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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE MÍDIA Assim caminha a humanidade? Um estudo sobre gêneros televisivos, narrativa transmídia e consumo juvenil a partir de Malhação Marcelo Henrique de Mendonça Lopes Orientadora: Profª Drª. Ariane Diniz Holzbach Niterói Dezembro /2011

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAO SOCIAL

    GRADUAO EM ESTUDOS DE MDIA

    Assim caminha a humanidade? Um estudo sobre gneros televisivos, narrativa transmdia e consumo juvenil

    a partir de Malhao

    Marcelo Henrique de Mendona Lopes

    Orientadora: Prof Dr. Ariane Diniz Holzbach

    Niteri Dezembro /2011

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    Marcelo Henrique de Mendona Lopes

    Assim caminha a humanidade? Um estudo sobre gneros televisivos, narrativa transmdia e consumo juvenil

    a partir de Malhao

    Monografia a ser apresentada ao Curso de Graduao em Estudos de Mdia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do Grau de Bacharel em Estudos de Mdia.

    Orientadora: Prof Dr. Ariane Diniz Holzbach

    Niteri Dezembro/2011

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    Marcelo Henrique de Mendona Lopes

    Assim caminha a humanidade? Um estudo sobre gneros televisivos, narrativa transmdia e consumo juvenil

    a partir de Malhao

    Monografia a ser apresentada ao Curso de Graduao em Estudos de Mdia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do Grau de Bacharel em Estudos de Mdia.

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________________________ Prof. Dr. Ariane Holzbach

    UFF

    _______________________________________________________________ Prof. Dr. Afonso de Albuquerque

    UFF

    _______________________________________________________________ Prof. Dr. Carla Barros

    UFF

    Niteri, 15 de dezembro de 2011

  • 4

    Agradecimentos

    Dedico este trabalho s pessoas que me ajudaram ao longo desta trajetria.

    minha me, Ana Luiza, pela garra e coragem em minha educao. Pelos

    esforos para me ajudar a alcanar meus objetivos, mesmo quando passo a

    desacreditar, e por estar sempre vibrando ao meu lado a cada conquista. Pelo incentivo

    e total confiana em minhas escolhas. Por ter me mostrado um mundo cheio de sonhos

    possveis de realizao.

    Ao meu irmo mais velho e maior amigo, Pedro, pela bibliografia e ombros

    emprestados, pelas longas conversas e a cumplicidade de sempre. Ao caula, Caio,

    por interromper meus estudos frequentemente, mas para me trazer a quantidade

    necessria de sorrisos para que eu pudesse continuar.

    Ao meu padrasto, Jos Augusto, meus avs e tios, por todo o suporte em minha

    educao e formao de carter.

    minha orientadora e amiga Ariane Holzbach, pelos ensinamentos

    acadmicos, profissionais e pessoais. Por me apresentar o campo prtico da

    comunicao, desde o simples ato atender o telefone em meu primeiro estgio,

    produo textual, linguagens e organizao miditica. Obrigado por tudo.

    professora Carla Barros, pela imediata aceitao para participar desta banca.

    Obrigado por fazer parte de um momento to importante para a minha vida acadmica.

    Ao professor Afonso de Albuquerque, por me fazer acreditar em Estudos de

    Mdia, e me dar total confiana no curso quando poucos o conheciam. Pelas aulas e

    conversas que abriram meus olhos para as possibilidades da comunicao.

    professora Ana Enne, pelas aulas, os abraos e as gargalhadas extra-classe.

    Ao professor Marildo Nercolini, pelas aulas maravilhosas que me fizeram enxergar um

    mundo diferente; pelo apoio em minha quase-carreira acadmica.

    Por ltimo, mas no menos importante, agradeo aos amigos que alegraram

    minha rotina durante estes cinco anos. Em especial: Vanessa Mello, Vanessa Morais,

    Rebecca Cdimo e Claudinne Peixoto. Obrigado por compartilharem dvidas,

    angstias, sonhos e alegrias pelos anos que passaram e, certamente, pelos que viro.

    Ainda bem que a gente tem a gente.

  • 5

    Ningum est livre de dizer asneiras: o mal consiste em diz-las com pompa...

    Isso no se aplica a mim, que digo as minhas tolices to naturalmente como as penso

    Michel de Montaigne, Ensaios III.

  • 6

    RESUMO:

    Uma das narrativas seriadas mais duradouras da televiso

    brasileira, Malhao exibida desde 1995 ininterruptamente pela Rede Globo. A

    proposta deste trabalho consiste em analisar a produo destinada aos jovens e suas

    diversas tentativas de fidelizar a audincia em experincias megalomanacas para os

    padres nacionais. O estudo busca compreender, atravs de uma reflexo terica, a

    questo dos gneros e formatos televisivos observada no objeto. A formao do

    adolescente enquanto pblico consumidor analisada historicamente, mapeando os

    artifcios usados posteriormente em Malhao.

    Palavras - chave:

    Malhao, adolescente, consumo, gneros, formatos

  • 7

    SUMRIO Introduo ............................................................................................................09

    Captulo I: Novela? Soap Opera? O que Malhao?.......................................12

    1.1-Conhecendo o objeto.........................................................................................12

    1.2 - Bases da teledramaturgia brasileira diria.......................................................17

    1.3 - O jovem na teledramaturgia diria .................................................................19

    1.4 - Soap-opera? Malhao nas fontes da dramaturgia internacional...................20

    1.5- O adolescente e a soap-opera .......................................................................22

    Captulo II: O jovem como pblico consumidor.................................................24

    2.1 - A construo da juventude ............................................................................25

    2.2 - O jovem como pblico consumidor ...............................................................26

    2.3 - Afinal, o que quer o jovem? ..........................................................................37

    Captulo III: Entretenimento transmdia e branded............................................38

    3.1 Mudanas narrativas ...................................................................................38

    3.2 Branded Entertainment ................................................................................40

    3.3 Narrativa transmdia .....................................................................................40

    3.4 O papel do f para a experincia transmdia ................................................45

    3.5 Product Placement e a publicidade na telenovela..........................................47

    3.6 Merchandising social......................................................................................50

    Captulo IV: Malhao...........................................................................................53

    4.1 Conhecendo Malhao ...............................................................................53

    4.2 Malhao e gnero .......................................................................................59

    4.3 O jovem, consumo e Malhao ....................................................................61

    4.3.1 Malhao como marca: os licenciamentos ................................................62

  • 8

    4.3.2 Malhao e Product Placement...................................................................63

    4.3.3 Merchandising social em Malhao.............................................................65

    4.3.4 Msica como uma extenso de Malhao...................................................67

    4.4 A aposta da Malhao em interatividade........................................................68

    4.5 Malhao feita pelos fs.................................................................................73

    Consideraes finais.............................................................................................75

    Referncias............. ..............................................................................................79

  • 9

    Introduo

    Desde minha infncia, sou aficcionado por televiso. Antes acostumado a us-

    la como relgio e calendrio, alguns de seus programas marcavam momentos e

    pocas em minha vida. Dentre eles, destaco o incio de minhas aulas no primeiro ano

    do Ensino Fundamental, em maro de 1995, e a expectativa pela nova programao da

    TV Globo, que estrearia um ms depois, trazendo o folhetim Malhao como um de

    seus principais lanamentos.

    A novela e depois entenderemos o porqu das aspas comeou e foi um

    grande xito, permanecendo no ar at hoje (2011), quando finalizo meu ltimo ano do

    Ensino Superior. Mas o que garante o sucesso da produo para ser exibida por mais

    de uma dcada ininterruptamente?

    Ao optar por Malhao como objeto de estudo, deparei-me com questes

    inerentes, do tipo qual a melhor abordagem? Como recortar o produto de modo que

    fizesse sentido? De que forma fazer o melhor uso deste rico objeto para uma

    contribuio positiva para o campo acadmico? Como relacion-lo com importantes

    tericos da Comunicao?

    Meu objetivo principal estudar um produto de destaque na teledramaturgia

    brasileira, que, no entanto, no recebe a visibilidade acadmica e reconhecimento de

    suas propostas inovadoras, seja em relao ao formato, contedo multiplataforma, ou

    estratgias para atingir o pblico por diversas maneiras. O trabalho ainda visa entender

    como o adolescente foi visto pela narrativa de Malhao e como, massivamente, em

    meios de audincia e repercusso na internet, respondeu a determinadas questes

    levantadas pelo seriado. Atravs do resgate de conceitos bsicos da juventude e do

    que pode ser exibido em um programa de classificao etria livre s 17h30, pela

    maior emissora televisiva do pas, busco entender as representaes do jovem pela

    Malhao e como ela foi alterada durante seus primeiros 16 anos no ar.

  • 10

    Para tanto, o trabalho est dividido em quatro captulos. No primeiro, analiso os

    gneros pelos quais a produo transita: telenovela, seriado, e, principalmente, a soap-

    opera, destacada pelo ento diretor Roberto Talma, desde a estreia, como o formato

    que deu maior base para a estrutura do programa. Frequentemente traduzida como

    novela, soap-opera tradicional em pases como os Estados Unidos e a Inglaterra.

    Comparando em paralelo a criao de uma linguagem prpria da TV brasileira e dos

    pases citados anteriormente, busco entender a recepo das telenovelas e soap

    operas no campo acadmico, considerando os contextos nos quais ambos esto

    inseridos. Ainda no primeiro captulo, apresento o insero do adolescente nos dois

    formatos majoritariamente citados.

    Em seguida, no segundo captulo, abordo o pblico alvo da Malhao: o

    adolescente. Identidade cultural recentemente estabelecida socialmente, os jovens

    cada vez mais formam um pblico consumidor, mas como ele assiste e recebe o que

    exibido no programa juvenil? Ainda no captulo, pretendo relacionar a histria do

    adolescente e da cultura de massa, sobretudo brasileira, a partir dos anos de 1950.

    Como o adolescente, enquanto classe social, era representado; os espaos por onde

    era possvel circular; a questo da rebeldia nas representaes; e a diferena ocorrida

    em 1995, com a estreia do objeto aqui apresentado.

    No terceiro captulo, apresento os conceitos de algumas estratgias

    publicitrias utilizadas por Malhao para atingir o pblico jovem. A experincia do

    consumidor atravs de teorias do branded entertainment observada por artifcios de

    narrativa transmdia, licenciamento de produtos, product placement e o merchandising

    social.

    No quarto e ltimo captulo, aprofundo questes abordadas por Malhao. A

    partir da anlise de cada grande mudana ocorrida no folhetim e na forma como o

    adolescente era representado na tela , busco entender os motivos de fuga de pblico

    cada vez maior e algumas estratgias, principalmente multiplataforma, para a

    fidelizao do pblico. Considerando as diversas mudanas enfrentadas pela

    produo, analiso os ndices de audincia e o que ocasionou as quedas e os xitos. No

    mesmo captulo, aplico as teorias de gnero, consumo e publicidade ao tempo em que

    exibida. Os produtos licenciados por Malhao, o product placement na TV, a

  • 11

    interatividade proposta com a popularizao da internet e, principalmente, a formao

    de um produto televisivo em uma marca que vai alm do veculo. A relao do pblico

    na internet e rastro de cultura participativa nos casos Malhao.com, de 1998, e

    Malhao ID, exibido em 2010. Ainda no captulo quatro, destaco a participao e

    apropriaes dos fs em redes sociais.

  • 12

    Captulo I: Novela? Soap Opera? O que Malhao?

    1.1. Conhecendo o objeto

    Em 24 de abril de 1995, a Rede Globo estreava Malhao, um dos primeiros

    produtos declaradamente voltados ao pblico adolescente na emissora. Sob direo

    geral de Roberto Talma, o produto servia como uma espcie de laboratrio para alunos

    que se destacassem na oficina de roteiristas, buscando inovao na linguagem e

    permitindo uma maior experimentao da produo.

    Em sua maioria, o elenco era formado por jovens atores quase todos

    estreantes na TV e alguns poucos mais velhos, j consagrados. Artistas como John

    Herbert, Nair Bello, Silvia Pfeifer e Mario Gomes estrelavam o elenco adulto que servia

    de apoio aos protagonistas na faixa dos 20 anos. Apenas na primeira temporada,

    Malhao contou com Danton Mello, Fernanda Rodrigues, Carolina Dieckmann, Andr

    Marques, Luigi Baricelli, dentre outros que at hoje se destacam na carreira,

    confirmando o xito da proposta de revelar talentos por meio da produo vespertina.

    No princpio, as tramas de Malhao eram costuradas durante uma semana,

    como uma histria fechada. Os personagens e ambientes eram os mesmos e havia

    certa linearidade narrativa, porm algumas histrias especficas eram iniciadas na

    segunda-feira e terminavam na sexta, j apresentando um fio-condutor a ser abordado

    na semana seguinte, em um modelo prximo ao apresentado por seriados norte-

    americanos. O formato permaneceu ao longo dos primeiros anos da produo. Depois,

    as tramas passam a ser contnuas, sem haver preocupao de concluir a histria,

    aproximando-se ento da tradicional telenovela brasileira.

    Esta foi apenas uma das mudanas ocorridas na estrutura narrativa.

    Geralmente ligada experimentao, foram testadas formas de trazer novidade para a

    TV, apostando em relao com internet, fazendo novela ao vivo, e reconstruindo

    universos por onde permeou a trama, mas sem deixar de lado alguns dos principais

    jarges melodramticos caractersticos da teledramaturgia nacional.

  • 13

    Antes de aprofundar as questes prticas referentes s mudanas ocorridas na

    narrativa da Malhao no decorrer dos 16 anos em que exibida, importante

    apresentar e salientar alguns pontos cruciais para o enriquecimento da discusso

    acerca de gneros e formatos propostos pela produo. Transitando por diversas

    definies, no existe um consenso em relao ao gnero em que seja facilmente

    inserida. No Dicionrio da TV Globo1, por exemplo, a obra vespertina encaixada na

    seo de seriados, ao lado de produtos como a mensal Retrato de Mulher (1993) e a

    semanal A Justiceira (1997).

    Exibida inicialmente em 1995, Malhao apresentava um formato inovador para

    os padres da televiso brasileira. Inaugurava-se um novo conceito de dramaturgia na

    TV Globo, claramente inspirado nas soap-operas norte-americanas, onde uma das

    principais caractersticas a falta de previso para trmino, seguindo sempre a sua

    proposta inicial.

    A imprensa brasileira, no entanto, costuma se referir a Malhao geralmente

    como novela, como no exemplo encontrado no portal de entretenimento do jornal Folha

    de S. Paulo:

    A novela "Malhao", da Globo, enfrenta srios problemas de audincia. Na quinta, a trama adolescente marcou apenas 12 pontos no Ibope da Grande SP. Pior ndice da atual temporada2. (Jornal Folha de S. Paulo, 29 de outubro de 2011)

    Tal taxonomia compreensvel, afinal o termo soap-opera geralmente recebe e

    portugus a traduo simplista novela. Malhao, entretanto, rene caractersticas

    especficas que no tornam possvel o agrupamento em um nico gnero.

    Com base em premissas de Aristteles, Jos Carlos Aronchi (2004) prope o

    agrupamento em diferentes grupos ou categorias, e, metaforicamente, compara a

    grade de programao com gavetas isoladas, onde seriam colocados os programas de

    cada gnero/ formato:

    1 Dicionrio da TV Globo, publicado pela Editora Jorge ZAHAR, rene todos os programas de dramaturgia e

    entretenimento produzidos e exibidos pela TV Globo desde a sua inaugurao, em 1965, at seu lanamento em 2007. 2 Trecho retirado da Coluna Zapping, assinada por Alberto Pereira Junior, em 29/10/2011 http://bit.ly/v9kqaD

  • 14

    Costumamos ordenar tudo que existe em diferentes grupos ou categorias: animais, vegetais, veculos automotores, eletrodomsticos etc., como se os colocssemos em gavetas diferentes. A classificao por categorias o princpio da lgica de Aristteles. (ARONCHI, 2004, p. 37)

    Obras hbridas, no entanto, no so levadas em considerao no estudo de

    Aronchi. Para encaixar o objeto aqui estudado em determinada gaveta, necessrio

    que se faa um levantamento das principais caractersticas de cada um dos gneros.

    O conceito de gnero chave essencial para o entendimento dos meios de

    produo e formas de recepo dos programas televisivos. Franois Jost (2004) define

    que tal conceito apresentado a partir de um campo comum sobre o qual se tornam

    claros as escolhas do realizador e os olhares do telespectador. Ainda sobre a relao

    entre emissor e receptor, as intenes ao delimitar um gnero podem no ficar

    claramente explcitas em ambas as partes. Como ressaltado pelo autor, existem dois

    momentos da promessa: o primeiro, em que o emissor define o que quer transmitir; e

    o segundo, quando o receptor recebe ou no na inteno proposta. Em sua

    investigao, o francs ainda divide as narrativas televisivas em: real, ficcional e ldico.

    Outros autores, como Elizabeth Duarte (2006) e o j citado Jos Carlos Aronchi

    (2004), defendem que o agrupamento no pode ser feito apenas por gnero, mas

    tambm por subgneros e formatos. Uma narrativa pode cruzar mais de um dos

    gneros apresentados por Jost. Em um reality show como o Big Brother so misturados

    o real e o ficcional quando criadas situaes que levantem novas discusses ao jogo

    , deixando claro que os gneros defendidos acima dialogam entre si.Para estudarmos

    Malhao, ento, precisamos conhecer melhor os formatos televisivos mais usuais no

    Brasil, pelos quais transitam a produo da Rede Globo.

    Para Arlindo Machado (2005), existem trs tipos de principais de narrativas

    seriadas na televiso. No primeiro caso, apresentada uma nica narrativa ou vrias

    entrelaadas e paralelas , como o caso das telenovelas brasileiras. Sua construo

    teleolgica se resume fundamentalmente em um conflito bsico apresentado no incio,

    causando um desequilbrio estrutural, na qual toda a trama evolui para reestabelecer o

  • 15

    equilibrio perdido, objetivo geralmente alcanado ao fim de cada saga. O segundo caso

    mostra situaes completas e autnomas. Cada episdio tem comeo, meio e fim,

    repetindo-se apenas cenrios e personagens em uma mesma situao narrativa. Cabe

    ressaltar que, segundo o autor, no h ordem de exibio dos episdios, podendo

    invert-los ou embaralh-los aleatoriamente sem que as situaes narrativas sejam

    modificadas. Por fim, o terceiro caso traz em comum apenas o esprito geral das

    histrias ou sua temtica. Em cada unidade, porm, no apenas a histria

    completamente diferente das outras, como tambm so os personagens, atores,

    cenrios e, muitas vezes, at os roteiristas e diretores. Um dos fatores que contibuem

    para a fora das produes seriadas na televiso mundial a facilidade de faz-la em

    larga escala, seguindo os mesmos preceitos adotados por outras esferas industriais.

    Ainda de acordo com Machado, a recepo televisiva tambm costuma favorecer

    ideias e situaes recorrentes, uma vez que a ateno do telespectador pode ser

    facilmente desviada, ao contrrio do cinema.

    Como poderiam ser classificados, afinal, os gneros? Com base na literatura,

    Mikhail Bakhtin (1981) apresentava uma viso mais aberta, o que se adequa melhor

    obra audiovisual aqui estudada. Para o autor russo, os gneros do discurso so

    relativamente estveis, dispostos a organizar ideias, meios e recursos expressivos,

    suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade dos

    produtos e a continuidade dessa forma junto s comunidades futuras3. Mas, para que

    sejam efetivamente entendidos, o pensador russo relativiza os gneros em

    consequncia do momento histrico e situaes sociais aos quais esto inseridos.

    Aronchi usa a Biologia para explicar os estudos televisivos, comparando

    espcies animais com formatos:

    H muita semelhana entre gneros e formatos na televiso no que se refere ao estudo de gnero no campo da Biologia. Assim como na Biologia existem os gneros e as espcies, em televiso coexistem os gneros e os formatos. Pode-se fazer uma analogia, com as devidas diferenas, entre as espcies da Biologia com os formatos da televiso. Na Biologia, vrias espcies constituem um gnero; os gneros,

    3 Arlindo Machado, A televiso levada a srio (So Paulo: Senac, 2005), p. 68.

  • 16

    agrupados, formam uma classe. Em televiso, vrios formatos formam um gnero de programa; esses gneros de programa, agrupados, formam uma categoria. (ARONCHI, 2004, p. 45)

    Em paralelo, o pesquisador norte-americano Jason Mittell apresenta uma viso

    contrria de Aronchi em trabalho lanado no mesmo ano:

    Seguindo as tradies da taxonomia biolgica, para entender uma famlia de sapos, ns precisamos olhar para a maior quantidade de membros de tal categoria. Tradicionalmente, ns fazemos o mesmo com os gneros se voc quiser entender os videoclipes, assista ao mximo que puder. Mas, ao contrrio dos sapos, os videoclipes no se repetem. (Mittell, 2004, p. 8)4

    Ao contrrio dos sapos, gneros so experincias que mudam de acordo com

    a histria e a cultura. Existe uma evoluo interna do gnero, como defendido por Jane

    Feuer, onde ele se molda de acordo com seu contexto histrico-cultural. Para que haja

    um estudo de gnero, necessrio um olhar que observe os produtos de dentro para

    fora, entendendo como eles operam na cultura miditica, moldando-se e redefinindo

    suas caractersticas ao transitar pelos vrios reinos culturais. Mittell defende que os

    gneros televisivos no podem ser entendidos a partir das teorias aplicadas a outros

    meios. Os estudos de gneros literrios so comumente usados como base para as

    pesquisas em televiso.

    O autor prope, ento, que no se parta do pressuposto das anlises

    interpretativas, que geralmente tratam o gnero como esttico e atemporal, ignorando

    os caminhos que envolvem suas relaes com os contextos culturais. necessrio que

    se leve em considerao as experincias que mudam de acordo com a histria e a

    cultura, alterando os gneros ao passo em que os gneros tambm alteram tais

    experincias. Alm disso, como pontua Mittell, os gneros so formados historicamente

    por meio no apenas da narrativa que geram, mas sobretudo do circuito comunicativo

    4 (...) Following from traditions of biological taxonomy, to understand the taxonomic family of frogs, we need to

    look at the members of that category (i.e. frogs). Traditionally, we do the same for genres if you want to understand music videos, watch as many as you can. But unlike frogs, music videos do not reproduce on their own.

  • 17

    em torno dele. A recepo da audincia, o horrio que transmitido, o nome que

    recebe e a crtica, entre outros elementos, so fundamentais para caracterizar e balizar

    o gnero em questo.

    1.2. Bases da teledramaturgia brasileira diria

    Como apontado anteriormente, Malhao frequentemente categorizada como

    novela pela imprensa. Principal gnero da teledramaturgia nacional, o formato

    oriundo do rdio, que criou, alm do produto especfico, um universo ao seu redor. Em

    1942, quase uma dcada antes da televiso comear a funcionar no Brasil, a Rdio

    Nacional do Rio de Janeiro transmitia Em Busca da Felicidade, sua primeira

    radionovela, que foi seguida por grandes sucessos dramatrgicos, como Jernimo, O

    Heri do Serto e O Direito de Nascer.No rdio, as produes geralmente no tinham

    tempo determinado de durao, definindo seus rumos a partir da recepo da

    audincia. O Direito de Nascer ficou no ar por trs anos, enquanto Jernimo, O Heri

    do Serto teve sua veiculao por 14 anos, ambas no incio da dcada de 1950.

    A indstria de entretenimento ao redor das produes era fortemente munida de

    atrativos para prender a ateno do pblico. No apenas os artistas deste gnero, mas

    do veculo em geral, eram grandes estrelas que abriam suas intimidades para revistas

    que desvendavam as imagens por detrs das vozes. Muito semelhante ao tipo de

    trabalho que a imprensa presta hoje s fofocas sobre televiso, principalmente

    telenovela. Como nas notcias frequentemente veiculadas hoje em dia, muito se

    especulava sobre a vida privada dos astros das produes radiofnicas, indicando que

    o gnero da radionovela no morria ali, ao fim de cada captulo, mas seguia para

    outros meios.

    E aquela radioatriz continua sendo cortejada pelo radioator, que casado e bem conhecido. Acho que a histria vai acabar mal... (Revista do Rdio 476, 1 de novembro de 1958).

    Alguns dos principais autores de radionovela se destacaram tambm na

    televiso, como Dias Gomes, Ivani Ribeiro e Janete Clair. Durante os anos de 1960

    dcada de surgimento da TV Globo , o formato radiofnico perdeu um pouco de sua

  • 18

    fora enquanto a telenovela comeava a emergir. J em 1965, a Rede Globo exibiu

    Iluses Perdidas (1965), com a veterana do cinema Leila Diniz encabeando o elenco

    ao lado de Reginaldo Faria. Nesta primeira fase, tramas surrealistas com vis

    folhetinesco ocupavam a grade da emissora. Destaque para O Sheik de Agadir (1967)

    e A Gata de Vison (1968), escritas por Glria Magadan sob referncias da literatura

    estrangeira. Textos mais ligados ao universo real da sociedade brasileira, como

    realizados em sua maioria hoje na TV, entram em questo no fim da mesma dcada

    atravs de consagrados autores do rdio. Janete Clair, por exemplo, alcanou o

    sucesso com obras como Vu de Noiva (1969) e Selva de Pedra (1972). Seguindo o

    mesmo modelo, obras de autores como Glria Perez, Manoel Carlos e Aguinaldo Silva

    os blockbusters da teledramaturgia nacional agregam elementos que se

    aproximem da vida real a uma narrativa ficcional.

    J caracterizado como um grande fenmeno da cultura nacional, a grade

    televisiva brasileira passou a contar com uma diviso de horrios fixa e a maior

    segmentao do seu pblico no incio da dcada de 1970, o que primordial para os

    estudos de Malhao. O primeiro horrio, o das 18 horas, era destinado a obras com

    certo teor pedaggico, porm, a baixa audincia fez com que a emissora colocasse

    desenhos animados e seriados norte-americanos em seu lugar. Apenas em 1975, sob

    comando de Herval Rossano, a faixa atingiu a audincia esperada ao encenar

    adaptaes de obras literrias que seriam mais tarde fonte de prestgio para o canal.

    Helena (1975), Senhora (1975), A Moreninha (1975) e Escrava Isaura (1976) foram

    alguns dos ttulos que marcaram o estilo das telenovelas deste horrio.

    Um pouco mais tarde, s 19 horas, produes com um foco maior na comdia e

    no ldico entravam no ar. Um dos exemplos bem sucedidos, a telenovela Locomotivas,

    de Cassiano Gabus Mendes, lanou moda principalmente entre o pblico jovem,

    exibida entre maro e setembro de 1977. O horrio seguinte, o das 20 horas, era

    destinado primeiramente discusso de temas relacionados ao cotidiano do brasileiro.

    No fim da dcada de 1970, entre as tramas com temas fortes, destacavam-se Pai-

    Heri, Dancin Days e, uma das mais polmicas, Os Gigantes, de Lauro Csar Muniz,

    trazia a eutansia como um dos motes principais. Havia ainda um quarto horrio

    reservado s telenovelas inditas, s 22 horas, com produes focadas em

  • 19

    personagens sensuais alcanando sempre um alto ndice de audincia. A faixa, no

    entanto, no permaneceu na dcada seguinte, sendo Sinal de Alerta, de Dias Gomes,

    a ltima exibida para o horrio, de julho de 1968 a janeiro de 1979.

    No incio da dcada de 1980, a faixa vespertina j apresentava inclinaes para

    o pblico jovem. Em maro de 1983, s 17 horas, entrava no ar o Mrio Fofoca, srie

    destinada ao pblico infanto-juvenil, baseada em personagem de sucesso vivido por

    Luis Gustavo na novela Elas Por Elas, exibida no ano anterior. A partir da, outras

    produes destinadas mesma audincia eram exibidas no horrio, como a

    reapresentao da bem-sucedida Armao Ilimitada (original de 1985, reexibida tarde

    em 1990), de Guel Arraes, e o game-show Radical Chic, j em 1993, com esquetes

    feitas por Andrea Beltro e apresentao de Maria Paula, ex-VJ da MTV.

    Iniciava, ento, uma nova safra de programas voltados ao pblico jovem e

    adolescente, fugindo da esttica infantil como feito em Armao Ilimitada, que usava

    linguagem de quadrinhos, crianas como personagens centrais etc. e discutindo

    temas que dificilmente ganhariam espao em tramas destinadas ao pblico adulto. Vale

    observar o que acontecia na televiso brasileira alm da Rede Globo. Em outubro de

    1990, via UHF, a MTV comeava suas transmisses com programao inteiramente

    voltada ao pblico jovem. Em 1994, a TV Cultura estreava Confisses de Adolescente,

    dirigida pelo global Daniel Filho. Era hora, portanto, da emissora carioca investir em tal

    pblico.

    1.3. O jovem na teledramaturgia

    Estudo realizado por Maddalena Fedele e Nria Garca-Muoz (2010) analisa as

    teen-series a partir dos Anos 1990, o momento em que ocorreu uma expanso de

    produes para este pblico - os "teens" - na Amrica Latina, considerando

    principalmente as que narram a vida de personagens adolescentes. As pesquisadoras

    atentam que este pblico j nasceu e cresceu em um entorno multimiditico, de onde

    recebem estmulos constantes. Por isso, importante que se considere o uso desses

    meios de comunicao apenas uma das mltiplas atividades que os adolescentes

    desenvolvem no tempo livre. Em campo latinoamericano, observou-se uma preferncia

    do pblico por obras seriadas ficcionais.

  • 20

    Alguns estudos de recepo foram realizados com os jovens desde os anos de

    1980, principalmente nos Estados Unidos . Outros pases direcionaram seus olhares a

    este target apenas na dcada seguinte, quando a produo destinada a eles tambm

    aumentou. Aps a pesquisa, observou-se que motivaes do pblico jovem para

    assistir a determinada produo no so muito diferentes dos outros pblicos,

    mostrando que, ao mesmo tempo em que gostam de ver seus reflexos na tela,

    preferem as obras de fico que apresentem um escapismo da realidade e que os tire

    do tdio cotidiano. Verificou-se tambm a funo informativa sobre assuntos e reas

    nas quais os adolescentes querem informaes: regras sociais, relaes interpessoais

    e outros temas de carter amoroso e sexual. Ainda no artigo, Fedele e Garca-Muoz

    destacam a funo social das obras destinadas ao pblico adolescente. Alm da

    funo de entreter, estas sries tm capacidade de incentivar interaes sociais.

    1.4. Soap-opera? Malhao nas fontes da dramaturgia internacional

    Em sua proposta inicial, o formato de Malhao se aproximava ao das soap-

    operas norte-americanas. Mesmo que sejam frequentemente traduzidas como

    novelas, os gneros tm bastante diferenas entre si. Nos estudos de comunicao,

    assim como a telenovela brasileira, a soap-opera frequentemente relegada a um

    lugar de importncia menor nos respectivos lugares onde tm maior alcance.

    As soap-operas comearam a ser veiculadas no horrio nobre em 1930, durante

    a Era do Rdio estadunidense. Durante a depresso econmica dos Estados Unidos, a

    partir do crack da bolsa de valores ocorrido em 1929, o formato teve um papel

    importante para reforar as ideias de american dream e american way of life. De acordo

    com Marilyn Lavin (1995, p. 76), as soap-operas tinham um papel importante para

    encorajar o consumo de massa, apresentando geralmente histrias que traziam fortes

    personagens femininos no centro das aes, encontrando ento seus principais

    consumidores: a dona de casa.O sucesso do formato foi evidente. Menos de dez anos

    depois, 75 horas semanais eram dedicadas s soap-operas, o que tornou o rdio um

    dos nicos meios a alcanarem o crescimento comercial. Marcas de utenslios do uso

    cotidiano, como Colgate-Palmolive e Unilever, conhecidas principalmente pelos

  • 21

    produtos de higiente pessoal, foram as primeiras patrocinadoras, atribuindo o termo

    pelo qual as produes so conhecidas at hoje.

    A principal diferena das soap-operas em comparao s telenovelas latino-

    americanas a questo de no ter data para terminar. Se aqui no Brasil, uma trama

    leva cerca de oito meses para concluir sua exibio, nos pases anglo-saxes as

    histrias ficam no ar por anos ou at mesmo dcadas. One Life To Live, uma das mais

    tradicionais soap-operas dos Estados Unidos, entrou no ar em 15 de julho de 1968,

    permanecendo at hoje em exibio em histria contnua. Victoria Lord, interpretada

    pela premiada Erika Slezak, a personagem h mais tempo presente na trama: entrou

    em 17 de maro de 1971 e continua at hoje como uma das protagonistas. Em

    Malhao ocorre fato semelhante quanto durao do programa, porm, sua narrativa

    no tem continuidade como nas obras produzidas no exterior.

    Nos anos de 1960, o gnero j havia sado do rdio e ganhava espao cativo na

    televiso norte-americana. Primeiramente focadas em conflitos psicolgicos, na dcada

    seguinte as tramas giravam em torno do tempo social. Entre as dcadas de 1970 e

    1980, alcanou o seu melhor momento, com mais de trinta produes em exibio.

    James H. Wittebols (2004) admite que difcil definir a soap-opera enquanto

    gnero, justamente por cada uma ter suas particularidades. O autor observa que duas

    caractersticas so comuns s produes do formato: o desenvolvimento seriado para

    desvendar a narrativa e o uso forte da emoo e do sentimentalismo sempre

    empregados ao melodrama. Pelas caractersticas levantadas por Wittebols,

    poderamos facilmente agrupar as soap-operas com as telenovelas no formato a qual

    estamos acostumados assistir no Brasil, porm as diferenas vo alm de

    caractersticas frequentes em seu texto.

    Mudanas grandes, como acontece em Malhao, no so comuns em soap-

    operas estrangeiras, o que causa uma redefinio do gnero. Em 1999, a produo da

    Rede Globo abandonou a academia de ginstica que serviu de cenrio principal para

    as tramas apresentadas, dispensou todo o elenco, sem deixar qualquer relao com as

    temporadas anteriores. Em vez de jovens vivendo seus dilemas nos corredores da

    academia, os personagens ainda na mesma faixa etria tinham o colgio Mltipla

    Escolha como seu lugar comum. Em soap-operas tradicionais, a produo seria

  • 22

    cancelada dando lugar a uma outra. Malhao, no entanto, manteve o nome, mas

    mudou elenco, equipe de roteiristas e diretores, cenrios, entre outros. O que liga

    Malhao s tramas de todas as temporadas a insero no universo jovem. Mesmo

    que a trama ganhe cada vez mais personagens adultos, os adolescentes esto sempre

    como centro das atenes, abordando assuntos comuns passagem da infncia para

    a vida adulta.

    1.5. O Adolescente e a soap-opera

    O crescimento de outros formatos, como os seriados e sitcoms, ocasionou a

    perda de espao das soap-operas no cenrio norte-americano, porm no causou seu

    desaparecimento. Nos anos de 1980, era notvel que as produes precisavam passar

    por uma reformulao. Cada vez mais, as mulheres entravam no mercado de trabalho

    passando a dedicar menos tempo s soap-operas, o que fez com que os produtores

    desviassem a ateno para o pblico jovem. Personagens adolescentes foram

    incorporados a tradicionais produes, como Port Charles, All My Children, General

    Hospital e a j citada One Life To Live. Ainda com foco em uma audincia entre 16 e 25

    anos, a CBS cria The Young And The Restless, enquanto a NBC cancela a tradicional

    Another World no ar por 30 anos e cria Passions. A identificao em uma soap-

    opera se faz necessria, como enfatiza Dorothy Hobson (2003), porque o pblico

    precisa se sentir familiarizado com ela, mas no quer estar dentro das histrias.

    Na Inglaterra, h mudana de foco na audincia. Em 1982, a soap-opera

    Brookside alcana o sucesso tendo o pblico masculino e jovem como alvo. A troca

    deu certo e a produo ficou por 21 anos no ar pelo Channel 4. As mulheres jovens,

    por sua vez, tiveram seus dilemas dramatizados na Inglaterra atravs de Eastenders,

    no ar desde 1985. A incluso de personagens adolescentes indicou uma audincia

    crescente sobretudo nos horrios vespertinos. Em um estudo mais detalhado sobre a

    atrao voltada s mulheres jovens, David Buckingham, pesquisador do Instituto de

    Educao da Universidade de Londres, conversou com 60 jovens um ano aps a

    estreia da trama. O pblico selecionado, a maioria da classe operria, declarou que

    gosta de ver a vida escolar oficializada nas telas, e ainda argumentou que acha

    importante importante que se abra uma discusso acerca de seus interesses.Susan

  • 23

    Tully viveu Michelle Fowler por dez anos na soap-opera Eastenders. Sua personagem

    comeou levando uma vida adolescente, e o pblico acompanhou sua trajetria,

    tornando-se um dos principais exemplos de repercusso nas produes do pas. Assim

    como a atriz, a personagem engravidou, casou e tinha forte identificao com o pblico.

  • 24

    Captulo II: O jovem como pblico consumidor

    Como observado anteriormente, o adolescente de maneira geral gosta de se

    identificar com o que assiste na tela. A diferena na abordagem desta audincia, no

    entanto, est na forma como os adolescentes tero suas ligaes com os produtos

    miditicos:

    O consumo miditico dos jovens tem que ser analisado em relao s suas atividades recreativas, sendo o uso dos meios de comunicao apenas uma dentre as mltiplas atividades que os adolescentes desenvolvem em seu tempo livre. (FEDELE, 2010, p. 6) 5

    A televiso continua possuindo um grande peso na cultura miditica das novas

    geraes, mas precisa dividir a ateno com outros meios comuns ao cotidiano do

    jovem. Pesquisa realizada pela comScore6 em maio de 2010 aponta que 37,5% dos

    internautas brasileiros tm faixa etria entre 6 e 24 anos de idade e destinam maior

    parte do tempo online a prticas sociais ou relacionadas a algum outro tipo de

    entretenimento. A fora do pblico no ciberespao faz com que este seja um dos

    primeiros lugares comuns explorados por tais produes, mas eles no ficam detidos

    somente a esta extenso.

    Atualmente, um produto televisivo no est presente apenas na televiso,

    como, ao mesmo tempo, no se prende aos meios oficiais. Muitas vezes, criado um

    universo ao seu redor desses produtos, marcado pela convergncia de mdias. Como

    enfatizado por Henry Jenkins (2008), a circulao de contedo depende fortemente da

    participao ativa dos consumidores (p. 27).

    Ou seja, para compreendermos a forma como os meios de comunicao so

    dispostos para que determinado produto alcance o pblico para o qual destinado e

    cause a total experincia narrativa, necessrio conhecer tambm quem o

    consumidor. No caso de Malhao e das demais obras destinadas ao pblico

    adolescente, precisamos conhecer o perfil de jovem consumidor, que emergiu como

    5 El consumo meditico de los jvenes tiene que ser analizado en relacin a sus dietas recreativas, siendo el uso de

    los medios de comunicacin slo una de las mltiples actividades que los adolescentes desarrollan en su tiempo libre. 6 Empresa especializada em estudos e mtricas para internet. Pesquisa disponvel em http://bit.ly/aF5nFJ. Link

    acessado em 05 de novembro de 2011.

  • 25

    um grupo social diferenciado na dcada de 1950 e hoje apare institudo na nossa

    cultura.

    2.1. A construo da juventude

    Se hoje a questo do rejuvenescimento to presente entre pessoas de mais

    idade, isso parte de uma construo recente da histria. Nos perodo anteriores

    modernidadearcaico, ser mais velho e aparentar assim significava ter maior

    sabedoria. Porm, com o passar do tempo, o acesso idade adulta tornou-se mais

    suave, o que trouxe a noo de juventude ou jovialidade que conhecemos atualmente.

    A acelerao da civilizao contempornea faz com que o essencial no seja mais a

    experincia acumulada, mas a adeso ao movimento. (MORIN; 1977, p. 147, grifos do

    autor)

    Em seriados destinados aos adolescentes, como o caso de Malhao,

    personagens jovens so centrais. Mesmo que s vezes amparados por figuras adultas,

    como professores e pais, quem possui a capacidade de resoluo dos conflitos so

    sempre os adolescentes, levantando o carter contestador nem sempre explcito na

    atrao comum idade. A degerontocratizao7 democratiza a sabedoria e tira da

    velhice o papel de detentora da experincia. A velhice descartada do curso da vida

    real, tomando suas vises como antiquadas, e emergindo ento o papel do coroa,

    que, apesar da idade, mantm sua aparncia jovial e ainda assim responsvel por

    certo capital simblico da experincia.

    A essa degeroncratizao corresponde uma pedocratizao8: Se 1789 marca o nascer do sol da juvenilidade poltica, desde 1777 Les Soulfrances du Jeune Werther anunciam o nascer do sol da juventude cultural. O duplo impulso, poltico e cultural, se efetua desde ento, ora conjuntamente, ora alternativamente. O romantismo um imenso movimento de fervor e de desencantamento juvenis, que se segue ao desmoronamento do Velho Mundo e anuncia as aspiraes do novo homem. O jovem Hegel, o jovem Marx, por seu lado, operam a revoluo mental do homem que d adeso ao vir-a-ser do mundo. Deus Pai agoniza. (MORIN, 1977, p. 148)

    7 Termo utilizado por Edgar Morin para indicar a inverso na gerontocracia, que vem a ser o predomnio dos

    velhos em um grupo social; governo dos ancios N. T. 8 Palavra formada com o sufixo grego pis, paids (criana); termo utilizado por Morin.

  • 26

    Entretanto, o conceito ocidental de adolescncia e juventude enquanto classe

    consumidora s conhecido perto da dcada de 1950. Movimentos culturais como a

    nouvelle vague francesa trazem a importncia para a classe dessa faixa etria atravs

    da literatura de Franoise Sagan; a msica de Elvis Presley e Paul Anka; e sobretudo

    no cinema de Vadim e Jean-Luc Godard, dentre outros. O jovem passa a se enxergar

    ento na cultura de massas.

    A mesma poca caracterizou-se por uma viso diferenciada do que era ser

    jovem. Ao mesmo tempo em que ideais revolucionrios eram instaurados, formando a

    conscincia coletiva dos que chegavam idade adulta, os jovens entravam para o

    mercado de trabalho por decorrncia da reconfigurao no panorama industrial vigente.

    Pessoas mais jovens passam ento a ter autonomia sobre o dinheiro, revelando um

    novo pblico consumidor que, assim como os outros, gostariam de enxergar suas

    necessidades e desejos nos produtos disponveis. Como aponta Morin:

    A velhice est desvalorizada. A idade adulta se rejuvenesce. A juventude, por seu lado, no mais, propriamente falando, a juventude: a adolescncia. (MORIN,; 1977, p. 153)

    2.2. O jovem como pblico consumidor

    A cultura do adolescente foi reforada atravs da cultura de massas refletido a

    partir dos anos de 1950. Na msica, o maior destaque foi Elvis Presley, que, muito

    alm de suas canes, popularizou a postura do que viria a ser o adolescente.

    Quebrou paradigmas com figurinos mais coloridos que o usual poca, coreografias

    animadas e um despojamento quase inexistente perante aos mais conservadores. Em

    uma de suas canes, Young and Beautiful9, o Rei do Rock se refere sua amada

    ressaltando a juventude como uma de suas principais caractersticas em trechos como

    voc to jovem / e bonita / voc tudo o que eu amo10.

    9 Cano gravada por Elvis Presley em abril de 1957 para o filme Jailhouse Rock, do mesmo ano.

    10 Youre so young / And beautiful / Youre everything I love trecho da cano Young and Beautiful, de Elvis

    Presley.

  • 27

    Alm da exaltao juventude, a cultura de massas tambm foi responsvel

    principalmente por apresentar a viso contestadora dos padres vigentes e reforar um

    conceito de adolescncia e juventude como conhecemos hoje. O longa-metragem

    Juventude Transviada, dirigido por Nicholas Ray em 1955, apresentou o jovem

    contestador em conflito com a famlia e principalmente conflito interno, durante o

    perodo em que seu estilo de vida comeava a receber o foco da mdia e ganhar

    legitimidade.

    O Brasil, mesma poca, passava por grande choque poltico-cultural. Com o

    falecimento do conservador Getlio Vargas, em 1954, o pas viu uma onda de

    modernizao atravs do governo de Juscelino Kubitstchek (1956 1961), que criou

    uma nova capital federal e investiu em projetos arquitetnicos ousados para o tempo

    em que foram implementados.

    Maconha e cocana eram conhecidas por poucos e tinham baixssimos ndices

    de consumo, se considerarmos os encontrados hoje. O espao de circulao destas

    drogas eram os lugares barra pesada, tambm muito menores que os atuais. As

    drogas mais populares estavam ligadas classe mdia. Eram o lana-perfume, comum

    principalmente em bailes de Carnaval, e o Pervitin, uma bolinha, vendida na farmcia,

    capaz de manter a energia dos usurios. Ao contrrio do que hoje observado pelo

    lugar comum, quem causava os transtornos s cidades no era a marginalidade pobre,

    mas uma parcela da juventude dourada que consumia bebidas alcolicas e promovia

    rachas de carros e lambretas.

    A cultura de massa tambm foi responsvel por introduzir, de forma leve, a

    ideia de adolescncia no incio da dcada de 1950. O rdio ainda era o meio de

    comunicao capaz de evaso e mobilizao dos desejos (CARMO; 2000, p. 17). Sua

    programao trazia grandes rdio-novelas, transmisses de grandes concursos como

    o Miss Universos e programas de variedades, onde se apresentavam grandes astros

    do Rdio, dentre eles os populares ngela Maria e Cauby Peixoto este responsvel

    pela gravao do primeiro rocknroll em portugus11. O gnero uma das expresses

    11

    RocknRoll em Copacabana, composta por Miguel Gustavo, foi gravada por Cauby Peixoto em 1957 e lanada pela gravadora RCA.

  • 28

    mais fortes da cultura de massas norte-americana chegou ao Brasil com a mesma

    marca de rebeldia juvenil.

    Em 18 de junho de 1952, chegou s bancas a primeira edio da Revista

    Capricho. Sua linha editorial, no entanto, no era destinada aos jovens, mas ao pblico

    feminino em geral. Sob o slogan A Revista da Mulher Moderna, Capricho apresentava

    receitas culinrias e reportagens com temas como a menopausa; porm, seu grande

    sucesso eram as fotonovelas. Apenas no incio dos anos de 1980, a publicao

    assumiu a menina adolescente como pblico alvo, diminuindo o espao das

    fotonovelas para inserir reportagens sobre comportamento. Em 1985, para reforar a

    nova posio, alterou seu slogan para A revista da gatinha e mudou o foco das

    matrias, enfatizando reportagens sobre astros da TV e da msica, alm de textos

    sobre uso de drogas, primeira menstruao etc.

    O cinema brasileiro no refletia ainda o novo perfil do jovem, ao contrrio do

    que acontecia em parte do mercado estrangeiro, principalmente o norte-americano. Por

    aqui, predominavam as chanchadas de Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonalves e

    Amcio Mazzaropi com seu famoso personagem Jeca Tatu. As produes, que bebiam

    nas fontes do humor circense, apresentavam diversos nmeros musicais com

    importantes artistas da Era do Rdio e do Teatro de Revista, aproximando-os das

    populaes de cidades interioranas, que s podiam conhec-los atravs do cinema.

    Longas-metragens estrangeiros que apresentavam a rebeldia juvenil, quando aqui

    eram exibidos, causavam um comportamento eufrico do pblico. Em sesses de Ao

    Balano Das Horas12, o policiamento foi intensificado aps depredaes das salas

    onde era exibido.

    Com o objetivo de mostrar que o filme inofensivo e que o rocknroll nada tem de enlouquecedor ou de mrbido, razo por que o classificou somente como proibido para menores de 14 anos de idade, o chefe do Servio de Censura de Diverses Pblicas convidou o chefe de Polcia, o ministro da Educao, o juiz de Menores, crticos de cinema e escritores para a exibio, s 18h de hoje, na cabine da Warner, do filme Ao Balano das Horas, recentemente exibido em So Paulo, quando provocou agitada reao de jovens.

    12

    Rock Around The Clock um filme norte-americano de 1956, produzido pela Sony Pictures. O longa-metragem traz performances das bandas Bill Halley & Seus Cometas e The Platters.

  • 29

    Como medida preventiva para que no sucedam nesta capital as cenas ocorridas nas principais cidades americanas e europeias onde a pelcula foi exibida como aconteceu recentemente em So Paulo o Sr. Hyldon Rocha, chefe do Servio de Censura de Diverses Pblicas, solicitar ao Coronel Batista Teixeira policiamento especial para os cinemas que exibirem o filme Ao Balano das Horas. Adiantou-nos o Sr. Rocha que essa ser a nica medida possvel para coibir a algazarra promovida pela juventude, porque proibiu o filme para menores at 14 anos em virtude de nele no ter observado detalhes que o levassem a limit-la mais. E frisou: Logicamente, a mocidade ir ver a pelcula, mas encontrar nos cinemas policiamento para cont-los. (Jornal O Globo, 04 de janeiro de 1957)13

    O rock, acompanhado da postura rebelde, chegou ao Brasil no fim da dcada

    de 1950 e comeo de 1960, com verses de sucessos estrangeiros nas vozes de

    grandes expoentes do i-i-i14, mais tarde conhecido como Jovem Guarda, como

    Tony e Celly Campello. Mesmo num momento onde havia movimentos musicais de

    vanguarda genuinamente nacionais, como a Bossa Nova, para os jovens artistas no

    era necessrio defender o que era enxergado como a cultura pura do pas, mas

    apropriar-se do que era produzido no exterior e reconstruir os significados para os

    brasileiros.

    Em meados da dcada de 1960, o gnero alcanou o seu apogeu. A msica

    era a protagonista, mas a cultura de massas brasileira, assim como ocorria fora do

    pas, articulava outros meios para que fosse inserida a lgica cultural a qual estavam

    inseridos. Em 1965, a Rede Record comeou a exibir o programa Jovem Guarda,

    comandado por Erasmo Carlos, Wanderla e Roberto Carlos, o maior cone do

    movimento. O ttulo surgiu atravs de uma frase de Lenin, que dizia: o futuro pertence

    jovem guarda, porque a velha est ultrapassada. Na atrao, apresentavam-se

    cantores de destaque no gnero e, obviamente, modas e tendncias comportamentais

    eram lanadas. Alm de lanar seus discos, apresentar o programa de televiso e

    estampar a capa de diversas revistas, reforando o gnero defendido, Roberto Carlos

    13

    Texto do Jornal O Globo de 4 de janeiro de 1957, transcrito em http://bit.ly/vgXdXx. Acessado em dezembro de 2011. 14

    O nome do gnero musical oriundo de um trecho de famosa cano dos Beatles, onde diziam: She loves you / yeah, yeah, yeah.

  • 30

    ainda protagonizou uma trilogia15 no cinema, seguindo os mesmos moldes dos filmes

    estrelados por Elvis Presley desde a dcada anterior. Alm disso, eram vendidos

    chaveiros, cadernos, calas, bolsas com estampas de calhambeque, dentre outros

    produtos que reforavam a identificao com o pblico alvo. Vale destacar ainda o

    choque causado pelos figurinos: cabelo longo de Roberto Carlos, roupas coloridas de

    Erasmo, e minissaia de Wanderla, em tempos de movimento feminista.

    Crticos de esquerda consideravam que a jovem guarda com todas as letras

    fceis, verses musicais e solos de guitarra era formada por um grupo de jovens

    alienados e submissos influncia malfica do imperialismo cultural norte-americano

    (CARMO, 2000, p. 45). O gnero revitalizou o debate musical e abriu novos caminhos,

    introduzindo a cultura pop ao Brasil.

    A dcada de1960, em geral, foi caracterizada pelos protestos em movimentos

    sociais, como os das feministas, dos negros, dos gays, dentre outros que atraam os

    jovens para o debate. A contracultura ganhava poder com os jovens, que faziam de

    seus espaos de circulao principalmente as universidades o lugar para debates.

    Ganham fora, neste momento, os jovens opostos aos vistos como conformistas pelo

    sistema. Eram jovens que rejeitavam os valores estabelecidos pela cultura capitalista.

    Era o cenrio ideal para que entrasse em voga no Brasil o estilo de vida dos hippies, j

    disseminado em outros pases. O lema era deixar de lado o poder das armas e

    transferi-lo para as flores, num discurso pacifista constudo em plena Guerra do Vietn.

    Embalados por essa ideologia, artistas como Janis Joplin e Jimmy Hendrix se

    destacaram no rock mundial. Em 1969, aconteceu o Festival de Woodstock, onde era

    pregada a alegria e total liberdade. O evento, que ficou conhecido como um marco para

    a msica e para a construo de identidades culturais, permitia o uso de drogas ilcitas

    e o amor livre. O comportamento, mais uma vez, no era bem recebido pela imprensa

    mundial.

    Ilha de Wight, norte da Inglaterra. Num domingo de sol, o ltimo dia de agosto, quase 250.000 jovens deliraram, berraram, contorceram-se, na mais estranha e apocalptica festa da Histria britnica. Cinqenta mil

    15

    A partir de 1968, Roberto Carlos estrelou os longas-metragens Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-rosa e Roberto Carlos, a 300 Quilmetros por Hora, dirigidos por Roberto Farias.

  • 31

    almoaram cigarros de maconha, jantaram cpsulas de LSD. Trinta foram hospitalizados pelo excesso de drogas. Duas semanas antes, no distrito de White Lake (regio de Catskills, Nova York), 450.000 jovens, bem mais estridentes, mais "despojados" e mais extrovertidos, tinham organizado, em condies desfavorveis, um show bem mais animado, o Woodstock Music Festival. Mas, apesar da chuva violenta, 200.000 pessoas danaram nuas e depois foram nadar num imundo rio. Dois meninos nasceram durante a festa, trs pessoas morreram, mais de 5.000 foram hospitalizadas por abuso de drogas. (Revista Veja, 10 de setembro de 1969)16

    No Brasil, movimento semelhante acontecia atravs da Tropiclia. Tambm

    permeado pela Cultura de Massas especificamente, pelos festivais de msica que

    eram exibidos pela emissoras Excelsior e Record , entrou em discusso novamente a

    estrangeirizao da msica em contraposio pureza do que era produzido no pas.

    Outras produes televisivas, no entanto, no enxergavam o jovem como pblico

    consumidor. Eram lderes de audincia programas como a telenovela Beto Rockfeller,

    os programas de auditrio comandados por Chacrinha e Silvio Santos, e o noticirio

    popular ancorado por Jacinto Figueira Jr., o Homem do Sapato Branco.

    O foco dos grandes meios de comunicao permaneceu distante do pblico

    jovem durante quase toda a Ditadura Militar. Artistas como Caetano Veloso e Gilberto

    Gil, cones da Tropiclia e da militncia juvenil nos anos de 1970, faziam diversas

    apresentaes na TV, porm em programas j existentes e que no traziam apenas o

    jovem como principal consumidor, sendo mais amplo. O movimento, por si s, trouxe

    uma viso aberta da mdia. Alm de ser ttulo de um dos mais importantes lbuns da

    cultura brasileira, Tropiclia17 caracterizou-se como um leque de manifestaes,

    sobretudo artsticas. A comear pela instalao realizada por Hlio Oiticica em 1967,

    no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, outras obras culturais apropriaram-se da

    mesma esttica e filosofia trazidas pelo movimento. No mesmo ano, Glauber Rocha

    apresenta o longa-metragem Terra em Transe, um dos principais expoentes do Cinema

    Novo; enquanto no teatro, o Grupo Oficina interpretava O Rei e a Vela, de Oswald de

    16

    Texto publicado na Revista Veja de 10 de setembro de 1969. Pode ser encontrado em link do site oficial da publicao http://bit.ly/sAT4vd. Acessado em dezembro de 2011. 17

    Tropiclia ou Panis Et Circenses originou o nome do movimento. O lbum, liderado por Gilberto Gil e Caetano Veloso, apresentou um sincretismo de ritmos indito na msica, misturando rock, bossa-nova, baio, samba e bolero. Lanado em 1968, o disco trouxe canes hoje imortalizadas, como Alegria, Alegria, Domingo no Parque e Baby, dentre outras.

  • 32

    Andrade. Apesar de no serem todas diretamente interligadas, as obras funcionavam

    para difundir o pensamento da contra-cultura da poca.

    Apesar de no serem produtos miditicos diretamente destinados ao pblico

    jovem, a postura revolucionria implicava um carter de mudana frequentemente

    relacionada ao jovem. Observa-se, ento, que a juventude, muito mais do que uma

    feixa etria, passa a significar um estilo de vida. Desde o incio da Modernidade,

    consumir determinados produtos e seguir tais tendncias observado como agregador

    de valores, especialmente por capital social. Com a popularizao da identidade jovem

    e a massiva produo de contedo miditico para este pblico a partir da dcada de

    1950, o consumo caracteriza-se como uma forma de construo de identidade.

    A associao entre consumo e estilo de vida uma forte marca da lgica do capitalismo, em especial em sua verso ps dcada de 50, quando cada vez mais o sistema se orienta menos para a produo e mais para a esfera do consumo, estimulado pelos conceitos de velocidade, transformao e obsolescncia, ambiguamente construdos em concomitncia com uma convocao permanente a uma vida no presente, eternamente jovem e permeada por um hedonismo tipicamente contemporneo, em que o desejo armadilhoso estimula o consumo, mas, sempre no satisfeito, fonte inesgotvel de iluso, frustrao e eterno recomeo. (ENNE, 2006, p. 10)

    Em 1978, durante a ditadura do Governo Geisel, foi promulgada a emenda

    constitucional n 11, que revogava todos os Atos Institucionais e Complementares que

    eram contrrios Constituio Federal. Em 1 de janeiro de 1979, a emenda entrou em

    vigor, extinguindo o AI-5, principal rgo de censura da poca, passando a dar alguma

    voz para que a juventude reprimida pelos anos anteriores pudesse se expressar.

    A partir de ento, o cinema brasileiro comeou a direcionar seus olhares para o

    pblico jovem, abordando temticas comuns ao pblico alvo e se integrando aos seus

    circuitos de sociabilidade. Nos anos de 1980, o cinema nacional enfrentava uma srie

    de problemas devido a forte entrada do mercado estrangeiro, o processo inflacionrio e

    a crise econmica financeira. A Embrafilmes continuava sendo a principal estrutura de

    fomento stima arte no pas. O cenrio mudou um pouco quando, em 1986, foi

    promulgada a lei de n 7505, mais conhecida como Lei Sarney. Esta lei fornecia

    incentivo fiscal para empresas privadas que apoiassem a produo cultural,

  • 33

    descontando o investimento em impostos. A nova prtica ampliava o mercado para

    novos cineastas, oriundos majoritariamente da Escola de Comunicaes e Artes da

    Universidade de So Paulo, com destaque para o espao cultural da Lira Paulistana,

    na Vila Madalena, um lugar onde havia um cenrio juvenil efervescente em relao ao

    teatro, msica e entretenimento noturno, como danceterias. Como observado por

    Bueno (2005), nem todos os filmes produzidos pelo Cinema da Vila eram destinados

    aos jovens, mas, na dcada de 1980, todos os filmes que retratavam o universo do

    jovem paulista foram produzidos pelo coletivo cultural. O Olho Mgico do Amor

    (1981)18, Onda Nova (1983)19 e A Estrela Nua (1985)20 so alguns dos destaques. A

    adaptao do livro de Marcelo Rubens Paiva, Feliz Ano Velho (1988) foi um grande

    sucesso de bilheteria21, apostando no trnsito entre diversas mdias para promover seu

    lanamento e atingir o pblico presente em cada uma delas, bem antes dos conceitos

    de transmdia e crossmdia serem difundidos e estudados no meio acadmico. O longa-

    metragem, que havia sido livro, ganhou tambm uma verso para o teatro, alm de

    uma estratgia promocional entre o jornal Folha de S. Paulo, a Rdio Cidade e a Art

    Filmes, que exibiam o filme gratuitamente para estudantes acima de 14 anos,

    promovendo um debate ao final de cada sesso.

    O cinema gacho tambm tinha destaque na produo que retratasse o jovem.

    O premiado Deu Pra Ti (1981)22 apresentou a cultura urbana gacha e introduziu os

    hbitos do jovem da regio, abrindo o caminho para curtas-metragens experimentais

    que retratavam o mesmo assunto, alm dos destacados longas-metragens Me Beija

    (1984)23, Aqueles Dois (1985)24 e Verdes Anos (1984)25, o marco inicial da regio

    18

    O Olho Mgico do Amor, de 1981, um longa-metragem dirigido por Jos Antonio Garcia e caro Martins, com Carla Camurati e Tnia Alves nos papis principais. 19

    Onda Nova, de 1983, um longa-metragem dirigido por Jos Antonio Garcia e caro Martins, com Carla Camurati, Vera Zimmerman, Regina Cas e Tnia Alves nos papis principais. O filme conta com participaes especiais de no-atores, como o msico tropicalista Caetano Veloso e o futebolista Casagrande. 20

    A Estrela Nua, de 1985, um longa-metragem dirigido por Jos Antonio Garcia e caro Martins, com Carla Camurati e Cristina Ach nos papis principais. A primeira recebeu o prmio de Melhor Atriz no Festival de Gramado, no ano de seu lanamento. 21

    Segundo notcia publicada em 25/9/1988, Feliz Ano Velho figurava como a quarta maior bilheteria da semana, abaixo de Rambo III, Atirando para matar e Busca frentica. (BUENO, 2005) 22

    Deu Pra Ti Anos 70, de 1981, um filme rodado em Super-8, sob direo de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti. 23

    Me Beija, de 1984, um longa-metragem dirigido por Werner Schnemann. Apesar da pouca circulao em salas de cinema, o filme faturou prmios no Rio de Janeiro e Braslia.

  • 34

    voltado para esse pblico segmentado. A falta de incentivo pblico e distribuio

    precria, restringindo-se regio sul, foram empecilhos para as produes e afastavam

    interesses de investidores privados.

    Com forte expresso nacional, a juventude do Rio de Janeiro foi apresentada

    atravs de diversas vertentes culturais. Um marco foi a criao do Circo Voador pelo

    ator Perfeito Fortuna no vero de 1982. O local reuniu jovens atores, poetas e bandas

    de pop-rock embaixo da lona situada na zona sul carioca. Simultaneamente,

    destacava-se a Nuvem Cigana, um projeto itinerante pelas praias da cidade. Fundada

    pelo poeta Chacal, a companhia difundia uma arte essencialmente urbana e juvenil. Ao

    contrrio do que ocorreu em So Paulo e no Rio Grande do Sul, o movimento

    cinematogrfico do Rio de Janeiro no foi inteiramente produzido pelos jovens, mas

    estes foram mostrados atravs de alguns cineastas ento j consagrados.

    Um dos principais filmes destinados ao jovem, Menino do Rio (1981)26 tinha

    processo de produo ambicioso, que no o restringia s salas de cinema. O longa-

    metragem j foi pensado para um circuito de consumo na tela grande, na televiso,

    rdio e moda, integrando-se s diversas plataformas que seduziam o jovem poca. O

    sucesso da produo foi tanto que o longa recebeu uma continuao: Garota Dourada

    (1984), com os mesmos personagens centrais. Relacionando entretenimento e

    publicidade, os longas de Antnio Calmon contaram com aes de merchandising

    integradas. Em Menino do Rio, um desfile de moda promovia a marca Fiorucci27,

    enquanto Garota Dourada apresentava um show financiado pela Pool na casa noturna

    Noites Cariocas28, funcionando como desfecho da narrativa.Ainda no Rio de Janeiro, a

    mesma vertente cinematogrfica ganhava fora em filmes de grande expresso, como

    Bete Balano (1984), realizado pelo Centro de Produo e Comunicao (CPC)

    formado por Lael Rodrigues, Tizuka Yamasaki e Carlos Alberto Diniz. Para promover o

    longa-metragem, a msica-tema do filme foi composta por Frejat e interpretada por sua

    24

    Aqueles Dois, de 1985, um longa-metragem dirigido por Srgio Amon, baseado em conto homnimo de Caio Fernando de Abreu. 25

    Verdes Anos, de 1984, um longa-metragem dirigido por Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, protagonizado por Werner Schnemann e Marcos Breda. 26

    Menino do Rio, de 1981, um filme dirigido por Antnio Calmon, protagonizado por Andr De Biase. 27

    A sequncia do desfile da Fiorucci para Menino do Rio pode ser vista em http://youtu.be/aDGu4IFJplA 28

    O evento realizado pela Pool e apresentado em Garota Dourada pode ser assistido em http://youtu.be/bYGLIoUKRvI

  • 35

    banda, o Baro Vermelho. Com a cano tocando nas rdios e um videoclipe

    apresentado na televiso, o filme teve seu nome facilmente conhecido pelo pblico

    mesmo antes de seu lanamento. A trilha-sonora, no entanto, no era usada apenas

    para climatizar as sequncias do longa, mas para promover uma identidade e

    construir a marca ao redor de Bete Balano. As bandas se reuniram para tocar em um

    mega-show no ginsio Anhembi, em So Paulo, num evento chamado Festival Bete

    Balano. Na Praa da Apotese do Rio de Janeiro, o Baro Vermelho tocou as

    canes do filme com orquestras sinfnicas nacionais. A trilha-sonora, lanada em LP

    e fita K7, era como uma coletnea de bandas que despontavam como novas apostas

    do cenrio musical nacional. O sucesso foi sucedido por Rock Estrela (1986), que

    seguiu os mesmos padres do filme anterior, porm com menor xito.

    A televiso comeou a investir neste pblico ainda na dcada de 1980. A faixa

    vespertina da Rede Globo j apresentava inclinaes para o pblico jovem. Em maro

    de 1983, s 17 horas, entrava no ar o Mrio Fofoca, srie destinada ao pblico infanto-

    juvenil, baseada em personagem de sucesso vivido por Luis Gustavo na novela Elas

    Por Elas, exibida no ano anterior. A partir da, outras produes destinadas mesma

    audincia eram exibidas no horrio, como a reapresentao da bem-sucedida Armao

    Ilimitada (original de 1985, reexibida tarde em 1990), de Guel Arraes, e o game-show

    Radical Chic, j em 1993, com esquetes feitas por Andrea Beltro e apresentao de

    Maria Paula, ex-VJ da MTV.

    Iniciava, ento, uma nova safra de programas voltados ao pblico jovem e

    adolescente, fugindo da esttica infantil como feito em Armao Ilimitada, que usava

    linguagem de quadrinhos, crianas como personagens centrais etc. e discutindo

    temas que dificilmente ganhariam espao em tramas destinadas ao pblico adulto. Vale

    observar tambm o que acontecia na televiso brasileira alm da Rede Globo.

    Em 1990, a MTV chegou ao Brasil com sua programao focada sobre

    msicas e comportamento jovem, algo que ainda era pouco abordado na televiso

    brasileira. Como observado anteriormente, foi nesta dcada que as televises da

    Amrica Latina comearam a encarar o adolescente como um pblico em potencial e

    investir em preodues que falassem diretamente com eles. Programas destinados ao

    mesmo segmento de pblico destacaram-se na televiso nacional, como o Programa

  • 36

    Livre, exibido pelo SBT a partir de 1991. O apresentador Serginho Groisman, na

    chamada de estreia29, convidava telespectadores a guardarem a energia do crebro e

    do corpo. O programa ficou conhecido pela expresso Fala, garoto!, expressada pelo

    anfitrio quando se dirigia a algum da plateia. Em uma chamada do programa no ano

    seguinte30, o locutor anunciava uma televiso jovem. Programa Livre foi eleito o

    Melhor Programa de Entrevistas pelo Trofu Imprensa nos anos de 1994, 1997, 1998 e

    1999.

    Na TV Cultura, em 1994, jovens faziam sucesso em um seriado dirigido por

    Daniel Filho, figura conhecida da Rede Globo. Em Confisses de Adolescente, criado

    por Maria Mariana, quatro irms enfrentavam dilemas do crescimento, como a primeira

    vez, primeiro contato com as drogas, primeiro suti, entrada no mercado de trabalho

    etc. As personagens, com idade entre 13 e 20 anos, eram interpretadas pela prpria

    criadora da srie, ao lado de Georgiana Ges, Danielle Valente e Deborah Secco. O

    programa foi um grande sucesso e conquistou tambm o mercado internacional, tendo

    sido exibido na Frana, Israel, Finlndia, Grcia, Portugal e Nova Zelndia, alm de ter

    concorrido ao Emmy Awards na categoria de Melhor Srie Estrangeira.

    Era o cenrio perfeito para que a Globo investisse um pouco mais no pblico que j se

    via refletido no horrio a que foi destinado. Pouco antes de Malhao entrar no ar, uma

    minissrie em 20 captulos, com o mesmo foco de audincia, j havia sido exibida pela

    emissora em 1993. Sex Appeal31 - com texto de Antnio Calmon, responsvel pelos

    sucessos cinematogrficos Menino do Rio e Garota Dourada, citados acima trazia

    jovens atrizes como protagonistas e enfocava a entrada de meninas adolescentes cada

    vez mais cedo no mercado da moda. Os temas, no entanto, no transitavam entre

    situaes comuns ao universo dos telespectadores, como ocorre em Malhao desde

    1995.

    29

    Programa Livre estreou no SBT em agosto de 1991, s 17h30. A chamada de estreia pode ser vista no link http://youtu.be/Cb9qO9E15S8. 30

    Chamada do Programa Livre pode ser acessada em http://youtu.be/HG9EWh9ACYM 31

    Sex Appeal foi uma minissrie escrita por Antonio Calmonm com direo geral de Ricardo Waddington. Exibida pela Globo entre 1 de junho a 2 de julho de 1993, s 22h30.

  • 37

    2.3. Afinal, o que quer o jovem?

    Desde que o pensamento acerca de juventude foi instaurado, o tempo passou.

    Novas plataformas de comunicao naturalmente implicaram uma nova velocidade no

    cotidiano do adolescente das grandes cidades. Matria publicada na Revista da TV do

    Jornal O Globo, em 27 de novembro de 201132, apontou as preferncias dos jovens de

    hoje, de acordo com representantes de produes ou programadoras televisivas

    voltadas a este pblico. Responsveis por canais mais voltados ao pblico infantil ou

    considerado pr-adolescente, apontaram a fuga para universo ldico ou o

    reconhecimento dos telespectadores com o que assistem na televiso, destacando os

    seriados que fazem uso dos clssicos armrios de escola, pouco comuns no Brasil.

    MTV e Mix TV, canais ligados msica e focados em um pblico de faixa etria um

    pouco mais alta, observam outras prioridades, como comportamento e humor. Ambos

    enfatizam a utilizao da internet no dia a dia dos jovens e apostam em integrao

    entre as mdias. Cris Lobo, diretora de programao e produo da Mix TV, apresenta

    a rede como complementar ao que a emissora exibe na televiso: A msica

    essencial na nossa grade. E o acesso a ela no pode terminar quando se desliga a TV.

    Temos que nos antecipar, estar por dentro de tudo o que acontece nas redes sociais,

    agir de forma interativa, com publicaes em sites e blogs. Para Zico Ges, diretor de

    programao da MTV, os meios no podem brigar entre si e precisam ser usados como

    aliados. Temos um site que exibe nossa programao ao vivo e estamos com a

    campanha Assista TV e faa outra coisa. No adianta lutar contra isso.

    Acompanhar esta crescente interrelao entre diversos veculos para

    conquistar determinado pblico significa, mais do que um estudo de tecnologia ou

    linguagem, observar as tendncias no comportamento do jovem consumidor. Cada vez

    mais exposto a diversos estmulos, o adolescente tem um leque maior de opes na

    hora de escolher o que e como assistir suas produes televisivas preferidas.

    Conhecer estratgias de fidelizao deste pblico exigente primordial para a

    compreenso do mercado televisivo e, sobretudo, do adolescente consumidor

    contemporneo.

    32

    Na Era Virtual, canais tentam descobrir o que querem os jovens, publicada na Revista da TV, do Jornal O Globo em 27 de novembro de 2011. Matria de Natalia Castro. Acessado em http://glo.bo/vJJmvW no dia 27 de novembro de 2011.

  • 38

    Captulo III: Entretenimento transmdia e branded

    Ben Singer (2001) observou uma reconfigurao no campo miditico no fim do

    sculo XIX e incio do sculo XX, que acontecia atravs do sensacionalismo e que

    provocava um aumento sem precedentes de estmulos sensoriais nos indivduos, o que

    o autor chamou de "hiperestmulos". Impulsionados pela Revoluo Industrial, mais

    produtos materiais eram produzidos e comercializados, consequentemente

    aumentando a publicidade, cada vez mais incisiva e vibrante, pelas ruas. A

    concentrao do mercado de trabalho nos grandes centros urbanos tambm ocasionou

    uma migrao maior e, por esse motivo, a necessidade de mudanas na arquitetura e

    em hbitos, sobretudo os ligados aos transportes. Bondes e outros veculos

    motorizados em substituio a animais passam a ser vistos como ameaas e, muitas

    vezes, so personificados pela imprensa sensacionalista como grandes agentes de

    terror neste desconhecido universo. O perodo exige, ento, uma reconfigurao dos

    hbitos e um aprendizado constante a partir da experincia.

    Atualmente, desde principalmente os anos de 1990, a comunicao atravessa

    uma nova fase divisora de guas em todos os seus campos. A popularizao do uso da

    internet em computadores pessoais reconfigurou a forma de consumo e alcance. Se

    antes, como visto por Singer, havia um conflito entre o espao urbano e o rural,

    permeado pelas novas tecnologias poca, hoje transitamos por espaos reais e

    virtuais e somos ainda mais impactados pela publicidade, com maior personalizao

    direcionada ao pblico. As tecnologias so encaradas como extenses de ns

    mesmos (McLuham; 1996) e proporcionam novas experincias diegticas para

    consumidores, dentre outros, de entretenimento, como trataremos neste captulo.

    3.1. Mudanas narrativas

    A mudana ocorrida no comportamento do consumidor nitidamente refletida

    nas produes culturais. Obviamente, esta no uma exclusividade do pblico jovem,

    mas, devido ao grande nmero de estmulos aos quais so submetidos e grande

    oferta miditica disposta a buscar sua ateno, o nicho um dos mais frequentes alvos

    de produes que utilizam estruturas narrativas diferenciadas para fidelizar a audincia

  • 39

    atravs de diversos meios. A audincia televisiva observava mudanas gradativas com

    o passar do tempo. Em 1972, ainda sem uso da forma de medio do IBOPE usada

    hoje, a telenovela Selva de Pedra33, em seu captulo 152, atingiu 100% de audincia no

    horrio. No houve um nico entrevistado do IBOPE que revelasse estar assistindo a

    outro canal. Com o tempo, alm dos diferentes meios para mensurar a audincia

    televisiva, foi crescente a concorrncia no prprio meio de comunicao, implicando

    uma redistribuio da audincia atravs de outros canais de TV. Mais tarde

    especialmente entre meados dos anos de 1990 e anos de 2000 a televiso por

    assinatura e a internet se popularizaram, fatiando ainda mais a audincia e

    reconfigurando as narrativas atravs de diferentes formas de fidelizao do pblico.

    Como afirma Lopes (2009, p. 105), "o Brasil no vive uma reduo no interesse pela

    teledramaturgia, e sim uma intensificao dos nveis de concorrncia, o que leva a

    audincia desse gnero a um novo ponto de equilbrio".

    Com a maior oferta de entretenimento para o pblico, a ateno passa a ser

    dividida com outras mdias. Produtos televisivos buscam, ento, estratgias de

    permanecerem presentes no cotidiano da sociedade que atravessa tais mudanas:

    Como mostram muitos estudos sobre a sociedade da comunicao e a sociedade globalizada, necessrio repensar a relao da televiso abera com seu pblico, que vive um cotidiano marcado pela acelerao das mudanas no seu modo de vida e por fragmentao, enfraquecimento dos laos sociais e encurtamento de sua durao. Por conseguinte, um erro esperar que o consumo da televiso pudesse ficar inclume a essas mudanas comportamentais. (LOPES, 2009, p. 105)

    Faz-se necessrio, portanto, conhecermos os conceitos de algumas estratgias

    usadas em meios de comunicao, com foco principalmente sobre a televiso e

    consequentemente em Malhao.

    33

    Selva de Pedra foi uma telenovela brasileira escrita por Janete Clair, com direo de Daniel Filho e Walter Avancini, exibida pela Rede Globo entre 8 de abril de 1972 e 23 de janeiro de 1973, s 20 horas.

  • 40

    3.2. Branded Entertainment

    Desde meados dos anos de 1990, o mercado publicitrio enfrenta grandes

    mudanas nas formas de alcance do pblico. No basta um produto estar exposto em

    prateleiras, com propagandas em diversas mdias sobre os seus benefcios, como era

    comum h pouco tempo e ainda ocorre em grupos mais tradicionais. Entra em cena o

    Marketing de Experincia, no qual o consumidor, alm de comprar produtos, busca

    novas experincias. O que se observa a possibilidade de fisgar a audincia atravs

    de diversos meios de comunicao ao usar aes diretamente ligadas ela pelos

    sentidos e aes de relacionamento.

    3.3. Narrativa Transmdia

    A narrativa transmdia confundida frequentemente com outros conceitos

    intimamente ligados, com os quais o formato dialoga, como crossmdia,

    multiplataforma, dentre outros. Por uma rasa definio, pode-se entender a transmdia

    por histrias contadas atravs de mltiplas mdias. Nos dias de hoje, as histrias mais

    significantes tendem a percorrer um fluxo atravs de mltiplas plataformas miditicas

    (Jenkins, et al., 2006, p. 46)34. Neste tipo de narrativa, cada meio explora suas

    principais funes com a mesma finalidade: contar uma mesma histria conquistando a

    audincia atravs de diversas frentes, sem que uma parte precise necessariamente de

    outra, como por exemplo, os filmes da trilogia Piratas do Caribe35. Mesmo que fossem

    entendidos em suas unidades, traziam outras possibilidades de conexo com os fs da

    srie, principalmente atravs dos jogos lanados para Playstation, onde outras

    situaes eram criadas sem perder a atmosfera proposta nos longas-metragens.

    Narrativa transmdia no diz respeito transposio de contedo de um sistema a

    outro, mas, sim, ao desenvolvimento de uma mesma histria em diferentes meios de

    comunicao e diferentes linguagens. As mudanas, no entanto, no se restringem ao

    texto. Elas envolvem tambm o processo de consumo e negcios da comunicao.

    34

    () transmedia stories are stories told across multiple media. At the present time, the most significant stories tend to flow across multiple media platforms (Jenkins et al, 2006, p. 46) 35

    Piratas do Caribe uma trilogia de filmes produzidos pelos estdios Walt Disney. Lanados nos anos de 2006, 2007 e 2011, os longas-metragens so dirigidos por Gore Verbinski e Rob Marshall.

  • 41

    Da perspectiva dos produtores, roteiristas exploram o potencial para narrativa transmdia; anunciantes conversam sobre marcas como dependentes de mltiplos pontos de contato [com o pblico]; redes de trabalho buscam explorar suas propriedades intelectuais atravs de muitos canais diferentes (Jenkins et al., 2006, p.46). Narrativa transmdia tambm uma consequncia dos produtores das grandes mdias estarem em grandes corporaes com investimentos em cinema, televiso, videogames, etc. Em outras palavras, narrativa transmdia faz sentido economicamente. Como Jenkins observa, um bom negcio de transmdia atrai uma ampla audincia por lanar o contedo diferentemente em diferentes mdias. Se cada trabalho oferece experincias novas, ento um mercado cruzado vai expandir o grande potencial dentro de cada mdia individual (Jenkins, 2003). (SCOLARI, 2009, p. 4)36

    Estudos de comunicao fazem referncia a diversos trabalhos de sucesso em

    transmdia no cinema e seriados estrangeiros, mas raramente trazem os poucos

    exemplos utilizados em telenovelas ou soap operas. O veculo, obviamente, tem

    recursos suficientes para render novos ganchos que faam uso desta forma narrativa.

    A indstria norte-americana de entretenimento bem mais avanada em

    termos de montagem de estratgia de veiculao e vendas, em comparao

    nacional. O seriado 24 Horas37 apresentou a saga de Jack Bauer (personagem

    interpretado por Kiefer Sutherland) atravs de diversas mdias, sem apenas reproduzir

    a mesma histria em cada uma delas, mas oferecendo novas tramas e novas

    experincias ao pblico de acordo com a plataforma por onde ele consumia o

    produto. Alm dos episdios na TV, foram lanadas revistas, livros, jogos para

    videogames e celulares, alm de episdios exclusivos para internet webisdios e

    para aparelho mvel mobisdios. Card games, bonecos e kits de identificao de

    Jack Bauer tambm foram vendidos. Mesmo sem contribuio grande para a narrativa

    principal, centrada na televiso, os utenslios ampliavam a experincia dos fs da srie.

    Na internet, a atrao tambm movimentava fs em fruns de discusso, fanfictions e

    outros contedos gerados espontneamente pelos usurios.

    36 From the producers perspective, storytellers exploit this potential for TS; advertisers talk about branding as depending on multiple touch points; networks seek to exploit

    their intellectual properties across many different channels (Jenkins et al., 2006, p. 46). TS is also a consequence of the main media producers being large corporations with

    investments in cinema, television, video games, etc. In other words, TS makes economic sense. As Jenkins puts it, a good transmedia franchise attracts a wider audience by

    pitching the content differently in the different media. If each work offers fresh experiences, then a crossover market will expand the potential gross within any individual

    media (Jenkins, 2003).

    37 24 Horas foi um seriado estadunidense produzido entre 2001 e 2010, com criao original de Robert Cochran e

    Joel Surnow.

  • 42

    Outro exemplo bem-sucedido, a srie Lost38 consagrou-se principalmente pela

    fatiao de seu contedo. O que era mostrado na televiso podia ser compreendido

    apenas por ali, mas a narrativa s era completa se fosse consumido tambm o material

    complementar disponibilizado em outras plataformas. Assim como em 24 Horas, foram

    criados mobisdios, disponibilizados primeiramente para celulares e posteriormente no

    site da ABC emissora responsvel por sua exibio. Chamados de missing pieces

    pedaos que faltaram , os mobisdios apresentam situaes, na maioria das vezes

    banais, que podem trazer alguma pista sobre os suspenses motores da srie. Outro

    recurso transmiditico usado foi o dos ARGs Jogos de Realidade Alternada , uma

    espcie de variao do RPG, no qual os fs da srie mantinham-se caando pistas

    sobre os mistrios que aconteciam na ilha mesmo nos intervalos entre as temporadas,

    sem que houvesse disperso da audincia cativa. O pblico tambm foi responsvel

    por criar plataformas virtuais onde a srie receberia extenses, como fruns de

    discusso, fanfictions, e at mesmo o Lostpedia39, uma enciclopdia colaborativa toda

    voltada para o seriado, onde objetos, lugares e acontecimentos so decupados em

    detalhes pelos usurios.

    As soap operas estrangeiras tambm veem mudanas narrativas, mas passam

    por um processo mais lento e com alternativas tmidas, se comparadas aos seriados.

    Talvez por ter uma audincia to conservadora e tradicional, os processos de inovao

    mostram-se mais concentrados ao veculo da televiso, porm constroem a mesma

    imerso do pblico atravs de outros produtos. Foi o caso de Coronation Street40, a

    mais antiga soap opera produzida na Inglaterra ainda em exibio. Em 2010, quando a

    trama apresentava um plot que mudaria todo o rumo da histria, os telespectadores do

    Canal ITV responsvel por sua exibio foram surpreendidos com um cruzamento

    de linguagens entre as produes. Acontecia o seguinte: um bonde saa dos trilhos,

    causando um grande acidente que colocou a vida dos principais personagens em risco.

    38

    Lost foi uma srie criada por J. J. Abrams, Jeffrey Lieber e Damon Lindelof. Exibida entre os anos de 2004 e 2010. 39

    Lostpedia (http://lostpedia.wikia.com/wiki/Main_Page) um projeto wiki desenvolvido por fs de Lost. Lanado em 22 de setembro de 2005, o projeto conta com mais de 6 mil artigos, 25 mil usurios registrados e mais de 150 milhes de page views. 40

    Coronation Street uma soap opera britnica, exibida pelo canal ITV desde 09 de dezembro de 1960 at os dias de hoje. Criao original de Tony Warren.

  • 43

    Assim que o captulo terminou de ser exibido, o Breaking Ne