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SUMÁRIO Apresentação 7 Vera Lins, Jacqueline Penjon, Flora Süssekind Munus et communitas. A identidade negociada e a comunidade ausente na Modernidade brasileira 11 Ettore Finazzi-Agrò Da antropofagia à transluciferação 23 Inês Oseki-Dupré Graciliano Ramos: contista bissexto entre Infância e Insônia 39 Friedrich Frosch Euclides da Cunha, a Amazônia e o socialismo internacionalista 69 Francisco Foot Hardman Lima Barreto e a modernidade: demolições, reflexões, autoficções 79 Luciana Hidalgo O canto do cisne: Raduan Nassar entre três tempos 91 Masé Lemos Poetas críticos 109 Vera Lins Abracemos os ricos! Machado de Assis revelado por Roberto Schwarz 119 Dolf Oehler

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SUMÁRIO

Apresentação 7

Vera Lins, Jacqueline Penjon, Flora Süssekind

Munus et communitas. A identidade negociada e a comunidade ausente na Modernidade brasileira 11

Ettore Finazzi-Agrò

Da antropofagia à transluciferação 23

Inês Oseki-Dupré

Graciliano Ramos: contista bissexto entre Infância e Insônia 39

Friedrich Frosch

Euclides da Cunha, a Amazônia e o socialismo internacionalista 69

Francisco Foot Hardman

Lima Barreto e a modernidade: demolições, reflexões, autoficções 79

Luciana Hidalgo

O canto do cisne: Raduan Nassar entre três tempos 91

Masé Lemos

Poetas críticos 109

Vera Lins

Abracemos os ricos! Machado de Assis revelado por Roberto Schwarz 119

Dolf Oehler

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Os limites da palavra em Clarice Lispector 137

Marta Peixoto

Paisagem e vida social no Brasil em meados dos novecentos: o olhar do engenheiro Vauthier 151

Claudia Poncioni

Resposta-responso de Phillippe Sollers a Haroldo de Campos, ou as coincidências íntimas entre Galáxias e Paradis 171

Sandra Raguenet

O fetiche morreu. Viva o fetiche. 197

Italo Moriconi

Coros dissonantes — objetos verbais não identificados na literatura brasileira contemporânea 203

Flora Süssekind

Notas sobre a Literatura Brasileira contemporânea: o local, o global e o nacional 213

Beatriz Resende

Age de Carvalho: 4 poemas 225

Tradução de Michel Riaudel

Um depoimento de Sérgio Sant’Anna 231

Sérgio Sant’Anna

Conto (não-conto) 233

Sérgio Sant’Anna

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Apresentação

| vera lins | Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

| jacqueline penjon | Sorbonne, Paris 3, CREPAL

| flora süssekind | Universidade do Rio de Janeiro (Unirio)/ Fundação

Casa de Rui Barbosa (FCRB)

E sta publicação reúne os textos apresentados no seminá-rio Interpretações literárias do Brasil moderno e contem-

porâneo, que foi realizado na Sorbonne Nouvelle, Paris 3, no âmbito do festival Europalia.Brasil e que teve lugar nos dias 3 e 4 de novembro de 2011.

Organizado por Vera Lins e Jacqueline Penjon, com a colaboração de Flora Süssekind, a curadora de literatura do festival, e com o apoio do CREPAL (Centre de Recherches sur les Pays Lusophones), o seminário reuniu professores e pesquisadores de várias universidades da Europa, do Brasil e dos EUA. Os textos apresentados suscitaram um debate interessante, animado, do qual participaram vários alunos da universidade e outras pessoas interessadas, que enche-ram as salas da Sorbonne, muitas delas espalhadas pelo chão durante as muitas horas de exposição e comentário de traba-lhos diversos sobre as formas que têm assumido as interpre-tações do Brasil na modernidade e nos tempos que correm.

Alguns participantes não puderam enviar seus textos para publicação, outros optaram por versões um pouco distintas das apresentadas na ocasião, mas quase todos os trabalhos discutidos durante os dois dias do evento foram incluídos neste volume. Assim como os poemas de Age de Carvalho,

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8 | Interpretações literárias do Brasil moderno e contemporâneo

alguns dos quais foram lidos por ele durante o simpósio, além de um misto de conto e poética mínima de Sérgio Sant’Anna, que também esteve presente e, além de conversar com uma de suas tradutoras para o francês, falou de improviso e res-pondeu a diversas indagações sobre sua obra.

Este foi o programa do seminário e os seus participantes:

seminário europalia-paris

Interpretações literárias do Brasil moderno e contemporâneo

Sorbonne Nouvelle, Paris 3, dias 3 e 4 de novembro de 2011

ORGANIZAÇÃO: Vera Lins (UFRJ) e Jacqueline Penjon (Paris 3)

programação

Primeiro dia (3/11)

Sorbonne Nouvelle, Paris 3Salle Bourjac17, rue de la Sorbonne — Paris 5ème

MANHÃ

10h

| abertura |

Jacqueline Penjon e Vera Lins

10h30 — 12h30

| crítica e contemporaneidade |

Palestrantes:

Beatriz Resende (UFRJ) — Ficção brasileira contemporânea

Maria José Lemos (UERJ) — Raduan Nassar e a prosa dos anos 70

Flora Süssekind (FCRN/Unirio) — O poço e o pêndulo — de Nuno

Ramos

Michel Riaudel (Poitiers) — Poesia contemporânea, criação e tradução:

Ana Cristina Cesar

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9 Apresentação |

Pausa para almoço

TARDE

14h — 16h

Leitura e conversa com o poeta Age de Carvalho

16h — 18h

Leitura e conversa com o prosador Sérgio Sant’Anna

Segundo dia (4/11)

Maison de la Recherche de la Sorbonne Nouvelle, Paris 34, rue des Irlandais — Paris 5ème

MANHÃ

10h — 12h30

| matrizes da prosa moderna |

Palestrantes:

Marta Peixoto (NYU) — Clarice Lispector

Friedrich Frosch (Univ. de Viena) — Graciliano Ramos

Ettore Finazzi-Agró (Univ. de Roma La Sapienza) — Guimarães Rosa

Luciana Hidalgo (UERJ/Crepal) — Lima Barreto et la modernité: un

intellectuel entre l’utopie et le chaos

Pausa para almoço

TARDE

14h — 16h

| literatura e pensamento social |

Palestrantes:

Francisco Foot Hardman (Unicamp)— Euclides da Cunha

Jacqueline Penjon (PARIS 3) — Antonio Candido

Claudia Poncioni (PARIS 3) — Lire Gilberto Freyre en français

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10 | Interpretações literárias do Brasil moderno e contemporâneo

16h — 18h

| a poesia brasileira: do moderno ao contemporâneo |

Italo Moriconi (UERJ) — Oswald de Andrade

Inês Oseki Depré (Univ. de Provence) — Concretismo

Sandra Raguenet (Univ. de Provence) — Haroldo de Campos

Vera Lins (UFRJ) — Poetas críticos: de Mario Faustino a Sebastião

Uchoa Leite

18h30 — 19h30| palestra de encerramento |

Prof. Dolf Oehler (Univ. de Bonn): Machado de Assis na visão de

Roberto Schwarz

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Munus et communitas. A identidade negociada e a comunidade ausente na Modernidade brasileira

| Ettore Finazzi-Agrò | Universitá de Roma La Sapienza

A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas mila-

gres, salvo melhor raciocínio.

J.G.R., “Fatalidade”

O título da minha exposição já aponta para uma impossi-bilidade. De que maneira, na verdade, pode-se chegar

a ilustrar o universo linguístico, literário e ideológico muito complexo construído por João Guimarães Rosa no espaço de vinte minutos? Diante dessa questão insolúvel, escolhi falar com vocês sobre um aspecto não tão estudado da produção do grande escritor brasileiro, ligado a sua inquietude a pro-pósito do processo de modernização vivido (ou sofrido) por seu país na segunda metade dos anos cinquenta do século passado. Após uma breve introdução teórica, passaremos sobretudo a um exercício de leitura.

O ponto de partida poderia ter sido uma afirmação quase banal, que esbarra na tautologia. Ou seja, que o caminho da modernidade no mundo ocidental se apresenta sempre orientado pela busca de um senso comum (ou de um senso em comum, para utilizar uma expressão de Jean-Luc Nancy),1

1 NANCY, J. L. La communauté désœuvrée. 3. ed. Paris: Christian Bourgois, 1999. p. 210-219.

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12 | Interpretações literárias do Brasil moderno e contemporâneo

no qual e para o qual instaurar um Nós diferente, um sujeito coletivo diverso e inédito, uma constelação de instâncias partilhadas. Nessa perspectiva, a construção da comunidade seria o resultado de um trabalho, sempre repetido, de des-bravamento do território cultural, ocupado por vestígios de um passado a ser apagado. O objetivo, de fato, é conseguir instaurar uma clareira, um espaço finalmente livre do monte de ruínas deixado para trás pelo tempo e pelo anjo da his-tória, para cultivar após a falsa certeza do advento do novo abolindo a proliferação incontrolada de sentidos usados, de caminhos interrompidos que caracterizam o antigo.

Nessa marcha em direção ao progresso coletivo, em direção a um lugar a salvo e partilhado com uma nova geração, o que resta a ser desbravado é, no entanto, o referente do “comum”, ou seja, o que se fala quando se fala disso que pode eventual-mente reunir uma “nova” comunidade em torno de um “novo” sentido? Vários teóricos da comunidade tentaram responder a essa questão fundamental e fundadora (que entretém rela-ções, justamente, com uma refundação da existência de cada um em relação à esfera política, cultural e social moderna), provavelmente a partir dos estudos pioneiros do já mencio-nado Jean-Luc Nancy e de Maurice Blanchot,2 que foram com-plementados, ganhando uma dimensão mais articulada, pelos importantes trabalhos de filósofos italianos tais como Massimo Cacciari,3 Antônio Negri (com o americano Michael Hardt),4 Roberto Espósito5 e Giorgio Agamben.6 A esse último, em par-

2 BLANCHOT, M. La communauté inavouable. Paris: Minuit, 1983.

3 Pode-se consultar principalmente: CACCIARI, M. L’arcipelago. Milano: Adelphi, 1995.

4 Desses dois autores (desde Empire e Multitude) deve-se lembrar o mais recente: Commonwealth. Cambridge (MA): Harvard U.P., 2009.

5 Em particular: ESPOSITO, R. Communitas. Origine e destino della comunità. 2. ed. Torino: Einaudi, 2006.

6 AGAMBEN, G. La comunità che viene. Torino: Einaudi, 1990.

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13ettore finazzi-agrò | Munus et communitas |

ticular, deve-se, no âmbito de suas reflexões sobre a biopolítica e sobre as relações entre o indivíduo e o Poder no mundo con-temporâneo, a definição de comunidade como alguma coisa sempre por fazer e que jamais é perfeita — uma “comunidade que vem”, justamente, sem jamais vir verdadeiramente, que se ajusta no ritmo de um progresso desejado e sempre futuro.

Na perspectiva de Agamben, temos, nesse caso, uma crítica fustigante ao idealismo do século XIX, que via na construção (revolucionária) de uma nova sociedade, finalmente comum ou comunista, a possibilidade de se livrar dos obstáculos e das falhas do individualismo. A essa visão, o filósofo italiano opõe “o ser qualquer”, ou seja, a expropriação de todo traço específico (o ser burguês ou o ser comunista, assim como o ser francês ou brasileiro) em direção a uma constituição de uma “comunidade sem hipóteses e sem sujeitos”, em que o “qual-quer” seria a “figura de uma singularidade pura” que não parti-cipa de nenhuma propriedade e consiste apenas em seu “fazer fronteira com”, em seu ser um limiar entre o dentro e o fora que permite fazer a experiência do outro sem sair de si mesmo, em uma imanência que desfaz as hipóteses da oikonomia religiosa e também aquelas da economia ligada ao mercado.7

Agamben, como podemos constatar, remete toda possibi-lidade de realizar uma comunidade a um futuro que deve ser procurado continuamente, em seu caráter original, em seu ser, justamente, um “futuro anterior”, — em contraste, digamos, com a visão ainda marxista de Negri e Hardt que leem na dis-seminação das instâncias sociais, ligada à afirmação da Rede, na multidão dos produtores-consumidores e na multiplica-ção das possibilidades de produção e consumo, o advento da realização de uma nova forma de “comunismo”. A perspectiva

7 Cf. AGAMBEN, G. Op. cit., p. 42-52 e passim.

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14 | Interpretações literárias do Brasil moderno e contemporâneo

de Agamben, por outro lado, pode se combinar (na ascendên-cia comum das teorias de Foucault, através da interpretação delas por, mais uma vez, Jean-Luc Nancy) com a leitura que, da communitas, nos oferece Roberto Espedito. Na verdade, a dialética imperfeita que ele estabelece entre “comunidade” e “imunidade”, permite interpretar em um sentido histórico ou intramundano, ou seja, colocando em jogo a lógica temporal, o que Agamben parece desdobrar sob o signo de um advento, de um tempo por vir — em seu ser desde sempre consumido — e, diria eu, de um certo messianismo laico.

Na verdade, a reflexão de Esposito sai da retomada da raiz etimológica do termo comunitas ligado a munus, ou seja, ao dom sem contrapartida (diferente então do donum) que funda “o ser-com” os outros.8 Essa representação, que aproveita não somente a filosofia, mas também e sobre-tudo a antropologia, remetendo ao famoso Essai sur le don, de Marcel Mauss,9 possui a vantagem evidente de recolocar a questão da comunidade em um alcance social que inter-roga nossa história, a história ocidental, a partir de sua perda progressiva de “senso (em) comum”, em direção a uma “imu-nidade” que salva o sujeito do contágio de uma prodigali-dade sem retorno. Efetivamente, o que caracteriza o munus é seu aspecto negativo, o fato de ser um “nada em comum”, como definiu o filósofo italiano, que insiste não somente sobre a natureza simbólica, mas também sobre a gratuidade

8 De R. Esposito pode-se verificar também, sobre esse ponto de vista, o livro: Termini della politica. Comunità, immunità, biopolitica. 2e ed. Milano-Udine: Mimesis, 2009.

9 O fundamental Essai sur le don de Marcel Mauss, publicado pela primeira vez em 1923, foi, como se sabe, o ponto de partida de uma longa querela que não se limitou ao campo etimológico: pode-se lembrar aqui a existência de La revue M.A.U.S.S. em que se debate, até hoje, as teorias do famoso antro-pólogo francês sobre o Dom.

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e a inconsistência de toda “muneração”, ou seja, do que não prevê uma “remuneração” qualquer.

Confesso que essa interpretação da comunidade proposta por Roberto Esposito despertou imediatamente meu inte-resse, pois ela se adapta a uma leitura do Modernismo paulista que fiz há alguns anos, ligada às noções do Dom e da Troca.10 A essa economia (e política) do Moderno, baseada principal-mente na interpretação dos manifestos de Oswald de Andrade, consagrei um ensaio que desejo continuar aqui, ampliando a perspectiva a um outro momento histórico fundamental e fundador, no qual o Brasil, a cultura e a sociedade brasileiras tentaram recolocar em jogo o sentido de comunidade nacio-nal, buscando gerar um novo “senso-em-comum” e uma nova razão de seu “ser-com”. O momento histórico é a era JK (ou seja, o período da Presidência de Juscelino Kubitschek, entre 1956 e 1961), cuja conclusão foi a fundação da nova capital.

Nesse caso, assim como na época da afirmação do Modernismo, o que se destaca, no processo acelerado de transformação do País, é o desejo de limpar a história nacional de todos os restos de ruínas do passado, rumo a um tempo em palimpsesto de que Brasília devia ser o motor e o emblema. E, nesse caso, a construção de uma nova comunidade é também seguida por uma lógica política e por uma razão econômica que sustentam o projeto modernizador. Os ecos desses pro-cessos de aceleração do tempo (o slogan de JK era “50 anos em 5”) são compreendidos e deixam traços evidentes sobre a escrita literária do período. Poderíamos mencionar e analisar muitas obras, mas tratarei aqui de um escritor que, aparente-mente, ficou alheio e distante em relação à realidade histórica nacional que rondava em torno de sua prática ficcional.

10 FINAZZI-AGRÒ, E. Economia (e política) do moderno. Revista do IEB, n. 50, p. 13-26 (março de 2010).

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16 | Interpretações literárias do Brasil moderno e contemporâneo

Eu me refiro, evidentemente, a João Guimarães Rosa e a sua obra Primeiras estórias, publicada em 1962, que contém sinais muito claros da atenção ao presente, ao tempo real no qual o autor e todo o Brasil estavam mergulhados. Como todos sabem, a primeira e a última história desse livro se desenrolam em um “lugar onde se construía a grande cida-de”:11 Brasília, então, como encenação de uma história em palimpsesto, em que as histórias são primeiras pois fazem alusão a um País novo, “no começo do surgir”.12 A esse “novo” Brasil se dirige então João Guimarães Rosa, com as histórias primeiras e primárias, sem dar, aparentemente, demasiada atenção ao desejo de modernização, ao desejo do futuro que atravessa e transforma o corpo social da nação. Pelo contrá-rio, o escritor movimenta e reelabora os temas antigos, já abordados em suas obras anteriores: os problemas e as situa-ções, mais uma vez, de um Brasil arcaico, às margens da his-tória, fora e longe de toda modernização.

Apesar disso, sem que isso seja realmente visível, Rosa escreve e inscreve continuamente em suas Primeiras estórias a questão do ser-com, do senso-em-comum, posta pela funda-ção da capital. E ele faz isso partindo das margens para che-gar a um centro: o centro das histórias e o centro da História representado pela narrativa “O espelho”, que fala da busca de uma identidade primeira e radical por parte de um sujeito que acaba, entretanto, por se identificar unicamente com um “brilhante e polido nada”, sem existência “central, pes-soal, autônoma”.13 O que salvará o protagonista é justamente

11 ROSA, J. G. Primeiras estórias. Edição Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 49.

12 LIMA, L. C. O mundo em perspectiva: Guimarães Rosa. In: COUTINHO, E. F. Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 500.

13 ROSA, J. G. Op. cit., p. 119.

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a experiência passional — sentimentos humanos, dores e ale-grias, amor e ódio — capaz de restituir-lhe, pouco a pouco, um rosto, que não é, todavia, o do início, “mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica de nascimento abissal...”.14 Não é uma nova identi-dade, mas o retorno a uma essência infantil, assinalada pelo “rostinho de menino, de menos-que-menino, só”.15 Essa pas-sagem pelo abismo traz algumas questões fundamentais con-cernentes ao ser-com, na sua consciência aleatória e passio-nal, enquanto condição indispensável do viver: de um “viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória”.16

Nesse sentido, a narração central das narrações que se abrem e se fecham no lugar em que “as muitas mil pessoas faziam a grande cidade”17 pode ser lida como o apogeu e o eixo de uma interrogação sobre “o ser-no-mundo”, sobre uma história real que se reflete mas não encontra nem coincide jamais com ela mesma, sobre a superfície enigmática do espe-lho. É curioso e muito significativo que a narração seguinte, a décima segunda de acordo com a ordem geométrica das novelas, tenha um título como “Nada e a nossa condição”. É preciso observar que não se trata de “Nada é”, mas de “Nada e”, como se nossa condição fosse um “ao lado” do Vazio, algo que se conjuga e se combina com o Nada sem desmoronar sobre ele. Logo após a experiência abissal, de identificação com uma ausência, vivida em “Espelho”, confrontamo-nos, então, com a questão da existência a margem do abismo.

14 Ibidem, p. 120.

15 Idem, ibidem.

16 Ibidem, p. 119.

17 Ibidem, p. 201.

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18 | Interpretações literárias do Brasil moderno e contemporâneo

A narrativa é simples em sua significação entremeada e complexa. O protagonista é um fazendeiro chamado Tio Man’Antônio, casado com a Tia Liduína. Ele vive cercado por suas filhas “singelas, sérias, cuidadosas”18 e por uma “diversi-dade de servos, gente indígena, que por alhures e além estan-ciavam”.19 Após o falecimento imprevisto, “quase de repente”,20 de sua mulher, Tio Man’Antônio pede para derrubar quase completamente o arvoredo que cerca a fazenda, o que não agrada a suas filhas. No entanto, ele ganha uma vista mag-nífica sobre “os campos em desdobra — o que limpo, livre, se estendia, em quadro largo, sem sombrios, aberta a pai-sagem”.21 O ganho, aliás, é de natureza econômica também, pois “subiu, na ocasião, considerável, de repente, o preço do gado”.22 A fazenda se transformou, então, em uma imensa extensão de pastos e uma fonte de lucro. Após o casamento e o distanciamento das filhas, Tio Man’Antônio fica “sozinho, sim, não triste”23 em sua suntuosa casa, impondo a todos e a tudo a obrigação que tinha imposto a ele mesmo desde o falecimento de sua esposa: “faz de conta”.24

O gesto fundador, que visava instituir um espaço em alqueive, tornou-se, sem querer, um gesto econômico, ime-diatamente contrariado e subvertido pelo protagonista, que começa a dar seus bens aos servidores e envia dinheiro a suas filhas “fazendo de conta” que é o produto de uma venda. A partilha assume pouco a pouco a forma do potlatch, ou seja,

18 Ibidem, p. 121.

19 Ibidem, p. 122.

20 Ibidem, p. 123.

21 Ibidem, p. 125.

22 Ibidem, p. 126.

23 Idem, ibidem.

24 Ibidem, p. 123.

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19ettore finazzi-agrò | Munus et communitas |

do desperdício sem retorno, da “muneração” mencionada mais acima. O que resta, de fato, é unicamente a grande casa, cercada agora pela ausência, por um mundo indeterminado que se apresenta, de fato, como “nada mais-que-o-mundo”:

De seu, nada conservara, a não ser a antiga, forme e enorme casa, naquela eminência arejada, edifício de prospecto decoroso e espa-çoso: e de onde o tamanho do mundo se fazia maior, transclaro, sempre com um fundo de engano, em seus ocultos fundamentos. Nada. Talvez não. Fazia de conta nada ter; fazia-se, a si mesmo, de conta. Aos outros — amasse-os — não os compreendesse.25

Trata-se de um comportamento aparentemente inexpli-cável, que encontra todavia uma correspondência pontual no estudo de Marcel Mauss sobre o Dom. Efetivamente, também no caso contado por Rosa, pode-se verificar o que o antropó-logo francês tinha estudado nas culturas primitivas, ou seja, que a generosidade, a munificência sem contrapartida, não suscita a gratidão dos beneficiários, muito pelo contrário, ela desperta a suspeição e mesmo o ódio, consolidando-se como reafirmação do Poder e da Soberania:

Seus tantos servos, os benevolenciados, irreconheciam-no. [...] Faziam de conta que eram donos, esses outros, se acostumavam. Não o compreendiam. Não o amavam, seguramente, já que sem-pre teriam de temer sua oculta pessoa e respeitar seu valimento, ele em paço acastelado, sempre majestade. [...] Serviam-no, ainda e mesmo assim. Mas, decerto, milenar e animalmente, o odiavam.26

O munus, a liberalidade sem retorno, metamorfoseia-se então em “dom envenenado”, anfibologicamente representado pela antilogia semântica Gift/Gift, “dom” e “veneno”, ainda representado nas línguas germânicas, estudado por Marcel

25 Ibidem, p. 129.

26 Ibidem, p. 128 e 129.

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20 | Interpretações literárias do Brasil moderno e contemporâneo

Mauss na sua natureza “milenar e animal” — para utilizar o termo de Rosa.27 O rancor suscitado pelo dom generoso e não “re-munerado” de Tio Man’Antônio é o sinal de que a comu-nidade só pode se instituir a partir de um “nada-em-comum”, ratificando que “nossa condição” consiste somente em “fazer de conta” de possuir (“faziam de conta que eram donos”). E a materialização desse Nada imaterial, ou melhor, a nulificação do nada que produz “qualquer coisa em comum” se verifica, de fato, com a morte do fazendeiro, cujo cadáver é encontrado sobre uma rede na sua grande casa despojada e completa-mente vazia. No entanto, durante a preparação do enterro, a casa pega fogo de forma inexplicada:

Incendiou-se de repente a Casa, que desaparecia. [...] Assim, a vermelha fogueira, tresenorme, que dias iria durar, mor subia e rodava, no que estalava, septo a septo, coisa a coisa, alentada, de plena evidência [...] Derramados, em raio de légua, pelo ar, fogo, faúlhas e restos, por pirambeiras, gargantas e cavernas, como se, esplendidissimamente, tão vã e vagalhã, sobre asas, a montanha inteira ardesse.28

Da fazenda e do fazendeiro não resta então nada, ou res-tam somente cinzas que fertilizam o solo: pois é esse nada, que move no ar e cobre a terra, que pode finalmente dar ori-gem à comunidade:

Ante e perante, à distância, em roda, mulheres se ajoelhavam, e homens que pulando gritavam, sebestos, diabruros, aos miasmas, indivíduos. De cara no chão se prostravam, pedindo algo e nada, precisados de paz.

27 O breve ensaio “Gift, gift” foi publicado por Marcel Mauss, um ano antes do Essai sur le don, em Mélanges offerts à Charles Andler par ses amis et ses eleves. ROSA, J.G. Op. cit., Strasbourg: Istra, 1924.

28 Ibidem, p. 129 e 130.

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21ettore finazzi-agrò | Munus et communitas |

Até que, ele, defunto, consumiu-se a cinzas — e, por elas, após, ainda encaminhou-se, senhor para a terra, gleba tumular, só; como as consequências de mil atos, continuadamente.29

A turba multiétnica de servidores (“negros, brancos, mula-tos, mestiços”), no turbilhão de faíscas e de cinzas, nessa imo-lação extrema de si mesmo, nesse dar — para utilizar uma expressão de Jacques Derrida30 —, a própria morte se trans-forma, enfim, em comunidade. A devastação estabelecida nesse sentido, esse espaço finalmente livre, esse tempo em palimpsesto sobre os quais fundar uma nova identidade cole-tiva, um novo ser-com. Ato fundador que se encontra já em O Guarani, de José de Alencar, com o incêndio de “castelo nos trópicos”31 de Dom Antônio de Mariz, e que aqui se repete com o “palácio que parece um castelo” de Tio Man’Antônio, mas, nesse caso, “tudo como as consequências de mil atos”,32 ou seja, como resultado de muito munera que não aspira a nada em contrapartida, exceto, justamente, a instauração do “comum” na dispersão total e irreversível do que lhe é próprio.

Visto que Primeiras estórias é um livro de contos carac-terizado pela presença, em torno e ao lado, de um gesto fundador, como a construção da nova capital do País, não é um acaso que “Nada e nossa condição” em conjunto com os outros textos ao redor (pensemos somente a “Sorôco, sua mãe, sua filha” onde “a imunização” da loucura engen-

29 Ibidem, p. 130.

30 Cf. DERRIDA, J. Donner la mort. Paris: Galilée, 1999.

31 A definição de “Castelo nos trópicos” é tirada de Alfredo Bosi (Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 187-93). Sobre a fun-ção dos “incêndios” na obra de José de Alencar, pode-se consultar o estudo magistral de F. Süssekind. O Brasil não é longe daqui. O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 202-208.

32 Op. cit., p. 130.

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dra uma communitas finalmente solidária)33 — não pode, eu diria, ser um acaso que, nesse contexto, tenha uma nar-rativa que reflita sobre o Don ilimitado e total e que estabe-leça, em um aniquilamento antieconômico de toda posses-são, o campo vago onde instituir uma “nova comunidade”, contrariando o projeto de uma sociedade “imune”, habitada somente pela lógica mercadológica.

O que resta e que excede dessa esperança e dessa memó-ria é “nossa condição”: um faz de conta sobre o qual seja pos-sível fundar um novo ser partilhado, uma comunidade que finalmente “venha” para recuperar ou ratificar nosso “ser qualquer”; um faz de conta, enfim, que nos afasta do abismo de um mundo que consiste em um “brilhante e polido nada”, para nos entregar a um “nada outro-que-não-mundo”, aberto, ele, a um sentido ainda a ser pensado em comum.

Trad. Danielle Almeida

33 Para uma análise dessa estória — na perspectiva da construção da comuni-dade graças ao sacrifício do “outro” — eu me permito remeter a meu livro: Um lugar do tamanho do mundo. Tempos e espaços da ficção na obra de J.G.R. Belo Horizonte: Editora da UFMG, p. 195-199.

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Da antropofagia à transluciferação| inês oseki-dupré | Université de Provence

introdução

N um ensaio já conhecido de 1980, o poeta, ensaísta e tradutor brasileiro, Haroldo de Campos, propõe uma

nova leitura da história literária brasileira fixando os pri-mórdios desta última no século XVII, fazendo-a remontar ao poeta baiano Gregório de Matos Guerra (1636-1695).

Desta maneira, indo ao encontro da proposição acadê-mica nacional que vê a literatura brasileira como uma espé-cie de subproduto da literatura portuguesa, esta última deri-vando por seu turno da literatura francesa, dominante desde o Renascimento, Haroldo de Campos intitula seu ensaio: “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”.1

Para o crítico, a literatura brasileira nunca foi “infans”, nasceu “falando barroco” e sua primeira manifestação é a de Gregório, “o primeiro antropófago experimental de [nossa poesia]”, segundo Augusto de Campos.2

O processo de formação dessa literatura se efetua, por-tanto, como para todas as literaturas emergentes, graças ao

1 CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: Metalinguagem e outras metas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.

2 CAMPOS, Augusto de. Arte final para Gregório. In: Antiantologia de poesia baiana: poesia invenção. Salvador: GMF-propeg, 1974.

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que o crítico chama, após Oswald de Andrade, de antropofa-gia, a ingestão da literatura estrangeira através da tradução.

Haroldo de Campos apoia sua demonstração na con-ceituação oswaldiana modernista (1922) exposta no poema “Poesia Pau-Brasil”:3 a assimilação da espécie brasileira da experiência estrangeira reinventada em termos próprios e — acrescenta — com as “qualidades locais que dão ao pro-duto um caráter autônomo conferindo-lhe a possibilidade de funcionar por seu turno em uma confrontação internacional como produto de exportação”.

Minha proposta consiste, sem contestar a análise de Haroldo de Campos,4 em desenvolver seu ponto de vista e acrescentar elementos que remontam ao Renascimento francês, e que compreendem a gênese do conceito (o “cani-balismo” da Plêiade) até a própria atividade de Haroldo de Campos, o último antropófago da literatura brasileira (com sua tribo concretista).

antropofagia e intertextualidade

De fato, é a Oswald de Andrade, poeta, crítico, grande figura do Modernismo brasileiro — que se inicia com a Semana de Arte Moderna (1922), evento que marcou o inicio da antropofagia como reivindicação literária e cultural brasi-leira —, que se deverá a formulação (teorização) da palavra de ordem:5 “Somente a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. [...] Tínhamos a justiça:

3 O poema-manifesto escrito por Oswald de Andrade foi inicialmente publi-cado no jornal Correio da Manhã, edição de 18 de março de 1924.

4 CAMPOS, Haroldo de. Op. cit.

5 Ibidem, p. 289.

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codificar a Vingança. A ciência: codificar a Magia. A antropo-fagia; transformação permanente do Tabu em Totem”.6

Para o autor:

A antropofagia é o culto votado à estética instintiva da terra nova. É a redução em pedaços dos ídolos importados, para permitir a ascen-são a totens raciais. É a própria terra da América filtrando, expri-mindo-se através dos temperamentos vassalos de seus artistas.7

O que pode se traduzir, segundo Haroldo de Campos, pelo “pensamento da devoração crítica do legs cultural universal”,8 ou ainda “Essa postura, proclamada no Manifesto, presente no poema ‘Manifesto da Poesia Pau-Brasil’ lhe permite assi-milar sob a espécie brasileira a experiência estrangeira”.

Essa corrente se caracteriza ao mesmo tempo pela rup-tura formal, pela técnica da montagem (tais como os pinto-res cubistas ou um Eisenstein) e pelo diálogo assumido entre literaturas. É claro que Oswald de Andrade, conhecedor das literaturas estrangeiras, se inspira no famoso ensaio de Montaigne sobre os Canibais (Les Cannibales, livre I, capítulo XXX) no qual o autor compara estes últimos (cuja violência se justifica) com os adeptos da Reforma.9

Sem pretender entrar num debate sobre as diferentes definições da antropofagia em relação à noção de intertex-tualidade, “presença efetiva de um texto num outro texto”, “a propriedade de toda literatura”, ou ainda “a intertextualidade

6 ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago. Revista de antropofagia, ano 1, n. 1, maio 1928.

7 ANDRADE, Oswald de. Anthropophagies. Paris: Flammarion, 1982. p. 267.

8 “A luta entre o que se poderia chamar de increado e a Criatura — ilustrada pela contradição permanente do homem e de seu Tabu. O amor quotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sagrado. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A finalidade terrestre” (p. 270).

9 O canibalismo vem a ser palavra de ordem para os autores da Defesa e ilus-tração da língua francesa, liderada por Du Bellay.

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(é) o que o leitor percebe como relação intertextual”, ou seja, a definição genetiana estrita, a de Kirsteva-Bakhtine, ou a definição mais ampla proposta por Michael Riffaterre,10 o que nos afastaria de nosso assunto, mister é propor uma distinção entre o que ela designa e a imitação canibal do Renascimento ou a antropofagia moderna.

Pois por que não se trataria no final de um fenômeno recorrente e antigo como a literatura: o de incorporar a litera-tura existente para se transformar e se reproduzir?

De fato, a diferença provém de que a intertextualidade é ao mesmo tempo um fenômeno inconsciente ou consciente-mente individual.

Pois, se para Gérard Genette, com efeito, ela se encarna na presença explícita de um texto num outro (citação, plá-gio, alusão), o que supõe uma escolha voluntária da parte do autor,11 o que parece confirmar Julia Kristeva, após Mikhail Bakhtine (para o qual a literariedade proviria da transfor-mação de diferentes elementos culturais e linguísticos num texto dado), já para Michael Riffaterre, “o intertexto é a per-cepção, pelo leitor, de relações entre uma obra e outras que a precederam ou seguiram”.12 Para este último, portanto, a intertextualidade pode ser identificada em toda literatura, o que Roland Barthes confirma (1970-1980) ao afirmar que “todo texto é um intertexto”.13

10 Ver: GENETTE, Gérard, Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982; KRISTEVA, Julia. Théorie d’ensemble. Paris: Seuil, 1979; RIFFATERRE, Michael, Sémiotique de la poésie. Paris: Seuil, 1982.

11 Ver: COMPAGNON, Antoine. La seconde main ou le travail de la citation Paris: Seuil, 1979.

12 RIFFATERRE, Michael, Op. cit.

13 BARTHES, Roland. Texto (teoria do). In: Inéditos, v. 1: teoria. São Paulo: Editora WMF Martins Pontes, 2004.