susana bleil de souza o pincel e a pena na construção da nação

21
1 O pincel e a pena na construção da nação: pintando e narrando um mito político fundacional. Susana BLEIL de SOUZA Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil) Em 1893, em sua obra Grito de Glória, Eduardo Acevedo Díaz descrevia assim a cena imortalizada pela pintura de Juan Manuel de Blanes: "Eran treinta y tres hombres de jefe a soldado. Lavalleja recorrió la fila con el sable en la diestra, y en la izquierda desplegada una bandera que tenía en su centro una inscripción de grandes caracteres[...] En la bandera de tres fajas, blanca, azul y roja, emblema esta última de la sangre vertida, la inscripción consagraba el mote o leyenda del escudo: era la suprema aspiración de Artigas, allí estampada con signos perdurables[...] En aquella bandera desplegada por Lavalleja estaba el símbolo de ese esfuerzo; y a su vista los brazos se levantaron y todos los instintos rugieron. Lavalleja sacudió el paño con firme mano, y señalándolo con la punta de su acero resumió una corta arenga en este grito de pujante brío: -¡Libertad o muerte! Treinta y dos voces lo repitieron, tendidos los sables, deshecha la fila por una conmoción profunda, puesta por algunos en tierra la rodilla,[...] y por un momento el eco formidable al devolver ufano el juramento pareció ruido de cadenas que se trozaban con estrépito" 1 . Esta descrição, com características românticas, está impregnada da pintura de Blanes em seu quadro, "El Juramento de los Treinta y Tres", emblema político de um momento fundacional, 1 ACEVEDO DÍAZ, Eduardo. Grito de Gloria. Biblioteca Artigas, col. Clásicos Uruguayos, vol.54. Montevideo: 1964. p.42 a 44.

Upload: rodrigolezmez

Post on 13-Sep-2015

218 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Susana Bleil de Souza o Pincel e a Pena Na Construção Da Nação

TRANSCRIPT

  • 1

    O pincel e a pena na construo da nao: pintando e narrando um mito poltico fundacional.

    Susana BLEIL de SOUZA Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

    Em 1893, em sua obra Grito de Glria, Eduardo Acevedo Daz descrevia assim a cena imortalizada pela pintura de Juan Manuel de Blanes:

    "Eran treinta y tres hombres de jefe a soldado. Lavalleja recorri la fila con el sable en la diestra, y en la izquierda desplegada una bandera que tena en su centro una inscripcin de grandes caracteres[...] En la bandera de tres fajas, blanca, azul y roja, emblema esta ltima de la sangre vertida, la inscripcin consagraba el mote o leyenda del escudo: era la suprema aspiracin de Artigas, all estampada con signos perdurables[...] En aquella bandera desplegada por Lavalleja estaba el smbolo de ese esfuerzo; y a su vista los brazos se levantaron y todos los instintos rugieron. Lavalleja sacudi el pao con firme mano, y sealndolo con la punta de su acero resumi una corta arenga en este grito de pujante bro: -Libertad o muerte! Treinta y dos voces lo repitieron, tendidos los sables, deshecha la fila por una conmocin profunda, puesta por algunos en tierra la rodilla,[...] y por un momento el eco formidable al devolver ufano el juramento pareci ruido de cadenas que se trozaban con estrpito"1.

    Esta descrio, com caractersticas romnticas, est impregnada da pintura de Blanes em seu quadro, "El Juramento de los Treinta y Tres", emblema poltico de um momento fundacional,

    1ACEVEDO DAZ, Eduardo. Grito de Gloria. Biblioteca Artigas, col. Clsicos Uruguayos, vol.54. Montevideo: 1964. p.42 a 44.

  • 2

    liberao da provncia platina do Imprio do Brasil. Resgatando o papel do artiguismo como fazendo parte do processo independentista, Eduardo Acevedo Daz dava a conhecer um passado que, apropriado coletivamente atravs da romance histrico, seria mais um cone para a formao da orientalidade que se fixava entre duas fronteiras.

    No final do sc. XIX, em uma larga faixa onde a fronteira confundia-se com a campanha, o Estado-nao uruguaio procurava delimitar suas fronteiras geopolticas, e empenhava-se em demarcar suas fronteiras culturais face ao Brasil. Este artigo pretende examinar como parte das elites intelectuais e polticas uruguaias preocupava-se com a orientalizao desse espao e encarregava-se de consolidar a conscincia nacional mediante trabalhos intelectuais e artsticos.

    Embora cada arte tenha a sua prpria linguagem, Juan Manuel Blanes e Eduardo Acevedo Daz, atravs da pintura e da literatura respectivamente, expressaram as inquietudes de seu tempo: pintar e narrar uma nao em construo. Blanes criou smbolos pictricos da nacionalidade e dotou a elite uruguaia de uma iconografia que legitimava o seu passado histrico nacional. Pintou um mundo de heris e contribuiu, juntamente com a Histria e a Literatura, para a criao de uma memria coletiva, de uma identidade oriental. A criao de uma mitologia, a descrio de uma paisagem aquela do ambiente rural e de sua peonagem as narraes histricas que buscavam uma justificativa para a nacionalidade vacilante, fizeram de Eduardo Acevedo Daz o fundador do romance histrico uruguaio. Ambos buscaram a gnese do nacionalismo uruguaio nas lutas de independncia contra o Brasil e construram o arcabouo de um imaginrio nacional, o subsdio simblico para a idia de nao que a elite pensante se dedicava a construir. o momento histrico em que ambos os artistas se projetaram no cenrio nacional, criando as figuras mticas dos heris que vo ocupar o espao simblico do imaginrio nacional que se constri no decorrer da segunda metade do sculo XIX.

    ***

    Nas trs ltimas dcadas do sculo XIX, perodo de consolidao dos Estados nacionais latino-americanos, os centros de poder poltico, atravs de suas elites governantes justificavam os seus papis e ordenavam as suas aes atravs de rituais, smbolos e cerimnias que procuravam construir as identidades sociais por eles representadas. Espaos como o teatro, a cerimnia oficial e a festa pblica eram alguns dos grandes campos de produo e vivencia das identidades coletivas. Uma nao, como lembra Stuart Hall, no apenas uma entidade poltica, tambm

  • 3

    um sistema de representao cultural, um conjunto de significados com os quais as pessoas se identificam. Uma cultura nacional "um modo de construir sentidos que influencia e organiza nossas aes e as concepes que temos de ns mesmos". Esses sentidos esto contidos nas narrativas histricas sobre a nao, "memrias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela so construdas". (Hall, 2000: 49-51). As identidades se conformam em torno a formas especficas de relao com um determinado estado, portanto, as identidades so construdas no contexto dinmico do processo histrico. (Devoto, 1992: 18-19)

    Visto que o Uruguai conquistara a sua independncia em relao ao Brasil atravs de sucessivas guerras, a elite uruguaia via-se diante da necessidade de reinventar um pas independente livre das ameaas do Brasil Imperial. No final do sc. XIX, em uma larga faixa onde a fronteira confundia-se com a campanha, o Estado-nao uruguaio procurava delimitar suas fronteiras geopolticas e empenhava-se em demarcar suas fronteiras culturais utilizando-se de vrios recursos: ferrovias, escolas, ensino da lngua, reaquisio de terras, fundao de cidades, rediviso departamental. A definio das fronteiras territoriais era um ponto fundamental para a construo de uma nao. Uma comunidade identitria deveria saber onde comeava e onde acabava o seu territrio, quem estava dentro e quem estava fora da ptria. Sem limites precisos, no havia como historicizar o territrio do grupo, no se podia construir um passado ptrio, no existiam os limites de definio da ao do Estado, nem limites com relao aos estados e territrios vizinhos (Souza e Prado, 2002: 177).

    Quando a gerao nacionalista comeou a refletir sobre os destinos do pas e os meios de afianar a sua vida independente, um dos primeiros problemas que considerou foi o dos campos fronteirios em mos de proprietrios brasileiros, com pees da mesma nacionalidade, cujos hbitos, os costumes e at o idioma eram portugueses, pois o espanhol havia desaparecido.A ganadera criolla, que abastecia os saladeros alm fronteira, e cerca de 50% das estncias dos departamentos do Norte estarem nas mos de brasileiros eram fatores que desnacionalizavam a fronteira. Setores das elites intelectuais e polticas uruguaias preocupavam-se com a orientalizao desse espao e temiam, inclusive, a perda de parte de seu territrio (Nahum y Barrn, 1971: 328 e seg.).

    A nao precisava construir-se como homognea e consensual, uma comunidade de sentido com um projeto coletivo que, baseando-se em um passado de bravura, a projetasse em direo a um futuro grandioso ao qual ela estaria predestinada desde o seu princpio. A identificao coletiva

  • 4

    se dava atravs da idia de pertencimento a uma comunidade imaginria, soberana e autnoma que se organizava em torno a um Estado-nao que se modernizava no ltimo quarto do sculo XIX. Uma elite intelectual e poltica, desde uma perspectiva nacionalista, consolidava um imaginrio social que poderia criar com segurana uma identidade coletiva, dentro de um contexto que inseria o Uruguai em um mercado internacional de impulso modernizante e capitalista.

    Este perodo, considerado de modernizao e de nacionalizao do Uruguai , segundo Abril Trigo (2000:147-8), o perodo em que se realiza a gestao de um imaginrio nacional calcado sobre a organizao e a consolidao de um Estado moderno imposto por uma ditadura, apoiada pelo exrcito e pelos estancieiros. Esta simultnea tarefa de modernizao e nacionalizao, que inclui a centralizao administrativa e policial, a fixao da propriedade e da racionalizao capitalista da explorao agropecuria, est a disposio, segundo o mesmo autor, dos aparelhos de reproduo ideolgica do Estado e da promoo dos smbolos e dos rituais necessrio para plasmar, de maneira bem sucedida, a criao de um imaginrio nacional.

    Entre 1875 e 1910, o Uruguai se incorporou economia de mercado internacional, ento dominada pelas importaes do imprio britnico, e comeou um processo de transformao econmica e social que definiria o perfil nacional moderno do pas. O capital estrangeiro que promovia a modernizao econmica do pas dependia da produo pecuria, o objeto essencial de interesse do mercado mundial. Para que essa produo alcanasse sua maior efetividade, o campo, a estncia cimarrona, a pecuria do tipo pastoril e o gaucho tinham de se transformar. Essa transformao concretizava-se com o alambramiento dos campos, a proteo da propriedade privada, a criao, em 1871, da Associao Rural e a institucionalizao, em 1879, do Cdigo Rural redigido pelos mesmos membros daquela associao. A estncia se convertia, aos poucos, em uma empresa capitalista cujo interesse era produzir gado de boa qualidade por meio da mestiagem. O campo se delineava e se reconstrua por meio do cercamento das terras, que assimilava as grandes extenses das estncias por meio dos fios do telgrafo, do telefone e das ferrovias que iam impondo padres de urbanizao na campanha. Essas imagens da modernizao atingiram o seu pice, em 1909, com a construo do porto de Montevidu. (Torres, 2000) justamente esta fase de modernizao capitalista que permite "saldar as disputas poltico-partidrias" e convocar os setores dominantes em torno a um projeto comum. Esta uma tarefa que compete ser realizada por uma gerao a qual Arturo Ardao, pensador uruguaio, chamou de gerao fundacional, pois, segundo ele, as geraes anteriores haviam sido geraes

  • 5

    de esprito platino enquanto esta, era acima de tudo, uruguaia. A ela correspondeu a misso de forjar intelectualmente a conscincia da nacionalidade, e sua tarefa, realizada a partir dos anos 70, no consistiu somente na montagem dos imaginrios fundacionais, como a figura de Artigas ou a saga dos 33 Orientales, mas tambm num trabalho mais difcil: plasmar um discurso capaz de articular estes imaginrios nacionais (Trigo, 2000: 148-149).

    A especificidade histrica do Uruguai fazia com que ele apresentasse dois momentos fundadores: o primeiro seria o perodo artiguista e o segundo, aquele desencadeado pela cruzada dos Trinta e Trs Orientais contra a dominao imperial brasileira. A segunda fase das lutas independentistas se iniciou em abril de 1825, quando Juan Antonio Lavalleja (um antigo lugar tenente de Artigas) desembarcou clandestinamente nas costas do Rio Uruguai, frente a um punhado de homens que constituiriam o Estado-Maior do novo exrcito revolucionrio. O propsito da logo chamada cruzada libertadora era explcito e claro: independncia do Brasil e reintegrao s Provncias Unidas do Rio da Prata (Silveira, 2005: 917).

    Tanto a figura de Lavalleja como a representao dos 33 Orientais assumiu grande relevncia, especialmente por tornar-se objeto de debate especfico entre os intelectuais defensores do projeto poltico de um Uruguai independente e os que defendiam um projeto unionista. A questo tornava-se mais polmica pelo fato de que ambas as propostas de representao histrica, Lavalleja e os Treinta y Tres, os retratavam enquanto heris nacionais; entretanto, na interpretao do sentido dos atos dos protagonistas histricos que surgiram srias divergncias. Tais questes provinham da necessidade da busca ou construo de um passado, de uma tradio, visando a legitimao de um projeto poltico para o futuro. importante enfatizar que essa mesma discusso contribuiu para a consolidao de uma imagem do Brasil e dos brasileiros como a ameaa externa em potencial (Souza e Prado, 2002: 194-5).

    somente durante a ditadura de Lorenzo Latorre (1876-1886) que se organiza um locus no qual a comunidade podia ser imaginada, se partirmos da idia de Benedict Anderson (1997). Em um continente onde o passado matria plstica do presente, a histria tornava-se um discurso hegemnico que perpassava o jornalismo, a poesia, a narrativa, a pintura, o teatro e a msica. Se a temtica histrica predominava na literatura e na arte da poca, o discurso histrico, por sua vez, se modelava de acordo com frmulas retricas e padres literrios. Assim modelaram-se, nas ltimas dcadas do sculo, de forma paralela uma histria, uma arte pictrica e uma literatura nacionais, sistematizadas em obras monumentais tais como as do historiador Francisco Bauz,

  • 6

    do pintor Juan Manuel de Blanes, do escritor Eduardo Acevedo Daz ou do poeta Juan Zorrilla de San Martn. Para essa gerao ps 1835, era necessrio construir uma genealogia, isto , tornar inteligvel um passado que, por sua vez, oferecesse uma resposta vlida para sair do estancamento do presente. O melhor fato possvel era o pico acontecimento traduzido na chamada "Cruzada Libertadora dos 33 Orientais" de 1825 e nas vitoriosas batalhas de Rincn, Sarand e Ituzaing, todas contra o Brasil.

    As primeiras obras que trouxeram o passado nacional de uma forma elaborada, buscando ressaltar as caractersticas de uma orientalidade, e legitimadora surgiram ao redor de 1880. A historiografia uruguaia considera Francisco Bauz, pelo seu manejo de fontes, trabalho de pesquisa e metodologia, o primeiro historiador uruguaio, iniciador de uma tradio historiogrfica definida por Real de Aza como tese independentista clssica (Real de Aza, 1991). Outros nomes se incorporaram a esta corrente e apresentando uma histria onde a nao e a orientalidade preexistiam ao Estado e legitimando o projeto poltico no qual a independncia poltica absoluta era ponto chave. Em suas obras, a viso predominante permanecia anti-lusitana e anti-brasileira (mantendo as representaes construdas nas dcadas anteriores).

    A partir da segunda metade da dcada de 70, para a elite dirigente, civil ou militar era importante construir-se uma nao diferente da construda pelos argentinos, buscando atravs de uma gesta herica libertadora que passava a inaugurar a galeria de smbolos nacionais, diferenciar-se dos seus vizinhos de fronteira. Neste contexto do processo de criao coletiva da identidade, desvelamos como a pintura e a literatura contriburam a inveno de uma orientalidade elaborada no imaginrio poltico do final do sculo XIX. Para podermos examinar, ainda que muito brevemente, os sentimentos e as sensibilidades de uma outra poca, a fim de construir um conhecimento sobre o Uruguai daquele final de sculo, recorremos pintura de Juan Manuel Blanes e ao romance histrico de Eduardo Acevedo Daz, sem esquecermos que o nosso olhar brasileiro, locus da alteridade de ser oriental.

    ***

    Salienta Rojas Mix (2006: 18) que a maior parte dos hbitos visuais de uma sociedade no esto registrados em um documento escrito. A maneira de ver prpria ao pblico de uma poca se constri nos grupos sociais e reflete seus hbitos, seus interesses e seus valores. A imagem

  • 7

    condensa realidades sociais, mentalidades, ideologias, tornando-se assim um documento precioso para a compreenso de como uma poca v a si mesma e a seu passado. Ela tambm capaz de captar aspectos de um fato histrico que um documento escrito no revela, bem como de que forma o fato apreciado pela opinio pblica. A importncia do imaginrio para o historiador advm da possibilidade de examinar em particular aspectos relacionados com a sensibilidade popular ou a manipulao de massas. Rojas Mix destaca ainda o quo importante o imaginrio na formao de opinio e de crenas, na construo dos grandes mitos sociais, do sentimento nacional, na evoluo do gosto e outros aspectos bsicos da histria cultural.

    Juan Manuel Blanes, o primeiro nome da pintura uruguaia, o pintor de la patria, ocupou um lugar privilegiado na representao iconogrfica da gesta nacional libertadora. Blanes nasceu em 1830, em Montevidu e iniciou os seus estudos de pintura na Europa, na Academia de Florena, em 1861. Em 1864, regressando Amrica, instalou-se em Buenos Aires, onde entrou em contato com Andrs Lamas, influente homem de letras uruguaio ligado poltica e que se converteu em um dos seus maiores colaboradores em busca de informaes para a realizao de suas composies de temas histricos. Em 1865, retornou a Montevidu e fez um primeiro esboo do quadro "El Juramento de los Treinta y Tres". Em dezembro de 1877, terminou o seu quadro monumental e, em janeiro do ano seguinte, o pintor doou o quadro ao governo. O xito e a comoo pblica ecoaram at Buenos Aires, onde o quadro acabou tambm sendo exposto. Entre novas idas Europa e tragdias familiares, Blanes morreu em abril de 1901, em Pisa, na Itlia, e neste mesmo ano seus restos mortais foram repatriados e sepultados em Montevidu2.

    Juan Manuel Blanes tornou-se o primeiro nome da pintura uruguaia, o pintor de la patria, com tal obra, ocupando um lugar privilegiado na representao iconogrfica da gesta nacional libertadora. Ele pinta com a inteno de cumprir uma misso cvica: ps o pincel a servio da afirmao da identidade nacional uruguaia, ou oriental, na linguagem do sculo XIX. Blanes criou smbolos pictricos da nacionalidade, inventou um passado iconogrfico e, a partir dele, uma imagem amplamente aceita de Artigas, dos 33 Orientales e do gacho. Blanes introduziu mitos visuais nacionais pintando a paisagem e a sua gente para fundar uma identidade nacional. O espao pintado por Blanes , sem nenhuma dvida, uruguaio: "Os cus nacarados e os entardeceres crepusculares so uma conseqncia do seu propsito de traduzir a forte luz americana".

    2Para a Cronologia Biogrfica, ver: ADINOLFI, Laura e SIERRA, Claudia de la. Catlogo Juan Manuel Blanes. La nacin naciente1830-1901. Montevideo: Museo Municipal de Bellas Artes Juan Manuel Blanes, 2001. p.20-30.

  • 8

    preciso ressaltar que nos momentos de crise que a questo da identidade nacional volta a ser discutida, como afirma Gabriel Pellufo (2001). No decorrer do sculo XX, esse artista foi pontualmente invocado como construtor das imagens fundacionais uruguaias, principalmente quando esta vocao realizava um servio poltico e cultural em relao crise do imaginrio democrtico e nacionalista do Estado.

    Blanes comeou pintando pequenas aquarelas sobre papel durante a Guerra Grande (1843-1851), basicamente imagens testemunhais. Foi o incio da definio de um imaginrio poltico-cultural de perfil nacionalista. O nacionalismo relativamente fcil de ser expresso em imagens: celebrando os maiores eventos histricos de uma nao ou retratando a paisagem caracterstica da regio (Burke, 1998:80). Imagens deste tipo eram de uma certa forma, agentes histricos, uma vez que no apenas registravam acontecimentos mas tambm influenciavam a maneira como eles eram vistos na poca (Burke, 1998: 82). Durante o sculo XIX, o mito da nao e do Estado-nao apoderou-se do imaginrio histrico e poltico. Esta nova maneira de dividir o mundo tornou-se a expresso privilegiada da unidade: unidade nacional confrontando-se, evidentemente, com outras unidades nacionais. O nacionalismo deveria marcar forte e duravelmente a historiografia e a conscincia histrica em geral (Boia,1998:166).

    Pintar, para Blanes, era antes de tudo "narrar", "fazer constar" certos fatos, inclusive acompanhados de explicaes escritas. Para Peter Burke, as pinturas no so feitas somente para serem observadas, mas tambm para serem lidas, na medida em que as imagens so feitas para comunicar, para nos contar alguma coisa. Blanes passou um tempo como pintor de histria no palcio de Urquiza (1856), em Entre Ros. A sua pintura no apenas narrava para conhecer, ela narrava para convencer marcando o deslocamento para outro tipo de espao simblico: o espao poltico-cultural "aceleradamente ideologizado". De 1856 em diante, assistimos emergncia de um Blanes que busca cada vez mais, explicitamente, pr-se a servio das idias construtivas do Estado nao, que "busca cada vez mais uma produo iconogrfica a servio da histria narrada desde o observatrio poltico do poder" (Peluffo Linari, 2001: 37).

    Lucian Boia concebe o mito como uma construo imaginria: narrativa, representao ou idia, que visa abarcar a essncia dos fenmenos sociais em funo dos valores intrnsecos de uma comunidade e com o objetivo de assegurar-lhe a coeso social. Os mitos modernos se apresentam freqentemente sob a forma abstrata de idias e de smbolos. A nao incontestavelmente um mito na medida em que ela prope um esquema explicativo da histria

  • 9

    colocando em relevo valores fortemente partilhados. O mito estrutura; ele pode utilizar materiais verdadeiros ou fictcios, ou verdadeiros e fictcios ao mesmo tempo; o importante que ele os disponha segundo as regras do imaginrio. Uma fronteira incerta e permevel o separa da histria; ele procede por seleo e transfigurao, ou seja, por um trabalho de memria e esquecimento (Boia, 1998: 40-1). A funo do mito seria contar a histria de uma fundao, explicando e justificando a existncia das naes e dos Estados. (Boia, 1998: 168-9) Blanes vai pintar os feitos militares considerados fundacionais do processo independentista. Assim, os mitos de fundao so histricos e giram em torno da criao de personagens hericos, excepcionais. Tal como nos mitos fundacionais europeus do sculo XIX que se espalharam para o mundo inteiro era necessrio que se criasse um heri onipresente, tanto na poltica quanto na histria.

    Era preciso que se estabelecesse um panteo de heris que tornassem possvel a existncia de uma nao. Quem melhor do que Lavalleja e os protagonistas da cruzada libertadora para cumprir tal papel?

    O mito do Estado-nao eclipsou todos os outros e o recorte ideal do mundo tomou os contornos de uma constelao de Estados-naes. (Boia, 1998: 195) Blanes vai construir sua mitologia do processo republicano apoiado em obras literrias da poca, em narraes orais de protagonistas ou na interpretao histrica escrita e verbalizada por figuras como, por exemplo, a do uruguaio Andrs Lamas, diplomata em Buenos Aires, que reunia documentao e escrevia sobre o passado uruguaio bem como sobre a situao poltica presente. Por influncia e amizade com Andrs Lamas, catlico e liberal, Blanes tinha a inteno de se tornar um pintor americano. Ele pensava que, atravs de sua arte, era possvel resgatar traos humanos universais nos nacionalismos ou regionalismos culturais que ele pintava. Quando explica publicamente os argumentos do seu quadro "El juramento de los 33 Orientales", diz precisamente: "esforcei-me para alcanar os caracteres gerais da humanidade, para l-los atravs de um grupo de patriotas uruguaios"(Peluffo Linari, 2001: 38). Blanes parece aderir a uma idia de nao que deve ser construda no imaginrio coletivo a partir da credibilidade de um passado fundacional, confiando no futuro de um processo civilizatrio na regio (Peluffo Linari, 2001: 39).

    Para Lucian Bia, a nao, nova forma de recortar o mundo, encarna menos uma realidade histrica objetiva do que um projeto ideal. Ela existe nas conscincias. Ela pertence ao imaginrio. Ela um dos grandes mitos dos tempos modernos. E como toda a estrutura do imaginrio, ela rene solidariedades arquetpicas como antigos laos de sangue, lngua comum

  • 10

    aos valores novos forjados por uma histria recente, como soberania popular e sistema poltico representativo, por exemplo (Boia, 1998: 167).

    Parece que Blanes sofreu influncias do pintor francs Jacques-Louis David, considerado o principal artista da Revoluo francesa, cujo material iconogrfico deve ter sido examinado pelo pintor uruguaio no museu do Louvre, em Paris. Ao voltar de uma viagem Itlia, em 1784, David apresentou o Juramento dos Horcios, de estilo rgido e marcial. Ele e a escola desenvolvida a partir de 1789 imprimiram s suas telas um sentido fortemente narrativo, onde a ao representada podia transmitir com toda a claridade e sem adornos, uma mensagem cvica e moral. Amor liberdade e ptria, herosmo e esprito de sacrifcio, rigor espartano e autodomnio estico, so qualidades que iriam tornar o Estado um cliente natural de tal estilo. (Irigoyen, 2000: 44-5) No devemos esquecer que no sculo XIX, alguns dos grandes campos de produo e vivencia das identidades coletivas, no somente na Europa, mas tambm na Amrica, eram espaos como o teatro, a cerimnia oficial e a festa pblica (Irigoyen, 2000: 18).

    Em 1866, Blanes props Comisso Econmica Administrativa a realizao de um quadro em torno do desembarque dos 33 Orientais para expor no Museu Nacional, pois, segundo ele afirmava: "os povos mais cultos sentiram a necessidade de alimentar suas recordaes histricas por meio da arte monumental(...) que d sustento ao orgulho nacional". Ele assumiu assim, o carter de um pintor de temas histricos em um momento em que a histria no era ainda vista como uma narrativa socialmente aceita (Peluffo Linari, 2001:40).

    A pintura patritica de Blanes atravs de seu quadro El Juramento de los Treinta y Tres Orientales, por ser a obra que est diretamente relacionada com a liberao uruguaia do Imprio brasileiro, tornou-o um dos "elaboradores" da idia de nao oriental. Ele havia compreendido que a pintura era a arma apropriada para estimular o pertencimento coletivo. No surpreende, portanto, que o que passou a ser discutido, a partir de meados da dcada de 1870, foi a veracidade do passado e, tanto para independentistas quanto para unionistas, a alteridade intrnseca ao reconhecimento identitrio uruguaio foi, fundamentalmente, o Brasil e os brasileiros.3 Nesse momento, a tese independentista clssica tornou-se uma espcie de histria oficial uruguaia.

    3Estamos no referindo especialmente aos autores considerados iniciadores dessas tradies historigrfica, no generalizamos tal assertiva para os autores do sculo XX tributrios de ambas correntes.

  • 11

    O seu quadro sobre o Juramento dos Trinta e Trs Orientais (1875 - 77), um leo sobre tela com grandes propores trs metros e onze de altura e cinco metros e sessenta e quatro de largura apresenta as figuras em tamanho natural e se encontra atualmente no Museu Nacional de Artes Visuais. Em 1825, quando teve lugar a "Cruzada Libertadora", Lavalleja e seus companheiros chegaram praia de La Agraciada no territrio da provncia oriental. Para a realizao do quadro, Blanes viajou estncia Casa Blanca, de D. Ordoana, no departamento de Soriano, para tomar notas das cenas naturais. O af documental em sua mxima expresso o levou a visitar o lugar do desembarque no mesmo dia e hora aproximada em que ela se efetuou, para obter os estudos de luz e colorao (Adinolfi y de la Sierra, 2000).

    Quando Blanes iniciou a sua pintura de temas histricos, uma vez que a Histria ainda no se consolidara como disciplina, o uso de narrativas visuais como evidncia histrica, eram como uma fonte ou um recurso para os historiadores. Certas narrativas visuais poderiam ser consideradas como a prpria histria, recriando o passado por meio de imagens e interpretando-o de diferentes maneiras. (Burke, 2004:197) Blanes plasmou iconograficamente determinados fatos e personagens passados e, como as pinturas histricas do sculo XIX, colocou o espectador na posio de testemunha ocular dos acontecimentos representados. "Los Treinta y Tres foram o principal cone das lutas independentistas antes da revalorizao de Artigas" como o primeiro dos heris orientais e at "princpios do sculo XX, talvez tenham sido o principal motivo patritico capaz de produzir certo impacto no imaginrio", o que lhe valeu o ttulo de pintor da Ptria (Irigoyen, 2000: 126).

    No final da dcada de 1870, quando se inicia o processo de escolarizao no Uruguai, a historiografia legitimar muitos de seus relatos atravs de uma leitura no problematizada de representaes pictricas anteriores, entre as quais se encontravam as de Blanes (Broquetas y Cuadro, 2000). preciso no esquecer que a primeira viso orgnica do passado uruguaio fornecida por Francisco Bauz, com uma histria na qual o tema predominante a nacionalidade, tema este sustentado com grande valor metodolgico, existindo em sua obra pesquisa, mtodo e interpretao. Em sua Histria de la Dominacin Espaola en el Uruguay (1880), buscou as origens dessa nacionalidade em todos os elementos, desde os geogrficos at os polticos. Na falta dessa histria, as pinturas a leo de Blanes possuam uma inegvel importncia iconogrfica e simblica. O artista cumpriu assim seu ambicioso plano criando as primeiras imagens da histria nacional e o ciclo mais completo da iconografia rioplatense. Descartou a antiguidade herica e os mitos greco-latinos, to comuns nas representaes

  • 12

    artsticas do perodo como a loba romana associada ao conceito fundacional e captou a histria contempornea de seu pas e a dos seus vizinhos.

    Para esboar o seu desembarque, visitou a propriedade do estancieiro, Don Domingo Ordoana, fundador da Associao Rural, foi praia de Agraciada, sobre o rio Uruguai, estudar o lugar e captar a luz e inclusive, segundo contado, teria levado areia para o seu ateli, para que os modelos posassem. Utilizou os dados relatados por Ordoana e, para poder vestir corretamente as suas figuras, consultou os colecionadores de uniformes histricos. Esta espcie de pintura histrica exigia uma pesquisa considervel. Peter Burke confirma que os assuntos militares, muito populares no sculo XIX, desenvolveram pesquisas cuidadosas sobre os uniformes e equipamentos dos soldados que eram pintados.

    A partir da documentao, Blanes conseguiu uma cena verossmil na qual retratou os participantes, principalmente os lderes Juan Antonio Lavalleja e Manuel Oribe, colocando-os na galeria dos heris nacionais fundadores. Ambos aparecem na zona mais iluminada da tela, local onde Lavalleja sustenta a bandeira com as cores branco, azul e vermelho, uma bandeira de tradio artiguista, e que vai dar sentido ao quadro. Magdalena Broquetas e Ins Quadro, em seu estudo sobre Blanes, afirmam que uma bandeira tricolor teria acompanhado a viagem at o territrio da Provncia oriental e participado tambm do juramento de Lavalleja e de seus companheiros em Agraciada (2000: 86).

    O pintor imaginava que este fora o momento em que os patriotas juraram libertad o muerte. A pintura, entretanto, no realista. No correspondem realidade de uma luta, os trajes limpos, as camisas brancas e as armas reluzentes. A distribuio do grupo convencional e teatral de acordo com os critrios da composio clssica feita para ressaltar a faanha e a apoteose herica. O realismo cedeu espao glorificao. No existia, at ento, nenhum testemunho visual significativo do acontecimento. "O quadro de Blanes", como afirma Irigoyen, " uma cuidadosa composio onde os Trinta e Trs personagens, perfeitamente identificados e individualizados, se ordenam quase semi circularmente em torno a Lavalleja, que ocupa uma posio prxima ao centro da tela". A pintura mostra o momento em que os patriotas levantam seus braos armados e juraram "em unssono liberar o solo oriental do domnio brasileiro ou morrer na tentativa". Contudo ainda que a estrutura esteja "visivelmente construda a servio da apoteose patritica, Blanes obteve ao mesmo tempo um slido equilbrio de composio e uma teatralidade convincente" (Irigoyen, 2000: 126).

  • 13

    Para Peter Burke (Burke, 2004: 233/36), os testemunhos sobre o passado oferecido pelas imagens so de um valor real implementando, bem como apoiando, as evidncias dos documentos escritos. As imagens correntemente tiveram seu papel na construo cultural da sociedade. Por esta razo as imagens so testemunhas dos arranjos sociais passados e acima de tudo das maneiras de ver e pensar o passado. As imagens do acesso, no ao mundo social diretamente, mas sim s vises contemporneas quele mundo. Em 1878, Blanes exibiu o monumental Juramento em seu ateli ante Latorre, ministros, altos funcionrios e autoridades e nos dias seguintes ao pblico. O trabalho gerou comoo nos espectadores da poca: desfilaram multides, a imprensa escreveu notas exaltadas, foram enviadas coroas e ramos de flores, queimaram-se incensos, foram feitas oferendas simblicas e os poetas leram suas mensagens em prosa e verso. Blanes doou sua obra ao Estado e, do ponto de vista histrico, ao integrar-se na memria visual da sociedade, acabou por converter-se em um emblema nacional para o pblico uruguaio at os dias de hoje.

    O Juramento dos Trinta e Trs Orientais uma "pintura narrativa" que se tornou um "instrumento para individualizar, compreender, interpretar e comunicar uma parte essencial da nao" (Sartor, 2006: 46) e embora o historiador tenha que estar atento para o fato de que a imagem correntemente no uma obra de arte, como considera Rojas Mix, ainda que a obra de arte, seja sempre uma imagem neste caso preciso entender que a pintura de Blanes no apenas uma imagem, ela , tambm, uma obra de arte.

    ***

    Eduardo Acevedo Daz, alm de literato, foi um poltico intensamente ligado atividade jornalstica, tendo nascido no Uruguai, em 1851 e falecido na Argentina, em 1921. Foi chefe do partido Nacional (Blanco) e participou das guerras de fronteira. Por esta razo, foi expatriado mais de uma vez, tendo escrito os seus romances histricos na Argentina. A vida poltica de Acevedo Daz foi bastante ativa e iniciada muito cedo. Antes dos 20 anos de idade j participava de conflitos armados lutando pelo lado dos blancos. A militncia poltica e a participao em movimentos armados se intensificaram, obrigando Daz a, em 1876, deixar o Uruguai e exilar-se na Argentina, perodo no qual pde se dedicar literatura. De volta ao seu pas quase 20 anos depois, Daz retomou ativamente a vida pblica e terminou a carreira poltica cumprindo uma longa trajetria diplomtica finalizada em Buenos Aires, quando de sua morte.

  • 14

    Na literatura, esteve sua segunda vocao, exercida nos intervalos da atividade poltica. Filho de uma famlia ilustre de Montevidu, Acevedo Daz foi um intelectual de grande expresso pblica em seu tempo. Coube a sua gerao formalizar um projeto de nao, desenhar a orientalidad, moldando heris, elegendo marcos e inventando a tradio. Sua ferramenta mais pujante foi o romance histrico, em cuja eficcia pedaggica Acevedo Daz confiava plenamente, conforme aparece, em 1907, no prlogo de Mins:

    "Qu es ms preferible para la formacin del buen gusto popular y su reforma, la novela de la historia no la historia en s mismaque deforma los hechos y los hombres, o la novela histrica, que resucita caracteres y renueva los moldes de las grandes encarnaciones tpicas de un ideal verdadero?" 4

    Segundo Pomian (1999: 61 a 64), o romance uma categoria de obra histrica que ambiciona levar o leitor a sentir uma poca e as singularidades de um momento histrico do passado. Quando as fontes o permitem e quando se dispe particularmente de narrativas e imagens, uma representao do passado, para ser satisfatria, deve ser reconstruda em sua dimenso visvel, chegar a uma descrio daquilo que apresentado ao olhar e, mais ainda, reconstruir a dimenso vivida, chegar a uma descrio dos estados afetivos suscitados, fazendo os leitores presentes participarem desta vivncia, uma vez que os vestgios so sempre fragmentrios, lacunares e descontextualizados. Esta aparncia visvel, reconstruda, de uma cena ou objeto comporta sempre uma parte de fico.

    Neste sentido, afirmava Acevedo Daz em "La novela histrica", artigo publicado no "El Nacional" em 1895, aps a redao de seu terceiro romance histrico:

    "El novelista consigue, con mayor facilidad que el historiador, resucitar una poca, dar seduccin a un relato. La historia recoge prolijamente el dato, analiza framente los acontecimientos, hunde el escalpelo en un cadver, y busca el secreto de la vida que fue. La novela asimila el trabajo paciente del historiador, y con un soplo de inspiracin reanima el pasado, a la manera como un Dios, con un soplo de su aliento, hizo al hombre de un puado de polvo del Paraso y un poco de agua del arroyuelo". 5

    E, na abertura de sua obra Lanza y Sable, volta ao tema: "A nuestro juicio, se entiende mejor la 'historia' en la novela, que en la 'novela' de la historia. Por lo menos abre campo a la observacin atenta, a la investigacin psicolgica, al libre examen de los hombres descollantes y a la filosofa de los hechos". (Acevedo Daz, 1965:3)

    Como a maioria dos escritores de sua poca, estava comprometido com a imediata realidade poltica e social, militando nos partidos tradicionais, saindo a campo para defender com armas suas posies polticas e usando o jornal como trincheira para combater, com os seus artigos

    4Ver: Captulo Oriental, n.6. Acevedo Daz y los orgenes de la narrativa. Montevideo: Centro Editor de Amrica Latina, 1963. P.89 (Fascculo preparado por el crtico Ruben Cotelo y revisado por Carlos Real de Aza). 5Op. Cit. p. 91-2.

  • 15

    polticos, os dos adversrios.

    Na primeira metade do sculo XIX, Walter Scott consagrado como o criador do romance histrico, tornando-se um modelo para todos os romancistas deste gnero narrativo. O escritor escocs soube recriar, segundo o crtico literrio, Rodriguez Monegal (1964: XXXVII), certos episdios da histria da Gr-Bretanha sem necessidade de organizar um ciclo histrico completo e sem jamais subordinar a fico s exigncias da crnica, tendo a intuio de que bastava um protagonista nico para todas as suas novelas: o povo, que era finalmente quem fazia a histria. Tambm em Acevedo Daz, segundo o crtico uruguaio, margem dos indivduos de fico ou de histria que se destacam no primeiro plano, h um protagonista coletivo constante: o povo. Em sua primeira obra histrica, ainda muito apegada ao modelo de Walter Scott, o protagonista um personagem comum, Ismael, um gacho, no um heri no sentido clssico da palavra, e por isso mesmo resulta mais fcil convert-lo em arqutipo da nacionalidade annima. Os personagens histricos, por sua vez, perfeitamente individualizados, aparecem somente no fundo do quadro e participam muito ocasionalmente no primeiro plano da ao.

    Sua narrativa literria, de ambincia rural e inspirao histrica, interiorizava os recursos do realismo, que j dera mostras de vigorosa sade literria na Europa. Acevedo Daz vinculou-se s tcnicas de construo do folhetim, prolongando suas histrias e alternando o uso de um elenco bsico de personagens. Essa tcnica pode ser percebida em sua tetralogia histrica, publicada entre 1888 e 1914, composta pelas obras: Ismael, Nativa, Grito de Gloria e Lanza y Sable. O autor incorporou outros elementos narrativos de romancistas europeus, tais como Balzac, e que consistem em utilizar nos quatro romances um certo repertrio de personagens que podem aparecer como protagonistas, por exemplo, na primeira novela e como figura muito secundria em sua terceira. H, assim, todo um elenco de seres de fico e alguns personagens histricos que reaparecem em cada livro, e outros que so de apario menos freqente. A medida em que o autor segue escrevendo novos romances, os personagens histricos ocupam cada vez mais o primeiro plano (Rodriguez Monegal, 1964: XV). Nada menos do que 14 personagens de Nativa passam para Grito de Gloria. A epopia das quatro obras se converteu em um ciclo histrico: o das origens orientais. So trinta anos, entre o comeo do processo de independncia em 1811 at a renncia de Oribe em 1838, quando Rivera volta novamente a assumir o poder, constituindo-se para o autor: "los primordios de nuestra nacionalidad".

  • 16

    Alm de estabelecer a narrativa, o romance histrico no Uruguai, Eduardo Acevedo Daz um dos fundadores do sentimento de nacionalidade. Atravs de um personagem que se repete nos romances Nativa e Grito de Gloria, ele mostra a luta para liberar-se do ocupante brasileiro. Luis Mara Bern, em Grito de Gloria, incorpora-se "Cruzada Libertadora dos 33 Orientais" em um Uruguai ocupado pelos brasileiros que haviam convertido a Banda Oriental em Provncia Cisplatina. Desta "Cruzada", tambm participava, o rival do protagonista no campo de luta, o brasileiro tenente Souza, que ser mortalmente ferido na batalha de Sarand. este seu terceiro romance histrico, Grito de Glria, que nos interessa mais de perto. Se no conjunto de sua obra os crticos consideram que ele usou dos recursos do folhetim romntico, h que se considerar tambm algumas pinceladas de qualidade pica em alguns dos captulos de Grito de Glria, tornando-o um afresco importante e representativo do imaginrio do momento em que a Banda Oriental "desperta ao impulso da Cruzada Libertadora". (Rodrguez Monegal, 1964: XVIII) Em Grito de Glria nos interessa examinarmos a percepo do passado em relao aos nove anos de ocupao da Banda Oriental pelo Imprio brasileiro, formulada no tempo da escritura, em um momento particular do nascimento do Uruguai moderno, no qual pela primeira vez, aparece uma sntese coletiva de identidade poltica, a orientalidade. Se a alteridade na novela Ismael construda sobre o dominador espanhol, nestas outras duas novelas ela est representada por portugueses e, principalmente, por brasileiros. Se em Ismael o antagonista espanhol; em Nativa ele ser brasileiro.

    Em seus romances, de temtica romntica mas de estrutura esttica realista, a funo da obra esteve sempre muito bem estabelecida: em primeiro lugar, recuperar e reavivar o passado mais eficazmente do que faz a histria. Em segundo lugar, em um esforo didtico, revelar o carter da nacionalidade oriental. Perante a ocupao brasileira, resume: "Algunos queran una patria grande, aunque fuese brasilea. Otros, y eran estos los ms, suspiraban por una patria pequea, pero libre y rica". (Nativa: 129/130)

    Por conta de todos os percalos, somados unio da tropa e s suas motivaes, o autor considera que o protagonista do romance:

    "[...], en condiciones idnticas a las de sus compaeros, no poda menos de pensar en su interior que esos sufrimientos eran un medio como cualquier otro 'de elaborar la patria' y de adobar la fibra de la nacionalidad naciente."(Nativa: 211)

    Uma narrativa dada por histrica, conforme Pomian (1999: 34 a 39), quando afirma a sua inteno de se submeter a um controle de sua adequao realidade extra-textual passada sobre a qual ela trata. Mas para que uma narrativa seja reconhecida como histrica, preciso que esta

  • 17

    inteno no seja vazia; isto quer dizer que as operaes de controle que o autor programa devem poder ser efetivamente executadas por todo o leitor competente. Um leitor comum no controla a narrao que l, ele no tem nem o tempo, nem a competncia para faz-lo. Uma

    narrativa histrica para ele possui uma autoridade na qual ele deposita a sua confiana.

    Na realidade da recepo, o que conta em uma narrativa histrica a escrita, os "marcos de historicidade" desempenham unicamente um papel de procedimento retrico que serve para fazer o leitor a acreditar no que lhe contatado.

    Para Acevedo Daz, o dado histrico por si s pouco dizia, possibilitando ser evasivo e refletindo apenas uma parte da realidade histrica que se pretendia recriar. Em Ismael, sua primeira obra da tetralogia, Acevedo Daz afirma o seu entendimento de histria, que est na base de sua obra de romancista. A verdade completa, j que no absoluta, no era oferecida nem somente pelo documento, nem somente pela tradio ou o testemunho, mas pelas trs coisas reunidas em uma face, nas palavras do autor. Atravs da novela, o autor pretendia reconstruir o processo histrico de liberao da provncia, e, principalmente, almejava comunicar a idia de que j existia um sentimento nacional que estava sendo oprimido pelo Imprio. J nos quatro captulos iniciais de Grito de Glria, o autor trabalha sobretudo os aspectos de natureza histrica que buscam retratar o famoso episdio do desembarque na praia de Agraciada, da Cruzada Libertadora dos Trinta e Trs Orientais. Alguns estudiosos da obra de Acevedo Daz consideram que a sua descrio do quadro histrico superior famosa tela de Blanes na medida em que Acevedo insere o seu grupo como parte da paisagem, enfatizando simbolicamente a heroicidade da faanha no contexto da vastido da natureza, apresentando, inclusive, a observao de alguns camponeses. O objetivo de liberar o territrio do jugo estrangeiro, o Imprio do Brasil, pressupunha a vinculao do ideal abstrato de ptria ou nao a algo concreto, conhecido, familiar. Acevedo Daz em Grito de Gloria faz essa escolha recair sobre a terra, a paisagem, o pago:

    "Para muchos de ellos qu concepcin poda ser la de la patria? Difcil explicarlo! Al mirar hacia la ribera oriental pareca que algo entrevean en las sombras con los ojos del alma. Acaso el pago; el pago era la patria".

    Como na pintura de Blanes, Acevedo Daz descreve a cena da chegada praia na qual "los orientales asumen el protagonismo dentro de una sucesin de acontecimientos que se interpretan como proceso de liberacin". (Gonzlez Taurino, 2001: 222) A mistura de etnias, de peles e de posies sociais fazia-se presente no texto e o tornava mais verossmil:

    " Los haba entre ellos de todas razas, de distintos colores; el militar de escuela junto al 'montonero', el ideal culto en connubio con el instinto bravo, el ciudadano libre en fraternidad con el liberto." (Grito de Gloria, 1964. p.35)

  • 18

    Entretanto, apenas os criollos eram os pais da ptria: "Los que llegavan [...]eran Juan Antonio Lavalleja, jefe de la invasin; Manuel Oribe, segundo en el mando[...]".(Acevedo Daz, 1964. p.34) A preparao e o local do desembarque tambm so descritos para tornarem o texto mais real e mais plausvel, sendo a cena asistida por um pequeno grupo de vecinos: "En este sitio del Arenal Grande arriaron vela las 'chalanas' y tomaran tierra los invasores". A costa descrita como "una playa hermosa cubierta de densas arenas". (Grito de Gloria, 1964: 40)

    O tempo da elaborao do texto foi o ltimo quartel do sculo XIX, quando, de forma coletiva, o pas construa a primeira sntese de suas origens. Definia-se assim um espao social no qual os indivduos podiam comear a se identificar como membros de uma comunidade e a se referirem a si mesmos como nosotros. Acevedo Daz constri, atravs de sua narrativa literria, um momento fundacional da nao uruguaia que, segundo ele, j estaria sendo construda na luta contra o dominador brasileiro. Excepcionalmente, para ns, o tempo da escritura vem a ser to importante quanto o tempo do relato, uma vez que o seu objetivo era dar-nos a conhecer o momento fundacional do que viria a ser a futura nao oriental. Desta forma, inventa-se o comeo de uma memria nacional unida ao esforo inaugural da idia de se construir uma nao. O importante no manejo dessa memria a forma como ela foi estabelecida atravs do texto e da imagem, formas artsticas e, em princpio, ficcionais.

    ***

    Em uma breve tentativa de aventurar-se a uma releitura do poltico pelo cultural, (Pesavento, 2004) inegvel constatar a eficcia simblica das imagens produzidas sobre os mitos e crenas fundacionais que levaram os homens letrados da poca, como Blanes e Acevedo Daz, a construir uma identidade oriental dotada de um poder de coeso social em um momento particular do nascimento do Uruguai moderno, momento em que, pela primeira vez, aparece uma sntese coletiva de identidade poltica, a orientalidade. Blanes e Acevedo Daz, como tantos outros entre 1875 e 1900, animados por um profundo esprito patritico nacional, criaram uma conscincia nacional e, lenta e imperceptivelmente, realizaram a faanha de "fundar, pela segunda vez," a Repblica Oriental do Uruguai. Neste mbito, Acevedo Daz elabora os romances histricos com declarados propsitos didticos: ilustrar imaginativamente fragmentos

  • 19

    escolhidos com muito cuidado do passado nacional e com eles provar que, desde as suas origens, o Uruguai fundara-se com vontade e personalidade independentes.6

    A disputa por datas, significados e intenes dos heris e feitos hericos de um passado ptrio, acabaram por reforar a existncia simblica de um passado comum, e as disputas em torno de uma tradio fundante da ptria e dos heris da nao representavam as posies dos diferentes projetos polticos. A histria nacional dava suporte criao de uma tradio de heris vinculados ptria e os orientais passavam a ser herdeiros simblicos de uma herana patritica de soberania, a qual deveriam defender e preservar. (Souza y Prado, 2002)

    Referncias Bibliogrficas.

    ACEVEDO DAZ, Eduardo. Grito de Gloria. Biblioteca Artigas, col. Clsicos Uruguayos, vol.54. Montevideo: 1964. ACEVEDO DAZ, Eduardo. Ismael. Madrid: Ediciones de Cultura Hispnica, 1991. ACEVEDO DAZ, Eduardo. Lanza y Sable. Biblioteca Artigas, col. Clsicos Uruguayos, vol. 63. Montevideo: 1965. ACEVEDO DAZ, Eduardo. Nativa. Biblioteca Artigas, col. Clsicos Uruguayos, vol.53. Montevideo: 1964. ADINOLFI, Laura y SIERRA, Claudia de la. "Cronologa Biogrfica".Catlogo Juan Manuel Blanes. La nacin naciente1830-1901. Montevideo: Museo Municipal de Bellas Artes Juan Manuel Blanes, 2001. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difusin del nacionalismo. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1997. AZA, Carlos Real de. Las Origenes de la Nacionalidad Uruguaya. Montevideo: ARCA/Nuevo Mundo/Intituto Nacional del Libro. 1991. BOIA, Lucian. Pour une histoire de l'imaginaire. Paris: Les Belles Lettres, 1998. BROQUETAS, Magdalena y CUADRO, Ins. "Colores polticos. Juan Manuel Blanes en el espacio rioplatense". Catlogo Juan Manuel Blanes. La nacin naciente1830-1901. Montevideo: Museo Municipal de Bellas Artes Juan Manuel Blanes, 2000. BURKE, Peter. Testemunha Ocular: histria e imagem. Bauru: EDUSC, 2004. DEVOTO, Fernando J. "Introduccin". In: ACHURAR, Hugo y Caetano, Gerardo (comp.) Identidad uruguaya: mito, crisis o afirmacin? Montevideo: Ediciones Trilce, 1992.

    6Ver: Captulo Oriental, n.6. Acevedo Daz y los orgenes de la narrativa. Montevideo: Centro Editor de Amrica Latina, 1963. P. 92/3. (Fascculo preparado por el crtico Ruben Cotelo y revisado por Carlos Real de Aza).

  • 20

    GONZLEZ LAURINO, Carolina. La construccin de la identidad uruguaya. Montevideo: Taurus, 2001. HALL, Stuart. Identidades culturais na ps-modernidade. 4. ed. Rio de Janeiro: DP&A Ed., 2000. IRIGOYEN, Emilio. La ptria en escena. Esttica y autoritarismo en Uruguay - textos,

    monumentos, representaciones. Montevideo: Ediciones Trilce, 2000. NAHUM, Benjamn y BARRN, Jos Pedro. Historia rural del Uruguay moderno. 1886 1894. Tomo II. Montevideo: Ediciones de La Banda Oriental, 1971. PELUFFO LINARI, Gabriel. "Los conos de la nacin. El proyecto histrico-museogrfico de Juan Manuel Blanes". In: Catlogo Juan Manuel Blanes. La nacin naciente 1830-1901. Montevideo: Museo Municipal de Bellas Artes Juan Manuel Blanes, 2001. PESAVENTO, Sandra J. Histria & Histria Cultural. 2.ed. Belo Horizonte: Autntica, 2004. POMIAN, Krzysztof. Sur l'histoire. Paris: Gallimard, 1999. RODRIGUEZ MONEGAL, Emir. "Prlogo". In: ACEVEDO DAZ, Eduardo. Grito de Gloria. Biblioteca Artigas, col. Clsicos Uruguayos, vol.54. Montevideo: 1964 RODRIGUEZ MONEGAL, Emir. "Prlogo". In: ACEVEDO DAZ, Eduardo. Nativa. Biblioteca Artigas, col. Clsicos Uruguayos, vol. 53. Montevideo: 1964. ROJAS MIX, Miguel. "La revolucin epistemolgica. Notas". Imago Americae. Revista de Estudios del imaginario. Buenos Aires, n.1, Primer semestre de 2006. SARTOR, Mario. "Pintura de paisaje e identidad nacional en Amrica Latina". Imago Americae. Revista de Estudios del imaginario. Buenos Aires, n.1, Primer semestre de 2006. SILVEIRA, Pablo da. "La nacionalidad uruguaya como problema. Entre Habermas y San Agustn". In: COLOM GONZLEZ, Francisco. (ed.) Relatos de nacin. La construccin de las identidades nacionales en el mundo hispnico. Madrid: Iberoamericana, Vervuert, 2005. Tomo II

    SOUZA, Susana Bleil y PRADO, Fabrcio. "Las representaciones del Brasil en el discurso de los constructores de la identidad uruguaya en el siglo XIX". In: TRINCHERO, Hctor Hugo y BLANCO Fernado (comp.) Fronteras indgenas y migrantes en Amrica del Sur. Cdoba: UNC/Ferreira Editor, 2002. TORRES, Maria Ins de. "Discursos Fundacionales: nacin y ciudadana". In: ACHUGAR, Hugo y MORAA, Mabel (coord.). Uruguay: imaginarios culturales. Desde las huellas indgenas a la modernidad. Montevideo: Trilce, 2000.

  • 21

    TRIGO, Abril. "La repblica de los sentimientos: la sensibilidad romntica al servicio de la imaginacin nacional". In: ACHUGAR, Hugo y MORAA, Mabel (coord.). Uruguay: imaginarios culturales. Desde las huellas indgenas a la modernidad. Montevideo: Trilce, 2000.