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UNIMEP – UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA
KELLY BARRETO COSTA
UM PAÍS EM TRANSE: A REPRESENTAÇÃO E A REALIDADE
DA SOCIEDADE DURANTE A DITADURA MILITAR
PIRACICABA
DEZEMBRO/2015
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Kelly Barreto Costa
Um País em Transe: A Representação e a Realidade da Sociedade
Durante a Ditadura Militar
Trabalho de Conclusão de Curso desenvolvido em cumprimento
à exigência curricular do curso de graduação em História da
Universidade Metodista de Piracicaba, sob orientação da Prof. ª
Dr. ª Valéria Alves Esteves Lima, na disciplina Pesquisa
Histórica II.
PIRACICABA
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Sumário1. Introdução .................................................................................................................... 3
2. Metodologia ................................................................................................................. 4
3. Contexto Político-Cultural e Discurso Fílmico ........................................................... 7
3.1 Política, Ditadura e Aproximações entre Ficção e Realidade ............................... 7
3.2 A Brasilidade e o Cinema Novo ......................................................................... 14
4. Glauber Rocha e a Construção de um Artista ............................................................ 17
4.1. A infância ........................................................................................................... 17
4.2. Adolescência e o Florescimento do Artista ........................................................ 194.3. A Consolidação do Cineasta Visionário ............................................................ 20
5. Terr a em transe e sua recepção .................................................................................. 24
5.1 Terra em Transe e a Crítica Intelectual e Artística ............................................. 24
6. Representação e Realidade de um Povo .................................................................... 30
6.1 Representação Popular em Sequências ............................................................... 30
6.2 Realidade Social a Esquerda e a Direita ............................................................. 35
7. Considerações Finais ................................................................................................. 39
8. Bibliografia ................................................................................................................ 41
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2. Metodologia
No século XIX, a História se afirmou como ciência, e até o fim da Segunda Guerra
Mundial, predominou a maneira metódica e positivista de se trabalhar no interior da disciplina.A esse respeito, Cristiane Nova aponta:
As técnicas de erudição e a crítica histórica e filológica clássicas foramaperfeiçoadas e as pesquisas documentais regulamentadas. O “resgate” do passado foi progressivamente deixando de ser ofício dos filósofos e eruditos passando para a mão de especialistas. Fetichizou-se o documento escrito,como se a utilização deste fosse a garantia da presença da tão aclamadaneutralidade cientifica em prol do fortalecimento de uma ciência que, excetonos discursos, em nada era imparcial. Elegeu-se como história oficial a dosgrandes heróis e importantes acontecimentos, baseada em fontes escritas e
oficiais (tão neutras que falavam por si mesmas), como a única história passível e merecedora de existência. Os relatos tinham que ser lineares,obedecendo à ordem cronológica dos acontecimentos e a relação de causa eefeito natural da vida humana (2000, p. 143).
Contudo, com o surgimento da Escola dos Annales na França, que deu seus primeiros
passos durante a década de 1930, mas que conseguiu se desenvolver e principalmente se
difundir na conjuntura do pós-guerra, aconteceram reformulações no campo da História, que
instituíram outros conceitos e métodos, tanto de investigação como de exposição. Segundo a
autora,
Objeto e documento vão se ampliando, permitindo cada vez mais uma maioraproximação da história com territórios antes inexplorados (a oralidade, asimagens, o imaginário). Novos domínios historiográficos são difundidos, taiscomo a história oral, a antropologia histórica, a história cultural, a relaçãocinema-história. Assim, pouco a pouco, os historiadores vão percebendo queas possibilidades de construir discursos sobre o passado ultrapassam os limitesimpostos pela escrita. (2000. P. 143)
O uso de fontes fílmicas na pesquisa histórica é algo recente, que teve início durante a
década de 1970, com Marc Ferro. No interior da Nova História (a terceira geração dosAnnales), Ferro começou a defender a fonte fílmica como fonte legítima para a formulação do
discurso histórico. É importante lembrar que, com essa difusão de novos objetos de pesquisa, é
imprescindível a criação de métodos para se analisar essas fontes, levando em consideração
suas particularidades.
Marcos Napolitano, no artigo A Imagem Depois do Papel , nos apresenta as
particularidades em se trabalhar com o cinema, com a TV e com música, assim como nos
apresenta métodos para lidar com essas novas fontes primárias. Segundo Napolitano não se
pode ter uma visão objetivista e nem subjetivista desse tipo fonte, ou seja, não se pode olhar
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para essa fonte a partir do “efeito de realidade” que ela carrega, porque ela não é um documento
autêntico e nem reprodutor de verdades absolutas, mas sim uma representação da realidade;
contudo, também não se pode ter um olhar subjetivista, onde tudo é especulação e relativo
dentro da fonte, afinal ela tem uma significância real que captamos através dos signos inseridos
na obra. Para Napolitano a questão é “perceber as fontes audiovisuais e músicas em suas
estruturas internas de linguagem e seus mecanismos de representação da realidade a partir de
seus códigos internos” (NAPOLITANO, 2000, p. 236).
Tendo como fonte primária para esse trabalho uma obra cinematográfica, vamos nos
ater ao método de pesquisa ligado a essa matriz. Para se lidar com esse tipo de fonte audiovisual
primeiramente devemos ter em mente que nem o filme documentário e tampouco o de ficção
tem comprometimento absoluto com a realidade. O filme documentário é erroneamente
superestimado neste sentido, por, à primeira vista, ser uma representação “mais verdadeira” do
que o ficcional, entretanto há manipulações nesse material que ocasionam a dissolução desse
status de realidade pura, portanto, os dois gêneros oferecem a possibilidade de pesquisa, cada
qual com suas particularidades e métodos.
Como já mencionado antes, esta pesquisa tem como objeto de pesquisa o filme Terra
em transe (1967), obra ficcional e extremamente rica em significações e alegorias. Pretendo,nesse trabalho, realizar “uma análise a partir de uma crítica sistemática que dê conta de seu
estabelecimento como fonte histórica e do seu conteúdo” (NAPOLITANO, 2000, p. 266), ou
seja, um estudo que vá além da análise primária do filme, que leva em conta apenas a história
apresentada sem aprofundamento na obra. Sem dúvida, o filme como uma narrativa, onde há
um começo, um desenvolvimento, o ápice e o fim, tem um papel importante, pois também será
considerada e imprescindível para a pesquisa. Contudo, não se pode realizar uma análise eficaz
desta produção utilizando-se apenas dessa parte do conteúdo fílmico. Elementos como ainteração entre as personagens, o diálogo entre o protagonista e o espectador (o protagonista
fala ao espectador indiretamente por meio da narrativa que ele conta), e principalmente, a
maneira como o diretor apresenta a sociedade ficcional do universo de Terra em Transe, são
pontos de análise indispensáveis para o desenvolvimento do trabalho.
A questão da recepção desta película é algo que também será observado, pois a
experiência cinematográfica não se limita apenas à análise estrutural. Para Alcides Ramos, “a
obra de arte cinematográfica só exerce a plenitude de seu papel histórico quando entra emcontato com o público” (RAMOS, 2006, p. 3). O espectador não está apático ao que vê, mas
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está sujeito à influência que o filme exerce, assim como pode tecer opiniões sobre o mesmo.
Isso não é restrito a uma crítica especializada, sobretudo nos dias atuais, quando essas opiniões
podem ser difundidas através de redes sociais, blogs, diários eletrônicos, vlogs e uma série de
outras ferramentas disponíveis. As impressões e críticas de setores vanguardista/esquerdista
serão consideradas também, pois afinal é o ambiente onde a obra deveria ser “abraçada” e
apoiada e, como vimos anteriormente no texto, em alguns casos aconteceu exatamente o
contrário. Sendo assim, para que se possa penetrar no universo de Terra em Transe, no intuito
de relacionar a sociedade representada no filme com aquela que lhe era contemporânea, é
necessário compreender seus códigos primários e superficiais assim como seus códigos
internos.
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3. Contexto Político-Cultural e Discurso Fílmico
Nesse primeiro momento da pesquisa, iremos contextualizar o período em que a fonte,
o filme Terra em Transe, foi produzida. Esse é um ponto essencial dentro do trabalho, pois éonde exploraremos o cenário, tanto político como cultural, em que Terra em Transe foi
desenvolvido, percebendo assim as aproximações que Glauber Rocha faz entre a ficção e a
realidade.
Será abordado, em linhas gerais, como se deu e se estabeleceu a Ditadura Militar no
país, explanaremos também os primeiros anos da mesma, que muitos alegam ter possuído um
caráter brando, e não uma repressão tão sistematizada e violenta. No entanto, como veremos, a
contenção no início era voltada a um setor específico que precisava ser neutralizado pelos
militares.
Nesse capítulo também apresentaremos aspectos culturais da sociedade, dentro do
recorte temporal que temos, focando principalmente na questão do Cinema Novo. Afinal, é
graças a esse movimento que filmes com críticas políticas, e com temas que as produções
Hollywoodianas dificilmente gostariam de abordar, ganham espaço e tornam o cinema nacional
conhecido internacionalmente.
3.1 Política, Ditadura e Aproximações entre Ficção e Realidade
Em março de 1964, o país passa a caminhar sob o regime militar que, como sabemos,
mudou drasticamente a história do país. A ditadura se mantêm até 1985, passando por fases
onde se desenvolveu, se institucionalizou e se afirmou como governo autoritário e repressor.
Contudo, é importante frisar que o golpe civil-militar não foi algo que simplesmente explodiusem precedente algum, mas sim “envolveu um conjunto heterogêneo de novos e velhos
conspiradores contra Jango e contra o trabalhismo: civis e militares, liberais e autoritários,
empresários e políticos, classe média e burguesia. Todos unidos pelo anticomunismo, a doença
infantil do antirreformismo dos conservadores” (NAPOLITANO, 2014, p. 44).
Percebe-se, então, que não se tratou apenas de uma manobra de um setor da sociedade,
mais sim de vários, dentro e fora do país, que visavam principalmente se livrar da ameaça
comunista que eles percebiam nas reformas de base de Jango, em seu governo e nos
movimentos da esquerda que se expandiam e, assim, inserir o Brasil cada vez mais na Doutrina
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de Segurança Nacional. Segundo esta doutrina, o Estado usa o conceito da “Guerra Total” para
justificar atitudes repressoras diante de seus inimigos, na tentativa de manter uma suposta
ordem e bem estar social, apresentando uma capacidade notória para extinguir elementos
antagônicos ao regime, criando medidas que afirmem e solidifiquem esse tipo de governo, ou
seja, um país sob esse preceito se “caracteriza não somente pela usurpação do poder (golpe
militar), mas também pela concentração em suas mãos de todos os poderes e funções do Estado
(a manutenção do regime)”(BORGES FILHO, 2003, p.27).
Nilson Borges explana a questão da Doutrina de Segurança Nacional, em um capítulo
no livro O Brasil Republicano – O Tempo da Ditadura. O golpe militar e sua manutenção,
segundo esse autor, foi todo inscrito nessa doutrina originária nos Estados Unidos, formulada
no contexto da Guerra Fria. O isolacionismo já não era mais a solução para combater inimigos
internos e externos, era preciso os países desenvolverem blocos internacionais e missões em
diferentes nações para combater esses inimigos. Essa segurança coletiva teria que se afirmar
principalmente frente à ameaça comunista. Essa foi a abertura para os Estados Unidos
começarem sua intervenção imperialista na política da América Latina.
O período ao qual vamos no ater na pesquisa são os primeiros quatro anos do Regime
Militarista (1964-1968). Sem dúvida, poderemos ir e vir no tempo, contudo esse é o recortetemporal principal. Há um mito de que a Ditadura durante o período destacado tenha sido uma
“Ditabranda”, termo utilizado pelo Jornal A Folha de São Paulo em 2009; segundo a memória
liberal de setores mais conservadores e “simpatizantes” tímidos do regime, essa ideia de
“Ditabranda” é válida e defendida por parte da historiografia1. Para Marcos Napolitano, esse
conceito é sustentado por argumentos como:
[...] nos primeiros quatro anos do regime ainda existia o recurso ao habeas
corpus, mobilizado pela defesa de muitos presos durante o golpe, bem comocerta liberdade de imprensa, de expressão e de manifestação. Um dosexemplos de paradoxo do regime militar pré-AI-5 é o fato de que as artes deesquerda experimentaram seu auge justamente entre 1964 e 1968. Nessa linhade raciocínio, o regime fechou-se porque sucumbiu às pressões da “extrema-direita” (linha dura) militar e à conjuntura política marcada peloquestionamento crescente do governo militar, mesmo entre seus aliados de primeira hora (2014, p. 68).
Napolitano segue destacando que, para se refletir sobre esse período.
1 Elio Gaspari, A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 (obra que defende a ideia da“Ditabranda”, exercida por Castelo Branco).
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[...] sem recair na memória construída tanto pelos liberais civis quanto pelosgenerais alinhados ao chamado “castelismo”, que gostam de afirmar o caráterreativo e brando do regime entre 1964 e 1968, é preciso refletir sobre osobjetivos fundamentais do golpe de Estado e do regime que se seguiuimediatamente a ele (2014, p. 69).
O primeiro dos objetivos era pôr fim à elite intelectual reformista e, para isso, o Estado
utilizou cassações e inquéritos policiais-militares (IPM). Os segmentos mais atingidos por esses
métodos foram as lideranças políticas, lideranças sindicais e militares que estavam
comprometidas com o reformismo proposto por Jango. No entanto, artistas e escritores da
esquerda foram preservados nesse primeiro momento. O segundo era cortar eventuais “laços
organizativos” com os movimentos sociais de base popular, como o movimento operário e o
camponês, setores em que a repressão foi maior, segundo Napolitano:
Para eles, não foi preciso esperar o AI-5 para desencadear uma forte repressão policial e política. Para os operários já havia a CLT, talvez a única herança política de tradição getulista que não foi questionada pelos novos donos do poder. A partir dela, diretorias eleitas eram destituídas e sindicatos eram postos sob intervenção federal do Ministério do Trabalho. Para oscamponeses, havia a violência privada dos coronéis dos rincões do Brasil,apoiados pelos seus jagunços particulares e pelas polícias estaduais (2014, p.69).
O governo evitava uma repressão generalizada e diretamente violenta, pois o regime
tinha consciência de que não seria possível governar um país como o Brasil sem estar
respaldado por um sistema político que tivesse pelo menos alguma aceitação social,
principalmente em setores como a classe média, que foi a massa de manobra que legitimou o
golpe “em nome da democracia”. Contudo, não era possível também, permitir a discordância e
censuras diretas ao golpe, pois as unidades militares e a elite conservadora que também foram
setores imprescindíveis para a instauração do golpe poderiam simplesmente retirar seu apoio.
Sendo assim, até que algo realmente pudesse se configurar como ameaça e justificar o
endurecimento da repressão, o governo teria que manter o equilíbrio entre uma delicada
aceitação social do regime (existia uma classe média que havia apoiado o golpe, e alas
importantes da sociedade também. No entanto não era algo sólido que o governo poderia se
apoiar sem medo algum de cair), a união militar, e ainda abrandar os cidadãos que não aderiram
ao golpismo, admitindo-lhes certa liberdade de expressão. Portanto, o caráter menos duro e
repressor da primeira fase da ditatura era muito mais pela conjuntura social em que ele se deu,
do que por uma deliberada decisão da ditadura, que não pretenderia se estender nem se tornar
“linha dura”. Era mais importante, naquele momento, imunizar o Estado de pressões sociais edespolitizar setores, do que impedir completamente a manifestação cultural da esquerda.
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Embora o governo do General Castelo Branco esteja extremamente associado à
“Ditabranda”, é imprescindível salientar que foi nessa época que se editaram quatro Atos
Institucionais, a Lei da Imprensa e a nova Constituição, onde o conceito de Segurança Nacional,
de agora em diante, deveria conduzir a vida brasileira.
Podemos facilmente aproximar a trama central de Terra em Transe ao período de pré-
golpe, apesar de ter sido produzido após a instituição da ditadura, aborda não um já estabelecido
governo ditatorial, mas sim os precedentes de uma manobra que culminara no golpe de estado
dado por Diaz. É totalmente válido fazer uma aproximação entre os personagens fictícios e os
personagens reais.
O Governador Vieira, candidato populista de Terra em Transe, que se coloca em contatocom as massas menos favorecidas, e se compromete a ajudá-las, pode ser associado a Jango,
com suas propostas reformistas que visavam auxiliar as classes menos abastadas e que, se
implementadas, “modificariam radicalmente a distribuição de poder e de riqueza no país”
(AARÃO REIS. 2014, p. 23).
Os dois personagens demonstram grande habilidade em lidar com discursos e de se
aproximar do povo por meio de suas propostas e tendências políticas, Daniel Aarão comenta
em História do Brasil Nação: Modernização, Ditadura e Democracia 1964-2010 uma série de
comícios que Jango se propôs a fazer, quando o então governante se livrou do parlamentarismo
que o detinha e tomou seu lugar como presidente efetivamente, se apropriando dos poderes que
a função possuía. Esses comícios fizeram grande sucesso, segundo Aarão: “o primeiro comício
foi realizado no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964. Um sucesso. Cerca de 300 mil pessoas
aplaudiram discursos com ânimo ofensivo. Esboçava-se uma reforma revolucionária” (2014,
p.82).
Outra semelhança entre os dois indivíduos é o frágil posicionamento diante de suas
propostas políticas e seu próprio posicionamentos dentro da política, a qualquer ameaça eles
recuam e não se matem firme em suas ideologias; ambos trazem propostas de melhoria para
vida da população mais carente, e buscam uma maior igualdade social, o que por consequência
causa certo terror a direita, e isso, obviamente, os fariam se deparar com resistências e manobras
golpistas. Porém, o posicionamento desses personagens, tanto fictício como real, demonstram
fragilidade: Jango buscava promover as reformas alinhadas com a esquerda, mas ao mesmo
tempo se mantinha submisso à direita e apenas aceitava o que ela lhe impedia, em um primeiro
momento quando essa direita conseguiu instaurar um regime parlamentarista que lhe tirava o
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setores em relação a oposição. Ele argumenta que, desde 1950, as forças esquerdistas ganharam
espaço e ascendiam, até porque, no governo de JK, o partido comunista saiu da ilegalidade, e o
PTB crescia constantemente.
Quando Jânio Quadro foi eleito presidente em 1960, não foi exatamente uma vitória
para a direita brasileira, afinal Jango, que era um candidato popular a vice-presidência, obteve
também vitória no cargo que concorreu. A ambiguidade que a figura de Jango carregava somou
mais uma derrota para a direita, suas tendências e influencias politicas se apresentavam muito
mais voltadas para o nacionalismo-estatista de Vargas do que o liberalismo da direita, líderes
como Carlos Lacerda criticaram ferrenhamente os posicionamentos de Jânio e contribuíram
para sua renúncia.
Sucedeu que, após a repentina renúncia de Jânio, a direita não teve tempo de se articular,
adicionando mais uma vitória para as alas esquerdistas, que ficaram eufóricas, principalmente
porque no meio da crise da posse de Jango se configurou o movimento em defesa da legalidade,
que visava defender a Constituição e fazer com que fosse cumprida, ou seja, dar o cargo
presidencial a quem ele pertencia de direito. A forte mobilização em relação a isso fez a
esquerda se esquecer de dois fatores extremamente pertinentes: primeiro, nem todos que
defendiam a posse de Jango eram de esquerda. Como dito anteriormente, apenas almejavamfazer a Constituição se cumprir; o segundo é que a direita se mantinha firme, pois mesmo com
a sequência de derrotas, conseguiu aprovar a Emenda Parlamentarista, amputando prerrogativas
presidenciais. Durante todo o período que precedeu o golpe, esquerda e direita mediram forças,
porém, como já dito, a falta de organização da esquerda assinalou sua derrota. Segundo Aarão,
[...] em fins de março de 1964, ás vésperas do golpe, havia muita indecisão eamplas maiorias continuavam na expectativa.
Acabou, porém, prevalecendo o improvável, a vitória, sem luta, dos golpistas.Evidenciaram, sem dúvida, capacidade de decisão muito superior atestada pela própria determinação de iniciar o golpe com tropas constituídas apenasde recrutas e com escassa munição.
Do lado das esquerdas, o exato oposto: uma completa ausência de resolução,da qual a expressão mais clara foi o comportamento de Jango (2014, p.84-85).
Terra em Transe, como observado antes, traz também essa fragilidade da esquerda, que
é ótima em discursos, mas se esconde e se divide frente às situações em que é imperativo resistir.
Glauber aponta isso no decorrer de toda a película. No início do filme, temos Paulo já
confrontando Vieira em relação ao seu posicionamento frente ao golpe de Diaz, onde a incerteza
do governante (Vieira) se evidencia; primeiramente, um militar entra em cena e informa ao
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governador que ele deve renunciar e não se rebelar. Vieira aparenta consternação, assim como
Sara que também se encontra ali; ainda na sequência, Paulo entrega uma arma a Vieira como
se aceitar essa situação não fosse nem uma hipótese a cogitar. No entanto, o governador a rejeita
e se põe a ditar uma carta de renúncia para que Sara escreva; Paulo toma isso como pura
covardia, e brada: “Está vendo Sara quem era o nosso líder? O nosso grande líder!” A próxima
sequência já mostra Sara e Paulo em um carro em alta velocidade, onde ela defende que o
sangue das massas, que a luta armada, não é a saída correta para tudo aquilo, dizendo: “Ainda
não era o momento, morreria gente, o sangue Paulo! O sangue!”, ao que ele replica, “não se
muda a história com lagrimas”; a discussão se finda com Paulo gritando que é preciso resistir,
e resistir, sem cessar.
Vemos, através do diálogo das personagens, que o segmento político não é uniforme,
mas sim cheio de matizes, onde cada indivíduo se posiciona de uma maneira que dificulta a
discussão interna. Como produto disso, vemos a morte de Paulo, o silêncio e a passividade de
Sara, que se cala, e Álvaro, que propõe uma saída ainda mais mórbida: o desgosto do
personagem é tão profundo, que ele se suicida antes mesmo do golpe se consolidar, não
enxergando nenhuma saída para o que se avizinha no horizonte.
Há uma sequência já no fim do filme, dentro do flashback pré-morte de Paulo, quemostra o fim trágico de Álvaro. Após a traição de Júlio Fuentes (o grande magnata por trás da
manobra de Paulo e seus companheiros, que em um último momento se alia a Diaz, levando
por água abaixo a candidatura do populista e toda a luta imaginada por Paulo), ele se apresenta
destruído durante a conversa com o poeta e, antes de finalizar sua participação com o suicídio,
diz: “eu não posso fazer nada diante dos dias de trevas que viram, foi por isso que eu desisti,
foi por isso que eu morri.”
É importante lembrar que o início do filme é o desdobramento da cena final, e que o
desenrolar da história se dá na agonia pré-morte de Paulo, que é baleado por um policial durante
a discussão com Sara, dentro do automóvel, e ali ferido ele retorna aos primeiros dias de sua
história política.
Essas aproximações são pertinentes, na medida em que a intenção do trabalho é trazer à
luz essas relações entre história e cinema e, mesmo que o filme não apresente referências diretas
de que a obra seria uma caricatura do Brasil, vemos que o momento histórico corrente influencia
em sua criação de maneira densa, afinal ele explora um tema, que é extremamente vivo não só
no Brasil, mas em toda a América Latina no período.
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José D’Assunção Barros fala sobre essa ideia de que a fonte fílmica traz indícios da
realidade histórica e nos mostra uma outra interpretação da mesma, mesmo que essa não seja
uma das ideias principais dos artistas durante a concepção da obra. Afirma que:
A partir de uma fonte fílmica, e a partir da análise dos discursos e práticascinematográficas relacionados aos diversos contextos contemporâneos, oshistoriadores podem apreender de uma nova perspectiva a própria história doséculo XX e da contemporaneidade (2008, p.178).
Monica Kornis também argumenta sobre isso em História e Cinema: um debate
metodológico, onde aponta a abertura que a Nova História deu para o uso da fonte fílmica na
pesquisa histórica. Segundo a autora,
O filme adquiriu de fato o estatuto de fonte preciosa para a compreensão doscomportamentos, das visões de mundo, dos valores, das identidades e dasideologias de uma sociedade ou de um momento histórico. [...] Isto significaque o filme pode tomar-se um documento para a pesquisa histórica, na medidaem que articula ao contexto histórico e social que o produziu um conjunto deelementos intrínsecos à própria expressão cinematográfica (1992, p.239)
3.2 A Brasilidade e o Cinema Novo
Neste mesmo cenário de crise política e conspiração, de reformismo e reacionarismo, acultura nacional ascende em vários aspectos. Foi um momento na história em que a palavra de
ordem era a revolução, e isso estava impregnado em todos os âmbitos da sociedade, “tanto que
o próprio movimento de 64 designou a si mesmo de revolução” (RIDENTI, 2003, p.135).
Os intelectuais da esquerda buscavam criar representações da brasilidade, através do
índio, do negro, do sertanejo, buscavam reproduzir essa identidade tipicamente brasileira
usando elementos que tinham essa essência nacional. Claro que não negavam a modernidade
em que o brasileiro estava inserido, nem a efervescência cultural, mas mesclavam isso. Se procurava no passado e nessas representações “tipicamente brasileiras” uma cultura popular
legítima para edificar um novo Brasil, que fosse moderno e que ainda assim não perdesse sua
significação cultural, que se reestruturasse em cima disso e dos elementos revolucionários.
Com o golpe de 1964, os artistas viram a necessidade imprescindível de organizar
protestos através de suas obras e em seus espetáculos, sobretudo porque os segmentos populares
foram contidos e neutralizados, como já vimos anteriormente, com Marcos Napolitano.
Marcelo Ridenti reafirma isso ao dizer:
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Os setores populares foram duramente reprimidos e suas organizações praticamente inviabilizadas, restando condições melhores de organização política especialmente nas camadas médias intelectualizadas, por exemplo,entre estudantes, profissionais liberais e artistas (2003, p.143).
Nesse contexto de repressão a setores de esquerda, a politização da cultura foi a maneira
que os artistas, intelectuais e simpatizantes encontraram para não serem totalmente
neutralizados pelo fechamento dos canais de representação política. Segundo Carlos Nelson
Coutinho, “a esquerda era forte na cultura e em mais nada. (…) Os sindicatos reprimidos, a
imprensa operária completamente ausente. E onde a esquerda era forte? Na cultura” (RIDENTI,
2003, p.143). Obviamente que o governo não deixaria um movimento como esse se articular
livremente e inúmeros Inquéritos Policiais Militares (IPMs) foram abertos contra pessoas
adversárias ao golpe e contra artistas que eram considerados subversivos.
A década de 1960 foi, ainda segundo Ridenti, tanto antes quanto depois do golpe, a
época do Cinema Novo. É nesse recorte temporal que ele emerge e se difunde, sendo
exatamente aquilo que pretendia ser, expressando o seu desejo de uma brasilidade autêntica e a
politização como aspecto principal nas produções. O Cinema Novo buscava problematizar,
através da imagem fílmica, problemas do homem simples, do latino-americano, das massas
pobres, assim como criticar e estabelecer posições políticas. A produção nesse sentido rendeu
várias obras de cunho político impressionante; inclusive a fonte trabalhada, Terra em Transe.
Filme que sintetiza o que o Cinema Novo se propunha: trabalha ao mesmo tempo com o homem
simples do campo e da cidade (o negro, o mulato, o camponês) e conceitos políticos. Podemos
ver esses aspectos durante toda a obra: ele já se inicia com um cântico de candomblé
(assinalando a brasilidade proposta), enquanto temos uma sequência aérea, mostrando o
Atlântico, de quase três minutos; as sequências que mostram a população também demonstram
aspectos do Cinema Novo, pois a população retratada é basicamente essa população
marginalizada já mencionada acima, e os problemas que ela expõe durante o filme são também
reivindicações que essas parcelas menos favorecidas demandam na realidade.
No artigo Uma Câmera na Mão, uma Ideia na Cabeça: Glauber Rocha e o Cinema
Novo na Década de 1960, vinculado pela revista online Historiador as autoras exploram as
fases do cinema novo, que segundo o artigo pode ser dividido em três, de acordo com os
assuntos tratados nas produções. A primeira fase do movimento vai de 1960 a 1964, onde
problematizaram temas referentes ao camponês, ao nordestino e os problemas do sertão. As
principais obras do período são Os Fuzis (1963), de Ruy Guerra; Vidas Secas (1963), de Nelson
Pereira dos Santos; e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, sendo
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importante salientar que esse último filme foi responsável por inserir o Cinema Novo no cenário
cinematográfico internacional, após sua exibição em Cannes. A segunda fase se situa no período
de 1965 a 1968, quando as produções giram em torno da situação política do Brasil, fazendo
críticas principalmente à ditadura e analisando esse fenômeno. Os filmes que se destacam nesse
momento são O Desafio (1965), de Paulo Cezar Saraceni; e, sem dúvida, Terra em Transe
(1967), que foi premiado em Cannes, e pode ser considerada uma obra completa, que consegue
exprimir o Cinema Novo em sua plenitude. De 1968 a 1972, temos uma terceira fase do Cinema
Novo, na qual a Tropicália influenciou exponencialmente a produção cinematográfica,
destacando-se a introdução, nas obras, de símbolos característicos do Brasil, elementos exóticos
de nossa terra, tais como as cores fortes, elementos da fauna e flora, que preservam uma
especificidade brasileira, entre outros. Grande destaque dessa fase é Macunaíma (1969), deJoaquim Pedro de Andrade, filme baseado na obra de Mário de Andrade.
Como maior precursor do Cinema Novo temos Glauber Rocha, cineasta que
desenvolveu dentro desse estilo, técnicas e problematizações que não conseguiriam ser
exploradas em um filme Hollywoodiano, mas sim sob a estética da fome que o Cinema Novo e
principalmente Glauber reforçava: “não se trata de romantizar ou glamourizar a fome e a
miséria (...) mas partir dela, como dado do presente para constituir “uma cultura da fome”,
intolerável e explosiva, capaz de problematizar-se e superar-se”(BENTES, 2002, p.2). No
capítulo a seguir, trataremos de maneira mais profunda a figura desse artista, que mostrou o
cinema nacional brasileiro para o mundo de modo primoroso.
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4. Glauber Rocha e a Construção de um Artista
Para que seja possível nos apropriarmos de modo mais profundo da experiência
cinematográfica que Terra em Transe nos proporciona, é preciso levar em conta o papelfundamental de seu idealizador, Glauber Rocha. É importante discorrer sobre sua trajetória,
afinal ele foi um indivíduo que desenvolveu e fez evoluir, de forma significativa, o cinema
nacional, mais especificamente, o movimento do Cinema Novo, do qual como dito
anteriormente, ele foi o maior precursor. Todo o trabalho e o resultado final de Terra em Transe
se dá por conta da habilidade desse cineasta, que foi se transformando e acumulando
conhecimentos e técnicas particulares, que o tornaram um ícone do cinema, não apenas nacional
mas também mundial.
4.1. A infância
Filho do caixeiro-viajante Adamastor Bráulio Silva Rocha, natural de Ilhéus, e de Lucia
Mendes de Andrade Rocha, filha de um fazendeiro de Vitoria da Conquista e criada nos rígidos
códigos da igreja presbiteriana, Glauber de Andrade Rocha nasceu em 14 de março de 1939,
em Vitória da Conquista. Naquele mesmo dia, “a Bahia comemorava o 92º aniversário do poeta
Castro Alves, morto aos 24 anos e marcado pela glória, a paixão e a tragédia” (MOTTA, 2011
p.15). É interessante pontuar também que, no mesmo ano do nascimento de Glauber, como
aponta a biografia disponibilizada pelo acervo Tempo Glauber (idealizado e mantido por alguns
de seus familiares), foi também o ano de uma significante conquista para o cinema brasileiro,
“torna-se obrigatória a exibição de um longa-metragem brasileiro por ano em cada sala de
cinema” (TEMPO GLAUBER, 2008, p.1).
Três anos mais tarde, Glauber já não era filho único e contava com a companhia de duas
irmãs, Ana Marcelina (nascida em 1940) e Anecyr (nascida em 1942). A família vivia muito
bem e os negócios do pai prosperavam. No entanto, Adamastor Rocha sentia a necessidade de
estar mais perto da família, e não realizar as longas viagens que sua profissão exigia.
Gradativamente, foi alterando seu ramo de atuação, conforme relata Nelson Motta, em A
Primavera do Dragão:
Comprou um caminhão basculante e se tornou subempreiteiro nas obras deabertura de um trecho da Rio-Bahia próximo de Conquista, logo comprou umtrator, uma betoneira e outros equipamentos, e estava abrindo estradas vicinais para prefeituras da região (2011, p.21).
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Já na infância, Glauber dava nuances de seu comportamento revolucionário e arrojado,
extremamente curioso. Sempre questionava acerca de temas como, céu e terra, Deus e o diabo,
como a Terra girava, como a chuva caia, avizinhando a mente inquieta que ele se tornaria
futuramente. Com suas terminantes recusas em frequentar o jardim de infância, ele foi
alfabetizado em casa pela mãe, e entrou em um colégio católico aos sete anos de idade. Apesar
de na esfera familiar ele ser uma criança doce e gentil, na escola colecionava reclamações por
seu comportamento rebelde e a falta de interesse nas aulas, bem como por seus questionamentos
surpreendentes: “na escola dominical chegou a discutir a existência de Deus com a esposa do
Pastor” (MOTTA, 2011, p.22).
Desde novo, já era um ávido leitor: a Bíblia e quadrinhos eram seus materiais favoritos
para leitura, ainda que radionovelas também lhe chamassem muito a atenção. Aos domingos,
após a escola dominical, ia ao Cine Conquista, onde assistia vários filmes de Western, seriados
de mocinhos e bandidos, configurando-se ali seu primeiro contato com cinema. Já sua
familiaridade com o universo do nordestino sertanejo se deu com as viagens que fez com o pai
pelo sertão da Bahia; durante os passeios, conheceu histórias sobre Lampião, Antônio
Conselheiro, Canudos; tomou também conhecimento acerca dos poetas de cordel e escutou
narrativas acerca do misticismo e heroísmo do homem sertanejo.
A empreiteira de Adamastor Rocha foi se expandindo e exigindo que este passasse
muito tempo em Salvador. Mais uma vez não querendo se ausentar por muito tempo da família,
ele decide se mudar com a esposa e filhos para a capital. Glauber nesse período tem 9 anos.
Após uma um grave acidente que deixa Adamastor impossibilitado de trabalhar, Lucinha passa
a chefiar a família e abre a loja O Adamastor , na movimentada Rua Chile, em Salvador.
Para conseguir cuidar de Adamastor, Lucia matricula Glauber no Colégio Presbiteriano
2 de Julho, conhecido pela disciplina e rigor no ensino. É lá que que ele escreve sua primeira
peça El Hilito de Oro, em que atua também. Glauber, no entanto repudiava o confinamento e
como um amante de sua liberdade desde cedo, pede para que a mãe o transfira do internato para
o externato do Colégio 2 de Julho, pois não suportava um período integral da rigorosidade do
colégio. Agora em casa, no período da tarde ele ajuda a mãe da loja e a cuidar de suas irmãs.
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4.2. Adolescência e o Florescimento do Artista
Aos treze anos, Glauber tem sua primeira experiência como crítico de cinema, gravando
um programa chamado Cinema em Close-Up para a rádio Sociedade da Bahia.
Nesse mesmo ano de 1952, mais uma tragédia acomete a família Rocha: Ana Marcelina,
uma das irmãs de Glauber, morre de leucemia. A tragédia abate ainda mais o pai doente e o
resto da família, fazendo com que Lucinha feche a loja e opte por abrir um pensionato na rua
General Labatut.
Glauber mostra-se interessado em tudo que trate de arte, filosofia e cinema, e dedica
longos períodos à leitura desse tipo de material. Tem também um grande interesse pela literaturanacional, e torna-se grande leitor de Jorge amado e Erico Verissimo. É um período onde o rapaz
desenvolve ainda mais suas já aguçadas habilidades artísticas, se aprofundando nos temas que
lhe chamavam a atenção.
Em 1954, já farto do Colégio Presbiteriano, ele pede a mãe que o deixe frequentar o
público Colégio Central da Bahia, e ela permite. O tempo que Glauber passou no Central
elevou ainda mais seus conhecimentos intelectuais, ao mesmo tempo em que se envolvia em
numerosas atividades acadêmicas. No primeiro ano de sua transferência, já participava doCírculo de Estudo, Pensamento e Ação (CEPA), frequentava ativamente o clube de cinema e,
ainda em seu primeiro ano, escreve o balé Sefanu. No ano seguinte, o poeta Fernando Rocha
Peres2 cria o grupo Jogralesca Teatralizações Poéticas. Glauber é quem dirige as encenações,
onde se misturam a poesia de modernistas como Vinicius de Moraes e o teatro. A estreia do
grupo ocorre em setembro do ano seguinte, no aniversário do Colégio Central.
O ano de 1956 é extremamente produtivo para Glauber. Ele colabora no curta de Luiz
Paulino Um Dia na Rampa, que foi gravado no Mercado Modelo de Salvador; funda,
juntamente com Luiz Paulino3, Zé Telles e Fernando da Rocha Peres, a Cooperativa
Cinematográfica Yemanjá. Vemos, nessa fase, um florescimento de Glauber como artista e o
desenvolvimento cada vez mais aparente de suas habilidades. Nesse período podemos já
enxergar o grande cineasta que Glauber se tornaria futuramente.
2 Nasceu em Salvador, é professor de História da Universidade Federal da Bahia desde 1972. Foi eleitomembro da Academia de Letras da Bahia em 1987.
3 Luiz Paulino dos Santos, é um roteirista e diretor de cinema brasileiro.
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No ano posterior, para dar início às produções da cooperativa, Glauber e seus
companheiros idealizaram uma série de quatro episódios, intitulada Bahia de Todos os Santos.
Um deles, chamado Senhor dos Navegantes, da autoria de Glauber. Contudo, para conceber
esse projeto era necessário capital e, segundo Motta, ainda em A Primavera do Dragão,
[...] registraram a firma em cartório e saíram colando em paredes e postes daCidade Baixa um folheto em que se lia, sob o desenho de uma sereiazinha:“Você acredita em cinema na Bahia? Nós acreditamos! Coopere com aYemanjá Filmes. Colabore com o filme Bahia de Todos os Santos”. Masninguém cooperou nem colaborou. Ninguém acreditava em cinema na Bahia(2011, p .61)
Como essa primeira experiência tentando produzir cinema foi mal sucedida, Glauber
prestou o vestibular para o curso de direito, mesmo que muito contrariado. Como esperado, eleconseguiu entrar na faculdade sem grande dificuldade. No entanto, manter-se nela foi outra
história, pois ele acumulou funções escrevendo para vários meios associados à política, cultura
e cinema:
Depois das provas parciais de junho, quando tirou quatro zeros, Glauber tevecerteza de que o Direito não era o seu mundo e começou a pensar em fazervestibular para Filosofia. Mas o que queria mesmo era uma bolsa para estudarcinema no IDHEC (Institute des Hautes Études Cinematographiques), emParis. Além da Ângulos e da Mapa, e do Cinema em close-up no rádio,
Glauber escrevia artigos para as revistas O Momento e Sete Dias, e assinavauma coluna sobre cinema no Diário de Notícias. Com tanta atividade, não foisurpresa a sua reprovação, por faltas, no final do ano. (MOTTA, 2011, p.89).
4.3. A Consolidação do Cineasta Visionário
Com vinte anos, em 1959, o cineasta vai até São Paulo para participar com Walter da
Silveira4 do Congresso dos Cineclubes e da Bienal de São Paulo. Lá mostra o copião de seu
primeiro curta, O Pátio, a Walter Hugo Khoury5. Nessa mesma viagem, tem contato
pessoalmente com nomes como Paulo Emílio Salles Gomes6, Rudá de Andrade7 e Jean-Claude
Bernardet8. Nesse período, todos esses nomes já são conceituados dentro da esfera
cinematográfica, sendo assim, o com essas pessoas foi extremamente positivo para a construção
e desenvolvimento das habilidades cinematográficas de Glauber. Logo no mesmo ano, com o
4 Viveu em Salvador, foi um crítico de cinema, escritor, e influenciou diretamente Glauber.5Diretor de cinema, realizou 25 longas-metragens. Os filmes abordam no geral histórias com personagens que
procuram sentido para a existência angustiante.6 Historiador, crítico de cinema e militante político brasileiro.7 Escritor e cineasta, filho de Oswald de Andrade e Patrícia Galvão (Pagu).8 É um cineasta, teórico de cinema e crítico.
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apoio dessa frente cultural com a qual ele construiu uma profunda relação, lançou o curta Pátio,
em Salvador, e promoveu sessões no Rio.
Em 30 de junho, Glauber se casa com sua, até então namorada, Helena Ignez. Mesmorecém-casado, ainda em 1959, ele começa a rodar seu segundo curta Cruz na Praça, baseado
em um conto de sua autoria.
Na virada da década, Glauber tem sua primeira filha, Paloma de Mello e Silva Rocha, e
sua empreitada em fazer cinema fica cada vez mais séria e centrada. Nesse ano, ele trabalha em
um filme de Roberto Pires9 como produtor executivo, A Grande Feira. Ele também se lança
na produção de Barravento, seu primeiro longa como diretor e roteirista. O enredo inicial é de
Luiz Paulino, mas após desistência do mesmo, ele vai parar nas mãos de Glauber.
Em 1961, ele finaliza a produção de Barravento no Rio de Janeiro. Nessa fase, a
efervescência cultural no Brasil é clara, inclusive, o cinema baiano pensante que Glauber tanto
almejava se concretiza:
O ciclo de cinema baiano é uma realidade com “Bahia de Todos os Santos”,de Trigueirinho Neto, “A Grande Feira”, de Roberto Pires, e “Barravento”, deGlauber (TEMPO GLAUBER, 2008, p.14).
O Cinema Novo configura-se efetivamente como movimento em 1962, com várias obras
que são a realização desse conceito, sobre o qual vamos discorrer com maiores detalhes em
outro capitulo desse trabalho. Obras que impulsionam esse começo do movimento são:
Barravento de Glauber Rocha e Cinco Vezes Favela, produzido pelo Centro Popular de Cultura
da UNE, que reunia cinco curtas de Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues,
Miguel Borges e Marcos Farias.
No ano seguinte, a consolidação de Glauber como um cineasta notório fica mais
próxima, com o início da produção de Deus e o Diabo na Terra do Sol , que é concluída em
quatro meses. O Cinema Novo ganha visibilidade, “com três futuros clássicos sobre o Nordeste:
Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol , de Glauber
(lançado em 1964), e Os Fuzis, de Ruy Guerra” (TEMPO GLAUBER, 2008, p. 17).
Em meio ao golpe militar de 1964, o Cinema Novo ganha espaço. Deus e o Diabo na
Terra do Sol é um grande sucesso, obtendo prêmios e acaba por ganhar uma indicação em
Cannes. Mesmo com a tensão política, Glauber não para de produzir sejam curtas, manifestos
9 Roberto Pires foi um cineasta brasileiro, com grande capacidade de criar seus equipamentos manualmente.
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ou artigos; a repressão não o para. Esse engajamento com a produção cultural esquerdista lhe
redeu uma prisão, que é assim tratada na Biografia Ilustrada do acervo Tempo Glauber:
Em novembro, é preso num protesto contra o regime militar em frente ao HotelGlória, no Rio de Janeiro, durante reunião da OEA (Organização dos EstadosAmericanos). São presos com Glauber: Joaquim Pedro de Andrade, MárioCarneiro, Flávio Rangel, Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, JaimeRodrigues e Márcio Moreira Alves. A prisão tem repercussão internacional eum telegrama de protesto assinado por Alain Resnais, Truffaut, Godard, JorisIvens e Abel Gance é enviado ao presidente Castelo Branco. (TEMPOGLAUBER, 2008, p.20).
Terra em Transe, obra sobre a qual esse trabalho se dedica, é lançado em maio de 1967,
porém seu lançamento deveria ter ocorrido antes. Deu-se mais tarde por conta da censura, queno início do ano havia proibido o filme em todo território nacional por considerá-lo subversivo.
Mas, assim como Deus e o Diabo na Terra do Sol , Terra em Transe é um grande sucesso. O
acervo Tempo Glauber descreve em um parágrafo extremamente pertinente esse sucesso:
Exibido no Festival de Cannes, “Terra em Transe” ganha os Prêmios LuisBuñuel da crítica espanhola, e da FIPRESCI (Federação Internacional deImprensa Cinematográfica). No Rio, o filme fica em cartaz durante quatrosemanas em dez cinemas. Em sessão para estudantes organizada pelo Teatro
Universitário de São Paulo (TUSP) o filme é interrompido por aplausos emsua exibição. De Cannes, Glauber viaja para Paris. Participa do Festival deVeneza, onde encontra Luis Buñuel. Apresenta “Terra em Transe” emMontreal, no Canadá, onde entrevista Jean Renoir. No Festival Internacionaldo Filme de Locarno, “Terra em Transe” recebe o Grande Prêmio e o Prêmioda Crítica. Em Havana, é considerado pela crítica cubana o melhor filme doano. No Rio, recebe do Museu da Imagem e do Som o Prêmio Golfinho deOuro de Melhor Filme. No Festival de Cinema de Juiz de Fora ganha quatro prêmios: Melhor Filme, Menção Honrosa de Melhor Roteiro, Melhor AtorCoadjuvante para Modesto de Sousa, Prêmio Especial para Luís CarlosBarreto, pela fotografia e produção do filme (TEMPO GLAUBER, 2008, p.22).
A partir daí, Glauber só cresceu em técnica e criatividade, com seu estilo engajado
politicamente, mas ao mesmo tempo despretensioso. Procurava retratar o homem comum latino
americano, o nordestino, o pobre, a luta de classes e as mazelas de minorias esquecidas, que
eram logicamente também esquecidas no cinema de massa hollywoodiano. Após Terra em
Transe, outro filme de Glauber chama que muita atenção. Trata-se de O Dragão da Maldade
contra o Santo Guerreiro, outra obra bem sucedida.
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5. Terra em tr anse e sua recepção
A indagação central desse trabalho surgiu após a observação de que, apesar de Terra em
Transe ser um filme com um forte aspecto esquerdista, ele não agradou de maneira unânimeessa ala da sociedade. Duas críticas chamaram bastante a atenção: a primeira é de Oduvaldo
Vianna Filho (Vianinha), que disse: “o Brasil não é aquilo! O Brasil não é essa merda que o
Glauber Rocha vê” (MORAES, 1991, p. 166); e a de Fernando Gabeira, que critica o mesmo
aspecto, dizendo:
O filme tinha uma concepção muito depreciativa do povo brasileiro e acabavacom uma solução elitista, de quem não acredita mesmo na ação organizadadas massas. Centrei minha intervenção na tese de que o filme discutia duas
saídas através dos dois personagens e que escolhia a pior delas (GABEIRA,1981, p. 32).
Por esse motivo, foi decidido explorar esse ponto; em que medida essas duas sociedades,
a real e a fictícia, se assemelham e porque é difícil para a esquerda do período se encontrar
dentro dessa obra. Nessa parte do estudo é de interesse principal trazer para a discussão algumas
percepções acerca desse filme.
5.1 Terra em Transe e a Crítica Intelectual e Artística
Terra em Transe entrou no circuito comercial no dia 08 de maio de 1967, no Rio de
Janeiro. No entanto, foi logo retirado de cartaz por conta da polêmica acolhida que obteve junto
ao grande público, e também junto aos intelectuais brasileiros que fizeram uma série de
interpretações sobre o filme.
A película foi também distribuída para São Paulo e outros estados. Claro que não se
pode dizer que foi que obteve uma bilheteria notável, já que a maioria dos espectadores não
estavam acostumados a histórias tão alegóricas, construídas em uma linguagem fragmentada e
de difícil entendimento. Inclusive, até os intelectuais mais acostumados a essa estética e
montagem particular de Glauber colocaram em pauta questões que certamente não foi a
intenção do autor levantar.
Glauber, em uma entrevista que concedeu a Frederico Cárdenas e René Capriles, e que
foi anexada à obra Revolução do Cinema Novo, comentou sobre a recepção de Terra em Transe e a relutância da esquerda em relação ao mesmo:
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(...)quando se exibiu [Terra em transe], a maior parte da esquerda “oficial”atacou-o, acusando-o de fascista. Foi uma polêmica social, cultural e políticaenorme; hoje Terra em transe há dois anos de lançado, continua permanente eatual: a imprensa continua ocupando-se dele, discutindo-o e o público, tanto oque foi ver o filme e não o entendeu como o que viu e reagiu contra, tomouconsciência dele (ROCHA, 2004, p.171).
O filme causou polêmica não apenas após sua estreia. Mesmo antes, causou certo furor
pois sua exibição foi impedida pelo Serviço de Censura e Diversões Públicas o SCDP. Durante
o período em que o filme ficou no SCDP, esperando uma decisão favorável à sua liberação, foi
assunto em várias publicações jornalísticas e culturais da época. Os intelectuais se serviram da
mídia de várias formas para denunciar a censura que o filme estava sofrendo e assim,
consequentemente, pressionar o governo a liberar a película. Quando, por fim, o filme foi
liberado, sem cortes e sem censura, a imprensa mais uma vez o colocou como assunto de
destaque, havia grandes expectativas acerca do trabalho. Contudo, à medida que as pessoas
tomavam conhecimento do conteúdo do rolo, o mesmo espaço que foi utilizado para difundir o
filme e defendê-lo, agora servia como um painel de críticas e debates sobre as interpretações
referentes ao filme, tornando-se arena para a exposição das mais variadas opiniões, em muitas
vezes negativa.
Setores da esquerda política do país e indivíduos ligados ao militarismo atacavam o
filme, obviamente por motivos distintos, outros nomes do meio artístico como escritores e
intelectuais, alguns ligados ao movimento de Cinema Novo, procuravam defender essa obra.
Nelson Rodrigues é um exemplo dos que saíram em defesa de Terra em Transe, no Jornal
Correio da Manhã de 16 de maio de 1967:
Durante as duas horas de projeção, não gostei de nada. Minto. Fiqueimaravilhado com uma das cenas finais de Terra em transe. Refiro-me omomento que dão a palavra ao povo. Mandam o povo falar, e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de repente o filme esfrega na cara da plateia estaverdade mansa, translúcida, eterna: o povo é um débil mental. Eu e o filmedizemos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será eternamente.O povo morrera para mim (...) sentia nas minhas entranhas o seu rumor. Derepente no telefone com Hélio Pellegrino, houve um berro simultâneo:‘Genial!’ Estava certo o Gilberto Santeiro (...) nós estávamos cegos para oóbvio. Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danaçõeshediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seuslugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber nos deuum vômito triunfal. Os Sertões, de Euclides da Cunha, também foi o Brasilvomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser essagolfada hedionda.
Hélio Pellegrino foi outro indivíduo que também defendeu o longa, com um
comentário/resumo que tinha o intuito de explicar a obra aos mais insensíveis, frente à opção
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estético-narrativa de Rocha. No texto de maio de 67, que só foi publicado em 30 de agosto de
1981, no Jornal do Brasil , do Rio de Janeiro, escrito portanto no período dos primeiros debates
sobre Terra em Transe, ele escreve:
(...) Porfírio Diaz, napoleão de opereta, alma de escorpião e fariseuempunhando o crucifixo e a negra bandeira fascista, serve de corpo inteiro àCompañia de Explotaciones Internacionales, sob pretexto de servir a Cristo.O senador Diaz, odiando o povo, pretende coroar-se imperador de Eldorado para impor aos sub-homens eldoradenses sua todo-poderosa vontade de super-homem. Vieira, governador de Alecrim, província de Eldorado, é umdemagogo populista que se elege à custa do voto dos camponeses e operários para depois, no poder, ordenar o fuzilamento de seus líderes. Don JúlioFuentes é a expressão máxima da burguesia progressista de Eldorado. Donode tudo -- minério, petróleo, siderurgia, imprensa, televisão -- sente-se, emdeterminado momento, esmagado pela concorrência da Compañia deExplotaciones Internacionales e, num furor impotente, admite aliar-se àsforças populares para chegar ao poder. Fuentes, entretanto, é branco, e com os brancos se entende. Ao frigir dos ovos, manda ao diabo suas boas intençõesnacionalistas e se transforma em tapete para Diaz, pinça do caranguejoimperialista em Eldorado.
Há o poeta, Deus meu, o sórdido, o belo, o generoso, o ingênuo, o puro emaculado poeta Paulo Martins, homem dividido como um pedaço de vísceraé dividida por uma faca, homem que sangra, e sonha, se encontra, e se aliena,e dança, e regouga, e tenta, e busca, e ama, e rodeia. Paulo Martins é aconsciência em transe de Eldorado. Ele, poeta e soldado, soldado e poeta,truão e herói, se dilacera na tentativa de abraçar as contradições de Eldorado para, no escuro do caos, forjar o instrumento de luta capaz de redimir o país.Paulo Martins tenta confiar, tenta acreditar, tenta submeter-se aos esquemas burocráticos de uma dialética esvaziada de originalidade e de heroísmo. Tudoe todos falham, falha Diaz, de quem o poeta era amigo, falha Vieira, a quemo poeta procurou servir, falham os revolucionários que, em nome de velhasfórmulas esclerosadas, pretendem manipular a realidade, longe, muito longede seu selvagem coração.
Há um momento em que Paulo Martins está só. Arma-se o golpe de morte nasderradeiras possibilidades democráticas de Eldorado, o imperialismo desferesobre o crânio do país uma porretada que o fende, Vieira renuncia à luta, o povo, perplexo e manietado, não sabe o que fazer, os burocratas, articuladoresabstratos de uma estratégia inviável, usam suas jaculatórias como quem recitaum exorcismo impotente. O golpe está em marcha, a negra bandeira fascistase abate sobre o país. O poeta está só, na sua insônia. Esta insônia, porém, seilumina com o clarão de uma consciência que arde. O poeta arde na noite deEldorado, e sua solidão solidária se enche de rumores, queixas, gemidos,sofrimentos e lágrimas que a noite do país absorve e emudece.
Eis que o poeta -- consciência em vigília -- decide assumir, ao preço da própriavida, a situação limite que o dilacera, dilacerando Eldorado. Sozinho, sozinho,tão só como quem nasce -- ou como quem morre -- o poeta, com o povo, pelo povo e para o povo, lança seu peito de encontro aos fuzis que condenam
Eldorado ao papel de um país que se agacha. Em nome de todos, encarnandoo direito de todos à vida, à liberdade e à dignidade humana, o poeta arrombaas barreiras da polícia e tomba crivado de balas.
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Com a circulação de Terra em Transe dentro do circuito cinematográfico, o filme foi
tão comentado pelos espectadores que tiveram a oportunidade de viver essa experiência
cinematográfica, que no dia 18 de maio de 1967, aconteceu no Museu da Imagem e do Som do
Rio de Janeiro um debate acerca do filme. Um dos tópicos a tratar era a hipotética dificuldade
de comunicação em Terra em Transe, o diálogo com o espectador, assim como o protagonista
Paulo Martins, e também a estrutura narrativa adotada por Glauber, considerada fragmentada,
extremamente subjetiva e confusa; fragmentada e confusa foram dois dos adjetivos mais
atribuídos ao filme no período de lançamento.
Abaixo, seguem algumas opiniões acerca de Terra em Transe, extraídas do debate no
Museu da Imagem e do Som, em maio de 67, anexadas nos Extras do filme na versão
remasterizada.
Hélio Pellegrino - Se nós tivermos que medir o valor de alguma coisa pelareceptividade que tem essa coisa junto ao público, então, nós teremos queeleger o Chacrinha Presidente da República. Porque ele tem umareceptividade fantástica.
Luiz Carlos Barreto - Dizem que o filme é caótico e ininteligível. Se o fosseCannes não o teria indicado para concorrer no Festival. Segundo a comissãoorganizadora, Terra em transe foi o filme atual que mais contribuiu para odesenvolvimento da linguagem cinematográfica.
Maurício Gomes Leite - Eu quero resumir minha opinião a dez proposiçõesiniciais, que depois poderão ser colocadas em debate: Eu acho que Terra emtranse foca uma verdade desagradável de maneira desagradável. Ou seja, Terraem transe fere ideias prontas de pensamento ordenado, dos conceitos sólidosda direita, e alguns slogans imutáveis da esquerda. O cinema de GlauberRocha, como todo bom cinema da década de 60, é um cinema provocante, polêmico, ou seja, poético. Terra em transe oferece num país em crise umaferoz interrogação e muito desencanto. Paulo Martins, o poeta, oscila entre ointervalo romântico. Ele ama sua obra, ele ama Sara, respeita Diaz, constróiVieira. Eldorado, país em crise, é também um país em transformação ondetudo oscila: homens, fatos, mulheres, ideias. Cada plano de Terra em transesignifica a imagem de uma atitude moral ou de uma dúvida política. Terra emtranse é o retrato de um povo da América Latina: entusiasmo e preguiça.Aspiração mística da liberdade. A forma de cada um para salvar a nação aoseu modo. Glauber recorre a emoção antes da inteligência. Seu filme éviolento, patético, desequilibrado (...) como Eldorado. Terra em transe não é bem um grande filme político. É um filme sobre a agonia da política.
Fernando Gabeira - Eu acredito que Terra em transe não oferece nenhumainterrogação. Eu acredito que o Paulo Martins é apenas um candidato a super-homem que ia fatalmente desaguar naquelas teorias reacionárias que no finalacabou defendendo. E acredito também que ele simplesmente, eludiu o problema dele e mergulhou nos problemas da história. Ou mergulhou em busca da beleza e da poesia, sem que tivesse realmente se reconhecido.Portanto, eu acho que o filme não lança nenhuma interrogação. Ele lança umaafirmação errônea. Ou, se existe uma possibilidade de revolução (...) ou a
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possibilidade de um homem pegar numa metralhadora, esse homem, nessemomento, está afirmando o máximo da singularidade dele. É preciso que eleentre inteiro numa revolução. Uma posição dessa não se toma mutilado.
Pode-se observar, através das opiniões acima citadas, que essa película levantou
questões e polêmicas, muitas delas diferentes do que Glauber Rocha pretende em Terra em
Transe. Vários elementos chamam a atenção para a obra, desde o debate político até os
infortúnios individuais e a insatisfação da burguesia intelectual. A obra abre um leque de
interpretações que podemos visualizar, e geram grandes debates.
Terra em Transe foi concebido em uma época de extrema tensão dentro do país.
Podemos, sim, ler a película através da ótica nacionalista de que ele se refere especificamente
ao Brasil, pois é algo captado no primeiro momento em que entramos em contato com a película. Entretanto, Glauber afirmou diversas vezes que Terra em Transe é uma analogia a
toda a América Latina, com suas mazelas, contradições, e subdesenvolvimento. Para afirmar
essa imparcialidade, é percebido no filme que, apesar de ter sido gravado no Brasil, não mostra
em momento algum, lugares conhecidos. Essa não identificação de espaço pode ser associada
à tentativa de analisar apenas aspectos políticos e históricos na América Latina e não
especificamente de falar da deposição de Jango e instauração da ditadura militar, o que também
não quer dizer que não se pode associar estes eventos, afinal, no primeiro capitulo dessetrabalho, temos uma aproximação desses personagens fictícios com os reais. Acontece que,
como já exposto anteriormente, o filme, mesmo que não intencionalmente, nos dá nuances do
período em que foi produzido, e sobre os personagens que fizeram parte dele, principalmente
se tratando de um filme de cunho político, e que foi concebido por alguém com uma visão
política presente.
Seguindo esse raciocínio, podemos dizer então que o filme não tenta explicar ou detonar
o populismo, mas sim analisá-lo juntamente com o processo histórico-político dos países latinosamericanos, e como as camadas sociais se posicionam frente a adventos históricos. Helena
Stigger fala no artigo em Cinema brasileiro e a Experiência da Ditadura Militar que só se pode
compreender “totalmente sua técnica, o conteúdo da história e a evolução do filme,
relacionando-o com o padrão psicológico vigente nesta nação” (2012, p.118). Era preciso,
então, os críticos não tomarem Terra em Transe sob uma ótica apenas esquerdista, mas sim
ampliassem essa visão, levando em conta todos os segmentos políticos, e todos os elementos
propostos.
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Por fim, para ir adiante dentro da pesquisa, encerrando esse capítulo, tomemos a opinião
do autor sobre sua obra. Consideramos que essa é forma pertinente de entender melhor o que
Terra em Transe representou em seu lançamento. Glauber Rocha nos fala, em Revolução do
Cinema Novo:
Terra em transe é um filme sobre o que existe de grotesco, horroroso e pobrena América Latina. Não é um filme de personagens positivos, não é um filmede heróis perfeitos, que trata do conflito, da miséria, da podridão dosubdesenvolvido. Podridão mental, cultural, decadência que estão presentestanto na direita quanto na esquerda. Porque nosso subdesenvolvimento, alémdas febres ideológicas, é de civilização, provocado por uma opressãoeconômica enorme. Então, não podemos ter heróis positivos e definidos, não podemos adotar palavras de beleza, palavras ideais. Temos que afrontar nossarealidade com profunda dor, como um estudo da dor. Não existe nada de
positivo na América Latina a não ser a dor, a miséria, isto é, o positivo é justamente o que se considera como negativo. Porque é a partir daí que se podeconstruir uma civilização que tem um caminho enorme a seguir. Essa é minhaopinião sobre o filme (2004, p.172).
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6. Representação e Realidade de um Povo
Chegamos ao ponto principal da pesquisa, capítulo onde exploraremos a representação
de sociedade que Rocha constrói dentro de Terra em Transe e em que medida podemos fazeruma aproximação entre a sociedade brasileira representada no filme e sociedade brasileira
daquele período.
Em um primeiro momento, vamos destacar as sequências onde esse “povo” é retratado
no filme, expondo-as e elencando as características que o autor designa a esse personagem. São
em quatro momentos distintos que nos deparamos com o personagem “povo” dentro da trama,
momentos que também nos causam intensa reflexão, pois as cenas e os diálogos abrem questões
que, por vezes, preferimos negar ou ignorar. Após isso, vamos relacionar todo o argumento
desenvolvido com as aproximações que podemos fazer entre essas representações do social e a
sociedade que encontramos nesse período. Usaremos o termo “personagem povo” para nos
referir a esse aspecto dentro do filme. Obviamente, mais de um indivíduo tem voz dentro dessa
camada, ao longo da película, porém, estamos analisando um bloco e o identificaremos dessa
maneira.
É importante lembrar que uma das maiores críticas direcionadas a Terra em Transe foi
a maneira como o brasileiro é representado. Já foram expostas anteriormente no trabalho
opiniões como as de Gabeira e Vianinha, que levantam exatamente essa questão. Veremos
também, que essas opiniões que resumem Terra em Transe em uma obra feita para atacar o
populismo e afirmar a descrença na organização das massas, se dão por existir dentro da
esquerda a grande dificuldade em admitir a demagogia que a cerca. Glauber Rocha escancara
isso no filme, mostrando que, em muitas ocasiões, a própria esquerda se sufoca e recua frente
a uma situação em que deveria resistir.
6.1 Representação Popular em Sequências
O primeiro momento onde o espectador entra em contato com o “personagem povo” é
na sequência onde o candidato ao governo de Alecrim, Felipe Vieira, vai às ruas se encontrar
com as massas que futuramente o elegeriam. Esse encontro tem como produto final uma
sequência eufórica, que expressa exatamente o entusiasmo que toma conta das massas quandoalguém se dispõe a auxiliá-la. Olhando para além do sentimento que as cenas produzem no
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espectador, vemos um povo que acredita em Vieira. Dentro desse aglomerado, não temos outros
intelectuais progressistas extremamente politizados, mas sim uma população comum, em
grande parte mulata e negra; a figura do camponês também se apresenta, através de um
personagem específico, Felício.
Durante a caminhada de Vieira, ele sorri, acena, promete e discursa, solicita ao assistente
que tome nota das mazelas do povo, pois como ele mesmo diz, vai acabar com todos os abusos
que vitimam essa população. Felício, no meio da multidão, se achega para ter com o candidato,
e nesse momento temos que levar em consideração não apenas o diálogo que ele tem com
Vieira, como também a forma que esse cidadão se aproxima; ele chega de maneira discreta,
quase envergonhada, solicitando a Vieira que melhore o abastecimento de água, visando assim
aprimorar o cultivo de suas terras. No entanto, o pedido não é só educado e humilde, é como se
Vieira não estivesse apenas fazendo seu trabalho como governante, mas sim um favor pessoal,
dando uma esmola. Nesse momento, vislumbramos os traços da submissão do povo, que
Glauber traz em Terra em Transe. Ainda nessa cena, do diálogo entre Vieira e Felício, o cidadão
é claramente pouco instruído, e não se articula de maneira fluida. No meio de sua fala, Vieira
simplesmente o corta, dizendo que ele pode ficar tranquilo e que tudo será resolvido; Felício
mais uma vez tenta articular sua demanda, mas a excitação política da população e os aliados
de Vieira cobrem sua fala e o silenciam, trazendo à tona mais uma vez a fraqueza das massas
que é explorada em Terra em Transe.
A segunda sequência em que o “personagem povo” é abordado, trata de uma situação
após a eleição de Vieira. Já em posse do cargo de governador, ele começa a recuar em seus
posicionamentos e propostas, por conta de seus acordos com os latifundiários, colocando-o em
conflito com as bases eleitorais. Acontece, então, um encontro entre o povo camponês
mobilizado e seu governante; na cena em que Vieira chega para ter com seus eleitores é bemdiferente, dessa vez há forças policiais para conter a população, não há a excitação política que
é observada na primeira interação, as sim uma tensão. Paulo também se encontra no local, no
entanto não como poeta ou intelectual mas sim como chefe das forças policiais, como guarda
costa de Vieira.
Mais uma vez, Felício, que podemos identificar agora como o líder desse movimento,
vem de encontro com o governador, e é possível ver atrás dele uma grande massa de pessoas
barradas pela polícia. Ao estar frente a frente com Vieira, o camponês, agora mais confiante
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(se comparado a primeira interação), começa a expressar sua demanda e Paulo entra em cena,
para cumprir seu papel como guarda costas de Vieira. Abaixo, o diálogo entre os dois:
Felício: É que nossas família chegou nessas terra já tem mais de vinte anos ea gente lavrou a terra, plantou nela e as mulher da gente pariu nessas terra.
Agora a gente num pode deixar as terra só porque apareceu uns dono num sei
da onde trazendo um papel do cartório e dizendo que as terra é dele.... É isto
que eu queria dizer, seu doutor... A gente acredita no sinhô, mas se a Justiça
decidir que a gente deve deixar as terra, a gente morre mas num deixa não!
Paulo: Se acalme, Felício, respeite o Governador.
Felício: Doutor, o sinhô... eu confio no sinhô mas a gente tem de gritar...
Paulo: Gritar com quê?
Felício: Gritar com o que sobrar da gente, com os osso...
Paulo: Cale a boca, você e sua gente não sabe de nada!
Felício: Doutor Paulo, o sinhô era meu amigo, o sinhô me prometia...
Paulo: Nunca lhe prometi nada!
Felício: Eu num sou mentiroso!
Paulo: É um miserável, fraco, falador, covarde!
Felício: Doutor Paulo!
Paulo agride Felício, derruba-o no chão. O povo se agita e é contido pela polícia.
Paulo: Está vendo como você não vale nada? E vocês também! Todos paracasa, já! Todos!
Felício: Doutor Paulo! O sinhô era meu amigo!
A interação acima causa uma inversão de papéis, onde aqueles que se diziam
representantes do povo, agora não passam de seus opressores. Os compromissos para com a
burguesia eram mais importantes. Glauber expõe uma crítica ao populismo, que achava que
poderia se estabelecer sem o povo, colocando-o apenas com uma massa de manobra e que não
iria se rebelar contra ele em nenhum momento, apoiando-se em uma “burguesia que se achava
de esquerda, mas no fundo era individualista e egoísta” (NAPOLITANO,2014, p. 103).
Napolitano fala sobre esse aspecto, especificamente em Terra em Transe, em 1964: História
do Regime Militar Brasileiro. No capítulo em que discorre sobre a cultura no Brasil entre 1964
e 1968, diz:
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[...]Glauber ainda objetivava ampliar o projeto da esquerda, sem as ilusões políticas do período pré-golpe, tais como a aliança entre o populismo e acrença na burguesia politicamente progressista, finalizando o filme com umaclara alegoria da luta armada (2014, p.101).
A próxima sequência que analisaremos é aquela em que, após esse confronto entre Paulo
e Vieira, Felício é assassinado por um dos coronéis, Moreira. As cenas oscilam entre Vieira e
Paulo discutindo, e a esposa de Felício chorando sobre seu cadáver, rodeada pela população
local, que mais uma vez se revolta e vai à praça, protestar. No entanto, como Moreira foi um
dos financiadores da campanha de Vieira, nada acontece. Nessa sequência, Glauber aponta
outra situação que se prefere ignorar, tanto na política da esquerda como na política feita pela
direita, é o fato de que o povo, quando não se cala diante dos mandos e desmandos governistas,
quando, como no caso Felício, ele grita, suas vidas são silenciadas definitivamente. Isso ocorredos dois lados, tanto a esquerda quanto a direita, vemos assim que o povo não é protagonista
em nenhum dos segmentos, mas sim massa de manobra.
O último momento onde Glauber traz o personagem povo a tela é talvez o momento
mais intenso dentro de toda película. O conjunto de cenas ocorre já na campanha para a
presidência de Vieira. A sequência se inicia com um grande comício de rua, e é aberta com o
grito de Paulo apresentando Vieira através da frase “O candidato popular!” Seu entusiasmo é
evidente, salta à tela.
Após essa introdução, a cena muda e mostra Vieira nos braços do povo, se colocando
como seu legítimo representante. Em toda a sequência temos como trilha sonora os tambores
afro-brasileiros, e a ovação das massas; mais uma vez o povo acredita nas mudanças que ele
propõe. Após cerca de um minuto, vemos uma grande festa em torno do candidato e emerge
outro personagem, alguém que representa a burguesia supostamente progressista, um senhor
bem vestido e articulado, que diz:
Burguês: Recebe o meu apoio Vieira. O nosso presidente quer ser Napoleãoe Diaz o novo Cesar, mas só você pode ser o novo Lincoln.
Depois do breve monólogo, a ovação e a música voltam a ser protagonistas da cena,
e esse senhor se põe a dançar junto com o povo, ao som dos tambores, pandeiro e cuícas. É,
definitivamente, uma festa e não um comício político. Sara e Paulo estão no meio disso tudo.
No entanto, Sara acha que é uma grande desordem e que aquilo não é a luta de classes; Paulo
debocha e, mais uma vez, mostra seu descrédito em relação ao ajuntamento das massas, e crê
que o povo não sabe fazer política e precisa de alguém que os guie. O diálogo dos dois
demonstra isso:
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Sara: Por que Paulo? Por que você mergulha nessa desordem?
Paulo: Que desordem?
Sara: Veja, Vieira não pode falar.
Paulo: E por mais de um século ninguém conseguira.
Sara: Você jogou Vieira num abismo.
Paulo: Eu? O abismo está ai aberto, todos nos marchamos para ele.
Sara: Mas a culpa não é do povo... A culpa não é do povo!
Paulo: Mas saem correndo atrás do primeiro que lhe acena com a espada ouuma cruz.
Sara: O povo é Jerônimo, fala Jerônimo!
Nesse momento entra em cena um outro personagem: o sindicalista. A música cessa, o
senhor que representa a burguesia supostamente progressiva encoraja Jerônimo a falar.
Burguês: Fale meu filho! Não tenha medo! Fale, você é povo!
Há um silencio ensurdecedor durante alguns instantes, onde o homem acuado, demora
a começar o seu discurso, como se fosse a primeira vez em que lhe dão voz, verdadeiramente.
Por fim, ele começa a discursar:
Jerônimo: Eu sou um homem pobre, um operário, sou presidente do meusindicato, estou na luta das classes, acho que tá tudo errado, e eu não seimesmo o que fazer. O país está numa grande crise e o melhor é aguardar aordem do Presidente.
Paulo chega e cala Jerônimo com colocando as mãos em sua boca, de modo violento, e
começa a discursar em seu lugar.
Paulo: Estão vendo o que é o povo? Um imbecil. Um analfabeto, umdespolitizado. Já pensaram Jerônimo no poder?
Mais uma vez, a música enche o ambiente por alguns momentos. Porém, do meio da
multidão sai outro indivíduo, pertencente à camada povo, que tem o desejo de falar.
Diferentemente de Jerônimo, ele não é convidado, mas sim impõe sua fala de certo modo:
Individuo: Eu vou falar agora! Eu vou falar. Com a licença dos doutores, seuJerônimo faz a política da gente, mas seu Jerônimo não é o povo, o povo sôeu que tenho sete filhos e não tenho onde morar!
Esse “real” representante do povo, é calado na mesma hora, vários outros partem para
cima dele, chamando-o de extremista. Esse confronto acaba com a morte desse cidadão que,
assim como Felício, pagou com a vida ao tentar se expressar.
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Percebe-se, em todas as sequências onde Glauber apresentou essa sociedade, que a
massa está em completo transe. Como o próprio Paulo diz, corre ao primeiro que lhe acena, e
os únicos indivíduos que não aceitam, e resistem, pagam com a própria vida. É de se entender
porque a esquerda se sentiu traída por Glauber. Na realidade, não foi pelo fato do cineasta
retratar um povo politicamente burro e servil, mas sim porque mesmo dentro de um movimento
que se intitula do povo e para o povo vemos que há demagogia e repressão. Obviamente que se
tenta cuidar da população, mas não lhe dá voz, não lhe dá o protagonismo. Este vai para as
mãos dos intelectuais e dos burgueses progressistas.
Portanto, Glauber apresenta sim uma sociedade pobre intelectualmente, materialmente,
politicamente, e que se cala perante o opressor, pertencendo ele à direita ou à esquerda. Robert
Stam chama a atenção para esse ponto na análise que faz do filme. Na sequência em que Felício
morre, a voz off de Sergio Ricardo canta “A praça é do povo como céu é do condor”. No entanto,
alguém pertencente ao povo morreu por ir a praça. Segundo Stam, isso sugere “que é somente
no mundo da poesia que a praça é do povo; no mundo real a praça é dos opressores” (1976,
p.173).
Apresentadas as representações da sociedade elaboradas por Glauber, agora é preciso
verificar em que medida a sociedade do período pode se identificar ou não com ela. Como jáfalado, a crítica era que o brasileiro foi retratado de maneira grotesca, e sub intelectual. O
objetivo final da pesquisa é estabelecer essa relação. É preciso também falar sobre essa não
identificação de grande parte da esquerda com o filme, se era mesmo pela retratação do
brasileiro ou se era por querer negar a demagogia, a fraqueza e a opressão que existe dentro
dela.
6.2 Realidade Social a Esquerda e a Direita
Herbert Klein e Francisco Vidal, em História do Brasil Nação – Modernização,
Ditadura e Democracia, apontam alguns aspectos da sociedade do período. Eles argumentam
que, em 1960, apesar de já existirem uns poucos centros urbanos, a grande população vivia em
zonas rurais “em moradias precárias, sem agua potável nem saneamento básico, A maioria dos
brasileiros não tinha acesso a instalações médicas modernas” (2014, p.31). Entre a população
jovem, a taxa de analfabetismo era altíssima, quase a metade.
Os autores destacam também que “o Brasil era um país dividido não apenas entre umaminoria urbana moderna e uma maioria rural tradicional, mas também apresentava diferenças
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profundas, por região, classe social e raça” (2014, p. 31). Eles chamam a atenção também para
a profunda desigualdade socioeconômica que estava estabelecida, pois uma parcela muito
pequena detinha as riquezas no país, o que fez o Brasil alcançar altas posições no ranking de
países mais desiguais do mundo. Acrescentam, ainda, que “em termos gerais a população
branca era mais bem sucedida economicamente que a mulata e esta, por sua vez tinha padrão
superior as das populações negras e indígenas” (2014, p. 32).
Vemos aqui, então, que a representação que Glauber faz não é diferente disso. No filme
há uma enorme massa pobre, em sua maioria negra, mulata e rural. Ele escolheu reproduzir em
seu filme as camadas baixas da sociedade, enquanto que as classes ascendentes e elitizadas são
representadas por personagens específicos. Mesmo que o filme tenha sido produzido na
segunda metade da década de 1960, Klein e Vidal, falam que, mesmo após 1965, com o
aumento da população urbana e a modernização gradual, a população rural era de quase 50%
do total, assim como a desigualdade social se mantinha. Tendo como parâmetro a não
alfabetização, e estilo de vida precário, dificilmente as camadas baixas tinham discernimento
político aflorado, mas como qualquer outro cidadão, queriam melhorias para o seu cotidiano.
Em contrapartida, dentro desse período, temos uma classe média urbana ascendente, pequenos
proprietários, profissionais liberais, que temiam perder sua pequena ascensão social e
privilégios, caso o poder e riquezas do país fossem distribuídos de forma mais justa, temos
assim dois lados, um que necessitava das reformas de base para uma melhoria na vida
econômica, e um outro lado no qual esse tipo de reforma afetaria negativamente sua ascensão.
Daniel Aarão comenta essa divisão sociopolítica, que ficou evidente durante o período pré-
golpe e até depois. Em Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade, o autor diz:
A sociedade dividira-se.
De um lado, amplos contingentes de trabalhadores, urbanos e rurais, setoresestudantis de algumas grandes universidades públicas, além de muitosgraduados das forças armadas. O movimento pelas reformas lhes conferira,uma importância política considerável, e percebiam, com razão, que aconcretização delas haveria de consolidar uma repartição de poder e deriqueza que certamente lhe traria benefícios, materiais e simbólicos. Por issomesmo, acionavam mecanismos do pacto nacional estatista, tensionado- os aomáximo, exigindo reformas. Contudo, na medida em que essas não seconcretizavam, desiludiam-se com a lei[...]
De outro lado, um processo de condensação de várias correntes