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SUMÁR IO

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 35, fevereiro de 2005 - 5

Editorial

Ciência & TecnologiaTecnologia e políticaGerd Bornhein

Universidade, produção científica e aderência social:a indissociabilidade e a contra-reforma do ensino superiorJosé Henrique de Faria

Estado e terceiro setor: os (des)caminhos da nova parceria públicoe privado na EducaçãoJailson dos Santos

Reforma universitária e política de ciência e tecnologiaFernando Miguel Pacheco Chaves

Choro ou luta?Osvaldo Coggiola

Memória do Movimento DocenteLuiz Carlos Gonçalves LucasEntrevista: Luiz Carlos Gonçalves Lucas

Educação e CulturaO financiamento da educação superior no governo Lula: uma loteria?Nicholas Davies

Expansão de vagas na UNESP – da utopia à realidade“a geografia da irresponsabilidade”Milton Vieira do Prado Junior e Sueli Guadelupe de Lima Mendonça

Pasolini: Trinta anos, este ano!Paulo B. C. Schettino

Economia política do comércio internacional de drogasOsvaldo Coggiola

ResenhaLideranças do Contestado: A formação e atuação das chefias caboclas(1912-1916)

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DF, Ano XV, Nº 35, fevereiro de 2005 - 9

Procurei mostrar em outro lugar1 que a lutaa favor do meio ambiente, analisada sobum prisma filosófico, encontra o seu ponto

de partida na distinção entre dois tipos derazão antagônicos. De um lado, encontramos arazão instrumental, elaborada no percurso Ga-lileu-Descartes-Newton, e que constitui a basecientífica da futura revolução tecnológica, e deoutro lado, a linha que começa em torno deMontaigne e se estende a Rousseau e Goethe2 ,e faz a defesa de um pensamento não manipu-lador da natureza. Retomo agora essa distinçãopara tecer algumas consideraçõesque se referem, principalmente, àsituação atual do problema, ouseja, o seu deslocamento para asrelações entre tecnologia e política.

Começo com algumas observa-ções, que a rigor prendem-se maisao nível da constatação. Em pri-meiro lugar, ressalte-se de queaqueles dois tipos de razão apare-cem concomitantemente, numacoincidência que apresenta as cara-cterísticas de um problema degrandeza maior. Desconheço a

existência de um trabalho que procure eluci-dar as implicações dessa concomitância. Aúnica interpretação que não pode ser aceita,ainda que tacitamente presente nas Históriasda Filosofia, é a que relega a questão ao escrú-pulo subjetivo dos filósofos, ou mesmo ao des-compromisso da casualidade histórica.Contraisso, deve-se afirmar que o que está em causa éa própria natureza da razão; só o reconheci-mento de que há uma história da razão permi-te esclarecer o porquê dessa cisão que se situanas bases e no percurso da cultura moderna.

Em segundo lugar, parece queessa cisão, em sua origem, nãoapresenta as aporias de uma con-traposição, o que não deixa de sercurioso.Pois tudo se passa como seas coisas acontecessem amparadasem algum tipo de necessidade. Eassim de fato é: tudo se prende àrealização do projeto burguês.Não é difícil perceber que a ques-tão se deixa associar a outros fato-res introduzidos na mesma época,como, por exemplo, à idéia de queo conhecimento é uma forma de

Tecnologia e política*

Gerd Bornhein

Professor da UFRJ (in memorian)

A luta a favor domeio ambiente,

analisada sob umprisma filosófico,

encontra o seu pontode partida na

distinção entre doistipos de razão antagônicos.

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poder, ou ainda a essa outra grande novidade, aacepção burguesa da propriedade privada.Nesta perspectiva de consideração, tudo gira-ria em torno dos modos de apropriação e deseus limites

Terceiro ponto.O conflito só se torna adul-to no século XVIII, com Rousseau.É entãoque começa a delinear-se o tom defensivo quecaracteriza toda a política a favor da defesa domeio ambiente desde então. Ou seja: o espetá-culo da construção da história parece total-mente entregue às forças transformadoras darazão instrumental.E tais forças tendem a des-respeitar, como é notório, qualquer limite,qualquer forma de autocontrole. Elas sãoconstituídas por um complexo de fatores quese estende do individualismo capi-talista à suficiência por assim dizerfatalista das inovações tecnológi-cas. E é em face dessa verdadeiraavalanche, cega aos limites entretransformação e depredação, quedeve educar-se a consciência críti-ca; daí o seu caráter defensivo.Com outras palavras: a consciênciacrítica debate-se dentro de umparadoxo: ela se quer atuante, maschega tarde demais, e essa talvezseja a condição de seu próprio vi-gor. Normalmente, o protesto se faz alicerçadona catástrofe. Nem é preciso lembrar, comoexemplo, esse escândalo maior que é a situaçãoda Floresta Amazônica.

Em último lugar o seguinte. A gravidade dasituação permite entender a facilidade com quese instaura uma certa consciência maniqueísta,que joga as duas formas de razão uma contra aoutra, e termina atolada em sua própria ingenui-dade.Contra esse maniqueísmo faz-se necessárioentender muito bem a importância e a necessida-de da razão instrumental. Basta lembrar que sema ciência e a tecnologia inviabiliza-se qualquerpossibilidade de enfrentar os problemas maiscruciais da sociedade contemporânea. A questãotoda está aqui: como pensar essa situação semincidir na pretensão de uma novidade inócua?

Prossigamos retomando uma afirmação fei-ta há pouco. Se a cultura burguesa, já a partirde seus inícios, desenvolve dois tipos de razão,e não obstante o fato de que essas duas razõesterminam por se opor e entrar em conflito, tal-vez se possa avançar que deve existir uma for-ma de complementariedade entre ambas. Isso,mesmo na hipótese de se afastar qualquer vis-lumbre de síntese superadora. Pois em realida-de, longe de qualquer indício e superação, oque se observa é o agravamento do conflito.Acontece que a complementariedade não é in-conciliável com a idéia de conflito, ela é atémesmo a condição da própria possibilidade doconflito. Digamos então que todo o problemase concentra no modo como se verifica a com-

plementariedade, ou no modocomo se verifica o conflito.

Além disso, observe-se o fatode que o problema evolui, ele já seinstitui histórico, e passa por cer-tos deslocamentos. Assim, a con-comitância aparentemente exteriordos dois tipos de razão se arma noconflito, como foi dito, apenas noséculo XVIII. E o nosso séculoassiste a um novo deslocamento daquestão, cujo significado sequerpode ser exagerado. Esse novo

deslocamento prende-se visceralmente à histó-ria da razão, mas, de certo modo, ele a deixapara trás, tornando aquela história uma ques-tão até mesmo acadêmica. O novo desloca-mento fez com que o conflito se transferissepara os domínios da tecnologia e da política.Tecnologia e política são os caminhos que arazão encontrou para dar plena expressão aoconflito que vinha se armando desde séculos.Digamos, então, que a razão se extroverte, serealiza, se objetiva, em termos de revoluçãotecnológica e de revolução política. E é dentrodestas novas coordenadas que deve ser coloca-da hoje a questão da complementariedade.Uma breve análise permitirá mostrar como es-sa complementação se estrutura hoje com ne-cessidade. O pressuposto da análise está na

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Tecnologia e políticasão os caminhos quea razão encontrou

para dar plenaexpressão ao conflito

que vinha se armando desde

séculos.

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observação de que tecnologia epolítica são dotadas de uma dina-micidade que lhes empresta umcaráter ambíguo, no sentido deque, a partir de um certo momen-to, elas se libertam do projeto hu-mano inicial, no sentido de adqui-rirem certa autonomia.

A apreciação do estado da tec-nologia contemporânea, conside-rada principalmente do ponto devista de sua inserção social, leva aconstatar com facilidade que ela é habitada poruma espécie de crise; crise que custou a mani-festar-se, mas que a determina desde a sua raiz.

A análise de Heidegger sobre aquestão da técnica revela-se aquielucidadora3. Diz ele que já não sepode explicar a técnica atual damesma forma que se explica a téc-nica tradicional. Esta última sedeixa aclarar,segundo a maioria deseus intérpretes, a partir de parâ-metros biológicos, como extensãodo corpo humano, o que faz datécnica essencialmente um ins-trummentum. Os instrumentos

são construídos pelo homem e estão a seu dis-por. O espaço em que eles se movem reduz-seà intimidade da dicotomia sujeito-objeto, detal forma que o instrumento se faz dócil aodomínio manipulador do sujeito. O que carac-teriza o instrumento tradicional é justamenteesse estar totalmente subordinado ao sujeito.

Com a tecnologia atual as coisas se compli-cam, e a singeleza do esquema antigo já nãofunciona. Ou seja, tudo o que compõe a imen-sa máquina tecnológica, a partir de certo pontode sua evolução, desprende-se da dicotomiasujeito-objeto e adquire certa autonomia; é co-mo se a própria tecnologia passasse a coman-dar o seu destino e a sua necessidade. Por umlado, ela continua dócil ao comando humano,mas por outro, o seu agigantamento tende atornar-se, como se costuma dizer, sempre maisincontrolável: já não há garantia definitiva con-tra a bomba. Daí, lembra o filósofo, o poderque adquire a técnica. Saber é poder, antecipa-va Francis Bacon na aurora dos tempos mo-dernos; hoje, sabemos as dimensões que podeassumir tal poder. A técnica se torna até mes-mo numinosa: ela pode salvar, mas representatambém o perigo; ela é sem dúvida necessáriapara a salvação da Humanidade, mas escondeem seu bojo necessariamente o perigo da des-truição. De certo modo, é ela que passa a do-minar e a decidir, revelando nisso uma margemde irracionalidade surpreendente, que a apro-xima do incontrolável.

Essa ambigüidade da tecnologia deve sersublinhada porque mostra que sua inserção no

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Saber é poder, antecipava Francis

Bacon na aurora dostempos modernos;hoje, sabemos asdimensões que pode assumir

tal poder.

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todo social se faz crítica; mas repa-re-se que essa ambigüidade não seacrescenta aos avanços técnicoscomo que de fora, ou de maneirasecundária, como se isso represen-tasse o simplesmente eliminável.Ao contrário disso, a situação sefaz crítica a partir dos própriospressupostos internos da ciência eda tecnologia. O problema secomplica ainda mais porque, co-mo acentua Heidegger, a técnicapertence à essência da ciência mo-derna, assim, o conhecimentotransforma-se cada vez mais nu-ma forma de dominação, de poder – umadominação e um poder que se exercem tam-bém e sobretudo em relação ao próprio ho-mem. Nesse sentido,cabe dizer que a “crise”da tecnologia habita a sua essência, isto é, elaquer ser julgada a partir de uma instância quelhe é interior. Com outras palavras: ela exige asuplementação política.

Mas se analisarmos a política, também aquivamos topar com uma ambigüidade radical.Porque, de um lado, encontramos também ne-la a soberania da dicotomia sujeito-objeto, opolítico calcula a construção da cidade, e seuprojeto obedece nos menores detalhes à possi-bilidade de sua execução. Mas, de outro lado,no momento em que o projeto começa ser exe-cutado, ela se insere necessariamente num pro-cesso social que, de certo modo, passa a orien-tá-lo, e ele se embrenha no amplo e pluriface-tado espectro das condições que constituem omundo social. Assim, o projeto de uma refor-ma ou de uma revolução propõe-se a um obje-tivo preciso, mas a sua realização efetiva inci-de até mesmo no imponderável total. Vale di-zer que iniciado o processo de concretizaçãoprática, a soberania do cálculo, ao menos a par-tir de certo limite, se transmuta em impotência;e tudo se passa então como se a história seguis-se os seus próprios caminhos. Daí o mundo daambigüidade que cerca necessariamente qual-quer resposta que se dê a uma pergunta, por

exemplo, como a seguinte: em quemedida o projeto revolucionáriode Marx é responsável pelas diver-sas formas de socialismo que se de-senvolveram no mundo desde o sé-culo XIX? Ou ainda, outro exem-plo: o que é feito em Brasília, en-quanto projeto político? Existe ne-cessariamente uma distância entre oprojeto e o desdobramento das suasformas concretas dentro da totali-dade social. Mas o importante écompreender que essa distância,que gera a ambigüidade, longe dedesautorizar o projeto e a atividade

política, em verdade é aquilo que torna a ativi-dade política legítima e necessária.

Assim, a ambigüidade presente na tecnolo-gia e na política termina por entrecruzar-se – oque, certamente, não significa uma solução,mas sim, a abertura para o processo de respon-sabilidade do empenho político.

Notas

1. Reflexões sobre o meio ambiente: um caso polí-tico, in Revista Pau Brasil, DAEE, São Paulo, nº 6,ano I, 1985.2. Penso aqui, em especial, na teoria goethiana dascores, oposta, com se sabe, ao matematismo newto-niano.Lembro que cientistas importantes de nossotempo, como Louis de Broglie e Werner Heisen-berg, escreveram sobre a teoria de Goethe, numaespécie de reconhecimento das limitações dos pro-cessos quantificadores.3. Die Frage nach der Technik, in Vortraege undAuisaetze, Pfullingen, ed. Guenter Neske, 1954.

* Palestra proferida no III Seminário Nacional sobreUniversidade e Meio Ambiente, na UFMT, em 1988 epublicada originalmente pelo IBAMA: IBAMA. Di-retoria de Incentivo à Pesquisa e Divulgação/DDC,Divisão de Educação Ambiental – Seminários Uni-versidade e Meio Ambiente. Documentos Básicos,Brasília, 1989. Estamos republicando como uma ho-menagem ao Prof. Gerd Bornhein..

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A “crise” da tecnologia habita asua essência, isto é,ela quer ser julgada

a partir de uma instância que lhe éinterior. Com outraspalavras: ela exige a suplementação

política.

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As universidades, não de hoje, enfrentam oparadoxo de, em sendo plurais em sua prá-tica acadêmica1, servir, ao mesmo tempo, à

lógica do sócio-metabolismo do capital e à or-ganização do trabalho, em seu sentido libertá-rio. Este paradoxo é bastante visível não ape-

nas nas atividades de ensino, mas igualmentenas de extensão e de pesquisa. Nesta última, es-pecialmente, o problema é acentuado quandose discute o financiamento da produção cientí-fica e tecnológica, em que as parcerias com osetor privado não possuem caráter isonômico,

Universidade, produção científica e aderência social: a indissociabilidade e a contra-reforma do ensino superior

José Henrique de Faria

Professor titular da UFPR, economista, mestre (UFRGS) e doutor (FEA/USP) em administração, pós-Doutorado (ILIR/University of Michigan)

em Labor Relations e Reitor da UFPR (1994-1998)

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já que apenas um dos componentes das rela-ções de produção pode aportar recursos. Estaassimetria implica um processo de apropriaçãoprivada do conhecimento gerado, cujas conse-qüências se refletem em um aprofundamentoda extração de valor excedente em todos ossetores produtivos. E é exatamente aqui que oprincípio do pluralismo se coloca em toda suaplenitude, descaracterizando a indissociabili-dade.

De fato, o processo de crise econômica emcurso na sociedade contemporânea, marcadopela contradição entre as esferas de circulaçãodas mercadorias e do capital, cujos efeitos noBrasil têm sido bastante explorados em artigos,debates, análises e seminários, aca-bou por trazer à tona uma outradiscussão: o ainda baixo orçamen-to público destinado às Institui-ções Públicas de Ensino Superiore ao fomento da produção científi-ca e tecnológica e o incremento datransferência de valor excedente,através dos tributos, para financia-mento da dívida que, como sesabe, passou de cerca de 30% doPIB em janeiro de 1995 para cercade 53% do PIB, em 2004. Por trazdesta discussão aparentementetécnica, que envolve restriçõesorçamentárias, esconde-se também um equívo-co na concepção de Universidade Pública, poisse abrem as portas para as parcerias com seto-res privados, legalizadas recentemente pela le-gislação das PPPs no desenvolvimento de infra-estrutura, ao mesmo tempo em que se restrin-gem não apenas os aportes de recursos para aspesquisas voltadas à área social, mas às ativida-des de ensino e de extensão, a partir das quais sepode igualmente produzir trabalhos científicos.

O que diferencia a instituição universitáriade outras instituições é sua condição de produ-zir, organizar, sistematizar, disseminar e trans-mitir o conhecimento. Em outros termos, é suacondição de colocar em prática o princípio daindissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e

a extensão. Assim, no momento em que se dis-cute a proposta de MEC de reforma do ensinosuperior, é fundamental que o conceito deUniversidade2, lastreado na indissociabilidade,seja a garantia de sua organização. Até o mo-mento, este tema parece estar relegado ao os-tracismo nos documentos oficiais, embora sejapreceito constitucional. O que é, enfim, a in-dissociabilidade? Quais seus limites? O pre-sente artigo pretende expor conceitualmenteeste tema como subsídio para a discussão deuma efetiva reforma, na qual o ser Universi-dade não decorra de uma concepção formal,técnica e administrativa, mas histórica e social-mente vinculada.

Desde logo, é necessário reco-nhecer que a indissociabilidadeensino-pesquisa-extensão, preceitoconstitucional e princípio acadêmi-co, tem muito mais força no discur-so do que na prática universitária.Se as universidades têm sido desig-nadas como organizações voltadasao ensino, à pesquisa e à extensão, aprópria prática acadêmica, no en-tanto, por motivos diversos, nemsempre tem alcançado tal articula-ção expressa em seus princípios, es-pecialmente quando desconsideraque o ensino e a extensão universi-

tária são, como a pesquisa, produtoras deconhecimento. A pesquisa, até mesmo pelasexigências dos organismos financiadores, daavaliação das atividades docentes ou dos pro-gramas de pós-graduação, tem seu lugar garan-tido junto às práticas científicas, seja direta-mente, seja através de sua publicação, aindaque se tenha que reconhecer que algumas delasse vinculem diretamente às parcerias privadas,beneficiando diretamente a estas e a um redu-zido número de pesquisadores. Já o ensino e aextensão, além das restrições ao seu financia-mento, tem gerado pouca prática científica, enão por falta de metodologia que possa darconta de sistematizar o conhecimento produ-zido em seus programas. O problema ganha

O que diferencia a instituição

universitária deoutras é sua condiçãode colocar em prática

o princípio da indissociabilidadeentre o ensino, a pesquisa e a extensão.

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realce à medida que as atividades de ensino sãotratadas como simples reprodução do conheci-mento e as de extensão são tratadas apenascomo assistência - como revelou o programaUniversidade Solidária- ou comoprestação de serviços em forma decursos e consultorias.

O objetivo deste artigo, nomomento em que o MEC propõeseu projeto de (Contra) Reformado Ensino Superior, é o de defen-der a sempre referenciada e poucopraticada tese da indissociabilida-de como princípio acadêmico daUniversidade, entendendo estacomo uma instituição que deve as-segurar, em suas atividades, a ade-rência de seu fazer à transforma-ção e ao desenvolvimento das relações sociais.Quando, no bojo da Contra-Reforma, se dis-cute a produção científica e tecnológica, éoportuno questionar se a ciência, tal como seconcebe em boa parte da Universidade, não seencontra apenas reduzida a experimentos emlaboratórios ou confinada a gabinetes, descola-da das atividades cotidianas que podem edevem intervir em sua construção. Não pode-ria, a produção científica, observadas as exi-gências teóricas, metodológicas e epistemoló-gicas, ter também o ensino e a extensão comoseus lugares constitutivos? Em que lugar daContra-Reforma se encontra o tema da indis-sociabilidade?

1. Produção do conhecimento e aderência social: pressupostos

Do ponto de vista da produção do conheci-mento e de sua aderência social, é preciso ado-tar uma concepção que não abdique dos fun-damentos da ciência. De fato, o processo deelaboração teórica exige a observância dos ri-gores metodológicos. Neste sentido, entende-se, aqui, que a metodologia a ser adotada emuma investigação científica é dada não só pelaspróprias condições do sujeito pesquisador,

como pela própria natureza do objeto de pes-quisa, ou seja, não existe uma metodologiapadrão que se aplicaria a qualquer objeto emquaisquer circunstâncias.

Para que o objeto elaborado ouapreendido possa se transformarem objeto teórico, em objeto cons-truído segundo as regras da ciên-cia, há um percurso que é necessá-rio seguir e ao qual o sujeito devesubmeter sua ação, seu fazer. Istonão significa, entretanto, a submis-são do pensamento ao método,sob pena de reduzir a teoria a umasimples reprodução condicionadaexternamente. O método guia osujeito em sua relação com o obje-to, mas não pode lhe limitar os

movimentos. Deste modo, partindo de rela-ções do sujeito com o objeto e do avanço pro-porcionado pela própria ciência no domínioconceitual, vai sendo possível elaborar abstra-ções cada vez mais sutis, as quais suscitarão adefinição de categorias analíticas. Como já ob-servara Marx (1946),

“o concreto é concreto já que cons-titui a síntese de numerosas determina-ções, ou seja, a unidade da diversidade.Para o pensamento constitui um pro-cesso de síntese e um resultado, não umponto de partida. É para nós o ponto departida da realidade e, portanto, da per-cepção e da representação. No primei-ro caso, a concepção plena dissolve-seem noções abstratas. No segundo, asnoções abstratas permitem reproduziro concreto pela via do pensamento. (...)o método que consiste em elevar-se doabstrato ao concreto é para o pensa-mento a forma de se apropriar do con-creto, ou seja, o modo de o reproduzirsob a forma de concreto pensado”.

Estas considerações iniciais indicam preci-samente que a proposta teórico-metodológicacapaz de relacionar a produção do conheci-mento às relações sociais fundamenta-se em

O objetivo deste artigo é o de

defender a semprereferenciada e pouco

praticada tese daindissociabilidade

como princípio acadêmico daUniversidade.

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uma condição em que tanto o pesquisadorquanto o objeto pesquisado estão em movi-mento e, portanto, em uma condição em queambos se constroem durante a trajetória dainvestigação. A percepção do sujeito pesquisa-dor e sua condição de interpretação do realmovem-se à medida que investiga; ao mesmotempo, move-se o real, que não apenas forneceao investigador novos elementos como revela aessência dialética dos seus elementos constitu-tivos: sujeito e objeto interagem dinâmica econtraditoriamente. A realidade, seja a históri-ca, seja a distante, independe do sujeito pesqui-sador específico, mas não é externa a ele. A rea-lidade existe conscientemente para o sujeitopesquisador quando o mesmo interage com elae esta interação se dá por um processo no qualo pesquisador percebe o real segundo um es-quema de assimilação e acomodação que lhe épróprio, construído ao longo deseu desenvolvimento cognitivo ede suas relações sociais.

Ao mesmo tempo em que se dáesta percepção, desencadeia-seuma re-elaboração da leitura doreal, pois quanto mais se aprofun-da a interação dialética sujeito-ob-jeto, mais este é dado a conheceràquele, de forma que o sujeito po-de cada vez mais dominar o obje-to, mesmo sabendo que este do-mínio esteja indicando o quanto oobjeto é ainda desconhecido parao sujeito. Deste modo, há umponto em que o sujeito pesquisa-dor entende ter alcançado os limites possíveis,objetivos e subjetivos, da sua investigação,operando um corte em suas dúvidas, cortesempre necessariamente arbitrário, emborajustificado teórica e metodologicamente, e ja-mais definitivo.

Cabe aqui uma observação importante so-bre a relação do sujeito com o real e com suasexpressões. Tratando-se de investigação quetambém se debruça sobre o imaginário e sobreas ideologias, não há como deixar de observar

que, como já notara Marx e Engels em suafamosa crítica à ideologia alemã e Castoriadisem seu clássico estudo sobre a instituição ima-ginária da sociedade, a ideologia produz seupróprio esquema de interpretação, de dissimu-lação, de justificação, de divulgação e de reno-vação. Assim, para se conferir um sentido acei-tável ao par ciência-ideologia, é necessário ob-servar, com Ricouer (1990:92-5), que:

a. “todo o saber objetivante” sobre a “posi-ção na sociedade, numa classe social, numa tra-dição cultural, numa história, é precedido poruma relação de pertença que jamais poderemosrefletir inteiramente”;

b. se o “saber objetivante é sempre segundorelativamente à relação de pertença, não obs-tante pode constituir-se numa relativa autono-mia”, pois o “momento crítico que o constituié fundamentalmente possível, em virtude do

fator de distanciamento que per-tence à relação de historicidade”;

c. a crítica das ideologias, fun-dadas por interesses específicos, “-jamais rompe com seus vínculoscom o fundo de pertença que afunda. Esquecer esse vínculo ini-cial é cair na ilusão de uma teoriacrítica elevada ao nível do saberabsoluto”;

d. se o saber pode se distanciarda ideologia, esta é sempre um có-digo de interpretação, pois nãoexistem “intelectuais sem amarras esem ponto de apoio”.

Nada é mais necessário, atual-mente, que a renúncia à arrogância para que sepossa empreender o trabalho incessantementeretomado do distanciamento e do assumir acondição histórica. Cabe, portanto, ao sujeitopesquisador compreender que o distanciamen-to possível de sua vinculação ideológica jamaisirá lhe conferir neutralidade axiológica e que osaber que se pode produzir carrega consigo osvínculos iniciais.

Por fim, é necessário observar, também, queo teor específico sobre o qual se encontra fun-

Nada é mais necessário, atualmen-te, que a renúncia àarrogância para quese possa empreendero trabalho incessan-

temente retomado dodistanciamento e doassumir a condição

histórica.

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Ciência & Tecnologia

damentada a produção científica com aderên-cia social, ou seja, o objeto de análise, é a socie-dade, em suas múltiplas interações e em suasformas recentes de estruturação no mundocontemporâneo. Desta maneira, não se podeconceber que somente a pesquisa seja capaz defundar a apropriação do saber, mas a atitudecientífica com o real, seja ela decorrente dapesquisa, seja decorrente das atividades de ex-tensão e de ensino.

Estas observações são impor-tantes na medida que na propostade reforma do ensino superior ela-borada pelo MEC não há qualquermenção conceitual acerca da fun-ção social da Universidade no quese refere à sua condição de produ-ção, organização, disseminação edivulgação do conhecimento. Tra-ta-se a instituição Universidadecomo se esta fosse apenas um sta-tus que se pode formalmente con-ferir a uma organização de ensinoque cumprir determinados requi-sitos tecnocráticos. Se a indisso-ciabilidade entre o ensino, a pesquisa e a exten-são constitui-se em preceito constitucional eem princípio acadêmico, é necessário não ape-nas explicitar sua existência como requisito,mas indicar a concepção que a sustenta.

2. Universidade, aderência social e indissociabilidade

De fato, o papel social de uma Universidadeé de produzir conhecimento novo em todas asáreas do saber, de organizar e sistematizar oconhecimento produzido por outras organiza-ções e aquele acumulado pela cultura, e o dedisseminar, através da transmissão e da divul-gação, o conjunto desses conhecimentos embenefício dos amplos setores da sociedade. Di-to em outras palavras, o compromisso institu-cional de uma Universidade é produzir, orga-nizar e disseminar conhecimentos científicos,artísticos, culturais e tecnológicos, promotores

da cidadania, dos valores democráticos e dajustiça social, visando ao desenvolvimento e àtransformação da sociedade.

Este conceito não é uma formulação vaziade conteúdo. Trata-se de uma concepção clara-mente comprometida com uma função socialrelevante e necessária e que traduz efetivamen-te o cerne da atividade acadêmica. Assim,quando se discute, novamente, a função da

Universidade na produção socialdo saber, é preciso desvendar o quese esconde nas propostas deContra-Reforma e de seu corolá-rio constante das parcerias no de-senvolvimento científico. A Uni-versidade deve produzir conheci-mentos científico, tecnológico, ar-tístico e cultural; atuar na preser-vação e no desenvolvimento domeio ambiente do mesmo modocomo tem uma fundamental pre-sença na área do atendimento àsaúde; tratar de problemas sociais,da política, da antropologia, daliteratura, da filosofia e da pedago-

gia, do mesmo modo como tem que respondera formulações das engenharias, das tecnolo-gias, das ciências exatas, agrárias e da terra;interessar-se pelo direito com a mesma inten-sidade com que o faz pela biologia; atuar naárea das ciências sociais aplicadas com o mes-mo vigor com que deve interessar-se pela his-tória, pelas letras e pela lingüística. Sendo umaorganização que trabalha com o saber inter-disciplinar, a verdadeira discussão sobre aUniversidade e sua produção científica nãocabe em uma divagação sobre as diferençaspresentes em sua estrutura administrativa,sendo mais importante discutir seu papel so-cial, do que seu lugar formal na sociedade,submetido a questões financeiras, a acordosinternacionais e à sua subordinação políticaaos ditames imperiais.

No caso das Universidades Públicas, o pro-blema das restrições orçamentárias tem, semdúvida, conseqüências perversas não somente

Trata-se a instituiçãoUniversidade como

se esta fosse apenasum status que se

pode formalmenteconferir a uma organização de

ensino que cumprirdeterminados requisi-

tos tecnocráticos.

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sobre seu funcionamento, mas sobre sua fun-ção social, cujos efeitos mais danosos são per-cebidos ao longo dos anos, enquanto resultadodos prejuízos às tarefas acadêmi-cas. Diminuem, em termos reais,os investimentos diretos ao ensinosuperior público, em custeio e emcapital; na prática desaparecem osjá insignificantes investimentos nasatividades de ensino e de extensão;reduzem-se significativamente osinvestimentos em Ciência e Tecno-logia. Tudo isto em um momentoem que se exige mais das Univer-sidades Públicas. Eis, aqui, o con-vite para a permissividade, abriga-do no surrado discurso segundo oqual, uma vez constatada a fraude política daausência de compromisso com a educação, emseu sentido amplo, por parte do Poder Públi-co, cabe fazer alguma coisa, mesmo que sejaqualquer coisa: se o Poder Público não aportarecursos, trata-se de obtê-lo junto ao Setor Pri-vado, ainda que isto signifique abrir mão doprincípio da liberdade acadêmica em favor deuma relação de subordinação dos interesses so-ciais aos interesses particulares; se o Poder Pú-blico não assume suas responsabilidades com aformação de seus cidadãos com justiça e isono-mia, trata-se de inventar mecanismos paliativosde disfarce para a inclusão dos historicamenteexcluídos, deixando à margem as ações políti-cas sobre as causas reais da exclusão.

É essencial que o Congresso Nacional e oGoverno Federal definam a política de desen-volvimento e não apenas ajustes orçamentá-rios; que sejam capazes de tornar pública a dis-cussão das prioridades sociais e o projeto dePaís que se deseja construir e não que somentese submetam à lógica dos mercados financeirose políticos centrais. A Universidade, parte im-portante deste processo de desenvolvimento,deve ser inserida ativamente nas transforma-ções sociais a partir de seu papel, não podendoser tratada como mero centro de custo, comojanela na estrutura administrativa federal ou

como uma forma de organização prestadora deserviços.

É necessário reconhecer, por outro lado,que as restrições ou as vantagensde que se fala não se encontramexpressas somente no ambienteinstitucional das universidades.Existem fatores internos que seconstituem em obstáculos e empotencialidades, que necessitamser enfrentados ou estimulados.Sem dúvida, algumas fragilidadesatávicas internas de que a Univer-sidade padece acabam por acen-tuar os obstáculos expressos napolítica educacional, a qual, aoinvés de agir para a superação das

dificuldades, trata-as como se fossem congêni-tas e insuperáveis. O resultado desta ausênciade responsabilidade ou deste desconhecimen-to, constitui um dos problemas fundamentaispara fortalecer a função de produção científicae tecnológica e de seu papel social, cujas conse-qüências mais evidentes são:

a. concepção messiânica e/ou usurpadorada relação social;

b. cisões entre teoria e prática, entre produ-ção e disseminação do saber;

c. fragmentação curricular ou currículosnão integrados e não interdisciplinares;

d. formação que não privilegia o profissio-nal cidadão, o sujeito epistêmico, crítico etransformador da realidade;

e. administração que se impõe política e tec-nicamente, não se subordinando às questõesacadêmicas;

f. ausência de um processo de planejamentoque promova a integração horizontal e vertical;

g. ausência de mecanismos mais rigorososde avaliação institucional.

Tais elementos, contudo, são contrapostospor outros, que são potencialmente viabiliza-dores da inserção consciente da Universidadenas relações sociais:

a. parceria efetiva com os amplos setorespúblicos da sociedade, em que o parceiro se

Trata-se de inventarmecanismos paliati-vos de disfarce para

a inclusão dos histori-camente excluídos,

deixando à margemas ações políticassobre as causas

reais da exclusão.

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põe desde o planejamento até a avaliação;b. projetos de articulação que resultam em

transformações tanto no ensino quanto na so-ciedade, podendo ser promotores de conheci-mentos novos;

c. massa crítica instalada nas diversas áreasdo conhecimento;

d. sistematização, organização e divulgaçãopermanente do conhecimento produzido narelação com a sociedade;

e. investimento na qualificação e no desen-volvimento dos quadros docente e técnico-administrativo;

f. apoio aos estudantes através de ações ins-titucionais, como programa de bolsas, assistên-cia à saúde, moradia, alimentação;

g. infra-estrutura física (laboratórios, equi-pamentos, bibliotecas, etc.);

h. valorização do potencial e das estruturasintrinsecamente democráticas.

Estas questões exigem que se defina umaposição ao mesmo tempo crítica e de defesa daUniversidade. Crítica, porque é preciso sem-pre estar atento às ações de grupos da comuni-dade interna que não se vinculam às suas fun-ções institucionais, com atitudes, práticas polí-ticas, acadêmicas e administrativas nas quaisnão se observam os princípios da Universi-dade. De defesa, porque a Univer-sidade, por sua comunidade cons-ciente, resiste ao desmantelamen-to orquestrado nas políticas pú-blicas da Contra-Reforma e à su-jeição ao império econômico etecnocrático. Um olhar, ainda quedesatento, a esta realidade, nãopode deixar de gerar indagações.De fato, em um País em que astradições feudais de poder quesuportam o elitismo e financiam odistanciamento entre as pessoasestão a impregnar os espaços e ossujeitos políticos; em que os valo-res atinentes ao conservadorismo e a resigna-ção alimentam a concepção social; em que rela-ções e condições materiais de produção mani-

festam-se injetadas de desprezo e insensibilida-de quanto ao destino dos oprimidos; em que osprincípios de respeito às diferenças democráti-cas são substituídos por dogmas de toda or-dem e por infiltrações autoritárias na socieda-de organizada, cabe perguntar: qual é o signifi-cado da produção científica na Universidade?

Em um País em que a prioridade na aplica-ção dos recursos públicos não guarda obriga-ção com os mais elementares direitos da condi-ção humana; em que empregos e salários po-dem ser sacrificados para que não se percam osesquemas de favorecimento a blocos econômi-cos dominantes; em que as novas formas deimperialismo, renovadas com o verniz da glo-balização, podem encontrar amparo em umaconsentida sujeição entendida como inexorá-vel; em que articulações e manobras subterrâ-neas, repousadas na negligência quanto ao so-frimento humano, não provocam contundenteindignação, cabe questionar: qual o significadoda produção científica na Universidade?

Por certo uma Universidade deve, mais doque ciência, também produzir tecnologia, artee cultura. Mas, que ciência? Que tecnologia?Que arte? Que cultura? Aquelas que respon-dem à lógica do pensamento hegemônicodominante? Que reproduzem a opressão? Que

idolatram deuses do mercado eprocriam o fetiche das mercado-rias? É oportuno pensar nesta insis-tente investida tal qual sugerem osversos de Eluard: “Eles não erammais que poucos; de repente, forammultidão”. Esta nova composiçãoestá se tornando cada vez maisabrangente, de forma que, de umlado, grupos que outrora foramenfraquecidos na luta pela Univer-sidade Pública de qualidade, autô-noma, democrática e gratuita, re-nascem das cinzas conduzidos porprojetos políticos mais do que por

projetos acadêmicos e, de outro lado (ou domesmo!), grupos conhecidos por sua defesa doensino público sonegam a prática da democra-

A Universidade, por sua comunidadeconsciente, resiste

ao desmantelamentoorquestrado nas

políticas públicas daContra-Reforma e

à sujeição ao império econômico

e tecnocrático.

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cia e se permitem mancomunar com a novapolítica. Do ponto de vista da Contra-Refor-ma, a questão da vinculação entre a produçãocientífica e a aderência social da UniversidadePública é bem mais complexa do que possaparecer.

Porém, tanto mais complexas as situações,tanto mais é necessário saber situar-se no inte-rior delas. É e deve ser a Universidade o lugarautônomo e independente da produção do co-nhecimento. É nela que ainda se pode deposi-tar a esperança viva de elaboração de uma teo-ria que permita definir as condições de realiza-ção, com êxito, de uma inevitável e urgente lutapolítica. É na Universidade que ainda se podefazer um enfrentamento sem tréguas à tradiçãonefasta aos que se submetem, aos preconceitosque se sucedem e se renovam, àdesqualificação que põe em dúvidaa competência, à marginalizaçãoque discrimina, à pobreza que fere,às doenças que aniquilam. E se,apesar disto, tomada desta respon-sabilidade cidadã, ainda assim nãotem a Universidade cumprido to-talmente com as funções que delase espera, é ainda nela que se pode,cotidianamente, sem medo ou ver-gonha, com força e honestidade,recomeçar. Para tanto, emboraantiga, a discussão a respeito da in-dissociabilidade é ainda oportuna.

3. Extensão universitária e produçãocientífica: uma relação pouco valorizada

O papel da extensão universitária no con-junto das atividades acadêmicas não resulta deuma concepção recente. Ao final dos anos 60,firmou-se o conceito de que a Universidade es-tava apoiada no tripé ensino-pesquisa-exten-são, ainda que a exata compreensão de uma ne-cessária indissociabilidade não estivesse ade-quadamente definida. Mesmo atualmente,quando os debates sobre o tema já avançaram,ainda resta uma prática importante em curso

nas universidades que não estabelece uma vin-culação entre estas atividades. A relação entreo ensino e a pesquisa ganhou contornos maisclaros, especialmente quando o processo deglobalização da economia tomou corpo na so-ciedade, projetando um novo sistema mundialno marco do atual estágio do desenvolvimentocapitalista. A globalização da economia, semdúvida, coloca às nações a necessidade de con-trole e de propriedade do saber científico e tec-nológico, já que este domínio é decisivo parasua inserção nos atuais patamares de competi-tividade e produtividade ditados pelo novo sis-tema mundial. Estabelece-se, nesta perspectivade mudanças no processo de trabalho ditadaspela introdução de novas tecnologias de basemicroeletrônica (FARIA, 1992; 2004), de no-

vos materiais e da biotecnologia,uma rearticulação entre a produ-ção econômica e o conhecimentocientífico, no qual as universidadesassumem papel importante. Se, noentanto, a pesquisa passa a ser va-lorizada em sua relação com o en-sino, a extensão não foi ainda ple-namente descoberta, especialmenteno que se refere ao enfrentamentodas contradições que estão sendoampliadas e geradas pelo processode globalização.

Convém, neste sentido, colocarà reflexão o valor da extensão paraa universidade brasileira nos dias

de hoje, especialmente no sentido de localizaresta prática em um cenário no qual se constróiuma sociedade globalizada e excludente dosdireitos sociais mais elementares. A extensão,conforme se pode observar em suas práticas,pode ser classificada em:

a. messiânica/assistencialista: refere-se aprojetos que possuem como objetivo levar oconhecimento produzido na academia para asociedade, independentemente de seu relacio-namento com a mesma. Aqui aparece com ob-jetividade a concepção segundo a qual existeum muro imaginário a separar a Universidade

Grupos que outroraforam enfraquecidos

na luta pelaUniversidade Públicade qualidade, autô-

noma, democrática egratuita, renascem

das cinzas conduzidospor projetos políticosmais do que por pro-

jetos acadêmicos

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Pública da sociedade, sendo que na academiaencontra-se o saber e na sociedade a ignorân-cia, que necessita ser tratada. Compreendem,geralmente, atividades mecânicas, despidas dereflexão;

b. usurpadora: refere-se a projetos nosquais o objetivo é utilizar a sociedade comoobjeto de estudo, retirando dela o saber exis-tente e apropriando-se do mesmo de maneiraexcludente. Aqui se firma a crença de que aUniversidade é o lugar do saber intelectualiza-do e inacessível e que a sociedade é apenasobjeto da investigação, dissociada da produçãodo conhecimento;

c. interativa: refere-se a projetos cujos obje-tivos remetem a uma permanente interação en-tre a Universidade Pública e a Sociedade, semmuros ou barreiras, em que ambas as instânciasse associam na produção do saber e em suaavaliação, em que ambas estão presentes naação da produção desde o princípio, cabendo àacademia organizar, sistematizar e divulgar osaber conjuntamente produzido.

Com este último sentido, pode-se dizer queextensão é uma atividade acadêmica que arti-cula a produção e a transmissão do conheci-mento. Tratá-la como uma ação messiânica, naqual os detentores do conhecimento, do altode seu saber universitário, deslocam-se para acomunidade, carente deste saber, para ofertá-locomo dádiva, é tão equivocado quanto tratá-lacomo uma ação usurpadora, na qual a acade-mia desloca-se para os lugares do concreto pa-ra tomá-lo e transformá-lo em conhecimentode domínio exclusivo. Como a extensão tam-bém se materializa em cursos à comunidade,quando desencadeia uma simbiose entre deten-tores e demandantes de um determinado saber,a mesma poderá ter um caráter messiânico ouvir a tratar-se de troca de conhecimento, de suasocialização.

Quando assume posturas assistencialistas, aextensão não intervém efetivamente nas rela-ções sociais e de produção da vida material.Deslocar estudantes e professores para locali-dades penalizadas pelas formas de estruturação

do processo de desenvolvimento para que te-nham um “choque de realidade” e, assim, pos-sam ter clareza sobre as mazelas do País, nãopode ser caracterizado como atividade deextensão. A produção do conhecimento e sua

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transmissão para uma efetiva intervenção noprocesso de transformação social não se operacom esta lógica. Ao contrário, cria-se uma ex-pectativa para a comunidade visitada de quealgo seja realizado de fora, o que acontecerápor um período relativamente curto, sem queinternamente nada se transforme. A comuni-dade visitada, ao invés de desenvolver meios deresistência e de produção da vidamaterial, que é tarefa da verdadei-ra extensão universitária promo-ver, sente-se abandonada, poispassa a ser detentora apenas dealguns conhecimentos que não lhegarantem um salto de qualidadeno seu desenvolvimento.

A extensão universitária operano interior do processo de educa-ção, em seu sentido mais amplo.Deste modo, se não articular o sa-ber existente na sociedade com osaber sistematizado na academia,para que, daí, resultem reflexõescríticas e avanços teóricos, a ex-tensão estará rompendo com a própria concep-ção da tarefa educacional. Como lembrava, apropósito, Paulo Freire (1977:26) “educar eeducar-se, na prática da liberdade, é tarefa da-queles que sabem que pouco sabem - por istosabem que sabem algo e podem assim chegar asaber mais - em diálogo com aqueles que,quase sempre, pensam que nada sabem, paraque estes, transformando seu pensar que nadasabem em saber que pouco sabem, possamigualmente saber mais”.

Para entender esta operação assistencialista-messiânica, que não desenvolve uma equaçãoacadêmica já que não articula a produção e atransmissão do conhecimento, é fundamentalcompreender quais devem ser os princípios eos compromissos das universidades e como sepode percebê-las em sua contemporaneidade.

Uma Universidade, qualquer que seja o seutempo e quaisquer que sejam as condiçõessociais, econômicas, culturais e tecnológicasem que subsista, deve seguir princípios que

venham a se constituir na unidade de sua açãoacadêmica. Cinco são os princípios considera-dos fundamentais de uma instituição universi-tária: o da indissociabilidade entre a produçãoe a transmissão do conhecimento; o da autono-mia plena com relação aos seus órgãos mante-nedores; o da qualidade acadêmica; o da manu-tenção e da ampliação das formas democráticas

de ação; o do atendimento das ne-cessidades da sociedade por meioda defesa da pluralidade do conhe-cimento e da cidadania.

O que efetivamente caracterizauma Universidade, distinguindo-ade institutos de pesquisa e de assis-tência social, é a condição de aomesmo tempo produzir conheci-mento, sistematizá-lo e transmiti-lo. Uma instituição de ensino quenão produz conhecimentos novosapenas os reproduzirá, transmitin-do um saber do qual se apropriousem esforço e que não pertencenecessariamente ao seu contexto. É

óbvio que nenhuma instituição universitárialogrará produzir todo o conhecimento quetransmite, mas é sua função original tanto in-corporar os novos conhecimentos quantoavançar nas fronteiras da ciência e da tecnolo-gia, gerando e difundindo o saber acumuladosem nunca perder de vista a realidade em queestá inserida.

O compromisso de uma Universidade coma sociedade é, assim, de maneira crítica e demo-crática, o de estar inserida em um projeto detransformação social capaz de abrir caminhos ealternativas para o seu desenvolvimento, volta-da à cidadania e à justiça social. A garantia daqualidade acadêmica, no entanto, não está as-segurada apenas com a indissociabilidade entreensino, pesquisa e extensão. É imprescindívelque a Universidade seja plenamente autônoma,para que os processos de produção e de trans-missão do conhecimento sejam livres, não sesubordinando a qualquer tipo de intervençãoeconômica, política, religiosa ou cultural, pois

O que efetivamentecaracteriza uma Universidade,

distinguindo-a de ins-titutos de pesquisa ede assistência social,é a condição de ao

mesmo tempo produ-zir conhecimento, sistematizá-lo e

transmiti-lo.

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é justamente a natureza plural do saber que astorna capazes de romper fronteiras e dogmas.Tomar políticas de governo, sem análise crítica,como referência de política universitária, é oprimeiro passo da subordinação e do compro-metimento da liberdade acadêmica.

Autonomia não significa soberania, não su-põe ausência de avaliação institucional e tam-pouco de responsabilidade social, mas uma ne-cessária independência para a crítica teórica,política, social, artística, cultural e tecnológica.Para tanto, é fundamental que a Universidadepossa exercitar cotidianamente os pressupos-tos democráticos universais, os quais respei-tam as diferenças e as explicitam no terrenofértil dos debates.

Estes princípios e compromissos não se res-tringem a uma temporalidade definida. Não setrata de exigências regionais ou de um concei-to apropriado a certos tipos de universidade.Deste modo, não há como pensar as atividadesde extensão fora deste âmbito, pois estes sãovalores comuns a todas as instituições univer-sitárias. Assim, a questão sobre qual o valor daextensão para a universidade brasileira hoje,deve considerar, de saída, o que de fato é umainstituição universitária e como garantir estespressupostos diante do processo de globaliza-ção em curso.

O avanço do processo de globalização, queimporta no rompimento das barreiras à circu-lação do capital e dos produtos e serviços porele gerados, vem ocorrendo noâmbito da criação de blocos in-dustriais e de serviços e de merca-dos, cujos suportes são a incorpo-ração de novas tecnologias de basemicroeletrônica, de novos mate-riais e da biotecnologia no proces-so de produção. Tais incorpora-ções acabam por estabelecer novospadrões de competitividade e lu-cratividade na esfera dos comple-xos industriais e de serviços nomundo, o que significa dizer quese o mesmo, além de gerar direta-

mente um desemprego aberto com as redefini-ções dos postos de trabalho, tem provocadoum realojamento de ocupações e não tem in-corporado ao mundo do trabalho os novoscontingentes de trabalhadores, o que amplia ojá preocupante exército industrial de reserva(FARIA, 2004).

A Universidade precisa, para cumprir comseus compromissos com a comunidade, estaratenta ao movimento em curso, pois o mesmodetermina um novo desenho social em um ce-nário de dificuldades, agravado pelo que aUnesco (1995) aponta como sendo as tendên-cias principais comuns aos sistemas de educa-ção superior em todo o mundo: as expansõesquantitativas, acompanhadas de desigualdadede acesso; a diversificação dos programas,estruturas institucionais e formas de estudo; asrestrições financeiras. As respostas da educa-ção superior, segundo a Unesco, devem consi-derar três pontos:

a. a pertinência, que significa o papel quedesempenha a educação superior e o lugar queocupa na sociedade, abarcando tanto seuscompromissos, funções programas, desempe-nho acadêmico e financiamento, quanto a li-berdade de cátedra, a autonomia institucional eos princípios que devem embasar todos os es-forços;

b. a qualidade, definida como um conceitomultidimensional;

c. a internacionalização, característica ine-rente ao sistema que se expandiuconsideravelmente na última meta-de deste século.

O processo de globalização ex-põe, de forma contundente, ascontradições do desenvolvimentocapitalista, deixando à mostra deforma exacerbada a exclusão sociale a marginalização de que são víti-mas as populações que não têmacesso ao mercado de trabalho e deprodução. Ao mesmo tempo, asrestrições quanto ao financiamentodas universidades, especialmente

Tomar políticas degoverno, sem análisecrítica, como referên-cia de política univer-sitária, é o primeiropasso da subordina-

ção e do comprometi-mento da liberdade

acadêmica.

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as de caráter público, impõe uma retração nasatividades acadêmicas. Este quadro não podeser desconsiderado quando se pensa o papel daextensão na produção do conhecimento. Istonão significa que o terreno da extensão é omundo da miséria social, mas que o terreno doconhecimento sobre o qual a extensão opera,epistemologicamente considerado, é o mundodas contradições.

A contemporaneidade da universidade sig-nifica sua capacidade de fazer a correta leiturada dinâmica da sociedade e de participar ativa-mente da mesma, de forma ágil e eficaz. Nãocabe à Universidade o papel contemplativo,que remete à omissão, e tampouco o de obser-vadora, por mais privilegiada que seja, da rea-lidade, pois produzir e transmitir conhecimen-to implica em intervir no processo de desen-volvimento da sociedade. A extensão é produ-tora de conhecimento novo, atividade que nãopertence exclusivamente à pesquisa, mas parafazê-lo é necessário tomar a realidade, ao mes-mo tempo, tanto como lugar de geração e deconstituição do conhecimento, quanto de suarenovação permanente.

O valor da extensão universitária está justa-mente nesta condição de defrontar-se com arealidade em movimento e, neste sentido, emapreendê-la como processo. A realidade não écomposta de ‘flashes’ ocasionais sobre os quaiscumpre debruçar-se, pois é o resultado de umprocesso histórico que a constitui e que estabe-lece condições passíveis de trans-formação. A mediação necessáriaentre o pólo epistemológico e opólo teórico coloca, desde logo, oplano epistêmico como condiçãoda teoria, pois é o campo do co-nhecimento científico que atingiudeterminado grau de objetividade.Mas a extensão trabalha, ao pro-duzir conhecimento, também noscampos da demanda social, axioló-gico e doxológico, este último, co-mo mostra Bruyne et alii (1977. p.33), “o campo do saber não siste-

matizado, da linguagem e das evidências daprática cotidiana, de onde a prática científicadeve precisamente esforçar-se para arrancarsuas problemáticas específicas”. O valor da ex-tensão, portanto, é o de estar atento às formaspelas quais o mundo se constrói e se recons-trói, às maneiras de sua estruturação e re-estru-turação; é o de apreender a realidade para alémdas manifestações externas localizadas em umaespecífica dimensão temporal, vazia de sentidoe deslocada da sua história; é o de recusartomar o concreto imediato não como resultadodo movimento, mas como se este fosse o pró-prio movimento. A extensão, em sua dimensãoconstitutiva, trabalha com o conhecimento eeste, como salienta Paulo Freire (1992:27-8)

“exige uma presença curiosa do su-jeito em face do mundo. Requer suaação transformadora sobre a realidade.Demanda uma busca constante. Impli-ca em invenção e em reinvenção. Re-clama a reflexão crítica de cada um so-bre o ato mesmo de conhecer, pelo qualse reconhece conhecendo e, ao reco-nhecer-se assim, percebe o ‘como’ deseu conhecer e os condicionamentos aque está submetido seu ato. Conhecer étarefa de sujeitos, não de objetos. E écomo sujeito e somente como sujeito,que o homem pode realmente conhe-cer. Por isto mesmo é que, no processode aprendizagem, só aprende verdadei-

ramente aquele que se apropria doaprendido, transformando-o emapreendido, com o que pode, poristo mesmo, reinventá-lo (...). Pelocontrário, aquele que é ‘enchido’por outros conteúdos cuja inteli-gência não percebe, de conteúdosque contradizem a forma própriade estar em seu mundo, sem queseja desafiado, não aprende”.

Há, insistentemente, uma tenta-tiva de instituir a convicção de queé preciso parar de estabelecer dis-cussões políticas para a comunida-

A contemporaneidadeda universidade sig-nifica sua capacidadede fazer a correta lei-tura da dinâmica dasociedade e de parti-cipar ativamente damesma, de forma

ágil e eficaz.

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de acadêmica poder enfrentar a dura realidadeda miséria social do País. É possível discutirpolítica sem realidade? É possível discutir rea-lidade sem que, ao fazê-lo, se estabeleça umaatitude política? O que é mesmo que a exten-são universitária deve ser e fazer no âmbito daefetiva ação acadêmica? Estas per-guntas referem-se a uma mesmaquestão, qual seja: é possível fazerextensão, enquanto prática acadê-mica que vincula a produção àtransmissão do conhecimento,sem que isto seja uma definiçãoprecisa de política acadêmica vol-tada à contemporaneidade da ins-tituição universitária inserida nasrelações sociais e de produção quea constituem ?

Política sem realidade é realidade sem polí-tica. Apenas no nível metafísico se pode imagi-nar que o plano das idéias se constitua inde-pendentemente do concreto. O valor da exten-são para a universidade brasileira, hoje ou emqualquer tempo, será o da produção e da trans-missão do conhecimento, razão pela qual adefinição de como operá-la não será imune aconseqüências e tampouco se revestirá de neu-tralidade. Ao fazer a opção por uma extensãotal como aqui definida, a Universidade tam-bém define sua prática acadêmica e, neste sen-tido, sempre convém fazer uma reflexão sobreo que representa estar verdadeiramente vincu-lado à realidade, ao invés de estagiar nela poralguns dias como se isto já fosse suficiente paraapreendê-la; o que representa a relação que seestabelece com a sociedade, que deseja obtersua autonomia e não, ao contrário, perder a es-perança em esquemas de dependência que asubordine; o que significa para professores,técnicos e estudantes os contactos permanen-tes com a realidade, que lhes forma a têmpera,mas que sobretudo lhes permite a relação entreo concreto e a formulação teórica e lhes desen-volve o pleno sentido da cidadania.

Fazer extensão é escolher esta condição di-ferenciada de produzir conhecimento, de fazer

ensino não formal restrito às salas de aula, deatualizar estruturas curriculares de forma per-manente, de integrar graus e níveis de ensino,de renovar constantemente a função social daUniversidade. Neste sentido, o valor maior daextensão é o de ser capaz de provocar esta into-

lerabilidade com relação à realida-de social e de poder transformá-laem ação consciente do desenvolvi-mento e da política acadêmica.

4. Pesquisa e produção científica: paradoxos e limites

da aderência social

Existe uma concepção, queembora equivocada não é tão inco-

mum quanto de pensa, segundo a qual a “ver-dadeira” ciência seria aquela praticada em “la-boratórios”, de maneira que as ciências huma-nas e sociais não preencheriam tal requisito.Este equívoco decorre de uma leitura episte-mológica reducionista que considera a pes-quisa apenas em sua versão empirista ou posi-tivista, de inspiração cartesiana, na qual seenfatizam testes, repetição de experimentos erelações causa-efeito. Por conta desta concep-ção, alguns cientistas sociais buscam, igual-mente, desenvolver modelos mensuráveis darealidade capazes de conferir uma neutralida-de axiológica em suas investigações. Destaforma, todo tipo de pesquisa que não siga es-tes cânones seria considerada ou não confiá-vel ou, simplesmente, não científica. É neces-sário, neste sentido, defender a tese de que énecessário deixar o objeto de pesquisa falar,para definir a metodologia adequada à suaapreensão, sob pena de se impor ao objeto omodelo de sua interpretação.

Qualquer investigação científica possuiquatro limites não excludentes:

a. o sujeito pesquisador: refere-se à falta desensibilidade ou de condições internas do su-jeito em sua relação com o objeto investigado,de maneira que o sujeito nem sempre percebeo que o objeto fala. A experiência pode confe-

O valor da extensãopara a universidadebrasileira, hoje ou

em qualquer tempo,será o da produção e da transmissão do conhecimento.

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rir melhores condições de análise, maior capa-cidade de leitura do real e de estabelecimentode relações, mas não existe uma correlação exa-ta entre experiência e percepção. Todos os su-jeitos pesquisadores, em diferentes graus, pos-suem este limite, que é próprio da condiçãohumana;

b. a realidade investigada: refere-se ao fatode que a realidade não se revela totalmente aopesquisador. Marx já observava que se a apa-rência dos fenômenos fosse igual à sua essên-cia, não haveria ciência. As inúmeras relaçõesque constituem o real não são visíveis todo otempo, de forma que por mais profunda eexaustiva que seja uma análise, ainda assimexistirão elementos que a constituem que nãosão percebidos. Tal limite pode ser acentuadoou reduzido pela superação dos demais limitesreferidos;

c. a base teórica e metodológica:refere-se às restrições do acúmuloteórico disponível e das metodolo-gias para a apreensão do real. Todaa teoria é uma redução da realida-de investigada ao plano abstrato,ao processo de pensamento. Comosugeria Spinoza, o conceito do cãonão é o cão, ou seja, a realidade nãopode ser inteiramente transpostapara o plano do pensamento, demodo que a teoria é mesmo uma redução inter-pretada do real. Para favorecer teorias e meto-dologias que mais se aproximem da realidadeinvestigada é que se sugere que o objeto dainvestigação possa falar e não simplesmente serfalado;

d. o instrumental: refere-se à interposiçãoentre o sujeito pesquisador e o objeto investi-gado, particularmente aos instrumentos quepermitem ao pesquisador observar o que natu-ralmente não conseguiria (telescópio, micros-cópio, aparelhos de medição, simuladores,etc.). O desenvolvimento tecnológico tem faci-litado de forma extraordinária a pesquisa quedepende de instrumentos, mas ainda não con-segue dar conta de todas as necessidades. En-

quanto, por exemplo, a modelagem matemáti-ca sugere a existência de outros sistemas sola-res semelhantes ao nosso, o mais avançado te-lescópio disponível apenas recentemente iden-tificou um único caso.

Não obstante estes limites, a pesquisa con-tinua sendo a mais importante forma de pro-dução do conhecimento científico, já que suanatureza é investigatória. Além disto, a pesqui-sa, ao contrário das atividades de extensão e deensino, tem obtido apoio institucional na pro-dução da ciência e no desenvolvimento tecno-lógico. Bolsas, políticas de financiamento, par-cerias, projetos internacionais, redes, associa-ções e institutos são comuns neste campo. Asagências financiadoras de pesquisa (CAPES,CNPq, FINEP, FAPESP e outras de caráterregional), se não impedem que o pesquisador

desenvolva atividades de extensãocomo suporte para a produção ci-entífica e tecnológica, ainda nãopossuem programas de incentivopara o desenvolvimento conjuntodas mesmas4. Não se pode negar opapel importantíssimo que taisagências tiveram e ainda têm (ape-sar das restrições orçamentárias)para a pesquisa no Brasil, mas po-de-se questionar o fato de emsendo a indissociabilidade preceito

constitucional, não terem direcionado partesubstantiva de suas políticas de financiamentocom este objetivo.

Ao mesmo tempo, é necessário que a comu-nidade acadêmica assuma suas responsabilida-des neste processo, pois não se tem, na históriada Universidade, movimento de organizaçãoda produção acadêmica voltada para a garantiada indissociabilidade com a mesma força e em-penho utilizadas, por exemplo, na constituiçãoda Sociedade Brasileira Para o Progresso daCiência. É tão legítimo que os pesquisadores seassociem quanto seria constituir uma associa-ção com os propósitos de inserção social daUniversidade em seu contexto sócio-histórico.

As atividades de pesquisa, tomando por

A pesquisa continuasendo a mais impor-tante forma de pro-dução do conheci-mento científico, jáque sua natureza é

investigatória.

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base suas práticas, podem igual-mente ser classificadas, segundosua motivação inicial, generica-mente, em três níveis:

a. socialmente vinculadas: refe-re-se às atividades cujos resultadosdestinam-se à transformação e aodesenvolvimento social;

b. corporativamente vincula-das: referem-se às atividades volta-das apenas aos interesses do pes-quisador ou do grupo de pesquisa;

c. privadamente vinculadas: re-ferem-se às atividades realizadasem parceria com uma organização privada, ge-ralmente financiadora do projeto, cujos resul-tados beneficiam e são apropriados exclusiva-mente pelo parceiro.

Esta classificação não deseja indicar queuma pesquisa privadamente ou corporativa-mente vinculada não possa ser socialmenteapropriada e tampouco que uma pesquisa so-cialmente vinculada não possa ser privadamen-te apropriada. A classificação proposta apenassugere as motivações iniciais das pesquisas. Aspesquisas corporativamente vinculadas, porsua vez, podem decorrer de dois fatores: (a) opesquisador encontra-se em estágio de conhe-cimento que se encontra à frente de seu tempoe do saber desenvolvido, daí a ausência de vín-culo social imediato; (b) a pesquisa possui umcaráter deontológico para o pesquisador, ser-vindo para seu próprio prazer, ou teleológico,em que a investigação é um fim em si mesmo.

Se cada circunstância, de fato, pudesse rei-vindicar uma verdade, nenhum código seriaproduzido, nenhuma sociedade seria organiza-da e nada seria instituído. Isto não significaque, uma vez definidas, as verdades, assim co-mo os princípios de conduta, se tornem imutá-veis. De fato, como analisa Engels (1979), emsua crítica ao Senhor Düring, se o produto doexercício do pensamento pudesse reivindicar avalidez soberana das verdades, a sociedade al-cançaria um nível tal que se teria esgotado ainfinidade do mundo intelectual. Se tudo já

estivesse pronto, nada mais haveriaa produzir. Se tudo já se soubesse,nada mais haveria a investigar.Entretanto, é interessante verificarque mesmo em situações que secaracterizam pela renovada produ-ção intelectual e pela permanenteinvestigação também acabememergindo estes axiomas, definiti-vos e inapeláveis, dos quais se ex-traem as deduções da existênciahumana, do poder-ser e do dever-ser. E é interessante observar quejustamente aí é que alguns mem-

bros das organizações acadêmicas asseguram,em seus discursos, que só a sua concepção éaceitável, que tudo o mais é equívoco e, comoprofetas recém saídos do forno, trazem em suamochila, pronta para ser posta em circulação, aúnica verdade e a eterna justiça.

A classificação proposta permite, principal-mente, verificar que nem todas as atividades depesquisa possuem vínculos com as relações so-ciais. Entretanto, não existem mecanismos dis-poníveis que permitam avaliar os graus de ade-rência social das pesquisas no Brasil. Nemmesmo se pode avaliar com precisão os inves-timentos na área. Considerando-se as estimati-vas mais otimistas, pode-se afirmar que os in-vestimentos em pesquisa e desenvolvimentotecnológico são bastante irrisórios se se consi-dera o papel da ciência e da tecnologia no desen-volvimento e na transformação da sociedade.

Os números, de fato, não são precisos. Emprimeiro lugar, porque existem pesquisas nãoadequadamente registradas e não diretamentefinanciadas nas universidades, o que significaque não apenas parte da remuneração dos pes-quisadores, dos técnicos e bolsistas não sãocomputados, como não são igualmente consi-derados os aportes de recursos oriundos deconvênios. Em segundo lugar, porque existemvalores considerados como destinados à Ciên-cia e Tecnologia que são empregados em ma-nutenção de atividades de apoio não direta-mente vinculadas à C&T.

A pesquisa, ao contrário das

atividades de exten-são e de ensino, temobtido apoio institu-cional na produção

da ciência e nodesenvolvimento

tecnológico.

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Esta imprecisão também ocorre na compa-ração entre a produção científica e o conjuntodos investimentos em Ciência e Tecnologia.Estima-se que cerca de 90% de toda a produ-ção científica no Brasil seja realizada em Ins-tituições Públicas de Ensino Superior. Entre-

tanto, este número não reflete com exatidão arelação entre quantidade de projetos, volumede recursos empregados e grau de impacto so-cial dos resultados por área e sub-área de co-nhecimento já que as mesmas possuem com-posições tempo-recurso diferenciadas.

Se algumas práticas conferem, à pesquisa, oseu correto papel na vida acadêmica, não lhegarantem total autonomia, ressaltando aí seuparadoxo mais evidente. Os limites referidos eo modelo de financiamento que destina um vo-lume modesto de investimento em C&T, re-forçam a natureza do domínio científico porparte dos países desenvolvidos e do grandecapital privado. A Ciência e a Tecnologia cons-tituem-se em fatores estratégicos de poder eco-nômico, político e ideológico e não é por outromotivo que passa a ser decisiva a garantia desua posse e o controle de seu desenvolvimento.A política de C&T adotada no Brasil privilegiaas parcerias com os Setores Privados de ponta,modelo este que reproduz a vinculação da pro-dução científica ao domínio dos interesses pri-vados, constituindo-se em importante obstácu-lo à produção científica socialmente aderente.

Como bem aponta Tragtenberg (1979:19-30), “em nome do ‘atendimento à comunidade’e em nome do ‘serviço público’, a universidadetende cada vez mais à adaptação indiscrimina-da a quaisquer pesquisas a serviço dos interes-ses econômicos hegemônicos”. “A escolha daspesquisas depende dos financiamentos possí-veis; por outro lado, a ‘moda’ acadêmica impõesua tirania. Uma pesquisa é determinada nãoporque se é obrigado a ter essa ou aquelaorientação teórica para receber financiamento,mas recebe financiamento por ter essa ou aque-la orientação teórica. Trata-se de uma determi-nação que opera com alto nível de sutileza”.

5. Ensino e aderência social: as possibilidades da prática libertária

Embora pouco usual na Universidade, oensino deve igualmente constituir-se em fontede produção científica. O que se tem observa-

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do é que as ações da prática peda-gógica, exceto nas áreas da educa-ção que possuem grupos de estu-dos voltados para esta investiga-ção, não têm resultado em refle-xões e, portanto, não têm produzi-do saber científico. Seguindo amesma linha de argumentos, pode-se classificar a prática do ensinonas universidades em três formas:

a. reprodução simples: refere-seao ensino em que o professor ape-nas reproduz os conhecimentosexistentes, sem crítica, geralmentevalendo-se de manuais;

b. reprodução crítica: refere-seà reprodução parcial do conhecimento existen-te, em que as críticas e as reflexões decorrem deconfrontos entre as teorias, seja porque nãoexiste conhecimento original produzido noâmbito da unidade de ensino, seja porque oprofessor não possui qualificação acadêmicapara trabalhar conteúdos novos;

c. libertário: refere-se à prática pedagógicaem que o professor, possuindo domínio deconteúdo e produzindo conhecimento novo,trabalha criticamente as teorias existentes e asque desenvolve, reflete sobre sua ação, avaliasua prática junto aos seus alunos, organiza, sis-tematiza e desenvolve outros conteúdos e prá-ticas.

Um dos problemas mais debatidos no quese refere à primeira forma é o que MaurícioTragtenberg chamou de delinqüência acadêmi-ca. De fato, ao examinar a crise da universida-de, que ocorre porque a “sociedade está emcrise”, Tragtenberg (1979:15) percebe que, aocontrário do que afirmam alguns acadêmicos, auniversidade “não é uma instituição neutra;mas sim de classe, onde as contradições apare-cem. Para obscurecer estes fatores, a universi-dade desenvolve uma ideologia de saber neu-tro, científico, uma neutralidade cultural e ummito de saber ‘objetivo’ acima das contradi-ções sociais”. A universidade desenvolve de-terminadas práticas acadêmicas e administrati-

vas que, por vezes, escondem,deliberadamente ou não, movi-mentos contraditórios. O proces-so de seleção dos membros de suacomunidade é um exemplo destaspráticas. A seleção dos alunos dagraduação e da pós-graduação, ca-racterizada pela igualdade deoportunidade, disfarça o fato deque em cursos de alta demanda asmaiores oportunidades são confe-ridas aos que tiveram acesso pré-vio a um ensino privilegiado; a se-leção dos docentes através de con-cursos, às vezes esconde a prefe-rência das bancas pelo conteúdo

teórico e político dos candidatos, quando nãopor relações interpessoais. Esta situação vemreforçar o que Tragtenberg (1979:16-7) chamade “complô de belas almas”, “recheadas de tí-tulos acadêmicos, de doutorismo [...], de umanova pedantocracia, da produção de um sabera serviço do poder, seja ele de que espécie for”.Nas escolas formam-se, deste modo, tecnocra-tas aptos a “confeccionar reformas educacio-nais que, na realidade, são verdadeiras ‘restau-rações’”, da mesma forma que em outros cen-tros educacionais se reproduz a universidademandarinal do século passado a inculcar “nor-mas de passividade, subserviência e docilidadeatravés da repressão pedagógica”. Mesmo nos“cursos críticos” a universidade dominanteprevalece, através do juízo professoral hege-mônico exercido sobre os estudantes em umprocesso de “contaminação”. “Essa apropria-ção da crítica pelo mandarinato universitário,mantido o sistema de exames, a conformidadeao programa e o controle da docilidade do es-tudante como alvos básicos, constitui-se numafarsa, numa fábrica de boa consciência para adelinqüência acadêmica representada poraqueles que trocam o poder da razão pela ra-zão do poder”.5

A relação professor-aluno é sempre umarelação de poder quando tem como suporte osaparatos da coerção institucionalizada e o do-

A universidade desenvolve

determinadas práticas acadêmicas

e administrativasque, por vezes,

escondem, deliberadamente

ou não, movimentoscontraditórios.

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mínio de um saber inacessível. Tragtenberg(1979:18) observa bem estas práticas, indican-do que “o mestre possui um saber inacabado eo aluno uma ignorância transitória: não há sa-ber absoluto, nem ignorância absoluta. A rela-ção de saber não institui a diferença entre alu-no e professor: a separação entre aluno e pro-fessor opera-se através de uma relação de po-der simbolizada”.

A vida cotidiana na academia passa a ser,assim, preenchida por vários espaços em que ofalso toma a forma do verdadeiro, instituindoum pacto no qual ali tudo é aceito como nor-ma, como próprio da natureza, de maneira queas verdades impostas e a ética conceituada nãovenham a provocar, nos sujeitos, incômodo,envolvimento ou dor. Os grupos e alguns deseus líderes, no sentido de manter uma unida-de competitiva na luta pelo poder, desfilam umconjunto de regras, de comportamentos e decondutas a partir do que julgarãooutros grupos ou seus membrosmais destacados; entretanto, o quedeveria ser princípio e compro-misso, não passa de discurso.Assim, os princípios que guiam osfilantropos da intelectualidade nointerior das academias aparecemsem estilo e sem densidade políti-ca, porque resolvem suas carênciascom frases tradicionais e com bor-dões; sem conteúdo, porque sendovazios de teoria preenchem suasfalas com estéticas duvidosas; semhorizonte, porque sua visão demundo não ultrapassa a porta dasala de reuniões; e sem compromissos,porque legitimam práticas acadêmicas com su-perficialidade, e, às vezes, com a profundidadeda banalização. São princípios nos quais nãocabe a sabedoria e nos quais o sujeito não valepelo afeto que cultiva, mas pela esperteza ca-paz de lhe conferir vantagens competitivas. Aintrodução do ensino pago na UniversidadePública, a realização de cursos a qualquerclientela que por eles se disponha a pagar, as

atividades de prestação de serviços onde o quemais importa são os recursos e não a qualidadeacadêmica oferecida e resultante dos serviços,o financiamento da pesquisa por organizaçõesde interesses privados, a realização de encon-tros em que se operam vendas de conhecimen-to científico ou em que se constroem palcosnos quais os pares se apresentam para sua auto-promoção, estas se constituem em graves ame-aças ao ensino público libertário.

Tragtenberg (1979:20-28) percebe critica-mente este movimento. Sobre sua ética e suafunção social, afirma que “uma universidadeque produz pesquisas ou cursos a quem é aptoa pagá-las perde o senso de discriminação éticae da finalidade social de sua produção: é uma‘multiversidade’, que se vende no mercado aoprimeiro comprador, sem averiguar o fim daencomenda, acobertada pela ideologia da neu-tralidade do conhecimento e seu produto”.

Sobre as avaliações de desempe-nho, sugere que “a política das ‘pa-nelas’ acadêmicas de corredor uni-versitário e a publicação a qual-quer preço de um texto qualquer,constituem-se no metro para me-dir o sucesso universitário”6. Sobreas valorizações simbólicas, observaque “a maioria dos congressos aca-dêmicos universitários serve como‘mercado humano’, onde entramem contacto pessoas e cargos aca-dêmicos a serem preenchidos”,pois o “mundo da realidade con-creta é sempre muito generosocom o acadêmico” na medida em

que o título conferido pela academiatorna-se “o passaporte que permite o (seu)ingresso nos escalões superiores da sociedade”,o que reforça o problema da desvinculação daUniversidade com os processos de transforma-ção social e a tese de que “a ideologia do aca-dêmico é não ter nenhuma ideologia: faz fé deapolítico, isto é, serve à política do poder”.“Cobertos pelo ideal de ‘neutralidade antevalores’, a maioria dos acadêmicos universitá-

Assim, os princípiosque guiam os filantropos da

intelectualidade no interior das

academias aparecem

sem estilo e sem densidade política...porque legitimam

práticas acadêmicascom superficialidade.

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rios vegetam no conforto intelectual, agasalha-dos pelas sinecuras burocráticas e legitimadosideologicamente pelo apoliticismo: a ideologiados que não têm ideologia. Na verdade, esseapoliticismo converte-se na ideologia da cum-plicidade trustificada. Sem dúvida, o cultivo deideologia livre de valores é paralelo à despreo-cupação sobre as implicações éticas e políticasdo conhecimento”. Em síntese, o ensino queproduz conhecimento é o ensino libertário.

6. Ciência, tecnologia e sociedade: por uma conclusão

“A soberania de uma nação vin-cula-se ao desenvolvimento técni-co e científico construído para obem estar de seu povo”. Assimestava escrito na abertura do folderde chamada para o III SeminárioNacional de Ciência e Tecnologiado ANDES-SN.

Neste artigo, procurou-se reali-zar uma reflexão crítica sobre a indissociabili-dade entre o ensino, a pesquisa e a extensãoenquanto fundamento do ser Universidade, nomomento em que se implementa uma Contra-Reforma do ensino superior sem que, em ne-nhum documento oficial, este tema esteja ade-quadamente tratado, embora seja um preceitoconstitucional. O Poder Público propõe umareforma sem definir as atividades acadêmicasque efetivamente possuem aderência social, ouseja, que desenvolvem um saber científico e

tecnológico voltado ao bem estar da sociedadee que caracterizam uma instituição universitá-ria. A discussão política conduzida pelo MECtem se restringido a questões de natureza téc-nica, formal e administrativa, sem profundida-de conceitual.

Como foi possível observar, existem ativi-dades com regular, fraco ou nenhum nível deaderência e outras com forte nível, conformeresumido no quadro 01, adiante.

Também pode ser observada asfragilidades do princípio da indis-sociabilidade entre ensino, pes-quisa e extensão, o que sugere anecessidade de uma reflexão e deações que efetivamente possamresgatar este princípio, porquehistória da Universidade não po-de ignorar os vazios, mas devecompreender que está repleta denatureza viva. Não deve negarque de seu interior foram monta-dos projetos de construção de

muros sociais dificilmente transponíveis, masprecisa assumir que está plena de sociedade.Não tem como esconder as diversas fantasiasinatingíveis, mas, preenchida de múltiplasrealidades, não pode abdicar em sonhar umsonho impossível. A Universidade não tem odireito de ser estranha e insensível à realidadesocial, a qual deve conhecer e, ao conhecer,transformar. Que não sirva, o simples pensa-mento, de alimento suficiente do fazer: não seevidenciando a fecundidade concreta decor-

A discussão políticaconduzida pelo MECtem se restringido aquestões de natureza

técnica, formal eadministrativa,

sem profundidadeconceitual.

Quadro 01: Níveis de Aderência Social na Produção do ConhecimentoATIVIDADES FORMAS NÍVEIS DE ADERÊNCIA SOCIAL

EXTENSÃO Messiânica Fraco

Usurpadora Nenhum

Interativa Forte

PESQUISA Privadamente Vinculada Fraco

Corporativamente Vinculada Nenhum

Socialmente Vinculada Forte

ENSINO Reprodução Simples Nenhum

Reprodução Crítica Regular

Libertário Forte

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rente da reflexão, a atitude pode ser reduzidaà mera ilusão.

Se os adversários internos e externos neces-sitam e se valem de “mentiras, sussurros, ar-dis”, como aponta Chico Buarque, é precisosaber opor uma concepção justa do mundo,para encará-lo de frente e dar conta da tarefa dedesenvolvê-lo. de forma que olhar para o pas-sado, tomando-o como referência e incorpo-rando-o como direção, é também assumir ocompromisso de voltar-se ao futuro, não deforma distraída, casual, mas firme e determina-da; não como tarefa solitária que se deleita emtergiversar sobre inutilidades, mas coletiva edemocrática; não como escola de súditos, dis-cípulos e vassalos, divorciados da vida, masautônoma e comprometida; não como lugar decomércio do saber, de compra e venda de mer-cadorias, mas de liberdade e criatividade; nãocomo espaço reservado às corporações, pro-priedade de grupos e indivíduos que se bastamem seus duelos, mas público e competente.

A Universidade que desafia sua vinculaçãosocial é a que transpõe a fronteira da proprie-dade regional para ser produto universal, queedifica um outro conceito de globalização. Aglobalização que possibilita a partilha social dariqueza da ciência, da arte, da tecnologia, dacultura. De fato, muito mais além do que co-nectar o mundo em uma dimensão sincrônicade bolsas de valores, de capitais especulativos, de

acumulação ampliadade capitais, de merca-dos sem fronteirasque retiram cada vezmais do homem aconcepção do pro-cesso de trabalho ali-enando-o do conheci-mento produtivo, éurgentemente preci-so universalizar esocializar o saber, demaneira que este sedestine a superar asinjustiças materiali-

zadas nas bósnias, angolas, etiópias, vales dejequitinhonhas, ou nos assentamentos de semterra, nos sofrimentos dos sem emprego, nasexclusões sociais. Isto, por certo, implica emenfrentar todas as possibilidades de ultrapassarlimites impostos por uma concepção, tão emvoga atualmente, de que a Universidade não

Ciência & Tecnologia

A marca histórica domovimento docente

é a de uma lutaaguerrida e dela sedevem retirar lições.

É preciso ter claroque a experiência dopassado é capaz de

criar um futuro prolífero.

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Ciência & Tecnologia

teria lugar para ser alojada senão nos escani-nhos de um mundo em que a prática científicaseria apenas um comércio, em que as atividadesde parceria com a sociedade seriam apenas umcontrato mercantil e em que o ensino seria so-mente uma lucrativa produção em escala.

A exigência que se impõe é a que reclamamudanças permanentes, desenvolvimento in-cessante, lançar o olhar para bem depois dohorizonte, estar preparado para enfrentar lutasque ainda sequer se apresentaram. Por maisque assole a dor do rompimento, é preciso rea-lizá-lo, por mais que assuste atualizar concei-tos, é preciso renová-los. Se não é tarefa sim-ples e fácil, tampouco é impossível. Como dizFernando Pessoa, poeta da humanidade, “pen-sar incomoda como andar à chuva, quando ovento cresce e parece que chove mais”. Aindaque intempéries se ponham, ainda que inco-modem as tempestades, pensar é preciso.

Referências bibliográficas

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Notas

1. A expressão “plural”, ainda que adequada paraexplicar as diferenças teóricas e epistemológicas,tem servido, igualmente, para abrigar a legitimaçãode práticas autoritárias, preconceituosas e exclu-dentes. Tudo em nome da “liberdade de crença”.2. Utiliza-se aqui Universidade ao invés de univer-sidade de acordo o conceito exposto e não comouma simples organização prestadora de serviços,mercantil ou não, ou como mera instituição de ensi-no.3. Nas ciências humanas e sociais, os instrumentosde investigação às vezes se confundem com as me-todologias.4. Por solicitação da Secretaria de Ciência, Tecno-logia e Inclusão Social - SECIS, do MCT, apresen-tei uma pré-proposta de política de apoio à exten-são nos mesmos moldes que a política de fomento àpesquisa e ao desenvolvimento tecnológico, a serimplementada em 2005. Tal pré-proposta, que tratado financiamento a projetos e a concessão de bol-sas, pelo CNPq e pelo MCT, conforme minha su-gestão, deverá ser amplamente debatida no Fórumde Pró-Reitores de Extensão das UniversidadesBrasileiras, a partir de uma consulta às comunida-des universitárias. 5. O que dizer, então, a propósito, do processo ins-tituído pelo MEC para avaliar os cursos e as univer-sidades?6. O que diria Tragtenberg sobre a Gratificação deEstímulo à Docência - GED, instituída pelo governodos Professores Fernando Henrique Cardoso (Pre-sidente) e Paulo Renato Souza (Ministro de MEC),que gratificava financeiramente os professores dasInstituições Federais de Ensino Superior a partir deum conjunto de itens que compunham uma pontua-ção (aulas, artigos, participação em congressos, nú-mero de dissertações orientadas, etc.)?

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1. A crise do estado brasileiro e o avançodas reformas estruturais nos anos 1990:

uma abordagem introdutória

Na última década do século XX emergeuma nova forma de relação entre o público e oprivado no Brasil: trata-se da parceria que en-volve o Estado e o Terceiro Setor (TS), no âm-bito da execução e da gestão de políticas públi-cas na área social, sobretudo na educação.

Para refletir sobre essa nova forma de par-ceria entre o público e o privado, tomaremospor base a hipótese de que o forte crescimentodo TS no Brasil vem se consolidando a partirda conjuntura dos anos 1990, tendo em vistaque os governos que assumiram o poder nesteperíodo, na tentativa de dar uma saída para acrise do Estado, introduziram profundas re-formas na sua estrutura, as quais dentre outrosobjetivos, tinham como base a redução da esfe-ra de ação do Estado na plena execução e nagestão das políticas públicas voltadas para asdemandas sociais da população.

A crise que se configurou no Estado brasi-leiro ao final dos anos 1970, e que, segundoafirmam vários autores, é a maior crise da nos-sa história republicana, decorreu da crise eco-nômica mundial, a qual produziu fortes impac-tos nos países da América Latina, em particu-lar no Brasil.

No âmbito dos países desenvolvidos, aprimeira metade da década de 1970 represen-tou o ponto de inflexão no desenvolvimentodo paradigma keynesiano que fundamentou,do ponto de vista político, econômico e so-cial, o Estado de bem-estar dos países decapitalismo avançado na Europa ocidental,após a 2a Guerra Mundial. Isto se deveu aofato de que este contexto, com o esgotamen-to do modelo taylorista-fordista e do WelfareState, determinou o fim da prosperidade quevinha sendo experimentada pelo capitalismono pós-guerra - de 1945 a 1973 - período queo historiador inglês Eric J. Hobsbawm chamade a era de ouro.

É dentro desse panorama que a década desetenta vai marcar uma nova etapa na qualocorreram profundas transformações no capi-talismo, bem como nos Estados nacionais,inaugurando-se, a partir daí, aquilo que os es-tudiosos sobre o tema definem como sendouma nova ordem mundial.

Na vasta literatura produzida acerca dacrise e as transformações do capitalismo verifi-cada durante a década de 1970, grande partedos autores, pertencentes aos mais diversoscampos do conhecimento e às mais diferentesmatrizes ideológicas, procurou desenvolverestudos analíticos focalizando as mudançasque redefiniram a conjuntura internacional, a

Estado e terceiro setor: os (des)caminhos da nova parceria

público e privado na Educação1

Jailson dos Santos

Professor do departamento de administração educacional da faculdade de educação da UFRJ.

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partir da crise do Welfare State. Grande partedessas análises mostrou que a crise do capita-lismo nos países desenvolvidos provocou for-tes impactos no chamado bloco das nações emdesenvolvimento, as quais tiveram que operarprofundas mudanças com a finalidade de seadaptarem às novas condições demandadaspelo capital nas últimas décadas do século XX.

Gonçalves (1994), Anderson (1995), Hobs-bawm (1995) e Fiori (1997) foram unânimesem apontar que o ano de 1973 se constituiuno ápice da grande crise do modelo econômi-co do pós-guerra, quando o mundo capitalis-ta se viu mergulhado numa profunda reces-são, combinada com altas taxas de inflação ebaixas taxas de crescimento. Segundo essesmesmos autores essa crise econômica fez comque o mundo perdesse as referências no cam-po político-ideológico, que vinham nortean-do os governos dos países capitalistas após a2a Guerra Mundial, para dar lugar a uma novaordem mundial, caracterizada pela ascensãodas teses neoliberais, que no final do séculoXX tornaram-se hegemônicas no mundocapitalista.

É dentro deste panorama, que se resgata oreferencial político-ideológico, cujas teses fo-ram definidas na década de quarenta pelo eco-nomista Friedrich August von Hayek no seulivro "O Caminho da Servidão", como funda-mento central do neoliberalismo como contra-ponto radical ao estado intervencionista e debem estar social.

Hayek (1987: p. 12-15), já naquele contex-to, tomava como ponto de partida a política deplanejamento econômico do Estado de bem-estar social como sendo de caráter altamentetotalitário, chegando até mesmo a afirmar quea mesma trazia no seu conteúdo algumas dasconcepções do socialismo real que penetravamdemasiadamente a fundo em toda a estruturado pensamento que, política e ideologicamen-te, norteava o Welfare State.

É nesta perspectiva que Hayek vai defenderveementemente o liberalismo baseado na eco-nomia de mercado, em contraposição ao “con-

servadorismo” que caracterizava o Estado debem-estar, expresso nos benefícios proporcio-nados à sociedade.

Para Hayek tais benefícios não se consti-tuíam num programa social propriamente dito,tendo em vista que, pela própria natureza “con-servadora” do movimento dos trabalhadores,que lutaram durante o período de crescimentoeconômico estável - era de ouro - por plenoemprego, acesso universal da população aosserviços de saúde, educação e de previdênciasocial, além de subsídios à habitação e trans-portes coletivos, dentre outros, havia uma ten-dência de defender privilégios instituídos peloEstado e de apoiar o poder governamental paraprotegê-los. Daí, o próprio Hayek sustentar atese de que a essência da posição liberal,

"(...) está na negação de todo o privi-légio, se este é entendido no seu sentidopróprio e original, de direitos que o Es-tado concede e garante a alguns, e quenão são acessíveis em iguais condições aoutros". (Hayek, 1987: p. 15).

O novo liberalismo deste final de séculoXX, o qual convencionou-se chamar de neoli-beralismo, segundo Fiori (1997: p.204-205)guarda uma diferença fundamental do velholiberalismo concebido por Adam Smith no sé-culo XVIII. Tal diferença está centrada, funda-mentalmente, no fato de que o neoliberalismodo final do século XX surgiu como uma vitó-ria ideológica, tornando-se pensamento hege-mônico em quase todo o planeta, principal-mente após a derrota do socialismo do leste eu-ropeu, e dessa forma, conseguiu legitimar uma"espécie de vingança selvagem do capital con-tra a política e os trabalhadores", na medida emque o "fundamentalismo liberal" passou a sevoltar contra o modo pelo qual o Welfare Statevinha dirigindo as políticas públicas em bene-fício da sociedade.

É esse ataque dos neoliberais que provocouo verdadeiro desmonte dessa obra igualitáriado Estado de bem-estar, para dar lugar à gran-de bandeira das reformas, que se propagou, in-clusive na América Latina, como sendo a

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“tábua de salvação” dos países da região para aentrada no período de “prosperidade” no novomodelo de desenvolvimento.

Todo esse movimento nos impõe a seguintequestão: em que medida o neoliberalismo afe-tou as relações entre estado e sociedade?

Inicialmente, cabe ressaltar que as tesesneoliberais se originaram no espaço da acade-mia e durante os anos cinqüenta as mesmasforam adquirindo nítidos contornos teóricos,principalmente, nas universidades norte-ame-ricanas.

Embora, em termos teóricos, a matriz des-sas teses tenha sido mantida, segundo Fiori(1997: p. 207) a tradução das mesmas na práti-ca se explicitaram por intermédio das políticaspúblicas que foram aplicadas primeiramentepor Margareth Tatcher na Inglaterra no iníciodos anos oitenta, e posteriormente essa mesmaprática passou a ser seguida pelos diversos go-vernos neoliberais que assumiram o poder nasmais diferentes regiões do planeta.

É na tradução da teoria para a prática, ex-pressa pelas políticas públicas, conforme vimosanteriormente, que se define o ideário neolibe-ral e, em decorrência, passam a se estabeleceruma quase que total ruptura entre Estado e asociedade civil, no âmbito dos movimentossociais representativos dos diversos segmentosda população, e o restabelecimento de novasrelações entre Estado e sociedade, sobretudo,naquilo que se refere ao atendimento das de-mandas dos grupos da população pertencentesaos níveis sócio-econômicos mais baixos.

Segundo Anderson (1995: p. 10-11) umadas teses neoliberais, defendidas por Hayek eseus seguidores, sustentava que a origem dacrise do capitalismo no início da década de se-tenta estava centrada no poder excessivo dossindicatos, principalmente aqueles que repre-sentavam o movimento operário, tendo emvista que durante a era de ouro as pressões queeles exerceram com o objetivo de reivindicarmaiores salários e fazer com que o Estado au-mentasse cada vez mais os gastos sociais, leva-ram à corrosão das bases de acumulação capi-

talista, bem como influenciaram decisivamentena crise orçamentária do Estado de bem-estar.

A saída encontrada pelos neoliberais paracorrigir tais “distorções” foi a ruptura com opoder dos sindicatos, na perspectiva de: pres-sionar para baixo os níveis salariais que os tra-balhadores tinham conquistado durante a erade ouro; provocar a diminuição dos gastos or-çamentários do Estado com o bem-estar social;e, decretar o fim do pleno emprego, a partir darestauração da taxa de desemprego.

No caso específico do Brasil, os impactosdessa crise internacional começaram a assumirmaiores proporções a partir do final dos anos1970, contribuindo, inclusi-ve, para a acelerada deterio-ração do regime militar,sendo que nos anos 1980ela se transformou na gran-de crise, sobretudo peloalto endividamento externodo país que durante operíodo 1980-1989 pagouaos credores internacionaisUS$ 147,4 bilhões, sendoUS$ 96,8 bilhões de juros eUS$ 50,6 bilhões de amor-tização da dívida2, configu-rando-se, portanto, o que a literatura denomi-na de crise do Estado brasileiro.

A expressão crise do Estado aqui é entendi-da como sendo a interrupção de um ciclo, nu-ma determinada conjuntura, representada pelaperda do dinamismo do Estado, que se mani-festa pelo enfraquecimento da sua capacidadede gestão financeira, o qual produz impactosna esfera política e nas relações entre o Estadoe a sociedade.

Para Diniz (1997: p. 11-12) a segunda meta-de dos anos 1980 representou um ponto deinflexão na trajetória do Brasil, tendo em vistao desencadeamento de um amplo processo detransformações, com desdobramentos econô-micos, socais e políticos. Tais transformaçõesse efetivaram a partir da superposição das cri-ses externa e interna, as quais passaram a invia-

É na tradução da teoriapara a prática, expressapelas políticas públicas,conforme vimos, que sedefine o ideário neolibe-ral e, em decorrência,passam a se estabeleceruma quase que total rup-tura entre Estado e asociedade civil.

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bilizar a estratégia de industrialização susten-tada pela matriz ideológica do desenvolvimen-tismo, iniciada por Vargas em 1930.

Portanto, o esgotamento simultâneo dos pa-râmetros ideológicos da modalidade interven-ção estatal, e do modelo de desenvolvimento aeles associados, se efetivou dentro de um qua-dro de transição, comprometido com o regimedemocrático, o qual se orientou através do pro-cesso de reestruturação político-institucional.

As mudanças na estrutura político-institu-cional do Estado brasileiro,frente à crise que este atra-vessou na penúltima décadado século XX, se processa-ram mediante posições entreos diferentes atores sociais.

Tendo em vista os objeti-vos deste artigo, não nos ca-be aqui fazer uma análise mi-nuciosa acerca das posiçõesdos diferentes atores sociaisque procuraram interferir,direta ou indiretamente, noprocesso de transformações

da estrutura político-institucional do Estadobrasileiro na conjuntura em questão.

Entretanto, convém ressaltar que a conjuntu-ra dos anos 1980 foi marcada pela recomposiçãode forças políticas, as quais passaram a desenvol-ver uma disputa hegemônica, na acepção grams-ciana do termo, em torno de concepções políti-co-institucionais para a sociedade brasileira.Evidentemente que no âmbito dessa disputa,que se processava entre setores representativosdo capital e os grupos vinculados aos interessesdos trabalhadores, havia algumas posições queeram consensuais entre os referidos setores, eoutras posições que polarizavam o debate.

Dessa forma podemos afirmar que, de mo-do mais geral, era consenso entre os dois seto-res a instauração de uma ordem democrática,orientada, fundamentalmente, por uma agendana qual deveria estar contemplada, dentre ou-tros aspectos: a elaboração de uma nova Cons-tituição para o país; a definição de novos parâ-

metros para a democracia representativa, coma reformulação do sistema político-partidário,culminando com a volta das eleições diretaspara o cargo de Presidente da República, inter-rompida no período da Ditadura Militar.

A polarização, entretanto, estava no projetode sociedade a ser reconstruído naquela con-juntura. Por um lado havia aqueles que defen-diam a adoção do projeto neoliberal, com basena doutrina hayekiana, que, como vimos ante-riormente, já tinha sido implantado nos paísesda Europa e nos Estados Unidos3, e que naconjuntura da década de 1980 vinha solapandoos direitos conquistados pelos trabalhadoresao longo das lutas por eles empreendidas du-rante as décadas anteriores.

Por outro lado o que se verificava era a pro-posta baseada na social democracia européia, aqual se fundava na construção de um Estadode bem-estar social, com o objetivo de garantiros direitos sociais dos trabalhadores, promo-ver a inclusão da parcela da população que nãotinha acesso à saúde, educação, transporte esaneamento básico e promover a melhor distri-buição de renda.

Essa polarização esteve presente no Con-gresso Nacional durante todo processo consti-tuinte, transcorrido no período 1987-1988, namedida em que a lei máxima do país deveria seconstituir no marco legal para a implantaçãodo novo projeto de sociedade, e, em decorrên-cia, o novo papel a ser desempenhado pelo Es-tado, em função da crise.

Promulgada a Constituição, em outubro de1988, o que se verificou foi uma série de polê-micas em torno da mesma, as quais se explici-taram por intermédio das análises mais contro-vertidas em torno desse instrumento, que viriaser de capital importância para o destino eco-nômico, político e social do país.

Alguns analistas procuraram definir que aConstituição de 1988 estabeleceu um empateentre o atendimento das demandas dos setoresliberal conservador e progressistas.

É inegável a vitória parcial do setor pro-gressista em alguns pontos da Constituição de

A polarização estava noprojeto de sociedade aser reconstruído naquelaconjuntura. Por um ladohavia aqueles que defen-diam a adoção do projetoneoliberal, por outro ladoa proposta baseada nasocial democracia euro-péia.

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1988, que, tendo em vista que a forte mobiliza-ção da sociedade civil, através entidades repre-sentativas dos trabalhadores e dos setores mar-ginalizados da população, viu contempladonos dispositivos da Carta Constitucional, den-tre outras demandas: a garantia dos direitos so-ciais e individuais; a limitação da jornada sema-nal de trabalho a quarenta e quatro horas; orestabelecimento das eleições diretas para ocargo de Presidente da República; e um capítu-lo específico para a educação o qual de um mo-do geral atendeu as várias das reivindicaçõesdo movimento docente.

Entretanto, não podemos deixar de levarem conta que a Constituição de 1988, do pontode vista do marco legal, se constituiu no maisforte instrumento através do qual foi possívelconcretizar a hegemonia do setor liberal con-servador, na medida em que havia dispositivosconstitucionais que abriram o flanco para aaplicação das diretrizes neoliberais no país pe-los governos que estiveram no poder na con-juntura da década de 1990.

Roberto Campos, ferrenho defensor daeconomia de mercado e da desestatização, emseu trabalho "O Ajuste de Curto Prazo: ques-tões políticas e filosóficas" apresentado no Fó-rum Nacional, realizado em 1990, portanto,logo no primeiro ano da gestão de FernandoCollor de Mello, naquela conjuntura propôsao Poder Executivo que exercesse uma açãomais incisiva no sentido de reformular o Es-tado brasileiro, dentro dos parâmetros das te-ses hayekianas, já que a Constituição promul-gada em 1988 dava ao Governo da União oselementos essenciais para a execução de umprograma modernizante.

Dessa forma, deveria ser utilizada aquilo queo autor chama de política de convicção, isto é, oprograma apresentado durante a campanha elei-toral por determinado candidato, uma vez vito-rioso nas urnas, é o que deve ser a aplicado inte-gralmente pelo governo eleito, independente-mente das posições opostas dos atores sociais, aexemplo do que fez Reagan nos Estados Unidose Thatcher na Inglaterra, quando assumiram o

poder daqueles estados na década de 1980.Neste sentido, Roberto Campos defendia a

posição de que cabia ao então Presidente Fer-nando Collor de Mello dar início à uma amplareforma do setor estatal dentro dos parâmetrosdo projeto neoliberal, tendo em vista que aConstituição de 1988 dava plenos poderes aoExecutivo de realiza-la, na medida em que: oartigo 164 conferia ao Poder Executivo doGoverno da União a prerrogativa de demitirfuncionários públicos, reorganizar a estruturada administração pública, alterar a arquiteturagovernamental e cortar gastos; o artigo 173previa a diminuição da in-tervenção do Estado na eco-nomia, através da amplaprivatização das empresasestatais; e o artigo 38 dasDisposições Transitóriasprevia que União, DistritoFederal, Estados e Municí-pios, poderiam promoverum grande corte nos gastospúblicos ao limitar as des-pesas de pessoal em 65% do valor das respec-tivas receitas correntes.

Fernando Collor de Mello venceu as elei-ções presidenciais de 1989 com 49,94% dosvotos válidos, e na sua agenda modernizadora,segundo Fiori (1996: p. 153) constava, dentreoutros pontos, os seguintes: reforma adminis-trativa, patrimonial e fiscal do Estado; renego-ciação da dívida externa; abertura comercial;desregulamentação salarial; e a prioridade ab-soluta para o mercado como orientação básicae caminho para a integração econômica inter-nacional e a modernidade institucional.

A despeito de todo o apoio do setor liberalconservador e do aparato constitucional quelhe dava plenos poderes para empreender a re-forma do setor estatal com base nos funda-mentos das teses hayekianas, alem de ter tido oseu programa legitimado nas urnas por comcerca de 35 milhões de cidadãos, a agenda pro-posta para o mandato de Fernando Collor deMello não pode ser cumprida na sua plenitude,

A Constituição de 1988,do ponto de vista domarco legal, se constituiuno mais forte instrumen-to através do qual foipossível concretizar ahegemonia do setor libe-ral conservador.

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tendo em vista os problemas de corrupção aque esteve envolvido, juntamente com o nú-cleo do seu governo, levaram ao CongressoNacional, com o apoio quase unânime da so-ciedade, a decretar o seu impeachment ao finaldo seu terceiro ano de mandato.

Com o impedimento de Fernando Collorde Mello, e, em decorrência, a ocupação do

cargo de Presidente da Re-pública pelo vice ItamarFranco em dezembro de1992, embora de forma ain-da tímida, foi dada a conti-nuidade ao ciclo de refor-mas, apesar dos problemaspolíticos que encontrou aoassumir o governo. Nestaperspectiva, Itamar Franco

centrou suas ações basicamente no âmbito dasprivatizações das empresas estatais, e neste as-pecto foi muito mais incisivo do que o GovernoCollor de Mello4.

Entretanto, do ponto de vista do desenvol-vimento de uma reforma do Estado no sentidomais amplo, ou seja, aquela que é capaz de des-montar toda a sua estrutura no sentido de mo-dificar as relações com a sociedade, principal-mente em termos de gestão e de execução depolíticas públicas na área social, o período go-vernado por Collor de Mello-Itamar Franconão foi capaz de produzir uma política de re-forma do Estado com contornos mais nítidos ede modo mais definido, embora Collor, de mo-do mais afoito tivesse dado os primeiros passosno início do seu governo.

2. A era FHC e as relações estado e terceiro setor: os (des)caminhos das novas formas de parcerias público-privado na educação

O período governado por Fernando Hen-rique Cardoso (FHC) (1995-2002) represen-tou a conjuntura na qual as políticas de refor-mas, nos diferentes setores da esfera pública,foram implementadas de modo mais incisivo.

É importante ressaltar que a vitória de FHC

se deu no primeiro turno das eleições presi-denciais de 1994, nas quais obteve 34.364.961votos, o que representou 54,27% dos votosválidos. Em termos de sustentação política,FHC, vinculado ao Partido da Social Demo-cracia Brasileira (PSDB), que teve o apoio doPartido de Frente Liberal (PFL) durante toda asua campanha eleitoral, ao assumir o poderpassou a contar, além do PFL, obviamente,com o apoio das bancadas do Partido do Mo-vimento Democrático Brasileiro (PMDB) e doPartido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Nesta perspectiva, verifica-se que FHCconseguiu compor um governo de espectroideológico de centro-direita, através de umacoalizão, que segundo Meneguello (1998: p.73) que era detentora de 76% das cadeiras naCâmara dos Deputados e 84% das cadeiras noSenado, ao longo do seu primeiro mandato,ocorrido no período 1995-1998.

Todo esse aparato em termos de sustentaçãopolítica, por parte de grande parcela da socie-dade, tendo em vista a vitória conquistada nasurnas no primeiro turno, e o forte apoio da ba-se governista formada no Congresso Nacional,possibilitou a FHC por em prática a chamadapolítica de convicção, como vimos anterior-mente, no sentido de operar profundas refor-mas estruturais no âmbito do Estado brasilei-ro, quer do ponto de vista econômico, quer doponto de vista administrativo-gerencial.

É dentro desse quadro que FHC transfor-mou a Secretaria da Administração Federal daPresidência da República (SAF) em Ministérioda Administração Federal e Reforma do Estado(MARE) e nomeou Luiz Carlos Bresser Pereirapara ministro do referido órgão e, em decorrên-cia desta ação, estavam lançadas as bases para oinício do processo da reforma do Estado.

Segundo afirma o próprio Bresser-Pereira(2003: p.325), foi com base nas experiênciasdos países da OCDE (Organização para Co-operação e Desenvolvimento Econômico),principalmente o Reino Unido, que durante adécada de 1980 “implantou a grande reformaadministrativa da história do capitalismo”, que

Itamar Franco centrousuas ações basicamenteno âmbito das privatiza-ções das empresas esta-tais, e neste aspecto foimuito mais incisivo do queo Governo Collor de Mello.

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ele, juntamente com a sua equipe do MARE,elaboraram, ainda no primeiro semestre de1995, o “Plano Diretor da Reforma do Aparelhode Estado”, o qual continha os fundamentos eos princípios que orientaram toda a ação refor-madora do governo, e que estabeleceu as dire-trizes necessárias à implantação de uma admi-nistração pública fundada no modelo gerencial.

É a partir desse panorama que elaboramosas seguintes questões que irão nortear as nos-sas análises acerca da temática central dessetrabalho: quais foram os pressupostos que fun-damentaram a reforma do Estado? De que for-ma estes pressupostos, ao redefinirem o mode-lo administrativo-gerencial, passaram a estabe-lecer a relação entre o público e o privado,emergindo a partir daí a figura do Terceiro Se-tor na gestão e na execução políticas públicasno setor de educação?

Vamos tomar por base alguns pontos do tra-balho elaborado por L.C. Bresser-Pereira ( “Cri-se Econômica e Reforma do Estado no Brasil: pa-ra uma nova interpretação da América Latina” (produzido logo após a edição do “Plano Diretorda Reforma do Aparelho de Estado”.

Constatamos que no referido trabalho o au-tor parte do pressuposto de que a raiz dos pro-blemas da América Lática, em particular doBrasil, está na crise do Estado, mais precisamen-te na sua crise fiscal, que representa a dificulda-de do Estado “em lidar com as crescentes deman-das de diversos setores da economia e de seus gru-pos sociais correspondentes”. Da crise fiscal de-corre a crise do Estado social, a qual o Autoratribui que uma das suas principais causas

“(...) foi a estratégia burocrática ado-tada de executar diretamente os servi-ços sociais de educação, saúde e assistên-cia social por meio da contratação defuncionários públicos que passavam ater o monopólio desses serviços da mes-ma forma que um militar tem o mono-pólio da defesa do país, ou um juiz, omonopólio da aplicação da justiça.[Dessa forma] foi se tornando claro queera preciso voltar esses serviços não- ex-

clusivos de Estado, nos quais não háexercício do poder de Estado, para omercado ao mesmo tempo que se conti-nuava subsidia-los fortemente”. (Bres-ser-Pereira: 1996: p. 21).

Partindo dessa concepção, a qual estabeleceuma nova forma de intervenção do Estado nosserviços sociais destinados à população, osquais no contexto da reforma do Estado pas-sam a ser considerados como não-exclusivosde Estado, surgindo daí o que Bresser-Pereiravai chamar de Estado Social-Liberal, que é de-finido como sendo

“O Estado que continua responsávelpelos direitos básicos de saúde e educa-ção da população, mas que de formacrescente os executa por intermédio deorganizações públicas não-estatais com-petitivas”. (Bresser-Pereira: 1996: p.21).

Portanto, nesse novo modo de intervençãoestatal, que se processa dentro dos parâmetrosdo chamado Estado Social-Liberal, o Estado,como prevê o “Plano Diretor da Reforma doAparelho de Estado”

“(...) reduz seu papel de executor ouprestador direto de serviços, mantendo-se, entretanto no papel de regulador eprovedor ou promotor destes, principal-mente dos serviços sociais como educaçãoe saúde, que são essenciais para o desen-volvimento, na medida em que envol-vem investimento em capital humano.(...) Como promotor desses serviços o Es-tado continuará a subsidiá-los, buscan-do, ao mesmo tempo, o controle social di-reto e a participação da sociedade”. (Pla-no Diretor da Reforma do aparelho doEstado: 1995). Os grifos são meus.

A reforma do Estado implementada peloMARE, sob a liderança do Ministro Bresser-Pereira, restabelece novas bases no âmbito dofinanciamento, da gestão e da execução de po-líticas públicas na área social, na medida emque a doutrina que passou a fundamentar a re-lação entre o Estado e a sociedade foi definidaa partir dos pressupostos do Estado Social-

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Liberal, a qual tem como um de seus objetivosprincipais o da redução da ação da esfera esta-tal, nos chamados setores não exclusivos deEstado, que dentre outros inclui a educação.

Conceitos como parceria, relação público-privado, setor não-exclusivo de Estado, EstadoSocial-Liberal, dentre outros, são inseridos noideário da reforma do Estado, e passam a ori-entar o novo modelo administrativo-gerencial,que, em última análise, significa retirar do Es-tado a obrigação de se responsabilizar integral-mente pela oferta dos serviços sociais voltadospara a população, principalmente para os seg-mentos de baixa renda, conforme havia sidodefinido na Constituição Federal de 1988.

Portanto, é nesta conjuntura, marcada pelaincapacidade do Estado em gerar recursos paraatender às demandas sociais, que o chamadoTerceiro Setor se desenvolve e, dessa forma,passa a dominar a cena na relação entre o pú-blico e o privado, assumindo responsabilida-des, antes atribuídas ao Estado, no sentido deexecutar e promover a gestão das políticas pú-blicas nos mais diferentes setores de atividades.

Alguns pesquisadores, são unânimes emafirmar que o conceito de Terceiro Setor vemsendo definido de forma imprecisa. SegundoMontaño (2003: 53-54) a imprecisão do con-ceito de Terceiro Setor, funciona ideologica-mente para encobrir um fenômeno real, isto é,o desmonte do padrão da intervenção estatalna área social, construído ao longo da história.

Na verdade, como afirma o autor acima re-ferido, essa realidade fica escamoteada quandose procura construir o consenso no qual

“supostamente o terceiro setor teriavindo para “resolver” o problema dedicotomia entre público e privado. Opúblico identificado sumariamente como Estado e o privado considerado com omercado ( concepção claramente liberal.Se o Estado está em crise e o mercadotem uma lógica lucrativa, nem um nemoutro poderiam dar resposta às deman-das sociais. O “terceiro setor” seria a ar-ticulação/intersecção materializada en-

tre ambos os setores: o “o público porémprivado", a atividade pública desenvol-vida pelo setor privado (...)”

Embora reconheça a imprecisão dos concei-tos associados à de Terceiro Setor e até mesmoas contradições entre eles, consideramos que éimportante partir de uma definição mínima deTerceiro Setor, com o objetivo de desenvolveruma reflexão acerca da forma pelo qual as ins-tituições de caráter público porém privadas sedesenvolveram no Brasil, bem como o papelque passaram a desempenhar na execução e nagestão de políticas públicas na área social, prin-cipalmente, no âmbito da educação.

Neste sentido vamos nos basear na defini-ção de Teodósio (2002), o qual entende Tercei-ro Setor como sendo

“uma gama variada de organizaçõesque vão desde entidades sem fins lucra-tivos, instituições filantrópicas, funda-ções, projetos sociais ligados a empresas,dentre outras, e tendo como destaque aschamadas ONGs (Organizações NãoGovernamentais”.5

Com relação aos números do chamado Ter-ceiro Setor nos mais diferentes países, os dadosda pesquisa coordenada pelo Instituto de Es-tudos da Religião (ISER) e pela The Johns Hop-kins University, mostram que em 1998 nos 35países nos quais o estudo foi realizado, o Ter-ceiro Setor movimentou US$ 1,33 trilhão. Istosignifica que, caso o conjunto das organizaçõesque compõem o Terceiro Setor fosse considera-do um Estado nacional, ele estaria ocuparia asexta posição no ranking dos maiores PIBs domundo, ficando à frente de países como a In-glaterra, Itália, Espanha e Canadá.

No caso específico do Brasil, a pesquisa re-cente, realizada pelo Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística (IBGE) em parceria como Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada(IPEA), mostrou que o número total de insti-tuições que compõem o Terceiro Setor, que em1996 era formada por 107.332 entidades, passoupara 275.895 Fundações Privadas e Associaçõessem Fins Lucrativos no ano de 2002.

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Segundo Montaño (2003: p. 214) no Brasilos governos da União, dos estados e dos muni-cípios têm se constituído numa fonte impor-tante de recursos para o Terceiro Setor, que seefetiva através das parcerias, através das quais oEstado vem destinando vultosas quantias àsorganizações não-governamentais, que vãodesde a renúncia fiscal (isenção de impostos),terceirização, subvenções etc.

No caso específico do governo da União,constatamos que tem sido transferindo às ONGsaltas somas do seu orçamento para a execuçãode políticas públicas nas diversas áreas sociais,em particular para a educação, cumprindo as-sim as diretrizes estabelecidas pela reforma doEstado, as quais dentre outros aspectos se efe-tivam através dos programas de parcerias emter o Estado e o Terceiro Setor.

Tomando por base a execução orçamentáriado Governo Federal entre 2000 e 2002, consta-tamos que neste período, segundo os dados databela 1 a seguir, foram destinados à Associaçãode Apoio ao Programa de Alfabetização Solidá-ria, Organização não Governamental responsá-vel pela execução do Programa Alfabetização So-lidária, um total de R$ 206.235.600,00, sendo queos valores foram sendo aumentados gradativa-mente ao longo deste mesmo período, atingin-do no ano de 2002 um acréscimo da ordem de322,19% em relação ao primeiro ano de imple-mentação do referido Programa.

Em 2003, portanto, no primeiro ano de man-dato do governo de Luiz Inácio Lula da Silva,segundo os dados apresentados pelo Jornal OGlobo de 03/05 de 2004 na matéria intitulada “AForça das ONGs no Governo”, foram repassa-dos para as entidades privadas sem fins lucrati-

vos cerca de R$ 1,3 bilhões, em transferênciasdiretas e sem licitação. Do total destes recursosrepassados, R$ 1,077 bilhão foi destinado às ati-vidades de responsabilidade do governo, como éo caso do programa de alfabetização.

Estas cifras são significativas na medida emque representam 44,8% do que foi destinadosaos estados (R$ 2,4 bilhões (e 41,4% dos recur-sos recebidos pelos municípios ( R$ 2,6 bilhões(através das transferências voluntárias (semexigência constitucional).

O gráfico 1 a seguir mostra que dos vários ór-gãos da administração direta que mais repassa-ram recursos para as ONGs no ano de 2003 fo-ram: a saúde, que transferiu R$ 251,8 milhões; ea educação que repassou R$ 138,4 milhões.

Gráfico 1

Transferências Voluntárias da União Para as ONGs

FONTE: Jornal O Globo de 03/05/2004.

O curioso na questão destes repasses, estáno fato de que o Ministério do Planejamentoutilizou, em 2003, os serviços do MovimentoBrasil Competitivo (MBC), instituição vincu-lada ao Terceiro Setor, para prestar consultoria

Ciência & Tecnologia

TABELA 1Recursos Destinados à Associação de Apoio ao Programa deAlfabetização Solidária e a Evolução Percentual. 2000-2002

ANO VALOR Evolução %(Em R$ 1,00)

2000 24.302.000 -

2001 79.333.600 226,45

2002 102.600.000 322,19

TOTAL 206.235.600 -

Fonte: Balanço Geral da União, 2000-2002.

1,405

5,762

7,537

11,054

14,003

15,021

25,113

33,653

34,542

64,886

85,014

138,464

251,801 SA Ú DE

EDUCA ÇÃ O

G.P.REPÚB.

D.AGR Á RIO

TURISMO

JUSTIÇA

AGRICULT.

DEFESA

ESPORTE

CULTURA

M.AMBIENTE

INTEGRA ÇÃ O

PLANEJAM.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE44 - DF, Ano XV, Nº 35, fevereiro de 2005

no sentido de reduzir o desperdício e melhorara gestão do serviço público. Como nos mostrao gráfico 1 o Ministério do Planejamento re-passou para o MCB a importância de R$ 1,4milhão, sem licitação, para desenvolver e testarmetodologias de gestão em um conjunto deprogramas do governo federal, sendo que oobjeto do contrato é tão amplo que permite,na prática, estender o trabalho dessa organiza-ção para toda a máquina administrativa.

No que se refere ao exercício de 2004, con-forme nos mostram os dados da tabela 2, o or-çamento do Fundo Nacional do Desenvolvi-mento da Educação (FNDE) previu um totalde R$ 236,84 milhões a serem transferidos àsONGs, para a execução de alguns programasdo setor de educação, sendo que o Brasil Es-colarizado, destinado à educação de jovens eadultos recebeu a maior fatia do orçamento

Tabela 2*Recursos Aprovados no Orçamento do FNDE Para Execução de Alguns Programas do Setor

de Educação Pelas ONGs. 2004

Programa Valor Aprovado(Em R$ Milhões)

Brasil Escolarizado 213,34Cultura Afro-Brasileira 0,70Identidade Étnica e Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas 1,90Valorização e Formação de Professores e Trab. em Educação 12,60Escola Moderna** 8,30TOTAL 236,84

*Tabela elaborada a partir dos dados acerca de Fundos Públicos, disponíveis napágina eletrônica da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais(ABONG). http://www.abong.org.br/. Acesso em 28 de nov. 2004.** Apoio à Adequação de Prédios Escolares para Educação Especial

Considerações finaisO discurso que presidiu a reforma do Esta-

do no Brasil na conjuntura dos anos 1990, ti-nha como um dos seus fundamentos tese deque era necessário racionalizar as funções esta-tais no sentido de torna-lo mais eficiente nagestão e na execução das políticas públicas.

A partir das análises que fizemos nas seçõesanteriores, constatamos que os governos queassumiram o poder no último decênio do sécu-lo XX e neste início de século XXI, insistiram

em nos mostraram uma realidade: a de que oEstado é ineficiente para executar e gerir aspolíticas públicas destinadas ao setor de educa-ção, ao mesmo tempo em que é eficiente parafinancia-las através de vultosos recursos quesão transferidos às ONGs, sem a devida licita-ção, tendo em vista a ausência de um marcolegal capaz de regulamentar tais repasses.

Paulo Arantes, em entrevista concedida àFolha de São Paulo em 18 de julho de 2004, noschama a atenção para o fato de que a economiabrasileira na conjuntura atual se resume ao ser-viço da dívida externa, com a finalidade de ga-rantir a renda mínima do capital, que não tem omenor interesse que ela (a dívida externa) umdia seja paga. Dessa forma vem se produzindoprogressivamente as funções estatais “por umafauna de ONGs”, que se tornaram verdadeirasmáquinas de sucção dos recursos do Estado.

É dentro desta lógica que os arquitetos daspolíticas do setor público vêm procurando“solucionar” a crise do Estado, que se efetivaatravés das parcerias público e privado, cujoresultado, como vimos anteriormente fez cres-cer em 157,0% as instituições do Terceiro Se-tor, no período de 1996 a 2002, o qual coincidecom a implantação da reforma do Estado, fun-dado no modelo de Bresser-Pereira, que emúltima análise ampliou a ação da esfera privadaem detrimento da esfera pública, fundado natese da propalada eficiência do mercado emcontraposição à ineficiência do Estado.

Entretanto, os dados por nós analisados ante-riormente mostram que, o caminho trilhadopela parceria entre o Estado e o Terceiro Setor,não tem sido eficiente no sentido de solucionaros problemas da sociedade brasileira, na medidaem que continuamos com graves problemas naárea social, sobretudo no setor de educação.

Notas

1. * Trabalho apresentado no Curso MBA Gestãoem Educação, promovido pela Fundação JoãoGoulart -Instituto de Estudos de AdministraçãoPública da Cidade do Rio de Janeiro.

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2. Os dados foram obtidos através do trabalho deMarcos Arruda, O FMI e a Desintegração do ConeSul. Rio de Janeiro/RJ: PACS - FASE - UFRJ,1992, p.64.3. Para maior aprofundamento acerca do que repre-sentou a implantação do neoliberalismo nos paísesavançados ver Perry Anderson, “Balanço do Neo-liberalismo”. São Paulo: Paz e Terra, 1992. Ver tam-bém José Luis Fiori, “Os Moedeiros Falsos”. Pe-trópolis/RJ: Vozes, 1997.4. Segundo os dados apresentados pelo BancoNacional de Desenvolvimento Econômico e Social(BNDES), durante o Governo Itamar Franco(1993-1994) o patrimônio líquido vendido à inicia-tiva privada ficou em torno de US$ 14,5 bilhões,enquanto que no período Collor (1990-1992) asprivatizações, no que se refere ao patrimônio líqui-do giraram em torno de US$ 7,8 bilhões.5. Nessa definição o autor se fundamenta em Car-rion, Rosinha Machado (2000). Organizações Pri-vadas sem Fins Lucrativos ( a participação do mer-cado no terceiro setor. Tempo Social. Revista deSociologia da USP. São Paulo: Vol. 12 nº 2.

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Opresente trabalho está dividido em duaspartes. Na primeira fazemos uma críticado Documento II do MEC, comparando-

o com leis e medidas provisórias já editadassobre a Reforma Universitária, e procurandoexplicitar seu real significado. Nesta parte nosutilizamos de alguns estudos levados à cabopor grupos de trabalho do ANDES, e seuobjetivo é publicizar os trabalhos já realizadossobre o assunto, e, ao mesmo tempo, apresen-ta-los reunidos de uma forma orgânica.

Na segunda parte discutimos a possibilida-de de uma luta docente unificada contra estaReforma, procurando estabelecer os pressu-postos conceituais desta unidade.Crítica do documento “Reafirmando princí-pios e consolidando diretrizes da Reforma daEducação Superior” (Documento II, MEC, 2de agosto de 2004)

Para entendermos o verdadeiro sentido doDocumento II do MEC, é necessário com-preender os pressupostos conceituais sobreuniversidade, e, mais do que isto, sobre socie-dade, que norteiam este documento. Estespressupostos não ficam nem um pouco clarosem um documento no qual, generalidades, emprincípio corretas, são em seguida negadas pororientações e diretivas concretas que apontamem direção oposta ao que tinha sido afirmado,em que conceitos, bem definidos e justos , são

logo depois deformados, ganhando novo sen-tido, enfim um documento eivado de contradi-ções, conceitualmente inconsistente, e quesobretudo busca um alardeado consenso, exa-tamente na falta de clareza e na ambigüidadede sua interpretação. Quando nos situamos navisão de sociedade e de universidade de seusautores, e, ao mesmo tempo, examinamos asleis elaboradas sob seu arcabouço teórico, al-gumas das quais já aprovadas no congresso,podemos começar a entender melhor seu sen-tido, e o que ele realmente quer dizer.

A visão de sociedade que orienta o docu-mento é a ideologia comumente conhecida co-mo terceira via, e que tem no professor Gid-dens da universidade de Cambridge, um deseus expoentes teóricos maiores. Trata-se basi-camente da sociedade neo-liberal, com um es-tado mínimo, em que serviços de saúde e edu-cação, que em boa parte do mundo capitalista,sob inspiração da social democracia, eramprestados pelo estado, passam para a iniciativaprivada, e no qual toda a regulamentação jurí-dica das relações humanas, são subordinadas asleis econômicas do mercado. Enfim a socieda-de capitalista em toda sua pureza, mas tempe-rada, e nisto consiste a inovação da assim cha-mada terceira via, por um conceito de solida-riedade que vai tentar atenuar, na medida dopossível, as inevitáveis desigualdades do regi-

Reforma universitária e política de ciência e tecnologia

Fernando Miguel Pacheco Chaves

Professor da UFS, e membro do grupo de estudo sobre a Reforma Universitária da ADUFS

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me capitalista. Esta solidariedade se manifestana forma de assistencialismo (programa fomezero, por exemplo), de serviços sociais presta-dos pelas empresas particulares (como se res-ponsabilizar pela manutenção de uma praça dacidade), pela existência de “Organizações nãoGovernamentais” se encarregando da presta-ção de algum serviço à comunidade. Estas ati-vidades não são realizadas pelo Estado com osimpostos cobrados, mas pelas empresas, porsua livre e expontânea iniciativa, imbuídas queestão dos valores morais da solidariedade,desde que o estado lhes garanta, as condiçõesideais para a total realização e usufruto de seuslucros.

Já podemos localizar um primeiro antago-nismo frontal e de princípio entre esta concep-ção de Estado e a Universidade Pú-blica tal como atualmente existente:na visão neo-liberal, tanto quantona ideologia da terceira via, queneste ponto são idênticas, toda aeducação deveria fazer parte da es-fera da iniciativa particular, e sujei-ta também as leis do mercado.Nesta visão, aliás, é exatamente asujeição às leis do mercado, que po-dem garantir a eficiência e a inte-gração e adequação do sistema uni-versitário à sociedade à qual pertence.

O documento do ministério não pode colo-car este ponto de maneira clara e explícita,mesmo porque ele reconhece que a Universi-dade Pública é, atualmente, aquela que é capazde estabelecer o padrão maior de qualidade,tanto no ensino como na pesquisa. Além distoo governo sabe que uma diretiva neste sentido,uniria a comunidade de todas as universidadesdo país, contra a sua apregoada reforma uni-versitária.

Mas o documento aponta diversas vezesnesta direção, preparando o caminho para aprivatização. Isto acontece quando argumen-tando que tanto as instituições públicas, quan-to as privadas, prestam um serviço público, re-toma o conceito de público não-estatal de

Bresser Pereira e FHC, diluindo a fronteiraentre o espaço público e o espaço privado, ejustificando a alocação de recursos públicospara instituições privadas. Isto transparecenovamente quando no capítulo 2 --Princípiose Diretivas, no item g), coloca que: "O papeldo Estado é supervisionar a Educação Su-perior". Por último, em toda discussão de fi-nanciamento das universidades, fica evidente, atentativa de desobrigar o Estado do encargo demanter as universidades públicas--coloca-se,ora uma percentagem do montante total docusteio que ficaria por conta do Estado (75%),ora especula-se sobre possíveis parcerias dauniversidade para garantir parcelas dos mon-tantes necessários à sua manutenção, ora aven-ta-se as mais insólitas maneiras de assegurar

recursos para as universidades,como a criação de loterias com re-cursos direcionados às universi-dades. Cabe observar que se porum lado a desobrigação do estadocom a manutenção das universi-dades é consentânea com a visãoneo-liberal do atual governo, oempenho ingente em aventar asmais mirabolantes possibilidadespara a manutenção destas institui-ções, que já estava presente no

primeiro documento da Comissão Interminis-terial, se deve mais à presteza e subserviênciados nossos dirigentes no cumprimento dos di-tames do Banco Mundial e do FMI.

O caminho porém, que nos pode propiciara mais clara visão do real sentido do documen-to ministerial, e o quanto ele é antagônico aoideário de escola pública do movimento do-cente, é o da análise do conceito de universida-de que decorre do documento. O documentocoloca que a reforma da universidade é neces-sária para que esta possa ter melhores condi-ções de cumprir o “papel estratégico que lhecabe na vida brasileira”. Este papel estratégicovai sendo explicitado ao longo do texto, come-çando no estabelecimento da “missão” do sis-tema de ensino superior, que entre outras coi-

A desobrigação doestado com a

manutenção das universidades é

consentânea com a visão neo-liberal do atual governo.

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sas deve promover uma “profunda relaçãocom a sociedade” [2, item e)]. Na continuaçãoda leitura, vamos compreendendo em que con-siste esta profunda relação: trata-se de minimi-zar as desigualdades sociais, levar em conta, nofazer acadêmico, as diferenças regionais miti-gando também desigualdades sociais entre di-ferentes regiões, ser capaz de promover igual-dade de oportunidades entre os mais e os me-nos favorecidos economicamente, bem comode criar oportunidades para aqueles que são ví-timas de preconceito, cooperar para o desen-volvimento tecnológico e portanto econômicodo país. Enfim um receituário, que embora nãomuito novo nem original, é, em tese aceitável,nisto consistindo o alardeado consenso de to-do o mundo acadêmico em torno dos princí-pios gerais do documento.

Cabe então um primeiro questionamento:se necessitamos de uma ReformaUniversitária de largas proporçõespara que a universidade possacumprir a missão acima exposta,segue-se que a universidade públi-ca brasileira atual, embora reco-nhecida no próprio documentoministerial, como de bom nível,pelo menos em ensino e pesquisa,não vem, ou vem de forma muitoineficiente, cumprindo esta suamissão. Não nos iludamos-- a visão do gover-no sobre a universidade pública brasileira éexatamente esta que transparece no documen-to do MEC: universidades possivelmente atécompetentes para ministrar seus cursos, e rea-lizar uma pesquisa de bom nível, mas inteira-mente incapazes de traduzir estas atividades nobenefício social que delas se poderia esperar, emais ainda, cada vez mais elitistas, uma vez quetem que selecionar frações cada vez menoresda demanda total pelo ensino de terceiro grau,para compor o seu quadro discente. É destavisão que decorre toda a estrutura das direti-vas da Comissão Interministerial para a Re-forma Universitária, e também, consequente-mente, a estrutura do documento do MEC.

Para ser implementada a Reforma Univer-sitária tem que se apoiar, sempre segundo odocumento, na criação de adequadas “condi-ções políticas” e adequadas “condições acadê-micas”. As condições políticas se assentam so-bre o tripé: “autonomia”, “avaliação”, e “fi-nanciamento”. Comecemos nossa análise, peloconceito de autonomia, que é o ponto nevrál-gico da apregoada reforma, e ao mesmo temposerá o elemento básico de nossa análise críticado documento e sua desmistificação.

Depois de situar a liberdade acadêmica co-mo “pressuposto da Educação Superior, argu-mento central da justificativa da existência des-sas instituições e valor maior que deve ser zela-do e preservado por todos os integrantes dosistema”, coloca a autonomia como sendo “pa-ra a instituição universitária, o correlato jurídi-co da liberdade acadêmica” [4.1 Autonomia].

E em seguida, no mesmo tópico,[4.1] --- “A Autonomia é inerenteao conceito de Universidade e écondição indispensável ao funcio-namento pleno desta Instituição. Aprópria figura jurídica da Univer-sidade merece ser diferenciada peloatributo que a Constituição, atra-vés do Art. 207, lhe confere”.

Este belíssimo conceito de auto-nomia, colocado de forma tão clara,

enfática, e nos termos absolutos que realmentelhe cabem -- não existem formas, nem graus deautonomia: ou há autonomia, ou não há; e aautonomia é inerente e elemento essencial dopróprio conceito de universidade, -- começa, lo-go no tópico seguinte [4.3 Avaliação e Regula-ção], a ser esgarçado quando se afirma: “Se asociedade define os fins mais amplos, a Auto-nomia consiste em responsabilizar a Univer-sidade pela escolha dos meios, ”... “que melhor apromovam”. E logo em seguida, ainda no mes-mo tópico [4.3], é completamente deturpadoquando se estabelece graus de autonomia a se-rem conferidos a cada universidade dependendode sua avaliação: “incentivos e maior autonomiapara as instituições mais bem avaliadas”.

Ou há autonomia, ou não há; e a autonomia é

inerente e elementoessencial do próprio

conceito de universidade.

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A evolução que sofre o conceito de autono-mia no decorrer de um mesmo documento, emais que isto, em um mesmo capítulo, é por sisó, um fato digno de nota. Mas não nos inte-ressa aqui simplesmente apontar a inconsistên-cia conceitual do documento da ComissãoInterministerial, mas entenderporque, dentro de sua visão deuniversidade, os autores são leva-dos a esta contradição, e como estemesmo processo de raciocínio,dentro desta mesma visão de uni-versidade, se estende e acaba con-traditando e invalidando a grandemaioria dos chamados “Princípiose Diretrizes da Reforma” que fi-cam então reduzidos ao que real-mente são: letra morta a encobrircom belas palavras as reais inten-ções do governo para com este pa-trimônio cultural imenso da nação que sãosuas universidades públicas.

Vamos então mostrar a cadeia de deduçõesque leva à completa negação do conceito de au-tonomia. Recordemos que o atual governoadota como modelo de sociedade o sistemaneo-liberal, temperado por uma abstrata soli-dariedade trazida pela ideologia da, assim cha-mada, terceira via, como explicamos acima. Es-tabelece então como missão da universidade,contribuir para o processo de desenvolvimen-to social da nação, mas, alicerçado no direitoque lhe é conferido pelo “mandato popular deque o Governo está investido” [2. Princípios eDiretrizes] toma como paradigma desta evolu-ção, a sua própria visão de sociedade. Com-preende porém que boa parte da comunidadeuniversitária não comunga deste ponto de vis-ta, e assim, tem que inventar uma série de es-quemas para induzir a comunidade a se ade-quar à esta sua visão de sociedade. Sua princi-pal arma para o bom andamento deste intentoé o montante de recursos destinado à manu-tenção das universidades. A avaliação apareceentão como outro elemento essencial de todoeste processo; avalia-se as instituições, por seu

“Plano de Desenvolvimento e Gestão” [4.2Financiamento], e avalia-se o professor porum critério de produtividade a ser definido,que virá a ser expresso por uma pontuação.Esta pontuação vai determinar inclusive oregime de trabalho do professor: “Na mesma

perspectiva, o regime de Dedica-ção Exclusiva deve ser condicio-nado a rigoroso acompanhamen-to individual, com avaliações pe-riódicas e comprovação de pro-dutividade acadêmica” [6.2 Ges-tão]. O resultado destas avalia-ções, feitas segundo o critério daadequação da atividade universi-tária à política desenvolvimentistaneo-liberal do governo, vai se tra-duzir então, tanto no montantede recursos alocados à cada insti-tuição, quanto no desenvolvi-

mento da carreira do professor.Trocado em miúdos, esta é a estratégia do

governo para realizar as condições políticas dasua reforma universitária, e entendemos agorao porque do tripé, autonomia, avaliação finan-ciamento. A deformação do conceito de auto-nomia, na colocação do documento é a com-pleta liberdade acadêmica concedida à Univer-sidade, para que ela cumpra, e desde que cum-pra, o projeto estabelecido pelo governo vai apar com a destruição de um outro conceitofundamental da vida acadêmica, qual seja o dauniversidade entendida como o espaço por ex-celência do livre debate de idéias. Este outroconceito também está mencionado no docu-mento do MEC, mas vemos que é, novamente,letra morta, colocado apenas para encobrir oque na verdade está sendo dito.

Toda esta montanha de autoritarismo, mas-carado por um discurso que se pretende a todocusto democrático, está fundamentado em umequívoco conceitual e filosófico. Entendem osautores do documento, que de um lado está ogoverno, que, pela investidura que lhe conce-deu o voto popular, tem o direito de pensar asociedade e estabelecer seus rumos e critérios

O atual governoadota como modelode sociedade o siste-

ma neo-liberal, temperado por umaabstrata solidarieda-de trazida pela ideo-logia da, assim cha-mada, terceira via.

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de desenvolvimento; de outro lado está a uni-versidade, que será então tanto mais social-mente referendada quanto mais puder colabo-rar neste projeto de desenvolvimento do go-verno. É nesta separação metafísica em doispólos de pensamento, sem a compreensão dotrânsito dialético das idéias e a mútua interaçãoentre as diferentes esferas sociais, que está oerro básico do documento. Alem do mais es-quecem-se, estes senhores que montaram taldocumento, que a universidade sim, é que é ocampo mais propício e mais fértil para a elabo-ração da crítica social, e para a descoberta denovos e mais justos modelos de sociedade; quequando nos referimos à educação e à formaçãodo cidadão crítico, é exatamente a isto que esta-mos nos referindo (como eles aliás repetem,mas aparentemente sem terem entendido). Es-quecem-se finalmente que até a ideologia queeles, com tanto empenho defendem, o néo-libe-ralismo-terceira via, foi discutida e elaboradaem universidades --entre elas a Universidade deCambridge--e no caso, por isto mesmo, estaideologia não nos convém: estamos na periferiasubjugada do mundo neo-liberal globalizado.

Tendo esclarecido os equívocos conceituaisem que se alicerça o II Documento Interminis-terial, tanto no que concerne à concepção desociedade, quanto no que tange à visão de uni-versidade, fica mais simples localizar os engo-dos e as falácias das diferentes diretivas conti-das no documento. Passemos a analisa-las se-paradamente, observando que se encontramem diferentes estágios de imple-mentação, indo desde aquelas quejá foram convertidas em leis que,por sua vez, já foram aprovadas,até as que estão apresentadas ape-nas à nível de uma colocação geralde idéias.

1* Política de cotas.Consiste em garantir um per-

centual mínimo de cotas nas vagasdo vestibular, para alunos que cur-saram integralmente o Ensino Mé-

dio em escolas públicas, e para alunos perten-centes à grupos étnicos discriminados.

Não vamos discutir aqui se esta é uma boamaneira de combater a discriminação racial.Observemos, em primeiro lugar, que esta éuma solução típica da visão neo-liberal-tercei-ra via de sociedade. De fato, o Estado, incapazde garantir um padrão de vida digno para todapopulação, inclusive com acesso à uma educa-ção de bom nível em todos os graus, procuraminimizar o problema, garantindo artificial-mente vagas na Universidade Pública, parauma parte, necessariamente muito pequena, depessoas provenientes de camadas menos favo-recidas, desta sociedade construída na base dadesigualdade. Dissemos necessariamente mui-to pequena, porque sabemos que a Univer-sidade Pública atende atualmente uma pequenafração da demanda global por ensino superiordo país, e assim, a troca de alguns alunos, queem uma seleção de competência fariam jus àuma vaga na universidade, por outros queobtém esta vaga provando que provem de umacamada social menos favorecida, em nada ame-niza o problema da carência do atendimentoeducacional para o conjunto da população.Além disto, o favorecimento de alunos menospreparados, em detrimento de alunos mais pre-parados, nunca poderá ser considerada umasolução de grande justiça, do ponto de vistapedagógico, quaisquer que sejam as justificati-vas aventadas para tal solução. E mais do queisto, esta solução pode resultar em completo

desastre, mesmo para aqueles pre-tensamente por ela favorecidos,pois eles podem afinal não apre-sentar condições para seguir umcurso para o qual se classificaram,não por razão de competência, maspor razões de política sócio-eco-nômica. Alias este é um bomexemplo da humanização que aterceira via traz para o capitalismona sua fase de globalização neo-liberal não chega sequer a ser umpaliativo; não passa de mero engo-

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O Estado, incapaz degarantir um padrãode vida digno para

toda população, procura minimizar o

problema, garantindoartificialmente vagas

na Universidade Pública.

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do; de auto engano para aplacar a consciênciacristã dos dirigentes e dos mais favorecidos, ede demagogia, para tentar fazer crer à grandemassa dos excluídos, que alguma coisa estásendo feita para eles.

A política de cotas fere ainda um princípiofundamental do ideário de Universidade, qualseja o da liberdade acadêmica. Recordemosque na sua seção de belas declarações, o docu-mento do MEC tinha colocado a autonomiacomo o correlato, para a instituição, da liber-dade acadêmica, e a autonomia, na mesma se-ção, era vista como um atributo essencial dopróprio conceito de Universidade. Mas que li-berdade acadêmica é esta, em que até a percen-tagem de alunos aprovados em um determina-do momento de seu processo deformação, já vem estabelecida porlei? Na base desta argumentação,aliás, é que a UFRJ decidiu, atravésde seus conselhos superiores, nãoacatar a política de cotas.

Temos que reconhecer porém,que esta é uma das poucas idéias,senão a única, que foi bastante ven-tilada e discutida antes de ser pro-mulgada e aprovada, como lei, eque, apesar de todas as críticas que vem sofren-do, conta com o apoio de parte do professora-do; por exemplo a Universidade de Brasília jávem dando os primeiros passos no sentido desua implementação.

2* Programa Universidade para Todos (PROUNI)

Este programa consiste na concessão debolsas de estudo integral para cursos de gra-duação e seqüenciais de formação específica,para estudantes carentes em instituições parti-culares de ensino superior, com ou sem fins lu-crativos. No início estabelecia-se uma rendafamiliar de até um salário mínimo para qualifi-car o que seria o estudante carente; este limitefoi posteriormente um pouco aumentado. Es-tas bolsas de estudo seriam concedidas pelaspróprias instituições particulares, que se com-

prometeriam em garantir para o programa10% de suas vagas, as quais seriam retiradas desuas vagas ociosas, e que teriam em contrapar-tida, completa isenção de impostos.

Nota-se neste projeto de lei, já em tramita-ção no Congresso, a diluição da fronteira entreespaço público e privado e a alocação de recur-sos da esfera pública para a privada, que apon-tamos no início deste estudo. Mas o que inte-ressa saber é, até que ponto, esta lei pode defato contribuir para o acesso à educação supe-rior, de parcelas significativas de estudantescarentes, à um custo mais baixo para o Estado,que o investimento na escola pública.

A primeira falácia que trata-se de desmisti-ficar é a qualificação de “vagas ociosas” das

universidades particulares. Veja-mos o que significa isto.

O ensino de terceiro grau, vi-nha sendo, nos últimos anos, umexcelente negócio, realizando lu-cros só inferiores aos lucros dasinstituições bancárias. Daí aliás, aextraordinária expansão do siste-ma educacional privado de tercei-ro grau. Ultimamente porém, estesistema vem sofrendo de um sério

problema: o alto nível de inadimplência quechega a atingir uma média de 40% dos alunos,os quais acabam ficando sem condições decontinuar seus estudos, gerando então as cha-madas “vagas ociosas”. Concluímos portantoque estas nada mais são, que conseqüências dosuper-dimensionamento do negócio universi-dade particular, e vemos ainda, como em umpaís pobre como o Brasil, com o povo sujeito ànível de emprego e condições salariais cada vezmais precárias, as instituições de ensino parti-culares não podem se apresentar como soluçãodo problema educacional para o conjunto dapopulação.

Ao mesmo tempo, segundo a teoria econô-mica, é o próprio mercado que deveria se en-carregar de corrigir este super-dimensiona-mento, forçando as universidades particularesà adequarem o número de vagas, à sua real de-

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A primeira faláciaque trata-se de desmistificar é a qualificação de“vagas ociosas”

das universidadesparticulares.

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manda. Mas como freqüentemente ocorre noregime capitalista, o poder do mercado, inexo-rável e absoluto quando se trata de retirar di-reitos sociais dos trabalhadores, pode ser rela-tivizado e amenizado, quando se trata de salvaros empresários. No Projeto de Lei em questão,o que se está procurando, é realizar o “pactosocial”, como é preconizado pela ideologia daterceira via, entre os empresários do ensino,que, em razão mesmo de sua natureza, estãointeressados em seus lucros, e o conjunto dapopulação, que em razão mesmo da concentra-ção de renda do regime capitalista, e ainda empaís periférico e explorado do capitalismo glo-balizado, não tem, na sua esmagadora maioria,a menor condição de pagar por seus estudos. Eeste complicado acordo seria viabilizado peloEstado, mediante a isenção de impostos dasIPES (Instituições Particulares de EnsinoSuperior).

Mas para realmente aquilatar o quanto estalei, que como mostramos, nasce basicamentede uma postura ideológica, pode ter algumaeficiência no que em princípio se propõe, ouseja, para responder à questão que já havíamoscolocado acima, temos que fazer uma análisemais detalhada, levando em conta os dadosconcretos sobre a situação da educação e omontante de investimentos necessários. Estaanálise está feita em um dos relatórios do gru-po de trabalho sobre a reforma universitária doANDES, e assim vamos reproduzir aqui algu-mas de suas conclusões. Referindo-se a ina-dimplência no setor privado privado, que é daordem de 40%, o relatório coloca:

“A situação das particulares será exótica:uma vasta parcela de estudantes das Institui-ções Particulares de Ensino Superior (IPES)está na iminência de evasão por falta de condi-ções de manter o pagamento de suas matrícu-las e mensalidades e, ao mesmo tempo, em no-me da ampliação do acesso, o Estado adquirevagas nestas instituições para os “pobres”.Com esta opção pelo setor privado, de um la-do, o Estado estaria ampliando o acesso, e, deoutro, milhares de jovens, premidos pela ina-

dimplência em virtude do caráter privado desuas matrículas, é forçado a abandonar o direi-to republicano ao conhecimento. Em 2002,ingressaram um milhão de estudantes nasIPES, enquanto apenas 315 mil concluíram,conforme o INEP (Censo INEP, 2002). O gar-galo econômico imposto pelas privadas é incle-mente. Assim, a alternativa de fortalecer o se-tor privado somente fortalecerá esse ciclo vi-cioso, ou, pelo menos até que o Estado subsi-die a totalidade dessas vagas.

Em relação aos argumentos de que a alter-nativa proposta não requer renúncia fiscal sig-nificativa, é preciso examinar a situação commais rigor. Atualmente , apenas as filantrópicas

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consomem R $ 839,7 milhões ao ano. É dinhei-ro que o Estado deixa de arrecadar: R$ 634 mi-lhões em contribuições previdenciárias aoINSS (Instituto Nacional do seguro Social) emais R$ 205,7 milhões em tributos recolhidospala Receita Federal. Caso o PROUNI sejaaprovado, mais de 1125 instituições gozaramde isenções fiscais. Embora estudos adicionaistenham de ser feitos, é razoável supor que omontante será extremamente elevado. Estudodo GTI sugere que com R$ 1 bilhão seria pos-sível dobrar o número de estudantes nas IFES.A Emenda Andifes deste ano – necessária parafechar as contas mais emergênciais – é de ape-nas R $ 58 milhões”.

Vê-se claramente neste estudo do ANDES,o quanto é irreal e contraproducente para anação, esta compra de vagas nas particulares:em síntese, se somente a perda deimpostos, que já existe pela isen-ção das instituições filantrópicas éde R $ 839,7 ao ano, imagine-sequal seria este montante, se esten-dermos esta isenção a todas as par-ticulares, ou seja a mais 1125 insti-tuições?! Por sua vez um investi-mento de 1 bilhão de reais, direta-mente nas federais, poderia trazerum fantástico aumento de suas va-gas (um aumento de 100% ).

O estudo detalhado deste pro-jeto acaba evidenciando ainda umoutro ponto mais geral, sobre esta ideologia daassim chamada terceira via. É que, se esta ideo-logia pode fazer sentido para os países desen-volvidos, que conseguem pela exploração dospaíses periféricos, garantir razoável, ou mesmobom nível de vida para uma boa parte de suapopulação, ela não tem o menor sentido paraos países periféricos do mundo capitalista glo-balizado, em que os excluídos e miseráveisconstituem a maioria da população. Como emum país como Brasil, eterna e cada vez maiscolônia de produção, como tão bem caracteri-zou Caio Prado Júnior, um país em que so-mente 8% dos jovens na faixa etária de 18 a 24

anos estão na faculdade (quando no Chile são27% e na Argentina 39%), pode ter o seu pro-blema educacional resolvido por discretas epontuais medidas paliativas como estas doProjeto de Lei que institui o PROUNI?!?

3* Projeto de inovação tecnológicaAs propostas para ciência e tecnologia, e sua

ligação com as universidades, é outro pontoem que a retórica do governo pode, à primeiravista, dar a impressão que seus projetos aten-dem às necessidades do desenvolvimento cien-tífico e tecnológico brasileiro e que poderiam,se implementados, livrar o país do atraso e de-pendência econômica em que atualmente seencontra.

Nada mais falso. A Reforma Universitáriaque o governo está pondo em prática, à revelia

e contra o pensamento de boaparte da comunidade universitária,se contrapõe às instituições públi-cas principalmente na sua caracte-rística de espaço onde se realiza apesquisa científica e tecnológica epor isto tende, isto sim, a ratificareste estado de atraso e dependênciaeconômica.

O Projeto de Lei de InovaçãoTecnológica, não está tratado nodocumento ministerial que esta-mos analisando, mas toda orienta-ção do documento se adequa per-

feitamente ao Projeto de Lei. Condizentes coma metodologia que estamos adotando neste tra-balho, vamos defender nossa assertiva do pará-grafo anterior, lembrando inicialmente o pontode vista geral sobre sociedade e universidadedo governo, para em seguida corroborar nos-sas conclusões pela análise mais detalhada dopróprio projeto.

No discurso do presidente Lula na cerimô-nia de assinatura da MP de criação do Con-selho Nacional e da Agência Brasileira de De-senvolvimento Industrial e assinatura do pro-jeto de Lei de Inovação, ele reconhece que -“Nos anos 90, o Brasil cometeu o erro de achar

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Vê-se claramenteneste estudo doANDES, o quanto

é irreal e contraproducente

para a nação, esta compra de vagas nas particulares.

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que estávamos condenados a não ter acesso àsbases tecnológicas do progresso. Restaria aoBrasil o papel de um importador tecnológicodependente, subordinado e caudatário ”. Logoem seguida observa que outros países, comopor exemplo, a Coréia do Sul, registraram sal-tos de padrão tecnológico e como conseqüên-cia, importante aumento de renda e substancialdiminuição da pobreza.

Concordamos inteiramente com o presi-dente quando ele coloca que, “nos anos 90, oBrasil cometeu o erro de achar que não podiater acesso às bases tecnológicas do progresso”,ou seja, quando ele situa nosso atraso tecnoló-gico e nossa dependência e subordinação [àpaíses mais desenvolvidos], como decorrênciade um erro, quer dizer, de uma decisão políti-ca equivocada. Mas esta políticaequivocada, não pode ser revertidasimplesmente pela criação de umaAgência Brasileira de Desenvolvi-mento Industrial e pela assinaturade um Projeto de Lei de InovaçãoTecnológica. Outras agências defomento e outras leis, em princípiobem intencionadas, existiram tam-bém em governos anteriores. Masa política equivocada, que o presi-dente Lula coloca como responsá-vel por esta errada opção peloatraso tecnológico, é algo maior emais complexo.

Esta política é toda a maneira pela qual seconcebe a inserção de nosso país na economiamundial globalizada. A visão de que o desen-volvimento e a modernização do país, só po-dem ser alcançados via importação de capital ea mais completa abertura de nossos mercadosao capitalismo internacional, tem sido a cons-tante, que vem caracterizando a política brasi-leira, com pequenas variantes, durante toda aSegunda metade do século 20. Esta política é aherdeira natural de nosso desenvolvimento an-terior, ainda como nação quase que exclusiva-mente agrária, baseado na mono cultura deexportação, e se alicerça em uma sociedade for-

temente estratificada, com grandes contingen-tes populacionais pobres e miseráveis, em regi-mes políticos que, ainda que sob variadasordens institucionais ditadura ou legalidadedemocrática são sempre caracterizados porfraca representatividade e quase nula partici-pação popular, e por uma geo-política conti-nental que nos vincula e subordina à naçãocapitalista hegemônica.

Coerente com este passado recente da his-tória político econômica de nosso país, a nossainserção no capitalismo atual globalizado éaquela que conhecemos muito bem: uma eco-nomia inteiramente subordinada ao capitalestrangeiro, seja pela presença maciça de com-panhias multinacionais, seja pela existência deuma eterna e enorme dívida para com os ór-

gãos de fomento internacionais,tipo Banco Mundial e FMI, queacarreta um fluxo contínuo dedivisas para o exterior na forma dejuros da dívida externa, bem comopermanente monitoramento denossa economia pelos funcionáriosdestes organismos internacionais.Este monitoramento não se res-tringe à aspectos financeiros, masdestes aos econômicos e dos eco-nômicos aos políticos, em umacadeia de inter-relacionamentosque leva à níveis realmente inaudi-

tos de ingerência em toda a estrutura da vidanacional. Um bom exemplo desta ingerência, éo nosso humilde pedido de permissão para em-pregar uma parte dos recursos obtidos juntoao BM e FMI para o financiamento de obrasde infra-estrutura, pedido sempre visto commaus olhos pelo FMI, mesmo quando oBrasil vem cumprindo, de forma melhor que aprevista, todos os acordos e metas estabeleci-dos com estes órgãos. Outro exemplo são asnormas que o Banco Mundial elaborou paraos sistemas educacionais das nações subde-senvolvidas.

Pois esta sim, é que é a opção política res-ponsável por nosso atraso tecnológico, subor-

A nossa inserção nocapitalismo atual

globalizado é aquelaque conhecemosmuito bem: uma

economiainteiramente

subordinada ao capital estrangeiro.

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dinação econômica e estado crôni-co de pobreza. E infelizmente estaopção política não foi modificada,pelo contrário aprofundou-se, noatual governo. Senão vejamos.

A inovação tecnológica não sedá somente, nem principalmentenas universidades. Por exemplonos Estados Unidos, segundo umestudo do professor Edwin Mans-fiel, da Universidade da Pensil-vânia, 9, em cada 10 inovações nas-cem na empresa. As condiçõesconcretas da produção, e da com-petição capitalistas, é que são osprincipais estímulos das inovaçõestecnológicas. É claro porém, quepara que ela possa existir, tem quehaver um substrato de pesquisafundamental, que, esta sim, é reali-zada principalmente na universida-de, e, sobretudo é preciso que opesquisador inovador, trabalhando na empre-sa, tenha tido uma boa formação científica, oque depende da universidade. Então comoesperar que em uma economia fundamental-mente dominada pelas empresas multinacio-nais, possa haver um grande estímulo ao pro-gresso tecnológico? As multinacionais impor-tam das matrizes seus padrões tecnológicos. Seanalisarmos as nações emergentes que temapresentado avanços tecnológicos significati-vos, como Índia, China, ou Coréia do Sul, paraficarmos nas citadas no discurso presidencial,veremos que a maneira como estes países seinserem na economia mundial, é muito dife-rente da nossa. Ora, o atual governo nada temfeito no sentido de alterar o nosso tipo deinserção como país periférico, dependente esubordinado tanto ao capital internacional eaos órgãos decisórios dos organismos que ge-renciam este capital, quanto às multinacionaisque constituem a maior parte de nossa indus-tria. Pelo contrário, vem aderindo, cada vezcom maior empenho e convicção, à uma polí-tica que acentua esta dependência. Assim,

independentemente da famosapolêmica sobre crescimento e so-bre crescimento sustentável, o quedecididamente não está crescendo,e nem poderia crescer nas atuaiscircunstâncias, é um parque indus-trial nacional, importante e com-petitivo, e, por isso mesmo, neces-sitando da inovação tecnológica, ecapaz de bancar sua pesquisa.

É crível, por outro lado, que ogoverno esteja realmente empe-nhado no desenvolvimento cientí-fico e tecnológico do país, e aomesmo tempo mantenha na penú-ria e degradação o sistema univer-sitário público que ele mesmoreconhece, no documento inter-ministerial, como responsável pormais de 90% de toda pesquisanacional? No período entre 1995 e2003 houve uma redução de

57,8% das verbas para as IFES. Nos anos doatual governo (2003 e o corrente ano de 2004),esta tendência não sofreu reversão, pelo con-trário tem sido os anos mais difíceis para aUniversidade Pública. Os Centros Federais deEducação Tecnológica, também tem sido alta-mente penalizados por esta política de contin-genciamento dos anos de 2003 e 2004.

Como explicar ainda, para um governo quese diz preocupado com a pesquisa, que reconhe-ce na pesquisa e na tecnologia os instrumentospara alavancar o progresso da nação e erradicarde vez a pobreza e a miséria do país, esta opçãopela universidade particular, nas quais, via deregra não se desenvolve pesquisa alguma?Porque então comprar vagas nas particulares, aum custo maior do que o necessário para au-mentar significativamente o número de vagasno sistema público, como mostramos acima?

Fica portanto claro, que a atual orientaçãopolítica do governo, que podemos julgar porsuas ações mais que por suas palavras, nãoaponta no sentido do progresso científico etecnológico, apesar de suas enfáticas declara-

Como explicar ainda,para um governo que

se diz preocupadocom a pesquisa, quereconhece na pesqui-sa e na tecnologia os

instrumentos paraalavancar o progressoda nação e erradicarde vez a pobreza e amiséria do país, estaopção pela universi-dade particular, nasquais, via de regranão se desenvolvepesquisa alguma?

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ções sobre a importância da ciência e tecnolo-gia para o progresso da nação e para a supera-ção de sua pobreza crônica.

Mas então qual o significado deste projetode lei de inovação, e qual sua relação com auniversidade?

O projeto de lei refere-se essencialmente àuniversidade e à parceria entre ela e a empresaprivada. Na ótica do governo, a lei pretendefazer com que a universidade aumente seus es-forços, canalizando uma parte muito maior desuas atividades, no sentido da pesquisa e inova-ção tecnológica, ao mesmo tempo que estreitesua ligação com a empresa privada, não só for-necendo a ela os resultados de sua pesquisa,como eventualmente utilizando seus pesquisa-dores, transformados em empreendedores pe-los novos e mais genéricos currículos que sepretende implantar, como executivos de novasempresas. Aumentando o lucro das empresas,a universidade estaria finalmente cumprindo amissão, que a sociedade espera, e tem mesmo odireito de dela cobrar, qual seja, de contribuirefetivamente para o progresso da nação e erra-dicação da pobreza.

O aparente primarismo e irrealidade destascolocações, servem para encobrir as reais fina-lidades das propostas desta lei, estas sim, mui-to bem fundamentadas por seus inspiradores,os teóricos do Banco Mundial, no atual esta-do de coisas, qual seja, nossa natureza de na-ção colonizada. Ao mesmo tempo,ela é extremamente competente noque se propõe, que é manter eaprofundar esta situação atual de“colônia de exportação”.

Para começar ignora-se a quetipo de empresa se está referindona lei; fica um pouco subentendi-do que trata-se de empresas parti-culares e não para estatais. Tam-bém não se distingue, se são em-presas brasileiras estrangeiras oumultinacionais. Aliás na ótica daglobalização estas distinções nãofazem mais sentido. Só que o

enorme juros que o país tem que pagar todosos anos como conseqüência de sua dívidaexterna, são em parte para garantir os lucrosdas multinacionais. O capital é internacional,mas a dívida é nacional. Mas o que queremosfrisar aqui, é que sendo a maior parte destasparcerias empresa-universidade, realizadas,pela própria natureza de nosso parque indus-trial, com empresas multinacionais, não temmuito sentido falar de inovação tecnológica.Mesmo sem excluir completamente a possibili-dade de que alguma invenção tecnológica pu-desse ser realizada na filial brasileira, e aindaneste caso a vantagem seria para a multinacio-nal e não para o desenvolvimento tecnológiconacional, é evidente que a multinacional im-porta seu padrão tecnológico da matriz. Assimnão se trata de uma parceria para inovação tec-nológica, mas como bem coloca o relatório deum grupo de estudos do ANDES: “o objetivoé transformar as IES em espaços de adequaçãotecnológica, de prestação de serviços, e de ajus-tes em processos e serviços – atividades quenão podem ser conceituadas como própriasdas universidades. Assim, esses projetos aogeneralizarem essas atividades, redefinem aprópria função social das instituições”. Pode-mos constatar, já agora, esta “redefinição” dafunção social da universidade, pelas parceriasque já vão sendo montadas, e pelo funciona-mento de grande parte das fundações privadas

que vicejam nas IES. Até certoponto então, a lei vem apenas coo-nestar aquilo que já vem aconte-cendo. Mas ela vai além, ao não so-mente explicitar e assumir de ma-neira mais clara o que já vem seesboçando neste processo de par-cerias, como levando avante o ra-ciocínio, tirar todas as conseqüên-cias que decorrem deste tipo deinteração que subordina completa-mente a Universidade à empresamultinacional.

Vejamos então estas conse-qüências, e para tanto citemos no-

Podemos constatar, jáagora, esta “redefini-ção” da função social

da universidade,pelas parcerias que jávão sendo montadas,e pelo funcionamentode grande parte dasfundações privadasque vicejam nas IES.

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vamente o relatório do grupo de estudos doANDES. “Uma das expressões mais marcantesda reconfiguração da universidade é a resigni-ficação (melhor seria falar em desconfiguração)do trabalho docente. No PL o processo deconversão do professor em um empreendedoré denominado eufemisticamente de “Moderni-zação das relações de trabalho”.

A nova legislação, conforme Min. C&Toferece uma espécie de gratificação para quemproduzir conhecimentos que venham a serusados por empresas: “vamos dar ao pesquisa-dor a oportunidade de ser também um em-preendedor” (Campos)(OESP,29/4).

De fato, o Art. 9 do referido PL estabeleceque o professor envolvido na prestação de ser-viço poderá receber contribuição pecuniária dainstituição na forma de “adicional variável”ou, como estabelece o Art. 10, “bolsa de estí-mulo à inovação”. Na prática isto significamais repasse de recursos públicos para o setorempresarial. O PL tem de ser compreendidoportanto, no bojo das PPP que prevêem a apli-cação de fundos federais em projetos de “inte-resse comum” para acelerar a incorporação detecnologias pelas empresas”.

Vemos, do que até aqui foi ex-posto, a completa desconfiguraçãodo trabalho acadêmico, mas comuma promessa de melhores ganhospara o pesquisador. Subsiste aindaa impressão de que esta nova regu-lamentação, apesar de tudo, pode-ria alavancar o progresso tecnoló-gico. Na continuação do relatóriodo ANDES, a quem devolvemos apalavra, a análise de outros artigosdo Projeto de Lei, traz à luz o pre-ço à pagar por esses ganhos adicio-nais, e o tipo de avanço tecnológi-co que se está almejando, e se eleinteressa à nação: “A conversão doprofessor em empreendedor estáexpressa no Art. 14, que asseguraao inventor ou ao autor - de proje-to, processo ou serviço - participar

em até um terço dos ganhos econômicos aufe-ridos pela instituição. Até mesmo a transfor-mação do professor em empresário é permiti-da. O docente pode se afastar por até 6 anospara tentar um a carreira empresarial (e atémesmo para constituir empresa). Durante operíodo de afastamento são assegurados aoprofessor o vencimento do cargo efetivo,acrescido das vantagens pecuniárias permanen-tes estabelecidas em lei e ainda progressão fun-cional e benefícios da seguridade. Em suma,todas as garantias para o empresariamento sãoasseguradas pelo Estado (Art. 15, 16). A priva-tização dos recursos públicos fica patente, aocanalizar recursos que deveriam ser investidosnas universidades, em pagamento de salários adocentes e funcionários e em pesquisas, parapermitir que docentes possam tentar se colo-car no mercado agora como empreendedores,sem qualquer risco ou ônus para sua carreiraprofissional e sem qualquer custo para as em-presas. Essa conversão obviamente não é semconseqüências para o trabalho acadêmico. Oprofessor empreendedor, embora possa fazerjus a alguma remuneração extra, terá que insti-

tuir a censura e a mordaça nas sa-las de aula e laboratórios.

Art. 13: É vedado a dirigente, aocriador ou a qualquer servidor, em-pregado ou prestador de serviços deICT divulgar, noticiar ou publicarqualquer aspecto de criações decujo desenvolvimento tenha parti-cipado diretamente, ou tomadoconhecimento por força de suas ati-vidades, sem antes obter expressaautorização da ICT.

É importante ressaltar que oartigo citado não se refere apenas asigilo sobre produção industrial,mas afeta inclusive questões relati-vas à ética de pesquisa, notada-mente em seres humanos e nomeio ambiente, por exemplo proi-bindo a divulgação de efeitos noci-vos de determinado procedimento

A privatização dosrecursos públicos ficapatente, ao canalizarrecursos que deve-riam ser investidosnas universidades,em pagamento de

salários a docentes efuncionários e em

pesquisas, para per-mitir que docentespossam tentar se

colocar no mercadoagora como

empreendedores.

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ou substância. Serias de se esperar,frente ao acúmulo de conhecimen-to produzido pelos Comitês deÉtica em Pesquisa, que a legislaçãoobrigasse a empresa a fazer tal di-vulgação, assim como o pesquisa-dor e sua instituição de origem. OPL coloca a mordaça em todos,docentes, funcionários e estudan-tes, envolvidos ou não com o pro-jeto em questão.

Cumpre ressaltar que todoconhecimento, tecnologia, proces-so ou produto derivado de investi-mento público - sob a forma depessoal, instalações, equipamentosou recursos - constitui patrimôniopúblico, deve ser acessível a todose reverter em benefícios para todaa sociedade. A apropriação privadado conhecimento e seu uso parafins lucrativos não se inscrevem no campoético e sua instalação como modo de funciona-mento na Universidade Pública constitui maisum elemento para sua resignificação, sua des-construção. Essa orientação colide não só como preceito constitucional da autonomia didáti-co- científica das Universidades, como agrideos preceitos constitucionais de liberdade deprodução, expressão e circulação de conheci-mentos e saberes. Essa questão, por si mesmaextremamente grave, é magnificada pelas radi-cais transformações da política de financia-mento de C&T.

O investimento público em ciência e tecno-logia (C&T) é extremamente baixo no Brasil.A reivindicação histórica da Universidade e domovimento docente sempre foi, não apenas pe-lo aumento de recursos, mas pela autonomiadas instituições, grupos de pesquisa, progra-mas de pós-graduação na aplicação destes par-cos recursos. Na contramão destes anseios e daexperiência de outros países que promoveramum salto qualitativo, em seu desenvolvimentocientífico e tecnológico, o Projeto de InovaçãoTecnológica desvia os já parcos recursos para

controle direto das empresas, des-troçando a pesquisa básica, a pes-quisa nas áreas sociais e humanas etoda a pesquisa que não seja deinteresse imediato do mercado ca-pitalista dependente. (Art. 19)

Por fim, nos Art. 10, o projetoexplicita e dá concretude ao Pro-jeto de Parceria Público Privada,ao estabelecer que as empresas,por não possuírem departamentosde pesquisa e desenvolvimento, aexemplo do que acontece em suasmatrizes, poderão subordinar asUniversidades em mera prestadorade serviços, atendendo a seus inte-resses específicos e imediatos. Anecessidade de desqualificar aUniversidade e de viabilização deprivatização do [bem] públicochega ao paroxismo no Art. 20,

que propugna mesmo o descarte da Uni-versidade, ao possibilitar que a União contratediretamente empresa privada para a realizaçãode pesquisa e desenvolvimento”.

Vemos assim, de maneira insofismável oquanto a Universidade é agredida por esteProjeto de Lei na autonomia, que lhe confere aconstituição, e o quanto a ética e a própria le-gislação acadêmica são violadas por uma leique institui o segredo na produção do conhe-cimento, flexibiliza as relações de trabalho edesrespeita o estatuto do concurso público e asnormas do direito público. O caráter subordi-nado da pretendida pesquisa tecnológica e ino-vação que esta lei procura regulamentar, tam-bém já está muito claro. Vamos agora mostrarque esta lei, se aprovada e implementada, podeinviabilizar qualquer pesquisa e portanto qual-quer inovação tecnológica.

Comecemos porém por um outro ponto. Játemos colocado algumas vezes ao longo destetrabalho, que no ideário neo-liberal, o ensino,incluindo o ensino universitário, não deveriaser custeado pelo Estado. O Governo não po-de, por razões que já aventamos, assumir aberta-

No ideário neo-libe-ral, o ensino, incluin-do o ensino universi-tário, não deveriaser custeado peloEstado. O Governo

não pode, por razõesque já aventamos,

assumir abertamenteesta posição, mas

procura a todo custoimaginar as mais

variadas formas definanciamento para aUniversidade Pública.

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mente esta posição, mas procura a todo custoimaginar as mais variadas formas de financia-mento para a Universidade Pública. Com a re-gulamentação das parcerias universidade empre-sa, reaparece o velho mito de que a Universidadepoderia obter uma parte significativa de seu sus-tento, das empresas com as quais “colabora”.

Não é difícil mostrar que isto não poderiaacontecer. De início, isto já seria impossívelporquanto nas parcerias que se estruturassemsegundo a regulamentação da Lei de Inovação,já vimos que seria mais provável a transferên-cia de recursos do Estado para as empresas, doque o contrário. Mas mesmo em parceriasmenos espúrias, isto também não aconteceria.Por exemplo, nos EUA, o financiamento dasuniversidades por meio de captação de recur-sos privados é reduzido: dos US $ 27,5 bilhõesalocados em pesquisa em todas universidadesestadunidenses em 1999, apenas 7,5% foramobtidos de contratos com empresas. Os cercade US $ 2 bilhões captados nas empresas pelasuniversidades representam 1,4% dos quase US$ 180 bilhões investidos em pesquisa e desen-volvimento nas empresas estadunidenses noreferido ano.

Para entendermos porque na verdade estalei, se aplicada em toda sua poten-cialidade inviabilizaria toda pes-quisa e portanto qualquer real ino-vação tecnológica, temos que en-tender que a inovação tecnológicaé o elo final de uma cadeia forma-da por: pesquisa básica, pesquisatecnológica, inovação tecnológica.A pesquisa básica é a pesquisa emciência básica. O progresso cientí-fico é que permite o aparecimentode novas tecnologias. Por sua vez, o avançotecnológico, em um movimento dialético, con-tribui para o progresso científico. Não podehaver pesquisa tecnológica, sem um forte su-porte de pesquisa em ciência básica.

Voltando agora ao documento interministe-rial, fica patente que o que está nele proposto éum aligeiramento do ensino científico. Sob

pretexto de evitar a especialização prematura,de alargar a visão do estudante para o funcio-namento da sociedade em seus múltiplosaspectos, enfim de contribuir para a formaçãodeste novo cientista, o cientista-empreende-dor, chega-se à sugerir um currículo, com doisanos básicos sem nenhuma matéria especializa-da da área. Imagine-se um curso de Física quenos dois primeiros anos não houvesse nenhu-ma disciplina nem de Matemática nem de Fí-sica?!! O aligeiramento dos estudos fica tam-bém patente nas sugestões dos chamados "cur-sos seqüenciais”.

Ora, toda esta orientação pedagógica é con-dizente com o modelo de pesquisa tecnológicapreconizado pela Lei de Inovação. Vimos quenela não se trata realmente de pesquisa, massim de prestação de serviços, ou de adequaçãode tecnologia. Para isto não é necessária umasólida base científica, e, possivelmente, outrosconhecimentos sejam mais úteis, qual sejamaqueles preconizados no documento intermi-nisterial. As sugestões pedagógicas do docu-mento interministerial são a mais cabal confis-são de que nem a Reforma Universitária, nemsua parceira correlata, a Lei de Inovação, temcomo escopo o incentivo à pesquisa científico-

tecnológica. Ao mesmo tempo aadoção de um currículo como osugerido pelo documento intermi-nisterial, arrebentaria com a forma-ção científica dos estudantes e tor-naria impossível qualquer avançocientífico- tecnológico do país. Nãoé com uma educação científica ali-geirada que vamos conseguir o pro-gresso e a almejada independênciatecnológica. As avaliações do nível

educacional, feitas pela UNESCO, de países quetem tido maior avanço tecnológico, mostramque eles também vem se distinguindo por exce-lente nível de educação científica em todos osgraus.

O que pretendem os teóricos do BancoMundial, que são os verdadeiros inspiradores,tanto da Lei de Inovação, quanto do Docu-

Imagine-se um cursode Física que nos doisprimeiros anos nãohouvesse nenhumadisciplina nem deMatemática nem

de Física?!!

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mento Interministerial, é manter e aprofundaro atraso científico-tecnológico de nosso país.Isto porque é exatamente o nosso atraso cien-tífico- tecnológico que justifica e mesmotorna necessária a instalação das multinacio-nais em nosso país, trazendo a tecnologia quenão possuímos, mas ao mesmo tempo comtodas as conseqüências que tão bem conhece-mos: perpétuo endividamento, economiaeternamente subordinada às grandes corpora-ções, permanente fluxo do capital,gerado pelo nosso trabalho, parao exterior, atraso, pobreza, e mi-séria de nosso povo.

Vamos compreendendo então,à medida que avançamos na aná-lise do documento interministe-rial e das leis que vem sendo cria-das, a verdadeira finalidade dessaReforma Universitária que pode-mos situar em um contexto mun-dial.

Faz parte da essência do capita-lismo a existência de uma comuni-dade exploradora, que detém osmeios de produção, e que por istosão os detentores da riqueza pro-duzida com esses meios, e umacomunidade explorada que vende a sua forçade trabalho. Esta divisão foi ganhando diferen-tes formatos no mundo moderno, passando deuma divisão entre classes sociais, no interior deum único país, para a exploração de países intei-ros, obviamente com a conivência de certas eli-tes desses países, por grandes empresas interna-cionais, as multinacionais-- detentoras das mo-dernas tecnologias de produção. É então abso-lutamente necessário que os países exploradosse mantenham em um nível tecnológico depen-dente, porque é basicamente isto que conduz àexploração e permite existência mesmo do siste-ma capitalista globalizado. Por isto organiza-ções como o Banco Mundial, que são organiza-ções destas grandes corporações internacionais,passaram a estudar políticas educacionais que seadequassem, sob esta ótica, aos países subdesen-

volvidos, que historicamente vem fazendo partedas nações exploradas. A finalidade destas polí-ticas, que é a finalidade da própria ReformaUniversitária em questão, é portanto a de impe-dir o avanço científico-tecnológico das naçõespara as quais são elaboradas.

4* AvaliaçãoA análise do Documento Ministerial, e das

diferentes leis que estão tramitando, ou direta-mente postas em execução atravésde Medida Provisória, quandofeita à luz das concepções ideoló-gicas que as sustentam, revela umtodo orgânico e bem articulado, eque existe em função de uma causafinal muito bem definida. Mas háuma dificuldade primordial eóbvia para sua efetiva implementa-ção nas Universidades. Elas alte-ram, não raro profundamente, arotina, o cotidiano e sobretudo oespírito do fazer acadêmico. Mes-mo sem pensar em uma resistênciaprincipial a estas medidas, a suaefetiva implementação seria pro-blemática pela simples ignorância,seja dos professores seja das admi-

nistrações, em como faze-la. O caminho maisnatural para superar esta dificuldade, seria ini-ciar todo um processo de divulgação destasidéias, seguido de longa discussão nos meiosacadêmicos, procurando então destila-las, con-sensualiza-las, e sobretudo torna-las claras pa-ra a grande maioria dos professores.

O Governo não escolheu este caminho e éfácil entender porque. Uma análise mais deta-lhada do âmago das idéias contidas neste planode reformas, muito possivelmente levaria àconclusões semelhantes às deste trabalho e à deoutros tantos análogos feitos por diferentesgrupos de estudos de professores sobre a Re-forma Universitária. É bastante sintomáticoque os temas que foram colocados há maistempo em discussão, são aqueles ligados à tin-tura de “humanização” do neo-liberalismo-

O que pretendem osteóricos do Banco

Mundial, que são osverdadeiros inspira-

dores, tanto da Lei deInovação, quanto do

DocumentoInterministerial, é

manter e aprofundaro atraso científico-

tecnológico de nosso país.

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terceira via, tipo cotas para as etnias discrimi-nadas, ou alunos de baixa renda, que apesar dairrealidade que faz com que estas soluções nãosejam sequer paliativas, são sempre mais sus-ceptíveis de despertar alguma simpatia no pro-fessorado e de não encontrar tanta oposição.Quanto ao grosso e ao essencial da reforma, ogoverno vem procurando faze-la passar semmuita discussão, evitando mesmo o processonormal de tramitação no Congresso, e editan-do-as por MP.

Tendo optado pelo caminho da imposição enão da discussão o governo conta com umaimportante arma para implementar uma refor-ma, que uma boa parte da comunidade acadê-mica não sabe muito bem do que se trata, e osque sabem estão, em geral, em desacordo: ocontrole do dinheiro. Este controle será feitotanto no montante de recursos a serem aloca-dos nas IFES, quanto sobre o salário dos pro-fessores. E o instrumento que vai monitoraresses repasses é a avaliação.

A velha questão da avaliação, tanto das uni-versidades, quanto dos professores – sendoque esta última já vinha existindo, na forma deuma contagem de pontos válida para uma as-sim chamada “gratificação produtivista” aGED adquire agora um sentido muito precisoque está colocado no II Documento Intermi-nisterial. Não é por acaso que neste documen-to, a avaliação é um dos pés quesustentam o tripé das condiçõespolíticas da reforma.

O controle do montante derecursos a serem alocados nasIFES, será feito pela avaliação noMinistério da Educação de umplano de trabalho elaborado pelosdirigentes de cada instituição, cha-mado Plano de Desenvolvimento eGestão (PDG). O Reitor defenderá junto aoMEC este plano de trabalho, e esta defesa naspalavras do II DocumentoI Documento In-terministerial

“deve constituir-se em momentoespecial no qual o poder executivo, re-

presentante dos interesses gerais da na-ção, harmoniza-se e estabelece coerên-cia com os interesses específicos de ca-da Instituição ”.

Assim, de acordo com o resultado da análi-se deste plano feita pelo MEC será garantida àinstituição o “devido financiamento”.

No Documento Interministerial não estánem clara nem precisamente definidos, os cri-térios que vão nortear este julgamento. As ex-pressões muito vagas de que a universidade de-ve cumprir sua “missão”, contribuir para dimi-nuir as diferenças regionais, ser capaz de se in-tegrar ao sistema produtivo, e outras tantas ge-neralidades do mesmo jaez, nos indicam po-rém a que critério será submetido este julga-mento: obedecer às finalidades da ReformaUniversitária. Mas já aprendemos quais sãoestas finalidades quando analisamos o Projetode Lei de Inovação Tecnológica. O que esta-mos mostrando agora, e isto sim está claro noDocumento Interministerial, é que o grau desubmissão aos propósitos da reforma, é quevai determinar o grau de financiamento dasIFES. E isto será feito pelo julgamento do Pla-no de Desenvolvimento e Gestão.

Existem além disto dois outros institutos deavaliação: o Sistema Nacional de Avaliação daEducação Superior (SINAES) a Comissão Na-cional de Avaliação da Educação Superior (-

CONAES). Aparentemente po-rém, é a avaliação do PDG que vaideterminar os montantes de quepoderão dispor as instituições.

O outro instrumento de “con-vencimento” do professorado dasexcelências da reforma que estásendo pro(im)posta à comunidadeuniversitária, é o salário do profes-sor. Neste caso, a apreciação simul-

tânea de três documentos, a saber: Projeto de Leide Inovação Tecnológica, II Documento Inter-ministerial, e a Medida Provisória promulgadaem 27 de Agosto, aquela que instituiu uma gra-tificação para o professorado contrariando fron-talmente as reivindicações do movimento

O grau de submissãoaos propósitos da

reforma, é que vaideterminar o grau de financiamento

das IFES.

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docente, nos proporciona a exata medida do pa-pel e da força da avaliação que está sendo pro-posta, na quebra de resistências à reforma.

A Medida Provisória restabelece para o anoque vem a GED, a qual, no novo formato vaiaté uma pontuação máxima de 175 pontos. Isto,com o novo valor do ponto, significará para oprofessor doutor uma gratificação de cerca deR $ 2900,00, o que, tendo em vista o atual acha-tamento salarial é, sem dúvida, um aumentomuito expressivo. Entretanto amedida nada adianta sobre os crité-rios desta pontuação, colocandotão somente que eles serão estabe-lecidos dentro de um prazo de 180dias.

O II Documento Interministe-rial por sua vez estabelece que:

“Na mesma perspectiva,o regime de Dedicação Ex-clusiva deve ser condicionado a rigorosoacompanhamento individual, com ava-liações periódicas e comprovação deprodutividade acadêmica”.

Vemos assim que a partir do ano que vem, agratificação produtivista (GED) no seu novoformato, tem, em termos financeiros, um al-cance muito maior. Mais do que isto, a avalia-ção individual do professor, da qual a avaliaçãoda GED é uma das formas, adquire um caráterque transcende o montante de valor de umagratificação, mas atinge o salário de maneiramuito mais séria, pois pode significar para odocente a perda da DE.

O artigo citado do II Documento Minis-terial, também não esclarece muito os critériosdesta avaliação, uma vez que a expressão “pro-dutividade acadêmica” pode dar margem amuitas interpretações. É porém mais que ra-zoável inferir, que, como a Medida Provisóriaestabelece um prazo de 180 dias para a regula-mentação dos critério da nova GED, e comoneste prazo, se tudo correr bem para o Gover-no, a Lei de Inovação Tecnológica já deveráestar em vigor, os critérios para a pontuação daGED estarão necessariamente relacionados às

novas atividades propostas nesta lei. Esta infe-rência é tanto mais justificável porquanto já te-mos mostrado neste estudo, o quanto as dife-rentes peças que se englobam na denominaçãode Reforma Universitária, a saber, medidasprovisórias, leis e projetos de lei, e diretrizesministeriais são coerentes e se articulam organi-camente e dentro de uma ideologia claramentedefinida. Então o critério de “produtividadeacadêmica”, do II Documento Ministerial, e os

critérios, a serem definidos em 180dias da Medida

Provisória, certamente se rela-cionam com as atividades do novoprofessor pesquisador-empreen-dedor, e a avaliação, e conseqüenteremuneração do professorado vaiser, como no caso das instituições,proporcional ao seu grau de ade-são às novas atividades propostas

pela Reforma Universitária.

Buscando a unidade do movimentoO panorama que traçamos no tópico ante-

rior sobre a Reforma Universitária, a colocasob um prisma tenebroso: mais do que a des-construção do fazer acadêmico, o que está emjogo é a desconstrução da própria nacionalida-de. Sim, porque por um lado desarticula-se in-teiramente os estudos científicos, portanto apesquisa científica, consequentemente a pes-quisa tecnológica, e por fim a inovação e o do-mínio de tecnologias de ponta, que na visãounânime, incluindo aí o próprio Governo, é,nos dias atuais, a condição “sine qua non”, daexistência de uma nação próspera e soberana. Epor outro lado, toda a ênfase dos novos proje-tos propostos no bojo desta reforma, está naárea científica e tecnológica. É para ela, e gra-ças a ela, que vão se constituir as parcerias coma industria, da qual advirão os recursos tantopara as instituições quanto para os professores;é para a área científico tecnológica, que estãopensados os novos conceitos redentores doprofessor pesquisador-empreendedor. Comopor sua vez, nada está colocado quanto à res-

Mais do que a des-construção do fazeracadêmico, o que

está em jogo é a des-construção da própria

nacionalidade.

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ponsabilidade do Estado na manutenção daUniversidade, e pelo contrário, todas as novasidéias visam, entre outras coisas, eximir o Es-tado de sua responsabilidade para com as mes-mas, conclui-se que toda a área de CiênciasHumanas, aí incluídas Ciências Sociais, Filoso-fia, Comunicação e Artes, continuará no esta-do de penúria e abandono em que atualmentese encontra toda Universidade Pública, com aagravante que agora vai se tratar de uma situa-ção de miséria a elas especificamente dirigida,relegadas que serão a um completo segundoplano.

Não podemos deixar de admirar a engenho-sidade dos teóricos do Banco Mundial, que ins-piraram estas políticas para a Universidade. Porum lado enfatizam a importânciade um apoio à área científico tec-nológica, mas organizam uma es-tratégia que leva ao mais completoatraso e subordinação do país nestaárea, e por outro lado relegam àum completo segundo plano a áreade humanas, com todas as conse-qüências daí decorrentes, e que in-teressam e muito aos defensores daglobalização neo-liberal, quais se-jam: o enfraquecimento das áreasde história, economia e sociologia,essenciais para a formulação deuma política libertadora para opaís, e ao mesmo tempo, uma tendência deperda dos referenciais artísticos e da identidadecultural da nação

Sendo assim este é o momento em que espe-raríamos e necessitaríamos a maior mobilizaçãoe a maior unidade do professorado em defesada Universidade Pública e da soberania denossa pátria. Entretanto, pelo contrário, poucasvezes o movimento docente esteve tão fraco eprincipalmente tão desunido quanto no atualmomento. Pudemos constatar isto, entre outrascoisas, acompanhando o processo reivindicató-rio deste ano, e seu desenlace na malograda ten-tativa de uma greve nacional contra a MP 208.

Será que a leitura do professorado dos do-

cumentos do Governo relativos à ReformaUniversitária é diferente daquela que estamosapresentando no presente trabalho?

Embora uma avaliação política desta nature-za seja sempre um exercício incerto, dado ogrande número de parâmetros envolvidos e adificuldade na atribuição do peso específico decada um deles, se temos a intenção de apontarum direcionamento político capaz de construiruma luta unificada contra a pretendida reformado governo, neste momento em que isto parecequase uma utopia, temos que tentar enfrentaresta dificuldade. Neste sentido, a resposta à per-gunta que acabamos de colocar, é a de que nãose trata propriamente de uma leitura diversa,mas sim, em geral, de uma falta de leitura.

O II Documento Interminis-terial,--Reafirmando Princípios eConsolidando Diretrizes da Refor-ma da Educação Superior --é relati-vamente recente: de 2 de Agosto.Embora contenha pontos funda-mentais da reforma, eles estão diluí-dos, como já temos comentado, emuma série de generalidades, e o seuverdadeiro sentido só fica claro,quando cotejado, como temos ten-tado fazer neste escrito, com outrosdocumentos, como o Projeto deLei de Inovação Tecnológica e coma MP 208. O PL de Inovação Tec-

nológica por sua vez, embora mais antigo (deAbril de 2004) não teve maior divulgação.

Desta maneira, excetuando os professoresmais ligados à uma militância no movimentodocente, que vem se organizando em gruposde estudos para analisar e debater os documen-tos, a grande maioria do professorado só está apar do projeto Prouni, que tem sido divulgadona imprensa, e que tem sido aliás bastante cri-ticado, e do projeto das cotas para pessoas so-cialmente excluídas, cuja apreciação divide oprofessorado.

Tirando estes dois aspectos, o entendimen-to da comunidade docente das universidadessobre a Reforma Universitária é um tanto va-

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Por um lado enfatizam a impor-

tância de um apoio àárea científico tecno-lógica, mas organi-zam uma estratégia

que leva ao maiscompleto atraso esubordinação do país nesta área.

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go: suspeita-se, e mesmo isto, só para os quealém de politizados não estão ligados à mili-tância partidária e conservam independênciade pensamento, (voltaremos a este ponto emseguida), que se trata de mais uma reforma decaráter neo-liberal, no estilo e gosto do atualgoverno, mas não se tem idéia do quanto elaestá articulada nos diversos documentos ( leis,projetos de lei, documentos genéricos de dire-trizes, e medidas provisórias) e sobretudo nãose tem idéia de seu alcance.

Quando foi promulgada a Medida Provi-sória 208, pondo fim autoritariamente a mesesde negociação entre o ANDES e o MEC, efazendo tabula rasa da reivindicação docentepor isonomia, paridade com os inativos e fimda gratificação produtivista, é evi-dente que isto chocou e teve o re-púdio da imensa maioria dos do-centes. Mas se apesar de tudo, aMP não foi o bastante para levar oprofessorado a uma greve unifica-da, isto se deve ao fato dele não tersabido ligar a MP aos demais docu-mentos e leis sobre a reforma, nãoter entendido que a manutenção dagratificação produtivista na MP fazparte da permanente avaliação do-cente, que por sua vez é um do pi-lares das condições políticas da reforma, esobretudo por não ter podido aquilatar o realsignificado da reforma como elemento desa-gregador da nacionalidade em todos os senti-dos, científico tecnológico e cultural, e seu pa-pel portanto, na manutenção de nossa eternadependência das nações mais desenvolvidas.

Sobre a divisão no interior do movimentodocente, que se fez sentir muito forte durantetodo este ano, podemos apontar algumas cau-sas importantes. Talvez a primeira delas estejaligada ao que aconteceu na política nacionalcom a eleição do governo Lula e a subida doPT ao poder. Muitos dos militantes do movi-mento docente estavam também ligados ao PT.

Na medida em que o governo petista nopoder, passa a implementar as reformas neo-

liberais, estes militantes se dividem entre aque-les que se colocam contra esta política, afastan-do-se portanto do PT, e aqueles que conti-nuam ligados ao PT e então têm uma leitura di-ferente sobre as próprias reformas, não se co-locando decididamente contra elas. Estamosapenas mencionando esta questão de formarápida e esquemática, porque, por um lado elaé bastante conhecida, e por outro, embora re-conheçamos seu peso na questão da divisão domovimento docente, mormente porque esta-mos nos referindo à pessoas ativas do movi-mento, e que não raro ocupam postos de dire-ção, não é sobre ela que embasaremos nossasanálises visando a construção de um movimen-to unificado contra a Reforma Universitária.

As diversas visões políticas dosprofessores, tem sua origem, mui-tas vezes nas diferenças entre asuniversidades em que o professortrabalha, e nos diferentes tipos deatuação que pode ter um docentena sua universidade. Por exemplo:se pertence a uma grande ou pe-quena universidade, em que áreaatua, se em uma área ligada à ciên-cia e tecnologia ou na área de hu-manas, se atua ou não em projetosque recebem financiamento e que

tipo de financiamento, se de órgãos de fomen-to do Estado como CAPES ou CNPq ou se osprojetos decorrem de parcerias, e neste casoquais são estas parcerias, com estatais ou comfirmas privadas, se fornece consultorias, e separticipa ou não de cursos que sejam vendidospelas universidades. Isto porque, embora to-dos os professores universitários da rede pú-blica estejam sujeitos à regimes jurídicos seme-lhantes (no caso das IFES, o Regime JurídicoÚnico), e salários equivalentes (no caso dasIFES ainda temos, em princípio a isonomiasalarial), as diferentes situações, que acabamosde elencar, vão implicar em atividades, emganhos, e em influência muito diversos, osquais, por sua vez, vão originar apreciações epontos de vista políticos diferentes.

A manutenção dagratificação

produtivista na MPfaz parte da perma-

nente avaliaçãodocente, que por suavez é um do pilaresdas condições políti-

cas da reforma.

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Nas lutas salariais deste ano de 2004, lutasque se estenderam de Abril até final de Agosto,já se fez sentir muito claramente uma divisãoentre grandes e pequenas universidades. Mui-tas das pequenas tiraram sucessivos indicativosde uma greve constantemente adiada, enquan-to que a maioria das grandes se posicionaramdesde o início contra a greve. Esta diferença deposições é perfeitamente compreensível, seatentarmos para o fato de que a melhoria sala-rial, acenada desde o início pelo governo, foide um aumento da GED, e este aumento bene-ficia muito mais os doutores. Ora, as grandesuniversidades têm uma proporção maior dedoutores, em relação à totalidade do corpo do-cente, que as pequenas. Aliás o mesmo fato jáse fizera sentir na reivindicaçãosalarial de 1998, que terminoucom o surgimento da GED. Mas adiferença de posicionamento polí-tico entre grandes e pequenas uni-versidades tem também outrosmotivos que mencionaremos emseguida.

O professor que pertença àuma grande universidade, temmaior possibilidade de atuar emalgum projeto dos que menciona-mos acima, ou seja há mais profes-sores de grandes universidades,obtendo financiamentos, por estarligado à algum projeto, do que de pequenas.Isto é outro ponto que vem contribuir para odiverso posicionamento político entre grandese pequenas universidades.

Mas o fato de alguns professores obteremfinanciamentos por participarem de projetos, oude algum tipo de atividade seja qual for sua natu-reza, acarreta também uma divisão dentro decada universidade, seja ela uma universidadegrande ou pequena. Dependendo da natureza eenvergadura do projeto em questão, estes ganhosvão de relativamente modestos, até ganhos muitosignificativos beneficiando grupos de professo-res. Dada a penúria de recursos com que vemsobrevivendo a Universidade Pública já há mui-

tos anos, e o arrocho salarial que vem enfrentan-do o professorado, os recursos provenientes definanciamentos de certos projetos, ou, o quealgumas vezes também acontece, os ganhos pes-soais extras que alguns professores podem terpor suas atividades nestes projetos, acabam cri-ando verdadeiras ilhas de prosperidade e bonan-ça no interior instituições que vivem a beira dafalência, e que muitas vezes só sobrevivem peloidealismo de seus atores.

Deve-se notar ainda, que algumas destasatividades e projetos nos quais se tem engajadoparte do professorado, mesmo representandouma posição privilegiada para certos professo-res, seja em termos de ganhos quanto de in-fluência, são bem aceitas pela comunidade por

serem consideradas atividades per-tinentes ao fazer acadêmico. Taissão, por exemplo, a classificação doprofessor na lista dos pesquisado-res de um certo nível do CNPq , aaprovação de um projeto de pes-quisa significando o controle deum certo número de bolsas e oaporte de recursos para pesquisa.Outras porém não são bem aceitas,embora defendidas com todo em-penho pelos seus partícipes. Trata-se, por exemplo da venda de cur-sos, de parcerias com empresasprivadas, enfim de atividades que

já vem ocorrendo há um bom tempo, e que dealguma maneira, na visão de muitos professo-res, desvirtuam o sentido de Universidade, eque são por estes designadas como a privatiza-ção da Universidade por dentro.

Estas diferentes situações dos professoresdão origem a pontos de vistas diferentes e a posi-cionamentos políticos também diversos. E é estadiversidade, alem dos outros fatores que aponta-mos inicialmente, que nos parece ter maior pesona explicação da grande desunião política domovimento docente que pudemos constatar narecente luta de reivindicação salarial.

Pois a Reforma da Universidade que descre-vemos na primeira parte do nosso trabalho,

Mas o fato de algunsprofessores obteremfinanciamentos por

participarem de pro-jetos, ou de algum

tipo de atividade sejaqual for sua nature-za, acarreta tambémuma divisão dentro

de cada universidade.

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surge no momento em que estão colocadas to-das estas divisões no interior do movimento do-cente. E mais, algumas de suas propostas maisdeletérias, parecem apenas coonestar e regula-mentar aquilo que já vem ocorrendo no interiorde muitas universidades: diríamos melhor, aqui-lo que em maior ou menor grau já vem ocorren-do em todas universidades e que o movimentose acostumou a designar com “privatização in-terna da Universidade”.

Se estamos tentando apontar para a constru-ção de uma luta unificada contra a ReformaUniversitária do governo, e se acreditamos por-tanto na possibilidade desta construção, é por-que temos sobre a evidente atual desunião domovimento docente, a seguinte convicção: nãose trata, pelo menos no momento, enos pontos essenciais, de uma divi-são de opiniões sobre a ReformaUniversitária, ou seja, entre aquelesque são a favor e aqueles que sãocontra a Reforma. E isto não obs-tante a aparência de que a Reformavem apenas coonestar e regulamen-tar o que já vem ocorrendo nas uni-versidades e que chamaremos tam-bém, pelo momento, e para simpli-ficar, de privatização interna daUniversidade.

Somos desta opinião, em pri-meiro lugar, por que falando comos colegas, acompanhando de pertoo movimento docente, inclusive ànível nacional, e ao mesmo tempoparticipando de grupos de estudossobre a Reforma, sabemos muitobem que a grande maioria do professorado nãoestá a par dos pontos fundamentais da ReformaUniversitária, e suas conseqüências, como aliásjá mencionamos acima. Em segundo lugar, masnão menos importante, porque Reforma nãocoonesta e regulamenta apenas o que já vemacontecendo, mas sim, caminhando é verdade,um pouco na mesma direção, vai muito maislonge, tira novas conseqüências, e acaba, aí sim,deformando completamente todo o sentido de

Universidade, como mostramos na análise dalei de Inovação Tecnológica.

Para ilustrar este ponto, tomemos a questãodas parcerias com as multinacionais. É eviden-te que esta não é a melhor maneira de alavan-car o progresso tecnológico, uma vez que, re-gra geral, estas empresas trazem sua tecnologiadas matrizes. Na verdade o avanço tecnológiconos países subdesenvolvidos não acontece, emgeral, nem em parcerias com empresas nacio-nais, pois estas também preferem a segurançada compra no exterior de pacotes tecnológicosà incerteza de um investimento em pesquisatecnológica. A forma realmente efetiva deavanço tecnológico em países do segundomundo, é a parceria entre a Universidade e

companhias estatais ou para esta-tais ou pesquisa diretamente enco-mendada à Universidade pelo Go-verno. (Isto falando de possíveisparcerias da Universidade – háainda a possibilidade do próprioGoverno comprar tecnologia noexterior). Pois bem estas possibili-dades foram exploradas, emborade maneira esporádica e somenteem algumas áreas, em épocas emque as teorias neo-liberais do Es-tado mínimo não tinham adquiri-do a força que adquiriram nosúltimos anos, e em função disto, oBrasil tem, sem dúvida nenhuma,algumas áreas de competência ins-taladas em tecnologia. Há porémuma empatia natural entre a Uni-versidade e a empresa, no que se

refere à ciência e tecnologia, e como, gostemosdisto ou não, muitas empresas no Brasil sãomultinacionais, tem se estabelecido parceriasentre estas multinacionais e a Universidade.Temos acompanhado, nos últimos quinze anos,diversas formas de interação e parcerias entremultinacionais da área de informática e algumasuniversidades públicas no Brasil. Não podemosdizer que destas parcerias tenha resultado umavanço tecnológico que nos pudesse por ao

O avanço tecnológiconos países subdesen-volvidos não aconte-ce, em geral, nemem parcerias com

empresas nacionais,pois estas também

preferem a seguran-ça da compra no

exterior de pacotestecnológicos à incer-teza de um investi-mento em pesquisa

tecnológica.

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menos no caminho da independência, (aliásquase não faz muito sentido falar disto nestaárea de tão ferrenha competição internacional etão intensa monopolização do conhecimento).Mas também nem de longe aconteceram as coisanefandas da ordem daquelas propostas pela Leide Inovação Tecnológica. Não tem havidotransferência de recursos públicos para estasmultinacionais: pelo contrário destas parceriastem resultado significativa melhoria das condi-ções materiais dos cursos ligados à esta área, ese, de alguma maneira não deixa de ser verdadeque a comunidade universitária vem prestandoserviço à multinacional, por outro lado tambémé inegável que houve vantagens tanto para osalunos em sua formação, quanto para os pro-fessores em suas condições de trabalho. Daíaliás é que surge a queixa do conjunto da comu-nidade universitária: uma melhoria localizadaem apenas algumas áreas, formando as célebresilhas de prosperidade dentro de uma Univer-sidade na penúria. Mas seria preferível regula-mentar a parceria de maneira a minimizar esteefeito, que tentar elimina-la.

Deixando as parcerias com as multinacio-nais da área de informática, e voltando ao pro-blema das parcerias com as multinacionais emgeral, é possível estabelecer condições que tor-nem estas parcerias interessantes para a Uni-versidade. A título apenas de construção do ra-ciocínio, e sem nenhuma pretensão de comple-teza ou de uma formulação definitiva, vamostentar examinar quais as condições fundamen-tais para o estabelecimento de tais regras.

Antes de tudo é fundamental que a Univer-sidade mantenha sua identidade, sobre tudo noque diz respeito à ética inerente à Academia.Assim a vida universitária de alunos, funcioná-rios e docentes ligados a tais projetos de parce-ria, tem que ser sujeitas às mesmas regras dorestante da comunidade acadêmica, tantoquanto a praxes do trabalho cotidiano deve sera mesma. Evidentemente esta norma genéricateria que ser desdobrada em artigos específi-cos, mas é claro, que assim fazendo, eliminaría-mos de vez, todas as monstruosidades sobre

regime de trabalho de funcionários e professo-res, sobre segredo científico permeando a pes-quisa na Universidade e outras escatologías domesmo jaez, que vimos ao analisar o Projeto deLei de Inovação Tecnológica, na primeira partedeste trabalho. Há que se regulamentar tam-bém a questão das patentes advindas de taisparcerias, embora já tenhamos mostrado que,em geral, não se deva esperar tais frutos destetipo de associação.

Enfocamos, embora de maneira rápida, esteexemplo entre tantas outras possíveis atividadesdocentes das que arrolamos acima, tão somentepara ilustrar as nossas teses visando a construçãoda unidade do movimento contra a ReformaUniversitária. Retomemos então a elas.

Nossa tese fundamental é então a seguinte:embora a Reforma Universitária que está sen-do proposta pelo Governo, parta muitas vezesde ações que já vem acontecendo no interior daUniversidade, ela regulamenta estas ações deuma forma que extrapola, em muito, tudo oque vem acontecendo. Nossa outra tese é queo professorado desconhece os pontos básicosda Reforma e não por acaso, os mais deletériospara a Universidade. Seria portanto um equí-voco político, supor que a maioria dos profes-sores, que de alguma maneira estão ligados aestas atividades, que as vezes servem de pontode partida para muitos ítens da Reforma, sejama favor da mesma, ainda que nas lutas por rei-vindicação salarial, tenham tido um posiciona-mento mais conciliador com as propostas doGoverno. Seria então também um equívocopolítico fundamentar a luta contra a ReformaUniversitária, na luta contra todas estas ativi-dades que já vem ocorrendo na Universidade,e que de alguma maneira servem de ponto departida para certas propostas da Reforma, poisse assim o fizéssemos, teríamos contra nóstodos os professores envolvidos nestas ativida-des. Ou seja, estaríamos, aí sim, criando adesunião no movimento docente.

Na atual fase do processo de implantação daReforma, a luta vai se dar no interior de cadaUniversidade, e teremos que examinar cada

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ponto para distinguir entre o que é absoluta-mente inaceitável e que portanto nos impõeuma posição de enfrentamento frontal, e o quepode ser contornado, transformado, ou mesmoassimilado. Temos também que saber aquilatarnossa força para tudo isto e juntamente comum trabalho de esclarecimento e proselitismo,temos que saber medir a real disposição de lutado professorado.

Quando colocamos acima, que talvez te-nhamos que continuar a conviver com ativida-des que vem sendo classificadas as vezes como“privatização da Universidade por dentro”não o fazemos, apenas como tática, para obterforça política. Pelo que explicamos até agora,pode de fato surgir esta impressão,e até mais: pode parecer que esta-mos propondo uma política prag-mática, abdicando de princípios eassumindo uma política de deci-sões contingenciais, que além domais é perigosa, pois nunca se sabeaté quando será necessário ceder.

Pois não é nada disto que te-mos em mente, mas para explica-lo, temos que propor o problemasob o enfoque que tentamos naprimeira parte deste escrito, quan-do situamos a Reforma Universi-tária do Governo como funda-mentada em uma visão política desociedade que costumamos desig-nar por neo-liberal terceira via.Pois a pergunta que se faz agora é:que política vai fundamentar a re-sistência à Reforma? Ou, maisprecisamente, a Universidade quequeremos defender, se adequa àque modelo político de sociedade?Respondendo a essas perguntas estaremos emcondições de ter mais claramente os princípiosque vão nortear nossas estratégias de resistência.

A Universidade Pública sofre de uma contra-dição que é comum à totalidade das instituiçõesrepublicanas, em todos os países do ocidente, asaber: é uma instituição concebida sob a égide

dos princípios humanistas desenvolvidos noperíodo moderno e consubstanciados nos ideaislibertários e igualitários da Revolução Francesa,mas existindo em uma sociedade, a sociedade ca-pitalista, que nunca pode por em prática essesideais, porque sempre se caracterizou pela acu-mulação de capitais e de todos os bens da exis-tência, aí incluídos os bens culturais, nas mãos declasses privilegiadas.

No Brasil a situação não tem sido diferen-te, e ainda contamos com algumas agravantes.Por exemplo o sistema universitário federal, sedesenvolveu em grande parte no período daditadura militar. Aparece assim no seio de umasociedade fortemente classista, com um ranço

escravocrata, e no bojo de uma di-tadura militar que se instauroucom a finalidade perspícua de asse-gurar o nosso alinhamento ao blo-co ocidental --leia-se, de assegurara continuidade de nosso papel de“colônia de exportação” dos paísesdo primeiro mundo. Nasce aindano decorrer de um processo dereforma universitária no Brasil,aquela que se instaurou sob a vi-gência do acordo MEC-USAID eque promoveu a modificação deum modelo, mais inspirado nomodelo europeu, para o modeloamericano, reconfigurou o orga-nograma dos institutos, separandocuidadosamente a área de exatas dade humanas, e instituiu o sistemade créditos.

Não obstante os fatores negati-vos, o sistema universitário soube sefirmar, cumprir seu papel social,possivelmente melhor que atual-

mente, pois estávamos em um período de expan-são, e agora estamos num período de estrangula-mento e, ao mesmo tempo a demanda eramenor; além disto soube se articular politica-mente com a criação da ANDES, e assumir posi-ção de destaque na luta contra a ditadura, e norestabelecimento da democracia no país. Tudo

A UniversidadePública sofre de uma

contradição que écomum à totalidadedas instituições repu-blicanas, em todos ospaíses do ocidente, asaber: é uma institui-ção concebida sob aégide dos princípios

humanistas desenvol-vidos no período

moderno e consubs-tanciados nos ideaislibertários e igualitá-

rios da RevoluçãoFrancesa.

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isto foi conseguido porque, não obstante as in-tenções do governo militar, quaisquer que elasfossem, foi possível preservar o espaço universi-tário de reunião de pessoas voltadas ao estudo ecompetentes em suas áreas, foi possível preser-var o espaço do livre debate, e foi possível pre-servar a ética inerente ao fazer acadêmico.

Recordando a história da Universidade bra-sileira, vamos compreendendo, que não obs-tante os percalços da sociedade em que elaesteja inserida, a Universidade co-mo expressão natural que é daciência e da cultura, é, por força desua natureza, uma instituição ca-paz de salvaguardar o ideal repu-blicano, entendido como o con-junto das idéias humanistas doséculo XVIII, e que presidiram afundação das Repúblicas no oci-dente. É à esta Universidade queestamos nos referindo quando fa-lamos da Universidade Pública,gratuita, laica, de qualidade, e so-cialmente referendada.

Temos então as respostas aosquestionamentos colocados noinício desta seção. Não há um mo-delo de sociedade adequado àUniversidade, porque nenhumaorganização social na históriacontemporânea realizou plena-mente os ideais humanistas dos quais ela é arepositária. A Universidade sim, é que é ca-paz, no exercício de sua autonomia e liberda-de acadêmica, e pela força de sua inteligênciae competência de seu saber, de contribuir naconstrução de uma sociedade segundo o ideá-rio de que é depositária.

Ao mesmo tempo podemos situar agora,com maior clareza, os princípios que devemnortear a elaboração das estratégias de resis-tência à Reforma. Como repositária do ideáriorepublicano, ela vive em um estado de tensãocom a sociedade na qual está inserida, socieda-de esta, que se afasta cada vez mais deste ideá-rio. Assim, se por um lado ela é sempre um

poderoso elemento de transformação destasociedade, por outro sofre dos percalços ine-rentes à esta sociedade à qual pertence.

Mesmo sendo a instituição capaz de salva-guardar os ideais republicanos, é claro que aUniversidade sofre, por sua vez, dos percalçosda política e ideologia da sociedade em que seinsere. Assim em uma sociedade como a nossaque além de classista, vai construindo umapolítica neo-liberal de Estado mínimo, ela não

pode oferecer todas as vagas que apopulação precisaria. Numa so-ciedade colonial subjulgada ao ca-pital estrangeiro, ela não consegueexercer plenamente sua potenciali-dade de alavancar a tecnologia, poisnão encontra as parcerias com em-presas nacionais. Mas não é conde-nando as atividades de alguns cole-gas que trabalham em áreas de inte-gração com a sociedade capitalista,e colonial que aí está, e assim jo-gando boa parte do professoradopara o outro lado das barricadas daluta contra a Reforma, que vamosdefender a Universidade Pública.O que é necessário é poder preser-var, na regulamentação de qualqueratividade as três características es-senciais da vida universitária: o es-paço da competência, o espaço do

livre debate, e a ética do fazer acadêmico. Poissão exatamente estes pontos que são atacados edestruídos na Reforma Universitária propostapelo atual Governo.

Aquilo então que os nossos prepotentesgenerais e os ingênuos teóricos do acordoMEC-USAID, não conseguiram realizar, osatuais teóricos do Banco Mundial, pasmempelo progresso, talvez o façam, com o eficienteauxílio, pasmem ainda mais, de nossos ex-companheiros do PT. Vamos deixar?

Aquilo então que osnossos prepotentesgenerais e os ingê-

nuos teóricos do acor-do MEC-USAID, não

conseguiram realizar,os atuais teóricos doBanco Mundial, pas-mem pelo progresso,talvez o façam, como eficiente auxílio,

pasmem ainda mais,de nossos ex-compa-nheiros do PT. Vamos

deixar?

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DF, Ano XV, Nº 35, fevereiro de 2005 - 71UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Dentro do bando de “madonas choronas”, não ex-plicitamente nomeadas pelo presidente Lula daSilva em seu discurso de Aparecida de Goiânia

(25 de janeiro), encontram-se, sem dúvida, os críticosde direita do Projeto de Reforma Universitária (ou de“Lei de Educação Superior”), que receberam recente-mente ampla acolhida nas páginas da Veja e do OEstado de S. Paulo, velhos porta-vozes do mais retró-grado pensamento burguês e oligárquico do Brasil.Quem ler direito, no entanto, poderá constatar que o“choro” esconde a ameaça.

A coisa pode parecer estranha, já que o projeto doMEC coincide no fundamental com as agendas doBanco Mundial e do BID para as instituições de edu-cação superior públicas: racionalização do acesso nãopor medidas universais, mas por cotas; programas deestímulo à docência; avaliações padronizadas da “qua-lidade” (ENAD), inspiradas na famigerada teoria do“capital humano”; vinculação entre os planos de de-senvolvimento institucional (estabelecidos com parti-cipação empresarial), avaliação (SINAES) e financia-mento (orçamento global), e associação estreita entreeficiência acadêmica e pragmatismo universitário. Pa-ra completar, o anteprojeto admite, pela primeira vezna história do país, que a educação é um campo espe-cífico de investimentos estrangeiros: admite-se umaparticipação de até 30% de capital estrangeiro, crian-do a “segurança jurídica” que os “investidores” tantoreclamam nos tratados comerciais.

Articulista da Veja (edição de 26 de janeiro de2005) declara que o projeto “constitui o mais frontalataque à sociedade aberta já tentado por um órgão dogoverno no Brasil”, nada menos. E proclama que oMEC evidencia “um desprezo solene pela busca doconhecimento e da propriedade privada” (sic) comose ambos fossem sinônimos (historicamente, ambostêm sido, em geral, antônimos), o que retrata o “nível”do suposto arauto, que se arvora em defensor do “ní-vel” das universidades.

Um dos alvos da crítica é a proposta criação deconselhos, nas universidades e faculdades privadas,com certos direitos acadêmicos e administrativos, con-selhos nos quais a participação dos empresários ficarialimitada a 20%. Isso tolheria a “liberdade empresa-rial”. O conteúdo do “choro” é claro. Depois de teremobtido todo tipo de concessões em matéria de isençãofiscal e previdenciária, isto é, ampliado consideravel-

mente a sua margem de lucro, os tubarões do ensinopago querem agora plena liberdade para “administrar”a nova taxa de lucro que conquistaram, em troca da suaadesão ao ProUni, isto depois de outros “choros”,com os quais conseguiram modelar o projeto originallulista em direção de uma feição decididamente empre-sarial, como foi reconhecido em matéria paga publica-da pela associação das mantenedoras.

Com efeito, a completa isenção de impostos, eainda de parte significativa da contribuição previden-ciária, no caso das filantrópicas, deverá impulsionarum novo ciclo de crescimento do setor, hoje corres-pondente a 88% das instituições de ensino superior ea 72% dos estudantes. Atualmente o setor privadomovimenta cerca de R$ 15 bilhões: as filantrópicas go-zam de isenções da ordem de 25% e as empresariais de15%. Caso todas venham a se converter em empresa-riais, as isenções corresponderiam a R$ 2,3 bilhões.No futuro próximo, considerando que as filantrópicasnão recolhem a contribuição previdenciária patronal(cerca de R$ 460 milhões), as privadas poderão rece-ber mais de R$ 2,7 bilhões em “troca” de menos de150 mil vagas, de duvidosa qualidade, grande parte de-las pulverizadas em bolsas parciais de 50% e 25%.Isso sem contar os R$ 1 bilhão do FIES. Cabe lembrarainda que o ProUni previa em sua primeira versão25% da vagas de todo o setor privado, percentual quedespencou para ínfimos 8,5%. Por essas e outras, ojornalista Josías de Souza chamou o ProUni de “Pro-mamata”.

Mas os articulistas da Veja insistem, e acusam oMEC de “inibir a iniciativa privada”, “asfixiar as ins-tituições particulares, submetendo-as ao ‘controle dasociedade’”, e até de “dar vazão a sua ideologia anti-negócios” (sic), pérola esta merecedora de entrar nosanais das contribuições brasileiras à história das ideo-logias. Como se vê, o único que interessa a Veja é am-pliar o escopo dos “negócios”, de qualquer natureza,não importando-lhe que o alvo pretendido seja umbem público, a educação, de importância estratégicapara a existência e desenvolvimento da Nação, a edu-cação superior.

O Estado de S. Paulo coincide com a Veja em queo projeto teria características “soviéticas” (re-sic). Pelapena de Denis L. Rosenfield (O Estado de S. Paulo,24/01/05), declara que o projeto de lei “pretende abo-lir o mérito como critério de conhecimento” (?) e,

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Choro ou luta?Osvaldo Coggiola

Professor do Departamento de História da Universidade de São Pauloe Vice-presidente do ANDES-SN.

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para que fique claro não se tratar de um lapsus linguae,insiste, no final do artigo, em criticar uma orientaçãoque estaria “rebaixando o seu nível e desconsiderandoo mérito como valor universitário central”. Na verda-de, o único nível rebaixado é o do articulista. Segundosua concepção, a universidade seria, essencialmente,um campo concorrencial meritocrático. Dizer que oconhecimento é função do famigerado “mérito” é vero mundo de ponta-cabeça, qualquer que seja a teoriado conhecimento que se defenda. O pior é que se dizque o mérito, assim (in)compreendido, seria “o valoruniversitário central”. E dizer que a universidade nãopossui nenhuma função social, perante a sociedadeque a sustenta, o que tem claras implicações tanto paraa produção de conhecimento quanto para a gestãoinstitucional, significa proclamar o parasitismo inte-lectual, a serviço objetivo da situação, como o nec plusultra do fazer universitário.

Maria Helena de Castro, apresentada como “ex-braço direito do ex-ministro Paulo Renato”, afirma(O Estado de S. Paulo, 23/01/05) “não saber de ondevai sair tanto dinheiro” (para financiar o projeto). Odinheiro, que nem é tanto assim, está diante dos nos-sos olhos, como fração reduzidíssima dos gastos esta-tais no financiamento dos juros e ganhos especulati-vos do setor financeiro (leia-se bancos), por meio dopagamento das dívidas externa e interna. Mas é claroque para a “ex do ex”, isso também constituiria umaexpressão da “ideologia anti-negócios”.

O fato de o MEC tentar regulamentar, timidamen-te, a expansão selvagem de cursos sem condições dequalidade mínima, determinando que novos cursossomente poderão ser abertos se comprovada a sua ne-cessidade social, leva Maria Helena a concluir que estáem marcha “um neo-corporativismo, que o Brasil estáinventando para definir o que é necessidade social”.Preocupada com a suposta “mediocridade” das uni-versidades federais (somente resgata como “sérias” aUFRGS e a UFMG) propõe, no entanto, luz verdepara a livre expansão de cursos privados nas maisdiversas áreas, para os quais o qualificativo de “me-díocre” seria um caloroso elogio. Isso já mede a “se-riedade” dessa crítica.

Amplo destaque, no mesmo jornal e no mesmodia, foi dado a artigos do ex-ministro Paulo Renato, ede Cláudio de Moura Castro e Simon Schwarzmann.O primeiro releva algumas evidentes incoerências, noentanto secundárias, do projeto, para finalmente de-fender uma linha central: a aplicação da “lei de respon-sabilidade fiscal”, nas IES, o que implicaria num acha-tamento salarial generalizado e, para implementá-lo, aeliminação da isonomia salarial de professores e fun-cionários, generalizando as “diferenciações por méri-to ou desempenho”. Igual critério deveria ser aplicadopara o financiamento das universidades públicas, quedeveria depender da concorrência meritocrática entre

elas. Do que estariam livres, felizmente, as universida-des privadas, que têm outros mecanismos de financia-mentos, as mensalidades sem limite e as isenções fis-cais e tributárias, que em nada dependem do seu fami-gerado “desempenho”, e em tudo dependem da suaforça como lobby corporativo capitalista. E essa gentetem a empáfia de se arvorar em crítica do corporativis-mo (nem que seja por meio de seu “braço direito”) eem defensora de uma universidade pública dotada de“liberdade acadêmica”! Que liberdade acadêmica po-deria existir quando pesar sobre cada universidade pú-blica a espada de Dámocles do des-financiamento, emfunção de um “desempenho” medido segundo crité-rios impostos de modo autoritário e violatório da pró-pria autonomia da instituição?

Cláudio de Moura Castro e Simon Schwarzmann,no outro artigo mencionado, batem nas mesmas teclascitadas, e acrescentam alguma que outra pérola de leurpropre accabit. As cotas, por exemplo, “entram emcena quando já é muito tarde” (teriam sido úteis emtempos da Abolição?); defendem as fundações dedireito privado (mecanismo de “privatização branca”das universidades públicas), ainda que reconhecendo“problemas (em) algumas” (“problemas” – em quasetodas - que, no caso das estaduais paulistas, motiva-ram a intervenção do Tribunal de Contas e a quaseinstalação de uma CPI!).

Arremetem contra qualquer mecanismo de gestãodemocrática, denunciado como uma peculiaridadelatino-americana, responsável pelo “desempenho pre-cário” das universidades de nosso continente. Será queessas pessoas fazem alguma idéia ou pensam um poucosobre o que estão falando? Preferiam as universidadesem mãos do clero ultra-montano anteriores à ReformaUniversitária de 1918? E pedem “liberdade”, sim, con-sistente na “liberdade e estímulo ao crescimento daeducação superior privada” (sic). Ou seja, que o Esta-do deveria se des-responsabilizar da mesma, e repassarseus minguados caraminguás aos coitados dos empre-sários educacionais, que andam precisando de “estí-mulos” para “crescerem” e serem “livres”.

A enxurrada de críticas da direita burguesa ao Pro-jeto de Reforma Universitária do governo Lula está aserviço de uma pressão parlamentar-institucional paratorná-lo mais privatista e anti-democrático do que jáé. Por isso, são todas do (baixíssimo) nível exposto. OANDES-SN declara sua oposição ao projeto por mo-tivos radicalmente opostos: por estar em defesa deuma universidade pública, gratuita, laica e de qualida-de, autônoma, democrática, socialmente responsável eque, em pleno uso da sua liberdade acadêmica, discu-ta interna e externamente, as melhores vias, em todosos aspectos da sua atividade, para estar a serviço dasnecessidades da Nação e das maiorias populares. OANDES-SN não chora, luta.

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Memória do Movimento Docente

Sobre Luiz Carlos Gonçalves Lucasmuito se poderia falar: gaúcho de falameditada e fácil, firmeza de convicções eintelectual sério. Sua inserção no movi-mento docente foi fruto, sem dúvida al-guma, da tradução de uma trajetória fa-miliar e intelectual na totalidade da vidasocial. Percebeu e praticou, sempre, a po-lítica como instrumento de intervençãona construção de uma sociedade paraalém da Ordem do Capital.Conversar com este militante de falaafável, comportamento tranqüilo e fir-me, é aprender sempre alguma coisa no-va que nos permite avançar, Gosta muitodo convívio com os companheiros, estápermanentemente disposto aos debatesque avancem. Anti-sectário por definiçãoele nos ensina sempre, com um contradi-

tório inteligente, o que há de fundamental na nossa luta.Lucas inseriu sua vida no fluxo da luta social como militante contra as injustiças e misériase, em particular, contra a destruição da Universidade e da Educação Públicas. Da Pelotasonde vive e atua ao Sindicato Nacional ele deu grandes passos. A AD, onde foi militantede base e dirigente, foi sua primeira escola. Passou pelos Congressos e CONADs traba-lhando na perspectiva da construção de uma militância qualificada. Chega a direção na-cional, primeiro como vice-regional (2000-2002) e depois como presidente do Sindicato(2002-2004), cargo que não pleiteou, mas que aceitou quando seus companheiros o chama-ram a concorrer. Na direção ele demonstrou saber construir com os próximos e com os adver-sários uma conduta serena porém combativa. Nunca recusou o contraditório e isso traçou umquadro distintivo. Um certo acento provençal carimba seu passaporte de professor, sempre ede militante, cotidianamente. O melhor mesmo é ouvi-lo falar sobre sua trajetória.

Luiz Carlos Gonçalves LucasApresentação: Edmundo Fernandes Dias*Entrevistadora: Ceres Maria Ramires Torres**

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U&S: Lucas, o que te levou a ser militante?Como foi teu encontro com a política?

Lucas: Foi muito antigo. Passei minha in-fância numa casa onde havia freqüentes reu-niões partidárias. Ninguém que tenha nascidono final dos anos quarenta se chama LuizCarlos por acaso. Meu pai era um comunistada velha estirpe, que viveu dividido entre aesperança no socialismo, a admiração pela Re-volução Russa e repulsa diante do estalinismoreal. Por outro lado, freqüentei um colégioparticular elitista e conservador, onde a guer-ra civil na Espanha era descrita mais oumenos como cruzada contra o demônio. Ain-da me lembro dos relatos sobre o heroísmodos militares franquistas e as atrocidades dosrepublicanos que torturavam e violentaramfreiras. Mas a comparação que desde cedo fuilevado a fazer era muito desigual. A esquerda,que conheci em casa, era inteligente, tinha

disposição inesgotável para o diálogo, ejamais punia. A direita, que encontrava, so-bretudo, na escola, via a história como fé e afé como castigo. Com onze ou doze anos, eufiz uma escolha muito óbvia e previsível: en-tre Franco e a Passionária, fiquei do lado deDolores. Acho que foi assim que me encon-trei com a política. Jamais nos separamos, em-bora durante boa parte da minha vida eu te-nha tido principalmente engajamentos espo-rádicos, nas grandes campanhas nacionais, co-mo a da anistia e a das diretas, ou nas greves,quando já professor da UFPel. Nunca tivemilitância partidária destacada.

Precisei de algum tempo para filiar-me aoPartido dos Trabalhadores. Fiz isso no decor-rer da campanha presidencial de 1989, emboramuito antes já me considerasse petista. Nocalor das eleições esqueci – não superei, masesqueci - alguns temores de que o partido setransformasse em instrumento de poder, nas

mãos de uma elite operária. Hoje vejo que nãoo deveria ter feito: esquecer nunca é bom.

U&S: E a tua trajetória como dirigente sin-dical?

Lucas: Tornei-me professor da UFPel em1985. No ano seguinte, fui membro do Con-selho de Representantes da ADUFPel. Par-ticipei das greves nacionais e da campanha lo-cal que fizemos, primeiro pela eleição demo-crática e depois pela posse do reitor escolhidopela comunidade. Em 1999 o Dr. Amílcar Gi-gante assumiu a reitoria e iniciou a única admi-nistração de esquerda que a UFPel teve. Du-rante dois anos, fiz arte de sua equipe. Era umgrupo coeso, que trabalhava com afinco. Opróprio Gigante foi um dos melhores exem-plos que até hoje conheci de integridade ética,capacidade intelectual e responsabilidade polí-tica. Todos os espaços decisórios da universi-dade foram democratizados, construiu-se um

projeto pedagógico que se tornou referêncianacional, a gestão se fez com honestidade ecompetência. No entanto, a maior parte dosesforços se consumia na administração de umacrise que vinha de fora, que era estrutural e dedimensões nacionais, que tinha no abandonofinanceiro sua principal causa imediata. Com oadvento do governo Collor, esse cenário seagravou, e a UFPel foi especialmente atingida.Aguçou-se, então, minha consciência de que adefesa de uma universidade pública dignadesse nome deveria fazer-me em primeiro lu-gar no plano especificamente político e em ní-vel nacional, e de que havia naquele momentouma ameaça extremamente grave a ser enfren-tada. Em 1991, concordei em ser candidato àpresidência da ADUFPel, e revigorou-se omeu interesse pelo ANDES. Eu tinha, na oca-sião, um conhecimento apenas superficial so-bre a sua história. Ao examiná-la com maiscuidado, convenci-me do acerto das delibera-

Memória do Movimento Docente

No calor das eleições esqueci – não superei, mas esqueci - alguns temores

de que o partido se transformasse em instrumento de poder, nas mãos de

uma elite operária. Hoje vejo que não o deveria ter feito: esquecer nunca é

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Memória do Movimento Docente

ções tomadas em questões fundamentais para aconfiguração inicial e a trajetória do sindicato,questões que ainda hoje parecem definir osdois principais campos políticos que o com-põem. A criação de um sindicato nacional comestrutura rasa, eleições diretas para todos osdiretores, mandatos de dois anosnão renováveis pela segunda vezconsecutiva, aliada à interdiçãode cobrança de imposto sindical,permitiu que o ANDES se tor-nasse um modelo de autonomiafrente ao Estado, num mundosindical em grande parte vertica-

lizado, com federações e confederações facil-mente dominadas por burocracias. A represen-tação de docentes das carreiras de primeiro, se-gundo e terceiro graus, bem como dos setoresdas federais, estaduais e particulares foi umaopção que muito contribuiu para que não nostornássemos presa de uma lógica estreita de ti-po corporativo, no sentido vulgar da palavra.Para que não fôssemos apenas um conjunto deorganizações débeis dedicadas à defesa particu-larista de interesses imediatos e setoriais. Paraque nos transformássemos neste sindicato que,como poucos, soube coadunar as reivindica-ções econômicas com a construção de uma pro-posta de universidade que é hoje referência paratodos que lutam a favor da escola pública. Quetem realizado simpósios e debates e produzidotextos de qualidade sobre praticamente todo oespectro da política educacional e sobre umavariada gama de políticas públicas abrangendotemas como ciência e tecnologia, reforma doEstado, meio ambiente, seguridade social, sin-dicalismo, só para citar alguns. Que tem sido,em suma, centro de análise crítica e formulaçãointelectual, como aparentemente desejavamalguns que pretendiam vê-lo eternamente comomera associação, mas que soube assumir a con-

dição de sindicato e filiar-se á CUT, no tempoem que a CUT valia a pena.

Durante o período em que presidi aAdufpel, adquiri a certeza de que o ANDESmerecia ser preservado. Ao final do mandato,em 93, julguei que minha contribuição como

dirigente estaria encerrada, masalguns anos depois percebi quehavia sério risco de retrocesso naestrutura, na autonomia e na de-mocracia interna do sindicato.Em 1998, fui candidato a 1º Vice-Presidente Regional RS na chapada ANDES-AD. Fomos derrota-

dos, e antes que o galo cantasse três vezes, apósa posse da diretoria então eleita, pude constatarque, infelizmente, minhas apreensões eramfundamentadas.

No rastro dos famosos acordos com ACMe Paulo Renato, segue-se uma fase de condes-cendência diante da discriminação contra apo-sentados e professores da carreira de 1º e 2ºgraus, de aceitação das gratificações produti-vistas, de divulgação de um projeto de regula-mentação da autonomia rejeitado pelo movi-mento docente, de abandono da ação conjun-ta com outros trabalhadores, de aviltamentodiante de um governo determinado a fazeravançar o projeto de privatização da universi-dade pública.

A devastação só não foi maior porque aestrutura do sindicato possibilitou que as ins-tâncias deliberativas superiores à diretoriaexercessem algum controle. Esse quadro foi re-vertido em 2000, com a vitória da chapa presi-dida pelo prof. Roberto Leher. Fiz parte dessadiretoria, no mesmo cargo a que havia concor-rido em 1998. Foi uma etapa de reconstrução,em que se conseguiu recuperar a autonomia dosindicato e derrotar a implantação do empregopúblico nas IFES, que abriria as portas para

Para que nos transformássemos neste sindicato que, como poucos, soube

coadunar as reivindicações econômicas com a construção de uma propos-

ta de universidade que é hoje referência para todos que lutam a favor da

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sua transformação em organizações sociais.Em 2002, fui indicado, com amplo consen-

so, para encabeçar a chapa ANDES- AD, quevenceu o pleito. Foi uma disputa tranqüila, emque tive oportunidade de participar de debatescordiais e honestos com a Prof. Maria Apare-cida Meneses, pessoa que sempre mereceu meurespeito e admiração. Ser presidente do ANDESnão havia sido projeto meu, mas foi uma dasexperiências mais importantes que vivi.

U&S: Que balanço farias da gestão que pre-sidiste?

Lucas: Estou seguro de que mantivemosescrupulosamente a democracia no sindicato.Nenhuma decisão politicamente relevante foitomada sem ampla consulta às assembléias dasseções sindicais e aos CONADS e CON-GRESSOS. O que nossos eventos deliberati-vos aprovaram foi sempre acatado. E oANDES se consolidou como símbolo de auto-nomia numa conjuntura que talvez tenha sidoa mais propícia à cooptação emtoda a história brasileira. Em nos-sas relações com outros sindica-tos e movimentos sociais, resisti-mos sempre às inúmeras tentati-vas de fomentar divisões entretrabalhadores. Mas em nenhummomento descuidamos de nossa

pauta específica de reivindicações,que sempretentamos negociar junto ao MEC, apesar dascríticas dos que nos consideram oposicionistasirredutíveis, adeptos de uma política de tudoou nada e dispostos a deslegitimar o governo.Chegamos mesmo a suportar com paciência aparticipação no simulacro de uma mesa nacio-nal dita de negociação permanente, inauguradacom a presença de seis ministros e grande apa-rato de mídia, onde de antemão se sabia quenada seria negociado.

Tenho consciência de que não conseguimosvitórias nos dois principais embates em quenos empenhamos. O primeiro deles e mais in-tenso foi a da Reforma da Previdência. Nãofoi possível barrá-la. Disso alguns inferiram,ex post facto, que seguimos uma estratégiaequivocada. Que, mais uma vez, agimos deforma intransigente, e que, ao invés de lutar-mos pela rejeição à PEC, deveríamos ter ten-tado melhorá-la. Isso pode ser bom para rotu-lagem junto a pessoas desinformadas, mas,como argumento, é paupérrimo. Ignora o mo-do como essas reformas vêm sendo impostasno mundo periférico. Ignora a absoluta deter-minação do governo Lula em nada concederque pudesse colocá-lo em risco de desagradara agiotagem internacional. Ignora que as alte-rações nos sistemas previdenciários não sãodecisões isoladas, mas processos onde qual-quer implementação parcial, hoje, abre cami-nho para a passagem do trator de amanhã.Ignora que forças com muito maior poder de

pressão do que nós, como aCUT – e outras com menos,como os que, no interior doANDES, já naquela época ten-tavam negociar em separado –não conseguiram obter qualquermigalha, apesar dos bons servi-ços prestados. Se não ignora

finge ignorar que o único resultado palpávelde uma atitude cordata seria permitir aogoverno um desgaste menor na tramitação dareforma, o que facilitaria a continuidade damesma política de agressão.

Se há algo a lamentar, no comportamentodo sindicato, foi não termos conseguido reali-zar uma greve mais forte e mais intensa. A vo-tação no Senado e o episódio burlesco daEmenda Paralela, destinada a salvar a imagemdo Senador Paim, fazem supor que, com maior

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Estou seguro de que mantivemos escrupulosamente a democracia no sindi-

cato. Nenhuma decisão politicamente relevante foi tomada sem ampla con-

sulta às assembléias das seções sindicais e aos CONADS e CONGRESSOS.

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mobilização, talvez tivéssemos conseguidomudar o resultado. Mas o movimento docenteestava dividido, como, aliás, o conjunto dosindicalismo brasileiro. Isso já havia aconteci-do antes, porém em escala muito menor. Noinício do período Fernando Henrique, o tuca-nato era forte nas universidades,o governo era visto como nãosendo abertamente de direita, eisso se refletiu no ANDES. Masapós as divisões se exacerbaram.E é exatamente essa a maior con-tribuição dos atuais governantesoriundos da esquerda à ordem

brutalmente exploradora que se mantém nestepaís. Ninguém melhor do que Lula poderiadesempenhar esse papel. Desde sua posse, asdificuldades de mobilização se avolumaram.Em nosso primeiro Congresso, em Terezina, aDiretoria propôs a greve, caso o governoinsistisse em alterar a legislação previdenciáriasegundo um modelo já naquele momento per-feitamente previsível. Não havia alternativa,diante da violência que se exercia contra nós.Se a mesma reforma tivesse sido de Autoria deum hipotético governo Serra, a indignaçãoseria unânime. Mas, embora o Congresso te-nha aprovado por ampla maioria a nossa pro-posta já então se tornou claro que um setor dosindicato resistiria a qualquer ação mais con-tundente que pudesse ser vista como de oposi-ção a Lula. Essa resistência realmente ocorreu.

Como em qualquer coletivo de dimensõesnão reduzidas, as motivações eram – e são –muito diversificadas. Havia os companheirosque honestamente pensavam ser muito cedopara um confronto, os que entendiam que sedeveria dar um crédito de confiança ao novoPresidente, os que acreditavam na quimera dogoverno em disputa, os que nos julgavam sec-tários ou paranóicos, os que se deixavam fana-

tizar a ponto de tornarem-se incapazes de per-ceber o conteúdo e a natureza da reforma. Ha-via também, com certeza, oportunistas sempredisponíveis para o puro jogo de poder em pro-veito próprio. E, last but not least, docentes-empreiteiros que não desejavam perturbar as

atividades lucrativas que desen-volviam no interior da universi-dade pública. Nos outros sindi-catos de servidores, a situaçãoera, em geral ainda, pior. Mesmoassim, conseguimos fazer umagreve, com grandes manifesta-ções em Brasília. Não foi fraca,

embora não tenha sido intensa o suficiente parabarrar a reforma e evitar que centenas de milha-res de trabalhadores, docentes ou não, fossemprejudicados pelo governo que elegeram, e coma cumplicidade passiva ou ativa de muitas desuas lideranças.

O outro embate a que me referi anterior-mente diz respeito à política salarial das IFES.Sempre procuramos negociar em conjuntocom as demais entidades da CNESF, a reivin-dicação de reajuste linear aprovada pelo movi-mento docente. Essa via não foi escolhida, co-mo querem alguns iluminados, porque damosmaior prioridade aos interesses dos SPF doque aos professores, mas porque é a única pos-sível, técnica, jurídica e politicamente. Em2003, o governo cometeu a sandice de outor-gar a todos os servidores uma parcela fixa eum percentual que, somados, tinham o aspec-to de uma esmola. Não colheu bons frutos.Em 2004, já não tinha desculpa de que o orça-mento fazia parte da herança maldita, nem aquem transferir a responsabilidade pela que-bra do compromisso, assumido no ano ante-rior, de promover paulatinamente a recupera-ção salarial. Mas distribuir os recursos demaneira mais inteligente, embora não muito

Em 2004, o governo já não tinha desculpa de que o orçamento fazia parte da

herança maldita, nem a quem transferir a responsabilidade pela quebra do com-

promisso, assumido no ano anterior, de promover paulatinamente a recupera-

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criativa, porque na realidade, seguiu uma táti-ca velha como o diabo. Dedicou-se a dividir ostrabalhadores, como já havia feito com a re-forma da Previdência e a implodir a CNESF.Contou com os préstimos da direção majori-tária da CUT.

Ofereceu reajustes diferenciados para algu-mas categorias. O Andes – as instâncias quedeliberam pelo sindicato, e não apenas sua di-retoria – jamais reivindicou esse tipo de trata-mento. Por motivos éticos, pelo dever de soli-dariedade aos demais servidores, mas tambémporque estrategicamente esse tipo de conduta éestúpido: pode trazer ganhos imediatos paraalguns, mas ás custas do enfraquecimento dacapacidade de mobilização de todos.

Mesmo assim, os docentes das IFES foramcontemplados, em circunstâncias muito espe-ciais. Ofereceram-nos, sem que nos dessem aoportunidade de discussão, um reajuste emvalores razoáveis, mas aplicado às gratifica-ções produtivistas. Dificilmentepoderiam prever que nossas as-sembléias recusariam a oferta.Multiplicamos os pedidos deaudiência, inutilmente.

Na antevéspera das últimaseleições nacionais do sindicato, oMinistério do Planejamento fez

circular um simulacro de contracheque, noqual alardeava as vantagens pecuniárias de suaproposta, estabelecia um prazo fatal para acor-do e discretamente sugeria que as direções sin-dicais fossem pressionadas a aceitá-la. Comoregistrou uma vez o Painel da Folha de SãoPaulo, “não colou”.

No dia seguinte ao da divulgação dos resul-tados das eleições, fomos finalmente recebidosno MPOG. Soubemos, então, que o prazo jánão era fatal, que o governo não poderia, nomomento, por motivos de ordem técnica, con-cordar com a incorporação da GED e da GID,

mas que seria viável substituí-las provisoria-mente por uma gratificação não produtivista.Os recursos disponíveis para a proposta inicialseriam garantidos. O movimento docente acei-tou negociar nessas bases, e nosso mandatoterminou num clima de razoável otimismo.

Pouco tempo depois, tudo foi desfeito deforma autoritária. Não foi dada nenhuma ex-plicação plausível e as únicas que se podeimaginar dificilmente seriam explicitadas.Em nenhuma das reuniões que tivemos naMesa Nacional de Negociação, os represen-tantes governamentais defenderam essa mo-dalidade de remuneração. Ao contrário, vá-rias vezes externaram posições críticas a essetipo de política.

A SESU nos havia manifestado formalmen-te sua posição favorável à incorporação. Omesmo fizera o Ministro Tarso Genro, dianteda imprensa, quando do lançamento da MesaSetorial da Educação. O impacto financeiro

seria perfeitamente suportadopelos recursos existentes. A áreaeconômica não teria razões paraintervir sobre isso. No entanto, ogoverno jogou fora uma oportu-nidade de criar uma atmosfera deentendimento nas IFES, paraapostar no confronto. Que obje-

tivo poderia ter, senão enfraquecer o sindicatoe sua diretoria? No momento em que umaentidade de cúpula, com representação inex-pressiva, tem sua presença imposta por decisãoministerial para participar de um grupo de tra-balho sobre questões salariais,em igualdade decondições com um sindicato de 70.000 filiados,tudo fica mais claro. Não é só com a CNESFque se quer implodir, mas também com oANDES. Por linhas tortas, isso prova o reco-nhecimento de nossa capacidade de luta. Havercontribuído para que essa capacidade se man-tenha, num contexto especialmente adverso,

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Não é só com a CNESF que se quer implodir, mas também com o ANDES.

Por linhas tortas, isso prova o reconhecimento de nossa capacidade de luta.

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foi, no meu entender, a principal realização denossa diretoria. Isso se fez, sobretudo, pormeio da mais irrestrita democracia interna.

U&S: Como encaras a questão da militân-cia sindical partidária?

Lucas: Conciliar esse dois tipos de militân-cia nem sempre é fácil, mas é extremamentenecessário. Raramente alguém chega a ocuparum cargo importante num sindicato sem terpelo menos uma forte preferência partidária.Acho melhor isso ser explicitado. Não se podecercear a ninguém – dirigente sin-dical ou não – o direito de perten-cer a um partido, e as posiçõesque o negam são normalmentemuito direitistas. Também não sepode esperar que pessoas com omesmo vínculo partidário te-nham usualmente atitudes diver-

gentes em questões importantes da vida de umsindicato. Tampouco se pode impedir que seponham de acordo para a defesa de objetivoscomuns. Evidentemente isso pode trazer orisco de aparelhamento, que sempre deve serevitado. E evitá-lo depende de algumas condi-ções básicas. Uma delas é uma certa dispersãode poder entre os diferentes grupos políticos.Aqui, os efeitos são complexos. Quanto maioro predomínio de uma sigla tanto mais sua in-fluência parecerá “natural”. Ao contrário,quando houver maior disputa interna, as diver-gências tenderão normalmente a tornar-se maisvisíveis e percebidas como incômodas. Outracondição, que me parece essencial, é a existên-cia de instâncias de deliberação democráticaabertas à participação de representantes dasbases. A isso se associa a difusão de valores re-ferentes à autonomia sindical, que contribuempara evitar ingerências descabidas.

Acho que o ANDES, na maior parte da sua

história, soube preservar sua autonomia. Nocaso da diretoria que presidi, havia alto grau depluralismo e nossas decisões jamais foram defi-nidas por critérios partidários.

Alguns diretores, entre os quais me incluo,mudaram de partido durante o mandato, semque isso tenha alterado sua atuação no sindica-to. Quem primeiro propôs na Diretoria a grevecontra a Reforma da Previdência fui eu, e nessemomento ainda era petista. E quando me deci-di a ingressar no PSOL, muitas das razões espe-cíficas que pesaram nessa decisão se originaram

na minha militância sindical: senão fosse o ANDES, eu teria tidouma visão muito menos clara doprocesso de criação da UERGS,pelo governo Olívio, no RS. Te-ria acompanhado com menosatenção as prioridades orçamen-tárias do companheiro Lula. Tal-

vez não tivesse percebido em toda sua dimen-são o significado da reforma da Previdência edas demais que se anunciavam. Não me teriaconsiderado éticamente obrigado a ser solidá-rio com parlamentares punidos porque nosapoiaram. Portanto, pelo menos no meu caso,foi o ANDES que influiu em minha opção par-tidária, não o contrário.

* Edmundo Fernandes Dias é professor aposentadodo Departamento de Sociologia do Instituto de Filo-sofia e Ciências Humanas da Universidade de Cam-pinas – UNICAMP – ; 3º Secretário do ANDES-SN eeditor da revista Universidade e Sociedade.

** Ceres Maria Ramires Torres é professora na Uni-versidade Federal de Pelotas-RS. E 2ª Secretária doANDES-SN.

O ANDES, na maior parte da sua história, soube preservar sua autonomia.

No caso da diretoria que presidi, havia alto grau de pluralismo e nossas deci-

sões jamais foram definidas por critérios partidários.

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1- Introdução

Pretendo a seguir apresentar e examinar al-guns elementos para a compreensão dofinanciamento da educação no governo

Lula. Antes de mais nada, é importante umabreve discussão sobre o caráter do Estado bra-sileiro e de suas políticas sociais mais recentes.O Estado brasileiro, como todo Estado capita-lista, tem sua estrutura e ação orientadas paraatender principalmente aos interesses geraisdas classes dominantes e também específicosde suas várias frações, embora não seja um blo-co monolítico e reflita, em maior ou menorgrau, não só diferenças e divergências no seiodas classes dominantes e das burocracias esta-tais, como também, ainda que minoritariamen-te, os interesses e ações das várias frações dasclasses trabalhadoras e/ou das entidades e par-tidos que alegam representá-las. Vale ressaltarque o Estado não apenas reflete direta e ime-diatamente essas contradições, como tambématua sobre a sociedade por deter certa autono-mia em relação às classes sociais, autonomiaessa necessária para a legitimidade perante asclasses dominadas e variável em função da or-ganização e capacidade das várias classes e suasfrações para fazerem valer seus interesses juntoaos aparelhos estatais. Além destes traços ge-rais, o Estado brasileiro possui particularida-des, definidas por sua história e inserção variá-vel na divisão internacional do capital/trabalhoe do poder, representadas, por exemplo, pelo

forte patrimonialismo dos ocupantes de cargospúblicos, autoritarismo exacerbado, imper-meabilidade às demandas das classes popularese médias, e sua subordinação aos centros hege-mônicos do capitalismo (EUA, Japão, EuropaOcidental).

Se estruturalmente e historicamente o Esta-do brasileiro não tem demonstrado compro-misso com os interesses mais amplos da maio-ria da população, sobretudo os trabalhadores eoprimidos de todo tipo, a conjuntura dos anos90 aumentou este descaso. A crise de reprodu-ção do capitalismo em escala mundial, com re-flexos nas políticas denominadas de neolibe-rais, e o desmoronamento dos regimes ditossocialistas do Leste europeu intensificaram,com a orientação e direção de organismos co-mo o Banco Mundial e o Fundo Monetário In-ternacional, a ofensiva mundial do capital pararecuperar terreno perdido para os setores or-ganizados de trabalhadores nas décadas ante-riores (diminuindo ou anulando direitos so-ciais e/ou trabalhistas) e/ou conquistar novosespaços para sua reprodução (privatizando ju-ridicamente setores ocupados pelo Estado).No Brasil, em que os movimentos popularesviveram um ascenso nos anos 80, esta ofensivacomeça com a eleição do presidente Collor, em1990, e se amplia e consolida com o presidenteFernando Henrique Cardoso (FHC), cujaspolíticas propuseram a redução do papel doEstado na economia e em outros setores, como

O financiamento da educação superiorno governo Lula: uma loteria?

Nicholas Davies

Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.

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Educação e Cultura

educação, com base no diagnóstico de inefi-ciência e má gestão do Estado, cujo déficit seriasanado pela melhor gestão e/ou redução dosgastos estatais e/ou seu redirecionamento parasetores supostamente mais carentes e/ou de re-torno econômico mais seguro. Como não po-deria deixar de ser, tal diagnóstico não se dis-põe a identificar a origem de tal déficit no con-trole do Estado pelo capital privado, que delese serviu e se serve para financiar suas açõesprodutivas e especulativas.

No plano conjuntural, creio ser fundamen-tal também fazer uma breve caracterização dasforças visíveis e outras nem tanto que possibi-litaram ou aceitaram a eleição de Lula, ou man-têm apoio a ele, mais do que a de um partido(Partido dos Trabalhadores) e seus aliados for-

mais ou fisiológicos. De ma-neira muito sintética, pode-mos dizer que Lula foi eleitopor uma coligação de forçaspolíticas organizadas que“representam” (com todas asdistorções que a representa-ção política tem nas socieda-des burguesas e sobretudonas burguesas patrimonialis-tas, como a brasileira) seto-res da classe trabalhadora or-ganizada (ou, melhor dizen-do, da sua burocracia sindi-cal), aliados a uma fração do

capital nacional (“representada” pelo vice-pre-sidente, José Alencar). As forças não tão visí-veis são as que, embora ter possam ter tidomaior predileção num momento por José Ser-ra, perceberam e percebem a importância denão apostar todas as fichas num só cavalo -perdão, candidato - e sabem que, mesmo can-didatos com origem e trajetória popular, têmflexibilidade e “sensatez” suficientes para ou-vir o “mercado”, isso quando o candidato e seupartido, ou pelo menos as suas correntes domi-nantes, já não adequaram seus princípios eprogramas aos horizontes fixados pela ordemburguesa através dos meios de propaganda

(jornais, emissoras de rádio e televisão) e dasforças invisíveis do “mercado”. Alguns brevesindicadores da maior importância do “merca-do” no governo Lula: a pauta política (reformada previdência e tributária) foi construída pelasfrações hegemônicas das classes dominantes“nacionais” e internacionais, o Conselho deDesenvolvimento Social e Econômico, criadopor Lula, contém representantes empresariaisem proporção três vezes maior do que de enti-dades de trabalhadores (além de ser marcada-mente regionalista - paulista), e a taxa de juros(que remunera o capital financeiro e não induzo capital “produtivo” a gerar emprego) man-tém-se em nível muito alto.

Esta breve caracterização é mais importantepara se entender o financiamento da educaçãoe de muitos programas sociais no governo Lulado que os documentos programáticos, iniciati-vas legislativas (como o Fundeb - Fundo daEducação Básica) ou quaisquer outras. Poismuitos governos, mesmo os de discurso pro-gressista, contrários ao neoliberalismo, têmdemonstrado na prática fazer o contrário doque prometeram na campanha. Como diz Per-ry Anderson (1995, p. 20), a propósito das elei-ções de Carlos Menem, na Argentina, em 1989,Carlos Andrés Perez, na Venezuela, em 1989, eFujimori, no Peru, em 1990: “Nenhum dessesgovernantes confessou ao povo, antes de sereleito, o que efetivamente fez depois de eleito.Menem, Carlos Andrés e Fujimori, aliás, pro-meteram exatamente o oposto das políticasradicalmente antipopulistas que implementa-ram nos anos 90.” No seu panorama sobre aevolução do neoliberalismo na primeira meta-de da década de 1990, na Europa, Andersonmostra que mesmo governos com discursosprogressistas, como os de Miterrand, na Fran-ça, González, na Espanha, Soares, em Por-tugal, Craxi, na Itália, e Papandreou, na Gréciaforam “forçados pelos mercados financeirosinternacionais a mudar seu curso dramatica-mente e reorientar-se para fazer uma políticamuito próxima à ortodoxia neoliberal”(ANDERSON, 1995, p. 13). A dúvida é saber

A dúvida é saber se real-mente foram forçados ouse fizeram uma opçãoclara e consciente pelogrande capital, mais con-centrado, organizado epoderoso do que os tra-balhadores, sobretudonuma época de crescentedesemprego e reestrutu-ração produtiva.

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se realmente foram forçados ou se fizeram umaopção clara e consciente pelo grande capital,mais concentrado, organizado e poderoso doque os trabalhadores, sobretudo numa épocade crescente desemprego e reestruturação pro-dutiva. O artigo “Para onde vai o Brasil”, deJames Petras e Henry Veltmeyer (2003), mos-tra a opção do governo Lula pela continuidadee até aprofundamento do modelo neoliberal.

A seguir apresentamos alguns elementos pa-ra a compreensão do que tem sido e muito pro-vavelmente continuará o financiamento da edu-cação no governo Lula. Inicialmente, examina-mos o programa de governo e, depois, algumasde suas “realizações” e propostas nestes 24 me-ses de governo. Uma primeira constatação é queos documentos e ações concretas do governonão parecem guardar muita coerência entre si.Por exemplo, o Programa Universidade paraTodos (lançado por Tarso Genro em fevereirode 2004) não estava previsto nem no Programade Governo, nem no Relatório do Grupo deTrabalho Interministerial constituído em outu-bro de 2003 para discutir uma proposta dereforma universitária. Também a proposta defim da gratuidade do ensino superior federalnão constava nem do programa de governo, masjá era apresentada como possibilidade pelo rela-tório do GT Interministerial.

2- As promessas antes da posseIntitulado “Uma escola do tamanho do

Brasil”, o documento é dividido em tópicoscomo a democratização do acesso e garantia depermanência, a qualidade social da educação, avalorização profissional, o regime de colabora-ção entre os governos e gestão democrática, eos vários níveis e modalidades de ensino e ofinanciamento do ensino. A exemplo de tantosoutros programas de governo, este é bastantegenérico com relação ao financiamento da edu-cação superior ou da educação em geral, im-possibilitando, assim, qualquer cobrança pos-terior. Fala da necessidade de aumentar os re-cursos, porém não define o montante, o per-centual ou prazos, resultando, assim, não em

propostas concretas, mas apenas em vagas de-clarações de intenção. O programa é excessiva-mente lacônico ao tratar do financiamento(ocupando menos de 5% do documento!),prometendo apenas reexaminar os vetos apos-tos por FHC ao PNE (Plano Nacional deEducação - Lei 10.172, de 2001) para que“através do esforço conjunto da União, Es-tados, Distrito Federal e municípios, o percen-tual de gastos públicos em educação em relaçãoao PIB sejam elevados para o mínimo de 7% noperíodo de dez anos.” (PARTIDO DOS TRA-BALHADORES, 2002). Até o final de dezem-bro de 2004, quase 24 meses depois de empos-sado, o governo não havia derrubado tais vetos,o que permite levantar a hipótese de que issonão é feito porque representaria aumento degastos do governo federal, prejudicando a ob-tenção do sacrossanto superávit primário.

Numa análise dos programas para a Edu-cação Superior dos candidatos à presidência daRepública, em agosto de 2002, o Grupo deTrabalho (GT) de Política Educacional do An-des (Associação Nacional dos Docentes doEnsino Superior) já fazia ressalvas a esta pro-posta por defender o “re-exame dos vetos deFHC ao PNE, mas não assumir nenhum com-promisso com seu não-acatamento”, legiti-mando o PNE do governo FHC “ao se limitarapenas a rever os vetos (...) [e diferindo] daproposta do Andes-SN e do PNE da socieda-de brasileira ao não se contrapor à Lei de Res-ponsabilidade Fiscal e ao Fundo de Estabiliza-ção Fiscal, que retira verba da educação.” (SIN-DICATO NACIONAL DOS DOCENTESDAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPE-RIOR, GTPE, 2002). Assim, o programa nãopretendia tomar como referência a meta de10% do PIB (Produto Interno Bruto) fixadapelo PNE elaborado, em novembro de 1997,pelas entidades de trabalhadores da educaçãoque participaram do II CONED (CongressoNacional de Educação), também chamado dePNE da Sociedade Brasileira, e protocoladocomo projeto de lei em fevereiro de 1998.

Este percentual mínimo de 7%, no entanto,

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Educação e Cultura

parece estar em contradição com a Carta-com-promisso do PT, que, segundo a edição espe-cial do Jornal Mural da CNTE (ConfederaçãoNacional dos Trabalhadores em Educação,2003), prometia usar como parâmetro o PNEelaborado pela sociedade (10%). Não tivemosacesso a esta Carta-compromisso, mas é possí-vel que essa contradição se deva ao fato de oprograma de governo ter sido elaborado, senão totalmente, pelo menos em grande parte,pela ONG de Lula, o Instituto de Cidadania,uma instância inexistente na estrutura partidá-ria. De qualquer maneira, qualquer que seja opercentual, 7% ou 10%, como o prazo parasua aplicação é de 10 anos a partir da promul-gação da Lei do PNE (janeiro de 2001) e comoa lei não prevê aumento dos percentuais aolongo dos 10 anos, isso significa que o conjun-to dos governos (o percentual vale para as trêsesferas de governo, e não apenas para o gover-no federal) só seriam obrigados a aplicar estepercentual em 2011. Como o governo Lula ter-mina em 2006 (no caso de não ser reeleito), elenão se verá obrigado a cumprir este percentual(7% ou 10%) até 2006.

Além disso, conforme já salientamos emartigo sobre o Plano Nacional de Educação (-DAVIES, 2001), como o percentual vale para oconjunto dos governos federal, estaduais, doDistrito Federal e municipais, e não há nenhu-ma definição sobre o percentual que cabe a ca-da governo, não se poderá cobrar responsabili-dade de nenhum governo, uma vez que ela é detodos, conjuntamente. Se é de todos, não é denenhum. Outro problema é que a receita dosgovernos não é constituída de PIB, mas sim deimpostos, taxas etc, sendo o PIB (pelo menos oregistrado na contabilidade oficial) um bomindicador para aferir uma série de gastos masnão para cobrar responsabilidade de governos.

3- “Herança maldita”? As “realizações” após a posse

O governo Lula vem seguindo até o mo-mento o mesmo caminho de outros governosde discurso progressista, que, uma vez eleitos,

esquecem total ou parcialmente as promessasde campanha e adotam orientação dos organis-mos internacionais (Banco Mundial e FMI) edo “mercado”, eufemismo para capitalistas.Embora tenha herdado muitos problemas dei-xados por FHC, atribuir tudo à “herança mal-dita” de FHC é não querer ver a sua responsa-bilidade nas políticas atuais, inclusive nas edu-cacionais. Uma medida que não tem a ver comesta “herança” é o arrocho salarial praticadosobre os servidores federais em 2003 e 2004,cujo efeito concreto no curto e médio prazoserá a perda da qualidade do serviço público e,portanto, da educação pública, minando, as-sim, um dos objetivos do programa de gover-no, que, no item “Valorização Profissional”,prometia a “irredutibilidade dos salários, asse-gurada a reposição anual de perdas, a integrali-dade dos proventos de aposentadoria e de pen-sões.”, objetivo este enfraquecido ainda maiscom a reforma da previdência aprovada commétodos fisiológicos em 2003.

Outra medida, que não pode ser atribuída à“herança maldita”, foi a proposta de emendaconstitucional 42 (reforma tributária) encami-nhada em abril de 2003 ao Congresso Nacio-nal, prevendo a prorrogação da DRU (a des-vinculação da receita da União) de 2004 até2007, o que significaria a desvinculação de20% não só dos impostos federais da educa-ção, como também do salário-educação (con-tribuição social calculada à base de 2,5% dafolha de pagamento das empresas). A EC final-mente aprovada em 19/12/03 poupou o salá-rio-educação do corte de 20%, porém não os20% de impostos federais, o que significa quede 2004 a 2007 o governo federal só será obri-gado a aplicar 14,4% (= 18% - 3,6%) dos im-postos em manutenção e desenvolvimento doensino. Criada pela Emenda Constitucional27, em 2000, a DRU representou a prorroga-ção de disposições das Emendas Constitucio-nais 10, de 1996, e 17, de 1997, que instituíramo Fundo de Estabilização Fiscal, sucessor doFundo Social de Emergência, instituído pelaEmenda Constitucional de Revisão 1, em 1994.

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Para se ter uma idéia do prejuízo provocadopor essa esperteza contábil, em 2003 R$ 23,2bilhões de impostos foram desvinculados dabase de cálculo dos 18% (www.stn.fazenda.-gov.br), o que significa cerca de R$ 4,2 bilhões(18% de R$ 23,2 bilhões) a menos para a edu-cação em âmbito federal.

O que é mais grave no FEF/DRU é que foicriado com o discurso de que se destinaria acustear ações de saúde e educação, porém temsido usado muito mais para financiar outros se-tores. Segundo o Relatório e Parecer Prévio doTribunal de Contas da União (TCU) sobre ascontas do governo federal em 1999, os recursosdo FEF “por funções em 1999 foram aplicadosem Defesa Nacional e Segurança Pública (R$7,7 bilhões), Assistência e Previdência (R$ 3,8bilhões), Judiciária (R$ 3,1 bilhões), Saúde eSaneamento (R$ 2,8 bilhões), Administração ePlanejamento (R$ 2,6 bilhões), Educação e Cul-tura (R$ 2,3 bilhões), Agricultura (R$ 1,2 bi-lhão) e demais (R$ 1,5 bilhão)” (BRASIL, TCU,p. 27). Embora este relatório se refira a contasdo governo de FHC, é muito provável que aslinhas gerais do seu teor também valham para ascontas do governo Lula.

Outra medida prejudicial à educação, quetambém não pode ser atribuída à “herançamaldita” e está em contradição com o progra-ma de governo e com as avaliações e propostasde parlamentares do PT e entidades como aUndime (União Nacional dos Dirigentes Mu-nicipais de Educação) e o Consed (ConselhoNacional de Secretários Estaduais de Educa-ção), foi calcular o valor mínimo anual da ma-trícula do Fundef (Fundo de Manutenção eDesenvolvimento do Ensino Fundamental e deValorização do Magistério), não como manda aLei 9.424, nem com base em critério de quali-dade pedagógica, mas sim com base no interes-se do Ministério da Fazenda de gastar o míni-mo possível na complementação federal para oFundef, para sobrar recursos para .... o superá-vit primário. A ilegalidade do governo federalfoi reconhecida até por um grupo de trabalhoconstituída pelo MEC em 2003 (BRASIL,

MEC, 2003) para o estudo do valor mínimo damatrícula, mas suas recomendações não sensi-bilizaram a “equipe econômica” do Ministérioda Fazenda. A conseqüência concreta dessa ile-galidade é que o governo federal deixou decomplementar com mais de R$ 3 bilhões parao Fundef em 2003 e provavelmente com outrotanto em 2004, totalizando no mínimo R$ 6bilhões de complementação federal devida po-rém não realizada só nos dois primeiros anosdo governo Lula. É este des-cumprimento do cálculo dacomplementação federal quejustifica um forte ceticismoem relação à implantação doFundeb (Fundo de Manu-tenção e Desenvolvimentoda Educação Básica Públicae de Valorização dos Profis-sionais da Educação), a panacéia apresentadapelo PT como solução para os males do Fun-def. Ora, o Fundeb contido na Proposta deEmenda Constitucional 112 apresentada pordeputados do PT em setembro de 1999 iria exi-gir do governo federal um volume muito ma-ior de recursos do que ele atualmente gasta,para garantir um custo-aluno-qualidade em to-dos os níveis e modalidades da educação bási-ca. A nova proposta do Fundeb, formalizadapelo MEC e encaminhada à Casa Civil emsetembro de 2004, é bastante diferente da PEC112 e não define a complementação federal,que promete ser tão irrisória quanto tem sidono Fundef. Não sabemos ainda (final de de-zembro de 2004) qual será a proposta doFundeb a ser encaminhada ao Congresso, masnão há ainda nenhuma indicação de que ogoverno federal fará uma complementação fe-deral significativa e muito superior à comple-mentação irrisória que vem fazendo para oFundef desde 1998. De qualquer maneira,como a PEC do Fundeb não foi aprovada em2004, ela não será implantada em 2005. A faltade pressa do governo em aprovar a PEC doFundeb parece indicar que a proposta não étão prioritária assim, até porque iria expor o

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Atribuir tudo à “herançamaldita” de FHC é nãoquerer ver a sua respon-sabilidade nas políticasatuais, inclusive nas edu-cacionais.

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descompromisso do governo federal com ofinanciamento da educação básica, conforme jádemonstrado no caso da complementação fe-deral para o Fundef. Se o Fundeb fosse tãoprioritário, teria tido o tratamento que teve areforma da previdência e o Programa Univer-sidade para “Todos”.

A diminuição da responsabilidade federalcom a educação, em particular com a educaçãosuperior, e o incentivo à participação do setorprivado ficaram claras em outras medidas tam-bém. O orçamento federal para a educação em2004, por exemplo, representou uma redução de13,4% em termos reais, segundo crítica dedeputados do PT ligados à educação (Folha deSão Paulo, 12/11/03), sendo, assim, uma conti-nuidade da política de FHC desde 1995. Em-bora o governo tenha feito bastante propagandado aumento de R$ 1,7 bilhão no orçamento para2005, é preciso ter em mente que grande partedeste “aumento” apenas recupera parcialmenteperdas reais sofridas ao longo dos últimos anos.

Outra medida foi a defesa do fim da gratui-dade do ensino superior público, com a pro-posta de cobrança dos ex-alunos de institui-ções públicas após a conclusão do curso, feitapelo então Ministro Cristóvam Buarque noprimeiro semestre de 2003. Essa proposta, quenada tem de nova na história da educação bra-sileira, ganhou um reforço com o documentodo Ministério da Fazenda que, divulgado emnovembro de 2003, criticava a “injustiça so-cial” na composição estudantil das universida-des federais, por estas serem freqüentadas porestudantes da elite e, portanto, em condiçõesde pagar faculdade. Toda esta farsa da “injusti-ça social” (curiosamente, o Ministério da Fa-zenda não enxerga injustiça social nos jurosaltos pagos aos banqueiros brasileiros e estran-geiros) foi para o palco legislativo logo a se-guir, em dezembro, com a PEC (Proposta deEmenda Constitucional) 217, da deputada fe-deral Selma Schöns, do PT do Paraná, que pre-vê, entre outras coisas, a cobrança de ex-estu-dantes de universidades públicas com remune-ração acima de um piso.

Um outro documento oficial que lança luzsobre as intenções do governo para o financia-mento do ensino superior é o Relatório doGrupo de Trabalho Interministerial constituí-do em outubro de 2003 para elaborar propos-tas para o enfrentamento da crise emergencialdas universidades federais e roteiro para a re-forma universitária. Este relatório, embora es-tabeleça metas de ampliação no número de ma-trículas nas IFES, não propõe aumento de re-cursos para atingi-las, mas sim a concessão de“autonomia para garantir às universidadesfederais o uso mais racional de recursos, maioreficiência no seu gerenciamento e liberdade pa-ra captar e aplicar recursos extra-orçamentá-rios”, o aumento do número de alunos por tur-ma, a maior dedicação do professor à sala deaula, o uso de ensino à distância, a concessãode verbas vinculadas à formação de profissio-nais em áreas estratégicas (no âmbito do Pactoda Educação Superior para o DesenvolvimentoInclusivo, do qual poderiam inclusive partici-par as instituições “comunitárias” ou particu-lares), e a regulamentação das relações entre asIFES e as fundações de apoio. Nas considera-ções preliminares do relatório, fica claro o sig-nificado da autonomia financeira mencionadaacima e o papel das fundações de apoio: “Comesses dois instrumentos – autonomia e Funda-ção de Apoio – as universidades federais certa-mente disporiam de condições não só paraaumentar a captação de recursos, mas tambémpara gerenciar com mais eficiência e previsibi-lidade os recursos que conseguir captar.” Ouseja, na falta de verbas do MEC, as IFES teriamautonomia para se ‘virar’ no mercado, atravésdas fundações de apoio. O relatório apresentavárias outras alternativas de financiamentoque, no entanto, não foram aprovadas por to-dos os membros do GT, como (a) retirada dosR$ 2,8 bilhões de gastos com os inativos dafolha do MEC, (b) contribuição voluntária deex-alunos para as universidades federais, (c)contribuição não voluntária através de alíquo-ta adicional no imposto de renda de ex-alunos,(d) destinação de uma parte da CPMF para as

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IES públicas, (e) incentivo fiscal para o ensinosuperior, (f) fundos empresariais para o ensinosuperior, (g) troca da dívida pública por inves-timento em educação.

A idéia de conceder autonomia às universi-dades federais para não só gerir verbas repassa-das com base nos valores do exercício anterior,como também obter recursos adicionais juntoao MEC mediante comprovação de desempe-nho (“eficiência”) tem presença forte no ante-projeto de reforma do ensino superior apre-sentado pelo MEC no início de dezembro de2004. Com base no anteprojeto, as IFES rece-beriam dois tipos de verbas do governo fede-ral. Uma destinada a manter o nível atual defuncionamento das IFES, sendo os valores cor-rigidos apenas para fazer face a aumento dedespesas de custeio e pessoal. Ou seja, a verbaaparentemente só garante o funcionamento dasIFES nos já precários níveis atuais. A outraverba, complementar, seria repassada em fun-ção do cumprimento de metas de desempenhofixadas no Plano de Desenvolvimento Institu-cional, reforçando, assim, a competição entreas IFES e também no interior de cada uma de-las. A competição e a privatização no interiordas IFES, que, na ordem burguesa, existemdesde sempre e não começaram hoje, poderãoser intensificadas com a proposta de autono-mia de gestão financeira prevista no anteproje-to, pois as IFES terão liberdade para elaborar eexecutar um orçamento global definido previa-mente pelo MEC, não um de acordo com suasnecessidades. Se quiserem recursos adicionaispara atendimento de necessidades não atendi-das pelo orçamento global, as IFES terão quegerar receita própria ou obtê-los junto aoMEC, através do cumprimento de metas dedesempenho, definidas segundo critérios doMEC, ou no mercado.

Uma outra idéia, incorporada neste ante-projeto, é a reserva, para as IFES, de 75% dopercentual de impostos que o governo federalé obrigado constitucionalmente a aplicar emeducação. Em tese, isso significaria 13,5% dosimpostos, pois o percentual mínimo federal é

de 18%. Cabe lembrar que esta não é uma idéianova, pois já foi lançada no governo de FHC.Vários são os problemas dessa proposta. Um,já mencionando anteriormente, é que, em con-seqüência da DRU (desvinculação da receitada União), que desvincula 20% dos impostosda base de cálculo dos 18% até 2007, os 75%representarão 11,4% dos impostos, não 13,5%.Outra fragilidade deste fundo ou de qualqueroutro que dependa deimpostos é que desdea Constituição Fede-ral de 1988 o governofederal tem preferidocriar ou ampliar aschamadas ‘contribui-ções’ (a CPMF é amais recente), paranão dividir tais recei-tas com Estados, Dis-trito Federal e muni-cípios e desvinculá-lasde despesas obrigató-rias constitucional-mente, como a educa-ção e, mais recente-mente, a saúde. É sa-bido que a proporção de tais contribuições nareceita orçamentária da União cresceu expo-nencialmente desde 1988, em detrimento daproporção dos impostos. Portanto, este fundonão é garantia estável e crescente do financia-mento das IFES, sobretudo, como preconiza ogoverno, se elas expandirem as suas matrículase ampliarem as suas atividades em pesquisa eextensão, cujo financiamento dependerá de in-dicadores satisfatórios de desempenho cons-tantes do Plano de Desenvolvimento Institu-cional a ser apresentado por todas as IFES.

4- Aumentando a privatização dos recursos públicos

A história da educação brasileira tem sidonão só de descompromisso dos governos coma educação pública, mas também de incentivodireto e indireto às escolas privadas, que, além

A história da educaçãobrasileira tem sido não sóde descompromisso dosgovernos com a educaçãopública, mas também deincentivo direto e indiretoàs escolas privadas, que,além de gozarem de isen-ção fiscal total pelo me-nos desde a ConstituiçãoFederal de 1946, tam-bém receberam e rece-bem uma série de recur-sos públicos.

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de gozarem de isenção fiscal total pelo menosdesde a Constituição Federal de 1946, tambémreceberam e recebem uma série de recursos pú-blicos. O governo Lula não foge à regra. Porexemplo, o FIES (Financiamento ao Estudantedo Ensino Superior Privado) foi não só manti-do como ampliado no governo Lula. De 1999a 2003, por exemplo, o FIES consumiu cercade R$ 2 bilhões, sendo de R$ 870 milhões aprevisão orçamentária para 2004. É verdadeque mais de 80% dos empréstimos não são naforma de dinheiro vivo, mas de certificados pa-ra as instituições privadas saldarem suas dívi-das junto ao INSS. De qualquer maneira, naprática representam subsídios às instituiçõesprivadas, que, sem o FIES, perderiam uma par-cela de sua clientela e, portanto, sofreriam comuma maior ociosidade. Outra medida adotada

pelo governo Lula, que tam-bém não pode ser atribuída à“herança maldita”, é a possi-bilidade de negociação entrea Caixa Econômica Federal eos inadimplentes do antigoCreduc (Crédito Educativo),antecessor do FIES e queexistiu até abril de 1999, per-mitida pela Medida Provi-

sória 141, de 1/12/03. Tal negociação resultarianum desconto de cerca de R$ 2 bilhões em2003 da dívida dos inadimplentes. Em outraspalavras, mais uma vez o prejuízo terá sidosocializado, pois o dinheiro público que finan-ciou as mensalidades em faculdades particula-res não voltará aos cofres públicos. Alémdisso, as IES privadas continuam sendo bene-ficiadas com uma série de isenções fiscais (paratodas reconhecidas legalmente como sem finslucrativos) e previdenciárias (só para as com otítulo legal de filantrópicas), de incentivos da-dos pelo governo federal e governos estaduaise pelo controle privado de órgãos como osConselhos de Educação, responsáveis pelaautorização, reconhecimento e credenciamen-to de cursos e instituições e que, juntamentecom outros fatores, explicam a astronômica

expansão do ensino superior privado nos anos90. Tais isenções fiscais e previdenciárias tota-lizariam quase R$ 1 bilhão, segundo notíciasveiculadas pela imprensa em 2004.

Como se não bastassem todos esses privilé-gios, o governo federal resolveu oferecer maisum, com um verniz democratizante, com o no-me de Universidade para Todos (Prouni),divulgado na mídia em fevereiro e encaminha-do como projeto de lei (PL) No. 3.582, em28/4/04. Diante das dificuldades de aprovaçãodo PL no Congresso nos moldes desejadospelo governo federal e para atender as “reivin-dicações das mantenedoras das instituições deensino superior”, conforme consta da exposi-ção de motivos, o presidente baixou a MedidaProvisória 213, em 10 de setembro de 2004,que teve força de lei até ser aprovada peloCongresso e sancionada pelo presidente em13/1/05, convertendo-se na Lei 11.096, co-mentada mais adiante. Embora não seja idênti-ca ao PL, a MP manteve a mesma lógica dele,que é a de renúncia fiscal pelo governo federalem troca de vagas ociosas em cursos de gradua-ção e seqüenciais de instituições privadas, des-tinadas a não-portadores de diploma de cursosuperior e com renda familiar per capita infe-rior a 1 1/2 salário mínimo (que teriam bolsasintegrais, ou isenção total nas mensalidades) oua 3 salários mínimos (a serem contempladoscom bolsas de 50%, ou isenção de metade damensalidade). Além disso, os beneficiáriosteriam que ter cursado o ensino médio com-pleto em escola pública ou em instituições pri-vadas na condição de bolsista integral ou serportador de necessidades especiais, nos termosda lei. A exigência de renda máxima não seaplicaria ao professor da rede pública de ensi-no no caso de cursos de licenciatura e pedago-gia destinados à formação do magistério daeducação básica. Aparentemente (a MP não éclara) outra isenção seria para os que se decla-rarem negros e indígenas, que teriam direito aocupar um percentual das vagas corresponden-te ao percentual de cidadãos autodeclaradospretos, pardos e indígenas em cada Estado. Ou

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Mais uma vez o prejuízoterá sido socializado, poiso dinheiro público quefinanciou as mensalida-des em faculdades parti-culares não voltará aoscofres públicos.

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seja, se uma instituição oferecer 1000 vagas e opercentual de cidadãos nesta categoria no Es-tado (segundo o censo mais recente do IBGE)for de 30%, 300 vagas teriam de ser reservadaspara tais cidadãos, qualquer que seja a sua ren-da. Para simplificação, designamos todos estesbeneficiários de cotistas. É interessante obser-var a influência dos privatistas na mudança dealguns critérios da MP em relação ao PL, oqual fixava o limite de renda familiar per capitaem 1 salário mínimo, ampliado para três na MP,que também favorece os privatistas ao permitir obenefício a estudante que tenha feito o ensinomédio com bolsa integral em instituição privada.

São previstas duas situações para as IES pri-vadas. Uma se aplicaria às IES com fins lucra-tivos (responsáveis por 15% das matrículas noensino superior, segundo o noticiário dos jor-nais) ou sem fins lucrativos (com 35% das ma-trículas), as quais, para gozar da isenção fiscaldo IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurí-dica), da CSLL (Contribuição Social sobre Lu-cro Líquido), da Cofins (Contribuição Socialpara Financiamento da Seguridade Social) e doPIS (Contribuição do Programa de IntegraçãoSocial), terão que destinar 10% de todas as ma-trículas aos cotistas. Isso significa que, paracada 9 alunos pagantes, elas terão de reservar 1para os cotistas. A novidade introduzida pelaMP em relação ao PL e que provavelmente re-sulta da pressão dos privatistas é que as IESpoderão também converter até metade das bol-sas integrais em bolsas parciais à razão de duasbolsas parciais para cada bolsa integral. A pos-sibilidade de bolsas parciais, ou, em outras pa-lavras, mensalidades parciais, pode ser inter-pretada como mais uma vitória das IES priva-das, que, além de serem privilegiadas com isen-ção fiscal, passam a ter estudantes que pagammeia mensalidade, atenuando, assim, a grandeociosidade das privadas. As IES sem fins lucra-tivos não-beneficentes (ou seja, não-filantrópi-cas) podem, alternativamente, fornecer apenasuma bolsa integral para cada 19 estudantes pa-gantes, desde que ofereçam, adicionalmente,bolsas parciais (de 50%) na proporção necessá-

ria para que a soma dos benefícios concedidosna forma da Medida Provisória atinja o equiva-lente a 10% da sua receita anual efetivamenterecebida nos termos da Lei 9.870, de 1999.

A condição para o curso participar doProuni é ser considerado suficiente em trêsavaliações consecutivas pelo SINAES (SistemaNacional de Avaliação da Educação Superior,substituto do Provão). Caso contrário, serádesvinculado do Prouni, mas a instituição nãosairá perdendo, pois as bolsas do curso desvin-culado serão redistribuídas para os demais cur-sos dela. Além disso, tendo em vista o objetivodo governo federal de incentivar o setor priva-do para aumentar as matrículas no ensino su-perior, a pretexto de “democratizar” o acessode “carentes” ao ensino superior, e o históricode não-punição de instituições com baixa qua-lidade pelo MEC (algum curso foi fechadopelo MEC com base em avaliação negativa noProvão?), é pouquíssimo provável que tais ava-liações negativas resultem em punições peloMEC. De qualquer maneira, até lá o governo,o ministro, a lei ou a medida provisória terãomudado e provavelmente a instituição não seráprejudicada.

Uma outra situação se aplica às IES filan-trópicas (com 50% das matrículas no ensinosuperior), que, embora se declarem e sejamreconhecidas legalmente como não-lucrativas,não devem ser confundidas com as reconheci-das apenas como sem fins lucrativos. Ambastêm em comum o fato de se declararem e seremreconhecidas legalmente como não-lucrativas,o que permite a isenção de todos os impostos,porém as filantrópicas devem cumprir exigên-cias adicionais fixadas pelo Conselho Nacionalde Assistência Social, o órgão responsável pelaconcessão do título de filantropia, para gozardo privilégio de isenção da cota previdenciáriapatronal (equivalente a cerca de 20% da folhade pagamento), que todas as não-filantrópicassão obrigadas a recolher ao INSS. Para conti-nuarem a gozar da isenção, as filantrópicas te-rão de atender a vários requisitos. Um é ofere-cer, para cada 9 estudantes pagantes, pelo me-

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nos uma bolsa integral a estudante cuja rendafamiliar per capita não exceda o valor da men-salidade do curso, limitada a três salários míni-mos (R$ 780 em valores de setembro de 2004),podendo também oferecer bolsas de 50%. Esterequisito pode ser interpretado como umaconcessão às filantrópicas, pois no PL a exi-gência era de 1 cotista com bolsa integral paracada 4 pagantes. Outro requisito seria destinar20% da receita bruta em gratuidade, que in-cluiria não só as referidas bolsas (integrais ouparciais), inclusive para funcionários e profes-sores (na proporção máxima de 2% dos 20%),mas também uma “assistência social em pro-gramas extracurriculares”, outra concessão fei-ta às filantrópicas, que vão poder continuarabusando dessa categoria genérica, onde cabemuita coisa que nada tem a ver com educação.Algumas filantrópicas, segundo noticiário dosjornais, já manifestaram contrariedade com aexigência de bolsistas integrais alegando queisso iria diminuir o número total de bolsistasque têm no momento (que seriam parciais).Isso provavelmente se deve ao fato de a imen-sa maioria das chamadas “bolsas parciais” atéhoje oferecidas pelas filantrópicas serem naverdade mensalidades com descontos de 10%,20% ou até 30% e que, portanto, não poderi-am ser contabilizadas para fins de preenchi-mento do critério adicional de filantropia ins-tituído pela MP 213 (1 bolsa integral para cada9 estudantes pagantes).

Para atrair ainda mais as IES privadas, ogoverno oferece dois incentivos, além da isen-ção fiscal e previdenciária (esta última para asfilantrópicas apenas). Um é a prioridade dosempréstimos do FIES (mais de R$ 800 milhõesem 2004) àquelas que aderirem ao Prouni. Ou-tro, para as IES não universitárias, é o direitode ampliar as vagas sem autorização do MEC“no limite da proporção de bolsas integraisoferecidas por curso e turno”, um privilégio deque gozam só as IES universitárias.

Uma justificativa ministerial para o Prouni(segundo declaração do ministro aos jornaisem fevereiro de 2004) é que ele seria uma

forma de criar novas vagas no ensino superiorpara cotistas sem nenhum investimento adicio-nal por parte do governo, cuja renúncia fiscal,correspondente a R$ 50 milhões, seria muitoinferior ao montante para gerar o mesmo nú-mero de vagas em IES públicas, estimado emR$ 350 milhões em declarações do ministro àimprensa, porém não mencionado no PL nema MP. Seria, pois, uma justificativa puramenteeconômica: seria mais barato criar vagas nasprivadas do que nas públicas. Outra justificati-va seria a existência de uma grande ociosidadenas IES privadas, estimada em 37,5% na expo-sição de motivos do projeto de lei porém nãomencionada na exposição da MP. Uma terceirajustificativa seria, segundo a exposição de mo-tivos do PL, separar o joio do trigo entre as fi-lantrópicas, as quais, para continuarem gozan-do do título de filantropia e, pois, da isenção dacontribuição previdenciária patronal, teriamde atender aos novos requisitos.

Procurando se defender da crítica de que oProuni representaria transferência de recursospúblicos para as IES privadas, o ministro alega,no item 8 da exposição de motivos do PL etambém na MP, que a renúncia de tributos pa-gos pelas não-filantrópicas (as IES com ou semfins lucrativos) seria compensada pelo aumen-to da arrecadação de tributos pagos por umaminoria de filantrópicas (“o joio”) que seriamlevadas a alterar seu regime jurídico, com basena suposição de que essa minoria que nãocumpre as exigências relativas à filantropiaseria induzida a “transformar sua natureza ju-rídica em sociedade de fins econômicos”, pas-sando a pagar a “quota patronal para a previ-dência social de forma gradual, durante oprazo de cinco anos, na razão de vinte porcento do valor devido a cada ano, cumulativa-mente, até atingir o valor integral das contri-buições devidas” (MP 213). Ou seja, se opta-rem pela sua transformação em “sociedade defins econômicos”, as filantrópicas poderão re-ter para si o patrimônio acumulado às custas detodas essas isenções públicas ao longo dosanos, infringindo, assim, a Constituição Fede-

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ral de 1988, que, no inciso II do art. 213, esti-pula que, no caso de encerramento de suas ati-vidades, elas teriam de destinar seu patrimônio“a outra escola comunitária, filantrópica ouconfessional ou ao poder público”. Alega o go-verno que assim estaria não só criando vagasno ensino superior para alunos carentes, semgastar um centavo, como também recuperando“a dignidade do conceito de filantropia, já que,hoje, a falta de transparência do cálculo de gra-tuidade a ser aplicado em assistência social porparte das instituições de ensino superior filan-trópicas, confessionais e comunitárias é tamanhaque uma minoria de instituições que se valemdessa opacidade para se desincumbir dos tribu-tos devidos sem atender a suas obrigações sociaismaculam a imagem de todo um setor cuja ação éimprescindível para o desenvolvimento social doPaís.” (PROUNI, www.mec.gov.br, 2004, item6 da exposição de motivos do PL).

São muitas as debilidades do Prouni. A maisgrave, sobretudo num governo que alegava de-fender a escola pública, é que representa a des-reponsabilização do governo federal com aexpansão do ensino superior público e o incen-tivo à iniciativa privada, que contou e contaainda com muitos estímulos por parte do Po-der dito Público. Outra é que parte do pressu-posto de que o estudante carente pode ficarnuma IES de pior qualidade, como é o caso dasprivadas de modo geral. Em outras palavras, oestudante pobre deve se contentar com umaIES pobre, embora o PL afirme que uma con-dição para a IES participar do programa é queseja avaliada satisfatoriamente pelo SINAES.

No tocante às filantrópicas, são várias asfragilidades. Por exemplo, o PL não esclarececomo pretende combater a falta de transparên-cia e os inúmeros artifícios que as ‘falsas’ filan-trópicas praticaram e ainda praticam para bur-lar as exigências legais, com a cumplicidade dospróprios órgãos governamentais. Se a fiscaliza-ção das filantrópicas sempre deixou bastante adesejar, por que agora irá melhorar? O apare-lho de Estado mudou? Cabe esclarecer, ainda,que as filantrópicas porventura prejudicadas

pela cassação do título de filantropia poderão,através de suas entidades representativas, ajui-zar Ação Direta de Inconstitucionalidade jun-to ao Supremo Tribunal Federal (STF), comoocorreu após a aprovação da Lei 9.732, em de-zembro de 1998, que instituiu exigências maisrigorosas para as filantrópicas, suspensas porliminar do STF em 1999. Mesmo quando tive-rem o seu certificado de filantropia cassado,elas poderão recorrer na ‘Justiça’ e enquantoisso manterão o certificado. Até lá, o governopode ter mudado e o ministro pode ter caído.Além disso, as filantrópicas contam com alia-dos poderosos (deputados e senadores) noCongresso Nacional,muitos dos quais, em-bora provavelmentefaçam parte do esque-ma fisiológico do go-verno federal, irão op-tar por defender as fi-lantrópicas, como fi-zeram na elaboraçãoda Constituição de1988 e em outros mo-mentos.

Também os crité-rios de seleção dos co-tistas apresentam fragilidades. Por exemplo,numa economia em que grande parte da popu-lação vive na economia informal, sem carteiraassinada, e em que muitos não declaram suarenda, será muito difícil verificar a renda fami-liar per capita e, portanto, fazer qualquer tipode fiscalização. Além disso, é pouco provávelque o estudante com renda familiar per capitade 1 1/2 salário mínimo (para se beneficiar dabolsa integral) consiga concluir o ensino mé-dio. É mais provável que nem consiga termi-nar o ensino fundamental. Afinal, as desigual-dades de renda geralmente se refletem nodesempenho educacional. Outra fragilidadedo Prouni é a falta de coerência entre os crité-rios de reserva de vagas, pois cotistas comoprofessores da rede pública da educação bási-ca, portadores de necessidades especiais e pes-

Educação e Cultura

Outra é que parte dopressuposto de que oestudante carente podeficar numa IES de piorqualidade, como é o casodas privadas de modogeral. Em outras pala-vras, o estudante pobredeve se contentar comuma IES pobre,

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soas que se declarem negras ou índias podemter renda familiar per capita superior a 1 1/2ou 3 salários mínimos ou ter feito o ensinomédio em escola particular.

É interessante notar a sensibilidade do go-verno para a ociosidade das privadas, estimadaem 37,5%. Como se ele tivesse que estar preo-cupado com o problema econômico das priva-das! Com relação ao suposto custo menor degeração de vagas nas privadas do que naspúblicas, é sempre bom lembrar que as públi-cas realizam atividades (pesquisa, atendimento

médico em hospitais univer-sitários, por exemplo) que,justamente por serem maisdispendiosas, não atraem ointeresse da imensa maioriadas privadas, que preferem seconcentrar apenas no ensino,

atividade mais econômica e industrializável.Portanto, se é verdade que o custo para criaruma vaga nas públicas é maior, é preciso terem conta estes e muitos outros fatores, conve-nientemente não captado por um raciocíniopuramente economicista e influenciado pelaperspectiva neoliberal de contenção de gastossociais. Mais grave, no entanto, é o Ministronão reconhecer a educação pública (em todosos níveis) como um direito da cidadania, quenão deve estar sujeito nem à lógica do merca-do totalmente livre, sem a ação do Estado,nem à lógica assistencialista/economicis-ta/neoliberal do Estado, que parece inspirar aidéia de renúncia fiscal em troca de vagas paragrupos “socialmente desfavorecidos” em ins-tituições privadas, supostamente mais baratasdo que as públicas.

Ao contrário do slogan vazio e demagógi-co “Universidade para todos”, essa medidanão se destina a todos, sendo típica da pers-pectiva neoliberal de focalização dos gastospúblicos em grupos supostamente mais ca-rentes, e não de sua universalização. Tambémé neoliberal ao reduzir a educação e os servi-ços públicos apenas ao seu aspecto econômi-co e, pior, economicista, transferindo-a para

o setor privado. Também é neoliberal poromitir o papel do Estado na oferta direta deeducação. Diante disso, não podemos ter ex-pectativa favorável da proposta de reformauniversitária que o governo vai tentar apro-var a todo custo este ano (depois das eleiçõesmunicipais!).

Os privatistas não se contentaram com asconcessões da MP 213 e conquistaram maisalgumas na Lei 11.096. Uma foi a criação dabolsa parcial de 25%, ou seja, o estudante “ca-rente” é obrigado a pagar uma mensalidadeequivalente a 75% do valor “normal”. Outrabeneficiou as f(p)ilantrópicas que haviam per-dido o Certificado de Entidade Beneficente deAssistência Social e, portanto, a isenção dacontribuição previdenciária. Elas poderão re-cuperar tal certificado e, portanto, a isenção,desde que “comprovem” a gratuidade exigidadas filantrópicas, gratuidade que incluiria asbolsas integrais e parciais do Prouni. Assim, oganho das instituições privadas é múltiplo: nãosó deixam de pagar impostos e contribuições etambém, no caso das f(p)ilantrópicas, contri-buições previdenciárias, como também têm ummercado cativo de estudantes com bolsas par-ciais (50% e 25%). Sem falar na prioridade deacesso aos empréstimos do FIES, mais um me-canismo de garantia de uma clientela cativa nasIES privadas.

5- A loteria como futuro?Os elementos apontados acima indicam um

quadro desfavorável à ampliação do financia-mento público do ensino superior federal, re-forçado pela idéia de se criar uma loteria parafinanciar as IFES, lançada pelo ministro emjunho e que, a exemplo de tantas outras, nãoconstava do programa de governo nem do re-latório do GT Interministerial. A imaginaçãocriadora do Ministro é sintomática. Pode indi-car que ele não espera aumentar os recursospara as IFES e que tal financiamento será umaloteria no sentido de depender da ‘sorte’ (emoutras palavras, da “equipe econômica”) e nosentido de que numa loteria as chances de ga-

Educação e Cultura

Mais grave, no entanto, éo Ministro não reconhecera educação pública (emtodos os níveis) como umdireito da cidadania.

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nhar são sempre ínfimas, pois a imensa maioriacontribui para o enriquecimento de um só oude pouquíssimos. Não sei se o Ministro estavano divã do psicanalista quando falou da idéiade loteria, mas seguramente deixou escaparuma idéia que sintetiza o seu pensamento/sen-timento oculto sobre o financiamento dasIFES, que vêm perdendo, assim como os pro-gramas sociais como um todo, para os grandesganhadores do prêmio da loteria, que são ogrande capital nacional e internacional, quecompraram o bilhete vendido por Lula, Paloc-ci e companhia.

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Do projeto à aprovação – um debatedemocrático?

O atual contexto de expansão da universi-dade pública está diretamente relacionado coma transformação da educação em mercadoria,um dos eixos centrais da política de globaliza-ção gestada pelos organismos internacionais1.Nessa direção, a privatização dos serviços pú-blicos e a transformação desses serviços emmercadoria para o livre mercado tornam-se atônica das políticas públicas dos governos afi-nados com essas instituições. Assim, a razãopara essa preocupação liga-se diretamente àpolítica educacional brasileira, que tem se ade-quado às diretrizes ditadas pelas agências fi-nanciadoras internacionais, pautadas na priva-tização e desmonte dos serviços públicos. Talfato vem conquistando espaço importante nosorganismos internacionais, como na Área deLivre Comércio da América (ALCA) e na Or-ganização Mundial do Comércio (OMC), quevisam à desregulamentação dos serviços públi-cos, em especial a educação. Grandes empresasinternacionais já planejam pôr seus produtosem um novo mercado estratégico, o educacio-nal, onde mudanças se fazem necessárias paraviabilizar as novas estratégias do capital para

essa nova frente de lucros.A expansão de vagas nas universidades pú-

blicas em âmbito estadual e federal é uma metadefendida historicamente pelo movimento do-cente, apresentada em inúmeros documentos,deliberações congressuais das entidades quecompõem o ANDES Sindicato Nacional, bemcomo da ADUNESP S. Sindical. Esta meta sóé possível de se concretizar, na visão dos sindi-catos, a partir dos seguintes critérios: financia-mento público, autonomia acadêmico-admi-nistrativa e manutenção do modelo de univer-sidade pública, gratuita e de qualidade, pauta-da no princípio constitucional da indissociabi-lidade entre ensino, pesquisa e extensão. Por-tanto, deveria preceder o debate sobre a expan-são, em qualquer instituição pública, a garantiado financiamento definitivo, visto que este cri-tério garantirá a manutenção do modelo deuniversidade e, principalmente, a forma e otempo de implantação do projeto de expansão.

A partir desses referenciais, a Adunesp S.Sindical analisou, a priori, com preocupação aproposta de Expansão do Ensino Superior doEstado de São Paulo, apresentada pelo CRUESPem 20012 negociada com o governo do estado,sem amplo debate com a comunidade universi-

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Expansão de vagas na UNESP – da utopia à realidade

“a geografia da irresponsabilidade”

Milton Vieira do Prado Junior *Sueli Guadelupe de Lima Mendonça **

* Professor da Faculdade de Ciências/Unesp e Presidente da Adunesp SSind.** Professora da Faculdade de Filosofia e Ciências/Unesp e Vice-Presidente da Adunesp SSind.

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tária. A preocupação surgiu, por um lado, por-que o documento propunha timidamente a ex-pansão em unidades já consolidadas das trêsuniversidades paulistas; por outro lado, defen-dia a criação de novas unidades, formação rápi-da, programas de educação continuada, cursosseqüenciais, cursos profissionalizantes, ensinoa distância; e uma perspectiva de ampliação de5% ao ano em unidades regulares, podendo sermaior em outras unidades, desde que estas bus-cassem formas alternativas de gestão e adminis-tração. Por outro lado, colocava, ainda, que oaumento de vagas deveria ser ampliado signifi-cativamente até 2007.

O projeto previa seu início para o ano de2002, com a perspectiva de finan-ciamento via ICMS, porém, comverbas destinadas pela extracota-parte dessa arrecadação, ou seja,sem garantias de se tornar definiti-va para as universidades.

Dessa forma, ano a ano, duran-te a discussão da Lei de DiretrizesOrçamentárias e Lei Orçamentáriana Assembléia Legislativa do esta-do de São Paulo (ALESP), necessi-taria da aprovação de projetos ela-borados pelos deputados visando adestinar recursos à expansão dasuniversidades públicas paulistas. A priori, tra-tava-se de verba “carimbada” para a expansãode vagas, claramente definida para a implanta-ção do programa, sem nenhuma garantia para amanutenção do projeto de expansão após esseperíodo.

O Sindicato posicionou-se desde o início,reafirmando que sem garantias financeiras nãose deveria iniciar qualquer implantação doprograma, principalmente porque este não ha-via sido debatido em toda a comunidade, comono caso da Unesp. Porém, a comunidade foisurpreendida quando, fruto de negociação po-lítica, foram aprovados recursos, não definiti-vos, para a implantação da expansão na LeiOrçamentária do Estado de 2002. Essa aprova-ção foi pautada na ALESP com base no discur-

so da necessidade da ampliação devido à de-manda, à pressão social e fruto da comparaçãoentre o percentual de escola pública frente àsuniversidades particulares no estado.

Fator decisivo, no entanto, para aprovaçãoda verba de imediato, foi o resultado de umestudo3, conduzido pela Reitoria da Unesp,que pagou muito caro a uma Comissão de do-centes da Universidade, que concluiu que exis-tia regiões do estado onde não havia EnsinoPúblico Estadual. Portanto, a Comissão indi-cava a criação de cursos nessas regiões, sendonecessária a criação de novas unidades daUnesp. Definia, também, que essas novas uni-dades deveriam ser criadas a partir de parce-

rias/convênios com as prefeiturasde algumas cidades já contatadas,com uma estrutura enxuta e eco-nômica e propunha um esboço depropostas de novos cursos.

Essa proposta se constituiu nacriação das “Unidades Diferen-ciadas” da Unesp, ou seja, as quenão seguiriam as regras estatutá-rias para a criação de um novocampus universitário. Assim, aUnesp estaria fortalecendo suavertente de atuação no interior,contribuindo para diminuir a de-

fasagem entre o oferecimento de vagas no ensi-no público quando comparado ao ensino pri-vado no estado, atendendo a reivindicaçõeshistóricas da sociedade.

Esse estudo diferenciava a Unesp da USP eda Unicamp que. naquele momento, não pos-suíam um projeto em andamento para a im-plantação da expansão. O reitor da Unesp, apartir de ação política junto à ALESP e gover-no Alckmin, conseguiu que a maior parte domontante financeiro destinado a essa expansãono ano de 2002 viesse para a Unesp, visto quetinha um projeto e se comprometeu a iniciar oprograma de imediato. Fruto desse acordopolítico, três problemas insolúveis foram cria-dos: a quebra do acordo com as outras duasuniversidades quanto ao histórico de distribui-

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Esse estudo diferenciava a Unespda USP e da Unicamp

que, naquele momento, não

possuíam um projetoem andamento para

a implantação daexpansão.

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ção de verbas, já que a maior parcela foi desti-nada à Unesp; a necessidade de criação de ou-tras unidades na Unesp em prazo recorde; e aconstrução de projetos pedagógicos para osnovos cursos, sua aprovação pelos colegiados,inclusão no vestibular, investimento, contrata-ção de professores. E o debate com a comuni-dade?

Fruto dessa negociação sem o debate demo-crático, de imediato a comunidade reagiu. Areitoria propôs, no final de 2001, em uma reu-nião extraordinária do Conselho Universitá-rio, a aprovação de proposta inconsistente que,analisada academicamente, não se comparavaao mais precário projeto de iniciação científica.Assim, foi adiada a discussão parao início de 2002. Essa primeiraderrota do reitor inviabilizou a im-plantação de imediato, porém, osrecursos não foram retirados doorçamento.

Com a política do fato consu-mado, o debate sobre expansãovoltou na primeira reunião de2002 do Conselho Universitário.Naquele momento, a disposiçãodas prefeituras em participar doconvênio e a verba já autorizadaforam utilizadas como forma depressão à aprovação das novasunidades. Porém, com poucoavanço sobre as propostas peda-gógicas dos cursos e a pressão dealguns diretores de unidades quecobravam a aprovação de cursos solicitados etramitados pelos colegiados nas suas faculda-des anteriormente, mais uma manobra se efe-tivou. Criou-se a figura da aprovação do“mérito” do projeto no Conselho Universitá-rio. Se o mérito fosse aprovado, os estudos eprocedimentos iriam prosseguir para poste-rior aprovação do Conselho; se não, a expan-são não ocorreria. Nessa perspectiva, o proje-to foi aprovado quanto ao mérito, pois nin-guém era contra a expansão; o que se discutiaera o modelo e o financiamento.

Pouco tempo depois, ficou evidente o acor-do de bastidores. O que parecia ser uma deci-são acadêmica em defesa do modelo da univer-sidade não se concretizou. Viu-se, na prática, aimplantação da política do “toma lá. dá cá”. Oreitor abriu a possibilidade de incorporar noprojeto de expansão tanto a criação de vagasem unidades diferenciadas como em unidadesregulares da Unesp, por meio de novos cursos.

Nesse novo contexto, foram inseridos cur-sos que realmente já estavam em tramitação eaprovados pelos colegiados. Porém, as unida-des que os propuseram também receberiamparte da verba extracota para sua implantação.Naquele momento, alguns diretores, sentindo-

se “prejudicados”, iniciaram nego-ciação para que propostas denovos cursos pudessem ser incluí-das no projeto. O reitor - necessi-tando garantir a aprovação da ex-pansão, receber verbas extras ecumprir o acordo com o governoestadual em levar a universidadepública para diversas cidades emum ano eleitoral, no qual o gover-nador Alckmin disputava a reelei-ção - possibilitou a corrida nasunidades para a formulação deprocesso de ampliação de vagas,por meio de novos cursos. Na-quele período, a comunidade vi-venciou a violação e o desrespeitoao Estatuto e aos Órgãos Colegia-dos da Unesp, expressão concreta

da ganância de muitos diretores de unidadeuniversitária por mais recursos, desconside-rando as nefastas conseqüências futuras dessapolítica desastrada de expansão.

O Sindicato transformou sua preocupaçãoem ação contra o projeto de expansão em an-damento. Foram realizados debates envolven-do docentes, funcionários e estudantes, inter-ferências em órgãos colegiados locais e da ad-ministração central, demonstrando claramenteque o projeto não respeitava a tramitação regu-lar prevista no estatuto da universidade e mo-

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...levar a universida-de pública para

diversas cidades emum ano eleitoral, noqual o governador

Alckmin disputava areeleição - possibili-

tou a corrida nas uni-dades para a formu-lação de processo deampliação de vagas,

por meio de novos cursos...

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dificava a estrutura da instituição. A “unidadediferenciada” não poderia ser criada, pois nãohavia garantia da qualidade de ensino. A ex-pansão em unidades regulares não previa con-tratação de professores e funcionários e, sem averba definitiva, a expansão levaria a Unesp auma crise institucional e financeira.

Fruto desse debate, muitas congregaçõesnão aprovaram o projeto. Além disso, a indig-nação dos estudantes aumentou, visto que paraas reivindicações estudantis sistematicamente areitoria dizia não ter dinheiro para aplicar nasunidades. Então, como se poderia ampliar auniversidade? Além disso, não estava previstono projeto de expansão o financiamento da as-sistência estudantil para as unidades diferen-ciadas e para os novos cursos.Dessa forma, os estudantes orga-nizaram manifestações e, no dia dadiscussão dessa proposta, 14/8/02,ocuparam o Conselho Univer-sitário, não permitindo sua apro-vação.

Naquele momento, o reitorficou atordoado com essa ação. Jáera agosto, véspera da definição donúmero de vagas a serem liberadaspara o vestibular/2003. Portanto,seria necessária a aprovação dasnovas vagas. Aliado a este fator, oreitor sabia que muitas congrega-ções haviam rejeitado o projeto e, portanto,teria que articular para conseguir aprová-lo.

O reitor organizou uma corrida à CâmaraCentral de Graduação (CCG) para aprovaçãodos projetos pedagógicos, tanto nas unidadesdiferenciadas como nos cursos novos, desres-peitando os trâmites estatutários e regimentaisda universidade. Utilizou, também, a estratégiade realizar a reunião do Conselho Universi-tário no interior, com forte aparato policial,bem como negociou com alguns diretores oseu voto, propondo a aprovação da expansãoem duas etapas: primeiro, a aprovação de cur-sos em unidades diferenciadas, pois assim nãonecessitava, na visão da assessoria jurídica da

reitoria, da criação das unidades e a aprovaçãodos cursos entraria em casos omissos do Es-tatuto; e, num segundo momento, a aprovaçãoda expansão de vagas em unidades regularescom novos cursos.

A Adunesp, prevendo essa articulaçãoentrou com uma ação na Justiça para impedir arealização da reunião, uma vez que a criação deunidades diferenciadas violava o Estatuto eRegimento da Unesp. Porém, a liminar não foiacatada judicialmente e o Conselho Universitá-rio acabou ocorrendo. Durante este Conselho,surgiu, fruto da reunião do CONDUNESP(Conselho de Diretores da Unesp), magicamen-te uma proposta alternativa dos diretores - nãodiscutida com suas congregações e nem com o

sindicato - que propunha a criaçãode apenas duas unidades diferencia-das, como forma de experiência. OSindicato não concordou, já quequestionava a lógica do projeto, eassumir duas unidades era concor-dar com ele.

Durante a votação, a propostado reitor foi aprovada4, encabeçadapor um diretor de unidade, pois sevotou a criação de todas as unida-des ou apenas de duas. A propostado Sindicato de não aprovar ne-nhuma unidade diferenciada foirejeitada no momento de votação

pelo reitor; uma manobra perspicaz, pois elealegou que o Sindicato já estava na Justiça e,portanto, não concordava com a proposta dareunião. Os representantes do chapão daAdunesp, juntamente com alguns funcioná-rios, votaram contra esse projeto. O proble-ma estava instalado, porém, ele se agravou, jáque a aprovação das unidades diferenciadasficou condicionada à ampliação de vagas nasunidades regulares, o que aconteceu algumasreuniões à frente.

Para fechar o circo da expansão irresponsá-vel, como não havia mais possibilidade deincluir no vestibular os novos cursos, o reitorpropôs a realização de um vestibular no meio

Educação e Cultura

A expansão em unidades regulares

não previa contrata-ção de professores efuncionários e, sem a

verba definitiva, aexpansão levaria aUnesp a uma crise

institucional e financeira.

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do ano de 2003 para o projeto de expansão devagas, fugindo da dinâmica da Unesp. Essa ini-ciativa, não aprovada nos colegiados, foi imple-mentada pelo reitor, visto que, como as unida-des diferenciadas não estavam previstas noestatuto, esta foi aprovada por “ad referen-dum”. Estava demonstrada, mais uma vez, a“gestão democrática” do reitor Trindade.

PEC/Formação Universitária e pedagogia cidadã: A formação aligeirada

na expansão da UNESPA expansão de vagas da Unesp, na verdade,

começou com o “PEC/Formação Universitá-ria”, programa de formação aligeirada de pro-fessores. O objetivo principal foi oferecer cursode licenciatura plena em nível su-perior aos professores em exercíciona educação infantil e nas sériesiniciais do ensino fundamental darede estadual pública de ensino, emsintonia com as novas modalidadese defendidas pelo Ministério daEducação e pelo CRUESP.

O “Programa de EducaçãoContinuada - Formação Universi-tária” (PEC/Formação Universi-tária) foi a primeira modalidade di-versificada a ser implementada(2001), sendo um curso especial deformação de professores de 1ª a 4ª séries do en-sino fundamental. Um protocolo de intenções -estabelecido entre a SEE, Unesp, Unicamp5,USP e PUC - estabeleceu uma parceria, na qualas universidades se comprometiam a criar umamodalidade especial de curso de graduação,destinada aos professores efetivos da rede esta-dual de ensino ainda não portadores do certifi-cado de nível superior. Este curso, inicialmente,era totalmente virtual e, depois de pesadas crí-ticas, passou a ter momentos presenciais. Comcarga horária reduzida frente ao mínimo exigi-do pela legislação em vigor, o curso se dividiaem tele e vídeo conferências, com a presença demonitores e não de professores em sala de aula.

Antes mesmo de se ter um projeto minima-mente estruturado, o convênio foi estabelecido,

a despeito da falta de discussão e de consultaaos órgãos colegiados das universidades e do-centes atuantes na área de formação de profes-sores. À revelia da comunidade universitária, asreitorias encaminharam “ad referendum” oprocesso de implantação do projeto, ignorandoas críticas internas de suas instituições, algumasdelas apenas iniciadas e tornadas inócuas frenteao convênio já estabelecido.

A justificativa preponderante foi o prazolegal para a qualificação dos professores comnível médio, dado pelo parágrafo 4º do artigo87 da Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional. Na verdade, a Secretaria Estadualde Educação (SEE) apresentou um projetopronto de formação de professores, que gerou

inúmeras críticas, do ponto devista da concepção e justificativa,principalmente no que tange ànecessidade da certificação emnível superior, uma vez que aprópria lei é explícita em afirmara alternativa de se fazer a capaci-tação em serviço.

Outro fator importante foi omontante de recursos destinados aoprojeto: inicialmente, 100 milhõesde reais, transformando-se ao finalem 50 milhões, segundo informa-ções dos responsáveis pela negocia-

ção e condução dos projetos, pois essa informa-ção não foi disponibilizada em documento.Grande parte dessa verba seria destinada à com-pra de equipamentos de mídias interativas, basedo projeto.

O mais acintoso, talvez, tenha sido a impo-sição pela SEE do projeto inicial, tendo comoargumento explícito para a não-discussão comas universidades a falta de tempo, pois esse pro-jeto teria que ser implementado dentro domandato da Secretária de Educação daquele pe-ríodo. Se as universidades públicas não aceitas-sem o convênio, a SEE o abriria às instituiçõesparticulares. Assim, sob argumento oportunis-ta e aterrorizante, o projeto foi implementado,com a submissão das universidades a esta polí-tica de formação.

Educação e Cultura

O mais acintoso, tal-vez, tenha sido a

imposição pela SEEdo projeto inicial,tendo como argu-

mento explícito paraa não-discussão comas universidades a

falta de tempo.

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Educação e Cultura

Inicialmente, o projeto previa atender cercade 12 mil docentes na rede pública estadual.Depois, esse número caiu para cerca de seismil. A verdade é que pouco se sabe sobre a ver-são final do projeto que, segundo os partici-pantes das universidades, foi amplamentereformulado, porém, nunca divulgado para acomunidade. Trata-se, basicamente, de umcurso semipresencial, de breve duração (cercade dezessete meses), que já teve a formatura daúnica turma6 no final de 2002.

Paralelamente ao PEC/Formação Universi-tária, foi-se constituindo um grupo dentro daUnesp que visava a assimilar as críticas doPEC/Formação Universitária e elaborar umnovo projeto para “atender” às prefeituraspaulistas. Esse projeto foi denominado porseus formuladores como “Pedagogia Cidadã”7

e teve um processo de discussão muito seme-lhante ao seu antecessor.

Apesar de não ter, a priori, nenhum convê-nio pré-estabelecido, a pressa se justificava pe-lo decorrer do tempo para atender ao artigo daLDB já citado. Assim, mesmo não estandopronto como projeto, ainda apresentandomuitas dúvidas sobre vários aspectos da suaoperacionalização, o “Pedagogia Cidadã” teveuma tumultuada tramitação nos órgãos cole-giados centrais da Unesp, sendo aprovado, em2002, à revelia de uma ampla e democráticadiscussão na universidade8. Segundo dados daPró-Reitoria de Graduação, o projeto já reali-zou dois vestibulares e já está orga-nizando o terceiro; tem cerca dequatro mil alunos e estabeleceuconvênio com cerca de noventamunicípios. Do ponto de vista cur-ricular, o curso é semipresencial,com carga horária de 3.390h(2.190h teóricas e outras 1.200hestágio, prática de ensino e outrasatividades acadêmico-culturais),com as tele e vídeo conferências.Tem como professores docentesque não são da Unesp, embora ocertificado seja expedido por esta

universidade. Atualmente, enfrenta denúnciasde cobranças de mensalidades dos alunos emalgumas cidades e já se prepara para o terceirovestibular.

O problema instalado e as perspectivas futuras

Antes do que se pensava, o programa de ex-pansão começou a criar problemas. No ano de2002, foi uma grande festa. A Assessoria dePlanejamento e Obras da reitoria recebeu averba extraorçamentária de 29 milhões. A rei-toria, com a demora da aprovação do projetode expansão e, portanto, a não utilização de to-do recurso financeiro “carimbado”, ficou comum caixa de cerca de 20 milhões. Além disso, oProjeto Pedagogia Cidadã não teve a procuraque se esperava, portanto, ocorreu a diminui-ção de gastos e reserva financeira. Esses dadosnão foram disponibilizados até este momento,porém, em pronunciamentos do Pró-Reitor deGraduação, em uma reunião do ConselhoUniversitário, este afirmou que existia, no iní-cio de 2003, cerca de 18 milhões de reserva.

Segundo dados divulgados pela própria rei-toria durante a discussão do Orçamento de2003, nove milhões da verba extracota-parteforam aplicados em 2002 em “campi” que pos-suíam propostas de novos cursos, tramitadaspelos colegiados, criando, portanto, treze cur-sos, com 500 novas vagas, incluídas no vestibu-lar/2003, com investimento muito abaixo do

necessário para alguns cursos,principalmente quanto à contrata-ção de professores e funcionários.Ou seja, ou os processos de novoscursos foram subestimados ou omontante de verba total negocia-do com o governo para garantir aexpansão não previa toda expan-são aprovada nos colegiados a par-tir da política do “toma lá, da cá”.

Para agravar ainda mais a situa-ção, a Assessoria de Planejamentoda reitoria, esperando que essaverba fosse destinada periodica-

Se as universidadespúblicas não aceitas-sem o convênio, a

SEE o abriria às insti-tuições particulares.Assim, sob argumen-to oportunista e ater-rorizante, o projetofoi implementado.

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Movimentos Sociais

mente pela ALESP para as universidades e coma justificativa de que não se podia transferirrecursos financeiros de um ano para o outro(argumentos discutíveis), utilizou-se da reservafinanceira da verba extracota-parte do ICMS,segundo informativo divulgado à comunidade,para cobrir algumas despesas, investir em ou-

tros “campi” e consolidar o pagamento de pes-soal. Isto foi executado como uma operaçãonormal, pois se tinha a intenção de recomporesses recursos durante a arrecadação de ICMSno ano seguinte. Vejamos o que ocorreu.

No ano de 2003, as oito unidades diferen-ciadas começaram a ser implantadas no primei-ro semestre e oito cursos tiveram início, com345 novas vagas, no segundo semestre. Logo,deveria haver verba para compra de material,contratação de professor e funcionário, cus-teio, investimento.

Mas, com o acordo firmado para a aprova-ção das unidades diferenciadas, também foramabertas mais 550 vagas em 15 novos cursos nasunidades regulares. Assim, entre 2002 e 2003,houve um crescimento de cerca de 32,5%.

Tudo poderia estar resolvido se a verba des-tinada se mantivesse a mesma. Porém, no anode 2003, o valor da verba extra cota-parte daexpansão para Unesp diminuiu cerca de 20 mi-lhões e, em 2004, baixou para 12 milhões. Nes-se período, ocorreu, também, fruto da variaçãoeconômica do país, a queda na arrecadação doICMS. Portanto, agravou-se ainda mais o pro-blema, pois o dinheiro que havia em caixa doano de 2002 foi gasto, e a diminuição de recur-sos previstos levou a Unesp a tomar medidasdrásticas de corte de verbas prejudicando, in-clusive, a manutenção e investimento em uni-dades e cursos já consolidados.

Somada a essa crise financeira houve, tam-bém, no último ano, a aprovação da reforma daPrevidência pelo governo federal, levandomuitos professores e funcionários, qualifica-dos e com experiência, a acelerarem suas apo-sentadorias. Resumindo, ampliaram-se as va-gas e campi; gastaram-se os recursos financei-ros que já estavam abaixo do necessário em ou-tras obras; houve diminuição na verba destina-da à implantação do projeto de expansão e per-deram-se docentes e funcionários em campi jáconsolidados, onde também ocorreu a amplia-ção de vagas. Pode-se criar um paralelo: am-pliou-se a casa, colocaram-se mais pessoas paramorar e muitos que cuidavam da casa foram

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embora. Para piorar, confiou-se na promessa deque o “patrão”, após ter dado um abono para aampliação da casa, iria incorporá-lo no salário,porém, até o momento, isso não ocorreu.

Este é o quadro atual da Unesp, que podeser caracterizado como a geografia da irres-ponsabilidade, cobrindo regiões onde não ha-via o ensino público, mas com um custo muitoalto, visto que existe hoje uma crise financeirainstalada, que compromete e comprometeráainda mais, num futuro próximo, a manuten-ção da Unesp como uma universi-dade, pública, gratuita, laica, comqualidade e referendada social-mente.

O Sindicato, além de discordardo modelo e da forma como foiaprovada a expansão, desde o iní-cio apontava que esta situaçãopoderia ocorrer. Mobilizou a co-munidade visando á não-aprova-ção do projeto de expansão sem osrecursos financeiros necessários,principalmente, por não prevercorretamente os reais gastos comos investimentos e contratação depessoal, o que não garantia a quali-dade dos novos cursos. A Adunespreafirma a defesa da expansão de vagas, porém,esta deveria ser precedida por iniciativas querecuperassem as deficiências nas unidades enos cursos já existentes; ou, pelo menos, ocor-rer, concomitantemente, a partir da ampliaçãode recursos financeiros definitivos para a uni-versidade.

E, agora, o que fazer? Os princípios defen-didos pelo Sindicato não convenceram os re-presentantes dos colegiados que aprovaram aexpansão. Esta, por sua vez, já está implemen-tada com recursos insuficientes, gerando a am-pliação significativa dos problemas nas unida-des consolidadas e nas unidades diferenciadascriadas.

Hoje, não há nenhuma garantia para a con-solidação da verba extracota-parte para as uni-versidades e nem o quanto deste recurso virá

para o próximo ano, por exemplo. Além disso,as verbas que já vieram para a universidadeforam utilizadas para outros fins e não há ne-nhuma transparência nesta aplicação, o quantoainda é necessário para a completa implanta-ção, para a contratação de professores e fun-cionários, verba para a assistência estudantilque não foi prevista e apresentação dos reaisacordos com as prefeituras das cidades, ondeforam criadas as unidades diferenciadas.

Complicando ainda mais a situação, as uni-dades diferenciadas não estão pre-vistas no Estatuto, como já semencionou. Isto impede o Con-selho Estadual de Educação e oMEC de reconhecerem e valida-rem os cursos, já em andamento,nessas unidades. Estamos prestes aentrar em outro problema cruciale, agora, envolvendo um númerosignificativo de estudantes queescolheram e entraram na Unespconfiando no seu histórico de uni-versidade pública de qualidade.

Para transformar as unidadesdiferenciadas, estas deverão cum-prir algumas exigências estatutá-rias, o que significa, em síntese, al-

terar o modelo conciso e econômico no qualelas foram concebidas. Portanto, necessitandoaumentar ainda mais o número de docentes efuncionários, criar instâncias colegiadas para asdeliberações acadêmico-administrativas, entreoutras providências; o que não será possívelem curto prazo. Além disso, dependerá maisuma vez de recursos financeiros e debate polí-tico, já que, se isto ocorrer, o financiamento e amanutenção desses cursos deverão ser incor-porados na cota-parte de ICMS, o que signifi-ca redistribuir as verbas por todas as outrasunidades, pois sua implantação está consolida-da e a ALESP não mais continuará enviandoverbas extras cota-parte.

A Adunesp defende, com base nas informa-ções das reais condições do projeto de expan-são, discutir a viabilidade de sua manutenção

Educação e Cultura

Este é o quadro atualda Unesp, que pode

ser caracterizadocomo a geografia dairresponsabilidade,cobrindo regiõesonde não havia o

ensino público, mascom um custo muitoalto, visto que existe

hoje uma crise financeira instalada.

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da forma em que foi concebido,podendo ter o fechamento de al-gumas unidades, transferência decursos para unidades já consolida-das e garantia de financiamentodefinitivo para aquelas unidadese/ou cursos que demonstraram tercondições de serem mantidos. Por-tanto, garantindo o modelo da uni-versidade, ampliando os recursospara sua manutenção e recolocandoa Unesp na direção correta em bus-ca do seu ideal maior de proporcio-nar o ensino, a pesquisa e a exten-são com qualidade, gratuita, referendada social-mente.

Notas

1. WORLD BANK. La enseñanza superior: laslecciones derivadas de la experiencia. Washington,World Bank, 1995.2. CONSELHO DE REITORES DAS UNIVER-SIDADES ESTADUAIS PAULISTAS. EXPAN-SÃO DO SISTEMA ESTADUAL PÚBLICO DEENSINO SUPERIOR. São Paulo: agosto de 2001.Este documento está em consonância com o docu-mento Enfrentar e vencer desafios, Ministério daEducação, Brasília: abril, 2000.3. O documento é “Vertente Atlântica”, coordena-do pelo ex-reitor da UNESP, Prof. Antônio Mano-el da Silva. A Universidade pagou, via a Fundunesp,cerca de R$ 72.000,00.4. Foram criados sete novos campi nas cidades deDracena (Zootecnia), Itapeva (Engenharia Indus-trial Madeireira), Ourinhos (Geografia), Registro(Agronomia), Rosana (Turismo), Sorocaba/Iperó(Engenharia de Controle e Automação/Mecatrôni-ca e Engenharia Ambiental) e Tupã (Administraçãode Empresas e Agronegócios).5. A UNICAMP participou inicialmente do proje-to, retirando-se depois com sérias críticas à SEE.6. 6.233 formandos. Jornal da UNESP, nº 174, p. 3.7. No VI Congresso Estadual de Formação de Edu-cadores, o Grupo de Trabalho Pedagogia apresen-tou uma moção à Plenária Final do evento solici-tando a retirada do termo “Pedagogia” do nomedesse projeto, por discordâncias teóricas. A moção

foi aprovada por unanimidade.8. Na histórica reunião da CâmaraCentral de Graduação, o Pró-Reitorde Graduação teve que usar por duasvezes o seu voto de Minerva para de-sempatar a favor do projeto PEC/-Formação Universitária. Na reuniãodo Conselho Universitário o “Peda-gogia Cidadã” foi votado após rápidaexposição do projeto na reunião, semdiscussão prévia nas unidades univer-sitárias. A discussão desse tema naCâmara Central de Graduação não te-ve destino mais feliz. A Prograd indi-cou parecerista da Faculdade de

Odontologia/Araçatuba — a despeito de existiremrepresentantes da área de Ciências Humanas — queacatou laconicamente a proposta. Os docentes daUnesp contrários ao projeto se recusaram a partici-par das discussões para sua elaboração. Portanto,este projeto teve o aceite consciente somente deseus formuladores, já que não se submeteu à discus-são democrática nos colegiados da Unesp, apesar deformalmente ser aprovado pelo Conselho Univer-sitário a toque de caixa.

Referências Bibliográficas

- CONSELHO DE REITORES DAS UNIVER-SIDADES ESTADUAIS PAULISTAS. EXPAN-SÃO DO SISTEMA ESTADUAL PÚBLICO DEENSINO SUPERIOR. São Paulo: agosto de 2001.- “Festa histórica – Projeto forma 6 mil professo-res.” Jornal da Unesp nº 174. Janeiro/fevereiro/-2003. Ano XVII. - MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Enfrentar evencer desafios. Brasília: abril de 2000.- WORLD BANK. La enseñanza superior: laslecciones derivadas de la experiencia. Washington,World Bank, 1995.

...recolocando aUnesp na direção

correta em busca doseu ideal maior de

proporcionar o ensi-no, a pesquisa e a

extensão com quali-dade, gratuita, refe-rendada socialmente.

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Introdução

PIER PAOLO PASOLINIDe Rossellini a Pasolini,

muito além de uma rima.

Nos vinte anos decorridos após a sua morte,as circunstâncias, as motivações, o mo-mento histórico e os desdobramentos e

conseqüências da trágica morte do cineastaPier Paolo Pasolini, fato ocorrido na madruga-da romana de Finados de 1975, avolumaram-sede uma forma crescente ampliando cada vezmais as dúvidas dos que acompanhavam a car-reira do pensador, poeta, e literato italiano.

O acúmulo de perguntas sem respostasgerou, então, um filme-homenagem, Pasolini -um delito italiano/Pasolini – un delito italiano1,realizado por Marco Tullio Giordana. A obra,se não serviu para responder a tantas questões,pelo menos teve o valor de soprar as cinzascom que o tempo naturalmente encobria a bra-sa ardente que insistia em queimar por vinteanos, apesar do próprio tempo.

Se entre aquelas motivações levantadas, asde caráter político eram das mais fortes, não édifícil imaginá-las recrudescendo, hoje, na Itá-lia de Berlusconi, que faz o seu país percorrertrajetória própria de terceiro mundo. Comonão teriam sido os textos jornalísticos com quePasolini extravasaria as fúrias comentando pas-so a passo a ascenção progressiva e a chegadaao poder de Silvio Berlusconi, misto italiano deRoberto Marinho e Sílvio Santos, utilizando

espertamente justo os meios de comunicação,em especial a Televisão? Não seria difícil ima-ginar o texto candente de Pasolini quando co-mentaria o apagão que levou Roma – 1º mun-do - às escuras, no domingo 29 de setembro de2003, igualando-a a São Paulo, também grandecidade, porém da América latina. Ou a insis-tência do estado italiano em ceder às pressõesexercidas pelos organismos internacionais,semelhantes àquelas sobre os países do tercei-ro mundo, no tocante às questões sociais e suaspráticas em relação às aposentadorias, sindica-lismos, educação universitária, entre outras.

A memória, tanto individual quanto coleti-va, por mais doída que tenha sido a sua morte,trabalha cinematograficamente com o tempo,produzindo um longo fade-out, que está pres-tes a durar 30 anos, em direção ao esquecimen-to. Coincidentemente, no mesmo intervalo detempo, pode-se sobrepor o fade-in de Berlus-coni, completando um procedimento que emlinguagem cinematográfica é conhecido porfusão – união de duas imagens: uma que desa-parece enquanto que do nada, ou do escuro, aseguinte torna-se plena.

Pasolini - primeiros passos: de 1922, ano de seu nascimento, a 1948 quando parte para Roma.

Os primeiros anos de Pasolini foram envol-tos na atmosfera da religião tradicional católi-ca, diluídos na paisagem bucólica interiorana,

PASOLINI: Trinta anos, este ano!

Paulo B. C. Schettino

Cineasta e professor titular do Departamento de Cinema da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado – FACOM / FAAP.

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eivados de valores tradicionais, os mesmos quemais tarde acusaria de terem desembocado nofascismo2. Pasolini se dedica à literatura, à poe-sia em especial, demonstrando claramente odesenvolvimento de uma personalidade inte-riorizada, como mais tarde mostrar-se-ia, en-volvido nos conflitos familiares traduzidos nasrelações fortes com mãe, pai e irmão. A Segun-da Guerra Mundial e a Itália dominada pelofascismo tumultuam o que seria uma vida li-near. As marcas da guerra sempre serão fortesem sua personalidade, incluindo a morte trági-ca do irmão. Influenciado por suas leituras emestres, Pasolini adota uma postura contradi-tória e rebelde: ele cria o seu próprio PartidoComunista, ele cria a sua própria religião cató-lica. Em 1948, ao ser expulso do Partido Co-munista por conduta imprópria, já com pro-cessos judiciais a perseguí-lo - o que dali emfrente seria uma constante até o fim de sua vida- vai para Roma. Nos primeiros tempos de Ro-ma, ele conhece o inferno do desemprego, damiséria e da favela. Não se pode menosprezaro dano que seria produzido em seu íntimo,morar na periferia de Roma e ter a sua outroramãe classe média, transformada em empregadadoméstica.

Em Roma, o encontro com o Cinema.Ao iniciar os anos 50, a sua vida é a mesma

de milhares de italianos com feridas abertaspela guerra. Até ingressar no cinema, o queocorre paulatinamente, vive de “bicos” comoprofessor de literatura e escrevendo roteiros ediálogos para filmes.

Dos anos 50 a 60, a Itália conhece o milagreeconômico. Com a ajuda do plano Marshall aItália é reconstruída e ingressa, através de umaindustrialização crescente, na sociedade deconsumo. Para Pasolini, a Itália do pós-guerraé a Itália pintada por Rossellini em Roma, ci-dade aberta. Como nos velhos filmes de Char-les Chaplin, os planos finais do filme remetemà esperança, ao futuro, para as crianças trauma-tizadas pela guerra.

A década de 50 demonstra claramente para

Pasolini que essa esperança foi traída e vertelágrimas poéticas sobre a esperança destruídaao conhecer e vivenciar a condição dos habi-tantes da periferia das grandes cidades italia-nas. Pasolini chora a esperança traída pelasimagens de Rosellini3. Nesses dez anos, as fil-mografias mais disparatadas tiveram a sua par-ticipação em argumentos e roteiros.

Em Accattone e Mamma Roma, seus doisprimeiros filmes, ele colocaria a dura realidadedo pós-guerra. Essas duas primeiras obras sãouma resposta ao futuro antecipado por Roma,cidade aberta, em seu plano final.

O dinheiro americano jorra copiosamentesobre a Itália e dele se aproveita o cinema ita-liano. Rossellini, Fellini e Visconti estão envol-vidos na nova ordem social e de certa formasão os primeiros a aderir aos primórdios daglobalização. Inaugura-se um cinema interna-cional onde, praticamente, em todos os filmes,há a presença não só do capital americanocomo também a de astros e estrelas de Holly-wood. Existe a lenda da resistência de VittorioDe Sica em colocar Cary Grant no papel deoperário desempregado em Ladrões de bicicle-ta. Isso não impede que alguns anos depois,junto a Zavattini, ele filme para David O.Selznick, com Jennifer Jones e MontgomeryClift. Pasolini continua outsider, a sua condi-ção de diverso tanto no sentido italiano quan-to no sentido brasileiro. O seu cinema é umcinema de resistência. É talvez, já no início dadécada de 60, o verdadeiro herdeiro do neo-realismo.

Exatamente no término da Segunda GuerraMundial, tem início a verdadeira TerceiraGuerra Mundial quando os americanos, como“aliados”, ocupam a Itália e o mundo europeu.Tem início o que eufemisticamente ficou co-nhecida como guerra fria. O mundo cindidoentre Leste e Oeste, entre URSS e EstadosUnidos da América, os grandes vencedores doconflito, agora a guerrear entre si.

Apesar de banido em 1948 do PartidoComunista Italiano, ele continua a mesclar emsua cabeça os ideais da solidariedade cristã de

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sua origem e a busca do bem comum do socia-lismo.

Todos os intelectuais de esquerda da Eu-ropa se unem em torno da URSS, porém, doisgrandes acontecimentos iriam abalar o socialis-mo fora da Rússia: em primeiro lugar foramdesvelados os crimes de guerra de Stalin, e em1956 a invasão da Hungria. Se o primeiro aba-lou os socialistas europeus, a Hungria se tor-nou emblemática. Dificilmente a esquerda detoda a Europa, fora da Rússia, passou incólu-me por esses dois grandes golpes4.

Em 1963, Pasolini escreve e dirige o episó-dio La ricotta, do longa Rogopag, em que eleextravasa toda a ironia sobre a prostituição dositalianos e do cinema italiano produzido pelocapital americano. É impossível não ressaltarnesse seu libelo a participação de Orson Wel-les, assim como ele um outsider, capaz de iro-nizar o próprio americano, ao simbolizar to-dos os diretores que foram fazer na Itália osseus filmes espetáculos.

Com a morte de Pio XII, ascendera aopapado João XXIII, que Pasolini no ano de 63em seu filme La rabbia - um filme de monta-gem, em que o seu texto poético às vezes ilus-tra, às vezes se amalgama às imagens dos cine-jornais, imagens de arquivo - saúda JoãoXXIII primeiro como símbolo do mundocamponês, que estava sendo destruído pelaindustrialização e segundo, por sua postura nasduas encíclicas Mater et Magistra e Pacem inTerris retomando os ideais do socialismo, tãocaros a Pasolini.

Em 1964, o mundo fica escandalizadoquando Pasolini filma o Evangelho segundoSão Mateus. Tanto fora quando dentro da pró-pria Itália católica, a repulsa a aceitá-lo foigrande. Ele dedica o filme a João XXIII. Ape-sar de toda a controvérsia sobre os resultadosde um intelectual de esquerda visitar o evange-lho, o filme recebe o prêmio do ofício católicono festival de Veneza. Na realidade, o filme équase uma resposta a todos os filmes bíblicosque estavam sendo feitos pelos americanos naItália. Exatamente o seu contrário.

Em 1965, Pasolini realiza Gaviões e Passa-rinhos que praticamente seria o seu grande re-sumo, ao colocar como epígrafe uma frase queanuncia o fim dos tempos de Brecht, isto é, aluta de classes, e de Rossellini, a interiorizaçãodo indivíduo. Pasolini fecha o ciclo mais ferozde sua vida. Mais tarde ele diria que dentre osseus filmes é o mais importante e o de que maisgosta. Gaviões e Passarinhos, quase como umahomenagem a Rossellini, apresenta persona-gens que remetem ao cinema católico tradicio-nal representado por Francisco, o arauto deDeus. Podemos traçar um paralelo entre Ga-viões e Passarinhos e Deus e o diabo na terra dosol de Glauber Rocha. Aluta de classes pretendidapelos intelectuais de es-querda, mostrada no teatrode Brecht5 e nas teorias deGramsci, seria o caminhodo diabo; enquanto a can-dura do pensamento fran-ciscano, representado porRossellini, seria a busca dassoluções do homem atravésda religião. Assim como em Deus e o diabo naterra do sol, nenhum dos dois caminhos resol-ve a condição humana. Também desalentadoPasolini retorna à eterna esperança de CharlesChaplin: de novo o ser humano coloca o pé naestrada em direção ao futuro.

Na filmografia de Rossellini, nota-se clara-mente uma alteração de rumo. Durante a guer-ra e no imediato pós-guerra ele realiza, quasecomo documentário, a sua trilogia de guerra:Roma, cidade aberta, Paisà e Alemanha, anozero. Porém, a partir de L’amore volta paradentro dos indíviduos, para os problemas indi-viduais e principalmente para o drama da reli-giosidade. Assim vemos, principalmente emStromboli, Europa 51 e Viagem à Itália. Emtodos esses filmes Rossellini contou com a co-laboração de Federico Fellini no que veio re-sultar, principalmente, no Na estrada da vida eNoites de Cabíria. Seriam filmes religiosos?Por filmes religiosos, entendiam-se aqueles fil-

Educação e Cultura

Apesar de banido em1948 do Partido Comu-nista Italiano, ele conti-nua a mesclar em sua ca-beça os ideais da solida-riedade cristã de sua ori-gem e a busca do bem co-mum do socialismo.

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mes que biografavam santos, ou que eram ba-seados em episódios bíblicos. Diferentemente,ao findar o surto do neo-realismo, AugustoGenina realiza Céu sobre o pântano, em 1949,quando faz a biografia da santa italiana MariaGoretti, porém mescla realidade e ficção, do-cumentário no seu mais alto grau de verismo.A cerimônia de canonização da santa filmadain loco, no Vaticano, assistida pelo próprioassassino, já agora velho, de certa forma revo-luciona aquilo que entendíamos como cinemareligioso.

Pensa-se nos filmes bíblicos de Cecil B. DeMille, mas principalmente o filme de HenryKing, de 1943, A canção de Bernadette, oufilme francês de Maurice Cloche de 1947, Mon-sieur Vincent, o capelão das galeras. A década

de 50, com a luta do cinemapela televisão, espelhada nocrescimento da tela, o Cine-maScope, a partir de O Man-to sagrado de Henry Koster,de 1954, para o cinema ficouo espetáculo, a grandiosidade

da imagem, e novamente, os filmes pseudo-reli-giosos de Cecil B. De Mille tornaram-se para-digmas. Os que se seguiram foram realizadosem grande parte na Itália ou na Espanha, porvárias razões. Em L’amore, Rossellini altera asua preocupação, inicia a busca interior do per-sonagem mesclado de uma religiosidade basea-da na moral cristã.

Pasolini, ao negar a influência de Rosellinina sua cinematografia, diria mais tarde jamaistê-lo encontrado, ainda que ambos tivessemfeito episódios para o longametragem Rogo-pag. Ao citar Rossellini e Brecht na epígrafe deGaviões e Passarinhos, Pasolini parecia quererdizer que o pensamento de ambos estava ultra-passado, assim como o cinema de um e o tea-tro do outro. Insistir na velha luta de classes, tãocara à vida e à arte de Brecht, ou na religiosida-de embutida nos filmes de Rossellini, seria inó-cuo. Logo após Gaviões e Passarinhos, em 1967,Pasolini realiza Teorema, livro e filme. No-vamente a crítica à classe média está presente,

isolada do confronto com o subproletariado.A doutrina social da Igreja, expressa nas

duas encíclicas de João XXIII, que unira aigreja progressista, nome que caracterizava aparte do clero e leigos que tinham ideais co-muns com o marxismo, atraiu fortemente Pa-solini. Mas a morte de João XXIII parece terencerrado para sempre os seus dramas reli-giosos. A religiosidade nos filmes de Pasolinifoi sublimada com uma ou outra representa-ção iconográfica de lembrança do passado,mesclando mãe e mestra, ícones tão caros dainfância e da adolescência, semelhantes a Sil-vana Mangano em Decamerone. Em Gaviõese Passarinhos, Pasolini encerra a fase românti-ca do franciscanismo, tão cara a Rossellini emFrancisco, o arauto de Deus, e principalmenteem Europa 51. Para o Pasolini pós-Gaviões ePassarinhos, a ilusão terminara. Sua cruzadaagora passa a ser contra o Estado industrialem detrimento do camponês e contra a trans-formação dos indivíduos em consumidores debens e de modos de vida. Ao longo de seus fil-mes, existia, sempre de passagem, uma críticaao domínio americano comercial e espiritual,mas nunca foi tão mais claro do que em Ga-viões e Passarinhos. Os filmes que seguiram,com destaque para Teorema, colocam bemfirme a posição de Pasolini, em que o últimobaluarte da antiga filosofia de vida que era afamília, estava destruída pela própria socie-dade de consumo estabelecida após a indus-trialização.

Em La rabbia, usando material de arquivo,Pasolini consegue expressar o terror inoculadonas pessoas pela Guerra Fria, o temor de umdesastre nuclear e o avanço de um neocolonia-lismo. Novamente influenciado por JoãoXXIII, Pasolini volta os olhos para os paísesemergentes da África, saídos despedaçados dacolonização, procurando mesmo dotar-lhes deuma nobreza que pudesse ser entrevista nosverdadeiros farrapos humanos, como demons-tra os seus apontamentos para uma Orestiadeafricana, em 1970.

A década de 50 foi caracterizada principal-

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Ao longo de seus filmes,existia, sempre de passa-gem, uma crítica ao do-mínio americano comer-cial e espiritual.

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mente pela rápida evolução tecnológica da te-levisão, ainda olhada com desprezo pelosintelectuais. Medindo forças, a URSS e Es-tados Unidos, alternadamente, venciam umao outro. Em 4 de outubro de 1957, a Rússiacoloca o Sputinik I em órbita, mas quem co-locou o primeiro homem na Lua foram os Es-tados Unidos.

A troca do rural pela vida urbana, industria-lizada e consumista, generalizou-se pelo mun-do ocidental, permeada pela televisão e Paso-lini não teve tempo, devido a sua morte prema-tura, de reavaliar o novo meio de comunicação,permanecendo uma incógnita qual seria, hoje,sua posição.

Ao morrer, Pasolini estava completamentesó em sua luta. Não havia um único movimen-to que o apoiasse, conseguiu atrair para si a irada esquerda, da direita, do Partido Comunistae da Igreja. Sua morte, ainda misteriosa, lembrao personagem assassinado do romance Assa-ssinato no Oriente Expresso de Agatha Cris-thie, em que todos tinham motivo para matar,e todos contribuiram para sua morte. Deve-riam soar como música ao ouvido de Pasolinias palavras de João XXIII em sua encíclicaMater et Magistra de 1961, citada por ele pró-prio na Pacem in Terris de 1963 - “o bem co-mum consiste no conjunto de todas as condi-ções de vida social que consintam e favoreçamo desenvolvimento integral da personalidadehumana” - quando lembramos que 1961 e 1962foram os anos de criação de Accattone e Mam-ma Roma. A preocupação do bem comum,também expressada como direito de todo cida-dão nas encíclicas de João XXIII, faz ecofundo nos filmes de Pasolini. Por isso, não é dese espantar que a João XXIII ele dedique oEvangelho segundo São Mateus; e, que em Ga-viões e Passarinhos, ele retome o discurso daconstrução da convivência entre os homens.

Para Pasolini, foi decepcionante o resultadodas lutas empreendidas, tanto físicas quantofilosóficas, na construção do bem comum. Pa-ra ele, como bem disse várias vezes em seus es-critos, a dissolução do indivíduo na massa das

grandes cidades em detrimento da vida campo-nesa, e a transformação desse camponês emanimal urbano, e esse, por sua vez, em consu-midor integral, cansa o pensador. Depois deTeorema, Pasolini continua a sua luta de críti-ca ao consumo de qualquer espécie, inclusivedo sexo, banalizado pelo comércio internacio-nal e que ele coloca despojadamente na sua tri-logia de vida6. Retirar a fantasia do espetáculocinematográfico, retirar a fantasia do impulsoconsumista passou a ser para Pasolini um obje-tivo a ser perseguido. O espetáculo cinematro-gráfico, em seu entender,passa longe do entreteni-mento, a criação desse es-petáculo é a obra de umautor, como em qualqueruma das áreas da arte, porisso, que percebemos tantarepulsa pelo cinema co-mercial.

Ao lutar contra a bana-lização do espetáculo cine-matográfico e dentro dele abanalização do amor e dosexo, Pasolini jamais pode-ria prever que o impulso consumista dosespectadores conseguiria banalizar até mesmoa violência. O escritor inglês católico GrahamGreene dividia a sua própria obra em doistipos de literatura: a literatura em que colocavao pensamento e um outro grupo de livros queele batizava de entretenimento. Pasolini nuncafez isso com seu cinema. Seu cinema jamais foientretenimento, por isso seu cinema em cadafilme se assemelha a um livro. Assistimos a umfilme de Pasolini com a mesma curiosidade eindagação do discurso que podemos entreveratravés de suas imagens. É impossível separarda obra cinematográfica de Pasolini o seu ca-ráter literário. Literatura e cinema caminharamjuntos, principalmente nos últimos filmes, ouliteratura antes do cinema, nos seus primeirosfilmes. Não se deve pensar o fruto do cinemade Pasolini como um filme religioso, mas é im-possível não perceber a religiosidade que em

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Ao lutar contra a banali-zação do espetáculo cine-matográfico e dentro delea banalização do amor edo sexo, Pasolini jamaispoderia prever que oimpulso consumista dosespectadores conseguiriabanalizar até mesmo aviolência.

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maior ou menor escala permeia toda a suaobra. A religiosidade nos seus filmes não é a dareligião hipócrita, é realmente uma tentativapara entender a dor do alheio, é tomar partidopor aquele que sofre, seja qual for o tipo dediscriminação. Mas, em Gaviões e Passarinhos,o autor está cansado, Jacó não mais lutará como anjo, a guerra acabou.

A sua carreira cinematográfica de realiza-dor dura pouco mais de 10 anos. Poucos au-tores produziram tanto ou polemizaram tan-to, em tão pouco tempo. É impossível disso-ciar a história da Itália, do pós-guerra em di-ante, ou a própria história da Europa, sem es-tabelecer um estudo comparativo com a visãoparticular de Pasolini. Ele utiliza a visão mes-clada com a militância, ele não apenas foto-grafa a periferia, ele vive a periferia, ele vivena periferia em todos os aspectos. Podemosdizer que o cinema mundial, após a morte dePasolini, ficou mais pobre e perdemos a pos-sibilidade de perceber a análise que ele teriafeito de 75 até os nossos dias. A fotografia es-tática do rosto macerado de Pasolini. queocupava inteiramente as primeiras páginasdos jornais, no dia após a sua morte, passou ater a mesma força que a imagem vendida pelasagências internacionais de “che” Guevara, aponto de Fellini, ao ser entrevistado diante doocorrido, ter dito que em nenhum instante ocinema teria conseguido tanto impacto dehorror, em que filme fosse, quanto a fotogra-fia de Pasolini estampada no jornal.

Utilizamos o depoimento de Simone Signo-ret em sua autobiografia para tentar chegar àdesilusão do ideal comunista e como teria Pa-solini trabalhado-a em sua cabeça. “O que é oartista senão o reflexo do seu instante”. Paso-lini absorve os acontecimentos regionais emundiais, metaboliza e propõe o discurso,nunca descartável. Não se gasta negativo combobagem, é um cinema de tese, é um cinemaque busca explicações para as indagações filo-sóficas eternas do indivíduo. É essa a discussãoproposta em seus filmes.

Notas

1. O filme mescla cenas filmadas com atores e cenasautênticas de arquivo da cobertura dos fatos reali-zada pelos telejornais italianos. Trata-se de um sub-gênero do Documentário, às vezes chamado de“Docudrama”. Derivado dos programas jornalís-tics da televisão italiana, com matriz da TV ameri-cana e, que no Brasil, tem sido copiado pela TVGlobo em seu programa “Linha Direta”. Lançadono Brasil, em fita VHS.2. Pasolini identifica a origem do fascismo, assimcomo todo totalitarismo, na falta da Caridade,quando das três virtudes teologais apenas a Fé e aEsperança são utilizadas. Manco daquela primeira eapoiando-se apenas nas duas segundas, estaria ogerme do Fundamentalismo - esperança de vitóriae “fé cega: faca amolada”.3. Lacrime, poesia de Pasolini in O Neo-RealismoCinematográfico Italiano: uma leitura, de Maria-rosaria Fabris.4. “Foi com os estrondos dos fogos, o sapateadodos dançarinos de “bambas”, as canções de violão adois passos da prisão onde, diziam, o assassino deTrotsky levava uma boa vida, que nos chegou oboato de uma declaração, não atribuída a Kruschev,mas assinada por ele....Naquele dia muitos acontecimentos do passadoforam explicados e até mesmo justificados. Stalin nãoera o que alguns acreditavam ser. Stalin era o que osoutros haviam dito que era. Que viva Kruschev! Do outro lado do mundo, nos Abruzios e na neve,Montand recebia os comentários italianos. Ali tam-bém a declaração não era atribuída a Kruschev, massim, firmato por ele. O elenco era em grande partecomunista e como Gramsci escrevera: “somente averdade é revolucionária”, os compagni achavamque o compagno Kruschev tivera a coragem dosverdadeiros revolucionários. Eu não estava lá, masMontand me contou. Novembro chegou. Digocom tristeza. Novembro de 1956 sacudiu o mundo,matou em Budapeste e em Suez, desiludiu milhõesde homens de bem e encantou um bom número depatifes. Para nós dois, novembro de 56 foi o mêsmais triste, o mais absurdo, o mais cruel e instruti-vo de nossos 27 anos de vida em comum. Budapeste explodiu no estúdio, se posso assim di-zer, nas últimas horas do mês de outubro. Desde aprimeira semana de novembro, Budapeste queima-

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va o mundo inteiro. Ela queimava porque os russosa tinham invadido com tanques para dominar o quealguns chamavam de revolução, outros de contra-revolução, e que no princípio não era nem uma nemoutra.......Todos estavam convencidos de que tinham razão,cada qual a seu modo.... ...Em Paris, havia dois batalhões de choque. Seusobjetivos eram claros, suas lágrimas eram lágrimasde crocodilo. Os únicos que realmente choravameram os que tentavam, mas não conseguiam com-preender. Era o terceiro batalhão. Os importunos:os intelectuais de esquerda. Não chegavam a ser umbatalhão, quando muito um esquadrão: Sartre, Ver-cors, Claude Roy, Gérard Philipe, Roger Vaillandentre outros, fizeram um manifesto no qual nega-vam o direito à indignação pelo que acontecia naHungria a todos aqueles que não tinham elevado avoz no ano anterior, quando a Guatemala haviasido esmagada”. (Simone Signoret)5. “Wolfgang Standte, que fez o primeiro filme depós-guerra, intitulado Les assassins sont parmi nous,inteiramente filmado nas ruínas ainda fumegantesde Berlim e no qual Hildegard Knepf estava magní-fica, veio buscar-nos em Paris, Bernard Blier e eu,para fazermos Mère Courage de Bertolt Brecht. Afirma produtora era a DEFA, quer dizer, a Repú-blica Democrática Alemã. Bernard seria o cozinhei-ro e eu a prostituta francesa. Os outros papéis se-riam interpretados pelos componentes do BerlinerEmsemble, com, é claro Helene Weigel (Mme. Bre-cht) no papel de Courage. O Berliner apresentaraMère Courage em Paris e fora um sucesso. Comefeito, o Berliner Emsemble era um dos maioresgrupos teatrais do mundo e os alemães do Leste ti-veram sorte porque Brecht, regressando ao seu paísnatal, escolheu o lado deles, em vez do outro. Co-mo não existia ainda o Muro, as pré-estréias doTheater am Schiffbauerdamm eram as mais concor-ridas das duas Alemanhas. Brecht estava dos doislados, mas o “Berliner” do Leste era famoso e meucolega Bernard e eu estávamos orgulhosos de traba-lhar com eles... O grupo do Berliner contou-nossua vida. Era completamente diferente da que co-nhecíamos. Os atores eram totalmente subvencio-nados. A palavra desemprego não existia para eles.Chegavam a ensaiar uma peça durante seis meses ounove até, segunda a decisão de Brecht. Tinham àdisposição cursos de música, dança e mímica.

Claro, tinham que representar o que lhes era dado,mas como em geral era Brecht, estavam contentes.No entanto, gostariam de ser mais conhecidos pelomundo. Os raros filmes que haviam feito só saiamno Leste. No Oeste, um rapaz como Peter Schalleou um homem como Geshoneck seriam grandesastros de cinema.O distribuidor de filmes do Oestemanifestou-se rapidamente. A imprensa cinemato-gráfica do Oeste desejava nos conhecer, Bernardo eeu, para saber nossa impressões sobre os primeirosdias de trabalho... no Leste. Aceitamos com a con-dição de que a imprensa cinematográfica do Lestepudesse estar presente à conferência. Aceitaram e foiuma data histórica na breve existência das duasAlemanhas. Pela primeira vez, desde a separação de1949, os jornalistas das duas Berlim puderam fazersuas perguntas lado a lado – além do festival deCannes ou de Veneza – em pleno Berlim-Oeste, nossalões do Kempinski”.(Simone Signoret).6. A sua “Trilogia de Vida” é composta pelos filmesDecamerone, Os Contos de Canterbury, e As flo-res das Mil e Uma Noites. Trata-se de um impor-tantíssimo trabalho de adaptação para o Cinema deTextos Literários da Idade Média referentes a trêsculturas distintas e paradigmáticas.Recentementelançados no Brasil, no formato DVD, e de formairônica, em se tratando de Pasolini, através de dis-tribuição internacional pela Metro.

Referências bibliográficas

FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinema-tográfico Italiano. São Paulo: EDUSP/FAPESP,1996.PASOLINI, Pier Paolo. As Últimas palavras doherege: Entrevistas com Jean Duflot. São Paulo:Brasiliense, 1983._______________ Il Caos – a cura di Gian CarloFerretti. Roma/Itália: Editori Riuniti, 1995._______________ Teorema. Rio de Janeiro-GB:Nova Fronteira, 1968._______________ Diálogos com Pasolini: escritos(1957-1984). São Paulo, Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro: Nova Stella, 1986.SCHETTINO, Paulo B.C. O Novo CinemaBrasileiro – Tese de Doutoramento. São Paulo:ECA-USP, 2002.SIGNORET, Simone. A nostalgia não é mais o queera. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.

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Historicamente, o comércio internacionalde drogas esteve vinculado à expansãomundial do capitalismo, e também à sua

expansão colonial-militar, como testemunhamas guerras do ópio (1840-1860), resultantes dapostura da Inglaterra como promotora do trá-fico de ópio na China do século XIX, bem co-mo das plantações deste mesmo narcótico emterritório indiano. Inglaterra auferia lucros daordem de 11 milhões de dólares anuais, com otráfico de ópio para a cidade chinesa de Lintim,ao passo que o volume de comércio de outrosprodutos não ultrapassava a cifra de 6 milhões.Em Cantão, o comércio estrangeiro oficial nãochegava a 7 milhões, mas o comercio paraleloem Lintim atingia a quantia de 17 milhões.Com este comércio ilegal, empresas inglesas,como a Jardine & Matheson, contribuíram pa-ra proporcionar uma balança comercial supe-ravitária para a Inglaterra, mantendo o uso denavios armados a fim de manter o contrabandolitorâneo. Tudo isso acontecia com a aprova-ção declarada do parlamento inglês, que mani-festou os inconvenientes da interrupção de umnegocio tão rentável.1 Inglaterra promoveu, em1909, uma conferência internacional emShangai, com a participação de treze países (aOpium Commission). O resultado foi a Con-venção Internacional do Ópio, assinada emHaia em 1912, visando o controle da produçãode drogas narcóticas. Em 1914, os EUA adota-

ram o Harrison Narcotic Act, proibindo o usoda cocaína e da heroína fora de controle médi-co. Severas penas contra o consumo foramadotadas em convenções internacionais das dé-cadas de 1920 e 1930. Desde o início, a repres-são contra o tráfico de drogas “privilegiou” oconsumidor.

O tráfico internacional de drogas, em largaescala, começou a desenvolver-se a partir demeados da década de 1970, tendo tido o seuboom na década de 1980. Isto não foi por aca-so: o narcotráfico favoreceu as economias dospaíses produtores de coca, cujos principaisprodutos de exportação sofreram quedas emseus preços (ainda que a maior parte dos lucrosdo tráfico não fique nesses países) e, ao mesmotempo, o sistema financeiro mundial: este “ne-cessita cada vez mais de capital fresco para gi-rar, e os narco-dólares são como um capitalmágico que se acumula muito rápido e se mo-vimenta velozmente”.2 Atualmente, o narco-tráfíco é um dos negócios mais lucrativos domundo, disputando o primeiro lugar com opetróleo, e a fabricação e tráfico de armas. Suarentabilidade se aproxima dos 3000%, percen-tagem incomparável com qualquer outro setoreconômico, legal ou ilegal. Os custos de pro-dução somam 0,5%, e os de transporte e gastoscom a distribuição (incluindo subornos) 3%,em relação ao preço final de venda. Em meadosda década de 1990, o quilo de cocaína custava

Economia política do comércio internacional de drogas

Osvaldo Coggiola

Professor da Universidade de São Paulo e Vice-presidente do ANDES-SN.

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US$ 2.000 na Colômbia, US$25.000 nos EUA e US$ 40.000 naEuropa. A América Latina partici-pa do narcotráfico na qualidade demaior produtora mundial de cocaí-na, e um de seus países, a Colôm-bia, detém o controle da maiorparte do tráfico internacional (aparte restante é dividida entre aMáfia siciliana e a Yakuza japone-sa). Os principais centros consu-midores são os EUA e a EuropaOcidental, mas a droga já chegou faz tempo àRússia. Há um terceiro grupo: o dos países queservem como ponto de passagem para a cocaí-na antes que esta atinja seu destino final:Panamá, México, Bahamas e, mais recentemen-te, o Brasil. Segundo informações do RelatórioAnual sobre Controle Internacional de Nar-cóticos, elaborado pelo Departamento Estadodos EUA, o Brasil virou o maior canal de dis-tribuição, para todo o mundo, da cocaína pro-duzida pelos cartéis de Medellín e Cali (Co-lômbia).3

O narcotráfico gerava, já na década de 1990,uma renda anual de mais de US$ 500 bilhões,constituindo o segundo negócio da economiacapitalista mundial, depois da indústria militar(US$ 700 bilhões).4 Peru e Colômbia produ-zem mais de 300.000 hectares de folha de coca,em comparação com as 35.000 “ilegais” doChapare boliviano. O “combate ao narcotráfi-co” nunca se colocou a eliminação do “segredobancário” nos bancos da Florida, EUA, ondese lavam diariamente ao redor de US$ 400 mi-lhões. Neles circula mais dinheiro em efetivodo que nos bancos de todos os demais estadosjuntos. Além dos lucros gerados pela produçãoe venda da cocaína em si, há também os ganhosobtidos com a venda de éter e acetona (neces-sários à transformação da pasta base de cocaem cocaína) e os lucros dos bancos, que “la-vam” os cocadólares (espalhados por AméricaLatina, EUA e Europa). Uma parte dos lucrosobtidos com a venda da cocaína é investida ematividades legais, empresas, times esportivos,

imóveis etc. A cocaína gera “de-pendência” não apenas em indiví-duos, mas também em gruposeconômicos e países, nos bancosda Flórida, em algumas ilhas doCaribe ou nos principais paísesprodutores - Peru, Bolívia e Co-lômbia - para citar apenas os casosde maior destaque. Em 1990, naBolívia os lucros com o narcotrá-fico chegaram a US$ 1 bilhão, su-perando os da economia legal. No

Peru a exportação de cocaína gerava US$ 1.5bilhão contra US$ 2.5 bilhões das exportaçõeslegais. Na Colômbia o narcotráfico gerava de 2a 4 bilhões de dólares, enquanto as exportaçõesoficiais geravam 5.25 bilhões.5 No Peru e naBolívia, parte da produção de coca é legal edestina-se ao consumo tradicional (mastigaçãodas folhas para combater os efeitos da altitu-de), à indústria (chás e medicamentos) e à ex-portação (o Peru exporta 700 toneladas de fo-lhas de coca por ano para a Coca-Cola).6 Se-gundo a OMS, em 1993, 100 mil camponesesperuanos cultivavam 300 mil hectares de coca,sendo 5% dessa produção utilizada para finslegais. Com o resto, o tráfico abastecia 60% domercado mundial.7

Na Bolívia, sob a ditadura militar dos nar-cotraficantes, década de 80, os traficantes deti-nham o controle das principais empresas, numquadro em que a população desempregadapassara de 19% da população ativa em 1985para 35% no ano seguinte. De cada três boli-vianos, um lucrava com os derivados do narco-tráfico, 65% da economia do país pertenciamao setor informal. A Colômbia, por sua vez,especializou-se em transformar a pasta baseproduzida por Peru e Bolívia em cocaína e ex-portá-la para o resto do mundo. Dois grandescartéis (Cali e Medellín) controlavam a maiorparte do narcotráfico no país, entretanto hácentenas de pequenos traficantes. O Congres-so e a polícia nacionais disputam o primeirolugar em grau de corrupção, e até mesmo ascampanhas presidenciais são patrocinadas com

A cocaína gera “de-pendência” não ape-nas em indivíduos,

mas também em gru-pos econômicos e paí-

ses, nos bancos daFlórida, em algumas

ilhas do Caribe

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dinheiro da droga. Cada novo governo colom-biano se esforça para repatriar os lucros obti-dos com o tráfico internacional de cocaína, en-tretanto, dos cerca de US$ 16 bilhões anuaisobtidos pelos narcotraficantes, apenas 2 a 4bilhões voltam ao país.8

O principal país consumidor, os EUA, têmgastos na guerra aos traficantes, com reabilita-ção, perdas na produção, etc., mas tambémvendem parte importante dos componentesquímicos, recebendo cerca de 240 bilhões dedólares anuais, uma parte dos quais se destinaa repor capital no mesmo ramo de produção dadroga (outra é investida em outros setores ouvai para os bancos). Outra vantagem oferecidaaos EUA pelo narcotráfico é que a luta pela suaerradicação serve de fachada à política inter-vencionista norte-americana em relação àAmérica Latina, com a teoria da narco-guerri-lha, segundo a qual, na América Latina, os tra-ficantes uniram-se aos guerrilheiros, represen-tando, portanto, uma ameaça à estabilidade dademocracia no continente. Na verdade, trata-se mais de uma cooperação temporária, força-da pelas circunstâncias do momento, do que deuma associação permanente com vistas a com-partilhar o poder na América Latina. Umadeclaração do finado Pablo Escobar, pôs porterra a tese da narco-guerrilha: “Não aceitoque me associem à guerrilha, pois isto prejudi-ca minha dignidade. Sou um homem de negó-cios e esta é a razão pela qual não posso estarde acordo com as guerrilhas, que lutam contraa propriedade privada”. Os EUA nunca hesita-ram em aliar-se aos narcotrafican-tes quando lhes convinha. Exem-plos claros disso foram a utiliza-ção dos narcotraficantes para oenvio de dinheiro e armas para os“contras” na Nicarágua, ou fatode Noriega haver sido toleradopor Reagan e Bush (apesar de oServiço de Inteligência dos EUAter provas de sua ligação com onarcotráfico desde 1972) enquan-to serviu à CIA.

O tráfico de drogas foi sempre um negóciocapitalista, por ser organizado como uma em-presa alentada, como qualquer outra, pelo estí-mulo do lucro. O primeiro episódio de consu-mo massivo de drogas em grande escala acon-teceu durante a guerra do Vietnã, quando 40%dos soldados norte-americanos consumiamheroína, e 80% maconha: apenas 8% delescontinuaram a consumir drogas uma vez devolta “para casa”.9 Com a expansão do consu-mo, aliada à crise econômica mundial, o co-mércio de drogas passou a exercer uma pressãoenorme sobre certos países. Em 1989, foi feitaem Los Angeles a maior apreensão de cocaína:21,4 toneladas, cujo preço de venda ao públicoatingiria 6 bilhões de dólares, uma cifra supe-rior ao PNB de 100 (cem) Estados soberanos.A grande transformação das economias agrá-rias monoprodutoras em narcoprodutoras (e ogrande salto do consumo nos EUA e na Eu-ropa) se produziu durante os anos oitenta,quando os preços das matérias-primas despen-caram no mercado mundial: açúcar (-64%),café (-30%), algodão (-32%), trigo (-17%). Acrise econômica mundial exerceu uma pressãoformidável em favor da narco-reciclagem daseconomias agrárias. A coca já representou 75%do PIB boliviano, 23% do da Colômbia e Pe-ru, e pelo menos o dobro das exportações cor-rentes destas nações. Grupos principais dasburguesias nacionais latino-americanas realiza-ram sua “reconversão”. A mono-exportaçãode coca é mais um episódio da devastação agrá-ria, do empobrecimento campesino e do des-

perdício rentístico da região. Na América Latina só re-in-

gressa entre 2 e 4% dos mais de100 bilhões de dólares que produ-zem anualmente as vendas de co-caína nos Estados Unidos. A partemais lucrativa do negócio é incor-porada pelos bancos lavadores e,em menor medida, pelos próprioscárteis que internacionalizaram adistribuição de seus lucros, se-guindo o padrão de fuga de capi-

O tráfico de drogasfoi sempre um negó-cio capitalista, por ser

organizado comouma empresa alenta-da, como qualqueroutra, pelo estímulo

do lucro.

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tais que desenvolveram as burguesias latino-americanas no último quartel do século XX. Opreço da coca na plantação boliviana é 250 ve-zes menor que nos EUA. A mesma mercado-ria no porto colombiano é cotada 40 vezesmenos que nas cidades norte-americanas. OsEUA recorrem a uma espécie de “protecionis-mo repressivo” para resguardar seus “narco-produtores” da competição externa. A repres-são ao tráfico é a forma de regular os preços deum mercado potencialmente estável pelo cará-ter viciante do produto. A “narco-economia”está afetada pelos mesmos ciclosde sobre-produção de qualqueroutro setor econômico, e por issoo imperialismo apela objetivamen-te para os instrumentos clássicosda guerra comercial, buscandobaratear a produção local, e enca-recer a competição latino-america-na. A militarização recente, com opretexto de “lutar contra o flageloda droga”, é um aspecto da re-co-lonização comercial e da chanta-gem financeira sobre a AméricaLatina. O novo intervencionismo está maisrelacionado com isso, do que com o narcotrá-fico. É inaceitável supor que a invasão do Pa-namá, o bloqueio naval à Colômbia, a instala-ção de bases na Bolívia e no Peru, a militariza-ção da fronteira mexicana, a introdução deuma jurisprudência avassaladora da legislaçãolatino-americana, estão motivadas na erradica-ção do narcotráfico. Buscou-se, desde o início,a substituição da “ameaça do comunismo” porum “perigo” equivalente.

A posição dos EUA, o “discurso sobre adroga” sofreu constantes mutações: “Nixoncriou em 1972 o Cabinet Committee for In-ternational Narcotic Control (CCINC), paracoordenar os esforços dos EUA no exterior.Nesse mesmo ano se aprovou a Drug AbuseOffice and Treatment Act, por meio da qual seiniciou a centralização e controle da produçãode drogas no estrangeiro. Com Nixon secomeçou a exportar a aplicação da lei em maté-

ria de drogas, isto é, a legitimar o discurso jurí-dico-político e o estereótipo político-delitivoda droga para além das fronteiras dos EUA. Odiscurso estava se complicando. Já não havianecessidade de silenciar o problema do tráfico,como no início da administração, pois tinhaterminado a guerra do Vietnã. Mas tampoucose podia silenciar o discurso médico, já que oproblema do consumo tinha sido um dos pila-res fundamentais para separar os estereótiposdo consumidor-doente e o traficante-delin-qüente. A opinião pública seguia considerando

a droga como “inimigo”, mas o cri-tério de segurança tornava-se inde-ciso. Qualificava-se à droga comoinimigo interno ou externo; tudodependia do contexto e do caso.”10

Na prática, os EUA aumentaramsua intervenção na América Latinaem defesa de um clã produtor con-tra outros ou para arbitrar as san-grentas lutas entre eles. A “narco-economia”, longe de ser um sub-mundo alheio à norma capitalista,está rigorosamente organizado de

acordo com os parâmetros da “economia demercado”. Os objetivos das máfias - captura demercados, monopólio de preços e domíniosobre os segmentos mais lucrativos - são metastipicamente capitalistas.

Com a nova explosão do consumo, na déca-da de 1980, uma nova mudança se operou e, emabril de 1986, o presidente Ronald Reagan assi-nou uma Diretiva de Segurança Nacional, defi-nindo o narcotráfico como “ameaça para asegurança nacional”, autorizando às forçasarmadas dos EUA a participarem da “guerracontra as drogas”. Em 1989 o presidente Geor-ge Bush, numa nova diretiva presidencial(NSDD) ampliou a anterior, com “novasregras de participação” que autorizaram as for-ças especiais a “acompanhar as forças locais depaíses hospedeiros no patrulhamento antinar-cóticos”. No mesmo ano, cursos “para comba-ter guerrilheiros e narcotraficantes” tiveraminicio na Escola das Américas de Fort Benning,

A “narco-economia”,longe de ser um

submundo alheio ànorma capitalista,está rigorosamente

organizado de acordocom os parâmetrosda “economia de

mercado”.

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antigamente sediada no Panamá. Nesse qua-dro, tentou-se uma nova ofensiva imperialistasobre a América Latina. Os episódios maisespetaculares foram a invasão do Panamá, sobpretexto de captura do traficante Noriega (ex-agente da CIA), e o bloqueio naval da Colôm-bia. Cabe notar também a operação BlastFurnace, executada por tropas norte-america-nas na Bolívia, em 1986, assim como as mano-bras dos “boinas verdes” da força de operaçõesespeciais dos EUA no delta do Paraná, zona defronteira entre Argentina, Brasil eParaguai. Igualmente, no México,“o governo de Salinas de Gortariqueixou-se amargamente do se-qüestro de um cidadão mexicano,transferido à força para prisõesdos EUA. Mas permitiu secreta-mente vôos dos EUA sobre oespaço aéreo mexicano, a procurade plantações de drogas, e criouuma policia antinarcóticos paraatender a pedidos norte-america-nos, policia que contribuiu com a deterioraçãodos direitos humanos no México”.11 As “de-mocracias” latino-americanas observaram, namatéria, uma conduta pró-imperialista. Foicriada uma inédita jurisprudência avassaladorada soberania nacional da América Latina. Otratado de extradição com a Colômbia se en-quadrou nessa categoria, assim como a decisãode fevereiro de 1990 da Suprema Corte dosEUA (perseguição e captura de estrangeirospelas forças dos EUA, dentro e fora do país,não estariam sujeitas à Quarta Emenda daConstituição dos EUA) que abriu as portas aintervenções, como a da policia antidroga dosEUA (DEA) seqüestrando o presumido trafi-cante Alvarez Machain no México, ou o exér-cito capturando Noriega no Panamá.

Os EUA estabeleceram unilateralmentenada menos do que a sua superioridade jurídi-ca perante os países latino-americanos e domundo inteiro. A droga foi o pretexto paraesse objetivo: “Se os EUA, tivessem vontadepolítica de combater o narcotráfico poderiam

exercer um severo controle das exportações deprodutos químicos para fabricação da PBC(Pasta de Base da Cocaína), que provém daShell e da Mobil Oil, como constatou a própriaDEA; agir contra os bancos norte-americanosque lavam os narcodólares; e estender um cor-dão de radares e barcos para impedir a entradada droga, em vez de fazer isso nos países daAmérica do Sul”.12 Ou, como se perguntaramdois experts norte-americanos: “por que não sefaz a guerra também contra os países produto-

res de ópio e heroína, que conso-mem nos EUA 50% dos gastostotais em drogas? Por que não fa-zê-la contra os produtores califor-nianos de maconha, que depois desubstituir a Colômbia no primeirolugar do fornecimento dessa droga,colocaram os EUA entre os trêsprimeiros produtores mundiais?Estatísticas oficiais mostram que aprodução de maconha nos EUAdobrou nos últimos dois anos, ex-

pandindo-se 38% só em 1988”.13

Nos EUA, o tema foi definido como de“segurança nacional” com base nas justificati-vas mais diversas: “A crise da droga é uma crisede autoridade em todos os sentidos do ter-mo”;14 “Conceber a segurança nacional em ter-mos físicos é demasiadamente limitado. Deve-se acrescentar os valores queridos, as institui-ções fundamentais, a vitalidade da nação, quedevem ser protegidos, e são atacados, pelo sub-mundo da droga”.15 Os corolários políticosdesse enfoque são decisivos: “Na campanhanarco-terrorista, o conceito clausewitziano decentro de gravidade torna-se amorfo e indefi-nido. O centro de gravidade para cada ladoparece ser a mesma base populacional. Para osEUA, é a resistência da população às drogas;para os narco-terroristas, o mercado da drogana população dos EUA”.16 Eis a base teóricapara o terrorismo de Estado, supostamente“anti- terrorista”. Acontece que o enfoque ba-seado na repressão do consumo e da oferta erainútil por definição: “Os países latino-ameri-

Os EUA estabelece-ram unilateralmentenada menos do que a sua superioridadejurídica perante os

países latino-america-nos e do mundo

inteiro.

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canos produziram entre 162.000 e 211.400toneladas de cocaína em 1987. Isto é cinco ve-zes o necessário para abastecer o mercado dosEUA, e só conseguimos apreender entre 10 e15% da cocaína enviada”.17 Estamos, portan-to, diante de uma vasta operação política quevisou, sob pretexto de repressão ao tráfico dedrogas, acabar com a independência nacionaldos países controlados pelos EUA, e reforçara direitização do Estado capitalista nos pró-prios EUA.

Chegou-se assim a fase atual do interven-cionismo no nosso continente. O Plano Co-lômbia se aliou à chamada Iniciativa Andinapara promover um vasto operativo interven-cionista em toda a região. Uma vez que a guer-rilha era associada com as regiões produtorasde coca, este argumento justificava o envio deequipes de assessores militares de Washington.No Equador, na base de Manta,opera a DynCorp, uma companhiaprivada de mercenários que man-tém contratos com os EstadosUnidos desde a guerra da Coréia.Por mais de 50 anos recebeu osmaiores contratos para serviçosmilitares privados; seus negócioscom os Estados Unidos chegamaos 1.8 bilhões de dólares. Na Co-lômbia a DynCorp treina pilotos,além de levar a cabo as fumigaçõespara a destruição de cultivos ilíci-tos, especialmente em Putumayo;mas a organização está acusada deadulterar o glifosato (químico) que causou da-nos à população e ao meio ambiente na frontei-ra Colômbia-Equador. Esta companhia tam-bém esteve relacionada com o abastecimentoilegal de armas aos contras nicaragüenses (noescândalo Irã-Contras). Para as guerrilhas co-lombianas, o imposto à droga é uma fonte deingressos para financiar as compras de armas ealimentos. Mas as chamadas narcoguerrilhas eos camponeses que cultivam a coca recebemmenos de 10% dos ganhos, porque eles só pro-duzem e taxam a matéria prima. Os grandes

benefícios provêm do mercado de exportação eo lavado dos lucros da droga. A Colômbianecessita um crescimento anual de 4% em suaeconomia, até 2010, para situar-se num nívelainda inferior ao de 1995. Com uma dívida ex-terna de 50% de seu PIB, e uma arrecadaçãofiscal em baixa, o FMI exige de Uribe a demis-são de milhares de funcionários públicos, euma reforma da previdência altamente impo-pular. A decomposição dos paramilitares afas-ta as possibilidades de que o Estado monopo-lize a repressão: “Será gerada violência descon-trolada; os paramilitares atuarão como gruposlocais sem Deus nem lei”.18

Na Bolívia, o desmantelamento do comple-xo mineiro, e a chamada “relocalização” da suamão-de-obra, forçou a migração para a regiãodo Chapare, departamento de Cochabamba, afim de plantar a folha de coca, com a expansi-

va demanda da folha pelo narco-tráfico. Pelo lugar que ocupa nacadeia produtiva do narcotráfico, éreservada ao cocalero a menor par-te dos lucros gerados pelo negócioda droga. No final dos anos 90, te-riam deixando de circular US$ 500milhões correspondentes à partici-pação da coca na economia nacio-nal, ou 6 % do PIB, segundo dadosoficiais, em um país cujas mingua-das exportações não superam a ci-fra de US$ 1,2 bilhão. O governode Bánzer propôs no início da suagestão a erradicação total da folha

de coca destinada ao narcotráfico, em um pro-grama que denominou Coca Zero. Para isto,fez uso violento das polícias rurais e da mobi-lização militar.19 Mas o combate dos cocaleroscontinuou em pé, sob redobrada pressãonorte-americana, pois um novo choque seanuncia em torno à recuperação do plantio decoca, devido ao completo fracasso do plano decultivos substitutivos, que fez cair a cultura em90% entre 1998 e 2001: “O governo americanojá está preocupado com a produção de coca naBolívia, que subiu 23% o ano passado, desde

Chegou-se assim afase atual do inter-

vencionismo no nossocontinente. O PlanoColômbia se aliou àchamada Iniciativa

Andina para promo-ver um vasto operati-

vo intervencionistaem toda a região.

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seu ponto mínimo em 2001, por causa do rápi-do replantio. A Bolívia permanece a terceiramaior produtora mundial, com Colômbia e Pe-ru”.20 Isto evidencia a completa quebra das ou-tras saídas para a economia boliviana, assimcomo o completo fracasso dos projetos de “de-senvolvimento alternativo para a inclusão soci-al”. Os cultivos de coca na região andina (proibi-dos pela Lei 1008) já chegam a 200 mil hectares.

O que acontece na América Latina tem seusantecedentes em toda a relação histórica impe-rialismo norte-americano/tráfico de drogas, oque remonta à Segunda Guerra Mundial,quando a Oficina de Serviços Estratégicos(OSS) e a Oficina de Inteligência Naval (ONI),estabeleceram relações com dirigentes da Ma-fia italiana.21 A OSS e a ONI colaboraram es-treitamente com o crime chinês, que dominavaa produção de grandes quantidades de ópio,morfina e heroína, ajudando na criação do ter-ceiro ponto do comércio da heroína no pós-guerra: o chamado Triângulo Dourado, umaregião formada pelas zonas fronteiriças da Tai-lândia, Birmânia, Laos e a província chinesa deYunan.22 Em 1947, a CIA (sucessora da OSS)ajudou a Máfia a tomar o controle da Sicília, efinanciou os traficantes corsos de heroína esta-belecidos em Marselha, em sua batalha contraos sindicatos comunistas pelo controle do por-to marselhês, dando lugar à French Connec-tion,23 que dominaria o mercado mundial deheroína até princípios da década de 1970. Em1950, a CIA lançou o projeto Bluebird, com oobjetivo de determinar se algumas drogas po-deriam servir para melhorar os métodos de in-terrogatório. Com o tempo, Allen Dulles, di-retor da CIA na época, instituiria um progra-ma para o uso encoberto de materiais biológi-cos e químicos, como parte da linha de pesqui-sa da CIA em controle de comportamento. Em1972, Alfred Mc Coy, da Universidade de Yale,publicou The Politics of Heroin in SoutheastAsia, revelando como a Guerra Fria e as opera-ções encobertas dos EEUU fomentaram umauge sem precedentes do tráfico de heroína.

Em 1978, um golpe de estado no Afeganis-

tão (apoiado pela URSS) levou ao retrocesso dotráfico de heroína no Sudoeste Asiático. O no-vo regime lançou uma estrita campanha anti-drogas para erradicar a produção de adormide-ra, provocando uma revolta das tribos que tra-dicionalmente vinham cultivando ópio destina-do à exportação. Os rebeldes Mujhaidines (baseda futura Al Qaeda, de Osama Bin Laden)apoiados pela CIA, incrementaram a produçãopara se financiar. Logo depois, em 1980, mem-bros do exército boliviano, ajudados por seushomólogos argentinos, realizaram “o golpe dacocaína”. Michael Levine, ex-agente da DEA,24

com 25 anos de serviço, afirmou que a Agênciacolaborou ativamente com o tráfico de cocaínana Bolívia, onde os funcionários governamen-tais a cargo da luta contra o narcotráfico se ar-riscavam a sofrer tortura e morte nas mãos deparamilitares comandados pelo criminoso deguerra nazista Klaus Barbie.25 Quando renun-ciou Bánzer, foi formado um governo militar,chefiado por Garcia Meza, que nomeou o Cel.Luis Arce Gómez, primo de Roberto SuárezGómez, maior produtor de coca da Bolívia. Aprodução de adormidera no Afeganistão pas-sou de 250 a 800 toneladas durante o tempo emque a CIA enviava armas e ajuda à guerrilha.Em 1986, o Departamento de Estado admitiuque o Afeganistão era “provavelmente o maiorprodutor de ópio para exportação” e “a fontede adormidera para a maioria da heroína proce-dente do Sudoeste asiático que chega aos EEUU”.

Em 1989, o Sub-comitê do Senado paraassuntos de Terrorismo, Narcotráfico e Co-municações Internacionais, encabeçado peloSenador do Massachusetts, John Kerry, publi-cou um informe sobre a corrupção relacionadacom o narcotráfico na América Central e Ca-ribe: “há evidências suficientes de narcotráficona zona de conflito por parte de Contras parti-culares, seus provedores, pilotos da Contra emercenários aliados da Contra. Os funcioná-rios norte-americanos não foram capazes deresolver o tema das drogas por medo de pôrem perigo a guerra contra a Nicarágua’. A in-vestigação revelou igualmente que alguns polí-

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ticos veteranos opinavam que o uso do dinhei-ro proveniente do narcotráfico era ‘a soluçãoperfeita para os problemas de financiamentoda Contra”.26 Com a tomada do poder pelostalibãs, no Afeganistão, produziu-se um curto-circuito, que seria “consertado” pelos EUA,depois da invasão motivada pelo atentado de11 de setembro de 2001. A conquista do Afe-ganistão pelos EUA e os “senhores da guerra”serviu para devolver ao Afeganistão o seu lugarno mercado mundial de heroína:. “as planta-ções renasceram por toda parte e (na Europa)causou alarme o retorno do ópio afegão”.27 Aprodução de droga, seu processamento e trans-porte seguem uma rota através de Estados vas-salos norte-americanos, novos ouvelhos: Afeganistão, Burma, as re-públicas ex-soviéticas, Turquia,Bósnia, Albânia.

O papel central da “narco-eco-nomia” no capitalismo contempo-râneo se detecta no peso alcançadopela “lavagem do dinheiro” no sis-tema financeiro. Todos os bancosde envergadura participam nestaoperação, criaram paraísos fiscais,nos quais se lavam diariamente en-tre 160 e 400 milhões de dólares. Esta associa-ção entre mafiosos e banqueiros se apóia, emúltima instância, no sigilo bancário -um princí-pio intocável para o capitalismo- por ser umpilar da propriedade privada, na confidenciali-dade dos negócios, e na livre disponibilidadedo capital. O ingresso de mafiosos ao circuitobancário se consolidou seguindo as tendênciasespeculativas do conjunto da burguesia. O“crime organizado” instalou-se definitivamen-te como mais um setor da economia capitalistaainda nos anos 1930, e estabeleceu uma legali-zação sistemática de suas atividades na indús-tria e na propriedade urbana nas décadas pos-teriores. Agora exerce um papel de gravitaçãono mundo das finanças, no qual introduziuprogressivamente seus métodos de “ajuste decontas”. Constitui um fato aceito entre os fi-nancistas que o narcotráfico tem um papel des-

tacado na inversão privatizadora na AméricaLatina, como o demonstram as ramificações dobanco de investimentos BCCI na América La-tina. Este setor se encontra já estruturalmenteincorporado ao capitalismo. As medidas toma-das pelas autoridades dos EUA contra as ope-rações bancárias de cumplicidade com os trafi-cantes são ridículas. O First National Bank ofBoston expediu para o exterior 1.2 bilhão dedólares em notas pequenas. A comissão de 3%paga pelos traficantes (36 milhões de dólares)torna irrisória a multa de 500 mil dólaresimposta ao banco.28 O que se multou, no caso,foi a ilegalidade da operação, não a origem cri-minosa do dinheiro, protegida pelo sacrossan-

to “sigilo bancário”, que é a razãode Estado dos negócios capitalis-tas.

Eis porque a política dos EUA,que ataca apenas os traficantes di-retos, não consegue impedir ocrescimento do narcotráfico e deseus lucros. Ao reduzir parcial-mente a oferta, deixando intocadoo aparato financeiro, só se conse-guiu “um aumento dos lucros, re-capitalizando constantemente as

redes de produção e distribuição, a ampliaçãogeográfica da produção, e a fixação de um pisomínimo para a cocaína”.29 A repressão da ofer-ta só conseguiu elevar o preço da cocaína puranos EUA. O capital financeiro internacionalfica com a parte do leão, o que não impediuque os grandes produtores se tornassem umfator decisivo na economia de seus países. NaColômbia, as exportações de cocaína atingiram50 bilhões de dólares, três vezes o PIB, o queas transformou no eixo da economia nacional..Em 1989 foram reveladas as negociações entrerepresentantes do governo e o Cartel de Me-dellín: “Os narcotraficantes colombianos alia-ram-se aos fazendeiros e às forças de seguran-ça, de modo a proteger seus interesses comunscontra os grupos guerrilheiros e contra as cres-centes demandas de reforma política e econô-mica dos setores mais carentes”.30

O papel central da“narco-economia” nocapitalismo contem-porâneo se detectano peso alcançadopela “lavagem do

dinheiro” no sistema financeiro.

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O império da droga, filho mais novo do im-perialismo, foi gerado na divisão internacionaldo trabalho. A produção e o comércio de dro-gas é típico das economias coloniais (comoChina ou Índia, no século XIX). O velho nar-cotráfico boliviano, “à diferença do passado,quando seu crescimento dependia da sua capa-cidade de gerar excedentes, desenvolveu-se gra-ças a dois novos fatores: generosos créditos dabanca estatal e privada (milhões de dólares),subsídios e impunidade pelo seu entrosamentocom os organismos de repressão ou pelo apa-drinhamento oficial”.31 A relação entre capitalfinanceiro, imperialismo, crise econômicamundial do capital, decomposição social e trá-fico de drogas, é a única que permite visualizara natureza da espetacular expansão do últimonas últimas décadas. Em relação à droga, inca-paz de cortar a oferta, o que exigiria atacar afundo o direito de propriedade (sigilo bancá-rio), o capitalismo em decomposição é mais im-potente ainda para enfrentar a demanda, já queé incapaz de abrir uma via progressiva para odesenvolvimento social. Somente a abertura deperspectivas libertadoras e progressistas para ahumanidade, com o fim da exploração, o flage-lo da droga poderá ser extirpado pela raiz.

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Notas

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Kai Shek) combinou a repressão política com o fi-nanciamento de atividades ilegais do Estado pelostraficantes de drogas. Trabalhando com os agentesde Chiang estavam os agentes operativos da OSS(Serviço de Inteligência dos EUA durante a Se-gunda Guerra Mundial) (ver: http://www.fas.org/-irp/congress/1998_cr/980507-l.htm), que aprende-ram a “conveniência” de realizar operações de inte-ligência difíceis de explicar mediante seu financia-mento pelo tráfico de drogas, que produziam di-nheiro fácil e rápido. 23. Foi importante o papel do Cel. Roger Trinquier(oficial francês da Guerra da Indochina) que desen-volveu uma rede de inteligência baseada no tráficode heroína para combater a influência dos comunis-tas vietnamitas em inícios dos anos 50 (www.drug-text.org/library/books/McCoy/book/notes4.htm).O intercâmbio de drogas por informação era práti-ca corrente quando os norte-americanos entraramno Vietnã. A OSS e a CIA já o usavam desde 1954(www.pir.org/main4/Roger_Trinquier.html).24. Michael Levine. A Grande Mentira Branca. ACIA e o combate ao narcotráfico num relato sur-preendente. São Paulo, Best Seller, s.d.p.25. Cf. Gregorio Selser. Bolívia: el Cuartelazo delos Cocadólares. México, Mex-Sur, 1982.26. Cf. para os dados expostos: Institute for PolicyStudies. A Tangled Web: A History of CIA Com-plicity in Drug International Trafficking. Submittedto congressional hearings by John Conyers (D-Mich) in the Intelligence Authorization Act forFiscal Year 1999 (http://www.fas.org/irp/con-gress/1998_cr/980507-l.htm).27. El País, Madri, 27 de fevereiro de 2002.28. La República, Montevidéu, 30 de agosto de 1989.29. Financial Times, Londres, 24 de agosto de 1989.30. Clarín, Buenos Aires, 10 de setembro de 1989.31. Antonio Canellas Orellana e J. C. Canelas Zan-ner. Bolivia: Coca Cocaína. La Paz, Los Amigos delLibro, 1983, p. 127.

Educação e Cultura

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Resenha

126 - DF, Ano XV, Nº 35, fevereiro de 2005 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Jaci Guilherme Vieira*

Resenhar um livro é sempre perigoso, poissempre corremos riscos de deixar de fora algo

que o autor sustenta que seja importante. Sa-bendo disso, arrisco-me a divulgar para estudan-tes, professores e pesquisadoras das áreas deCiências Sociais, especialmente ligados ao cursode história, como também o público interessado,uma grande contribuição historiográfica. Lide-ranças do Contestado: A formação e atuação daschefias caboclas (1912 – 1916), publicado pelaeditora Unicamp. Trabalho de Paulo PinheiroMachado, professor do departamento de histó-ria da Universidade Federal de Santa Catarina.

“Lideranças do Contestado: a formação e atu-

ação das chefias caboclas, obra teoricamente cal-cada em Thompsom, Hobsbawm e Max Weberdedicada-se a analisar um dos movimentos so-ciais mais sangrentas da historia da RepúblicaVelha (1889-1930); o Contestado. Movimentoacusado de ter sua origem em um “bando” de fa-náticos, loucos e rebeldes que procuravam res-tabelecer a Monarquia e o reinado de D. Sebas-tião em plena República. Além de derrubar estatese, muito difundida, especialmente pela classedominante como também por uma historiogra-fia militar, Machado vai à frente, na tentativa dedesvendar o surgimento das lideranças dessemovimento, demonstrando como se deu o pro-cesso sucessório dessas lideranças durante odesenvolvimento do conflito.

Pela primeira vez surge uma inquietação em

Paulo Pinheiro Machado

Lideranças do ContestadoA formação e atuação das chefias caboclas (1912 – 1916)

Editora da Unicamp

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Resenha

saber em qual momento do conflito, homens emulheres deixaram tudo para traz: casa, família,terra, pequenos negócios, atividades burocráti-cas e partiram em busca de um novo projeto devida, de uma sociedade mais justa e igualitáriacom liberdade.

Machado, pouco se preocupa com o aspectoreligioso do conflito, busca reconstruir a partirdas fontes primárias até então nunca estudadas ea história oral, as vidas esquecidas de liderançasdo movimento do Contestado, que entendiam epraticavam sua Monarquia lutando por um “rei-nado de paz, prosperidade e justiça aqui na ter-ra”. Este é o caso de Joaquim, Chiquinho Alon-so, Maria Rosa e Adeodato, o último líder dospelados, como se auto denominavam os que lu-taram contra as forças dos coronéis catarinenses,as forças do imperialismo norte americano, re-presentada pela empresa, Brazil Railway e aLumber and Colonization, que destruiu muitomais do que o direto a posse da terra daquelescamponeses, mas, sonhos que estavam em cons-trução. Podemos afirmar isso baseado nas des-cobertas do autor, que encontrou uma popula-ção de tropeiros, sitiantes e posseiros indepen-dentes, na passagem do século XIX ao séculoXX em processo de perda de sua autonomia ecrescente submissão diante do poder local, doscoronéis e fazendeiros.

A Brazil Railway, ponta de lança para a deses-tabilização política e econômica da região. A elaMachado acredita que foi dado um peso exagera-do aos trabalhadores dessa empresa no movimen-to do Contestado em pesquisas anteriores. Atéentão se acreditava que, ao serem deixados paratraz, foram eles os grandes responsáveis pela lide-rança e o desenrolar do movimento do contesta-do. Segundo o autor, depois de pesquisar nos ar-quivos da Rede Ferroviária Federal em Curitiba(ARFFSA) não foi encontrado qualquer vestígiode trabalhadores enviados de outras regiões, espe-cialmente criminosos e vadios que posteriormen-te tivessem exercido liderança do movimento.

Outra descoberta importante do autor équanto a cooptação da classe dominante, de lide-ranças políticas, dos dois estados, que serviram

de lobistas em defesa dos interesses da BrazilRailway. Como exemplo ele cita o Vice-presi-dente do Paraná, Affonso Camargo, advogadoda Lumber and Colonization. O Coronel Hen-rique Raupp, superintendente Municipal deCampos Novos, inspetor de terras da BrazilRailway. Machado também encontra o jovemadvogado lageano Nereu Ramos, filho do ex-governador Vidal Ramos em 1916, como repre-sentante oficial dos interesses da Lumber juntoao Governo de Santa Catarina. Todo esse lobefora importante à medida que o estado de SantaCatarina em nenhum momento contesta o direi-to dado a essa empresa de explorar 15 Km decada lado da estrada de ferro que ligou São Pauloao Rio Grande, concedido pelo Governo Fede-ral, pois é do conhecimento que esse direito de-veria ser contestado, já que não pertenceria aUnião essas terras, e sim aos estados de acordocom a Constituição de 1891.

Logicamente não daria aqui para levantarmostodas as conclusões do autor, mas é inegável suacontribuição quanto à questão dos participantesdo movimento, retirando definitivamente a idéiado Contestado ser liderado por um bando de fa-náticos religiosos. Para o autor o movimento foicomposto por negros, índios, caboclos e brancosque reivindicavam o direito a fazer escolhas, aviver dignamente, e que não foram vistos combons olhos pelo novo regime.

Por fim, quero afirmar que a obra de PauloPinheiro Machado é leitura obrigatória paraaqueles que se interessam pelos desdobramentosdos movimentos sociais no Brasil. Contestado,Caldeirão e Canudos, para lembrar os mais co-nhecidos. Contestado é exemplo de como a po-pulação ficou a mercê de interesses das classesdominantes e resistiu, resistiu e lutou pelo dire-to de viver com dignidade, pelo direto de fazersuas escolhas, pelo direito a vida, como hoje ain-da fazem os sem terra, os sem teto, os sem uni-versidade, finalmente mais não o último, a po-pulação indígena que não consegue depois de Vséculos de exploração ver suas terras demarca-das e homologadas.

*Jaci Guilherme Vieira, Departamento de História da Uni-