Muito mais do que uma simples substituição processual,
tem-se, no âmbito difuso e coletivo, uma nova modalidade de legitimação ativa,
chamada de legitimação autônoma para a condução do processo. Dito de outro
modo: a vetusta dicotomia entre a legitimação ordinária e a extraordinária, própria do
maniqueísmo filosófico liberal, pouco o quase nada explica no Estado Democrático-
Ambiental de Direito. É de se trazer à tona, nesta perspectiva, o escólio de Ricardo
de Barros Leonel:
186
Há necessidade de abandonar as concepções tradicionais da
legitimação como premissas absolutas. A dualidade de conceitos – legitimação ordinária e extraordinária – não serve de forma adequada à identificação da legitimação em matéria de interesses supra-individuais. (...)
A posição que melhor se ajusta à identificação da natureza jurídica da legitimação para a defesa dos interesses difusos e coletivos, é no sentido de que se trata de legitimação denominada autônoma para a condução do processo.
A afirmação desta nova modalidade de legitimação conta com o argumento ponderável, de que os institutos do processo ortodoxo não podem explicar integralmente um fenômeno que apresenta caracteres diversos, como ocorre no processo coletivo.
A legitimação autônoma não se confunde com a ordinária ou com a extraordinária. Parte de premissas distintas, e da peculiaridade de defesa em juízo de interesses que são, por natureza, indivisíveis e inerentes conjuntamente a toda uma coletividade, composta por membros indeterminados (na hipótese dos difusos) e eventualmente determináveis (na hipótese dos coletivos).152
Na mesma direção, tem-se, ainda, o magistério de Marcelo Abelha Rodrigues:
(...) Também não se pode dizer que exista aí um simples caso
de legitimação extraordinária, porque, na prática, seria impossível pensar na legitimação ordinária. Se esta é impossível, não há falar em legitimidade extraordinária. Assim, a parte na demanda ambiental é o condutor da ação, ou seja, aquele que o legislador apontou como adequado para representar a coletividade, seja porque nela está incluído, como no caso da ação popular, seja porque entendeu que outros entes coletivos seriam representantes que conseguiriam exercer com maior rendimento o devido processo legal.153
No âmbito da jurisdição coletiva, de tal arte, no máximo se pode cogitar da
substituição processual quando um dos entes legitimados para o ajuizamento da
ação civil coletiva vem a juízo buscar a satisfação de interesses individuais
homogêneos, pois que embora os direitos no caso mereçam tutela conjunta diante
da origem comum que possuem, são perfeitamente fragmentáveis. Reproduz-se no
pertinente, vez mais, a preleção de Ricardo de Barros Leonel:
Esta questão comporta equação diversa quando se trata da
tutela de interesses individuais homogêneos, que são apenas 152 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 159, 160. 153 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo civil ambiental. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 109, 110.
187
acidentalmente coletivos, na essência individuais, apenas tratados processualmente como coletivos por razões de política legislativa e de economia processual.
Assim, na tutela dos interesses individuais homogêneos, o que fica patente é a substituição processual, legitimação extraordinária, em que os legitimados postulam em juízo interesse alheio, fazendo-o em nome próprio.154
Uma vez ultrapassado o estudo da parte técnica da problemática alusiva à
legitimação ativa para o ajuizamento de ações civis públicas, é chegado o momento
de se investigar os seus aspectos mais práticos, concentrando-se a abordagem,
doravante, nos entes potencialmente mais qualificados para a busca da proteção de
interesses ambientais trabalhistas perante o Poder Judiciário.
3.1.1 Ministério Público (Trabalhista e Comum)
Palmilhando a senda daquilo que já foi analisado anteriormente, vale
relembrar que as crises ambientais trabalhistas, sejam elas de dimensão
desumanizante, físico-ergonômica ou psíquico-moral, acabam por gerar interesses
laborais difusos, coletivos e individuais homogêneos, cuja satisfação pode ser
perfeitamente buscada na Justiça do Trabalho.
Neste diapasão, não se pode concluir de modo diverso, a não ser para se
reconhecer a inelutável a legitimidade ativa do Ministério Público do Trabalho para o
ajuizamento das medidas judiciais a tanto necessárias, já que ex vi do artigo 83, I e
III, da Lei Complementar 75-93, compete ao parquet laboral promover perante o
Judiciário Trabalhista as ações que lhe sejam atribuídas pela Constituição Federal e
pelas leis trabalhistas, e, mais especificamente, a ação civil pública para defesa de
interesses coletivos lato sensu, quando desrespeitados os direitos sociais
constitucionalmente garantidos.
A conclusão contida no parágrafo anterior é das mais óbvias e não demanda
maiores comentários. A grande questão a ser debatida, com efeito, é se os outros
ramos do Ministério Público, notadamente o estadual e o federal, possuem alguma
legitimação para atuarem perante a Justiça do Trabalho.
Uma boa resposta para a indagação em tela, há de ser construída na estaca
da parcimônia. Parece um tanto óbvio, naturalmente, que a legitimidade do parquet
154 LEONEL, Ricardo de Barros. Op. cit., p. 160.
188
comum pode ser defendida no máximo supletivamente, já que a primazia ministerial
para a atuação perante o ramo trabalhista do Poder Judiciário pertence
indiscutivelmente ao Ministério Público do Trabalho.
O fato, contudo, é que o MPT, em que pese o seu significativo crescimento
nos últimos tempos, ainda não possui grande capilaridade pelo interior do país, fato
que prejudica, lamentavelmente, a sua atuação em prol da implementação dos
interesses coletivos trabalhistas, dentre eles os ambientais.
Neste contexto, afigura-se como plenamente defensável a atuação subsidiária
dos demais ramos do Ministério Público perante a Justiça do Trabalho,
principalmente a do parquet estadual (e por que não do federal), tendo em conta a
sua enorme interiorização pelos rincões mais recônditos do pais.
Para tanto basta ver que nos termos do artigo 127 da Constituição da
República o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, sendo dois dos
seus princípios institucionais a ‘unidade e indivisibilidade’.
Demais disso, o fato é que o § 5º do artigo 5º da Lei 7.347-85 é inequívoco
ao estatuir que se admite litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da
União, do Distrito Federal e dos Estados na defesa dos interesses e direitos de que
cuida a de Lei da Ação Civil Pública, neles inseridos, como não poderia deixar de
ser, os de índole ambiental.
Ora, admitido o litisconsórcio, não há motivos plausíveis que justifiquem o
impedimento da atuação isolada dos demais ramos do Ministério Público perante a
Justiça do Trabalho, mormente naqueles contextos em que a atuação do parquet
laboral esteja comprometida por limitações estruturais e geográficas155.
Pensar de modo diferente, seria o mesmo que ferir de morte o princípio da
inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, XXXV, da CRFB), já que na prática estar-se-
155 Consoante já se disse em outro momento, não é do propósito da presente dissertação confundir a atividade acadêmica com a atividade judicante do seu autor. Mas não se pode deixar de registrar aqui, que na sua carreira como Juiz do Trabalho, o responsável pela presente pesquisa reconheceu, em três oportunidades distintas, a legitimidade do Ministério Público do Estado de Mato Grosso para atuar perante a Justiça do Trabalho, fazendo-o enquanto respondia pela titularidade da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia – MT, situada em uma região geográfica conhecida como Vale dos Esquecidos, justamente pela dificuldade de acesso associada à ausência do Poder Público na localidade. Vide, a propósito, os autos dos processos de números 00490.2007.061.23.00-3, 00491.2007.061.23.00-8 e 00503.2007.061.23.00-4 (Disponível, respectivamente, em http://tinyurl.com/3zc67ye, http://tinyurl.com/3muukwk e http://tinyurl.com/45yebzo).
189
ia subtraindo da apreciação da Justiça do Trabalho uma série de lesões ou ameaças
a interesses laborais coletivos.
Ademais, não se pode perder de vista, a propósito do quanto aqui se debate,
que uma das características mais marcantes do Estado Democrático-Ambiental de
Direito é justamente a sua abertura à pluralidade, sendo absolutamente consentâneo
com os seus propósitos, com efeito, o reconhecimento de legitimação ambiental-
laboral supletiva ao Ministério Público comum.
3.1.2 Defensoria Pública
Consoante já explicitado por ocasião da reprodução do artigo 5º, II, da Lei nº
7.347-85, a Defensoria Pública tem legalmente reconhecida a legitimidade para a
propositura de ação civil pública e respectivas cautelares preparatórias e incidentais.
O antedito artigo é dos mais polêmicos, suscitando, por isso, discussões
demasiadamente acaloradas. A fim de questionar a sua constitucionalidade, a
Confederação Nacional do Ministério Público (CONAMP) acabou por ajuizar ação
direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, alegando, como
argumentos centrais, que tal possibilidade faz com que a Defensoria Pública se
imiscua nas atribuições do Ministério Público, ofendendo, ademais, os artigos 5º,
LXXIV e 134 da Constituição da República, que apregoam, respectivamente, que o
Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos, incumbindo à Defensoria Pública a defesa dos
necessitados, de modo que os destinatários das aludidas regras devem ser pessoas
individualizáveis e identificáveis, não havendo margem, assim, para que a atuação
em questão se estenda para a defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais
homogêneos.
Embora dignos de respeito, os argumentos suscitados pela CONAMP não
chegam a ser convincentes, já que o artigo 5º, II, da Lei 7.347-85 (com a redação
atribuída pela Lei 11.448-07) se mostra em absoluta consonância com o fundamento
constitucional-republicano de proporcionar à população carente o mais amplo
acesso à jurisdição, seja ela individual ou coletiva.
É de se ressaltar, demais disso, que o simples fato dos interesses discutidos
em juízo possuírem natureza difusa ou coletiva, não impede por completo que os
beneficiários das decisões venham a ser identificados.
190
Tanto isso é verdade, que os §§ 1º e 3º do artigo 103 do Código de Defesa do
Consumidor - consoante se verá mais detalhadamente no momento apropriado -
permitem o transporte in utilibus da coisa julgada erga omnes ou ultra partes (artigo
103, I e II, do CDC) para o plano individual. No âmbito dos interesses individuais
homogêneos, por suposto, a possibilidade de individualização dos beneficiários da
decisão é ainda mais natural (artigo 103, III, § 2º, do CDC).
A respeito da notória constitucionalidade da legitimação da Defensoria Pública
para atuar nas ações civis públicas, faz-se imprescindível que se traga aqui a
preleção de Hugo Nigro Mazzilli:
(...) não cremos seja acertado o entendimento restritivo a
propósito das atribuições da Defensoria Pública, porque negaríamos os próprios fundamentos do processo coletivo se pudesse ela defender um único necessitado, ou até todos eles, desde que o fizesse um a um, mas não os pudesse defender a todos, de uma só vez, num único processo coletivo. Todas as razões que levaram a Constituição e as leis instituir o processo coletivo (...) estariam frustradas se por absurdo negássemos a possibilidade de atuar na defesa global de todo o grupo necessitado, obrigando-a à defesa de cada integrante do grupo individualmente considerado. Não nos impressiona o argumento de que, assim, a Defensoria Pública estaria a invadir atribuições do Ministério Público, seja porque as atribuições do parquet na promoção da ação civil pública não lhe são exclusivas, seja porque, embora tenha ele atribuições inconfundíveis com as da Defensoria Pública, existem áreas de superposição entre ambos, como também existem entre o Ministério Público e Procuradoria do Estado, sem que com isso cada qual perca a sua identidade.
Em suma, nosso entendimento é o de que a Defensoria Pública pode propor ações civis públicas ou coletivas, em defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos de pessoas que se encontrem na condição de necessitados, ou seja, de quem tenha insuficiência de recursos para custear a defesa individual, mesmo que, com isso, em matéria de interesses difusos (que compreendem grupos indetermináveis de lesados), possam ser indiretamente beneficiadas terceiras pessoas que não se encontrem na condição de deficiência econômica, até porque não haveria como separar os integrantes desse grupo atingido. Apenas no tocante à defesa de interesses coletivos em sentido estrito ou de interesses individuais homogêneos (nestas duas hipóteses temos grupos determináveis de lesados), é mister que os beneficiários da ação sejam pessoas necessitadas, para que a Defensoria Pública possa exercitar em seu favor o processo coletivo.156
156 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 24 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 319, 320.
191
A questão que resta a saber, com efeito, é se a Defensoria Pública, seja da
União ou dos Estados, estaria legitimada para atuar no âmbito da Justiça do
Trabalho.
Ora, quase tudo o quanto antes se disse para justificar a atuação do
Ministério Púbico comum perante o Judiciário Trabalhista, notadamente quanto ao
contexto de comprometimento da atuação do parquet laboral por limitações
estruturais e geográficas, se presta para estribar a intervenção supletiva da
Defensoria Pública na processualística do trabalho, mormente do seu braço
estadual157, consabidamente muito mais capilarizado do que o da União.
Vale dizer, afinado neste diapasão, que tal possibilidade se harmoniza
inteiramente com o projeto do Estado Democrático-Ambiental de Direito delineado
na Magna Carta, que, arrimado na pluralidade social (dentre outras pilastras), acaba
por reforçar a constitucionalidade do artigo 5º, II, da Lei 7.347-85, viabilizando,
assim, o mais amplo acesso dos necessitados à jurisdição (artigo 5º, XXXV, da
CRFB).
Como se não bastasse, a atuação da Defensoria Pública não impedirá jamais
que o Ministério Público atue no caso. Aliás, a intervenção defensorial, a bem da
verdade, viabilizará a vinda a juízo do parquet, forçando, na prática, que o órgão
ministerial trabalhista supere as suas debilidades estruturais e as suas limitações
geográficas, vez que nos termos do § 1º do artigo 5º da Lei de Ação Civil Pública “o
Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente
como fiscal da lei”.
3.1.3 Sindicatos
Estabelece o artigo 8º, III, da Constituição da República, que “ao sindicato
cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria,
inclusive em questões judiciais ou administrativas”.
157 Vale sublinhar, novamente, que na sua atuação como Juiz do Trabalho, o responsável pela presente pesquisa já reconheceu por duas vezes a legitimidade da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso para agir perante a Justiça do Trabalho, fazendo-o na titularidade da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia –MT (litisconsórcio formado entre o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Estadual e a Defensoria Pública) Vide, respectivamente, os autos dos processos de números 00490.2007.061.23.00-3, 00491.2007.061.23.00-8 (Disponível em http://tinyurl.com/3zc67ye e http://tinyurl.com/3muukwk) .
192
Percebe-se a partir daí, com clareza meridiana, que os sindicatos possuem
inequívoca legitimidade para o ajuizamento de ações civis públicas que se destinem
à defesa dos interesses coletivos lato sensu (sejam eles difusos, coletivos de sentido
estrito ou individuais homogêneos) de toda a categoria profissional ou econômica
que represente, não ficando a sua atuação restrita, portanto, à implementação dos
interesses dos seus associados.
Embora nítida a elasticidade do preceito constitucional enfocado, o Tribunal
Superior do Trabalho, historicamente falando, acabou relutando em reconhecer-lhe a
autoaplicabilidade, tendo editado a propósito do assunto a sua Súmula de nº 310, na
qual apregoava, logo no item I, que o artigo 8º, inciso III, da Constituição da
República, não assegurava, per se, a legitimação autônoma do sindicato para a
condução do processo.
Partia o Tribunal Superior do Trabalho, para chegar a tal conclusão, do
suposto de que o artigo 8º, III, da CRFB, não fazia mais do que repetir a dicção do
artigo 513, ‘a’, da Consolidação das Leis do Trabalho, quando assevera ser da
prerrogativa dos sindicatos a representação, perante as autoridades administrativas
e judiciária, dos interesses gerais da respectiva categoria ou profissão liberal, ou os
interesses individuais dos associados relativos à atividade ou profissão exercida.
Ocorre que, em perspectiva histórica, o prefalado artigo 513, ‘a’, da CLT
sempre foi compreendido à luz do artigo 6º do Código de Processo Civil, que, na
senda do direito processual individual de índole liberal, estabelece que ninguém
poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando expressamente
autorizado por lei. Justamente por isso é que os itens II, III e IV da Súmula nº 310 do
TST elencavam alguns casos de leis ordinárias que teriam excepcionalmente
permitido a substituição processual por parte dos sindicatos.
Já se disse por mais de uma vez no curso da presente dissertação, que as
decisões do Tribunal Superior do Trabalho devem ser encaradas com todo o
respeito. Tal circunstância, no entanto, não importa em empecilho para se dizer que
na hipótese vertida o TST acabou por criar uma exótica forma de interpretação da
Constituição em conformidade com a legislação infraconstitucional, quando o correto
em hermenêutica constitucional, como se sabe, é justamente o contrário.
Como se percebe, a máxima corte trabalhista brasileira acabou por subtrair do
artigo 8º, III, da Constituição da República a sua mais nobre potencialidade, fazendo
tábula absolutamente rasa do disposto no § 1º do artigo 5º da CRFB, a dizer que as
193
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, sejam elas individuais ou
coletivas, substanciais ou adjetivas, possuem aplicação imediata.
Como se não bastasse, acabou por comprometer toda a lógica do direito
processual coletivo, a ponto de evidenciar a sua incompreensão sobre as diferenças
existentes entre ‘substituição processual’ e ‘legitimação autônoma para a condução
do processo’.
Ao agir assim, o Tribunal Superior do Trabalho, infelizmente, acabou por inibir
o desenvolvimento da jurisdição coletiva trabalhista por mais de uma década, já que
a Súmula 310 foi editada em 06.05.1993 e cancelada somente em 01.10.2003,
merecendo ser dito, outrossim, que a celeuma somente foi definitivamente superada
em agosto de 2007, quando o Supremo Tribunal Federal, muito embora ainda se
valendo dos parâmetros da vetusta dicotomia entre legitimação ordinária e
extraordinária, encerrou o julgamento do Recurso Extraordinário nº 193.503-1/SP.
Transcreve-se, por importante, a ementa da mencionada decisão:
PROCESSO CIVIL. SINDICATO. ART.8º, III DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEGITIMIDADE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DEFESA DE DIREITOS E INTERESSES COLETIVOS OU INDIVIDUAIS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. O artigo 8º, III da Constituição Federal estabelece a legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam. Essa legitimidade extraordinária é ampla, abrangendo a liquidação e a execução dos créditos reconhecidos aos trabalhadores. Por se tratar de típica hipótese de substituição processual, é desnecessária qualquer autorização dos substituídos. Recurso conhecido e provido.158
O fato é que hoje não há mais dúvidas sobre a legitimação ativa dos
sindicatos para o ajuizamento de ações civis públicas, inclusive, obviamente, para a
tutela de interesses ambientais-laborais, quer sejam eles difusos, coletivos ou
individuais homogêneos. Tem-se, em tal sentido, os itens I, II e III da Súmula nº 77
da 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERESSES INDIVIDUAIS
HOMOGÊNEOS. LEGITIMAÇÃO DOS SINDICATOS.
158 STF, Rec. Ext. 193.503-1/SP, Tribunal Pleno, não unânime, rel. desig. Min. Joaquim Barbosa - rel. orig. Min. Carlos Velloso, DJ de 24.08.2007. Disponível em: http://tinyurl.com/3llhy4z. Acesso em: 04.08.2011.
194
DESNECESSIDADE DE APRESENTAÇÃO DE ROL DOS SUBSTITUÍDOS.
I – Os sindicatos, nos termos do art. 8º, III, da CF, possuem legitimidade extraordinária para a defesa dos direitos e interesses – individuais e metaindividuais – da categoria respectiva em sede de ação civil pública ou outra ação coletiva, sendo desnecessária a autorização e indicação nominal dos substituídos.
II – Cabe aos sindicatos a defesa dos interesses e direitos metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos) da categoria, tanto judicialmente quanto extrajudicialmente.
III – Na ausência de sindicato, é da federação respectiva a legitimidade extraordinária para a defesa dos direitos e interesses da categoria e, na falta de ambos, da confederação.159
Vale destacar, relativamente ao verbete retro reproduzido, que nas ações
civis públicas que versem sobre a tutela de interesses individuais homogêneos, ao
contrário do que ditava o Tribunal Superior do Trabalho no item V da sua Súmula nº
310, não existe a necessidade de que os substituídos (observe-se que nos
interesses individuais homogêneos é lícito se falar em ‘substituição processual’, já
que a ‘legitimação autônoma para a condução do processo’ é própria da tutela de
interesses difusos e coletivos de sentido estrito) sejam individualizados na petição
inicial, na medida em que a sentença, necessariamente genérica (artigo 95 do
Código de Defesa do Consumidor), somente fixará a responsabilidade do réu pelos
créditos reconhecidos em prol dos beneficiários, procedendo-se a liquidação do
quantum debeatur por artigos apenas na passagem da fase cognitiva para a
executória (artigos 98 e 100 do Código de Defesa do Consumidor).
3.2 LEGITIMAÇÃO PASSIVA
Seguindo a trilha do estudo proposto, é chegado o momento de se discutir, de
agora em diante, a questão da legitimação passiva nas ações civis públicas de
natureza ambiental-laboral. O aludido tema, se não chega a ser singelo, também
não se revela complexo.
Ocorre que o artigo 3º, IV, da Lei nº 6.938-81, que trata da Política Nacional
do Meio Ambiente, é um indicativo seguro de que na polaridade passiva da ação
ambiental deverá residir a figura do poluidor, com tal compreendido a pessoa física
159 MONTESSO, José Cláudio, STERN, Maria de Fátima Coelho Borges; ELY, Leonardo (coords). 1ª jornada de direito material e processual na Justiça do Trabalho: enunciados aprovados. São Paulo: LTr, 2008, p. 47.
195
ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por
atividade causadora de degradação ambiental.
Como é por demais sabido, nos termos do artigo 5º, XXXV, da Constituição
da República, a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito. Extrai-se da mensagem em questão, no que importa para o tema
agora enfrentado, que figurarão na polaridade passiva das ações civis públicas não
somente os que já tiverem causado um dano para outrem (tutela repressiva), bem
como todos aqueles que estiverem em vias de cometer um ilícito, ou, que já o tendo
praticado, ainda não consumaram um prejuízo em face de terceiros (tutela
preventiva).
A indagação que resta ser esclarecida, neste compasso, é quem haveria de
ser considerado como poluidor na seara ambiental trabalhista. A dúvida apontada
não é difícil de ser dirimida. O agente em questão, obviamente, é aquele que por via
da sua atividade gere poluição, como tal considerada, na esfera laboral, toda e
qualquer conduta, seja comissiva ou omissiva, que prejudique a saúde, a segurança
e o bem-estar do cidadão-trabalhador.
Vale realçar, finalmente, que o prefalado artigo 3º, IV, da Lei nº 6.938-81, ao
apregoar que o poluidor é todo aquele que, ‘direta ou indiretamente’, gera
degradação ambiental, é um poderoso indicativo de que existe uma enorme margem
prática para a conformação de litisconsórcio passivo nas ações ambientais.
Na esfera ambiental-laboral, de tal arte, não apenas os tomadores diretos de
serviço, mas todos aqueles que indiretamente contribuírem para o prejuízo do bem-
estar da coletividade de trabalhadores, deverão figurar simultaneamente como réus
nas ações civis públicas.
Nesta perspectiva, mostra-se possível, por exemplo, que um empregador e a
União Federal formem litisconsórcio passivo em uma ação ambiental trabalhista,
como naquelas circunstâncias em que esta última se mostrar de tal modo desidiosa
no exercício do seu poder administrativo sancionador, a ponto de colaborar para
geração de poluição trabalhista por parte daquele primeiro.
Nem se argumente que no exemplo retro a Justiça do Trabalho não deteria
competência para conhecer a ação civil pública ajuizada em face da União.
Decididamente não. Como se não bastasse o artigo 109, I, parte final, da CRFB
excepcionar a competência da Justiça Federal para as causas trabalhistas, o fato é
que a Emenda Constitucional nº 45, ao modificar a redação do artigo 114 da
196
Constituição da República, acabou por deslocar a competência do Judiciário
Trabalhista de um patamar subjetivo para um outro objetivo.
Isto equivale a dizer, no plano prático, que se por um lado é certo que
antigamente a competência da Justiça do Trabalho era restrita às ações entre
empregados e empregadores, atualmente ela se espraia para toda e qualquer
demanda oriunda de relação de trabalho, em nada importando, assim, a natureza
jurídica dos entes que se apresentem, respectivamente, nos seus pólos ativo e
passivo.
4 AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL TRABALHISTA: PROVAS
Embora já esteja claro, vale repisar que o objetivo do presente capítulo da
dissertação não é o de empreender uma análise exaustiva de todos os aspectos que
envolvem o estudo da ação civil pública ambiental trabalhista.
O que na realidade a pesquisa almeja, é abordar os aspectos mais sensíveis
do remédio jurídico em questão, fazendo-o de modo a demarcar as principais
diferenças entre o processo individual e o coletivo.
Dentro de tal perspectiva, a atividade probatória será doravante analisada em
três diferentes prismas, a saber: a) o comportamento do juiz; b) o ônus da prova; c) o
uso de dados estatísticos como meio de prova.
Os dois primeiros tópicos, vale ressaltar, serão desenvolvidos a partir de
elementos extraídos de outro estudo realizado pelo responsável da presente
pesquisa em obra de abordagem específica160.
4.1 O JUIZ E A ATIVIDADE PROBATÓRIA
No âmbito processualística conservadora, são muitos os que apregoam, como
fato inquestionável, que tanto no Processo Civil quanto no Processo do Trabalho o
magistrado seria mero espectador da contenda judicial, um ser inerte e sem iniciativa
probatória, a qual estaria reservada à atividade dos contendores. De tal modo, tanto
o juiz civilista quanto o juiz trabalhista poderiam se satisfazer, sem questionamentos,
com a verdade formal.
160 CESÁRIO, João Humberto. Provas e recursos no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2010, p. 21 a 23 e 43 a 51.
197
Já se vai de longe, contudo, o tempo em que o Processo Civil e o Processo
do Trabalho eram balizados pela teoria imanentista, pela qual o direito processual
seria um mero capítulo do direito material, desprovido, portanto, de qualquer
autonomia científica.
Contemporaneamente a relação jurídica processual insere-se no terreno do
interesse público, não podendo ser considerada como um simples negócio jurídico
de índole privada, que permitiria aos litigantes aceitarem, ou não, as conseqüências
da litigância em juízo.
Com efeito, se por um lado é correto que o Processo Civil e o Processo do
Trabalho podem conviver, em alguma medida, com a verdade ficta, por outro não é
menos acertado assentar que também eles devem se preocupar com o atingimento
mais próximo possível da verdade real, até mesmo por via da iniciativa probatória do
magistrado, se necessário.
Ocorre que a imparcialidade, essencial ao comportamento equilibrado do juiz,
não deve ser confundida com a neutralidade. Assim é que o magistrado, na
condução do processo, deve estar abertamente comprometido com a concretização
daquilo que na letra da Constituição é apenas uma promessa, empenhando-se, por
via da sua atividade judicante, em materializar os fundamentos republicanos da
cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa (artigo 1º, II, III, IV, da CRFB).
É fato que, consoante advertem Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, “a
verdade é inatingível dentro e fora do processo”161, pelo que, a rigor, “todo juízo de
verdade resolve-se em juízo de maior ou menor verossimilhança”162. No entanto,
ainda como prelecionam os mencionados processualistas, “a colocação da verdade
como objetivo da prova preenche axiologicamente o processo, outorgando-lhe
legitimidade. A impostação da verdade como finalidade da prova é uma condição
necessária para que se possa colocar a justiça do caso concreto como desiderato do
processo”163.
Justamente por isso é que, mesmo no âmbito do processo individual, o artigo
130 do Código de Processo Civil assenta que caberá ao juiz, de ofício ou a
161 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil: comentado artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 334. 162 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Id. 163 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Id.
198
requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo,
indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.
Ainda no plano da processualística individual, mas já em seara trabalhista, a
antedita regra é adensada pelo artigo 765 da Consolidação das Leis do Trabalho,
que concede ao Juiz do Trabalho a mais ampla liberdade na direção do processo,
permitindo-lhe determinar toda e qualquer diligência necessária ao esclarecimento
das causas submetidas ao seu poder jurisdicional, sendo tal regra reafirmada, no
âmbito do rito sumaríssimo, pelo artigo 852-D da mesma Consolidação, ao vaticinar
que o magistrado dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a
serem produzidas.
Complementando tais regras, não custa trazer à balha, ademais, o disposto
no § 2º do artigo 195 da CLT, que impõe ao julgador, uma vez argüida em juízo a
insalubridade ou a periculosidade, o dever de designar, de ofício, perito habilitado
para produção da imprescindível prova pericial, não sendo impertinente realçar,
ainda, a dicção contida no caput do artigo 848 da CLT, que confere ao juiz o poder
de interrogar ex officio os litigantes.
Mesmo no âmbito do processo individual, como se vê, ao magistrado dos dias
atuais, seja ele comum ou trabalhista, não é dado se contentar em assistir
passivamente a digladiação dos litigantes. Pode-se dizer, com efeito, que o juiz
republicano, verdadeiro protagonista da relação processual, deve assumir, sem
temores, o seu papel de derradeiro bastião institucional da soberania popular, longe
do qual abrirá espaço para a legitima insurreição da sociedade civil organizada.
Ora, se assim o é no plano da processualística individual, com muito maior
razão o há de ser no horizonte do processo coletivo, principalmente nos domínios da
temática ambiental.
Contemporaneamente, consoante já asseverado alhures, a técnica
processual deve ser encarada como um meio de promoção dos valores
constitucionais, sendo imprescindível, para tanto, que o julgador, livrando-se dos
grilhões liberais, empenhe-se, principalmente no plano da transindividualidade ínsita
à sociedade de massas e de riscos, em dar vida à axiologia inerente ao Estado
Democrático-Ambiental de Direito.
Antes de tudo, o juiz pode e deve, no exercício do seu poder jurisdicional,
tomar as medidas necessárias - dentre elas aquelas próprias à iniciativa probatória -
para eliminar a desigualdade existente entre os litigantes no interior da relação
199
processual, de modo que a questão da isonomia, ultrapassando o plano da
formalidade, adentre na órbita da substancialidade.
Atento a tal necessidade, o artigo 20, inciso VIII, do Projeto de Lei nº
5139/09164, que visava disciplinar a ação civil pública para a tutela de interesses
difusos, coletivos ou individuais homogêneos, outorgava poderes expressos para o
juiz determinar de ofício a produção de provas, observado o contraditório.
Lamentavelmente, porém, o prefalado projeto de lei, oriundo de um grupo de
juristas da mais alta envergadura intelectual e encampado pelo Ministério da Justiça,
foi rejeitado, por motivos naturalmente políticos e não propriamente jurídicos, pela
Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, em
votação ocorrida na data de 17.03.2010.
Tal fato, entretanto, não pode ser tomado como óbice para que o magistrado,
principalmente no interior da jurisdição coletiva, exerça a necessária iniciativa
probatória que dele se espera em um Estado Democrático-Ambiental de Direito.
Primeiramente, como já visto, pelo fato de que no próprio direito individual,
consabidamente mais próximo ao liberalismo jurídico, e por isso muito mais
restritivo, existe espaço suficiente para a encampação da aludida prática (artigos 130
do CPC, 765 da CLT, 852-D da CLT, 195, § 2º da CLT e 848 da CLT, dentre outros).
Em segundo lugar porque esta é a única leitura que vai ao encontro da
Constituição da República. Como já estudado anteriormente, a cláusula due process
of law deve ser interpretada na perspectiva da formatação de um processo
constitucionalmente estruturado e ambientalmente justo, capaz, ao mesmo tempo,
de resguardar o contraditório e a ampla defesa aos litigantes e de produzir
resultados que sustentem uma vida plena e abundante para toda a sociedade.
4.2 ÔNUS DA PROVA
No Processo Civil, como é por demais sabido, a distribuição subjetiva do ônus
da prova é regida pelo artigo 333 do CPC, a dizer, basicamente, que o encargo
probatório pesa sobre os ombros do autor quanto ao fato constitutivo do seu direito,
e nos do réu quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do
direito do vindicante. Já no Processo do Trabalho, outrossim, a mesma questão é
164 Disponível em http://tinyurl.com/3oe4ozu (acesso em 08.08.2011).
200
gizada pelo artigo 818 da CLT, quando diz que a prova das alegações incumbe à
parte que as fizer.
Contemporaneamente, contudo, é fundamental saber que relativamente à
distribuição do ônus da prova a legislação de regência traça apenas diretrizes gerais
para a orientação básica dos atores processuais. Assim é que a atenuação dessas
diretivas, fundada no princípio da aptidão para a prova, vem a cada dia ganhando
destaque no foro, seja ele comum ou trabalhista.
Dito de outro modo, enquanto os artigos 818 da CLT e 333 do CPC
disciplinam a distribuição estática do ônus da prova, a práxis forense mais avançada
preconiza a repartição dinâmica do encargo probatório, para que por via dela se
evitem julgamentos injustos, nos quais uma parte, não obstante possuir razão em
uma contenda, veja inviabilizada a obtenção do bem da vida perseguido
judicialmente, em virtude da impossibilidade de produzir uma prova para ela difícil,
improvável ou mesmo impossível (probatio diabolica), enquanto que a contraprova
do seu adversário seria de tranqüila veiculação.
Ao contrário do que se possa imaginar, o princípio da aptidão para a prova, do
qual decorre a técnica de inversão do encargo probatório, não se trata de tema novo
na doutrina. Transcreve-se, para comprovar o asseverado, a lição do
jusprocessualista italiano Francesco Carnelutti, extraída da sua clássica obra
‘Sistema de Direito Processual Civil’:
Quando a parte se encontrar em condições de poder
(materialmente) facilitar a prova, basta para assegurar a disponibilidade da mesma ao juiz, a constituição de um ônus, de tal forma que se não fornecer a prova, o juiz pode ou deve entender contrária à verdade e, da mesma forma, desestimular a afirmação da parte que não a proporcionar, e, correlativamente, entender conforme a verdade, e por isso acolhê-la, à afirmação oposta. A lesão do interesse da parte (interesse em litígio) ameaçada dessa forma atua como estímulo eficaz para a produção da prova. Além disso, a consequência se deduz assim da inatividade da parte fundamenta-se sobre a experiência, e a sentença que se adapta a ela tem maiores possibilidades de ser justa, porque se apesar do estímulo de seu interesse a parte não proporcionar a prova, isto, de acordo com a experiência, dá ensejo para entender que a prova teria sido resolvida em prejuízo seu.165
165 CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Vol. II. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo: Classic Book, 2000, p. 556, 557.
201
Dessarte, numa perspectiva menos dogmática e mais racional, é possível que
o juiz, em algumas situações emblemáticas, atribua o ônus da prova àquela parte
que esteja em melhores condições de produzi-la, independentemente do
balizamento dos artigos 818 da CLT e 333 do CPC.
A utilização desta técnica dinâmica de repartição do ônus da prova no âmbito
da ação civil pública ambiental trabalhista basear-se-ia, portanto, na constatação de
que o tomador de serviços, encarado como poluidor, em virtude de deter na relação
de emprego os poderes de direção e de fiscalização, possuiria melhores condições,
sejam técnicas ou administrativas, para constituir provas do desvencilhamento das
obrigações laborais-ambientais a que esteja jungido.
A bem da verdade, nem mesmo os positivistas poderiam, atualmente, refutar
a óbvia conveniência de adoção pretoriana desta conduta. Ocorre que o artigo 6º,
VIII, do Código de Defesa do Consumidor, elenca como um dos direitos básicos do
consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do
ônus da prova, a seu favor, no Processo Civil, quando, a critério do juiz, for
verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras
ordinárias de experiências.
Não custa rememorar, ainda, que o artigo 21 da Lei de Ação Civil Pública
estabelece que aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos - sejam eles de que natureza forem - os dispositivos do
título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.
Vale dizer, no entanto, que uma respeitável parcela da doutrina, baseada em
um aspecto meramente formal, se revela contrária à mencionada prática, sob a
alegação de que o artigo 6º do Código de Defesa do consumidor não está inserido
no título III do CDC, o qual abarca no seu interior apenas os artigos 81 a 104.
Transcrevem-se, a propósito do quanto asseverado, as palavras de Édis
Milaré e Renata Castanho, que após fazerem uma longa explanação sobre o
assunto, expressam a conclusão a que chegaram, tratando, especificamente, das
ações civis públicas de natureza ambiental:
Do exposto até aqui, duas conclusões podem ser extraídas
sobre a inversão do ônus da prova em matéria ambiental: a primeira diz com a inexistência de disposição expressa de lei que a sustente, tratando-se de um gravame para o réu; a segunda, de que é necessário e premente que a lei discipline o assunto, tendo em vista a relevância do interesse em jogo.
202
Considerando-se que a qualidade de vida das presentes e futuras gerações depende, inquestionavelmente, do equilíbrio ecológico e da integridade do ambiente, dúvida não há de que a sua proteção é um meio de garantir a própria existência da espécie humana. Ora, seguindo este raciocínio, é de admitir que são bem-vindos todos os instrumentos que possam auxiliar na defesa do meio ambiente.
Daí não se pode prescindir, em sede de tutela jurisdicional do ambiente, da inversão do ônus da prova, como mecanismo facilitador de sua proteção.
Todavia, por mais justificável que seja, do ponto de vista filosófico, a inversão do ônus da prova em favor da defesa dos valores ambientais, não se pode permitir qualquer violência aos cânones do Estado de Direito.
Sim, porque os cidadãos têm direitos e eles precisam ser respeitados.
Como visto, é princípio jurídico assente não se poder socorrer de analogia quando esta leve à restrição de direitos. Atualmente, a inversão do ônus da prova em matéria ambiental, segundo a rigorosa dicção do art. 21 da Lei 7.347-85, violenta postulados básicos, como o devido processo legal e a isonomia das partes.
Para que se resguarde o Estado de Direito, de um lado, e se assegure a defesa do meio ambiente, de outro, a inversão do ônus da prova, no caso, está a desafiar regra legal expressa, a exemplo do que fez o CDC nas relações de consumo.166
Embora respeitável, o escólio reproduzido não é nada além do que
equivocado. Segundo a lógica dos autores, na hipótese estariam digladiando, de um
lado, o direito ao equilíbrio ecológico (artigo 225 da CRFB), e, de outro, o devido
processo legal e a isonomia entre as partes (artigo 5º, caput, LIV).
Não se pode esquecer, conforme já exaustivamente demonstrado no corpo da
presente dissertação, que o direito à integridade ambiental é de índole fundamental.
Do mesmo modo, naturalmente, também o devido processo legal e a isonomia são
direitos fundamentais.
Suponha-se, pois, que de fato os interesses em questão estejam em rota de
colisão. Neste caso, o imbróglio haverá de ser dissolvido pelo princípio constitucional
da concordância prática, de modo a que todos os valores se harmonizem no interior
de uma única solução parcimoniosa.
Como já foi por demais demonstrado anteriormente, a adaptabilidade do
procedimento é um pressuposto imprescindível para o acesso a uma ordem jurídica
eficiente e ambientalmente justa, o que equivale a dizer que o magistrado está 166 MILARÉ, Édis; CASTANHO, Renata. A Distribuição do ônus da prova no anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de
203
autorizado a conformar a ritualística processual às necessidades do caso concreto,
para, assim, implementar as soluções adequadas às diversas crises jurídicas que se
instauram em uma sociedade de massas e de riscos.
Pode-se afirmar, em última instância, que o vetusto ideário liberal de um
procedimento prévia e abstratamente previsto na frieza originária da lei, não se
mostra mais capaz de fazer frente à complexidade dos dias atuais (se é que algum
dia foi útil para algo além do que a preservação dos interesses liberais-burgueses).
Para se valer de tal possibilidade, basta que o Estado-juiz o faça sem
sobressaltos, de modo que a chamada conformação do procedimento às
necessidades de substancialização da inafastabilidade da jurisdição seja realizada
sem surpresas, garantindo-se às partes, portanto, o exercício do contraditório e da
ampla defesa, com todos os meios e recursos que lhe são inerentes.
É perfeitamente lícito, pois, que o magistrado, arrimado em uma
argumentação substanciosa, se valha da inteligência do artigo 6º do Código de
Defesa do Consumidor no âmbito das ações civis públicas de natureza ambiental,
harmonizando, na perspectiva da concordância prática, a necessidade de
preservação da integridade ambiental com a garantia do contraditório e da ampla
defesa a que faz jus o possível poluidor.
Isto equivale a dizer que o julgador deverá, a tempo e modo, noticiar ao
poluidor a inversão do encargo probatório, de modo a que ele, no curso da dilação
probatória, possa exercitar adequadamente o seu múnus probatório, não sendo
surpreendido quando da prolatação da sentença.
Como se tem dito insistentemente ao longo do presente estudo, a cláusula
due process of law deve ser lida, contemporaneamente, sob a mirada de um
processo constitucionalmente estruturado (procedural due process) e
ambientalmente justo (environmental substantive due process), que, ao mesmo
tempo em que seja capaz de salvaguardar o contraditório e a ampla defesa, seja,
sobretudo, hábil a produzir resultados ecologicamente equilibrados.
Obviamente, não será respeitando insanamente um procedimento prévia e
abstratamente delineado, mormente quando nele exista uma evidente lacuna
axiológica, que o processo será capaz de produzir soluções comprometidas com a
vida em abundância propalada pelo Estado Democrático-Ambiental de Direito.
Castro; WATANABE, Kazuo (cords). Direito Processual Coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 258.
204
Não se pode deixar de enfatizar, além disso, que o due process of law, nos
termos em que estudado anteriormente, não é uma garantia destinada somente do
réu, sendo, igualmente, uma prerrogativa do autor, que tem o direito a um processo
capaz de preservar os seus interesses.
Demais disso, a isonomia, também como já visto, não pode ser enxergada
apenas a partir da angulação meramente formal em que idealizada pelo direito
liberal, sendo imprescindível, antes de tudo, que ela seja tratada com a necessária
dose de substancialização preconizada pelo direito social.
Não se pode concluir de modo diverso, de tal arte, senão para se
compreender que um processo que para garantir os supostos interesses adjetivos do
poluidor, esteja disposto a sacrificar os interesses substantivos da sociedade na
preservação ambiental, não estará mais do que a fazer tábula rasa do artigo 225 da
Constituição da República, quando diz que todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-
lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
À guisa de argumentação, ainda que o artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do
Consumidor não existisse ou não pudesse ser aplicado no âmbito ações civis
públicas ambientais (dentre elas as trabalhistas), o princípio da aptidão para a prova
com o seu consectário da inversão do encargo probatório poderiam ser
reverenciados pela magistratura. Colhe-se, a propósito, as notáveis palavras de
Eduardo Cambi:
O legislador brasileiro, com auxílio do juiz, tem se valido desta
técnica, tal como prevê o artigo 6o, VIII, do CDC. Entretanto, essa técnica pode ser utilizada pelo juiz, desde que haja critérios para estabelecer uma discriminação justa, mesmo na ausência de uma lei que expressamente consagre a inversão do ônus da prova, por se tratar de um modo de concretização do princípio constitucional da isonomia, em sentido substancial, e de efetivação da garantia constitucional do contraditório.167
Pior ainda , é a assertiva de que o artigo 6º, VIII, do CDC não poderia ser
utilizado nas ações ambientais, na medida em que ele não estaria inserido no título
167 CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 134.
205
III do Código de Defesa do Consumidor, conforme determina o artigo 21 da Lei de
Ação Civil Pública.
Ora, é fato que, topologicamente falando, o artigo 6º, VIII, do CDC, não está
mesmo inserido no título III do Código do Consumidor. Contudo, tal interpretação,
pobre e literal, não pode de modo algum prevalecer à luz do teleologismo que exala
da norma.
Há de se ver que, evidentemente, o que o deseja o artigo 21 da Lei 7.347-85
é aplicar à defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, sejam
eles de que natureza forem, as benesses processuais ínsitas à defesa do
consumidor em juízo (vide, a propósito, a epígrafe do título III do CDC, que trata
justamente “da defesa do consumidor em juízo”), entre as quais está inserida,
naturalmente, nos termos expressos do artigo 6º, VIII, do CDC, “a facilitação da
defesa dos seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova”.
No âmbito trabalhista, aliás, não custa destacar mais uma vez a Súmula 66 da
1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, a dizer que
“diante do atual estágio de desenvolvimento do processo comum e da necessidade
de se conferir aplicabilidade à garantia constitucional da duração razoável do
processo, os artigos 769 e 889 da CLT comportam interpretação conforme a
Constituição Federal, permitindo a aplicação de normas processuais mais
adequadas à efetivação do direito. Aplicação dos princípios da instrumentalidade,
efetividade e não-retrocesso social”168.
Aceita, seja legal ou doutrinariamente, a incidência da inversão do ônus da
nas ações civis públicas de dimensão ambiental, resta assentar as condições
básicas do seu aproveitamento. Assim, para que o ônus da prova seja invertido, o
juiz deverá, segundo as regras ordinárias de experiências, tomar a alegação da
parte por verossímil ou enquadrá-la como hipossuficiente (artigo 6º, VIII, do CDC). É
de se discutir, nesse contexto, o que se deve entender por regras ordinárias de
experiências, verossimilhança e hipossuficiência.
Segundo o artigo 335 do CPC, em falta de normas jurídicas particulares, o juiz
aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que
ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado,
168 MONTESSO, José Cláudio, STERN, Maria de Fátima Coelho Borges; ELY, Leonardo (coords). 1ª jornada de direito material e processual na Justiça do Trabalho: enunciados aprovados. São Paulo: LTr, 2008, p. 45.
206
quanto a esta, o exame pericial. Este preceito não passa da tradução legal da antiga
parêmia de que o ordinário se presume e o extraordinário se comprova.
As regras da experiência comum povoam a cabeça do julgador, que, com o
correr dos tempos, estribado na sua experiência pessoal e profissional, adquire uma
percepção bastante sensível e apurada da maneira como os fatos do cotidiano se
desenrolam.
Já as regras da experiência técnica, muito embora a rigor não se insiram no
universo cognitivo do julgador, geralmente formado tão-somente em direito, podem
ser apreendidas pela repetição de casos corriqueiros, ressalvada, sempre, a
colaboração de um perito da área debatida, cuja atividade será imprescindível para
que a causa seja adequadamente solucionada. Sintetizando, quando a matéria
depender de prova técnica, o fundamental para o desate do imbróglio será a
realização de perícia, podendo as máximas da experiência técnica apreendidas pelo
magistrado no exercício da sua profissão serem utilizadas concomitantemente, até
mesmo para fins de inversão do ônus da prova.
De sua vez, a verossimilhança deve considerar, dentre outros requisitos: a) o
valor do bem jurídico ameaçado de lesão; b) a dificuldade de se provar a alegação;
c) a credibilidade, de acordo com as regras de experiência, da alegação169.
Por óbvio, a verossimilhança não deve se assentar em um juízo absoluto de
verdade, até porque este é impossível de ser alcançado na sua máxima
complexidade, ainda que em procedimento de cognição exauriente. Aliás, se a
verossimilhança é um elemento de inversão do ônus da prova, é porque ela não se
mostra plena enquanto critério de verdade. Deve provir, portanto, da confiabilidade
da argüição, lastreada, no mais das vezes, nas máximas da experiência,
subministradas pelo que ordinariamente acontece.
A hipossuficiência, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não se
trata de um conceito propriamente econômico, sendo relativo, no contexto
probatório, à fragilidade probante daquele a quem incumbiria, a princípio, dar a
prova em juízo.
É o que sói acontecer, por exemplo, nas ações civis públicas ambientais,
nelas inseridas, obviamente, as de compleição trabalhista, em que o possível
poluidor, via de regra, possui condições técnicas muito mais vigorosas para dar a
169 Ver, em tal sentido, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil: comentado artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 271.
207
prova em juízo. Justamente por isso é que, por exemplo, o artigo 12, § 1º, parte
inicial, do Código Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-América, estabelece,
enfaticamente, que “o ônus da prova incumbe à parte que detiver conhecimentos
técnicos ou informações específicas sobre os fatos, ou maior facilidade para a sua
demonstração”170.
Não se pode fechar os olhos, entretanto, para o fato de que não raro a
hipossuficiência econômica afetará a capacidade comprobatória do agente, que
reprimido pelas vicissitudes financeiras, nem sempre possuirá condições de carrear
a juízo um acervo consistente de provas, como, principalmente, no caso dos
sindicatos que ajuízam ações civis públicas em prol da categoria profissional que
representam.
4.3 UTILIZAÇÃO DE ELEMENTOS ESTATÍSTICOS COMO MEIO
PROBATÓRIO
No pertinente às provas nas ações civis públicas, uma questão pouco ou
quase nada sedimentada doutrinária e jurisprudencialmente, merece especial
destaque. Cuida-se da possibilidade de utilização de dados estatísticos como
mecanismo probatório.
O assunto não passou desapercebido pelo Código Modelo de Processos
Coletivos para a Ibero-América, que dispõe, no seu artigo 12, caput, parte final,
serem “admissíveis em juízo todos os meios de prova, desde que obtidos por meios
lícitos, incluindo a prova estatística ou por amostragem”171.
Não é necessário dizer que o mencionado modelo é destituído de
coercibilidade, servindo, meramente, de diretiva aos países da Ibero-América para o
aperfeiçoamento das suas respectivas legislações processuais coletivas internas. A
grande indagação a ser respondida, assim, é se a sua lógica pode ser utilizada
dentro do vigente sistema brasileiro de ações coletivas.
170 Conferir, a propósito, GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (cords). Direito Processual Coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 426 a 432. 171 Conferir, mais uma vez, GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (cords). Direito Processual Coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 426 a 432.
208
Não existem maiores manifestações jurisprudenciais sobre o assunto, que,
apesar disso, já chegou a ser analisado com profundidade no âmbito do Tribunal
Regional do Trabalho da 10ª Região (Distrito Federal e Tocantins).
Tratava-se, na hipótese, de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério
Público do Trabalho em face do HSBC Bank Brasil S.A., na qual era asseverado que
o requerido estaria a desenvolver uma prática discriminatória contra negros,
mulheres e idosos, postulando, diante do quadro fático descrito, que a Justiça do
Trabalho expedisse mandamento dirigido ao vindicado, a fim de ordenar a cessação
da discriminação contra as mulheres (ascensão funcional e remuneração), contra os
negros (admissão, ascensão funcional e remuneração) e contra as pessoas maiores
de quarenta anos (admissão) sob pena de multa diária de R$100.000,00 (cem mil
reais), pugnando, ademais, pela condenação do réu ao pagamento de
R$30.000.000,00 (trinta milhões de reais) por danos morais coletivos.
Como prova das suas assertivas, o Ministério Público do Trabalho carreou
para os autos informações requisitadas e prestadas pelo próprio banco vindicado, as
quais versavam sobre o número de bancários - agrupados por gênero, raça e idade -
mantido pela entidade bancária no Distrito Federal, tendo trabalhado os aludidos
dados em consonância com a metodologia estatística utilizada nos meios
acadêmicos, bem como pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Analisando o tema em primeira instância, o Juiz Alexandre Nery de Oliveira,
atuando na titularidade da 12ª Vara do Trabalho de Brasília, rejeitou, já em seara
liminar, a possibilidade da utilização dos dados estatísticos para a prova dos fatos
aviventados. Colhe-se, a propósito, a essência dos seus fundamentos decisórios:
A exordial, em longa fundamentação, apresenta quadros
estatísticos que aponta como demonstrativos da realidade fática na qual mulheres, negros e pessoas de idade seriam discriminadas porque preencheriam menos vagas ou receberiam valores menores que homens, brancos e jovens empregados do banco, ora Réu.
(...) Com a devida vênia, contudo, a investigação judicial não se
pode basear apenas em números frios que retratam uma realidade cruel da sociedade brasileira, mas necessariamente numa conduta patronal discriminatória e em desacordo com os preceitos fundamentais contidos na Constituição de 1988.
Nisso, com a devida vênia, a estatística fria não retrata o necessário, já que os números acusam uma conduta que pode não estar a ocorrer.
209
Não há a necessária discriminação na admissão pelo mero fato de os quadros funcionais da empresa apresentarem maior número de homens que de mulheres, de brancos que de negros, de jovens que de pessoas em idade mais avançada, porque tais números não são suficientes a demonstrar a existência de conduta discriminatória.
(...) Por isso, não vislumbro o alegado fumus boni iuris.172
Posteriormente, quando da prolatação da sentença, a decisão se manteve na
mesma sintonia, fato que obrigou o parquet laboral a objurgá-la ordinariamente.
Interposto o apelo, o imbróglio foi reexaminado pela 1ª Turma do Tribunal Regional
do Trabalho da 10ª Região, sob a relatoria da Desembargadora Elaine Machado
Vasconcelos, que, em um voto magnífico, rechaçou por completo o ponto de vista do
juízo de piso. Vale extrair, no que importa para o estudo que vem sendo
desenvolvido, os seguintes excertos do longo e substancioso voto em questão:
DA PROVA NO PROCESSO COLETIVO. DO EQUÍVOCO DA
APLICAÇÃO DOS PREMISSAS DO DISSÍDIO INDIVIDUAL. A tendência mundial da coletivização dos processos encontra na problemática da prova uma de suas grandes questiúnculas. Há resistências à adoção de meios probatórios às vezes completamente estranhos àqueles que os julgadores estão acostumados a lidar, impregnados que estão pelas regras do sistema do processo individual adotado pelos sistemas processuais ocidentais. (...)
(...) Em geral, as ações coletivas buscam combater atos ilícitos
(discriminações, coações, conluios, assédios, abusos de poder, desvios de finalidade, etc.), que são de difícil demonstração direta, pois, em geral, o infrator busca deliberadamente ocultar ou desconstituir qualquer elemento ou evidência capaz de caracterizar o descumprimento da lei. Prova documental nestas hipóteses é algo extremamente raro, sendo de difícil prova por meio de testemunhas. Nesta situação, cabe invocar a aplicação subsidiária do artigo 335 do CPC, que autoriza o juiz aplicar "as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial".
(...) A prática discriminatória é sutil, não deixa rastros evidentes e
tal como outras hipóteses admitidas pelo Direito, deve levar em consideração as presunções, os indícios. Não se lhe pode exigir provas cabais. Em sintonia com as premissas postas supra, em se tratando de discriminação - consciente ou inconsciente - a qual pode ser apreciada na forma do dispositivo processual mencionado,
172 12ª Vara do Trabalho de Brasília – DF, Autos do Processo nº 00936-2005-012-10-00-9, Decisão Liminar, Juiz Alexandre Nery de Oliveira, Disponível em http://tinyurl.com/3ratxsk. Acesso em 08.08.2011.
210
nenhum óbice se verifica no ordenamento jurídico brasileiro à adoção de dados estatísticos no processo coletivo como elementos válidos de prova. A estatística é reconhecida como ramo das ciências exatas, tanto que integra o rol de cursos das Universidades, formando profissionais qualificados. Embora muitos insistam em negar, o Direito é uma ciência multidisciplinar. Neste aspecto, não pode o intérprete privilegiar ou estabelecer graus de confiabilidade distintos para este ou aquele ramo da ciência.
(...) Concluo, portanto, que embora não tenha o Poder Judiciário o
hábito de adotar dados estatísticos como prova nos processos judiciais submetidos a seu julgamento, nenhum óbice há a esta utilização. (...)173
O fato concreto, no entanto, é que o mencionado voto, em que pese as suas
notáveis qualidades, acabou não prevalecendo na análise turmária definitiva. Ao fim
e ao cabo, saiu vitoriosa no julgamento a divergência inaugurada pelo revisor,
Desembargador Oswaldo Florêncio Neme Junior, cuja conclusão encontra-se
lavrada nos seguintes termos:
(...) Apesar de volumoso, impõe-se constatar que o processo
não contém evidências materiais capazes de comprovar, por parte da Ré, maiores dificuldades ou exigências para a contratação dos grupos tidos como discriminados pela inicial. Em conseqüência, não vejo como penalizar a empresa. Assim, acompanhei a Exma. Juíza Relatora quanto ao relatório, divergindo no mérito, a fim de manter inalterada a sentença de origem. Desse modo, neguei provimento ao recurso, sendo acompanhado pela maioria dos Juízes da Turma. CONCLUSÃO Pelo exposto, conheço dos recursos e, no mérito, nego-lhes provimento, nos termos da fundamentação.174
Antes de qualquer outra coisa, impõe-se esclarecer que o julgado analisado
transcende a pura e simples possibilidade da utilização de dados estatísticos como
elementos probatórios. Para além da prefalada matéria, o debate foi permeado por
uma série de aspectos ligados às políticas públicas inclusivas, dentre eles aqueles
alusivos ao papel jogado pelo Estado no tocante à formação educacional dos
cidadãos para o trabalho. Nada obstante, embora o tema seja deveras apaixonante,
o presente trabalho, por motivos óbvios, não se imiscuirá nos seus demais aspectos,
cingindo-se ao propósito de analisar a matéria probatório-estatística.
173 TRT da 10ª Região, Processo 00936-2005-012-10-00-9-RO, 1ª T., voto vencido, Des. Elaine Machado Vasconcelos, Disponível em: http://tinyurl.com/454h7c4. Acesso em: 09.08.2011. 174 TRT da 10ª Região, Processo 00936-2005-012-10-00-9-RO, 1ª T., voto vencedor, Des. Oswaldo Florêncio Neme Junior, Disponível em: http://tinyurl.com/454h7c4. Acesso em: 09.08.2011.
211
Neste diapasão, não se pode deixar de pontuar que o voto vencido, exarado
pela Desembargadora Elaine Machado Vasconcelos, carrega consigo elementos
mais do que adequados para a correta análise do problema, principalmente quando
alerta para o fato de que no âmbito das ações civis públicas onde se intentam
tutelas inibitórias ou de remoção do ilícito, o infrator não raro encobre ardilosamente
os elementos de evidência hábeis à demonstração do seu desprezo para com as
obrigações legais, tornando difícil, senão impossível, a demonstração cabal do ardil
perpetrado.
Em situações que tais, exigir do requerente a produção da chamada probatio
diabolica, seria o mesmo que sonegar-lhe o direito de acesso a uma ordem jurídica
justa. Nestas hipóteses, com efeito, estará mais do que justificada a utilização de
dados estatísticos para que a parte possa influir na formação do convencimento do
magistrado, mesmo porque o próprio processo individual, muito mais tímido em
matéria probatória, permite a este último, em ocasiões especiais, valer-se, com
lastro no artigo 335 do Código de Processo Civil, das regras de experiência comum
subministradas pela observação do que ordinariamente acontece.
Não custa rememorar, aliás, que o artigo 332 do Código de Processo Civil é
pródigo ao estatuir que todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos,
ainda que não tipificados na legislação, são hábeis para provar a verdade dos fatos.
O preceptivo em tela, como é palmar, se amolda justo à temática vertida, sendo
inelutável, a partir dos seus contornos, que os dados estatísticos podem e devem ser
utilizados, sempre que necessário, como elemento de convicção do juízo, ainda que
a legislação processual não disponha expressamente sobre o assunto.
No plano previdenciário, outrossim, a Lei 11.430-06 inseriu na Lei 8.213-91 o
artigo 21-A, no qual instituiu o chamado nexo técnico epidemiológico (NTEP), que,
calcado em uma simbiose estatística existente entre uma doença e a atividade
laboral desenvolvida, assevera que “a perícia médica do INSS considerará
caracterizada a natureza acidentária da incapacidade quando constatar nexo técnico
epidemiológico entre o trabalho e o agravo”.
Consoante se vê, a disposição legislativa enfocada iniludivelmente incorporou
ao universo jurídico uma nova modalidade probatória, nitidamente arrimada em
elementos estatísticos, demonstrando, a mais não poder, o quanto os dados de tal
natureza podem ser úteis para o acesso do segurado a uma ordem previdenciária
comprometida com a concretização dos direitos fundamentais.
212
Como não poderia ser diferente, o prefalado dispositivo vem sendo
largamente utilizado supletivamente pelos Juízes do Trabalho para a formação de
convencimento no âmbito das ações de indenização por danos materiais e morais
decorrentes de doenças ocupacionais, fato que demonstra, a mancheias, o quanto a
mencionada técnica processual pode ser útil no âmbito das ações civis públicas
ambientais trabalhistas.
5 AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL TRABALHISTA:
PARAMETRIZAÇÃO DECISÓRIA (ADSTRIÇÃO DA SENTENÇA AO PEDIDO?)
Quanto aos aspectos formais da decisão a ser prolatada no desfecho
cognitivo das ações civis públicas, inexistem elementos de relevo que mereçam
abordagem específica.
Com efeito, o que a presente dissertação propõe como conteúdo do presente
tópico, é o debate acerca da incidência, ou não, do princípio da adstrição da
sentença ao pedido no âmbito das mencionadas ações. Isto equivale a dizer, em
última instância, que o epicentro da discussão, doravante, centrar-se-á na questão
da parametrização decisória na jurisdição coletiva.
Nos domínios do processo de índole individual, tem vigorado, sobre a
temática, a lógica estampilhada nos artigos 128 e 460 do Código de Processo Civil,
que, basicamente, anunciam que o juiz decidirá a lide nos limites em que proposta,
não lhe sendo lícito proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da
pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do
que lhe foi demandado.
Ocorre, porém, que mesmo no plano da processualística individualizada, o
princípio da adstrição da sentença ao pedido, atualmente, já não passa de um
dogma em decadência, na medida em que, v.g., nos termos do artigo 461 do CPC,
na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o
juiz poderá tanto conceder a tutela específica, quanto o seu resultado prático
equivalente. Para ilustração do afirmado, transcreve-se um elucidativo fragmento da
obra do Professor Luiz Guilherme Marinoni:
Uma das grandes inovações dos arts. 84 do CDC e 461 do
CPC está na possibilidade de o juiz poder se desvincular do pedido,
213
podendo conceder a tutela solicitada ou um resultado prático equivalente, e, ainda, aplicar a medida executiva que lhe parecer necessária e idônea para a prestação da efetiva tutela jurisdicional.
Tal possibilidade vem expressa nos referidos artigos e decorre da tomada de consciência de que a efetiva tutela dos direitos depende da elasticidade do poder do juiz, eliminando a sua necessidade de adstrição ao pedido.
Assim, no caso de ação inibitória destinada a impedir a prática ou a repetição do ilícito (comissivo ou omissivo), ou mesmo a continuação de um agir ilícito, o juiz tem o poder de conceder o que foi pedido pelo autor, ou algo que, vindo em sua substituição, seja efetivo e proporcional, considerando-se os direitos do autor e do réu.
Por outro lado, o juiz pode determinar medida executiva diversa da requerida, seja a ação inibitória ou de remoção do ilícito. O seu poder, nesse caso, novamente deverá atender à regra da proporcionalidade.”175
Já no âmbito específico do Processo do Trabalho, vale notar que um dos seus
aspectos autonômicos mais marcantes, consoante adverte o processualista Wagner
Drdla Giglio, é justamente aquele chamado de princípio da ultrapetição, que permite
ao magistrado, em algumas hipóteses emblemáticas, conceder ao autor mais do que
o pleiteado. Por oportuno, reproduz-se um excerto da preleção do mencionado
jurista, na qual ele se reporta, diga-se de passagem, a juslaboralistas alienígenas de
nomeada:
Mariano Tissembaum, Nelson Nicoliello e Hélios Sarthou se
referem ao princípio da ultrapetição (cf., do último, Proposiciones,, Revista de Derecho Laboral, cit., p. 864). Eduardo Stafforini admite que alguns dos princípios do direito processual comum não se apliquem ao processo trabalhista, entre eles o de que o magistrado deve ater-se ao alegado e provado (Derecho procesal social, Ed. TEA, 1995, p. 34), o que vale a sancionar a ultrapetição, ou melhor, a extrapetição.
O direito positivo brasileiro já contém alguns preceitos autorizando que o julgador conceda mais que o pleiteado, ou coisa diversa daquela que foi pedida. E a jurisprudência vem acolhendo e ampliando as hipóteses de ultra e extrapetição.176
Percebe-se, pois, que mesmo no âmbito do processo individual,
principalmente naquele de natureza trabalhista, já existem válvulas de respiro hábeis
a libertar o magistrado do puritanismo liberal, que, tratando-o como mera bouche de
la loi, impõe-lhe o dever acrítico de se pautar pelos limites estritos do pedido
175 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 295, 296. 176 GIGLIO, Wagner Drdla. Op. cit. p. 69.
214
veiculado no libelo, ainda que eles não se mostrem aptos à satisfação da justiça do
caso concreto.
Se assim o é no âmbito da jurisdição individual, como muito maior razão o há
de ser na coletiva, onde deve ficar claro que a fixação da extensão da indenização
por dano patrimonial ou extrapatrimonial coletivo é ato exclusivo do magistrado, a
quem a sociedade delega a tarefa de pronunciar a última palavra sobre a
intensidade do agravo suportado.
E não poderia ser outro o direcionamento jurídico no Estado Democrático-
Ambiental de Direito, já que no caso das demandas por onde se postulam
indenizações por dano coletivo, embora existam vários legitimados ideológicos para
a propositura da ação, não podem os autores, ao contrário dos litigantes que
suportam abalo de natureza individual, dimensionar com exatidão a compensação
capaz de minorar os efeitos do injusto padecido pela coletividade, tarefa que assim
deve ser atribuída ao juiz, que após a condução do processo, a observância do
contraditório e a coleta e o sopesamento das provas, estará em melhores condições
de estabelecer um valor capaz de verdadeiramente satisfazer o interesse social na
preservação da ordem democrática.
Visto de outro modo, poder-se-ia dizer que se por um lado é permitido ao
cidadão, em regra, dispor dos seus interesses individuais, por outro não será jamais
consentido aos autores ideológicos das ações coletivas abrir mão, ainda que em
parte, de um direito irrenunciável da sociedade. Daí a importância de que a
magistratura, encarada como o último bastião institucional da soberania popular,
esteja disposta a transformar em realidade a promessa constitucional de construção
de uma sociedade livre, justa e solidária, na qual prevaleça, sobretudo, a dignidade
da pessoa humana.
Vale pontuar que a consagração de raciocínio diverso equivaleria ao
desferimento de golpe letal na inteligência do artigo 944, caput, do Código Civil, a
dizer que a indenização se mede pela extensão do dano.
Como é curial, o referido preceptivo consagra no plano legal aquilo que a
doutrina convencionou chamar pelo epíteto de restitutio in integrum, a advertir - com
o perdão da máxima acaciana -, que a indenização somente alcançará seu objetivo
se respeitar perfeita correlação com a extensão do dano provocado.
No âmbito coletivo, com efeito, todas as vezes em que houver palpável
desproporção deficitária entre o pedido original do legitimado para o ajuizamento da
215
ação civil pública, o comportamento do vindicado e a magnitude do dano, far-se-á
imperioso que o magistrado alargue o valor da condenação, sob pena de, em assim
não agindo, fazer tábula rasa da restitutio in integrum além de transformar sua toga
em inelutável instrumento de opressão social, principalmente quando a indenização,
por exemplo, verterá ao ressarcimento de dano moral suportado pela sociedade
difusamente considerada.
Tal possibilidade, que em perspectiva processual purista poderia soar
demasiado arrojada, se reveste de instransponível densidade quando os sentidos do
intérprete captam a importância do Poder Judiciário dar resposta adequada e firme
às situações de perplexidade que os limites adjetivos não conseguem contornar, de
modo a imprimir verdadeira concreção aos esquadros fundamentais que saltam da
Lei Maior, principalmente naqueles casos que estejam em jogo, por exemplo, fatos
correlatos às chamadas crises ambientais trabalhistas de dimensão desumanizante,
nos quais os escravagistas contemporâneos desbordam de todos os limites básicos
da civilidade, a ponto de se valerem da tortura física e psicológica para escravizarem
seus semelhantes, instaurando verdadeiro regime de barbárie nas suas
propriedades177.
6 AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL TRABALHISTA: COISA JULGADA
6.1 INTRODUÇÃO
Vale realçar, logo na abertura do presente tópico, que, coerentemente com a
abordagem desenvolvida nos itens anteriores, o escopo da presente dissertação não
é aqui o de elaborar um estudo exaustivo da coisa julgada, residindo o seu
desiderato na proposta de pontuar as suas principais nuances no interior da
jurisdição coletiva, servindo-se, como cenário da análise a ser empreendida, da
temática ambiental trabalhista.
A coisa julgada, como se sabe, nada mais é do que a eficácia preclusiva que
torna imutável e indiscutível a sentença não mais sujeita a recurso ordinário ou
177 Vale pesquisar, a respeito do tema, a sentença prolatada pelo responsável da presente pesquisa nos Autos da Ação Civil Pública nº 00177.2005.061.23.00-3 (disponível em http://tinyurl.com/3fv9dx6), na qual o Ministério Público do Trabalhou postulou uma indenização por danos morais coletivos de R$16.000,00 (dezesseis mil reais) e a condenação foi fixada em R$1.000.000,00 (um milhão de reais).
216
extraordinário (artigo 467 da CLT), sendo certo que, no âmbito individual, os seus
efeitos restringem-se às partes entre as quais é formada, não prejudicando ou
beneficiando, senão indiretamente, os terceiros, estando demarcados na aludida
perspectiva, portanto, os seus limites subjetivos (artigo 472 do CPC).
Já no interior da jurisdição coletiva, onde se busca a tutela de interesses
difusos, coletivos e/ou individuais homogêneos, o tratamento dos limites subjetivos
da coisa julgada se revela muito mais excitante intelectualmente falando. O assunto,
no caso, é regido pela dicção do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor,
vebis:
Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a
sentença fará coisa julgada: I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente
por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;
II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
§ 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe.
§ 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual.
§ 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.
§ 4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória.
Como é palmar, no âmbito da jurisdição individual, onde pelo menos no
campo da abstração a legitimação para a invocação da prestação jurisdicional
pertence ao titular potencial da pretensão tutelanda, a coisa julgada opera os seus
efeitos ainda que o julgado favoreça ou prejudique o vindicante, mesmo nos
contextos em que a sentença se baseie na escassez de provas.
217
Já na jurisdição coletiva, na qual a legitimação ativa é conferida a um ente
ideológico que, enquanto tal, não é o titular do interesse jurídico a ser protegido,
pode-se perfeitamente perceber, ainda que da análise perfunctória do retro transcrito
artigo 103 do CDC, que a coisa julgada, além de se espraiar, via de regra, para
muito além daqueles que formalmente digladiam como partes no processo, não se
mostra capaz de produzir os seus efeitos plenos no contexto da insuficiência
probatória.
Uma vez estabelecidas as balizas prévias acerca dos meandros subjetivos da
coisa julgada no âmbito do processo coletivo, os seus aspectos mais marcantes
serão doravante esmiuçados, a partir de uma abordagem ponto a ponto, que iniciar-
se-á pela ótica dos interesses difusos e coletivos, até chegar aos individuais
homogêneos.
6.2 OS INTERESSES DIFUSOS E OS COLETIVOS E A COISA JULGADA
AMBIENTAL TRABALHISTA
A coisa julgada nos interesses difusos e nos coletivos de sentido estrito, como
entrevisto ainda agora, está regulada pelos incisos I e II do caput do artigo 103 do
Código de Defesa do Consumidor, na medida em eles fazem remissão, nas suas
respectivas partes finais, para o parágrafo único, incisos I e II, do artigo 81 do
mesmo diploma legal.
Interesses difusos, consoante já estudado ao longo da presente pesquisa, são
aqueles transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas
indeterminadas, ligadas por circunstâncias de fato.
Coletivos, em vertente similar, são os interesses metaindividuais, não
fragmentáveis, com titularidade atribuível a grupo, categoria ou classe de pessoas,
ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica de base.
Apregoa o artigo 103, I, do Código de Defesa do Consumidor, que no caso
dos interesses difusos a sentença fará coisa julgada erga omnes, quando, então, os
seus efeitos serão oponíveis a todos.
De sua vez, o inciso II do mesmo dispositivo estabelece que quanto aos
interesses coletivos a decisão produzirá coisa julgada ultra partes, ou seja, para
além dos litigantes situados na polaridade ativa e passiva da ação, mas
limitadamente ao grupo, classe ou categoria titular do objeto tutelando.
218
Em ambas as situações, os anteditos preceitos ressalvam, expressamente,
que da coisa julgada não redundarão os prefalados efeitos erga omnes ou ultra
partes se o pedido for rejeitado por insuficiência de provas.
Ao contrário do que possa parecer de uma leitura mais açodada, a matéria
em questão não chega a ser demasiadamente complexa, muito embora, à toda
evidência, detenha no seu âmago elementos mais áridos do que aqueles pertinentes
à coisa julgada formada nos quadrantes da jurisdição singular.
O que os mencionados preceitos estão a dizer, em última análise, é que se os
pedidos forem acolhidos ou mesmo rejeitados por outro motivo que não a
insuficiência de provas, como no caso do réu, por exemplo, provar
convincentemente os motivos da sua absolvição, os demais legitimados ativos para
o ajuizamento da ação civil pública (artigo 5º da Lei 7.347-85) que não vieram nos
autos não poderão rediscuti-la.
Isto equivale a dizer, por vias transversas, que a coisa julgada transcenderá
os limites estreitos da causa, para, assim, estender os seus tentáculos às
coletividades que apesar de não terem participado formalmente da relação jurídica
processual, tiveram os seus interesses judicialmente defendidos pelo autor
ideologicamente legitimado para a condução autônoma do processo.
A exceção de tudo o quanto antes se disse, nos termos dos próprios incisos I
e II do artigo 103 do CDC, diz respeito à rejeição dos pleitos por insuficiência de
provas, já que neste caso a configuração dos prefalados efeitos erga omnes ou ultra
partes da coisa julgada coletiva restará inviabilizada, sendo lícito, pois, que qualquer
dos legitimados (artigo 5º da Lei 7.347-85), inclusive aquele que foi parte no
processo, intente outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se, para tanto, de
nova prova, entendendo-se, como tal, não apenas aquela surgida após o trânsito,
mas, também, como aquela que, embora já existindo ao tempo do processo anterior,
não foi utilizada a tempo e modo.
Ao fim e ao cabo, a coisa julgada no âmbito dos interesses difusos ou
coletivos de sentido estrito, como se percebe, configurar-se-á secundum eventum
probationis (segundo a sorte das provas) ou secundum eventum litis (segundo a
sorte da lide).
Isto equivale a dizer, que se houver prova suficientemente conclusiva,
consubstanciada em elementos concretos que respaldem o acolhimento ou a
219
rejeição do pedido, formar-se-á, no caso, a chamada coisa julgada erga omnes ou
ultra partes.
Já na hipótese da rejeição do pleito por escassez probatória, a coisa julgada
formada no âmbito da ação coletiva, embora seja inescondível modalidade de coisa
julgada material (já que resolverá o mérito da contenda), muito se assemelhará à
coisa julgada meramente formal, de modo a permitir a rediscussão do tema em um
outro processo.
6.2.1 O Transporte In Utilibus da Coisa Julgada Difusa e Coletiva para o
Âmbito Individual
De acordo com a inteligência da parte inicial do § 3º do artigo 103 do Código
de Defesa do consumidor, os efeitos da coisa julgada formada no âmbito das ações
em que foram debatidos interesses difusos ou coletivos de sentido estrito, não
inviabilizam o ajuizamento de ações individuais por danos pessoalmente sofridos.
Nada obstante, em consonância com a parte final do mencionado preceito
legal, o acolhimento do pleito ocorrido nas prefaladas ações alusivas aos interesses
difusos e coletivos de sentido estrito, possuirá a virtude de beneficiar as vítimas e os
seus sucessores singularmente considerados, que poderão proceder diretamente à
liquidação e à execução dos seus créditos, fazendo-o nos termos preconizados
pelos artigos 97 a 99 do Código de Defesa do Consumidor, independentemente,
pois, do ajuizamento de ação de cognição.
Cuida-se na aludida hipótese, consoante se pode visualizar sem maiores
transtornos, da transposição in utilibus do julgamento ocorrido no âmbito coletivo
para o plano individual simples, sendo esta, com efeito, uma prática adjetiva calcada
nos princípios da economia dos atos processuais e da máxima eficiência da tutela
jurisdicional.
No caso, a sentença prolatada no âmbito da ação coletiva versando sobre
interesses difusos e coletivos acabará por se impregnar da lógica do artigo 95 do
Código de Defesa do Consumidor, nela ficando inserida de antemão, por assim
dizer, a condenação genérica do réu ao ressarcimento do dano causado às vítimas
individualmente apanhadas.
Pense-se, exemplificativamente, em uma crise ambiental trabalhista de
dimensão desumanizante, oriunda da exposição de trabalhadores a condição
220
análoga à de escravos, a partir da qual o Ministério Público do Trabalho tenha
ajuizado uma ação civil pública, pugnando, dentro outros pleitos, pelo condenação
do réu ao pagamento de indenização à sociedade pelos danos morais de
transcendência difusa que lhe foram impostos.
Se ao analisar a sentença, o Juiz do Trabalho declarar a ocorrência da
servidão contemporânea, para, via de consequência, condenar o requerido a
indenizar a sociedade pela lesão moral coletiva experimentada, abertas estarão as
portas para que os trabalhadores escravizados possam requerer o transporte in
utilibus da res iudicata do âmbito coletivo para o individual.
Em uma situação que tal, os efeitos da economia processual serão tão
amplos, que os obreiros sequer necessitarão ajuizar uma ação cognitiva para
fazerem valer os seus direitos, sendo-lhes permitido a habilitação direta nos autos da
ação coletiva, onde pleitearão a liquidação por artigos da indenização por danos
morais e materiais a que fazem jus, com a subsequente execução direta dos seus
haveres.
Há de se ficar bem claro, no entanto, que o aludido transporte somente pode
ser operado in utilibus, já que o § 1º do artigo 103 do Código de Defesa do
Consumidor estabelece que os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I
(interesses difusos) e II (interesses coletivos) do multicitado artigo 103 do CDC não
prejudicarão os interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do
grupo, categoria ou classe.
Tal observação, muito ao contrário do que possa parecer à primeira vista,
revela-se de transcendental de importância. Pense-se em uma crise ambiental
trabalhista de dimensão físico-ergonômica, em função da qual determinado
sindicado venha a ajuizar uma ação civil pública em face de empresa à qual atribua
a manutenção de ambiente de trabalho insalubre, pleiteando, primeiramente, um
provimento declaratório da existência da insalubridade, para, ao depois, solicitar ao
juízo a imposição de obrigações de fazer aptas à neutralização dos agentes
insalubres detectados.
Suponha-se que tais pedidos venham a ser rejeitados por insuficiência de
prova. Em tal circunstância, como já exaustivamente visto, não haverá a formação
de coisa julgada ultra partes, razão pela qual qualquer outro legitimado, ou mesmo o
próprio sindicato, poderá ajuizar nova ação, fazendo-o com fulcro na dicção do
artigo 103, II, do Código de Defesa do Consumidor.
221
Imagine-se, porém, que tais pleitos venham a ser rejeitados por outro motivo
que não a escassez probatória, como no caso de eventual perícia concluir que no
ambiente, considerado na sua completude, não havia elementos globais de
insalubridade. Nesta última hipótese, a sentença, quando transitada, formará coisa
julgada ultra partes, inviabilizando, pois, o ajuizamento de nova ação coletiva (artigo
103, II, CDC).
Mas levando-se em conta que o transporte da res iudicata coletiva somente
se opera in utilibus para a esfera individual, nada obstará, e antes tudo
recomendará, que os trabalhadores, singularmente considerados, possam ajuizar
reclamações individuais para pleitearam o pagamento do adicional de insalubridade
que entendam fazer jus, alegando, por exemplo, que nos seus respectivos
microambientes de trabalho estavam expostos a ruídos acima dos decibéis mínimos
permitidos pelos regramentos de regência.
6.3 OS INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS E A COISA JULGADA
AMBIENTAL TRABALHISTA
A res iudicata nos direitos individuais homogêneos, consoante se sabe,
encontra-se regrada no inciso III do caput do artigo 103 do Código de Defesa do
Consumidor, que, no seu fragmento derradeiro, aponta para o parágrafo único,
inciso III, do artigo 81 do aludido documento normativo.
Tais interesses, como já visto alhures, são aqueles que, sem perder a nótula
da singularidade, possuem uma origem comum. Vê-se, pois, que muito ao contrário
dos difusos e coletivos, os interesses individuais homogêneos não são
transindividuais. Ainda assim, eles podem ser tutelados coletivamente, em função da
procedência conjunta que detêm.
Nesta perspectiva, o artigo 103, III, do Código de Defesa do Consumidor aduz
que relativamente aos interesses individuais homogêneos a sentença produzirá
coisa julgada erga omnes, restringindo-a, contudo, apenas à hipótese de
acolhimento do pedido.
Isto equivale a dizer que a res iudicata, no caso, somente poderá beneficiar
os titulares da pretensão individualizável, não podendo jamais prejudicá-los, ainda
que a rejeição do pedido no âmbito da jurisdição coletiva tenha se originado de outro
motivo que não a insuficiência de provas.
222
Pense-se, em termos ambientais trabalhistas práticos, na hipótese de uma
ação civil pública na qual se discutam interesses individuais homogêneos oriundos
da exposição dos trabalhadores a um suposto ambiente laboral periculoso (artigo
193 da CLT).
Em uma situação que tal, se a sentença acolher o pedido de pagamento de
adicional de periculosidade para os obreiros que labutam no aludido ambiente
periculoso, fixando genericamente, assim, a responsabilidade do réu (artigo 95 do
CDC), cada um dos interessados, singularmente considerados, poderá se habilitar
nos autos para, primeiramente, pugnar pela liquidação por artigos dos seus créditos,
promovendo, ao depois, a execução direta dos seus haveres (inteligência alargada
do artigo 100 do CDC), sendo lícito se cogitar, demais disso, da execução também
se desenvolver coletivamente (artigo 98 do CDC).
Muito ao contrário, se o pedido for rejeitado, pouco ou nada importando se por
motivo de insuficiência probatória ou não, incidirá à situação o vaticínio estampilhado
no § 2º do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor, a preconizar que os
interessados que não tiverem atuado no processo como litisconsortes (artigo 94 do
CDC) poderão ajuizar as suas respectivas ações a título individual.
Ao normatizar o tema nesta diretiva, o objetivo do legislador, obviamente, foi o
de proteger os substituídos da eventual desídia investigativa e probatória do
substituto processual178, sendo absolutamente digna de encômios a aludida opção
legislativa, principalmente no âmbito trabalhista, já que no Brasil, lamentavelmente,
ainda vigora o princípio da unicidade sindical (artigo 8º, II, da CRFB), fato que não
raro facilita a cooptação dos sindicatos de trabalhadores pelos setores empresariais,
colocando aqueles primeiros, enquanto entes legitimados para o ajuizamento de
ações civis públicas (artigo 8º, III, da CRFB), a serviços dos propósitos
inconfessáveis daqueles primeiros.
6.3.1 Existe Litispendência entre as Ações Coletivas versando sobre
Interesses Individuais Homogêneos e as Reclamações Individuais?
Sobre a pergunta que dá título ao presente tópico, existe farta jurisprudência
do Tribunal Superior do Trabalho a concluir que o ajuizamento pelo empregado de
178 Note-se que nos interesses individuais homogêneos, como já visto no momento apropriado, configura-se a substituição processual e não a legitimação autônoma para a condução do processo.
223
ação individual implica em litispendência com eventual ação proposta pelo sindicato
na qualidade de substituto processual, impondo-se, com efeito, a extinção da ação
singular sem resolução do mérito, ex vi do artigo 267, V, do Código de Processo
Civil.
Tomem-se, exemplificativamente, acerca do quanto afiançado, os seguintes
precedentes:
LITISPENDÊNCIA. AÇÃO COLETIVA EM QUE O
SINDICATO FIGURA COMO SUBSTITUTO PROCESSUAL. O entendimento atual e reiterado desta Corte é no sentido da caracterização de litispendência entre ação coletiva ajuizada pelo sindicato, na qualidade de substituto processual, e ação ajuizada individualmente pelo trabalhador, quando houver, entre as ações em curso, identidade da relação jurídica de direito material deduzida em ambos os processos (mesmo pedido e causa de pedir), como no caso dos autos. Embora não haja propriamente identidade entre as partes, trata-se de privilegiar a análise a respeito da identidade da titularidade do direito material perseguido. Precedentes. Ressalva do Relator. Recurso de embargos conhecido e não provido.179
RECURSO DE REVISTA - AÇÃO INDIVIDUAL -
LITISPENDÊNCIA - AÇÃO JUIZADA POR SINDICATO COMO SUBSTITUTO PROCESSUAL - CONFIGURAÇÃO - ORIENTAÇÃO DA SUBSEÇÃO 1 DA SEÇÃO ESPECIALIZADA EM DISSÍDIOS INDIVIDUAIS DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Conforme o entendimento sedimentado no âmbito da Subseção I da Seção Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, ressalvado o meu ponto de vista, configura-se a litispendência quando a ação coletiva, na qual figura o sindicato como substituto processual, e a ação individual, também em trâmite, têm em comum o pedido e a causa de pedir. Tal posicionamento tem como suporte a identidade material das partes, que, em processos distintos, almejam o mesmo efeito jurídico.180
Não sem antes realçar a respeitabilidade dos julgados reproduzidos, faz-se
necessário dizer que pelo menos aos olhos da presente dissertação, as decisões
em questão não parecem acertadas. Transcreve-se, como início de justificativa do
aludido ponto de vista, o 104 do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II do
parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações
179 TST, RR-41300-18.2008.5.22.0003, SEDI-1, unânime, rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, Disponível em: http://tinyurl.com/3e45cpe. Acesso em: 11.08.2011. 180 TST, RR - 129600-75.2005.5.01.0057, 1ª T., unânime, rel. Min. Vieira de Mello Filho, Disponível em: http://tinyurl.com/3dnr629. Acesso em: 30.08.2011.
224
individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.
Como se vê, o artigo 104 do CDC traça uma regra geral, no sentido de que
entre as ações coletivas e as individuais não existe litispendência. Nada obstante, se
o autor da ação individual, uma vez ciente da ação coletiva, não pleitear a
suspensão da ação que propôs no prazo de trinta dias, não poderá se beneficiar dos
efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes próprios às ações coletivas.
Não se olvida aqui que o artigo 104 do CDC, ao fazer remissão na sua
primeira parte tão-somente aos incisos I e II do artigo 81 do mesmo diploma
normativo, parece excluir da mencionada regra geral as ações onde são discutidos
direitos individuais homogêneos.
O Tribunal Superior do Trabalho, aliás, já se manifestou no mencionado
sentido, estribando o seu ponto de vista em doutrinadora de nomeada. Colaciona-se,
a propósito, a seguinte ementa:
LITISPENDÊNCIA - CONCOMITÂNCIA DE AÇÃO
INDIVIDUAL E COLETIVA COM O MESMO OBJETO. Conforme ensinamentos da Professora Ada Pelligrini Grinover, o art. 104 do CDC aplica-se exclusivamente a caso de concomitância de uma ação coletiva em defesa de interesses difusos ou coletivos, em cotejo com ações individuais. Apenas para essa hipótese a litispendência é excluída. Diferentemente ocorre entre ação coletiva em defesa de interesses individuais homogêneos e demandas individuais, quando a solução se faz pelo CPC. Recurso conhecido e provido.181
A questão, como se vê, é mesmo polêmica. Acredita-se, contudo, que não se
mostra razoável supor que o empregado possa ser impedido de litigar
individualmente, quando, por exemplo, não estiver satisfeito com a atuação do
sindicato na ação em que se discutem, sob o manto dos direitos individuais
homogêneos, os seus interesses pessoais.
É certo que o vindicante, em circunstâncias que tais, poderia atuar como
assistente litisconsorcial do substituto processual (artigo 94 do CDC c/c os artigos 50
e 54 do CPC), de modo a resguardar as suas conveniências pessoais. 181 TST, RR-59276/2002-900-09-00.9, 2ª T., rel. Min. Vantuil Abdala, DJ 9.2.2007. Citado no acórdão TST-RR-122800-06.2008.5.22.0004. Disponível em: http://tinyurl.com/3w3wcha. Acesso em: 11.08.2011.
225
Tal possibilidade, entrementes, geraria enormes contratempos processuais,
principalmente quando, insista-se, o titular do direito não estivesse satisfeito com a
conduta do sindicato ou mesmo do parquet.
É defensável, nesta perspectiva, o ponto de vista de que a interpretação do
Tribunal Superior do Trabalho, embora digna de respeito, acaba por incorrer em
inescondível afronta ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, XXXV,
da CRFB).
Vale sublinhar, aliás, que o próprio artigo 104 do Código de Defesa do
Consumidor, já na sua segunda parte, faz concreta remissão ao inciso III do artigo
103 do mesmo estatuto legal, que regulamenta, como já visto, os efeitos da coisa
julgada erga omnes em prol de todas as vítimas e sucessores na hipótese do inciso
III do parágrafo único do artigo 81 do CDC, que trata dos interesses ou direitos
individuais homogêneos.
Pode-se concluir, portanto, que embora o artigo 104 do Código de Defesa do
Consumidor veicule no seu bojo uma regra de extraordinária importância, a sua
redação está lamentavelmente vazada na forma de um enunciado legislativo dos
mais claudicantes.
Com efeito, uma interpretação do aludido preceptivo em conformidade com a
Constituição deverá obedecer a contornos ampliativos, para se entender que entre
as ações coletivas e as individuais não existirá jamais litispendência,
independentemente de na demanda coletiva estarem sendo discutidos interesses
difusos, coletivos ou individuais homogêneos.
A corroborar todo o asseverado, tem-se o escólio de Luiz Guilherme Marinoni:
(...) Há, evidentemente, na redação do dispositivo, nítido
equívoco nas remissões feitas aos incisos do parágrafo único do art. 81 e aos incisos do art. 103. Não obstante grande parcela da doutrina entenda que a remissão correta estaria contemplando apenas os incisos II e III do parágrafo único do art. 81 (e, por consequência, os incisos II e III do art. 103), parece ser mais adequado compreender que a remissão abrange os três incisos do art. 103, valendo, portanto, os efeitos ali descritos, para todas as espécies de ações coletivas.
O objetivo do artigo 104 é tornar possível o ajuizamento da ação individual mesmo que pendente ação coletiva para a tutela de direito difuso, coletivo e individual homogêneo e, ainda, o de deixar claro que a tutela coletiva não trará benefícios para aquele que não
226
requerer a suspensão do processo individual no prazo de trinta dias após obter a ciência do ajuizamento da ação coletiva.182
Felizmente, contudo, recente acórdão da e. 6ª Turma do Tribunal Superior do
Trabalho, datado de 15.06.2011, sinaliza para um realinhamento da jurisprudência
da máxima corte trabalhista brasileira sobre o tema. Reproduz-se, pela sua
relevância, a ementa do mencionado julgado:
RECURSO DE REVISTA. LITISPENDÊNCIA. ARTIGO 104
DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICABILIDADE AO PROCESSO DO TRABALHO. A coletivização das ações tem como resultado pronunciamento judicial com autoridade para solucionar lesões de direto que se repetem, de modo que tenha ele força suficiente para se estender aos direitos individuais homogêneos e coletivos, evitando, com isso, o entulhamento de processos que assoberbam os órgãos jurisdicionais. As ações coletivas têm a mesma natureza jurídica, quer sejam elas de origem trabalhista, quer sejam consumeristas. Deste modo, não há se falar em litispendência, na medida em que o autor apenas será abrangido pela coisa julgada, que se formará na decisão coletiva, se buscar a suspensão do seu processo individual, com o fim de receber os efeitos daquela ação, o que não consta no presente caso. Aplica-se, portanto, o art. 104 do CDC ao processo do trabalho, que assegura a propositura de ações individuais e coletivas sem caracterização de litispendência. Recurso de revista conhecido e desprovido.183
Percebe-se, de tal arte, que pelo menos uma das turmas do Tribunal Superior
do Trabalho, ao analisar a questão justamente pelo cotejo entre a ação coletiva
versando sobre interesses individuais homogêneos e a reclamação individual,
passou a esboçar um ponto de vista diferente sobre o assunto.
Este será, sem dúvida, um excelente pretexto para que a questão retorne à
Seção Especializada em Dissídios Individuais, por via do recurso conhecido como
embargos de divergência (artigo 894, II, da CLT), para que assim o Tribunal Superior
do Trabalho pacifique a questão adequadamente.
182 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: processo de conhecimento. Vol. 2. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 749. 183 TST, RR-216700-91.2006.5.02.002, 6ª T., unânime, rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, Disponível em: http://tinyurl.com/3ksamn3. Acesso em: 11.08.2011.
227
CAPÍTULO VI
OS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS E A TUTELA EFETIVA DOS INTERESSES AMBIENTAIS TRABALHISTAS
1 AS TUTELAS DE MÉRITO E O ACESSO A UMA ORDEM JURÍDICA EFICIENTE E AMBIENTALMENTE JUSTA
No contexto ambiental, seja ele natural ou artificial-laboral, pode-se dizer que
as tutelas de mérito objetivam, basicamente, combater o ilícito ou o dano.
Ao contrário do que se possa concluir a partir de uma leitura afoita dos artigos
186, 187 e 927 do Código Civil brasileiro, o ilícito, enquanto categoria jurídica
autônoma, não depende da ocorrência de um dano para se aperfeiçoar.
Como ilícito, nesta perspectiva, deve ser compreendida toda e qualquer
conduta que importe na violação do direito objetivo, ainda que dela não se extraía
um dano. Já este último, por sua vez, traduz-se na avaria, quer seja ela de ordem
patrimonial ou extrapatrimonial, suportada por alguém.
Com efeito, o que a tríade conjuntiva dos artigos 186, 187 e 927 do codex
comum está a alardear, não é nada além do que a verdade truística de que todo
aquele que por via de um ato ilícito causar dano a outrem, ficará obrigado a
indenizá-lo. Isto não implica em dizer, naturalmente, que a ocorrência do ilícito não
possa ser evitada ou removida judicialmente antes da consumação do prejuízo.
Tanto isso é verdade, que a Constituição da República dispõe,
expressamente, no seu artigo 5º, XXXV, que a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário ‘lesão’ ou ‘ameaça’ a direito.
Afinado no diapasão constitucional, não custa destacar, ademais, que o artigo
6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor dispõe - em um enunciado cuja lógica é
absolutamente aplicável supletivamente à proteção dos interesses ambientais - que
um dos direitos básicos do consumidor é justamente a efetiva ‘prevenção’ e
‘reparação’ de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.
Percebe-se a partir de tais vetores normativos, portanto, que nas idéias de
‘ameaça’ e de ‘prevenção’ estão inseridas as bases do combate ao ‘ilícito’, sendo
certo que nas noções de ‘lesão’ e ‘reparação’, outrossim, estão insertos os
228
fundamentos do ataque judicial ao ‘dano’. Nascem a partir daí, respectivamente, as
tutelas preventivas e as repressivas.
As preventivas dividem-se entre as tutelas inibitória e de remoção do ilícito. A
primeira, como o próprio nome sugere, propõe-se a impedir a consumação ou a
repetição de um ilícito. A segunda, por seu turno, possui o escopo de eliminar o
ilícito que, consumado, continua a gerar efeitos no tempo. O desiderato declarado de
ambas, consoante se pode intuir, é a obstaculização da concretização do dano.
Já as repressivas se fracionam, basicamente, nas tutelas ressarcitória na
forma específica e ressarcitória pelo equivalente monetário. A primeira, também
conhecida por tutela in natura, almeja a recomposição específica do bem da vida
lesionado. A segunda, chamada de tutela in pecunia, orienta-se pela simples
contrapartida correlata ao equivalente pecuniário do bem material ou imaterial
molestado.
Tudo isto equivale a dizer, em última análise, que o objeto das tutelas
inibitória, de remoção do ilícito e ressarcitória na forma específica reside na
imposição de uma obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa, sendo certo que
a tutela ressarcitória pelo equivalente monetário, por outro lado, tem o seu objeto
centrado na imputação de uma obrigação de dar quantia certa. Logo, as três
primeiras interligam-se com os provimentos processuais mandamentais184, enquanto
que a última correlaciona-se com os provimentos adjetivos de índole condenatória.
A indagação a ser respondida no interior aludido cenário, é aquela pertinente
à dúvida sobre qual das técnicas processuais antes descritas pode melhor tutelar o
bem ambiental e os interesses que dele defluem.
Para a construção de uma resposta satisfatória à pergunta, faz-se mister,
antes de tudo, que se discorra, ainda que brevemente, sobre a as peculiaridades
ambientais mais sensíveis. Vale recordar, no desvencilhamento da obrigação
proposta, daquilo que foi estudado no capítulo II da presente dissertação, mais
184 É necessário advertir-se que o Professor Marinoni, certamente uma das maiores autoridades brasileiras no assunto, compreende que a tutela de remoção do ilícito não seria modalidade de provimento mandamental, detendo, ao revés, natureza cognitiva executiva lato sensu. Reproduz-se, em tal sentido, um excerto do seu ensinamento, in MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória (individual e coletiva). 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 117, que permite entrever o seu ponto de vista: “Em todos esses casos, a tutela não é inibitória (mandamental), mas de remoção do ilícito (executiva).” Com a vênias de estilo, a presente dissertação discorda do seu magistério no específico. Ocorre que a determinação de remoção do lícito pode perfeitamente, em um primeiro momento, ser dirigida ao réu, quando, então, deterá inequívoca natureza mandamental. Acaso não implementado o conteúdo da ordem, o juiz poderá redirecionar o seu cumprimento a um terceiro que o faça às expensas do vindicado, quando, somente então, assumirá uma feição executiva lato sensu.
229
especificamente do quanto se falou acerca das vertentes prevencionista e
precaucional.
Como visto àquela altura, o dano ambiental, no mais das vezes, configura
uma lesão de difícil ou mesmo impossível reparação, que, traduzida para o universo
juslaboral, revela-se na ocorrência de acidentes de trabalho capazes de gerar
prejuízos irreversíveis à saúde dos trabalhadores, não raro subtraindo-lhes a própria
vida, sendo imprescindível, pois, que a ambiência laboral lhes ofereça condições
adequadas para a preservação da integridade física e psíquica.
Não é difícil concluir, com efeito, que em um Estado Democrático-Ambiental
de Direito as tutelas preventivas possuem inequívoca precedência ante as
repressivas. Dito de outro modo, pode-se assentar que as tutelas inibitória e de
remoção do ilícito devem ser privilegiadas, para que, em última instância, os danos
não ocorram.
Mas o que dizer se os danos não forem evitados, vindo, portanto, a se
consumar? Em uma hipótese que tal, evidentemente, a tutela ressarcitória na forma
específica deverá ser buscada, sempre que possível, em detrimento da ressarcitória
pelo equivalente monetário. Vale dizer, portanto, que será preferível reconstruir o
bem lesado, do que meramente indenizar o prejudicado pelo prejuízo. Em algumas
situações, ademais, será perfeitamente possível a cumulação dos dois intentos.
Ao fim e ao cabo, o que se quer dizer, processualisticamente falando, é que
os provimentos processuais mandamentais, por serem inequivocamente superiores
para a tutela adequada e efetiva dos interesses ambientais, são muito mais aptos
para garantirem, a quem de direito, o acesso a uma ordem jurídica eficiente e
ambientalmente justa.
Partindo deste pressuposto, a presente pesquisa, doravante, intentará
aprofundar o estudo sobre os provimentos em questão, fazendo, além disso, uma
análise mais detida das tutelas inibitória, de remoção do ilícito e ressarcitória na
forma específica.
2 OS PROVIMENTOS PROCESSUAIS MANDAMENTAIS
Sem desmerecer a importância de mecanismos extrajudiciais, tais como a
fiscalização por parte da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego e a
atuação do Ministério Público do Trabalho por meio de inquérito civil público ou na
230
pactuação de termos de ajuste de conduta, será imperioso discorrer-se de agora em
diante sobre a relevância dos provimentos mandamentais para a tutela do equilíbrio
ambiental trabalhista.
Antes de tudo, faz-se necessário esclarecer o que se deva entender pelos
provimentos mandamentais, diferenciando-os dos condenatórios. Para o
desvencilhar desta etapa, tem-se, abaixo, a lição de Luiz Guilherme Marinoni e
Sérgio Cruz Arenhart, tratando especificamente do instituto da sentença:
A sentença que ordena não é declaratória, constitutiva ou
condenatória. Como já foi demonstrado no item anterior, alguém poderia, no máximo, confundi-la com a sentença condenatória. Frise-se, no entanto, que a sentença condenatória parte do pressuposto de que o juiz não pode interferir na esfera jurídica do indivíduo, e assim ordenar para constrangê-lo a cumprir a sentença, justamente pela razão de que foi elaborada à luz de valores que não admitiam esta atividade, quando se pensava na tutela de direitos que podiam ser convertidos em pecúnia.
Se a sentença condenatória difere da declaratória por abrir oportunidade à execução forçada, a sentença mandamental delas se distancia por tutelar o direito do autor forçando o réu a adimplir a ordem do juiz. Na sentença mandamental há ordem, ou seja, imperium, e existe também coerção da vontade do réu; tais elementos não estão presentes no conceito de sentença condenatória, compreendida como sentença correlacionada com a execução forçada.185
Se na sentença mandamental há imperium suficiente para que o magistrado
interfira na esfera volitiva do indivíduo, compelindo-o, v.g., por meio da imposição de
astreintes e outros ao cumprimento específico de obrigações de fazer e não fazer
estabelecidas no seu interior (artigo 461, § 5º do CPC), parece claro que a tutela
desta natureza será o locus da mudança de mentalidade proposta na presente
pesquisa, já que por via dela os empregadores serão obrigados a tomar as medidas
de caráter inibitório ou de remoção do ilícito hábeis a transformar em realidade o
direito fundamental do cidadão-trabalhador ao equilíbrio ambiental trabalhista.
Tratando da importância da imposição judicial específica das obrigações de
fazer e não fazer para a consecução dos direitos e deveres ambientais, assim se
pronuncia Marcelo Abelha Rodrigues:
185 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 461.
231
(...) pode-se ainda afirmar, categoricamente, que, dentre as crises de cooperação, os deveres ambientas mais descumpridos são os que envolvem a prática de um fazer ou um não fazer. (...)
Tal conclusão resulta do fato de que um dos princípios do direito ambiental é o da participação ou solidariedade, expressamente inserido no art. 225 da CF/88, onde se lê que tanto o poder público quanto a coletividade tem o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Está aí, às escâncaras, a regra magna que impõe um dever positivo e outro negativo a toda coletividade em relação à proteção do equilíbrio ecológico. (...) Isso vem evidenciar que esse dever social precisa ser visto sob dois flancos distintos, um negativo e outro positivo: o primeiro na adoção de comportamentos sociais, personalíssimos, (...) de não praticar atos que possam ser ofensivos ao meio ambiente e a seus componentes; o segundo na adoção de comportamentos sociais que representem um facere, uma tomada de atitude, comissiva, mas que não se resuma apenas à esfera individual, ou seja, não preocupada apenas com o eu, mas com o todos.
(...) Acrescentando ao que foi dito acima os ingredientes da
essencialidade (à vida) e da instabilidade do equilíbrio ecológico, pode-se antever que todas as crises jurídicas ambientais referentes ao cumprimento de um dever de fazer e não fazer exigem não só uma solução rápida, mas também específica, no sentido de que a tutela jurisdicional a ser entregue à coletividade deve ser a mais próxima possível daquela que se teria com o cumprimento espontâneo do dever jurídico ambiental. A idéia precípua é que a tutela jurisdicional a ser entregue seja a mais coincidente possível com o resultado previsto pela norma ambiental. Enfim, se ela prevê um não fazer, então esta é a tutela que deve ser buscada; se, por outro lado, prevê um fazer, é este que deve ser adimplido.
(...) Trata-se, pois, de içar a tutela específica dos deveres
ambientais como um norte a ser perseguido e alcançado. Contrario sensu, é de se dizer que a não realização da tutela jurisdicional específica pode comprometer o direito fundamental à vida de todos os seres vivos.
(...) Dessarte, é de se dizer que nem sempre será possível a
obtenção da tutela específica, enfim, aquela originalmente prevista pelo legislador.
(...) Nesse particular, apenas subsidiariamente é que se deve
pensar na tutela reparatória do meio ambiente, ou seja, quando se mostre impossível a tutela específica idealizada pelo legislador. E, ainda assim, a reparação deve ser o mais próximo possível do resultado que se teria com a conduta esperada pelo legislador. Daí porque a reparação in natura é a tutela reparatória mais freqüente no direito ambiental. Seja por razões pedagógicas do poluidor e transgressor da norma ambiental, seja por razões de proteção do meio ambiente, sem dúvida, mais vale uma reparação in natura do que uma reparação pecuniária, porque, em última análise, sabe-se que o equilíbrio ambiental e o prejuízo causado às presentes e futuras gerações não encontra um valor que reflita com fidelidade a
232
perda ambiental, de forma que o dinheiro nunca paga o prejuízo causado pela degradação do equilíbrio ecológico. (...)
(...) Diante desse quadro, o papel do processo civil é o de
oferecer técnicas que atendam ao ideal de justiça ambiental. Devem ser técnicas que consigam ofertar a tutela específica no menor tempo possível e, apenas subsidiariamente, ofertar a tutela reparatória in natura, e, mais subsidiariamente ainda, a tutela reparatória in pecunia.186
Como se não bastasse tudo o quanto antes foi ponderado, vale destacar, já
por outra vertente, que os provimentos mandamentais carregam consigo uma
peculiaridade altamente útil para a proteção concreta dos direitos perseguidos em
juízo, mas que lamentavelmente tem sido pouco utilizada pelos magistrados, que
são os seus destinatários diretos.
Cuida-se da superação, de resto analisada no capítulo anterior, mas que vale
aqui ser retomada, do vetusto princípio da adstrição da sentença ao pedido (artigos
128 e 460 do CPC), já que diante dos pleitos de natureza mandamental o juiz pode
outorgar à parte, ex vi legis, tanto a ‘tutela específica’ quanto o seu ‘resultado prático
equivalente’ (artigo 461, caput, do CPC).
Com efeito, pode-se dizer187, exemplificativamente falando, que se um ente a
tanto legitimado pleitear em ação civil pública que o réu seja compelido a fornecer
protetores auriculares aos seus empregados, para assim resguardá-los dos ruídos
existentes no ambiente de trabalho, será perfeitamente possível que o magistrado, a
fim de imprimir uma solução mais eficiente para o caso, ordene ao empregador, em
sendo viável, a tomada das medidas necessárias para cessar a poluição sonora no
local, já que os protetores auriculares pouco amparam os trabalhadores contra os
ruídos acima dos limites permitidos na legislação de regência.
Em situações extremas, aliás, o julgador poderá, louvado no seu poder geral
de cautela, até mesmo interditar o estabelecimento pelo tempo necessário à
reparação determinada, obviamente que sem desobrigar o réu do pagamento de
salários (§ 6º do artigo 161 da CLT). 186 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo civil ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 57, 58, 59, 60. 187 Ressalte-se que as ideias alinhavadas a propósito do assunto ora enfocado foram construídas em outro texto da lavra do responsável pela presente dissertação. Conferir, em sendo necessário, CESÁRIO, João Humberto. A tutela processual mandamental como fator de promoção do equilíbrio ambiental trabalhista: um pequeno discurso sobre a lei, a ideologia, o direito e a justiça. In: CESÁRIO, João Humberto (org). Justiça do Trabalho e dignidade da pessoa humana: algumas relações do
233
E nem se objete que a providência cogitada no parágrafo anterior poderia
causar desemprego, sob o argumento de que em retaliação à decisão de interdição,
o empregador poderia dispensar todos os empregados beneficiados.
Decididamente não. Primeiramente pelo fato da ação possuir natureza
coletiva, com a legitimidade ativa pertencendo a um organismo ideológico, fato que,
per se, impede a exposição desnecessária dos empregados individualmente
considerados.
Demais disso, a dispensa coletiva por certo custaria caro ao empregador,
causando-lhe inomináveis tormentos, já que além dos enormes custos daí advindos,
a produção ficaria parada por um período ainda maior do que o determinado no
decreto de interdição, em virtude do tempo demandado para a contratação e o
treinamento dos novos empregados, sem que a infantil atitude retaliatória lhe exima
de promover as adequações ambientais ordenadas na decisão judicial.
Tudo isso não bastasse, há de se frisar que o magistrado possui à sua
disposição as mais notáveis ferramentas para garantir a eficácia da sua decisão, na
medida em que o § 5º do artigo 461 do Código de Processo Civil estabelece que
para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático
equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas
necessárias, ‘tais como’ a imposição de multa por tempo de atraso, busca e
apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de
atividade nociva, se necessário com a requisição de força policial.
Ao se valer da expressão ‘tais como’ no seu interior, o preceptivo examinado
deixa claro que as medidas elencadas não são exaustivas, nele existindo uma
cláusula aberta com suficiente dimensão para que o juiz possa, na defesa dos
valores constitucionais fundamentais - como aquele inserto no inciso I do artigo 7º da
CRFB, que garante aos trabalhadores a existência de uma relação de emprego
protegida contra a dispensa arbitrária -, até mesmo criar uma garantia de emprego
por determinado período, durante o qual o empregador somente poderá dispensar
seus empregados a partir da efetiva comprovação da existência de uma causa justa,
fundada em motivos econômicos, técnicos ou disciplinares188.
direito do trabalho com os direitos civil, ambiental, processual e eleitoral. São Paulo: Ltr, 2007, p.17 a 33. 188 Sublinhe-se que o autor que no exercício da magistratura já se utilizou desta solução com êxito. Conferir os autos do processo nº 00503.2007.061.23.00-4 (Disponível em http://tinyurl.com/45yebzo).
234
No caso, é de se redargüir, desde já, qualquer objeção lastreada em pretensa
ofensa ao princípio da reserva legal, fundada no argumento de que as garantias de
emprego somente podem ser instituídas por lei complementar (art. 7°, I, da CRFB).
Ocorre que na hipótese o juiz não legislará, haja vista que a partir do
permissivo do § 5º do artigo 461 do CPC estará apenas outorgando eficácia à
decisão exarada em um caso concreto, sem criar, assim, uma regra com
generalidade, abstração e impessoalidade suficientes para ser considerada como
fonte do direito.
3 EXEMPLOS PRÁTICOS DE USO DOS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS PARA A TUTELA DO EQUILÍBRIO AMBIENTAL TRABALHISTA
A presente dissertação, sem mover pela tola pretensão da exaustividade,
intentará, doravante, enumerar alguns exemplos práticos de como os provimentos
mandamentais podem ser utilizados na perspectiva da tutela inerente ao equilíbrio
ambiental trabalhista.
Para tanto discorrer-se-á, primeiramente, sobre a legislação que estabelece
as obrigações ambientais dos empregadores, não sem antes traçar uma pequena
digressão, para destacar que embora a aludida legislação exista, ela vem sendo
sistematicamente ignorada pelos juslaboralistas, fato que encontra explicação nos
paradigmas ideológicos alhures desmistificados, que impondo subrepticiamente os
cânones do pensamento jurídico liberal, conduz o jurista a imaginar, ainda que não
note, que a força-labor faz parte do fetiche capitalista do consumo, a ponto de ser
tratada como simples mercadoria, passível de ser comprada sem maiores pudores.
Pois bem. Estabelece a Consolidação das Leis do Trabalho, em seus artigos
154 a 201, toda uma série de regras de medicina e segurança do trabalho, que
partem da inspeção prévia, do embargo e da interdição do estabelecimento;
passando pelo processo de implantação da Comissão Interna de Prevenção de
Acidentes (CIPA); pelo fornecimento gratuito de equipamentos de proteção individual
(EPIs); pela obrigatoriedade da realização de exames médicos periódicos e nos
momentos específicos da admissão e da dispensa; pela observância de regras de
iluminação, ventilação e conforto térmico; pelos requisitos de segurança para o uso e
a manutenção de máquinas em geral, e especificamente de caldeiras, fornos e
recipientes sobre pressão; pelos procedimentos de eliminação ou neutralização da
235
insalubridade e pela forma de manuseio e transporte de material tóxico, até chegar
às regras de prevenção da fadiga189.
Assim é que os entes responsáveis pela defesa judicial dos interesses
difusos, coletivos e individuais homogêneos dos trabalhadores, poderão se valer do
remédio jurídico da ação civil pública para solicitar ao Juiz do Trabalho todos
aqueles provimentos mandamentais que sejam hábeis à promoção do respeito à
integridade ambiental trabalhista, sempre que o empregador se recusar a fazê-lo
espontaneamente ou pela via administrativa.
À guisa de exemplificação, são passíveis de veiculação em juízo visando a
criação de um meio ambiente de trabalho hígido, dentre outras, as seguintes
pretensões de natureza mandamental:
• para que sejam impostas ao empregador as condutas aptas à
inviabilização da consumação das crises ambientais trabalhistas de
dimensão desumanizante;
• para impedir o estabelecimento de iniciar suas atividades sem a prévia
inspeção e aprovação das instalações;
• para interditar estabelecimento, setor de serviço, máquina ou
equipamento, ou ainda embargar obra, em caso de grave e iminente risco
para a saúde e segurança do trabalhador;
• para que as máquinas sejam dotadas de dispositivo de partida e parada e
outros que se fizerem necessários para a prevenção de acidentes do
trabalho;
• para obrigar o empregador a tomar todas as medidas necessárias à
eliminação da insalubridade acaso existente no ambiente de trabalho, seja
ela decorrente de ruído, vibrações, contaminação do ar ou outros;
• para obrigar o empregador, baldados todos os esforços de eliminação
completa da insalubridade, a fornecer EPIs adequados ao risco e em
perfeito estado de conservação e funcionamento aos empregados;
189 Associado a essas regras da CLT existe ainda todo um manancial de modelos administrativos de promoção do equilíbrio ambiental trabalhista, a maioria deles criados a partir de Normas Regulamentares editadas pelo Ministério do Trabalho, como aquelas que determinam a implantação do Programas de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) e de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), bem como uma série de Convenções da Organização Internacional do Trabalho (como, v.g., as de n° 148, 155 e 170), que não serão tratados neste trabalho, em virtude dos seus estreitos limites de abordagem.
236
• para que o empregador realize exames médicos periódicos, onde possam
ser detectados indícios de contaminação por agentes tóxicos ou de
desenvolvimento de doenças ocupacionais, a fim de que sejam tomadas, a
tempo e modo, as medidas úteis à restauração da saúde do empregado;
• para proibir a realização de jornadas exaustivas, que iniludivelmente
aumentam a possibilidade de ocorrência de acidentes de trabalho;
• para que o mobiliário do estabelecimento seja ergonomicamente adaptado
às necessidades físicas dos trabalhadores;
• para que o tomador de serviços se exima de praticar quaisquer atos que
caracterizem o terror psicológico no trabalho.
Como visto, as possibilidades de uso da tutela mandamental na promoção da
higidez ambiental trabalhista são inesgotáveis, podendo ser utilizadas, sempre que
necessário, com responsabilidade e criatividade pelos sujeitos a tanto legitimados.
Com os olhos voltados para tal constatação, passa-se, na sequência, a
detalhar, na perspectiva do universo processual trabalhista, o uso das tutelas
inibitória, de remoção do ilícito e de ressarcimento na forma específica.
4 AS TUTELAS INIBITÓRIA, DE REMOÇÃO DO ILÍCITO E DE RESSARCIMENTO NA FORMA ESPECÍFICA: EXPRESSÕES MÁXIMAS DOS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS
Será de bom alvitre, doravante, a demonstração mais clara das
potencialidades das tutelas inibitória, de remoção do ilícito e de ressarcimento na
forma específica, encarando-as, desde já, como o centro da proteção jurídica no
Estado Democrático-Ambiental de Direito. Almejando bem cumprir o objetivo
delineado, será importante a retomada, agora com mais vagar, da diferenciação
entre as técnicas condenatória e mandamental.
A clássica técnica condenatória, bem conhecida de todos, correlaciona-se
com as obrigações de pagar quantia certa. Pode-se dizer, resumidamente, que ela
se conforma com a ocorrência de um dano, sendo a sua natureza, de tal arte,
eminentemente repressiva.
Logo, somente depois de o trabalhador suportar um prejuízo, seja ele de
índole contratual ou aquiliana, é que o direito entrará em ação, para, após uma
237
sentença de cognição, entregar-lhe o bem da vida, fazendo-o por via de um
complexo procedimento de satisfação por subrogação patrimonial, que não raro se
frustra no seu desiderato.
A técnica decisória mandamental, ao revés, possui o seu espírito calcado, via
de regra, na prevenção. Deste modo, todas as vezes em que um ilícito estiver em
vias de se ocorrer, o cidadão--trabalhador poderá invocar a proteção jurisdicional,
colimando, com isso, evitar a sua consumação. Além disso, se o ilícito vier a se
concretizar, o interessado poderá requerer a sua remoção, não esperando, portanto,
que o dano se materialize.
Na pior das hipóteses, enfim, os provimentos mandamentais intentarão a
recomposição in natura do bem danificado, não se compadecendo jamais, por assim
dizer, com o puro e simples ressarcimento pelo equivalente monetário.
Não custa realçar, ademais, que o cumprimento dos provimentos
mandamentais é imposto de modo contundente pelo juiz, que tem à sua disposição,
no artigo 461, § 5º do CPC, um eficientíssimo arsenal de medidas capazes de agir
sobre a vontade do réu, compelindo-o a cumprir o mandamento judicial imposto.
Desnecessário sublinhar, com efeito, que no Estado Democrático-Ambiental
de Direito as técnicas mandamentais devem preferir às condenatórias, na medida
em que mais aptas a afirmarem o fundamento axiológico central do
constitucionalismo brasileiro, estribado na plenitude da dignidade humana.
4.1 A TUTELA INIBITÓRIA
A tutela inibitória visa, a princípio, impedir a concretização de um ilícito.
Constata-se, assim, que o seu pressuposto não é a iminência da configuração de um
dano, mas a possibilidade da ocorrência de uma ação ou omissão contrária ao
direito.
Isto não quer dizer, sem embargo, que inexista espaço para a atuação da
tutela inibitória após a consumação do ilícito. Ocorre que se houver a perspectiva da
repetição do ato contrário ao direito, a tutela inibitória poderá ser invocada sem
qualquer problema pelo interessado.
Abordando a importância da tutela inibitória para a consagração dos
interesses não-patrimoniais, que têm no direito ao equilíbrio ambiental um exemplo
238
mais do que notável, transcreve-se, abaixo, o magistério de Luiz Guilherme
Marinoni: (...) Uma Constituição que se baseia na “dignidade da pessoa
humana” (art. 1º, III) e garante a inviolabilidade dos direitos de personalidade (art. 5º, X) e o direito de acesso à justiça diante de “ameaça de direito” (art. 5º, XXXV), exige a estruturação de uma tutela jurisdicional capaz de garantir de forma adequada e efetiva a inviolabilidade dos direitos não patrimoniais.
O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva – garantido pelo art. 5º, XXXV, da CF – obviamente corresponde, no direito não patrimonial, ao direito a uma tutela capaz de impedir a violação do direito. A ação inibitória, portanto, é absolutamente indispensável em um ordenamento que se funda na “dignidade da pessoa humana” e que se empenha em realmente garantir – e não apenas proclamar – a inviolabilidade dos direitos da personalidade.
Isso quer dizer que, se a propriedade pode ser protegida por meio de procedimentos especiais capazes de propiciar tutela preventiva, não há como negar igual formato aos direitos da personalidade, sob pena de desconsideração dos próprios valores constitucionais.190
Vale realçar que o objeto da ação inibitória preventiva pode ser positivo ou
negativo. No primeiro caso, quando consubstanciado nas obrigações de fazer ou de
entregar coisa. Já no segundo, quando arrimado em uma obrigação de não fazer.
Tem-se, acerca da índole positiva ou negativa da tutela em apreço, a lição de
Joaquim Felipe Spadoni:
A prevenção de violações de direito pode atuar tanto por meio
de ordens de cumprimento de obrigação de fazer ou de entrega de coisa, quanto de ordens de cumprimento de obrigação de não fazer, vislumbrando-se a existência, respectivamente, de uma inibitória positiva e de uma inibitória negativa.
Tal característica da tutela preventiva dependerá, basicamente, da espécie de obrigação que está sendo ameaçada de violação. Com efeito, os direitos vinculados às obrigações de não fazer são violados quando o devedor pratica o ato que estava proibido de praticar, quando faz o que não poderia ter feito. Já os direitos relacionado às obrigações de fazer e de entrega de coisa são, por sua vez, lesados quando o devedor não pratica o ato que deveria ter praticado.
Como o que pretende o autor da ação inibitória é impedir a futura ocorrência da violação do direito, traduzido pelo inadimplemento da obrigação (...) ter-se-á, em princípio, uma inibitória negativa, determinando um não fazer, quando se estiver diante de ameaça de atos comissivos, enquanto na presença da
190 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 82 e 83.
239
ameaça de um ato omissivo, ter-se-á uma inibitória positiva, determinando-se um fazer ou a entrega da coisa.191
Imagine-se, por exemplo, que determinado empregador esteja reiteradamente
descumprindo a sua obrigação legal, insculpida no artigo 166 da Consolidação das
Leis do Trabalho, de fornecer aos empregados, gratuitamente, equipamento de
proteção individual adequado ao risco, naquelas hipóteses em que as medidas de
ordem geral não ofereçam completa proteção contra os riscos de acidentes e danos
à saúde.
Em um contexto que tal, como visto, o tomador de serviços estará deixando
de praticar um ato que a tanto está obrigado. Abrir-se-á ensanchas, assim, à
possibilidade de obtenção judicial, por parte da coletividade interessada, da
chamada tutela inibitória positiva, pela qual o Juiz do Trabalho imporá ao réu a
obrigação de entregar aos trabalhadores os equipamentos de proteção individual
hábeis a proteger-lhes dos riscos ambientais trabalhistas.
Pense-se, por outra vertente, na situação em que uma empresa, agindo ao
arrepio no disposto no artigo 59 da Consolidação das Leis do Trabalho, esteja
continuadamente exigindo dos seus empregados horas suplementares além do
limite de duas diárias.
Há, no caso, um ilícito que se sucede no tempo, de modo a impedir, na
prática, a concretização de uma norma tuitiva da saúde do trabalhador. Com efeito,
ainda que não existindo notícias de que a sobrejornada esteja a causar um dano à
saúde dos obreiros, a simples notícia do ato contrário ao direito justificará, a
mancheias, a utilização da ação inibitória visando a reafirmação da tutela normativa
inadimplida.
Aliás, não custa rememorar, em conformidade com a natureza preventiva dos
provimentos mandamentais de conteúdo inibitório, que a maioria dos acidentes de
trabalho acontecem justamente nas ocasiões em que os empregados estão
submetidos a sobrelabor.
Diante de todo o exposto, não se pode chegar a outra conclusão, senão
àquela de que os legitimados para o exercício da jurisdição coletiva poderão ajuizar
ação civil pública, na qual o Juiz do Trabalho exarará um provimento capaz de
reafirmar, no plano jurisdicional, o cumprimento da disposição legal maltratada. Ter- 191 SPADONI, Joaquim Felipe. Ação inibitória: ação preventiva prevista no art. 461 do CPC. 2 ed. rev.
240
se-á, no caso, um exemplo palpável de obtenção da denominada tutela inibitória
negativa
Note-se, nos dois exemplos aviventados, que embora exaurido dia após dia, o
ilícito estava a se repetir no tempo. Deste modo, a utilização da tutela inibitória
justificou-se na desiderato de inviabilizar a reiteração da sua ocorrência.
4.2 TUTELA DE REMOÇÃO DO ILÍCITO
Circunstância marcadamente diferenciada é aquela onde o ilícito, embora
exaurido e sem a perspectiva de se repetir, perpetua os seus efeitos no tempo.
Abertas estarão as portas, em circunstâncias que tais, para a utilização da tutela de
remoção do ilícito.
Almejando bem diferenciar a tutela em questão daquela outra inibitória,
mostra-se pertinente a invocação, mais uma vez, do escólio de Luiz Guilherme
Marinoni, no qual se veiculam exemplos extraídos dos mais diversos ramos jurídicos,
inclusive do Direito Ambiental:
A tutela inibitória, como já foi dito, tem por fim prevenir o
ilícito. A inibitória visa a atuar sobre a vontade do réu, convencendo-o a praticar ou a não praticar um ato, para que o ilícito não se verifique, não se repita ou não prossiga.
Há hipóteses, porém, em que se verifica que não foi observado um fazer, ou um não fazer, e que é possível remover-se a situação de ilicitude mediante um ato próprio do juízo – com a ajuda dos auxiliares judiciários – ou determinando-se a um terceiro um fazer.
Se determinada obra foi construída em local proibido, a tutela que decreta sua destruição é de remoção do ilícito; o mesmo ocorre no caso da determinação do fechamento, mediante o auxílio, se necessário for, de força policial, da indústria que foi construída em local proibido pela legislação ambiental.
A tutela que determina a retirada do nome comercial que está estampado na fachada de uma determinada loja de comércio não visa a convencer o comerciante a parar de utilizar o nome, porém remove o ilícito. A tutela de apreensão da mercadoria que foi produzida em desrespeito a uma patente de invenção também elimina uma situação ilícita, não se destinando a convencer o réu a não voltar a produzir a mercadoria ou ainda a não colocá-la à venda ou a não vendê-la.
Se alguém tem o dever de instalar um determinado equipamento que objetiva prevenir danos ambientais, e a ação é voltada à instalação desse equipamento através de ato de terceiro, a
e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 76.
241
ação tem por escopo remover o ilícito, e não apenas convencer aquele que está cometendo o ilícito, a fazer.
(...) A tutela de remoção do ilícito diferencia-se da inibitória por remover ou eliminar o ilícito; a tutela inibitória, no caso do ilícito continuado, não remove ou elimina o ilícito, mas apenas visa a convencer o réu a cessar de praticá-lo.192
Imagine-se, em consonância com a preleção doutrinária anterior, o caso de
uma empresa construir o seu depósito de agrotóxicos contiguamente ao alojamento
dos trabalhadores, de tal modo que eles estejam expostos, durante os períodos de
sono, descanso e alimentação, à inalação dos respectivos resíduos químicos.
Configura-se, nesta situação, a existência de um ilícito trabalhista, que,
independentemente da geração imediata ou não de danos à saúde dos
trabalhadores, decididamente não pode persistir.
Observe-se que aqui não mais haverá uma conduta a ser inibida, na medida
em que o ilícito praticado se exauriu, não havendo a viabilidade da sua repetição,
sendo certo, entrementes, que os seus efeitos maléficos se perpetuam no tempo.
Assim é que o Juiz do Trabalho imperiosamente deferirá ao interessado a
tutela de remoção do ilícito, para determinar, por exemplo, que o empregador
transfira, em um prazo determinado, sob pena de multa, o armazenamento dos
agrotóxicos para outro lugar capaz de atender todos os requisitos de medicina e
segurança no trabalho.
Vale ressaltar, por importante, que se o mandamento não for observado pelo
réu a tempo e modo, poderá o magistrado, com fulcro na inteligência alargada do §
6º do artigo 461 do CPC, que inviabiliza a formação de coisa julgada sobre o meio
de satisfação da sentença inicialmente escolhido, redirecionar o cumprimento da
ordem para um terceiro às expensas do vindicado (artigos 633 e seguintes do CPC),
de modo que a tutela de remoção do ilícito, perdendo a sua natureza jurídica
mandamental, assumirá uma feição de conteúdo cognitivo executivo lato sensu.
4.3 TUTELA RESSARCITÓRIA NA FORMA ESPECÍFICA
Em um Estado Democrático-Ambiental de Direito, consoante já
exaustivamente demonstrado, as tutelas preventivas devem ser privilegiadas em
192 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória (individual e coletiva). 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 117.
242
detrimento das repressivas. Mas existem algumas situações, por suposto, nas quais
o dano não é evitado. Frutificam-se, nestes casos, as bases para a atuação da
jurisdição ressarcitória. A questão a saber, a partir de então, é em qual perspectiva
ela deverá ser subministrada.
Nos domínios do Direito Ambiental, também como visto, não há dúvidas de
que a reconstituição do bem da vida ultrajado, sempre que possível, será prioritária.
Entra em jogo para o atingimento do prefalado escopo, com efeito, a tutela
ressarcitória na forma específica, opondo-se, em um primeiro juízo de valor, à tutela
ressarcitória pelo equivalente monetário.
Lamentavelmente, no entanto, a tutela in natura nunca foi cultuada com a
necessária relevância na práxis forense. Tal fato, obviamente, tem explicação nos
paradigmas liberais já desmistificados, que vêem na tutela in pecunia a panacéia
capaz de remediar todos os males. Como já se disse, tudo pode ser adquirido no
universo capitalista, inclusive os bens imprescindíveis para a afirmação da dignidade
humana, como aqueles de índole ambiental.
Sem embargo, o fato é que o direito deveria assumir um compromisso mais
explícito para com a lógica inerente à tutela in natura. Sobreleva sublinhar, aliás, que
alguns ordenamentos jurídicos consagram a antedita ideia explicitamente, como é o
caso do direito argentino, que proclama, no artigo 1.083 do seu Código Civil, que “el
resarcimiento de daños consistirá en la reposición de las cosas a su estado anterior,
excepto si fuera imposible, en cuyo caso la indemnización se fijará en dinero (...)”193.
Uma vez alinhavado o breve intróito precedente, incumbe à presente
dissertação, de agora em diante, investigar mais aprofundadamente o real alcance
da tutela ressarcitória na forma específica. Reproduz-se, como primeiro elemento
necessário para o desvencilhamento da tarefa em questão, o escólio de Luiz
Guilherme Marinoni:
Se a tutela ressarcitória em pecúnia visa dar ao lesado o valor equivalente ao da diminuição patrimonial sofrida ou o valor equivalente ao do custo para a reparação do dano, ou ainda pode constituir uma resposta contra o dano acarretado ao um direito não-patrimonial, a tutela ressarcitória na forma específica é aquela que, em princípio, deve conferir ao lesado a situação que existiria caso o dano não houvesse ocorrido. (...) Não basta, em outras palavras, o restabelecimento da situação que era anterior ao dano. Como o bem protegido deve ser integralmente tutelado, é necessário que se
193 Disponível em http://tinyurl.com/3kehb48. Acesso em: 14.08.2011.
243
estabeleça uma situação equivalente àquela que existiria caso o dano não houvesse sido praticado.194
Pode-se assentar, com efeito, que a premissa central para a adequada
compreensão do tema, é aquela que está a preconizar que para a adequada
subministração da tutela ressarcitória na forma específica, será necessário que o
juízo a preste de modo a que seja estabelecida uma situação similar àquela que
reinaria caso o dano não tivesse jamais ocorrido.
O pressuposto em questão, indiscutivelmente, coloca em xeque a
possibilidade de reparação dos prejuízos extrapatrimoniais por via da tutela in
natura, na medida em que, pelo menos aparentemente, somente aqueles de
compleição patrimonial é que a tanto se prestariam. Apesar de embaraçoso, o
aludido ponto de vista pode ser contornado. Vale-se para a demonstração do
asseverado, vez mais, da lição de Luiz Guilherme Marinoni:
Por outro lado, é certo que, em alguns casos, não é possível
a reparação do dano in natura, embora seja possível a reparação do dano mediante um meio não pecuniário. Assim, por exemplo, no caso de lesão à honra, quando se pensa na publicação ou na transmissão da retificação. Parece, entretanto, que a reparação in natura e a reparação mediante um meio não pecuniário podem ser englobadas na noção de tutela ressarcitória na forma específica, compreendida como a tutela que objetiva estabelecer uma situação equivalente, ou mais perto equivalente àquela que existiria caso o dano não houvesse ocorrido, ou ainda como a tutela que visa a reparar o dano por um meio diferente do pecuniário.195
Pense-se, exemplificativamente, em uma crise ambiental trabalhista de
dimensão desumanizante, na qual a sociedade tenha sido obrigada a conviver, em
pleno século XXI, com a mácula aviltante da redução de trabalhadores a condição
análoga à de escravos, suportando, assim, iniludível dano moral coletivo de
disseminação transcendente.
Seria possível, em uma hipótese que tal, a incidência da tutela ressarcitória
na forma específica? Seria viável, perguntando-se de outro modo, o estabelecimento
de uma situação similar àquela que reinaria caso o dano não tivesse jamais
ocorrido?
194 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 426, 427. 195 MARINONI, Luiz Guilherme. Ibid. p. 427, 428.
244
As perguntas formuladas são, às escâncaras, de difícil enfrentamento. Um
início de resposta para elas pode ser buscado na dicção do artigo 13 da Lei 7.347-
85 (Lei de Ação Civil Pública), que, aparentemente, trabalha com a lógica da tutela
ressarcitória na forma específica, ao dizer que em havendo condenação em dinheiro
a indenização será revertida para um fundo, ‘sendo seus recursos destinados à
reconstituição dos bens lesados’.
O aludido ponto de vista, contudo, não é nada mais do que enganoso. Para a
comprovação deste vaticínio, afigura-se importante, novamente, a invocação do
magistério do professor Luiz Guilherme Marinoni:
O dano pode ser sancionado mediante a imposição do valor
equivalente ao custo para a reparação na forma específica. Desse modo, antes da reparação do dano, pode haver condenação ao pagamento do valor equivalente ao do custo do ressarcimento na forma específica. (...)
Entretanto, essa tutela não pode ser considerada na forma específica, pois confere ao autor apenas um valor em dinheiro capaz de permitir o estabelecimento da situação que existiria caso o dano não houvesse ocorrido. A tutela é ressarcitória pelo equivalente, pois visa a proporcionar a condição financeira capaz de permitir a reparação na forma específica. Na verdade, para a definição da tutela importa o resultado imediato proporcionado pelo processo, e não o destino dado à resposta jurisdicional, ou seja, à indenização em pecúnia.196
O escólio retro transcrito é primoroso e fala com vigor próprio. Ainda assim,
dele vale destacar o fragmento que esclarece, sem margem para dúvidas, que “para
a definição da tutela importa o resultado imediato proporcionado pelo processo, e
não o destino dado à resposta jurisdicional, ou seja, à indenização em pecúnia”.
Isto deixa claro, de uma vez por todas, que o simples fato de a parte final do
artigo 13 da Lei 7.347-85 ressalvar que o valor da indenização deverá ser revertido,
futuramente, para a ‘reconstituição dos bens lesados’, não possui o condão de
transformar a condenação, imantada de nítida compleição pecuniária, em um
provimento mandamental.
Aliás, o simples fato de o juízo ‘condenar’ e não ‘ordenar’, impondo ao réu, à
toda evidência, um obrigação de dar e não uma obrigação de fazer, demonstra, a
mais não poder, que, no caso, se está diante de mera tutela ressarcitória pelo
equivalente monetário.
196 MARINONI, Luiz Guilherme. Ibid. p. 433.
245
Como se vê, continua ainda em aberto, a pergunta que deseja saber se no
âmbito das crises ambientais trabalhistas de natureza desumanizante, nas quais
reste configurado o dano moral coletivo, será possível a obtenção da tutela
ressarcitória na forma específica.
Uma resposta mais definitiva para o tema deve ser construída a partir da
análise do artigo 3º da Lei 7.347-85, quando diz que a ação civil pública poderá ter
por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de uma obrigação de fazer
ou não fazer.
Naturalmente, levando em conta a classificação quinária das ações
cognitivas, quando o objeto da ação coletiva for dinheiro (obrigação de dar), ela será
de natureza jurídica condenatória, dando lastro à configuração da tutela ressarcitória
pelo equivalente monetário.
Outrossim, quando o seu objeto residir em um fazer ou um não fazer, a sua
natureza jurídica será mandamental, rendendo azo ao aparecimento de uma tutela
inibitória, de remoção do ilícito ou ressarcitória na forma específica.
Com efeito, se o legitimado autônomo para a condução do processo coletivo
postular, por exemplo, que no caso das crises ambientais trabalhistas de dimensão
desumanizante oriundas da redução de trabalhadores a condição análoga à de
escravos, o réu seja diretamente compelido a construir escolas, bibliotecas, postos
médicos, postos odontológicos ou creches para ressarcir a sociedade, estar-se-á no
caso, iniludivelmente, diante de uma pretensão de cunho ressarcitório na forma
específica.
Para a boa compreensão do exemplo aviado no parágrafo anterior, fazem-se
necessárias duas breves digressões.
Há de se ver, primeiramente, que se por um lado é certo que a imposição de
uma determinação de tal jaez não restabelecerá uma situação similar àquela que
existiria no caso de que o dano jamais tivesse se consumado, por outro não é menos
correto assentar que tal fator, per se, será incapaz de subtrair do provimento
colimado a natureza ora discutida, pois, como visto mais atrás, a reparação obtida
por via de um mecanismo não pecuniário, engloba-se, perfeitamente, no desiderato
da tutela ressarcitória na forma específica.
Tal fato demonstra, sem margem para questionamentos, que também no caso
dos danos extrapatrimoniais, a proteção in natura possui papel destacado na
recomposição dos bens afetados. Associando-se aos exemplos retro transcritos,
246
pertinentes à construção de benfeitorias sociais pelo réu, pode-se cogitar, ainda, de
se postular que a sentença seja publicada em veículos de comunicação de grande
circulação, de modo que a sociedade tenha a mais ampla ciência de que o Estado-
juiz, no caso concreto, reconheceu o dano moral coletivo que o escravagista lhe
impingiu.
Uma outra possível objeção sobre a qual se deve digredir desde já, diz
respeito à conveniência de se impor ao vindicado a obrigação de construir escolas,
postos de saúde e que tais. Muitos poderiam ponderar que a falta de uma política de
educação e de saúde, viabilizadora da renitência do trabalho escravo em pleno
século XXI, é de responsabilidade atribuível exclusivamente ao Estado, não sendo
razoável impor-se ao particular, de tal arte, o suprimento de uma deficiência pública.
O argumento, entretanto, não é dos melhores, pois, consoante visto no
primeiro capítulo da presente dissertação, já se vão longe as construções teóricas
que impunham aos organismos estatais a tarefa de serem os provedores únicos dos
direitos sociais.
Ocorre que um dos marcos distintivos do Estado Democrático-Ambiental de
Direito reside justamente no princípio da cooperação, que impõe não só ao aparelho
estatal, mas também aos entes privados, principalmente aos grandes
conglomerados econômicos, a obrigação de respeito aos direitos fundamentais de
terceiros.
Um exemplo marcante deste viés colaborativo, balizado na chamada eficácia
horizontal dos direitos fundamentais, tem morada justamente na problemática
ambiental, já que o artigo 225, caput, da Constituição da República, impõe ao poder
público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as
presentes e futuras gerações.
Dessarte, se os escravagistas se aproveitam da indigência humana que ainda
persiste em alguns bolsões de miséria existentes no país para escravizarem os seus
semelhantes, nada será mais natural do que a possibilidade de o Estado-juiz, na
perspectiva da tutela ressarcitória na forma específica, impor-lhes a obrigação de
construir escolas, creches, postos de saúde e congêneres197, que uma vez
197 Vale ressaltar que o autor da presente pesquisa, na sua atividade de Juiz do Trabalho, já se utilizou com êxito, em inúmeras ocasiões e nas mais variadas situações, do mencionado expediente, fazendo-o no exercício da titularidade da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia – MT. Conferir, a propósito, CESÁRIO, João Humberto. Um velho problema para uma nova justiça: alguns apontamentos sobre a experiência da Vara de São Félix do Araguaia no combate ao trabalho
247
absorvidas pelo Estado-administrador após implementadas, poderão colaborar para
a superação das condições sociais que proporcionam a perpetuação da servidão
contemporânea.
Tal solução, diga-se de passagem, deve ser vista prioritariamente quando
cotejada com a tutela ressarcitória pelo equivalente monetário prevista no artigo 13
da Lei 7.347-85. Para tanto basta ver, no caso trabalhista específico, que as
indenizações pecuniárias por danos morais coletivos têm sido revertidas, via de
regra, para o Fundo de Amparo ao Trabalhador, não se tendo grandes notícias de
que os montantes arrecadados estejam sendo direcionados pelo FAT para a
reconstituição dos bens no âmbito da própria coletividade molestada. Tem-se, dentro
do mencionado espírito, a Súmula nº 12 da 1ª Jornada de Direito Material e
Processual na Justiça do Trabalho:
AÇÕES CIVIS PÚBLICAS. TRABALHO ESCRAVO.
REVERSÃO DA CONDENAÇÃO ÀS COMUNIDADES LESADAS. Ações civis públicas em que se discute o tema do trabalho escravo. Existência de espaço para que o magistrado reverta os montantes condenatórios às comunidades diretamente lesadas, por via de benfeitorias sociais tais como a construção de escolas, postos de saúde e áreas de lazer. Prática que não malfere o artigo 13 da Lei 7.347/85, que deve ser interpretado à luz dos princípios constitucionais fundamentais, de modo a viabilizar a promoção de políticas públicas de inclusão dos que estão à margem, que sejam capazes de romper o círculo vicioso de alienação e opressão que conduz o trabalhador brasileiro a conviver com a mácula do labor degradante. Possibilidade de edificação de uma Justiça do Trabalho ainda mais democrática e despida de dogmas, na qual a responsabilidade para com a construção da sociedade livre, justa e solidária delineada na Constituição seja um compromisso palpável e inarredável.198
Acerca da preponderância da tutela in natura sobre tutela in pecunia no
âmbito dos interesses transindividuais, mostra-se pertinente trazer à tona,
novamente, a sempre valiosa preleção de Luiz Guilherme Marinoni, tocando,
justamente, na temática ambiental:
escravo. In: Revista da ANAMATRA, Brasília, Ano XVIII, nº 52, p. 64 a 67, 1º Semestre de 2007. Disponível em: http://tinyurl.com/5sdfmpl. Acesso em 15.08.2011. 198 MONTESSO, José Cláudio, STERN, Maria de Fátima Coelho Borges; ELY, Leonardo (coords). 1ª jornada de direito material e processual na Justiça do Trabalho: enunciados aprovados. São Paulo: LTr, 2008, p. 37. Registre-se, por oportuno, que a Súmula transcrita foi redigida e proposta pelo autor
248
Aliás, a prioridade do ressarcimento na forma específica (...) é imposição que decorre da própria natureza dos direitos e do direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional. De modo que, (...), ao lesado sempre deveria se dar a opção do ressarcimento na forma específica, a qual, em relação aos direitos transindividuais, nem mesmo constitui opção, mas sim obrigação, pois o legitimado à sua tutela não pode preferir dinheiro no lugar da reparação in natura.
(...) Além disso, no caso de danos a direitos transindividuais, o
legitimado coletivo não pode simplesmente optar entre o ressarcimento na forma específica e o ressarcimento em dinheiro. É que, se o direito é transindividual, como o direito ao meio ambiente, é lógico que o legitimado coletivo não pode abrir mão do ressarcimento na forma específica – que, no caso de direito ao meio ambiente, conserva o bem para as presentes e futuras gerações – em troco de pagamento em dinheiro.199
Relativamente aos bens difusos e coletivos, portanto, não há espaço para
maiores barganhas, na medida em que como muito bem fundamentado nos excertos
doutrinários antes transcritos, o legitimado para a condução autônoma do processo
possui a obrigação de perseguir, sempre que possível, a tutela ressarcitória na forma
específica, não se contentando, pois, com a tutela ressarcitória pelo equivalente
monetário.
5 URGÊNCIA DAS TUTELAS E TÉCNICA DAS TUTELAS DE URGÊNCIA
5.1 INTRODUÇÃO
O bem ambiental, qualquer que seja a sua natureza, detém um equilíbrio
absolutamente frágil e instável. A sua degradação, demais disso, revela-se capaz de
gerar danos irreparáveis ou de dificílima reparação. Em um contexto deste naipe,
manifesta-se como verdadeiro truísmo a necessidade de que as tutelas ambientais
sejam satisfeitas com urgência.
Preconiza o artigo 12 da Lei de Ação Civil Pública que o Juiz poderá conceder
mandado liminar com ou sem justificação prévia. Está inserida no mencionado
preceito, consoante se percebe, a base primeira para a concessão meritual das
tutelas de urgência no âmbito do processo coletivo.
da presente dissertação à 1ª Jornada, sendo um dos dois únicos verbetes aprovados à unanimidade durante o evento. 199 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 426, 428, 429.
249
Tal preceito, entrementes, mostra-se um tanto lacunoso. Faz-se necessária,
de tal arte, a sua colmatação. Para o desvencilhamento da tarefa em questão, os
juristas têm à disposição, no âmbito satisfativo, que é aquele que de perto interessa
à abordagem do presente trabalho, as técnicas processuais insertas nos artigos 273
e 461, § 3º, do Código de Processo Civil.
No interior do artigo 273 do CPC estão descritas as bases da antecipação
dos efeitos da tutela das obrigações de dar. De sua vez, no § 3º do artigo 461 do
CPC encontram-se descritos os motivos que determinam a antecipação da tutela
das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa.
Percebe-se, pois, que as técnicas diretamente correlacionadas com o recorte
mandamental da presente pesquisa são aquelas insertas no § 3º do artigo 461 do
CPC. Ainda assim, a antecipação de tutela das obrigações de dar será brevemente
analisada, já que muitos dos seus aspectos serão úteis para a boa compreensão da
satisfação antecipada das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa.
5.2 ANTECIPAÇÃO DE TUTELA NAS OBRIGAÇÕES DE DAR
Muito ao contrário do que se possa imaginar, antecipar a tutela não é só
decidir antecipadamente. Aliás, o artigo 273 do Código de Processo Civil traz a
aludida mensagem muito claramente enfatizada no seu bojo, ao indicar que o objeto
da antecipação não é a decisão em si considerada, mas os ‘efeitos’ da tutela
pretendida no pedido inicial.
Antecipar a tutela, portanto, significa o mesmo que entregar a quem de direito,
antes do final do processo, a tempo e modo, o bem da vida perseguido em juízo.
Como condição para tanto, entrementes, faz-se necessária a presença de alguns
requisitos, que, relativamente às obrigação de dar, estão elencados no multicitado
artigo 273 do CPC, verbis:
Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar,
total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:
I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou
II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.
250
§ 1o Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento.
§ 2o Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.
§ 3o A efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4o e 5o, e 461-A.
§ 4o A tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão fundamentada.
§ 5o Concedida ou não a antecipação da tutela, prosseguirá o processo até final julgamento.
§ 6o A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso.
§ 7o Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.
Para uma análise mais acurada do tema, serão adiante analisados, tópico a
tópico, os pressupostos alusivos à concessão antecipada dos efeitos da tutela de
mérito nas obrigações de dar.
5.2.1 Concessão a Requerimento: Possibilidade da Antecipação de Ofício?
Pode-se perceber da simples leitura do artigo 273 do CPC, que o primeiro dos
requisitos para a antecipação da tutela seria a iniciativa postulatória do interessado,
na medida em que a parte inicial do caput do preceptivo enfocado aduz que o juiz
poderá, ‘a requerimento da parte’, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da
tutela pretendida no pedido.
Via de consequência, é de se entrever que o grande debate a ser enfrentado
no pertinente, é aquele que diz respeito à possibilidade de o juiz antecipar a tutela
de ofício. Mostra-se conveniente, a respeito do tema, trazer à tona o escólio de José
Roberto dos Santos Bedaque:
Seria admissível a antecipação de tutela de ofício? A resposta
genérica é negativa. (...) Não se podem excluir, todavia, situações excepcionais em
que o juiz verifique a necessidade da antecipação, diante do risco iminente de perecimento do direito cuja tutela é pleiteada e do qual existam provas suficientes da verossimilhança.
Nesses casos extremos, em que, apesar de presentes os requisitos legais, a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional não
251
é requerida pela parte, a atuação ex officio do juiz constitui o único meio de se preservar a utilidade do resultado do processo.
Nessa medida, afastar taxativamente a possibilidade de iniciativa judicial no tocante à tutela antecipatória pode levar a soluções injustas.
A aceitação do poder oficial no tocante à antecipação dos efeitos da tutela, ainda que excepcional, não viola o princípio dispositivo, pois o juiz estará proferindo decisão judicial nos limites do pedido.200
Falando especificamente sobre o Processo do Trabalho, assim se pronuncia
Carlos Henrique Bezerra Leite:
Não obstante a literalidade do caput do artigo 273 do CPC,
parece-nos que no processo do trabalho é factível a antecipação de tutela de ofício pelo próprio juiz, independentemente de requerimento da parte. Ora, (...) se o juiz do trabalho está autorizado a promover a execução ex officio (CLT, art. 878), então não seria legalmente proibido ao juiz determinar , de ofício, a antecipação dos efeitos da tutela de mérito, desde que presentes os demais requisitos autorizadores (...).
No mesmo passo, pensamos que a hipótese prevista no inciso II do art. 273 do CPC, isto é, quando ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu, o juiz do trabalho também poderá determinar a antecipação dos efeitos da sentença de mérito, independentemente de requerimento do autor. Afinal, se a conduta do réu implica grave ofensa à administração da Justiça, cabe ao juiz coibir essa prática reprovável, máxime do processo do trabalho, tendo em vista que tais atos reprováveis do réu acabam comprometendo a vida e qualidade de vida do autor, via de regra credor de verba de natureza alimentícia e desempregado.201
Vê-se, portanto, que seja no Processo Civil ou no Processo do Trabalho, a
doutrina sinaliza para a possibilidade de o magistrado, independentemente de
requerimento explicito do interessado, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da
tutela de mérito, mormente naquelas situações excepcionais de evidente disparidade
de armas em que aflore o interesse social na boa subministração da justiça.
Como se não bastasse, há de se ver que no plano legal o artigo 4º da Lei
10.259-01, incidente à processualística comum e de inequívoca aplicação
subsidiaria ao Processo do Trabalho (artigo 769 da CLT), assevera que “o juiz
200 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização). 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 371, 372, 373. 201 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Op. cit. p. 482.
252
poderá, de ofício ou a requerimento das partes, deferir medidas cautelares no curso
do processo, para evitar dano de difícil reparação”.
Tal preceptivo legal merece interpretação ampliativa, realizada em
consonância com o vetor constitucional do acesso substancial e não apenas formal
à jurisdição, para se compreender que juiz no curso do processo está autorizado a
conceder de ofício toda e qualquer medida, seja ela cautelar ou satisfativa,
necessária para se evitar dano irreparável ou de difícil reparação.
Não se pode deixar de dizer, aliás, que a interpretação preconizada no
parágrafo anterior assume importância ainda maior quando contextualizada no
prisma dos interesses ambientais, onde o que se encontra em jogo é o bem-estar, a
saúde e até mesmo a vida das pessoas.
Pensar de modo contrário seria o mesmo que atribuir ao julgador, em pleno
Estado Democrático de Direito, o velho e aviltante papel de mera boche de la loi que
lhe destinava o Estado Liberal.
Como visto no capítulo III da presente dissertação, ademais, o magistrado
está autorizado, sempre que necessário, a conformar o procedimento às
necessidades do caso concreto, bastando, para tanto, que garanta aos litigantes o
contraditório e a ampla defesa.
Releva sublinhar, por fim, que sendo esta uma possibilidade excepcional, ela
deverá ser usada com muita parcimônia pelo julgador, até mesmo porque a
satisfação da antecipação da tutela das obrigações de dar observará o disposto
legislativamente para a execução provisória (artigo 273, § 3º, do CPC), incidindo à
hipótese, com efeito, a previsão contida no inciso I do artigo 475-O do CPC, a dizer
que o cumprimento do decidido corre por conta do exequente, que se obriga, caso a
decisão seja reformada, a reparar os danos que o devedor haja suportado.
5.2.2 Prova Inequívoca que Conduza à Verossimilhança da Alegação
Ainda de acordo com o caput do artigo 273 do Código de Processo Civil, o
segundo requisito para a antecipação dos efeitos da tutela de mérito é a existência
de prova inequívoca, capaz de convencer o magistrado da verossimilhança do
alegado pelo vindicante na petição inicial.
Prova inequívoca, muito ao contrário do que se possa imaginar
açodadamente, não é sinônimo de prova irrefutável. Tanto isso é verdade, que o § 4º
253
do artigo 273 estabelece que a tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada
a qualquer tempo em decisão fundamentada. Ora, se prova inequívoca fosse o
mesmo que prova irrefutável, não haveria margem, naturalmente, para a reversão do
decidido interlocutoriamente.
Como inequívoca, portanto, deve ser entendida a prova formalmente perfeita,
qualquer que seja a sua natureza, que no âmbito da cognição sumária convença o
juiz sobre a verossimilhança da causa de pedir aviventada na primígena.
Isto significa dizer, por vias transversas, que a antecipação de tutela é
concedida no âmbito do conhecimento não exauriente, com base em juízo de
probabilidade, que, de tal arte, prescinde do pressuposto da certeza.
Não custa dizer, aliás, que sequer o julgamento definitivo, praticado no âmbito
sentencial, se baliza pelo requisito da verdade categórica. Não seria a antecipação
de tutela, pois, que exigiria o requisito da completa superação da dúvida.
Para que sejam adequadamente parametrizados os elementos em análise,
afigura-se relevante a reprodução das palavras de Luiz Guilherme Marinoni, vazadas
em livro de abordagem específica:
A denominada prova inequívoca, capaz de convencer o juízo
da verossimilhança da alegação, somente pode ser entendida como a prova suficiente para o surgimento do verossímil, entendido como o não suficiente para a declaração da existência ou da inexistência do direito.
(...) Quando se fala em antecipação da tutela, pensa-se em uma
tutela que dever ser prestada em um tempo menor que aquele que será necessário para o término do procedimento. Como a principal responsável pelo gasto de tempo no processo é a produção da prova, admite-se que a tutela seja concedida antes que as provas requeridas pelas partes tenham sido produzidas (tutela antecipada). Neste sentido, afirma-se que a tutela é concedida com a postecipação da produção prova, ou com a postecipação do contraditório. Em casos como estes, prova inequívoca somente pode significar a prova formalmente perfeita, cujo tempo para produção não é incompatível com a imediatidade em que a tutela deve ser concedida.202
É ainda Importante trazer a lume a lição de Jorge Pinheiro Castelo,
igualmente construída em obra de abordagem específica, a demonstrar que os
conceitos prova inequívoca e verossimilhança da alegação devem ser analisados
202 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 7 ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 211, 212 e 213.
254
com óticas diferenciadas, a partir do nível de cognição, sumário ou exauriente, que
se desafia:
Não se pode tentar resolver problemas específicos de uma
técnica com soluções da outra, ainda que os conceitos tratados em ordem de generalidade sejam os mesmos.
Quando se está trabalhando com problemas e situações da tutela jurisdicional de urgência ou evidência deve-se raciocinar com a técnica da tutela sumária, ou seja, com vistas à efetividade e à eficiência necessária e adequadas à tutela da situação de emergência ou evidência.
O conceito geral proposto deve ser entendido dentro do contexto, da estrutura e do escopo da tutela jurisdicional sumária de urgência ou evidência.
Assim, quando se fala em prova inequívoca para a tutela jurisdicional sumária de urgência e evidência, quer-se dizer uma coisa (um determinado e específico sentido).
Quando se fala em prova inequívoca na estrutura de raciocínio da tutela jurisdicional ordinária, tem-se um significado totalmente diverso, ainda que o conceito geral seja o mesmo.
Tendo em visa que o contexto em que está inserida a expressão prova inequívoca do art. 273 do CPC inequivocamente diz respeito à tutela jurisdicional de urgência ou evidência, resta indubitável que se está falando de prova inequívoca própria à declaração de probabilidade ou própria à antecipação da tutela, em face da situação de urgência evidenciada.
(...) A prova inequívoca tratada pelo art. 273 do CPC é aquela
própria para se chegar à aferição inequívoca da probabilidade (ainda que em grau mínimo). Ou seja, para ainda que em grau mínimo, se concluir, pela prova produzida, que, mesmo que de forma mínima, existem mais motivos para que se conclua favoravelmente à afirmação do autor do que motivos contrários.203
Por fim, corroborando todo o raciocínio antes empreendido, tem-se o
magistério de José Roberto dos Santos Bedaque:
Exige o art. 273, caput, como requisito da antecipação da
tutela, a existência de prova inequívoca, suficiente para convencer o juiz da verossimilhança da alegação.
Afirmação verossímil versa fato com aparência de verdadeiro. Resulta do exame da matéria fática, cuja veracidade mostra-se provável ao julgador.
(...) Em qualquer das situações imaginadas, importa realmente
assinalar que a antecipação deve ser deferida toda vez que o pedido do autor venha acompanhado de elementos suficientes para torná-lo verossímil.
203 CASTELO. Jorge Pinheiro. Tutela antecipada: na teoria geral do processo. Vol. I. São Paulo: LTr, 1999, p. 291 e 292.
255
Mesmo que controvertidos os fatos, a expressão prova inequívoca não deve ser interpretada como prova suficiente para formar juízo de certeza. A tutela antecipatória encontra-se no campo da probabilidade.204
Deve-se de uma vez por todas ficar claro, com efeito, que a expressão prova
inequívoca não deve ser entendida como aquela que seja irrefutável em cognição
exauriente, mas como aquela que seja bastante em si mesma, no plano do
conhecimento sumário. Do mesmo modo, o termo verossimilhança da alegação não
deve ser compreendido como a expressão absoluta da verdade, mas como aquilo
que é manifestamente plausível a partir dos elementos coligidos nos autos.
5.2.3 Tutela de Urgência: Fundado Receio de Dano Irreparável ou de Difícil
Reparação
Dispõe o artigo 273, I, do Código de Processo Civil, que, para além da prova
inequívoca conducente à verossimilhança da alegação, um outro requisito
necessário para a concessão dos efeitos antecipados da tutela é a ocorrência de
fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Tem-se aí a chamada
tutela de urgência, já que o tema remete naturalmente ao antagonismo existente
entre tempo e processo.
Nos termos da processualística liberal clássica, os custos do tempo no
processo sempre recaíram nos ombros do autor, vez que se partia do suposto que o
réu não poderia ser compelido a implementar uma obrigação sem a exauriência da
cognição.
Isso não raro conduzia a uma situação em tanto exótica, na qual se
sacrificava o direito do autor que detinha prova inequívoca hábil a respaldar a
verossimilhança da sua alegação, em nome da preservação sacralizada do direito de
defesa do réu que aparentemente não possuía razão. Pior ainda, como resultado
dessa equação perversa, via de regra se consumava uma situação de dano
irreparável ao direito do vindicante.
Pode-se concluir, assim, que no abalançamento dos interesses digladiantes, o
direito liberal optava por preservar a integridade patrimonial do réu, ainda que tal
comportamento custasse, por exemplo, um prejuízo irremediável à honra ou mesmo 204 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de
256
à vida do autor. Tal constatação, diga-se de passagem, pode ser facilmente
compreendida quando contextualizada historicamente, pois, como já visto mais
atrás, o direito liberal nasce sob o signo da proteção à propriedade privada que tanto
interessava à segurança burguesa.
Já no processo formatado sob a égide do Estado Democrático-Ambiental de
Direito, o tema ganha novos balizamentos. Basta notar que o bem axiológico central
que emerge da vigente Constituição brasileira é a dignidade da pessoa humana e
não a defesa cega e irrestrita da propriedade. Em um contexto que tal, obviamente,
o tema do ônus do tempo no processo assume contornos diametralmente distintos.
Não se deseja dizer aqui que a propriedade deixou de ser um direito
fundamental. Evidentemente que não. Mas o fato é que em um estado Democrático
de Direito, o seu status de fundamentalidade depende diretamente do cumprimento
de uma função social. Isto significa dizer que a propriedade, em um juízo de
ponderação, poderá ser eventualmente sacrificada para que a dignidade humana
não seja aviltada.
É dentro desta lógica, portanto, que o Código de Processo Civil vaticina que
naquelas ocasiões em que o autor detiver prova inequívoca hábil ao convencimento
da sua razão, estando, ademais, em vias de assistir o perecimento do seu direito,
ser-lhe-á lícito merecer do Estado-juiz a antecipação dos efeitos da tutela.
Vale dizer, com efeito, que a tutela antecipada não é nada além do que uma
técnica de inversão do ônus do tempo no processo. Tem-se, nesta diretriz, o
magistério de Luiz Guilherme Marinoni:
A tutela antecipatória, agora expressamente prevista no
Código de Processo Civil (art. 273), é fruto da visão da doutrina processual moderníssima, que foi capaz de enxergar o equívoco de um procedimento destituído de uma técnica de distribuição do ônus do tempo no processo. A tutela antecipatória constitui instrumento da mais alta importância para a efetividade do processo, não só porque abre a oportunidade para a realização urgente dos direitos em casos de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação mas também porque permite a antecipação da realização dos direitos no caso de abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu. Desta forma concretiza-se o princípio de que a demora do processo não pode prejudicar o autor que tem razão e, mais que isso, restaura-se a idéia – que foi apagada pelo cientificismo de uma teoria distante do direito material – de que o
urgência (tentativa de sistematização). 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 333, 334 e 335.
257
tempo do processo não pode um ônus suportado unicamente pelo autor.205
O raciocínio em questão calha justo na proteção judicial dos interesses
ambientais. Imagine-se, no viés trabalhista, um empregado que tenha se acidentado
em virtude da explosão de uma caldeira, tendo, em decorrência, queimado mais de
cinquenta por cento do seu corpo, estando, assim, a necessitar urgentemente de
tratamento médico, a ser custeado pelo empregador, nos termos do artigo 949 do
Código Civil206.
Seria adequado que esse trabalhador aguarda-se o trânsito da decisão para
ter satisfeito o seu direito? É claro que não. Tem-se, na hipótese, a colisão de dois
valores fundamentais. De um lado, o direito à própria vida do trabalhador. Do outro,
o direito à intangibilidade patrimonial do réu. Prepondera, no caso, sem sombra de
dúvidas, o direito à integridade vital do cidadão-trabalhador.
Se o juízo, em uma situação de tal jaez, não estiver disposto a antecipar-lhe a
tutela de mérito, fazendo tábula razão do fundado receio de dano irreparável ou de
difícil reparação, estará, em última instância, assinando a sua sentença de morte.
5.2.4 Tutela de Evidência ou Sancionatória: Abuso do Direito de Defesa,
Manifesto Propósito Protelatório do Réu ou Existência de Pedidos Incontroversos
Como requisito alternativo ao fundado receio de dano irreparável ou de difícil
reparação, o artigo 273, II, do CPC anuncia que será lícito ao magistrado antecipar a
tutela de mérito quando além do autor possuir uma prova inequívoca conducente à
verossimilhança da sua alegação, restar configurado o abuso do direito de defesa ou
o manifesto propósito protelatório do réu.
Demais disso, o § 6o do artigo 273 do CPC estabelece, ainda, que a tutela
antecipada também poderá ser concedida, independentemente de quaisquer outros
pressupostos, quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles,
mostrar-se incontroverso.
205 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 7 ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 29. 206 Insta informar, por oportuno, que o autor da presente pesquisa já enfrentou situação como narrada na sua atividade judicante. Conferir, a propósito, os autos do processo nº 00374.2005.001.23.00-9 (Disponível em: http://tinyurl.com/3srzz9m)
258
Configura-se, nestas duas hipóteses, a chamada tutela de evidência,
conhecida, ainda, como tutela sancionatória.
A tutela, no caso, é de evidência por dois motivos básicos. Num primeiro
momento porque concedida naqueles contextos em que diante do abuso do direito
de defesa do requerido, o direito do requerente se revela notório (inciso II do artigo
273). Já em segunda possibilidade, porque sobre os pleitos aviados no libelo não
paira qualquer celeuma (§ 6º do artigo 273 do CPC).
É sancionatória, por outro viés, porque ao exercer abusivamente o
contraditório com os meios e recursos que lhe são inerentes, o réu abre ensanchas
ao seu sancionamento por via da concessão da antecipação dos efeitos da tutela ao
autor.
Ocorre que ao agir assim, o vindicado acaba por ofender a própria dignidade
da corte (contempt of court), que, almejando cumprir o seu dever de bem prestar a
jurisdição, se vê envolvida no emaranhado de chicanas criado por aquele que deseja
protelar o andamento da marcha processual. Nada mais justo, portanto, que ele seja
sancionado por agredir a integridade do Poder Judiciário. Tem-se aí, diga-se de
passagem, mais um excelente argumento para se justificar a antecipação de ofício
dos efeitos da tutela.
Nunca é demais relembrar, a propósito do tema, que nos termos do artigo 187
do Código Civil, comete um ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.
Pode-se se assentar, dito de outro modo, que se por uma vertente é certo que
o direito de defesa é fundamental, por outra não é menos correto que ele deve ser
exercitado dentro um contexto que o justifique socialmente, pois, caso contrário, ele
nada mais será do que o arremedo maltrapilho do exercício de uma garantia
constitucional.
Em uma situação como tal, se o magistrado não estiver solerte para com o
seu dever de prontamente repelir uma prática tão repugnante, estará a malferir, pela
sua censurável omissão, as próprias colunas de sustentação do Estado Democrático
de Direito, ultrajando, como se não bastasse, os princípios constitucionais da
isonomia e da razoável duração do processo, na medida em que estaria
privilegiando injustificadamente o réu em detrimento do autor e desprezando o
direito deste último a um processo sem dilações indevidas.
259
De tal arte, em todas aquelas ocasiões que o requerido reiteradamente
ventilar exceções suspensivas da marcha processual (artigo 799 da CLT)
infundadamente, apresentar recursos desarrazoados, retiver indefinidamente os
autos retirados em carga ou apresentar teses defensivas fantasiosas, estará
rendendo azo à antecipação dos efeitos da tutela antecipatória de evidência ou
sancionatória.
Semelhantemente, a concessão da tutela antecipada se justificará naqueles
casos em que os pleitos elencados, ou pelo menos parte deles, se mostrarem
incontroversos207, como, por exemplo, quando o réu não se desvencilhar do ônus da
impugnação especificada dos fatos (artigo 302 do CPC) ou reconhecer a
procedência do pedido (artigo 269, II, do CPC).
5.2.5 Possibilidade de Reversão do Provimento Antecipado?
Segundo o § 2º do artigo 273 do CPC, não se concederá a antecipação da
tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. A
contrario sensu, o mencionado preceito está a dizer que a possibilidade da reversão
do decidido é um dos requisitos necessários para que o juiz conceda a antecipação
dos efeitos da tutela.
O que o noticiado enunciado legal está a cogitar, naturalmente, não é da
irreversibilidade do provimento em si, já que para a sua reversão, no plano formal,
basta que o juiz, nos termos do § 4º do artigo 273 do CPC, revogue ou modifique a
qualquer tempo a antecipação de tutela concedida.
Assim, o que à toda evidência se almeja no preceptivo em questão, é evitar a
irreversibilidade dos efeitos concretos do provimento antecipado e satisfeito, como
naquele caso em que o autor não possua suficiente lastro patrimonial para recompor
eventuais prejuízos padecidos pelo réu.
Nesta perspectiva, todavia, o fato é que o §2º do artigo 273 do CPC carrega
consigo um inequívoco paradoxo, já que a sua interpretação nua e crua estaria a
207 Destaque-se, por oportuno, que segundo a doutrina mais arrojada, o § 6º do artigo 273 teria introduzido no ordenamento brasileiro mais do que uma modalidade de antecipação de tutela, já que nele estaria contemplada uma modalidade de “tutela definitiva da parcela incontroversa da demanda.” Vide, acerca do asseverado, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil: comentado artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 268.
260
vaticinar que somente aqueles que detêm garantias patrimoniais suficientes é que
mereceriam ver os seus interesses satisfeitos antecipadamente.
Parece existir aí, com efeito, uma situação inusitada, na qual o legislador,
para se valer do senso comum, concedeu uma benesse ao cidadão comum com
uma das mãos, para logo na sequência subtrai-la com a outra.
Isto equivale a asseverar que o Legislativo, na hipótese, disse mais do que
deveria dizer. Assim é que o preceito em questão merece interpretação restritiva,
balizada, sobretudo, pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Ora, à esta altura do estudo desenvolvido, ressoa claro, por exemplo, que não
se pode deixar de amparar um direito provado e verossímil, expondo-se o autor a
fundado receio de dano irreparável à sua própria vida, apenas para serem
preservados os interesses patrimoniais do réu que, sem qualquer indício palpável de
razão, não raro está a exercitar abusivamente o seu direito de defesa.
Tem-se, na diretriz apontada, as palavras de Sérgio Cruz Arenhart:
Ambas as situações podem acarretar a irreversibilidade fática
da situação criada pela intervenção judicial: tanto o sacrifício de um como o do outro podem ser irreversíveis. A questão é: qual dos dois direitos afirmados deve ser sacrificado?
A solução não pode ser outra que não a de tutelar-se o direito que pareça ao juiz o mais verossímil. Se é necessário agir imediatamente, é evidente que o Judiciário deve proteger aquela afirmação de direito que pareça nas circunstâncias, o mais provável de ser reconhecido como existente, na posterior cognição exauriente do processo.
Em outro pólo, também importa considerar o princípio da proporcionalidade. O juiz, ao analisar o caso concreto, deverá ponderar os interesses em litígio, privilegiando o interesse mais caro à ordem jurídica, em detrimento daquele de menor hierarquia.208
Afinado no mesmo diapasão, mas com os olhos voltados especificamente
para o Processo do Trabalho, assim se pronuncia Bezerra Leite (p. 485, 6ª ed):
Acreditamos que no processo do trabalho o requisito em tela
deve ser sopesado com a natureza alimentícia dos valores geralmente postulados pelos trabalhadores, pois, se de um lado o empregador pode ter algum prejuízo de ordem econômica, de outro, é certo, o empregado pode ter comprometida não apenas a sua
208 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela inibitória da vida privada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 125, 126.
261
própria subsistência e a da sua família, mas a sua própria dignidade.209
Fixe-se, mais uma vez, no exemplo ainda agora apresentado, no qual um
trabalhador tenha tido mais de cinquenta por cento do corpo queimado em um
acidente ambiental laboral oriundo da explosão de uma caldeira.
Seria razoável privar-lhe do tratamento médico, somente porque não teria
patrimônio suficiente para, na improvável hipótese de o provimento antecipado vir a
ser revertido, ressarcir o empregador do eventual dano patrimonial suportado?
A resposta, evidentemente, é desbragadamente negativa. Colocam-se em
rota de colisão, no caso, o direito à vida, amparado por prova inequívoca conducente
à verossimilhança da razão obreira, e o direito patrimonial do empresário, desprovido
de maior estribo jurídico. Sem sombra de dúvidas, a equação proposta deve ser
resolvida em prol do empregado, já que o seu direito notoriamente é de qualidade
superior.
Não custa rememorar acerca do exemplo alinhavado, que nos termos do
artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, o empregador é aquele que assume
os riscos da atividade econômica. E assim o deve o ser em uma ordem econômica
fundada na valorização do trabalho humano e sustentada na livre iniciativa (artigo
170, caput, da CRFB).
Dito de outro modo, por mais óbvio que possa parecer o aduzido, é
necessário enfatizar-se, no fechamento do presente tópico, que não existe
capitalismo sem risco. Assim é que o empregador não pode pura e simplesmente
privatizar os seus lucros e socializar as suas perdas.
5.2.6 – A Efetivação dos Efeitos da Tutela Antecipada de Obrigação de Dar
Consoante o disposto no artigo 273, § 3º, do CPC, a efetivação da tutela
antecipada observará, no que couber e conforme a sua natureza, as normas
previstas nos artigos 588, 461, §§ 4º e 5º e 461-A do CPC.
Aqui, logo de plano, apresenta-se necessária a ventilação de uma ressalva
formal. Ocorre que o artigo 588 do CPC, que antigamente regrava a execução
provisória, foi revogado por força da Lei nº 11.232-05. Por corolário lógico, a
209 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Op. cit. p. 485.
262
remissão à sua dicção, inadvertidamente preservada no corpo do § 3º do artigo 273
do CPC, deve ser compreendida como se fosse destinada ao artigo 475-O do CPC,
que, atualmente, regulamenta o cumprimento provisório das decisões judiciais.
Importa realçar, de outro tanto, que o artigo 475-O do CPC regerá a
efetivação da antecipação dos efeitos da tutela de pagar quantia certa e os artigos
461 e 461-A do CPC, respectivamente, as obrigações de fazer, não fazer e de
entregar coisa. Nesta parte do estudo, portanto, a atenção será fixada no prefalado
artigo 475-O do código adjetivo.
Uma vez assentadas as premissas formais precedentes, importa colocar em
debate na perspectiva substantiva, doravante, os dois pontos polêmicos que se
apresentam quanto ao tema na processualística laboral, já que esta é aquela que
mais de perto interessa aos desideratos da presente pesquisa.
O primeiro deles diz respeito à disposição contida no artigo 899 da
Consolidação das Leis do Trabalho, a preconizar que a execução provisória
trabalhista só vai até a penhora, o que importa em dizer, a contrario sensu, que nela
seriam vedados os atos de alienação do domínio e a liberação de numerário.
O segundo, outrossim, correlaciona-se à necessidade da oferta de caução
idônea (artigo 475-O, III, do CPC) como pressuposto para a execução provisória, e,
consequentemente, para a antecipação dos efeitos da tutela de mérito.
Relativamente ao disposto no artigo 899 da CLT, parece óbvio que a sua
dicção não foi recepcionada pela ordem constitucional emergida com a promulgação
da vigente Constituição da República, que, como visto mais atrás, elegeu como
premissa axiológica central a dignificação da pessoa humana e não a defesa cega e
irrestrita da propriedade.
Atualmente, portanto, mostra-se imprescindível que os limites estreitos do
artigo 899 da CLT sejam hermeneuticamente dilatados, para se compreender, a
partir de uma interpretação de tipo sistemático-teleológico, construída em
conformidade com o princípio do acesso substancial e não apenas formal à
jurisdição, que a execução provisória trabalhista, e, consequentemente, a
antecipação de tutela (artigo 273, § 3º, do CPC), podem perfeitamente atingir a fase
de liberação de numerário.
Ora, se até mesmo o Processo Civil, que trabalha com a satisfação de
créditos menos privilegiados que aqueles imantados de índole laboral (artigo 186 do
Código Tributário Nacional), permite a liberação de dinheiro em sede de
263
cumprimento precário de decisão, quer seja ela interlocutória ou sentencial, não faz
qualquer sentido que o Processo do Trabalho continue contemporaneamente
aferrado ao conservadorismo do artigo 899 da CLT.
Pensar o contrário, em termos específicos de antecipação de tutela, seria o
mesmo que dizer que nela o juízo estaria tão-somente autorizado a decidir
antecipadamente, e não propriamente a implementar, a tempo e modo, os ‘efeitos’
da proteção adiantada.
A questão que resta a saber, de tal arte, é se para a liberação de numerário o
trabalhador estaria jungido à oferta de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano
pelo juiz e prestada nos próprios autos (artigo 475, III, do CPC).
A questão, obviamente, merece ser desafiada com temperamentos.
É certo que se a liberação precária de numerário corre por conta e
responsabilidade do exequente, que se obriga, se a decisão for reformada, a reparar
nos próprios autos, por via de execução invertida, os danos que o executado haja
sofrido (artigo 475-O, I e II, do CPC), será desejável que o beneficiário, sempre que
possível, oferte a garantia preconizada na legislação de regência (artigo 475-O, I, do
CPC).
Nada obstante, haverá algumas situações em que a negação da satisfação
antecipada do decidido, sob a justificativa da ausência de garanta patrimonial,
acabará por redundar em inequívoca negativa de prestação substancial da
jurisdição.
Justamente por isso é que o próprio Código de Processo Civil estabelece no §
2º, I, do seu artigo 475-O, em nítido abalançamento legislativo de valores
fundamentais colidentes, que a caução poderá ser dispensada quando, nos casos
de natureza alimentar ou decorrente de ato ilícito, até o limite de sessenta vezes o
salário mínimo, o beneficiário demonstrar situação de necessidade.
Tal hipótese calha justa para o caso ambiental laboral, onde os montantes
perseguidos possuem, em regra, inescondível feição alimentar, não sendo incomum,
ademais, que tenham origem em ato ilícito perpetrado pelo empregador, como nos
casos de acidente de trabalho.
Não se pode deixar de sublinhar, nesta seara, que geralmente o credor
trabalhista encontra-se em estado de necessidade, na medida em que a maioria
esmagadora dos trabalhadores que buscam seus créditos na Justiça do Trabalho
estão desempregados.
264
Lamentavelmente, no entanto, o Tribunal Superior do Trabalho não tem
pautado as suas decisões pelo raciocínio antes empreendido. O primeiro sinal do
seu apego aos valores ínsitos à processualística liberal advém da sua Súmula de nº
417, que estabelece no seu item III que em se tratando de execução provisória, fere
direito líquido e certo do executado a determinação de penhora em dinheiro.
Sem que se falte com o respeito ao TST, não se pode deixar de enfatizar que
o disposto no aludido verbete sumular é de um desacerto mortificante. Ora, se como
sobejamente demonstrado mais atrás, o Juiz do Trabalho está autorizado até
mesmo a liberar numerário em sede de cumprimento precário de decisão, com muito
maior razão lhe é permitido constritar numerário na conta corrente do devedor.
Em que pese todas as ponderações antes alinhavadas, o fato é que a
jurisprudência da SDI-1 do TST é firme no sentido de que o artigo 899 da CLT
continua a reger a matéria. Tome-se, em tal sentido, a sua jurisprudência recente:
EMBARGOS - ARTIGO 475-O DO CPC - LEVANTAMENTO
DO DEPÓSITO RECURSAL - INAPLICABILIDADE AO PROCESSO DO TRABALHO. O procedimento tratado pelo artigo 475-O do CPC possui disciplina própria na lei processual trabalhista - artigo 899 da CLT -, que limita a execução provisória à penhora. Assim, não há falar, na espécie, em aplicação supletiva da norma processual comum. Precedentes das 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 7ª e 8ª Turmas do TST.210
Pense-se a questão a partir do exemplo várias vezes invocado, no qual um
trabalhador acidentado, com mais de cinquenta por cento do corpo queimado,
necessite de tratamento médico. Nesta situação, é defensável que o Juiz, em sede
de antecipação de tutela, libere numerário até mesmo superior a sessenta vezes o
salário mínimo sem a contrapartida caucional, pois pensar o contrário seria o mesmo
que assinar a sentença de morte do trabalhador sem recursos.
E nem se objete que o julgador não estaria autorizado a ponderar os valores
em jogo para além do que o próprio legislador o fez no § 2º, I, do artigo 475-O do
CPC. Decididamente não. Como já exaustivamente visto, no Estado Democrático-
Ambiental de Direito não se pode reservar ao magistrado o paupérrimo papel de
simples boca da lei. De tal arte, o abalançamento inserto no antedito dispositivo legal
é apenas um primeiro parâmetro, que pode perfeitamente ser adequado pelo
210 TST, RR-34500-47.2007.5.03.0064, S1EDI, não unânime, rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Julgamento em 17.02.2011. Disponível em: http://tinyurl.com/3bsbtdu. Acesso em: 17.08.2011.
265
magistrado à luz das necessidades do caso concreto que esteja posto à sua
apreciação.
De tudo o quanto antes exposto, faz-se imprescindível registrar que é no
mínimo preocupante que a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho continue
a apontar para um caminho conservador e positivista ao extremo, que em nome de
uma defesa míope da propriedade privada, acaba por fazer tábula rasa da dignidade
do cidadão-trabalhador, impedindo-o de fruir, o quanto antes, os créditos alimentares
imprescindíveis à sua subsistência pessoal e familiar.
5.3 ANTECIPAÇÃO DE TUTELA NAS OBRIGAÇÕES DE FAZER, NÃO
FAZER E ENTREGAR COISA
5.3.1 Breve Introdução
Embora a abordagem da dissertação em curso esteja focada nos provimentos
mandamentais, foi necessário analisar os pressupostos inerentes à antecipação dos
efeitos da tutela das obrigações de dar, na medida em que eles, pelo técnica do
cotejo, serão bastante úteis para a adequada compreensão dos requisitos
imprescindíveis para a concessão de tutela no âmbito das obrigações de fazer, não
fazer e entregar coisa.
Pois sim. Estabelece o § 3º do artigo 461 do Código de Processo Civil, que
sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de
ineficácia do provimento final, será lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou
mediante justificação prévia. Estão elencados no mencionado preceptivo, consoante
se pode enxergar nitidamente, os elementos que justificam a antecipação dos efeitos
da tutela mandamental.
Já por outra vertente, o § 3o do artigo 461-A do Código de Processo Civil
vaticina que o disposto nos §§ 1o a 6o do art. 461 aplica-se à implementação das
suas próprias disposições. Conclui-se, portanto, que os requisitos para a concessão
dos efeitos da tutela antecipada das obrigações de entregar coisa são os mesmos
das obrigações de fazer e não fazer.
Uma vez empreendido o breve intróito anterior, os principais aspectos a
serem respeitados na antecipação dos efeitos da tutela mandamental serão de
agora em adiante analisados ponto a ponto.
266
5.3.2 Possível a Antecipação de Ofício?
Relativamente às obrigações de dar, como estudado anteriormente, muito
embora a cabeça do artigo 273 do CPC aduza explicitamente que a antecipação dos
efeitos da tutela dependerá de requerimento do interessado, o fato é que a doutrina
e mesmo a legislação esparsa possuem indicativos expressivos de que tal limitação
pode ser perfeitamente contornada.
Já no âmbito das obrigações de conteúdo mandamental, a primeira
observação a ser empreendida, é a de que os artigos 461 e 461-A do Código de
Processo Civil em nenhum momento estabelecem o requisito em questão.
Por corolário lógico, se até mesmo nas obrigações de dar, em que pese a
disposição preconizada pelo preceito legal de regência, o magistrado está
autorizado a conceder a antecipação de tutela nos contextos de evidente
disparidade de armas, com muito maior razão ele o poderá fazer no interior das
obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa.
O raciocínio aqui desenvolvido, aliás, calha mais que justo para o alvo da
presente pesquisa, que é o estudo da temática no âmbito da jurisdição coletiva.
Basta ver, acerca do asseverado, que nem o artigo 12 da Lei de Ação Civil Pública e
muito menos o artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor estabelecem como
requisito da liminar satisfativa a existência de requerimento do autor.
E nem poderia ser diferente, principalmente em seara ambiental, onde estão
em jogo os bens primordiais para a própria existência da vida. No espaço ambiental
laboral, via de consequência, o Juiz do Trabalho não deverá hesitar nem mesmo por
um segundo, todas as vezes que dá sua iniciativa tutelar depender a preservação da
integridade vital do cidadão-trabalhador.
5.3.3 Relevante Fundamento da Demanda e Fundado Receio de Ineficácia do
Provimento Final
Na parte inicial do § 3º do artigo 461 do Código de Processo Civil, estão
indicados os dois principais pressupostos para a concessão da antecipação dos
efeitos da tutela mandamental, que são o relevante fundamento da demanda e o
fundado receio de ineficácia do provimento final. Embora eles sejam dois, serão
267
analisados em um único tópico, vez que atuam amalgamadamente no âmbito
prático, ou, por assim dizer, em convergência sinérgica.
A primeira conclusão que salta aos olhos quando são cotejados os requisitos
estampilhados no prefalado § 3º do artigo 461 do CPC com aqueles insertos no
artigo 273 do CPC, é que para a antecipação dos efeitos da tutela mandamental, ao
contrário do preconizado para a proteção antecipada das obrigações de dar, não se
mostra necessário o requisito da existência de prova inequívoca conducente à
verossimilhança da alegação, revelando-se suficiente, para tanto, apenas a
relevância do fundamento da demanda e o fundado receio de ineficácia do
provimento final.
A corroborar o ponto de vista contido no parágrafo anterior, reproduz-se,
abaixo, a preleção de Carlos Henrique Bezerrra Leite:
É imperioso notar que a concessão da tutela antecipada nas
obrigações de dar ou pagar exige a verossimilhança dos fundamentos jurídicos do pedido, enquanto, nas obrigações de fazer ou não fazer, é suficiente a relevância do fundamento da demanda, ou seja, o fumus boni iuris (CPC, art. 461, § 3º).
(...) Vê-se, assim, que para a concessão da antecipação da tutela
específica na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer a lei exige menos do que na antecipação de tutela versando sobre obrigação de pagar (CPC, art. 461, § 3º).
A rigor, os requisitos para a concessão da antecipação das tutelas específicas identificam-se com os das medidas cautelares em geral, quais sejam: a relevância do fundamento da demanda (fumus boni iuris) e o receio de ineficácia do provimento final (periculum in mora). Mas é bom advertir que nos provimentos cautelares, o que se visa é assegurar o resultado útil do processo principal (de conhecimento ou de execução), enquanto o objetivo dos provimentos antecipatórios repousa na entrega imediata da pretensão de direito material (o bem da vida) deduzida no próprio processo de conhecimento.211
O escólio retro transcrito é irretocável, demonstrando, a mancheias, que as
condições impostas pela legislação para a antecipação dos efeitos da tutela de
mérito no âmbito das obrigações mandamentais são muito mais brandas que
aquelas previstas para os provimentos condenatórios. Como transparentemente
visto, embora a tutela em questão seja iniludivelmente satisfativa, os pressupostos
211 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Op. cit. p. 483 e 487.
268
da sua concessão são os mesmos necessários para o deferimento das medidas
cautelares.
Ocorre que para a antecipação dos efeitos da tutela no âmbito das
obrigações de dar, o interessado está compelido a carrear para o interior do caderno
processual uma prova formalmente perfeita, da qual se permita extrair a
verossimilhança da alegação.
Já no que diz respeito às obrigações de fazer, não fazer ou de entrega de
coisa, basta que ele indique nos autos as circunstâncias necessárias para a
inferência da plausibilidade do seu bom direito. Além disso, naturalmente, haverá
que estar presente, no caso, o fundado receio de ineficácia do provimento final.
Retome-se, por exemplo, a hipótese anteriormente aviventada, de uma
empresa que tenha construído o seu depósito de agrotóxicos contiguamente aos
alojamentos dos trabalhadores, de tal modo que eles estejam expostos à inalação
dos respectivos resíduos químicos.
Em uma situação de tal jaez, a tutela de remoção do ilícito merece à toda
evidência ser satisfeita antecipadamente, já que se têm presentes os dois requisitos
a tanto necessários.
É de se ver, inicialmente, que fundamento da demanda se revela mais do que
relevante, vez que o seu escopo é a própria preservação da saúde dos
trabalhadores.
De outro tanto, o fundado receio de ineficácia do provimento final é mais do
que patente, pois se a tutela tiver que aguardar o trânsito para ser implementada,
muitos trabalhadores por certo serão contaminados, pagando, com a própria vida,
pela inércia do Estado-juiz, que não se dispôs a remover o ilícito atempadamente.
Pense-se, outrossim, na hipótese de empregados menores estarem
trabalhando em horário noturno, ou ainda em ambiente insalubre e/ou periculoso,
em claro malferimento do disposto no artigo 7º, XXXIII da Constituição da República.
Não é sequer necessário realçar, à espécie, a relevância do fundamento da
demanda, que tem como objetivo o estabelecimento do respeito ao ordenamento
constitucional em um ponto tão sensível como o da proteção de menores.
Como se não bastasse, o fundado receio de ineficácia do provimento final é
mais que evidente, pois até o trânsito se consumar os menores certamente já terão
atingido a maioridade, não mais remanescendo, em termos práticos, o interesse que
um dia clamou por imediata proteção.
269
Isto equivale a dizer que se a tutela inibitória não for concedida
antecipadamente, só restará ao jurisdicionado o caminho da sua convolação em
perdas e danos, em claro malferimento dos propósitos do Estado Democrático-
Ambiental de Direito, cujo compromisso inarredável é para com a satisfação plena
da proteção específica, o que decididamente não se pode alcançar com a tutela pelo
equivalente monetário.
5.3.4 A Questão da Reversibilidade do Provimento Antecipado
Ainda que brevemente, não se pode deixar de desafiar aqui o pretenso
requisito da reversibilidade do provimento antecipado, mesmo que a presente
dissertação já o tenha feito quando da análise do adiantamento dos efeitos da tutela
de pagar quantia certa.
Como se demonstrou àquela altura, o desate do imbróglio perpassa
necessariamente pela ponderação dos interesses conflitantes. Nesta perspectiva,
não se pode deixar de determinar, por exemplo, que o empregador promova obras
de adequação do equilíbrio ambiental trabalhista, ainda que sobre elas sobrepaire o
temor da irreversibilidade, já que no abalançamento dos valores em disputa, a
saúde, a segurança e a integridade vital do cidadão-trabalhador estão situadas
acima do mero interesse patrimonial do empregador.
Tem-se, em perspectiva similar à diretiva defendida no parágrafo anterior, o
magistério de Sérgio Cruz Arenhart, tratando do tema justamente sob a mirada da
jurisdição coletiva:
De fato, somente o exame do caso concreto pode ditar a
legitimidade ou não da outorga da tutela preventiva provisória no caso de irreversibilidade recíproca. Se um dos interesses deve, necessariamente, sofrer uma lesão, então que seja aquele menos provável ou o menos valioso para o interesse jurídico. De outro lado, além dessas duas preocupações, deve-se atentar às conseqüências da concessão ou não da medida de urgência. A ponderação das conseqüências, desenvolvida pelo direito alemão especialmente para a interpretação constitucional em casos de grande repercussão política, também merece aplicação na avaliação em comento, já que sua investigação pode contribuir para a melhor definição da solução específica. Especialmente em se tratando de demandas coletivas, a solução buscada pelo órgão judicial deve atentar – mormente no exame de tutelas provisórias – para decisões que melhor realizem o bem comum. O exame do interesse possível a ser sacrificado (e, de outra parte, aquele que deve ser provisoriamente atendido) não pode
270
prescindir da avaliação das consequências concretas da decisão perante o seio social, com ênfase para a repercussão social da decisão em relação a seus aspectos positivos e negativos futuros.
A consideração desses elementos, em especial diante de tutelas preventivas (inibitórias), é fundamental, porque ao menos um dos interesses – aquele alegado pelo autor – tende sempre a sofrer uma lesão iminente e irreparável com a ocorrência do ilícito que se pretende evitar. A agressão, pois, que se há de impor ao interesse da parte contrária é fundamental para bem lidar com essa dimensão de tutela, especialmente de forma a evitar que ela se converta antes em instrumento de abuso do que de tutela legítima dos direitos.212
Para além da perspectiva da proporcionalidade dos interesses colidentes, que
sinaliza, pelo menos em regra, para a prevalência dos interesses transindividuais
sobre os meramente privados, não se pode deixar de sublinhar a verdade óbvia de
que a concessão da tutela antecipada destinada a inibir ou a remover o ilícito
possuirá o condão de no mínimo beneficiar o vindicado indiretamente, vez que será
capaz de adequar a sua conduta aos parâmetros impostos pelo ordenamento
jurídico.
Assim é que será legitimo impor aos empregadores antecipadamente, por
exemplo, os provimentos mandamentais abaixo nominados, que são elencados,
naturalmente, sem qualquer pretensão exaustiva:
• de fornecer alojamento, cozinha e instalações sanitárias adequadas aos
trabalhadores;
• de fornecer água potável adequada ao consumo e em condições
higiênicas;
• de fornecer equipamentos de proteção individual;
• de garantir condições de conforto e higiene por ocasião das refeições;
• de realizar exames médicos admissionais, demissionais e periódicos em
todos os empregados;
• de fornecer materiais necessários à prestação de primeiros socorros;
• de não submeter os trabalhadores a jornadas exaustivas;
• de garantir o direito de ir e vir dos trabalhadores;
• de abster-se da prática conhecida como truck system;
212 ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 317.
271
• de não tomar o trabalho de empregados maiores de dezesseis anos e
menores de dezoito anos em ambientes insalubres e/ou periculosos, etc.
Uma vez suplantado o estudo ligado às tutelas de urgência, a dissertação
passará doravante a analisar, separadamente, em virtude da óbvia importância para
os seus propósitos, a questão do cumprimento dos provimentos mandamentais, quer
tenham sido eles deferidos antecipadamente ou em julgamento final.
6 CUMPRIMENTO DOS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS ANTECIPADOS E DEFINITIVOS
6.1 A TUTELA ESPECÍFICA
A explanação em curso cuidará, de agora em diante, das principais nuances
do cumprimento dos provimentos processuais mandamentais, quer sejam eles
antecipados ou definitivos. O primeiro aspecto a ser abordado é aquele relativo à
regra que impõe o cumprimento específico das obrigações de fazer e não fazer
estabelecidas em liminares e sentenças.
É importante destacar, relembrando aquilo que já se sublinhou algures, que o
caput do artigo 461 do CPC estabelece, logo na sua primeira parte, que na ação que
tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá
a tutela específica.
Confirmando tal opção, o § 5º do mencionado preceito legal elenca, em tom
exemplificativo, uma série de medidas que o magistrado poderá adotar, visando a
efetivação da tutela específica ou a obtenção do seu resultado prático equivalente.
Vale transcrever, tratando da tutela específica, as palavras de Luiz Guilherme
Marinoni e Daniel Mitidiero:
O art. 461, CPC, quando fala em tutela específica, deseja dar
ao jurisdicionado a possibilidade de obter a tutela específica do direito material. (...) A tutela será tanto mais específica quanto mais se aproximar da proteção da integridade do direito material. Assim, a tutela específica é o contrário de tutela pelo equivalente ao valor do dano ou ao valor da prestação inadimplida. A tutela específica é gênero, cujas espécies são as tutelas inibitória, de remoção do ilícito, específica do cumprimento do dever legal de fazer, ressarcitória na forma específica, do adimplemento na forma específica e do
272
adimplemento perfeito. Para viabilizar a obtenção da tutela específica, o art. 461 institui uma série de técnicas processuais, como a técnica antecipatória, a multa e as chamadas medidas executivas necessárias, as quais devem ser utilizadas conforme a espécie de tutela específica almejada e as circunstâncias do caso concreto.213
Acreditava-se à época da hegemonia do liberalismo, que o Estado deveria ser
abstencionista, não se imiscuindo nas relações privadas. Vigia, então, a concepção
de que a autonomia da vontade deveria ser resguardada na sua plenitude.
Assim é que o Estado-juiz não detinha poderes para interferir diretamente na
esfera volitiva das pessoas, compelindo-as a observarem determinada conduta, seja
comissiva ou omissiva. A tutela das obrigações de fazer e não fazer não raro se
resolvia em perdas e danos, sendo escasseadas as hipóteses do seu cumprimento
específico. Vigorava com máxima força, consoante se percebe, a vetusta parêmia
nemo ad factum praecisi cogi potest, que sustentava o dogma da incoercibilidade da
vontade.
Observou-se, contudo, na transição para o Estado Democrático de Direito,
que um sistema constitucional arrimado na dignidade da pessoa humana não
poderia assistir passivamente o aviltamento dos direitos da personalidade, que eram
transformados pelo liberalismo em simples expressão pecuniária. No plano do
Judiciário, passou a ser tarefa dos magistrados o dever de garantir os direitos dos
cidadãos na forma específica.
A questão pode ser vislumbrada, na esfera ambiental trabalhista, a partir da
dispensa do empregado dirigente de Comissão Interna de Prevenção de Acidentes
(CIPA), realizada em desprezo ao regramento do artigo 10, II, "a", do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Note-se que a dispensa em questão, além de conspirar contra o direito
individual do trabalhador ao emprego, afeta o interesse de toda a coletividade
obreira que o elegeu para cuidar dos seus interesses quanto à prevenção de
acidentes. Há no caso, por assim dizer, tanto o malferimento de um direito subjetivo,
quanto o maltrato a um interesse transindividual.
Nesta hipótese, deverá o Estado-juiz, em havendo o ajuizamento de ação,
determinar a reintegração do cipeiro, eximindo-se de meramente de ressarci-lo pelo
213 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil: comentado artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 425.
273
equivalente pecuniário da garantia de emprego, de modo a viabilizar que ele, uma
vez reinserido no ambiente de trabalho, volte a zelar pela integridade física dos seus
pares.
Não se olvida como isso o teor do artigo 461, § 1º, do CPC, que se encontra a
afirmar que a obrigação se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou
se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.
Nem muito menos se esquece da diretiva inserida na Súmula nº 396, II, do
Tribunal Superior do Trabalho, que assevera não haver nulidade na decisão que
defere salário ainda que o pedido seja de reintegração.
Ao contrário do que possa parecer, contudo, o prefalado artigo 461, § 1º, do
CPC não possui abrangência tão alargada quanto se imagina à primeira vista. Há
que se diferenciar, no pertinente, as responsabilidades aquiliana, contratual e legal.
O que mencionado preceito está a dizer, naturalmente, é que a opção pelo
equivalente monetário somente será lícita nos casos de reparação advinda de um
dano ou do inadimplemento do contrato, não sendo tolerável, ao revés, nos casos
em que configurado o desdém para com a imperatividade de um preceito legal
imantado de inescondível conteúdo metaindividual.
Parece, assim, que em uma situação como a da garantia de emprego
conferida a um cipeiro, o Tribunal Superior do Trabalho está a prestar um desserviço
à lógica da tutela específica quando autoriza, por via do item II da sua Súmula nº
396, que o juiz possa deferir indenização ainda que o pedido seja reintegratório.
Nem se argumente que a indenização, no caso, seria capaz de produzir um
resultado prático equivalente à reintegração. Decididamente não se pode confundir o
resultado prático equivalente com o equivalente monetário do interesse molestado.
Reproduz-se, para que seja dissipada qualquer dúvida sobre o tema, o escólio de
Clayton Maranhão:
(...) Na concepção que se tem de tutela específica, o
resultado prático equivalente nada tem a ver com o ressarcimento pelo equivalente monetário, pois enquanto o resultado prático específico possibilita restituição a um estado equivalente ao bem lesado, o ressarcimento pelo equivalente degrada a tutela dos direitos, convertendo-os em uma soma equivalente em dinheiro; (...) portanto, não há razão para se confundir a obtenção de um bem equivalente com o equivalente monetário do bem não obtido,
274
afirmação essa válida tanto para direitos não patrimoniais quanto para direitos patrimoniais.214
Assim é que no Estado Democrático-Ambiental de Direito, o Poder Judiciário,
para bem cumprir a sua missão, deverá repelir veementemente todos e quaisquer
estratagemas empresariais que, almejando inviabilizar a reintegração, estejam
dispostos a resolvê-la em perdas e danos.
Se assim não o for, o Estado-juiz estará, à toda evidência, abrindo margem
para que um preceito legal imperativo seja inutilizado pela pura e simples
conveniência do empregador.
Mais que isto, chancelará uma conduta que conspira contra a necessidade de
se oferecer à coletividade dos trabalhadores um mecanismo efetivo de promoção da
segurança no trabalho.
6.2 AS ASTREINTES
Prosseguindo o estudo proposto, falar-se-á ainda dos modos de imposição do
cumprimento dos provimentos mandamentais, com ênfase nas astreintes.
Estabelece o § 5º do artigo 461 do CPC que para a efetivação da tutela
específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou
a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa
por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas,
desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com
requisição de força policial.
Como já assentado mais no início da presente exposição, ao se valer da
expressão ‘tais como’, o preceptivo examinado deixa claro que as medidas
elencadas no seu corpo não são exaustivas, nele existindo uma cláusula aberta com
suficiente dimensão para que o juiz possa determinar outras medidas que garantam
efetividade à sua decisão, como, por exemplo, a criação de uma garantia de
emprego. Agora, todavia, será importante centrar-se a atenção na utilização das
astreintes, que são reputadas neste trabalho como uma das mais eficientes formas
214 MARANHÃO, Clayton. Tutela jurisdicional do direito à saúde. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 219.
275
de coerção do réu para a adoção de um comportamento específico, seja ele
comissivo ou omissivo.
Assim, ao ordenar o cumprimento de determinada obrigação de fazer ou não
fazer, o julgador deverá, no mais das vezes, fixar um prazo para a sua
implementação, sob pena de multa.
Terminado o prazo e não cumprida a obrigação, o juiz determinará a
satisfação das astreintes vencidas, e, com fulcro no § 6º do artigo 461 do CPC, que
retira a possibilidade de formação de coisa julgada sobre o valor da multa e a sua
periodicidade, concederá novo prazo para o cumprimento da obrigação imposta na
sentença, sob a cominação de novas multas pecuniárias, que poderão, no futuro,
serem mais uma vez cobradas, e assim sucessivamente, até que a obrigação seja
cumprida.
Observe-se, contudo, que um dos temas mais discutidos relativamente às
astreintes, reside no momento a partir do qual elas poderiam ser implementadas.
Acerca do assunto, pode-se dizer, de antemão, que a doutrina oscila basicamente
entre dois pontos de vista. O primeiro apregoa que a satisfação da multa dependeria
do trânsito em julgado da decisão. Já o segundo assevera que a sua satisfatividade
haveria que ser imposta a partir do decurso do prazo concedido para o cumprimento
da ordem judicial.
Tem-se, representando o primeiro ângulo de visada, o magistério de Luiz
Guilherme Marinoni:
A questão complica-se quando se pensa na possibilidade da
cobrança da multa antes do trânsito em julgado, tomando-se em consideração a tutela antecipatória ou execução provisória da sentença. Na realidade, o problema não é exatamente saber se a multa pode ser cobrada antes do trânsito em julgado, mas sim definir se ela é devida na hipótese em que o julgamento final não confirma a tutela antecipatória ou a sentença que já foi executada.
Se nosso sistema confere ao autor o produto da multa, é completamente irracional admitir-se que o autor possa ser beneficiado quando a própria jurisdição chega à conclusão de que ele não possui o direito que afirmou estar presente ao executar (provisoriamente) a sentença ou a tutela antecipatória. Se o processo não pode prejudicar o autor que tem razão , é ilógico imaginar que o processo possa beneficiar o autor que não tem qualquer razão, apenas porque o réu deixou de adimplir uma ordem do Estado-juiz.
(...) Não se diga que a circunstância de a multa não poder ser
cobrada pelo autor que a final é declarado sem razão retira seu caráter coercitivo. O que atua sobre a vontade do réu é a ameaça do
276
pagamento da multa; essa, assim, não perde o poder de coerção apenas porque o réu sabe que não terá que pagá-la na hipótese de o julgamento final não confirmar a tutela antecipatória ou a sentença que foi ‘provisoriamente executada’.
No caso de tutela antecipatória ou de ‘execução provisória da sentença’, o réu certamente temerá ter que pagar a multa, não só porque é provável que o julgamento final acabe confirmando a tutela antecipatória ou a sentença, mas fundamentalmente porque ninguém pode ter segura convicção de qual será o ‘último julgamento’.215
Elaborando uma argumentação sólida na transição para um ponto de vista
mais avançado, reproduz-se o escólio de Sérgio Cruz Arenhart, a enfatizar que a
satisfação das astreintes não pode ser imaginada nos termos estritos da execução
provisória, havendo de ser pensada, ao revés, como um modo de imposição
definitiva do meio coercitivo elegido:
Debate-se, intensamente, ainda no que tange ao tema da
sanção pecuniária imposta como meio coercitivo ao cumprimento das prestações de fazer e não fazer, a propósito de sua execução provisória. Grande parte da doutrina, com efeito, sugere que a multa aplicada - seja em sentença ou em medida liminar – como mecanismo de apoio para a tutela específica das prestações de fazer ou não fazer pode ser provisoriamente executada, na forma do artigo 588 do CPC [leia-se 475-O do CPC]. Essa execução provisória poderia acontecer a partir da preclusão da decisão que outorga a multa (ou melhor, a partir do vencimento do prazo concedido pela ordem judicial para o cumprimento voluntário do comando) e existiria até o trânsito em julgado da sentença definitiva que confirmasse aquela decisão.
Essa opinião, evidentemente, não se coaduna com as premissas lançadas neste trabalho [referindo-se ao seu livro ‘Perfis da Tutela Inibitória Coletiva], a respeito da natureza e do regime da multa coercitiva em questão. Aliás, ao que parece, essa posição nem sequer conta com amparo no direito positivo nacional, já que nenhuma previsão existe que possa autorizar essa modalidade de execução provisória. (...). Poderá alguém afirmar (...) que o art. 273, § 3º (ao tratar da antecipação da tutela, em previsão que também se aplica à liminar contemplada pelo art. 461, § 3º), remete expressamente o regime de efetivação dessa medida ao art. 588 do código [leia-se, mais uma vez, 475-O do CPC]. O argumento, todavia, não tem expressão, na medida em que a remissão indicada não é (nem pode ser) entendida como hipótese de nova medida submetida à execução provisória. Como bem acentuou Luiz Guilherme Marinoni [referindo-se ao livro ‘A antecipação da Tutela’], a antecipação de tutela não sofre execução, em seu sentido próprio, mas apenas se vale, para sua atuação, de princípios semelhantes – e apenas quando for cabível, como ressalta o próprio texto do art. 273, § 3º (...) – aos da execução provisória.
215 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória (individual e coletiva). 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 181, 182.
277
Em verdade, como já foi dito, nem a liminar que ordena sob pena de multa nem a sentença que o faz têm caráter condenatório. Ao contrário, ambas as medidas revestem-se de conteúdo preponderantemente mandamental, não se sujeitando, por isso mesmo, a execução forçada. Não há, por essas razões, execução da multa, mas sim sua atuação, por iniciativa da própria autoridade judiciária, sem necessidade de processo autônomo, sendo ainda descabido o oferecimento de embargos à execução.
Precisamente por tratar-se de medida de cunho predominantemente mandamental, o meio de coerção realiza-se (definitivamente) de pronto, uma vez exaurido o prazo concedido à parte para o cumprimento voluntário da prestação – e desde que preclusa a decisão que impõe o comando sob pena de multa.216 (as observações entre colchetes, naturalmente, não fazem parte do texto original)
Analisando o tema com a necessária profundidade, veicula-se, por fim, a
preleção de Joaquim Felipe Spadoni, que traz no seu bojo argumentos mais que
vigorosos para a boa compreensão da necessidade de que a satisfação do comando
judicial seja imediata:
c) Exigibilidade e cobrança da multa. c.1) Momento de incidência e de exigibilidade. Como já
revelado anteriormente, a imposição de multa cominatória tem por função precípua resguardar a efetividade do processo. É instrumento de direito público, que busca realçar o imperium da ordem judicial expedida contra o réu e o revigoramento do dever do mesmo em atendê-la fielmente.
Por essa razão é que a multa cominatória tem eficácia a partir do momento em que o cumprimento do comando judicial, ao qual se relaciona, passa a ser devido. Em regra, este momento é o da intimação da medida liminar ou da sentença de procedência não submetida ao efeito suspensivo da apelação.
É possível, no entanto, que o dever de cumprimento da ordem judicial não coincida com a intimação da mesma. É que o § 4º do art. 461 permite ao juiz fixar prazo razoável para o cumprimento do preceito, quando então a multa pecuniária só ganha eficácia após transcorrido o lapso temporal determinado.
Em todo caso, os valores da multa passam a ser devidos desde o momento em que for constatado o não cumprimento do preceito judicial pelo réu, podendo, desde logo, ser cobrados judicialmente, em execução definitiva, sem que haja a necessidade de se aguardar o trânsito em julgado da eventual sentença de procedência.
(...) Em virtude de seu caráter processual, o que autoriza a
exigibilidade da multa pecuniária é a violação da ordem judicial, é o desrespeito do réu ao poder jurisdicional. O seu ‘fato gerador’
216 ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 378, 379.
278
considera apenas e tão-somente a relação jurídica existente entre parte e juiz, o dever daquela em atender ordens deste, enquanto forem eficazes.
(...) Assim sendo, se o réu não atender à decisão eficaz do juiz,
estará desrespeitando a sua autoridade, ficando submetido ao pagamento da multa pecuniária arbitrada, independentemente do resultado definitivo da demanda. Em sendo a decisão que impôs a multa cominatória posteriormente revogada, seja por sentença ou por acórdão, ou mesmo por outra decisão interlocutória, em nada restará influenciado aquele dever que havia sido anteriormente imposto ao réu. As ordens judiciais devem ser obedecidas durante o período que são vigentes, e as partes que não as obedecem estarão sujeitas às sanções cominadas.
Deve ainda ser considerado que estas decisões que revogam outras anteriores possuem natureza constitutiva negativa, com relação à decisão revogada. Seja pelo acórdão que rescinde ou modifica as decisões de 1º grau, seja pela própria sentença de improcedência ou decisão interlocutória que revoga a imposição da multa, desconstitui-se um ato jurídico (a decisão judicial) que até então produzia efeitos, e que, portanto, impunha, até o momento da desconstituição, um dever de cumprimento obrigatório ao réu.
Pelo fato de decisões dessa natureza possuírem eficácia ex nunc, ou seja, por não retroagirem, não podem elidir o estado de ilegalidade em que se pôs o réu que transgrediu preceito judicial proferido anteriormente e que era até então eficaz. A ordem judicial terá sido sempre violada, e a multa será devida, mesmo diante da posterior improcedência do pedido do autor.
A posição contrária só poderia ser admitida acaso o fato gerador da incidência da multa fosse a violação da obrigação de direito material que o réu poderia ter com o autor. Nessa hipótese, a decisão definitiva que viesse a concluir pela improcedência do pedido realmente afetaria a exigibilidade da multa, dado que, com relação ao direito discutido no processo, a decisão tem natureza declaratória, possuindo, neste ponto, eficácia ex tunc. Dessa forma, a retroatividade da decisão de improcedência atestaria que não havia obrigação de direito material a ser violada, afastando a incidência da multa.
No entanto, não é o que ocorre. A constatação de que o réu não possuía qualquer obrigação perante o autor é irrelevante para a exigibilidade da multa pecuniária, justamente porque esta não leva em consideração eventual violação da obrigação de direito material, mas de uma obrigação processual, de todo independente daquela.217
Deveras, em que pese a autoridade intelectual de Luiz Guilherme Marinoni
para tratar do tema, os argumentos de Sérgio Cruz Arenhart e Joaquim Felipe
Spadoni são absolutamente elucidativos, dirimindo com maestria a celeuma
doutrinária existente sobre a matéria
217 SPADONI, Joaquim Felipe. Op. cit. p. 190, 191, 192, 193.
279
É ainda de se pontuar, contrariamente ao ponto de vista sustentado pelo
Professor Marinoni, que pelo menos no âmbito da jurisdição coletiva o produto da
multa não é revertido ao autor (inteligência alargada o artigo 13 da Lei 7.347-85), já
que ele não é o titular verdadeiro do interesse ofendido, possuindo, assim, mera
legitimação autônoma para a condução processo.
Como se não bastasse, também não convence o argumento de que a simples
ameaça do pagamento futuro da multa bastaria para atuar sobre a vontade do réu,
principalmente em um sistema que autoriza o magistrado a modificar o seu valor no
caso de se tornar excessiva (§ 6º do artigo 461 do CPC).
Muitos poderiam objetar, por outro lado, que a Lei 7.347/85 (LACP) traz uma
resposta legislativa para a questão, ao estatuir, no seu artigo 12, § 2º, que a multa
cominada liminarmente só será exigível após o trânsito em julgado da decisão
favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que houver configurado o
descumprimento.
Não há de prevalecer, contudo, a idéia defendida por aqueles que asseveram,
a partir de uma leitura estreita do preceptivo em questão, que as astreintes somente
seriam exigíveis a partir do trânsito da decisão. Isto equivale a dizer, em última
instância, que o artigo 12, § 2º da LACP, com a sua redação datada de 1985, não
foi recepcionado pela ordem constitucional emergida em 1988.
Basta enxergar, a propósito, que os artigos 84 do Código de Defesa do
Consumidor e 461 do Código de Processo Civil, ambos de redação mais recente que
o artigo 12, § 2º, da LACP, não trazem nos seus respectivos âmbitos igual condição
para a satisfação das multas aplicadas.
Nem se argumente que existiria lacuna nos mencionados preceitos, a
demandar colmatação pela aplicação subsidiária do antedito artigo 12, § 2º, da
LACP. Decididamente não.
Ocorre que os artigos 84 do CDC e 461 do CPC, construídos à luz dos
valores insertos na Constituição de 1988, trabalham com a técnica do silêncio
eloquente, para, deliberadamente, permitirem a imediata execução das astreintes na
hipótese de descumprimento do mandamento judicial, independentemente do seu
trânsito.
Esta leitura se harmoniza muito mais com os vetores constitucionais vigentes,
principalmente aqueles relativos à cidadania plena, à dignidade da pessoa humana e
aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
280
Não parece sensato supor que a legislação infraconstitucional possa impor
obstáculos à satisfação imediata das tutelas inibitória e de remoção do ilícito,
principalmente quando se rememora a natureza jurídica preventiva que as distingue
dos preceitos condenatórios.
Como já ressaltado em outros tópicos, as técnicas mandamentais, ao
contrário das condenatórias, não se comprazem, via de regra, com a materialização
do dano. Desse modo é que atuam na perspectiva da inibição ou da remoção do
ilícito para inviabilizarem a consumação de um prejuízo.
Por corolário lógico, não se afigura nada razoável imaginar que o magistrado
tenha que aguardar o trânsito para implementar as multas coercitivas que tenha
cominado nas suas decisões.
Toda e qualquer interpretação que desborde desta conclusão haverá que ser
tomada como não condizente com a Constituição, vez que estará reduzindo o
sentido prático e ético do princípio da inafastabilidade da jurisdição, que na sua
acepção mais ampla impõe ao Judiciário não só a tarefa de garantir a indenização
daquele que tenha sofrido lesão nos seus interesses, mas, principalmente, o
poder/dever de inibir toda e qualquer ameaça a direito (artigo 5º, XXXV, da CRFB).
Basta ver, aliás, que as técnicas condenatórias, consabidamente mais
conservadoras que as mandamentais, permitem, sem maiores problemas, a plena
satisfação de direitos, mesmo em sede de execução provisória de sentença.
Para tanto é de se notar que o artigo 475-O, § 2º, I do CPC possibilita o
levantamento de dinheiro até o limite de sessenta salários mínimos, ainda em sede
precária, independentemente da oferta de caução idônea, em que pese o renitente
conservadorismo do Tribunal Superior do Trabalho que teima em se bater pela
recepção constitucional do artigo 899 da CLT, a dizer que a execução provisória
trabalhista vai somente até a penhora.
Com efeito, não se mostra contemporaneamente razoável pressupor,
principalmente depois que a Constituição explicitamente abraçou como fundamental
o direito ao processo sem dilações indevidas (artigo 5º, LXXVIII, da CRFB), que o
juiz esteja impedido de se valer, com a necessária profundidade, dos meios
coercitivos aptos à satisfação imediata das suas ordens.
6.3 A RESPONSABILIZAÇÃO DO SÓCIO GESTOR
281
Ainda tratando dos modos de imposição do cumprimento das tutelas inibitória,
de remoção do ilícito e ressarcitória na forma específica, a presente dissertação
parte do suposto de que associado à aplicação das astreintes o juiz poderá
promover a responsabilização pessoal do sócio-gerente desidioso.
Como é palmar, o artigo 14, V, do CPC estabelece como dever das partes e
de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo, o fiel cumprimento
dos provimentos mandamentais, sem a criação de embaraços à efetivação das
decisões judiciais, sejam elas de natureza antecipatória ou final.
Na seqüência, o parágrafo único do mencionado preceito anuncia que a
violação da aludida regra constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição,
podendo o magistrado, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais
cabíveis, aplicar ao responsável, inclusive ao terceiro, como, por exemplo, o sócio-
gerente, multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e
não superior a 20% do valor da causa, que não sendo paga no prazo estabelecido
será inscrita como dívida ativa da União ou do Estado.
De tal arte, sendo o sócio-gerente um terceiro, a quem incumbe cumprir em
nome da empresa a obrigação que lhe foi imposta, poderá, perfeitamente, se ver
compelido a suportar a multa em questão, independentemente da sua
responsabilização criminal por desobediência (artigo 330 do Código Penal).
Nem se objete que nesse caso haveria bis in idem.
Primeiramente porque as multas serão aplicadas a diferentes sujeitos, ou
seja, à empresa e ao seu sócio-gerente.
Ademais, ao deixar de cumprir a obrigação imposta, a empresa e o seu sócio-
gerente estarão à toda evidência criando embaraços à administração da justiça.
Ao agirem assim, além de ferirem o direito fundamental da parte contrária à
tutela jurisdicional útil, célere e eficaz, perpetrarão inominável ofensa à própria
dignidade da Justiça, que almejando cumprir com eficiência o seu dever
constitucional de bem subministrar o direito, se verá aprisionada no emaranhado de
chicanas praticadas por aqueles que desejam retardar a entrega do bem da vida ao
legítimo interessado.
Assim é que o parágrafo único do artigo 14 do CPC importou do direito anglo-
saxão para o brasileiro o instituto jurídico conhecido como contempt of court, que na
boa dicção de Fabrizio Camerini é definido como a “desobediência (...) às ordens
282
proferidas pelo Poder Judiciário, por meio de ações que contrariem sua autoridade,
dignidade ou justiça de seus comandos”218.
Como se vê, as sanções respectivamente previstas no artigo 461, § 5º do
CPC e no parágrafo único do artigo 14 do CPC, embora passíveis de serem
impostas em virtude de um mesmo ato, colimam fins absolutamente diversos.
Tanto é assim, que enquanto a primeira delas se destina à parte nas ações
individuais, ou à sociedade no caso das ações coletivas, a segunda é devida, sem
prejuízo das demais sanções criminais, civis e processuais cabíveis, à União (na
hipótese da aplicação pela Justiça do Trabalho), sendo inserida, ex vi legis
(parágrafo único do artigo 14 do CPC), na sua dívida ativa, caso não venha a ser
adimplida no prazo estabelecido pelo magistrado, sempre contado do trânsito em
julgado da decisão final da causa.
Por todo o exposto, não se pode concluir de modo diverso, a não ser para se
compreender que a aplicação cumulada das duas sanções, longe de ferir o princípio
jurídico do non bis in idem, homenageia, a mais não poder, tanto em eficácia
horizontal quanto vertical, o direito fundamental à inafastabilidade da jurisdição
(artigo 5º, XXXV, da CRFB).
6.4 A PARTICIPAÇÃO DE TERCEIROS
À esta altura do estudo, não há mais dúvida de que as tutelas inibitória, de
remoção do ilícito e ressarcitória na forma específica são espécies do gênero
mandamental. Com efeito, as formas primordiais para a satisfação de cada uma
delas têm morada nas disposições do § 5º do artigo 461 do Código de Processo Civil
e do § 5º do artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor.
Ainda assim, vale aqui uma última reflexão, pertinente à possibilidade, ou não,
de se alcançá-las mediante a participação de terceiros que não o réu. Pense-se, por
exemplo, na tutela ressarcitória na forma específica, em que o dano causado a um
determinado bem da vida deva ser recomposto por via do adimplemento de uma
obrigação de fazer. Poderia o cumprimento da prefalada obrigação ser buscado por
via do procedimento insculpido nos artigos 633 e seguintes do CPC?
218 CAMERINI, Fabrizio. Teoria geral da tutela mandamental: conceituação e aplicação. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 159.
283
A possibilidade aviventada, embora não deva ser descartada de plano,
merece ser analisada com moderação. Ocorre que como muito bem adverte o
professor Luiz Guilherme Marinoni, a prática em questão contribuiu em muito para o
pouco prestígio que a tutela in natura detém no ordenamento jurídico brasileiro.
Vale, acerca do asseverado, a reprodução do seu escólio:
Partindo da premissa de que o dano ao direito poderia ser
medido em dinheiro, a doutrina supôs que a tutela ressarcitória poderia ser adequadamente prestada por meio de pecúnia. Isso significa que, no plano dos valores, imaginou-se que o dever de reparar o dano poderia ser convertido em obrigação de pagar soma em dinheiro
No entanto, foi o CPC – sobre o qual tais valores certamente se projetaram – que transformou o direito ao ressarcimento na forma específica em direito ao recebimento de dinheiro. Isso pela simples razão de ter conferido ao jurisdicionado, sem raciocinar adequadamente sobre o direito ao ressarcimento na forma específica, um processo civil completamente incapaz de atendê-lo.
O CPC previu, para o direito ao ressarcimento na forma específica, o processo de conhecimento (condenatório) seguido do processo de execução das obrigações de fazer. Esse último somente poderia se desenvolver por meio da execução por sub-rogação, uma vez que, se a condenação não fosse adimplida, o autor teria que solicitar que a reparação, devida pelo réu, fosse realizada por um terceiro.
A opção pela nomeação de um terceiro para fazer aquilo que deveria ter sido feito pelo réu não só acarretava grande demora, como também custos para o autor, que ficava obrigado, segundo a disposição do art. 634, § 7.º, do CPC, a adiantar as despesas necessárias ao fazer. Ora, se o autor, mesmo depois de dois ou três anos de processo de conhecimento, deve pagar para que um terceiro faça o que deveria ter sido feito pelo réu, lhe é muito melhor arcar imediatamente com as custas para a reparação do dano (sem a necessidade de processo judicial) e depois postular a condenação do infrator a pagar indenização equivalente ao seu valor.
Nesse sentido, é correto afirmar que o CPC transformou o direito à reparação do dano em direito à obtenção de soma em dinheiro. Isso pelo motivo de que o modelo que foi por ele estruturado para o ressarcimento é completamente inidôneo para a prestação da tutela ressarcitória na forma específica, e assim para atender aos direitos que melhor se adaptam a essa forma de ressarcimento.219
Como demonstrado, portanto, o modelo de satisfação da obligatio faciendi por
via de um terceiro, às expensas do devedor, possui a desvirtude de preterir a busca
judicial da tutela ressarcitória na forma específica. Assim é que se pode concluir, a
219 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 443, 444.
284
contrario sensu, que o sistema satisfativo previsto no § 5º do artigo 461 do CPC e no
§ 5º do artigo 84 do CDC, deve preferir àquele outro estatuído nos artigos 633 e
seguintes do CPC.
Ainda assim, o fato é que as possibilidades de adimplemento das obrigações
de fazer por parte de terceiros, não devem ser descartadas por inteiro. Tanto é
verdade, que o próprio § 5º do artigo 461 do CPC, bem como § 5º do artigo 84 do
CDC, ao usarem a expressão ‘tais como’ nos seus enunciados, deixam claro que os
meios neles elencados para a satisfação dos provimentos mandamentais não
constituem um numerus clausus.
Logo, em todas as ocasiões em que o for conveniente, como naquelas
hipóteses em que o réu não esteja tecnicamente habilitado a implementar o fazer
pessoalmente, estará o magistrado autorizado a se valer da técnica preconizada
pelos artigos 633 e seguintes do Código de Processo Civil para a obtenção do
resultado almejado pela tutela ressarcitória na forma específica.
Há de se ressaltar, que ao contrário do que parecem indicar os artigos 633 e
634 do CPC, o magistrado poderá fazê-lo de ofício, já que no caso estará se
utilizando da técnica em questão à luz do permissivo estampilhado no § 5º do artigo
461 do CPC e no § 5º do artigo 84 do CDC.
Ao deflagrar o procedimento, obviamente, o julgador deverá se valer
analogicamente dos procedimentos licitatórios, cercando-se de cuidados para que a
obra seja realizada por alguém capacitado para a sua execução, com um preço
adequado aos valores praticados no mercado. Em tal fase, naturalmente, as partes
deverão ter garantido, na sua máxima plenitude, o contraditório e a ampla defesa.
Ultrapassado o degrau retro, o juiz deverá determinar que o réu, em um prazo
razoável assinalado, deposite em juízo o montante necessário para o início das
obras. Para evitar que ele deixe de cumprir o determinado espontaneamente, o juiz
poderá, por exemplo, se valer do expediente de cominar-lhe astreintes.
Nem se objete que incidiria à espécie a Súmula nº 500 do Supremo Tribunal
Federal, que veda a utilização de expedientes cominatórios para a implementação
de obrigações de dar. Ocorre que aqui, às escâncaras, o que está em jogo não é
uma obrigação de dar, mas sim a tutela ressarcitória na forma específica
determinada diretamente pelo juízo no comando sentencial. Tem-se no pertinente,
embora sem tocar no enunciado sumular em questão, mas laborando dentro de uma
diretiva que se encaixa justa ao debate travado, o magistério de Marinoni:
285
Não importa, em termos de ressarcimento na forma
específica, que o autor do ilícito não tenha capacidade de reparar o dano pessoalmente, e que assim a reparação deva ocorrer mediante a atividade de um terceiro. Não é correto supor que a obrigação de reparar o dano se transforma em obrigação de pagar soma em dinheiro apenas porque não pode ser cumprida pessoalmente pelo infrator. Em outros termos, não é porque o fazer deve ser prestado por um terceiro às custas do devedor que o ressarcimento na forma específica será obstaculizado. Como é óbvio, o dever de reparar na forma específica não desaparece pelo fato de o infrator não possuir capacidade técnica para a reparação.220
Nem se argumente, outrossim, que à luz do disposto no parágrafo único do
artigo 634 do CPC, o adiantamento das quantias necessárias ao adimplemento da
tutela ressarcitória na forma específica seria de obrigação do exequente.
Ocorre que o preceptivo em questão não passa de malfazeja herança liberal,
que, em última instância, conspira de morte contra o interesse do credor que já teve
uma sentença cognitiva reconhecendo a sua razão, em fazer valer o seu direito
constitucional à tutela jurisdicional adequada e efetiva (artigo 5º, XXXV, da CRFB).
Ao fim e ao cabo, uma leitura de tal jaez acabaria por maltratar a própria
lógica da tutela ressarcitória na forma específica, porque estimularia o autor a
custear extrajudicialmente o cumprimento da obrigação de fazer às suas expensas,
vindo a juízo, posteriormente, apenas para pleitear a indenização correlata, em mera
utilização da tutela ressarcitória pelo equivalente monetário.
Com efeito, na hipótese de o réu depositar o montante espontaneamente, o
juízo dará, ato subsequente, início às obras. Caso contrário, ele apresará junto ao
patrimônio do vindicado os valores a tanto necessários, acrescidos, obviamente, das
astreintes previamente cominadas, passando, na sequência, à fase concreta de
satisfação plena do julgado.
Um vez prestado o fato, o juiz ouvirá as partes no prazo de dez dias. Em não
havendo impugnação, dará por cumprida a obrigação. Caso contrário, ele resolverá
a objeção lançada por algum dos contendores (artigo 635 do CPC).
220 MARINONI, Luiz Guilherme. Ibid., p. 456..
286
CONCLUSÃO
Os indicadores estatísticos sobre acidentes laborais reproduzidos no curso da
dissertação, revelam que o Direito do Trabalho apresenta índices deficitários no que
diz respeito à proteção da integridade física e psíquica do cidadão-trabalhador.
Pode-se concluir, com efeito, que se idealmente o princípio protecionista é a
mola mestra do Direito do Trabalho, o juslaboralismo paradoxalmente não tem
cumprido a contento a sua missão histórica.
A bem da verdade, ao optar pela monetização da saúde do trabalhador, feita
em detrimento da tomada de medidas concretas de adequação ambiental, o direito
laboral muito mais se presta a compensar infimamente o prestador de serviços pelas
agressões à sua integridade física e psíquica, do que propriamente a protegê-lo. Eis
aí o que a pesquisa denominou como sendo o ‘engodo juslaboral originário’,
encarando-o como o próprio pecado original do Direito do Trabalho.
Conclui-se, assim, que faz-se necessária a construção de um novo modelo
justrabalhista, plasmado nas bases estruturantes de um Estado Democrático-
Ambiental de Direito, cujo coração repousa no artigo 225 da Constituição da
República, a dizer que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações.
Nesta perspectiva, não se pode pensar de modo diverso, a não ser para se
concluir que o principal direito dos trabalhadores é aquele previsto no artigo 7º,
inciso XXII, da Constituição da República, a proclamar a fundamentalidade do
interesse obreiro na redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de
saúde, higiene e segurança.
Por corolário lógico, o novo modelo justrabalhista proposto pela presente
dissertação pode perfeitamente resultar de uma aproximação do Direito do Trabalho
com o Direito Ambiental, que permita ao primeiro, embebido da principiologia do
segundo, verdadeiramente cumprir o seu desiderato protecionista.
É imprescindível, pois, que o juslaboralismo seja adensado pelas
possibilidades advindas do vetor jusambiental do poluidor-pagador, visto pelas
vertentes da prevenção, da precaução e da responsabilidade fundada nos riscos
ambientais-laborais.
287
Assim é que o empregador deverá em um primeiro momento pagar para não
poluir, sendo instado, portanto, à tomada de todas as medidas ambientais capazes
de garantir a preservação da saúde dos seus empregados (prevenção e precaução).
Não sendo exitosa a prefalada diretiva, o empregador deverá indenizar
objetivamente os seus empregados naquelas circunstâncias em que os fatores
ambientais-laborais gerarem um abalo à saúde de cada um deles, pagando, de tal
arte, por ter poluído (responsabilidade fundada nos riscos ambientais laborais).
Tal visão, embora importante, evidentemente não é suficiente. Há de se
concluir, ainda, que se o Direito do Trabalho reclama um novo modelo, também o
Processo do Trabalho deverá ser repensado. Nunca é demais lembrar que o direito
adjetivo é um instrumento de materialização jurisdicional do direito substantivo.
A primeira questão a notar, neste diapasão, é que se atualmente existe
estruturada uma sociedade de massas e de riscos, a jurisdição coletiva deverá ser
priorizada em face da individual, do mesmo modo que a tutela repressiva deverá
ceder espaço à preventiva.
Demais disso, como as necessidades contemporâneas são múltiplas e
variadas, o procedimento, enquanto manifestação extrínseca do processo, anseia
por ser fluido e variável, havendo de ser conformado pelo magistrado à luz dos
casos concretos submetidos à sua apreciação.
Sobreleva dizer que a noção de ‘devido processo legal’ deve ser substituída
pela idéia de um ‘devido processo constitucionalmente estruturado e
ambientalmente justo’, que seja capaz de garantir o contraditório e a ampla defesa a
ambas as partes, além de produzir resultados hábeis à concretização da promessa
constitucional de uma vida plena e abundante.
O direito de ação, com efeito, deverá deixar de ser encarado como um mero
direito subjetivo público de invocação da tutela jurisdicional, para assumir a
transindividualidade inerente à prefalada sociedade de massas e de riscos.
Como corolário da supremacia da preventividade sobre a repressividade, a
teoria trinária de classificação das ações cognitivas haverá de ceder espaço à teoria
quinária, de modo a que os provimentos mandamentais e executivos lato sensu
venham se somar aos declaratórios, constitutivos e condenatórios.
Reside no vaticínio anterior, aliás, a principal conclusão do trabalho
desenvolvido, consubstanciada na visão de que os provimentos processuais
mandamentais são aqueles que se mostram mais adequados para a inibição e/ou
288
debelação das crises ambientais trabalhistas, quer sejam elas de dimensão
desumanizante, físico-ergonômica ou psíquico-moral.
Ocorre que das aludidas crises resultam uma série de interesses, difusos,
coletivos e/ou individuais homogêneos, que merecem ser satisfeitos pelas técnicas
adjetivas.
Como é palmar, as tutelas de mérito objetivam, basicamente, combater o
ilícito ou o dano. No ataque ao ilícito, tem-se presente a idéia de preventividade. No
combate ao dano, de sua vez, trabalha-se com a idéia da repressividade.
Não é sequer necessário enfatizar, assim, que a vedação do ilícito constitui-se
na principal coluna de sustentação do novo modelo justrabalhista proposto. Isto
equivale a estatuir, em última instância, que as técnicas processuais mais
adequadas para o atingimento do aludido objetivo são as tutelas inibitória e de
remoção do ilícito.
O escopo da tutela inibitória é o de evitar a configuração de um ato contrário
ao direito. Nela almeja-se, por via da imposição de uma obrigação de fazer ou não
fazer, a inviabilização da consumação ou da repetição de uma conduta capaz de
malferir o ordenamento jurídico. Por outro lado, vislumbra-se a possibilidade de uso
da tutela de remoção do ilícito, quando este último, embora já exaurido e sem a
viabilidade aparente de se repetir, continua a gerar efeitos no tempo.
O fato concreto, porém, é que nem sempre o ilícito é inibido ou removido
atempadamente. Em situações que tais, os danos são inevitáveis. Abre-se espaço
no caso à ‘tutela ressarcitória na forma específica’ (tutela in natura) em detrimento
da ‘tutela ressarcitória pelo equivalente monetário’ (tutela in pecunia), já que a
primeira, ao contrário da segunda, tem o escopo centrado na reconstituição o mais
próximo possível de uma situação que existiria caso o dano não tivesse jamais se
consumado.
Conclui-se, finalmente, que todas as anteditas tutelas devem ser
implementadas na forma específica e com urgência, sendo impostas por via das
técnicas insertas nos §§ 5º dos artigos 84 do Código de Defesa do Consumidor e
461 do Código de Processo Civil, que colocam à disposição do Juiz do Trabalho,
dentre outras, as possibilidades da imposição de astreintes, da busca e apreensão,
da remoção de pessoas e coisas, do desfazimento de obras e do impedimento de
atividade nociva, se necessário com a requisição de força policial.
289
PARA ALÉM DE UMA CONCLUSÃO: APONTANDO AO FUTURO
No seu consagrado livro chamado El Drecho Dúctil. Ley, Derechos, Justicia (Il
Diritto mitte. Legge, diritti, giustizia, no original em italiano), o jurista Gustavo
Zagrebelsky, ao tratar do tema “sepación de la justicia respecto de la ley”, discorre
sobre a necessidade de que os princípios constitucionais sejam encarados como
objetivos a serem seguidos pelos poderes públicos, alertando, ademais, para o fato
de que o cenário jurídico não é estático ou voltado para o passado, sendo, na
realidade, dinâmico e aberto para o futuro. Pela relevância das suas palavras, insta
transcrevê-las integralmente:
El segundo rasgo característico del constitucionalismo de
nuestro tiempo consiste en la fijación, mediante normas constitucionales, de principios de justicia material destinados a informar todo el ordenamiento jurídico. Esto constituye un cambio importante respecto a las concepciones del Estado de derecho. Durante mucho tiempo no se advertió y tales principios fueron relegados ao limbo de las proclamaciones meramente <políticas>, sin incidencia jurídica práctica.
Los principios de justicia material se han ido enriqueciendo y generalizando a medida que se han hecho evidentes las consecuencias <pertubadoras> y los costes sociales de los derechos individuales orientados a la libertad.
Ya desde antiguo, se advertió en el ámbito del derecho privado la necessidad de circunscribir la autonomía individual, previéndose para ello la nulidad de los actos jurídicos que contravinieran, <el orden público>. En el blecer (junto a las <buenas costumbres>) un límite que la autonomía privada no podía traspasar. El ordenamiento defendía de este modo los valores fundamentales sobre los que se levantaba frente a la anarquía del libre juego de las voluntades individuales. En la actualidad se va mucho más allá. Los principios de justicia vienen previstos en la Constitución como objetivos que los poderes publicos deben perseguir. El cuadro nos es estático, vuelto hacia el pasado, sino dinámico y abierto al futuro. El Estado no está llamado sólo a impedir, sino también a promover, empeñando positivamente para este fin sus proprias fuerzas y las de los sujetos privados.221
É agora chegado o momento, dentro do espírito da preleção transcrita, de se
projetar aquilo que ainda está por vir. A questão a saber, de tal arte, é a que diz
respeito às perspectivas vindouras do juslaboralismo, tanto no âmbito material
quanto no processual.
221 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. 9 ed. Madrid: Editorial Trotta, 2009.
290
Atualmente, como assevera Zagrebelsky, “el Estado no está llamado sólo a
impedir, sino también a promover, empeñando positivamente para este fin sus
proprias fuerzas y las de los sujetos privados”.
Com os olhos voltados para o aludido vaticínio, importa assentar que o futuro
do justrabalhismo está intimamente atrelado à materialização dos preceitos
estatuídos nos artigos 7º, XXII e 225, caput da Constituição da República, a
estatuírem, respectivamente, que os trabalhadores têm direito à redução dos riscos
inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, e que
todos têm direito ao meio ambiente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida.
Assim é que se impõe ao Estado o dever de defender e preservar a
integridade ambiental, quer seja no prisma natural e/ou no artificial-laboral, fazendo-
o tanto para as presentes quanto para as futuras gerações, “empeñando
positivamente para este fin sus proprias fuerzas y las de los sujetos privados”.
Vale dizer, em última instância, que se “los principios de justicia vienen
previstos en la Constitución como objetivos que los poderes publicos deben
perseguir”, o Estado deverá estar atento para a necessidade de não apenas
proclamar, mas, sobretudo, de implementar os valores ínsitos ao Estado
Democrático-Ambiental de Direito, cuidando de resguardar tanto a eficácia vertical
quanto a horizontal do direito fundamental à fruição de um meio ambiente
equilibrado a que fazem jus a sociedade em geral e os trabalhadores em específico.
Falando em termos judiciários propriamente trabalhistas, será necessário,
para tanto, que os juristas do universo laboral percebam que o Direito e o Processo
do Trabalho não são ilhas isoladas, sendo incontornável, pois, a necessidade
contemporânea de que tais ramos do direito se disponham a dialogar com os
demais, principalmente com os Direitos Constitucional, Ambiental e Processual Civil.
Uma boa receita para o cumprimento da antedita tarefa dialógica talvez seja a
da aproximação mais explícita e incisiva dos sistemas da civil law e da commom law,
favorecendo no ordenamento jurídico brasileiro a assunção da lógica inerente à law-
making authority.
Sobre o movimento de aproximação dos dois sistemas, assim se pronuncia o
professor Luiz Guilherme Marinoni na sua recente obra chamada Precedentes
Obrigatórios:
291
O que permite dizer que o juiz do commom law cria o direito é a comparação do seu papel com o do juiz da tradição do civil law, cuja função se limitava à mecânica aplicação da lei. Neste sistema, quando se dizia que ao juiz cabia apenas expressar as palavras ditadas pelo legislador, o direito era concebido unicamente como a lei. A tarefa do judiciário se resumia à aplicação das normas gerais.
(...) A evolução da civil law, particularmente em virtude do impacto
do constitucionalismo, deu aos juízes um poder similar àquele do juiz inglês submetido ao common law e, bem mais claramente, ao poder do juiz americano, dotado do poder de controlar a lei a partir da Constituição. No instante que a lei perde a supremacia, submetendo-se à Constituição, transforma-se não apenas o conceito de direito, mas igualmente o significado de jurisdição. O juiz deixa de ser um servo da lei e assume o dever de dimensioná-la na medida dos direitos positivados na Constituição. (...)
Com efeito, se alguém perguntar a qualquer teórico do commom law a respeito da natureza da função do juiz que não aplica a lei por reputá-la inconstitucional, que se vale da técnica da interpretação conforme a Constituição ou que supre a omissão de uma regra processual que deveria ter sido estabelecida em virtude de um direito fundamental de natureza processual, certamente se surpreenderá. Tal atividade obviamente não significa declaração de direito, e assim, na perspectiva das doutrinas produzidas no commom law, certamente revela uma atividade produtora, verdadeira criação judicial do direito.222
Percebe-se, a partir da leitura do escólio reproduzido, que o juiz
contemporâneo não pode mais se contentar em aplicar acriticamente a lei. Pode-se
vislumbrar atualmente a existência de suficiente espaço para que o magistrado, nos
marcos do Estado Democrático-Ambiental de Direito, sem necessariamente romper
com a tradição romano-germânica, assuma de vez a sua função criadora do direito,
o que em termos juslaboralistas implicará na reconstrução dialógico-normativa do
direito material e processual do trabalho, a ser jurisprudencialmente implementada.
Este, aliás, será um excelente tema para uma próxima pesquisa. A ver.
222 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 39, 40, 41.
292
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