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Estação Literária

Londrina, Volume 10B (Suplemento: Espaço Criação), p. 1-7, jan. 2013 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Suplemento: Espaço Criação

Revista Estação Literária. Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina: Londrina. Vol. 10B (jul–dez). on-line: http://www.uel.br/pos/letras/EL/, 2013. 287 f. Publicação Semestral Desde: Março 2008 ISSN: 1983-1048 Revista Acadêmica de Estudos Literários e Culturais

CDU 82(05)

Jogo dos Sete Erros

Pedro Tomé “Erre à vontade”, batizaram-me. A cada passo me bifurco. Num jogo de forca, busco o termo e me arrisco ao erro, ao ermo. Tremores sísmicos despertam uma cisma renitente. Late, late, late o cão confuso. E a porta que não para no batente. A cada passo me induzo ao erro. Cadafalso. Mas há um cabedal que se ganha no erro, no ato. A cada passo me dilato. Uma cadeira de balanço soluça e range meio cadavérica, subindo e descendo, movimento manso. Numa sacada, em qualquer canto da América. “O seguro morreu de velho”, dizem, e a expectativa de vida nunca erra. Mas agora a cadeira está vazia e – veja só! - o movimento está nos pés de um ser errante. Quixote atrás de cata-vento ou cão seguindo um rastro de pólvora - latitude de lugar nenhum, longitude cento e oitenta e um. É hora de amarrar o cadarço, a forca se aperta e eu me bifurco. Longitudes, latitudes, cão – é uma convulsão centrífuga que me vem ao tímpano no miolo da noite e berra: “Erra! Erra! Erra!”

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A LOUCURA DO VAZIO

Tatiana de Freitas Massuno

“o mudo Sentimento de se desconhecer,

E a confrangida comoção que nasce De sentir a loucura do vazio” (FAUSTO, PESSOA).

A mão entrecortada de impulsos, carente de apoio, tomba ao longo do corpo esguio. Mais um espasmo. Mais uma vez tudo estremecia. Não deveria... não, não deveria... E agora? Como conviver com o zumbido intermitente? Zumbido agudo, incoerente, esganiçado. Zumbido que pedia espaço, não, não pedia, adentrava-se por entre a poeira acumulada. Esse zumbido que aos trancos ganhava corpo, fisionomia. Esse zumbido que era agora o quarto inteiro. As paredes acinzentadas oscilavam acompanhando a freqüência sonora. Instintivamente, levou as mãos às orelhas. Apertou-as contra as orelhas o quanto pôde. Até que não mais agüentou e suas mãos, como autômatos, dirigidas por vontade própria, vontade de serem apenas mãos, sem corpo, mas mãos, cumprindo o destino simples de serem isto: mãos, começaram, inicialmente, a dar leves pancadas nos lóbulos. A velocidade das mãos tornara-se mais intensa, tão intensa que quando se dera conta o zumbido quase desaparecera, ou se multiplicara, já não sabia. O quarto minúsculo diminuíra de tamanho, nem mais o quarto agüentava a expansão exorbitante dos sons, que em um espaço tão pequeno se entrecruzavam de forma tal que quase se amalgamavam em um som único, intenso, indiscernível ao ouvido. Que era aquilo, afinal? O quarto como que impaciente, não deixaria aqueles sons se amplificarem até explodirem com tudo, até estraçalharem vidraças e espelhos, não, não esperaria pacientemente até que tudo se extinguisse e voltasse a reinar a paz, se é que era isso possível. Acabaria com aquilo e seria agora! As paredes tornavam-se cada vez mais próximas obedecendo o intuito do quarto – o som seria comprimido e isso seria agora! Subitamente retomou o controle de suas mãos. Percebeu. O seu destino estava a instantes de ser selado, um, único, sem desvios, sem retornos, sem portas escondidas no fim de um infinito corredor. Não tinha escolhas. Era correr e se aventurar pelas ruelas no meio da escuridão que já há muito ganhara força, ou seria ali mesmo vítima da explosão que se anunciava. Um segundo mal calculado e seria ali mesmo, diria adeus ao quarto, às paredes que já quase perdiam a dureza de parede, ondulavam incessantemente ao som de uma música que talvez somente elas compreendessem, diria, ainda, adeus ao quadro. Na parede, a censurá-la. Durante vários segundos seus olhos se fixavam num quadro que parecia sugar toda a vida do ambiente. Aquele quadro, recordação única. Aquele quadro que agora desviava a sua atenção para o que se anunciava. Tudo anunciava a iminência de algo, sentia a impaciência da cama a balançar como se quisesse avisá-la. Pôs-se em posição de fuga, mas sentiu, sentiu a impotência das pernas

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que estrebuchavam pedindo redenção por todo o esforço, inútil. Tombou. Deixou-se ser deitada no chão frio. Deixou seu corpo se acalmar, acalentando-se no cimento. A rigidez do cimento trazia conforto ao corpo que, aos poucos, recuperava-se do estrondo. Encostou a orelha no chão e ouviu, ouviu...e nada. Não tentaria ainda levantar. Talvez fosse cedo. O melhor seria aos poucos deixar o corpo acostumar-se a ser um corpo, novamente, um corpo seu, que apenas respondesse. Não resistiu aos segundos que se atritavam, delongando, e resolveu aventurar-se. Não seria ainda sensato começar a correr. Isso seria ir além dos segundos que lhe eram dados. Ajoelhou-se lentamente. Suas mãos avidamente se aproximavam, queriam que rezasse? Que exorcizasse de vez tudo que há pouco ocorrera? Tentou. Revirou a memória, tentando encontrar ao menos uma oração que coubesse naquele instante. Proferiu o primeiro som, a primeira sílaba que carregaria atrás de si as outras que faltassem, as sílabas cedendo lugar umas às outras, encadeando-se numa seqüência sonora que, sim, fizesse sentido. Pronunciou a primeira sílaba. Apenas. A segunda se recusou a sair. Interrompeu-se. Não sabia qual era essa outra sílaba que viria, na verdade, não sabia encadear os sons, formando palavras, que deixariam de ser sons? Retornou à primeira sílaba. Nada mais vinha depois. Novamente tentou. E nada. Pôs-se a repetir monocordicamente a mesma sílaba e se imaginou a rezar. Talvez estivesse... Ao som da mesma sílaba proferida à exaustão pôs-se lentamente a levantar até que estava, enfim, ereta. Calara-se. Calara-se e escutava o silêncio profundo que exalava do quarto. Ouvia, agora, somente o som de sua respiração. O ar que entrava e saía, entrava e lá estava ele novamente fora, só para entrar de novo, e mais uma vez, o ar que balançava os pêlos das narinas. Adentrava mais intensamente como se não soubesse mais ser fora, precisava estar, ali, nos pulmões esfomeados que se expandiam. O ar entrava numa enxurrada, acumulando nos pulmões moléculas que se debatiam, desesperadas pois comprimidas, queriam navegar no espaço, mas não podiam, presas, encurraladas. Em um só fôlego, expirou todo o ar que pôde, deixando-se oca, vazia. Mal o ar saía novas moléculas pressionavam as narinas que entupiram, bloqueadas. Novamente o ar entrava por entre brechas. Abria caminho, inflando-lhe os pulmões como bolas de gás, pressionando os órgãos que, sem opção, sim, tinham que se reacomodar nesse ambiente inóspito de clausura. O coração. Sentira-o pressionado, quase expurgado de seu corpo. Queria bombear livremente, seguindo o curso que lhe fora designado, mas obstaculizado, precisava de mais força, e sempre mais, porém, essa força corpo nenhum possuía. Buscava de todas as formas continuar seu bombear incessante, orquestrado, de nuances conhecidas, de sons que se reconheciam e pacificamente um após o outro mantinham o ritmo sedativo de máquina que funciona sem empecilhos. Ouvira seus batimentos. Tornavam-se fracos, esparsos. Ouvira-os no fundo de uma caverna escura, um ali outro acolá, sem o ritmo apolíneo de uma construção. Os batimentos arrastavam-se randômicos, preparando paulatinamente o momento em que, enfim, poderiam simplesmente decretar: é isso! E desafogados do esforço hercúlio de serem batimentos em um corpo catatônico, pudessem se esvair no ar, se aglomerando à massa amorfa que rodeia os corpos. Talvez. Mas não agora. De uma só vez, pressionou o ar para que saísse, e os lábios até então cerrados se entreabriram e lá se foi. Todo o ar escorria de si.

Os batimentos aceleraram, quase que instantaneamente. Ouviu-os mais

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regulares, menos espaçados, normalizando-se nos segundos que passavam. Seu corpo voltava a si. Deixou-se cair na cadeira mais próxima. Seus membros soltos balançavam como se um vento os impedisse de ser simples braços parados. O vai e vem dos braços...embalada pelo movimento das ondas da praia, boiando e boiando, percebendo que era carreada de lado a outro numa monotonia tão pacífica que sua maior vontade era mergulhar e se deixar soterrar por esse sentimento de alegria calma e branca. Preparou-se para o mergulho, quando, sobressaltada, percebera um som longínquo, abafado. O som crescia e crescia, rufar de tambores a bombear coragem antes da batalha. O som crescia e crescia, fazendo vibrar os tímpanos. A seus ouvidos retornava uma sensação familiar. Novamente violentados. O som crescia e crescia, a realidade do quarto se impunha. O lustre tremeluzia como se percebesse o que se aproximava, vindo de terras longínquas, inescrutáveis. Sentia o quarto todo tremer como se perpassado por estremecimentos de terra. Incontrolavelmente fechou os olhos. Uma profusão de cores entupiu-lhe as retinas e suas pálpebras estremeceram involuntariamente. O som crescia e crescia, ecoando por todo o seu corpo. Todo seu corpo latejava como se minúsculas agulhas penetrassem toda a extensão da pele. Contorcendo-se de dor, abrira lentamente os olhos. Fixou-os no lado oposto do quarto. O quadro. Olhos que fixavam-se ali. Aqueles olhos que a encontravam onde fosse, medindo a dimensão de seu corpo, perscrutando seus atos. Pareciam sugá-la, atraí-la. Levantou-se, tomou o quadro nas mãos, olhou os olhos pela última vez. Num só ímpeto, atirou o quadro ao cimento.

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FOI AQUI

Dante Gatto

Quando acordou no dia seguinte, foi a primeira lembrança que lhe bateu na consciência. Repetiu para si mesmo: “Foi aqui”. Havia um acento inédito nessas palavras. Levantou-se e não pensou mais no assunto. No dia anterior, voltando para casa, de carro, deu com a inscrição no muro recentemente caiado. “Foi aqui”. Letras garrafais, trêmulas... “O que terá acontecido ali?” Riu alto o carona. Ele riu também, dando o assunto por encerrado.

Acabou por voltar pelo mesmo caminho no segundo dia. Estava sozinho desta vez. Os dias que se seguiram também. Não mais sorria, no entanto.

Lá pelo décimo dia, o mesmo amigo vinha com ele em silêncio e estranhou o fato dele diminuir a velocidade naquele ponto do caminho, mas não disse nada. Passaram-se alguns dias e ele resolveu tomar uma cerveja no bar Independência no outro lado da avenida, próximo à perturbadora inscrição. Sentou-se à mesa, na calçada, mas não se sentiu confortável. Tomou uma cerveja, sozinho e voltou para casa, taciturno.

O bar Independência tinha mesas dispostas na parte superior, exatamente sob a construção que exibia duas portas de ferro, grandes, abertas para a rua, a atender os passantes. Construção modesta. O garçom por vezes esquecia os poucos fregueses lá em cima. Era preciso então gritar e lá vinha ele, escada acima, equilibrando garrafas e copos. Pois bem, ele foi aninhar-se lá em cima. Tinha uma vista privilegiada para o muro que portava a referida inscrição. Tomou duas cervejas, vagarosamente. A segunda até ficou pela metade. Esquentou.

A mulher estranhou o atraso e o cheiro de cerveja. O primeiro atraso depois de tantos anos juntos... Ele apenas respondeu um seco “não foi nada”. Passou.

Dormiu mal. Sonhou imagens inteligíveis. Resolveu passar pelo local indo para o serviço, apesar do desconforto que isto significava por causa do trânsito. Na volta, à tarde, procurou a sua mesa no bar Independência. O dia fora de espera e angústia em que havia esquecido de práticas rotineiras. Os colegas olharam-no com assombro. O garçom trouxe-lhe a cerveja... duas, três, quatro. Desta vez a mulher reclamou, quando chegou em casa. Então ele contou que foi beber. A conversa foi longa, mas ele foi monossilábico todo o tempo. Ela falou do casamento, da morte do pai, da bebida, da companhia dele, para ele ligar quando fosse atrasar, para levá-la ao bar. Passou.

Os dias se seguiram bastante iguais. Procurou não parar no bar. A inscrição estava lá, vermelha, viva.

Seu colega, aquele mesmo da carona do primeiro dia, sem mais nem menos desandou a falar do assunto, no escritório, e conquistou o interesse de todos. Levantaram infinitas conjecturas para o que teria acontecido ali: possibilidade de um amor desfeito; uma conquista inesperada; uma idéia brilhante, esdrúxula; sexo ocasional, violência etc. Ele se sentiu muito mal. Engoliu tudo aquilo como uma enorme heresia. Sentiu-se invadido, apesar de que não falavam dele, nem sequer supunham as suas inquietações. Fugiu para a sua mesa. No final do expediente, resolveu dar uma paradinha no bar Independência. Foi uma grande

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surpresa quando chegou lá em cima e encontrou todas as mesas ocupadas. Chamaram-no. Eram os colegas da repartição. Puxaram uma cadeira para que ele se acomodasse. Falavam da inscrição, riam muito, sem perceber o extremo desconforto que ele não conseguia reprimir. Um a um foram saindo, com o avançar da noite, e ele ficou até que não restasse mais ninguém.

A mulher recebeu-o, abatida. Chorou. Ele não foi trabalhar no dia seguinte. Numa sexta-feira chegou em casa já de madrugada, bêbado, cheirando

perfume de mulher. Ela não disse nada. Nenhum esboço de defesa apesar de ter sido o perfume de alguém que o ajudou a descer as escadas do bar independência.

Recebeu uma advertência por escrito da diretoria. Chamaram-no para conversar, mas ele ficou maravilhado com o vermelho da almofada de carimbo na mesa do chefe e não disse nada.

Numa manhã, desviou-se do caminho e estacionou em frente do muro pichado. Nunca tinha estado tão perto. Percorreu os dedos sobre a tinta vermelha e foi tomado por um estranho assombro. Chorou longamente, como nunca havia feito, nem nos momentos mais trágicos da sua vida. O garçom do bar Independência achou melhor socorrê-lo, mas foi inútil. Então ele pediu que lhe trouxesse uma cerveja e ficou sentado no chão, sob o sol forte e dormiu recostado a uma árvore.

Começou a apresentar sinais de instabilidade emocional. Afastaram-no do trabalho para tratamento. Passou a beber com assiduidade. A mulher resolveu deixá-lo numa manhã em que ele parecia totalmente curado. Ela preparou as malas, recolheu objetos, levou-os ao carro, sem que ele desse conta de nada: estava absorto com uma caixa de lápis de cor. Quando ele se deu conta que estava sozinho, achou até bom. Teria todo o tempo do mundo para fazer o que queria. Foi caminhando ao bar Independência. O garçom, fechado o bar, levou-o para casa num carro emprestado por um freguês.

Três dias depois ele foi internado num Hospital público com insolação, desidratação e catatônico. Viveu ainda alguns anos, indiferente ao mundo a sua volta. Raras vezes, numa excitação nervosa, repetia as palavras “foi aqui”.

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SOBRE OS AUTORES

Pedro Tomé Bacharel em Direito

Mestrando em Letras Universidade Estadual de São Paulo

E-mail: [email protected] Tatiana de Freitas Massuno Doutoranda em Literatura Comparada Universidade Estadual do Rio de Janeiro E-mail: [email protected]

Dante Gatto

Professor Doutor Universidade do Estado de Mato Grosso

E-mail: [email protected]

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