supremo institucional (os 150 anos do poder legislativo-1973)

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Ministro ALIOMAR BALEEIRO - Procurador JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES - Advogado JOSAPHAT MARINHO OS 150 ANOS DO PODER LEGISLATIVO Homenagem do Supremo Tribunal Fe- deral ao Congresso Nacional, em sessão do dia 4 de maio de 1973.

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Page 1: Supremo Institucional (OS 150 ANOS DO PODER Legislativo-1973)

Ministro ALIOMAR BALEEIRO - Procurador JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES - Advogado JOSAPHAT MARINHO

OS 150 ANOS DO PODER

LEGISLATIVO

Homenagem do Supremo Tribunal Fe­deral ao Congresso Nacional, em sessão do dia 4 de maio de 1973.

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APRESENTAÇÃO

O Supremo Tribunal Federal, em atitude que sensibilizou o Congresso Nacional, realizou, no dia 4 de maio, uma Sessão solene comemorativa dos 150 anos do Poder Legislativo no Brasil. Na aber­tura da Sessão, o eminente Ministro Eloy José da Rocha, Presidente do Egrégio Pretório, pronunciou palavras de exaltação ao Poder Legislativo. A seguir, o eminente Ministro Aliomar Baleeiro, o douto Procurador-Geral da República, doutor José Carlos Moreira Alves, e o ilustre representante da Ordem dos Advogados do Brasil, Profes­sor Josaphat Marinho, destacaram o que o Parlamento Brasileiro vem realizando nesse século e meio de sua vida.

Os discursos pronunciados merecem, assim, a maior divulgação, pela sua altitude, pelos problemas abordados, pela forma com que foram apresentados. Dai a necessidade de sua reunião em uma pla-queta, a fim de serem distribuídos às Universidades, Bibliotecas, Assembléias Legislativas. Ê o que faz o Senado Federal.

O Congresso Nacional é grato à homenagem que lhe é prestada pelo Poder Judiciário. E homenagem eloqüente, partida do Supremo Tribunal Federal, através a palavra autorizada dos seus intérpretes.

Brasília, 15 de maio de 1973

Senador FILINTO MÜLLER

Presidente do Senado Federal

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DISCURSO DO MINISTRO ALIOMAR BALEEIRO

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OS FUNDADORES DA NAÇÃO LIVRE

Contemplados serenamente a 150 anos de distância, sem o ódio nem as paixões daquele tempo, os homens que se congregaram no primeiro Parlamento nacional aparecem aos nossos olhos em estatura de gigantes, muito maiores do que a da Nação pobre, tosca e bravia, em cujo nome falaram, traçando-lhe o futuro com fé e convicção.

Quem escrever o Gênesis do Brasil, há de reconhecer que no princípio, foi a violência. A força física e a força das armas, a co­biça, a desenvoltura do aventureiro, a licença do espaço infinito e misterioso, o medo dos inimigos vindos das terras e dos mares. A palavra veio depois e tímida com os jesuítas, as raras escolas, os Tribunais bisonhos, as Câmaras Municipais, na orla oceânica, de onde só muito mais tarde tomaram o rumo do oeste, nas trilhas abertas pelos sertanistas desabusados e audazes. Com homens ame­nos e policiados não se conquistam nem se constróem nações.

Só no século XVIII, a descendência dessa gente rude, herdan-do-lhe os cabedais escassos e acumulados a duras penas, constituiu limitada classe média que pôde enviar a Coimbra e à França os filhos em busca de educação. Revelam-se, então, os Antônio José da Silva, o judeu; os Matias Aires, os Alexandre Gusmão, os Ale­xandre Ferreira, os Arcades Mineiros, os Basílio da Gama e tantos outros que, pelo talento e pelo saber, levam os críticos à afirmativa de que nasceram no Brasil os maiores espíritos de Portugal do fim daquele século.

A Constituinte de 1823 representa uma projeção desse floresci­mento intelectual do Brasil do século anterior. Os homens maduros nele nasceram e educaram-se ao calor das idéias e ao impacto dos tumultos da independência norte-americana e da revolução fran­cesa. Foi o caso do Visconde de Cairu, dos três Andradas, do Barão de Santo Amaro, do bispo D. Silva Coutinho, dos Marqueses de jBarbacena, de Baependi, de Queluz, de Caravelas, de Manoel Câmara Bittencourt Sá, de Ribeiro de Rezende, dos 22 Desembar­gadores, dos Marechais e Generais.

Os moços, dentre os quais alguns ainda não haviam atingido 30 anos, e outros contavam pouco mais, haviam recebido formação intelectual nas universidades européias. Estavam nesse número Ni-

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colau Vergueiro, J.J. Silva Maia, os futuros Marqueses de Olinda e de Abrantes e Visconde de Jequitinhonha, o pai de José de Alencar, Moniz Tavares e outros. Todavia, até 40 anos depois, a Constituinte não gozou de boa imprensa.

Varnhagen, sem embargo de merecer o título de fundador de nossa historiografia, não primou pela imparcialidade em relação a seus contemporâneos, nem era um enamorado da democracia liberal.

Não espanta que retratasse com desfavor os homens de 1823. John Armitage, que escreveu pouco depois dos fatos, provavelmente estranhava que nosso primeiro Parlamento não oferecesse os requin­tes do britânico. Os velhos, para ele, seriam "inclinados à realeza", e os moços, "proprietários de pequenas fortunas", eram "ávidos de liberdade, mas liberdade vaga e indefinida, que cada um intepreta a seu m o d o . . . " Excetuados os 3 Andradas, "hábeis, destemidos, saga­zes, conhecedores das fórmulas parlamentares, havia pouquíssimos deputados acima da mediocridade", — comentou o observador inglês. Menezes Vasconcelos Drummond, quando já velho, traçou uma cari­catura cruel dos homens com os quais convivera na juventude tem­pestuosa naquele Parlamento. Escarneceu, por igual dos velhos es­pertos e dos jovens palradores, que se entretiam do que não enten­diam.

A justiça foi feita àqueles políticos por um jovem historiador da geração imediata e que veio a elevar-se a ministro de Estado — o futuro Barão de Homem de Melo.

Em monografia publicada em 1863, examinou com objetividade os trabalhos da Constituinte, os projetos por ela elaborados e as personalidades dos que a compunham. Considerou 1823 como "o período mais importante de nossa história constitucional", acrescen­tando que "período nenhum da história do Brasil tem sido tão des­figurado, tão desapiedadamente caluniado, como o da Consti­tuinte . . . "

E comenta:

"Raça degenerada somos nós, que renegamos as glórias tão vi­vidas do nosso passado, rasgamos as páginas mais brilhantes de nossa história, e cobrimos de insultos uma geração inteira para sobre as ruínas de sua reputação erguer o vulto dos ídolos do dia". E mostra como "o que havia de mais ilustrado no país achou-se re­presentando no seio da Constituinte. Todas as classes elevadas e im­portantes da sociedade estavam aí dignamente representadas: — o clero, a alta magistratura, a administração superior do Estado, os jurisconsultes, literatos e militares haviam sido contemplados numa eleição livre e espontânea".

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Outras vozes se juntaram à do Barão Homem de Melo nessa reparação aos fundadores do primeiro Parlamento nacional. E foram as de nomes luminosos, como os de José de Alencar, o do historiador Pereira da Silva, o de Alfredo Valadão, o dos Rodrigo Otávio — pai e filho, o de Otávio Tarquínio de Souza, o de Hélio Viana, o de Sérgio Buarque de Holanda, José Honório Rodrigues e vários outros.

Quase 100 anos depois, a sentença da justiça histórica fez-se ouvir decisiva e definitiva, no 1.° Congresso de História Nacional, de setembro de 1914, sobretudo no admirável e objetivo estudo de Luciano Pereira da Silva.

E há cerca de dois meses, em cerimônia presidida no Senado por Petrônio Portella, a glória dos homens de 1823 logrou a exaltação justa de dois belos discursos de Pedro Calmon e de Afonso Arinos de Melo Franco.

Muitos daqueles primeiros parlamentares traziam larga folha de serviço ao Reino Unido. Os próprios moços já haviam feito as primeiras armas nas Cortes de Lisboa, onde enfrentaram as hosti­lidades dos deputados e da plebe de Portugal, recusando apoio e assinatura à Constituição, que restringiria o status de Reino Unido já alcançado pelo Brasil desde dezembro de 1815.

Na fé de ofício liberal, dois já haviam padecido às masmorras e o degredo por participação na Inconfidência Mineira. O próprio e reacionário Cairu fora suspeitado na Inconfidência Baiana de 1798, acusação feita igualmente a Cipriano Barata, que não compareceu às sessões. Quatro pelo menos — Antônio Carlos, Alencar, Muniz Tavares e José Antônio Caldas — experimentaram a ameaça da forca e a realidade dos calabouços por implicação na república per­nambucana de 1817.

O jovem Montezuma tivera parte ativa na guerra para livrar a Bahia das tropas do brigadeiro Madeira.

Naquele Brasil de 3.000.000 de habitantes, na maior parte analfabetos, dos quais metade de escravos, sem universidades nem ensino organizado de grau médio, entregue somente às atividades agrícolas e extrativas, surpreende que fosse escolhida para repre­sentá-lo, cerca de uma centena de cidadãos de instrução superior, colhidos nas várias províncias mal ligadas por precários transportes e comunicações a vela ou no lombo de muares, que levavam quase dois meses de Minas a S. Paulo e dez dias de S. Paulo ao Rio.

Cairu, era não apenas o sábio mestre de Direito Comercial e de Economia, que publicou um tratado sobre essa disciplina em 1803, simultaneamente com a primeira obra francesa da matéria, a

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de Jean Baptiste Say. Distinguiu-se como humanista José Bonifácio, outro sábio, familiarizado com 11 línguas, das quais falava 6 fluen­temente. E estudara Química e Mineralogia em diversos países europeus, além de ter diploma de jurista. Martim Francisco também trazia bagagem de sérios estudos das Ciências da Natureza, do mesmo modo que Câmara Bittencourt Sá. Antônio Carlos era legista e Ouvidor, dotado de excepcional talento oratório. Barbacena, edu­cado no Colégio dos Nobres e na Academia de Marinha de Lisboa, introduzira antes no Brasil a vacina e a navegação a vapor, servira em missões diplomáticas e econômicas em Londres. Conseguira os empréstimos para a guerra contra Portugal e colaborara com José Bonifácio na improvisação da esquadra entregue a Lord Cochrane, Luis Carvalho Melo passava por conhecedor profundo de todos os ramos do Direito. Vinte e dois desembargadores, 26 bacharéis, 19 eclesiásticos, dentre os quais o Bispo e Capelão-mor D. José Caetano Coutinho, e Silva, sete militares, inclusive 3 marechais de campo e dois brigadeiros, Conselheiros do Erário Régio, médicos, doutores em filosofia ou em cânones, fazendeiros. A carreira posterior da maior parte deles veio mostrar que no edifício da Cadeia Velha, outrora prisão do Tiradentes e dos dois Constituintes, seus co-réus J. Rezende Costa e M. Rodrigues Costa, semeara-se um viveiro de estadistas, que iriam conduzir a nação inexperiente nas procelosas águas da revolução de 7-4-1831, da Regência e da Maioridade, até o decênio áureo do Império no meado do século XIX.

Aqueles deputados improvisados num país sem qualquer tra­dição parlamentar pois tanto não se podia esperar das Câmaras Municipais, da colônia, nascidos sob o absolutismo, iriam transfor­mar a Constituição de 1824, marcada pela elefantíase do Executivo mercê do Poder Moderador, convertendo-a num plástico instrumento de governo representativo que a partir de 1843 e, sobretudo, de 1847, — data da criação da Presidência do Conselho de Ministros — imitava com relativa fidelidade o admirável governo de gabinete da rainha Vitória na primeira metade daquele século.

Com poucas exceções, os deputados à primeira Constituinte foram os líderes e estadistas dos 30 anos imediatos, servindo nos Mi­nistérios, presidindo-os e às Províncias, povoando o Senado e o Conselho d'Estado com os títulos sonoros de Marqueses, Viscondes e Barões. Conduziram a nação a salvo nas guerras externas, supri­miram sem crueldade as guerras civis e a demagogia, e, enfim, lan­çaram as bases do período de quase 50 anos de paz, ordem, con­córdia e liberdade, sem rebeliões, golpes d'Estado, nem estado de sítio, censura de imprensa ou sequer vetos, criando a mais brilhante escola de políticos do Brasil.

Eles e os jovens políticos de que foram mestres, — Bernardo Vasconcelos, Paraná, Paula Sousa, Pimenta Bueno, Uruguai, Caxias,

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Zacarias, Rio Branco, Olinda, Abaeté, Nabuco, Uruguaiana, Itaborai, Cotegipe, Torres Homem, Saraiva, Dantas, Lafayette, Ouro Pre to . . . — toda uma constelação de estrelas de primeira grandeza. Foram os autores do milagre político do parlamentarismo brasileiro, que vai da Regência até a Proclamação da República. Milagre porque, depois deles, nenhuma geração outra conseguiu garantir ao Brasil tão prolongada fase de tolerância, liberdade, ordem e gozo de todos os direitos inerentes ao Estado democrático.

Alguns comentadores mais apressados se comprazem em assi­nalar as futilidades da Constituinte, porque, nas sessões preparatórias antes da instalação solene a 3 de maio de 1823, à semelhança do que ocorrera nas Cortes Portuguesas, os Deputados discutiram aca­loradamente o cerimonial para aquele dia. Quem ficaria à direita da Mesa. Se os altos funcionários poderiam sentar-se em cadeiras de espaldar ou só em mochos. Se o Imperador deveria entrar de cabeça descoberta, etc., etc.

Afinal, o simbolismo dessas formalidades, guardava um sentido profundo para a estrutura político-constitucional que iria ser cons­truída: — monarquia de Direito Divino, "pela graça de Deus", vale dizer absoluta, ou monarquia constitucional à base da soberania do Povo. A desconfiança era recíproca: — Pedro I não ignorava os sen­timentos liberais dos Representantes eleitos nem os da própria Na­ção, e soubera explorá-los bem quando sob a orientação dos An-dradas, desde 1821. Mas os Deputados, inclusive os 3 irmãos glo­riosos, instintivamente conheciam as origens dinásticas, as tradições absolutistas dos Braganças, e a pressão reacionária que Metternich exercia sobre o Imperador e D. Leopoldina pelo ativo agente diplo­mático austríaco, cuja correspondência conservada e hoje estudada não deixa a menor dúvida a respeito. E não lhes escapava o tem­peramento emocionalmente instável, impulsivo e dúplice do prín­cipe epiléptico, filho de uma rainha neurótica e neto de outra clini­camente louca. Sua falta de educação, sem embargo da inteligência viva e da atividade febril, era por demais notória, além de agravada pelo convívio íntimo e deletério com a criadagem portuguesa do Paço. Afinal, nosso republicanismo não dispensou até hoje os decretos regulamentadores do cerimonial com a escala de precedências.

Aquela desconfiança já se exteriorizara seis meses antes quando, no ato da aclamação, a instâncias da Maçonaria, que pleiteava um juramento à futura Constituição, o Imperador, duma janela do Paço, grilou à turba "juro defender a Constituição que está para ser feita, se for digna do Brasil e de mim". A cláusula condicional po-testativa a seu arbítrio foi repetida na fala do trono de 3 de maio, suscitando o protesto dos Constituintes na sessão imediata.

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Antônio Carlos, que então apoiava o governo do qual participa­vam os irmãos, foi incisivo e profético: " . . . se por desgraça, feita a Constituição, S. M. recusasse aceitá-la, então, S. M. tinha por si a opinião nacional, e nesse caso nulo era o que tivéssemos feito, ou S. M. não tinha por si a opinião nacional e, nesta hipótese, ou havia de anuir à Constituição, que era a vontade geral, ou deixar-nos, quod Deus avertat."

Não admira pois a dissolução da Assembléia daí a 6 meses, após o rompimento com os Andradas, talvez pela denúncia das pro­pinas cobradas pela favorita para intervir em prol dos adversários deles em São Paulo, talvez pela crescente predisposição imperial pe­los portugueses, a ponto de mandar incorporar ao Exército brasileiro os oficiais e soldados que os baianos haviam feito prisioneiros de guerra nos combates de Cabrito e Pirajá. Note-se que ainda está­vamos em beligerância com a ex metrópole, que perseverava em reconquistar o norte do Brasil pelas armas. Essa medida despertou naturalmente nos círculos brasileiros a suspeita de que o imperante pretendia arregimentar tropa portuguesa, de sua confiança pessoal, para sombrios desígnios no futuro próximo.

Ele fez questão de dirigir as diligências para dissolução da Constituinte e prisão de deputados, que mandaria exilar, talvez com o secreto propósito de deixar que os apanhassem, no alto-mar, os vasos de guerra de Portugal, onde seriam julgados como réus da rebelião na qual tiveram como co-autor o próprio Pedro I.

Este, formando autos com discursos e cartas interceptadas, man­dou abrir devassa no Rio para processo de sedição contra Antônio Carlos, Martim Francisco e outros, que, no exílio durante 5 anos, não puderam defender-se. Registre-se o epílogo para honra do ju­diciário do Brasil: — A Relação do Rio por acordo de 6-9-1828, encerrou o processo, decidindo não ter havido crime por parte deles.

e » *

Do labor daquela Câmara de novatos em momento conturbado num país sem qualquer experiência de métodos parlamentares, fa­lam os 5 grossos volumes de debates e documentos, agora reeditados por louvável iniciativa do Senador Petrônio Portella, quando presidia o Congresso.

A Assembléia era "constituinte" e, ao mesmo tempo, "legislativa". Por isso, depois do preparo das normas regimentais, atacou simul­taneamente o projeto constitucional e projetos de legislação ordi­nária de incontestável urgência nas circunstâncias.

Desses vários projetos, em geral úteis e oportunos, 6 chegaram a converter-se em leis, sem sanção imperial, regulando: l 9 ) o modo

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de promulgação das leis; 2°) extinção do Conselho de Procuradores Gerais das Províncias; 3°) proibição de nomeação de Deputados para empregos públicos; 4°) revogação do Alvará de 1818 sobre socieda­des secretas; 5°) seleção das leis portuguesas que continuariam em vigor; 69) instituição do governo das Províncias por presidentes no­meados pelo Imperador. Mas houve várias iniciativas outras de ex­cepcional relevo que provocaram debates fecundos, como a política de civilização dos índios; a mudança da capital para o centro do Brasil, numa cidade a fundar-se com o nome de Brasília; a insta­lação da primeira universidade; o combate ao tráfico africano e até a abolição do cativeiro e o incentivo às indústrias, etc.

O anteprojeto constitucional com 250 artigos já estava pronto desde setembro e chegou a ser discutido e aprovado, dispositivo por dispositivo, até o art. 23, quando a Assembléia foi dissolvida pelo conluio entre o Imperador e a indisciplina de militares lusitanos.

Esse anteprojeto, depois dessa tentativa da Comissão especial para elaborá-lo, foi inteiramente refundido e redigido por Antonio Carlos. Ele próprio, 17 anos depois, em discurso de 24-4-1840 na Câmara, contou como isso aconteceu:

"Eu tive a honra de ser nomeado presidente dessa Comissão, que em pouco tempo me apresentou os seus trabalhos; e eu tive a sem-cerimônia de dizer que não prestavam. Um copiou a Constituição Portuguesa, outro pedaços da espanhola. À vista da minha declara­ção, a nobre Comissão teve a bondade de incumbir-me da redação da nova Constituição.

Que fiz eu? Depois de assentar nas bases fundamentais, fui examinar o que havia em todos os códigos constitucionais, comparei-os, aproveitei aquilo que me parecia ser-nos aplicável e coordenei o trabalho. Mas 15 dias somente para um trabalho tão importante era impossível que saísse perfeito; eu mesmo o disse quando o apresentei à Assembléia Constituinte; mas lembrei que na discussão se podia ir emendando e melhorando ."

Os debates revelam que os Deputados conheciam razoavelmente as poucas constituições e as escassas doutrinas constitucionais da época e dos séculos anteriores, inclusive as que resultaram da res­tauração dos Bourbons com as práticas relativamente representativas que Luiz XVIII observara e assimilara em seu exílio na Inglaterra.

O que Antônio Carlos não quis dizer, por óbvias conveniências políticas, é que, segundo me parece, daquela comparação dos sis­temas, ele bebera largamente na Carta Política francesa de 1791 e bem pouco na de 1814. José de Alencar também insinuou isso na polêmica com Homem de Melo.

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Astutamente, pôs na cesta as publicações de Benjamin Cons­tant, bem conhecidas e citadas na própria Constituinte. Concentrou toda a responsabilidade nos Ministros e não concedeu ao Imperador a dissolução da Câmara popular. Limitou a soberania ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário, na velha linha de Montesquieu.

Desde a monografia do Barão Homem de Melo, há 110 anos, não se pode contestar que a Carta Política de 1824, embora muito melhor na forma, copiou com exceção de quatro ou cinco pontos, a substância do anteprojeto oferecido por Antônio Carlos à Cons­tituinte. Os constitucionalistas mais abalizados, depois da República, o reconheceram.

As inovações de fundo da Carta, obra do Conselho em que, provalmente, foi "magna pars", J. Joaquim Carneiro de Campos, o futuro Marquês de Caravelas, consistiram: 1°) na introdução do Poder Moderador ou "Poder Neutro", de Benjamin Constant, reser­vando ao monarca controle pessoal e completo da política, causa de todos os panfletos e ressentimentos futuros contra Pedro II; 2°) dis­solução da Câmara pelo monarca; 3°) supressão da perda da coroa pelo imperador que aceitasse trono estrangeiro, indício de que Pedro I pretendia a de Portugal; 4°) possibilidade de o Imperador perdoar a ministros de Estado qualquer pena e não só a de morte, o que inutilizaria o "impeachment".

Vê-se, pois, que a Carta de 1824 só difere, em essência do projeto Antônio Carlos, nesses poucos princípios, que visavam ins­titucionalizar o arbítrio imperial. De então para cá, nos últimos 80 anos, o Brasil, na sua crônica instabilidade política, já adotou mais 6 Constituições, além de emendá-las todas amiúde.

Mas há um fundo permanente e inalterado em todas elas, cujas raízes estão no projeto de Antônio Carlos. Os direitos e garantias com um ou outro acréscimo ou restrição, são os mesmos, que sobre­vivem a 150 anos de convulsões estruturais. A mesma a divisão tripartite dos Poderes Nacionais, as atribuições do Parlamento só amputadas pela geração atual. Os mesmos os princípios orçamentá­rios. A mesma a responsabilidade dos agentes do Executivo. As mesmas as garantias dos magistrados, ressalvadas as atuais restri­ções de caráter transitório ou que espero o sejam.

Tal a obra perene dos brasileiros ilustres que há cento e cin­qüenta anos marcaram em pedra branca uma nova idade em nossas instituições.

e * «

No nosso tempo, que não prescinde da análise marxista da infra-estrutura econômica das construções políticas, é difícil acreditar-se

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que a dissolução da Assembléia se originasse apenas do tempera­mento mórbido e contraditório de Pedro I casado à sanha e à in­disciplina de uns tantos oficiais lusitanos. O Imperador, doutras vezes, de chicote em punho, exemplou-os eficazmente sem maiores conseqüências, segundo depoimentos históricos incontestáveis.

Afinal, a Independência foi uma revolução que uniu tempora­riamente não apenas os brasileiros de todas as classes e interesses, mas também os portugueses prósperos já radicados no Brasil. Como acontece invariavelmente nas revoluções vitoriosas, alcançado o obje­tivo do movimento, dividem-se de novo aqueles que o desfecharam.

O Príncipe Regente, liberto da tutela opressiva das Cortes Lusas, já zombava do povo, que se dizia soberano, e sentia renascer a sua solidariedade aos que, como ele, eram portugueses, tanto mais quanto em Lisboa os líderes liberais e constitucionalistas haviam sido esmagados pelo reacionarismo absolutista naquele momento.

A Constituinte era formada de indivíduos de profissões liberais e intelectuais das classes médias, embora alguns historiadores con­testem que elas já existissem no Brasil de 1823. Aquelas pequenas fortunas observadas por J. Armitage possibilitaram a educação de­les, mas não lhes asseguravam meio de vida, que era buscado nos cargos e misteres por eles exercidos.

As classes opulentas nas cidades, centros nervosos da opinião, sobretudo o Rio, como capital e porto marítimo, estavam dominadas economicamente pelos portugueses, na qualidade de banqueiros, co­merciantes, abatedores de gado, comissários de açúcar e produtos do país, trapicheiros, armadores, shipchandlers, exportadores e im­portadores, negreiros, etc. Esses homens de diferentes negócios, por outro lado, eram os que mantinham contacto com os brasileiros abo­nados dos engenhos de açúcar e aguardente, criadores de gado, mineradores, enfim as classes rurais, que empregavam o braço es­cravo.

Parece-me nítido o antagonismo entre os interesses desses por­tugueses e brasileiros enriquecidos dum lado e o idealismo daqueles intelectuais, doutores, prelados, generais e bacharéis, que, segundo o historiador inglês de nossa Independência eram "ávidos de liber­dade vaga e indefinida".

Os Constituintes de 1823 nunca leram os papéis secretos de James Madison, não divulgados àquela época, nem poderiam pre­ver a análise econômica da Constituição norte-americana, feita por Charles Beard, um século depois, à base dos interesses representados na Convenção de Filadélfia.

Aqueles brasileiros da Assembléia eram legítimos representan­tes do idealismo constitucional e dos sentimentos humanos das clas-

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ses cultas, mas não refletiam os interesses da estrutura econômica, numa época em que as palavras "democracia" e "república" eram identificadas como demagogia e anarquia, que eles próprios queriam evitar, escarmentados pelas atribulações das nações espano-ameri-canas.

Era natural o alarma causado por debates em que José Boni­fácio e outros defendiam a extinção do tráfico negreiro e da escra­vidão, enfim a ruína das classes afortunadas da época.

Isso parece explicar em grande parte o rompimento entre Pedro I e os Andradas um mês após a instalação da Assembléia e a si­multânea adesão do Imperador aos portugueses comerciantes e mi­litares, solidarizados todos por muitos interesses comuns e conver­gentes, quadro que, através de várias crises sucessivas, só veio a cessar a 7 de abril de 1831, verdadeiro marco da independência, a independência definitiva e real, com a predominância dos civis e militares brasileiros sobre os adesistas lusos.

Esses homens, cuja reunião hoje comemoramos, poderiam ter sido visionários utópicos e distanciados das realidades práticas ou dos interesses materiais da época. Mas muito mereceram da Pátria, porque não fundaram apenas um Poder Legislativo, sofrendo por ele vicissitudes tantas vezes repetidas em nossa tormentosa história política. Mais do que isso lançaram as bases dum Estado de Direito, seguindo a velha vocação daqueles pioneiros rudes e violentos que abandonaram a rotina conformada da metrópole e aqui aprenderam a ser livres na terra livre até onde não podiam chegar os freios absolutistas da polícia de Lisboa. Não era possível, em 1823, o justo e ótimo equilíbrio entre a liberdade e o Direito, e ainda hoje os brasileiros descendentes daqueles bandeirantes e sertanistas, incon­fidentes e turbulentos, ainda não atingiram a autodisciplina indis­pensável à democracia.

Enfrentando riscos e sacrifícios, cárceres e exílios, tentando, errando e voltando a tentar, eles nos legaram o exemplo da tenaci­dade na busca dos ideais sem cuja flama sagrada a vida humana não se elevaria muito acima da condição animal. Reconhecê-lo é a maior homenagem que o STF lhes pode prestar nesta data.

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Discurso do Prof. José Carlos Moreira Alves, Procurador Geral da Repúbl ica

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MAIS VIRTUDES QUE DEFEITOS

A 6 de setembro de 1828 — doze dias antes de se tornar rea­lidade o Supremo Tribunal de Justiça do Império — a Relação do Rio de Janeiro, por acórdão dessa data, fazia justiça a constituintes e a populares ligados aos dramáticos acontecimentos de 10 a 12 de novembro de 1823, data em que D . Pedro I dissolvera a Assem­bléia cujo sesquicentenário de instalação se comemora. Declarava aquela Corte, a mais alta do País na época, que a devassa sobre os fatos aludidos no manifesto imperial de 16 de novembro de 1823 não provara, de forma alguma, a existência de qualquer cons­piração ou sedição.

Encerrava-se, assim, na cúpula do Judiciário do início do Pri­meiro Império, o drama político que se desenrolara de 3 de maio a 12 de novembro de 1823, e que tivera como cenário principal a Assembléia Constituinte, reunida no Rio de Janeiro, no prédio da cadeia velha.

Hoje, sopitadas as paixões, com a imparcialidade do desinteres­se e a tranqüilidade da distância, a sentença da história ratifica o acerto da decisão da Relação do Rio de Janeiro, tomada — o que muito a honra — próxima dos fatos, e ainda sob o governo do mesmo imperador.

A homenagem que o Poder Judiciário ora presta ao Poder Le­gislativo, ao comemorar o sesquicentenário de sua instalação, é o momento azado para que, no recinto da Suprema Corte de nossos dias, se complete a justiça que se iniciou na Corte Suprema dos primórdios do século passado.

A Assembléia Constituinte de 1823 não foi alvo, apenas, das críticas de Pedro I. Estas se explicam pelo calor dos embates po­líticos, ambiente avesso ao julgamento sereno. Atacaram-na, tam­bém, e acremente, historiadores que, no império, dela se ocuparam. São conhecidas as palavras de seu contemporâneo, o inglês Armitage:

"A maioria formava-se quase exclusivamente de magistra­dos, juizes de primeira instância, jurisconsultes, e altas dignidades da Igreja, sendo pela mor parte homens quin-

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quagenários, de noções acanhadas, e inclinados à realeza. A minoria era composta do Clero subalterno, e de proprietá­rios de pequenas fortunas, ávidos de liberdade, mas liber­dade vaga e indefinida, que cada um interpreta a seu modo, e guiavam-se por seus próprios sentimentos. Eram filan-tropos de coração; mas nem estes, nem seus opoentes, estavam habilitados com aptidão prática para bem exer­cerem as suas atribuições. Habitando distritos em que a sua ciência, relativamente superior, os havia feito conside­rar como oráculos, cada um se possuiu de idéias exagera­das de sua própria importância, combinada na maior parte com a mais completa ignorância da tática usada nas assem­bléias délibérantes: excetuados os três Andradas, que ti­nham sido eleitos deputados, havia entre todos mui poucos indivíduos, se é que os havia, acima da mediocridade".

Não menos acerbas as expressões de Vasconcelos Drumond: "Da Assembléia Constituinte, visto a sua composição, nada se podia esperar. À exceção de meia dúzia, era composta de moços inexperientes ou de velhos ambiciosos que não tinham fé naquilo que estavam fazendo. Para estes a in­dependência e a liberdade, contanto que houvesse um Soberano que distribuísse graças e mercês, eram coisas in­diferentes. Mas, para aqueles, a independência e a liber­dade eram coisas sacrossantas, que eles queriam mas não sabiam atinar com os meios de obtê-las. Faladores insu­portáveis, que falavam a torto e a direito, sem saber o que diziam, mas que se julgavam capacíssimos para constituí­rem uma Nação e administrarem um Estado".

Sobre a atuação da Constituinte, tudo se criticou. Profligou-se a insubmissão de alguns e a subserviência de outros ao poder im­perial; a natureza e o debate das matérias de que se ocupou; a reunião de funções constituintes e legislativas; a parcimônia da fei­tura de leis, em geral sem expressão; a demora no desempenho da finalidade precípua, a redação do texto constitucional; enfim, o próprio projeto de Constituição. Varnhagen, depois de acentuar o que se lhe afiguravam os errros do nosso primeiro Parlamento, chegou a arriscar que, se ele tivesse concluído a tarefa para a qual precipuamente fora convocado, "talvez houvera mal desempenhado, produzindo um parto informe das paixões do momento das votações, em vez de um código harmônico e homogêneo, como veio a ser a nossa atual Constituição, que ao cabo de esperanças malogradas teve o Imperador que outorgar".

A reação a este estado de coisas partiu, em 1863, de Francisco Ignácio Marcondes Homem de Mello, na candente defesa da As-

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sembléia dos primórdios da independência, em obra que resistiu ao dissolvente do tempo — "A Constituinte perante a História" — e que teve a honra de ensejar, para o autor, debate na imprensa, com outro grande espírito daquela época — José de Alencar, inova­dor em literatura, arraigado conservador em política.

Na esteira de Homem de Mello, seguiram-se, na república, historiadores do porte de Agenor Roure e de Alfredo Valadão.

Em história, faz-se justiça a uma instituição, atentando-se para sua época, para o ambiente em que atuou, para as idéias então dominantes, para as aspirações, crenças e até superstições da so­ciedade em que se constituiu, enfim, para os inumeráveis fatores que lhe compõem o momento histórico. Só à luz desses elementos é possível, de longe, em outros tempos, com outros recursos, com outra mentalidade, pesar o acerto e o erro, para verificar o lado para o qual se inclina o braço da balança.

Em 1823, quinze anos apenas da chegada de D. João VI em nossa terra, e, portanto, das primeiras providências efetivas para o progresso material e espiritual do Brasil, não se poderia almejar muito de nosso meio intelectual. É certo que os filhos das famílias mais abastadas iam estudar em Coimbra mas quando se sabe que, também na célebre Universidade portuguesa, apenas em 1805 se imprimiram as "Instituições de Direito Público" de Melo Freire, que seriam o livro básico do curso de direito natural, público e das gentes, criado sob D. José I, não se poderia esperar que lá se formassem homens aptos a práticas representativas da vida parla­mentar. Pior, sem dúvida, a situação dos que não tinham atravessado o Atlântico. Portugal, ao contrário da Espanha, não se esmerou em propiciar à Colônia as luzes da cultura. É de 20 de janeiro de 1720 o alvará que proibia imprensa no Brasil. Em 18 de junho de 1800, expedia-se aviso ao capitão geral das Minas para que repre­endesse a Câmara de Tamanduá, por ter usado de atribuição que lhe não competia, ao abrir uma aula de primeiras letras. Prelo digno do nome só o tivemos com a transmigração da família real. E foi o acaso que tornou possível, logo a 13 de maio de 1808, a criação da Imprensa Regia. No instante da retirada da família real, acharam-se, em Lisboa, caixotes com material tipográfico importado da Inglaterra, e que ainda não haviam sido desembarcados. Como estavam, vieram na armada que nos trouxe o rei, e, assim, também o invento de Guttemberg. A instalação dos cursos jurídicos em São Paulo e Olinda é de tempos posteriores. Os livros eram poucos; segundo Armitage, as fontes de instrução política se reduziam a pouco mais que a histórias da Grécia e de Roma, e o Contrato Social de Rousseau.

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Apesar de tudo, se examinarmos a composição da Assembléia Constituinte e Legislativa de 1823, veremos que ali tinham assento homens que honrariam, em seu tempo ou fora dele, qualquer colegiado. A par dos três Andradas, dela participavam Silva Lisboa, Araújo Lima, Carneiro de Campos Montezuma, Nicolau Vergueiro, Nogueira da Gama, Carvalho e Melo, Ferreira França, Martiniano de Alencar, Aguiar de Andrada, José Joaquim da Rocha, Muniz Tavares — nomes que, à força de seu valor, quanto mais se amplia o espaço que deles nos separa, tanto mais cresce em nós a admi­ração pelo que fizeram, no tempo em que agiram, sob as condições em que viveram. O próprio José de Alencar, que não poupou a Assembléia, não teve, porém, sua razão toldada a ponto de deixar de reconhecer a exatidão da assertiva de Homem de Mello: "o que havia de mais ilustrado no país achou-se reunido no seio da Constituinte".

De outra parte, também é injusto que se diga que, do balanço dos resultados do trabalho do Parlamento de 1823, avultam os erros e as demasias, a falta de habilidade política e o infrene amor às discussões estéreis. É comum à crítica realçar os defeitos, deixando, na sombra, as virtudes. Basta, entretanto, que se atente para o conjunto das circunstâncias, e se verificará, então, que não era lícito desejar mais do que se fez. A Assembléia, além de Constituinte, era Legislativa. Em ambas as esferas de atuação, em pouco mais de seis meses, com os percalços da falta de tradição das discussões parlamentares, em meio atrasado e pobre, na exaltação nacionalista dos dias que se seguiram à independência, em pleno desenrolar da guerra de libertação, ainda assim deixou ela frutos profícuos de seu esforço. Ponham-se de lado os debates sobre questiúnculas — não há Parlamento que os não tenha — justifique-se a exacerbação na afirmação de poder em face do trono — era a reação da época à monarquia incontrastável —, não se lhe jogue às costas o peso da responsabilidade solitária pelos atritos com o imperador — nas virtudes deste, não se destacava o tato político —, e ver-se-á que o que resta de positivo não é de menosprezar: projeto de constituição que serviu de base à carta outorgada em 1824, e que ensejou, na apreciação de seus artigos iniciais, debates que lhe honram os partícipes; atividade legislativa que não se pode aviltar, pois a ela devemos leis como a que fixava a legislação portuguesa que continuava a vigorar no Brasil independente, e a que dava forma nova aos governos das províncias, além de projetos como o que regulava a liberdade de imprensa; ademais, contribuições sérias para a solução de problemas do País, como as memórias sobre a criação de universidades, a extinção da escravatura, a mudança da capital do Império para o interior, a catequese e a colonização dos índios.

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Meus senhores:

À distância das atribulações dos primeiros dias da independência, das necessidades e aflições daquela época das paixões e das fraquezas da nacionalidade no nascedouro, não podemos regatear aos precursores que foram os constituintes de 1823 o mínimo a que fazem jus — a reverência do nosso reconhecimento.

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DISCURSO DO PROFESSOR

JOSAPHAT MARINHO

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O PAPEL DO PARLAMENTO NOS DIAS DE HOJE

— Sr. Presidente do Supremo Tribunal Federal, Sr. Presidente do Congresso Nacional, Sr. Presidente da Câmara dos Deputados, Sr. Procurador-Geral da República, Sr. Presidente do Tribunal Federal de Recursos, Sr. Presidente do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados de Brasília, Srs. Ministros do Supremo Tribunal Federal, demais Membros do Poder Judiciário, autoridades civis e militares, Srs. Membros do Congresso Nacional, meus Colegas Advogados e Membros do Ministério Público, Senhoras, Senhores:

Esta sessão especial, Srs. Parlamentares, é um ato de cortesia e um gesto de alta compreensão política, entre poderes constitucionais do Estado.

Com civilidade exemplar, o Supremo Tribunal Federal, simbolizando o Poder Judiciário, reúne-se extraordinariamente para comemorar a instalação, há cento e cinqüenta anos, da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, que marca o nascimento da instituição parlamentar no País. Ao mesmo tempo, guardando fidelidade à dimensão de suas nobres atribuições constitucionais, e embora estranho ao calor elogiável das competições partidárias, de que é e deve ser o Congresso Nacional o centro institucionalizado, o Supremo Tribunal Federal testemunha e salienta, com esta solenidade, a importância do princípio de Poderes independentes e harmônicos. Para fazê-lo, na plenitude de sua tradição, esta Corte, que Rui Barbosa um dia chamou, com admirável precisão, "o conselho nacional da razão jurídica", quis que à sua manifestação se associasse a dos advogados, aqui presentes pelo Conselho Federal e pelo Conselho do Distrito Federal.

Assim, os que neste austero recinto travamos diariamente o diálogo democrático, buscando, através da divergência, a exata aplicação da lei aos fatos, unimo-nos, como espíritos livres, no louvor à instituição que elabora as normas jurídicas.

Pouco importa, ou importa para a grandeza do mecanismo institucional, que Juizes e Advogados, no exercício de suas tarefas, divirjam de leis e códigos, emanados do Poder Legislativo. O que

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nasce da controvérsia, como a lei na sua expressão genuína, através do contraste de opiniões é que pode desenvolver-se com segurança. Somente teme o debate quem, decidindo sem os conselhos do juízo crítico, confunde arbítrio com justiça, precipitação com firmeza, dogmatismo com verdade pesquisada.

O Congresso Nacional, evidentemente, não teme e não deve temer a crítica. Sede das correntes de opinião contrapostas, tem experiência mais do que qualquer outro Poder de que só se delibera seguramente, só se alcança a verdade tranqüila conferindo idéias divergentes. Por isso, se a Casa do Parlamento é a abóbada em que ressoa a controvérsia, também ali, e por isso mesmo, reside o cenário maior de compreensão e de tolerância. Exatamente porque, cessadas as divergências pela decisão da maioria, subsistem os juízos opostos, mas domina a compreensão entre todos os membros do Poder representativo.

É certo que Agenor de Roure observa que o medo desempenhou papel extraordinário na obra da formação constitucional do Brasil. Depois de século e meio, porém, de experiências, de cultura, de mudanças, não há por que admiti-lo. Nesse largo período, entre erros e vicissitudes, o Poder Legislativo afirmou-se, desde o princípio, uma instituição soberana, repelindo a submissão. Lembre-se que, ainda nos primeiros dias de funcionamento da Assembléia de 1823, Antônio Carlos, por debaixo das palavras amenas e elogiosas da fala do trono, sentiu o marulhar de ondas que se aproximavam e, no voto de graças ao Imperador, assinalou: "a Assembléia não trairá os seus comitentes, oferecendo os direitos da Nação em baixo holocausto ante o trono de V. Majestade Imperial, que não deseja e a quem não convém tão degradante sacrifício".

Esse exemplo como que valeu de estímulo ao Poder Legislativo. Nos seus momentos de grandeza, como nos seus instantes de crise, pôde sempre, coletivamente ou através de vozes destacadas, fazer válido o princípio de poderes harmônicos e independentes.

Ainda no Império, os fatos se multiplicaram em confirmação dessa atitude, e muitos deles acabam de ser recordados nas primorosas orações proferidas pelo eminente Ministro Aliomar Baleeiro e pelo ilustre Procurador-Geral da República. Dessa época, lembra também Otávio Tarquínio de Sousa, na sua obra sobre Bernardo Pereira de Vasconcelos, que a Assembléia Legislativa, sempre que necessário, interpelava Ministros de Estado, inclusive Ministros Militares, como o fez em 1829 a propósito de fatos ocorridos em Pernambuco.

Na República, o quadro não mudou, ainda que as crises se agravassem da primeira à presente Constituição.

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De qualquer sorte, o essencial, que merece assinalado nesta reunião, é que o Poder Legislativo tem, na riqueza de seus anais, figuras, documentos, fatos que o credenciam ao respeito de todas as gerações, ainda que justificando, como todas as instituições, as críticas adequadas.

Sob a Constituição de 1891 não é preciso que se relembrem os fatos que deram realce à posição do Poder Legislativo, em debates em que sobressaiu a voz oracular de Rui Barbosa, no anseio de dar às novas instituições a organicidade própria a promover o desenvolvimento social, político e econômico do País.

Lembre-se o parecer, de 1930, do Senador João Mangabeira, em favor da viúva de um guarda civil, peça de caráter jurídico e político que, quarenta anos decorridos, pode ser repetida com absoluta atualidade, tamanha a visão com que o parlamentar descortinou os problemas de interpretação das leis e de defesa dos proletários. Como esse, outros tantos documentos enriquecem os anais do Congresso, revelando saber, cultura, visão de estadista dos representantes eleitos.

Na vigência da Constituição de 1946, entre tantos fatos que poderiam ser rememorados, atente-se apenas para a virilidade com que o Congresso Nacional, em determinado instante, exerceu o poder de investigação parlamentar. Fê-lo com tanta seriedade e com tanto vigor que houve momento em que o poder econômico, ameaçado pelos esclarecimentos pesquisados, veio a este Supremo Tribunal Federal, através de mandado de segurança do Sindicato dos Bancos do Rio de Janeiro. E esta Casa, coerente com seus nobres deveres jurídicos e políticos, negou o mandado que pretendia impedir a publicação de determinados documentos considerados sigilosos, e assegurou à representação nacional o poder de investigação, seguindo o Plenário o lúcido voto do Relator, eminente Ministro Luiz Gallotti.

Mais recentemente, entre os documentos que honram a vida pública nacional e dignificam os anais de qualquer Congresso, vale assinalar o sereno e impressionante discurso com que, em 1969, o Senador Milton Campos, sem deixar de ser solidário com o seu partido, analisou a crise brasileira, fazendo as ressalvas de sua consciência liberal.

Esta, em linhas gerais, é a evolução do Poder Legislativo, que o Supremo Tribunal, tão oportunamente, consagra nesta solenidade.

Mas, Srs. Parlamentares, no curso dessa evolução se tem assinalado que o Congresso, hoje, tem mais poder de controle e cada vez menos função légiférante. Não é hora, neste ato, de examinar a exatidão ou os limites dessa tese. É oportuno, entretanto, dizer que, se num dado instante, de modo especial entre a Primeira

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e a Segunda Grande Guerra, muitos fomos conduzidos — sobretudo os da minha geração — a admitir a procedência ampla dessa diretriz, também é exato que os horrores apurados nos regimes totalitários conduzem, hoje, os homens de todas as gerações a rever pontos de vista. É que, como escreveu, no último de seus livros, Georges Bernanos, buscando o desenvolvimento econômico, com o esquecimento da liberdade, o a que estávamos chegando era à "igualdade total na servidão total". Daí a necessidade de rever diretrizes e rumos, para que o Congresso Nacional, cedendo evidentemente naquilo em que o desenvolvimento técnico impõe ao legislador permitir a participação de outros órgãos, inclusive na atividade legislativa, desta, entretanto, não abdique em seus pontos essenciais.

Há pouco, aliás, num livro primoroso, em que analisa as instituições do Ocidente em suas duas fases, o Professor Maurice Duverger assinala que a matéria de direito civil, de direito penal e de direito político, sobretudo, apesar das transformações ocorridas no Mundo, continua a ser melhor disciplinada pelo Parlamento do que através de decretos-leis inspirados e elaborados por autoridades técnico-administrativas.

Já vai longe o dia em que, nesta Casa, — foi em 1892 — na defesa de habeas corpus para os presos e desterrados do governo Floriano, Rui Barbosa advertiu: "Os tiranizados carecem de um recurso, se lhes roubais o da legalidade, condená-los-eis ao da insurreição. Quando a decepção pública já não puder levantar as mãos para os tribunais, acabará por pedir inspirações ao desespero".

Cumpre notar, Srs. Parlamentares, que nem sempre os tribunais podem acudir à decepção pública, dadas as limitações que são impostas à sua competência, pelas leis estabelecidas. Cabe, portanto, ao Congresso suprir as lacunas, corrigir os erros, revogar ou alterar as leis inadequadas e injustas, para que a decepção pública não se converta em desespero.

Para o exercício dessa nobre tarefa, o Poder Legislativo conta, sem dúvida, com a opinião geral do País. Precisamente por isso estamos aqui reunidos: a voz judiciosa da Magistratura, a palavra fiscalizadora do Ministério Público e o verbo combatente do Advogado, no louvor à instituição que simboliza a essência do regime representativo. Acredito não usurpar prerrogativas na de­claração de que a esperança geral da Nação é a de que o Congresso não falte aos seus graves deveres.

Recorda Edouard Herriot que, numa agitada sessão da Câmara Francesa, quando Lamartine anunciava a formação de um governo provisório, um homem do povo exclamou: "Nous voulons un

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gouvernement sage, modéré, pas de sang, mais nous voulons la République". Neste instante, na esteira do lúcido pensamento do homem comum da França, podemos dizer, os advogados brasileiros: queremos um Governo sábio, moderado, apto a satisfazer as exigências de nosso tempo, da ordem política livre ao desenvolvimento técnico, mas queremos o Parlamento eficiente, prestigiado, soberano, adulto.

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