sueli aparecida bellato -...
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Universidade de Braslia UnB
Programa de Ps-Graduao em Direitos Humanos PPGDH
CEAM
Dissertao de Mestrado
JUSTIA DE TRANSIO: PERDO OU DESCULPA
EM NOME DO ESTADO BRASILEIRO?
SUELI APARECIDA BELLATO
Braslia
2014
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SUELI APARECIDA BELLATO
JUSTIA DE TRANSIO: PERDO OU DESCULPA
EM NOME DO ESTADO BRASILEIRO?
Dissertao apresentada como requisito para
obteno do grau de Mestre no Programa de
Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania,
do Centro de Estudos Avanados
Multidisciplinares CEAM, da Universidade
de Braslia
Orientador: Doutor Jos Geraldo de Sousa
Junior
Braslia
2014
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B436j Bellato, Sueli Aparecida Justia de Transio: Perdo ou Desculpa em nome do Estado brasileiro? -.Braslia: UnB, Centro de Estudos Avanados Multidisciplinares - CEAM, 2014. .... 155p. Orientador: Jos Geraldo de Souza Jnior. Dissertao (Mestrado) Universidade de Braslia Centro de Estudos Avanados Multidisciplinares CEAM, Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania, Braslia, 2014.
1. Justia de Transio. 2. Perdo. 3. Direitos Humanos I. Titulo. CDD: 341.1219
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
CEAM
PROGRAMA DE PS GRADUAO
EM DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA/PPGDH
DEFESA DA DISSERTAO
MESTRANDA SUELI APARECIDA BELLATO
JUSTIA DE TRANSIO: PERDO OU DESCULPA
EM NOME DO ESTADO BRASILEIRO?
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Jos Geraldo de Sousa Junior (FD/PPGDH-Orientador)
Profa.Ela Wiecko Volkmer de Castilho (FD/UnB-Membro Externo)
Prof. Menelick de Carvalho Netto (FD/PPGDH-Membro Interno)
Prof. Alexandre Bernardino Costa (FD/PPGDH-Membro Interno-Suplente)
Data:11/11/2014(tera-feira)
Horrio:15 h
Local:Faculdade de Direito Sala A1-04
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DEDICATRIA
Esta Dissertao quer ser uma homenagem aos
que no se cansam de lutar por um
mundo de amor, paz e de justia.
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AGRADECIMENTOS
minha famlia, aos meus pais e avs, de maneira especial, in memria, com quem
aprendi o valor da partilha e da solidariedade.
Aos Amigos e Professores do Programa de Ps-Graduao de Direitos Humanos da
Universidade de Braslia que esto contribuindo na divulgao do conhecimento e da defesa
dos direitos humanos.
Ao meu orientador Professor Jos Geraldo de Sousa Junior que comigo vibrou diante da
escolha do tema e que muito contribuiu para realizao deste trabalho.
s minhas irms da Congregao de Nossa Senhora Cnegas de Santo Agostinho - com
quem aprendi que o direito deve ser diferente para quem no igual.
Aos colegas da Comisso de Anistia que dedicam seu tempo e compromisso para
reconhecer os direitos dos protagonistas da luta por liberdade e democracia.
A cada um e a cada uma que me apoiou na realizao deste projeto e aos que busquei nas
suas histrias motivos para realizao deste trabalho: Alexandre Vannucchi Leme, Aurlio
Peres, Darci Myako, Jos Fragoso, Jeronimo Alves, Mario Covas e Rose Nogueira.
E, no comeo e no fim, a gratido a Deus que me permite experimentar que sozinha nada
sou, nada fao e somente nele tudo posso, tudo sou.
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RESUMO
A Justia de Transio se vale dos instrumentos de reparao para encerrar o perodo de conflito
e efetivar procedimentos que alcancem a paz duradoura. Compem o rol de procedimentos as
reparaes morais e econmicas, o pedido de perdo, as medidas indenizatrias, o resgate da
memria, a afirmao da verdade e a responsabilizao dos agentes causadores dos prejuzos
decorrentes das perseguies polticas. As medidas reparatrias visam contribuir para
superao dos sofrimentos causados aos vencidos. O grande triunfo da Justia de Transio
pretender a construo de uma nova sociedade que tendo passado nas guas da reconciliao e
da justia est apta a trilhar caminhos de no repetio dos erros praticados por regimes que
produziram algozes e vtimas. A utopia da nova sociedade requer antes de tudo a nossa prpria
transformao e o reconhecimento do outro como ns queremos ser reconhecidos. O presente
trabalho pretende demonstrar que o Perdo a ponte do incio de uma travessia e no um
ponto final. O Brasil realiza a reparao moral com o pedido de desculpas e uma das maiores
polticas de reparao econmica. A prtica da auto anistia, a falta de responsabilizao e a
negao de toda verdade devem ser superadas com vista a reconciliao e a paz duradoura.
Afirmar a necessidade de responsabilizao no querer vingar-se, no revanche, Justia.
simplesmente ler a pgina antes de vir-la. Isoladamente nenhum instrumento da Justia de
Transio garante a Reconciliao e a No Repetio. Desculpas no Perdo!
Palavras-chave: Perdo, Desculpas, Memria, Esquecimento, Anistia, Ditadura, Justia de
Transio.
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ABSTRACT
Transitional Justice uses reparation tools to end periods of conflict and to promote endurance
peace. Reparations can be moral and economic apologies compensatory pursuance of memory
promotion of truth and individual accountability regarding those who cause damage while
promoting political persecution. Reparatory measures aims to contribute with victims healing
process. Transitional Justice greatest achievement is to build up a new society that crosses the
river of reconciliation and justice been able to avoid repetition of wrongdoing that produces
victims and perpetrators. New societys utopia demands above all our own transformation and
the others recognition. This works aims to demonstrate that forgiveness is the initial bridge in
the road to reconciliation: not the ending point rather where the journey starts. It isnt revenge
nor rematch, but justice. Isolated none of the Transitional Justice tools assure reconciliation and
none repetition. Apologies are not forgiveness. Forgiveness is a gift an exclusive prerogative
of victims. The Amnesty Commission in the name of the State apologizes for the mistakes that
were made in result of exclusive political persecution
Keywords: Forgiveness. Apologies. Memory. Forgetness. Amnesty. Dictatorship. Transitional
Justice.
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SUMRIO
INTRODUO..................................................................................................................9
CAPITULO I 1 A JUSTIA DE TRANSIO E OS INSTRUMENTOS PARA
RECONCILIAO.........................................................................................................17
1.1 Genealogia e instrumentos da Justia de Transio...........................28
1.2 Justia de Transio no Brasil ..................................................................................45
CAPITULO II 2 PERDO OU DESCULPAS...........................................................54
2.1 Experincias de Pedido de Perdo............................68
CAPITULO III - 3 A EXPERIENCIA BRASILEIRA: A COMISSO DE
ANISTIA...........................................................................................................................85
CONSIDERAES FINAIS..............................95
Tabela 1 ..........................................................................................................................105
Tabela 2 .........................................................................................................................106
REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS.................................................107
LISTA DE ANEXOS......................................................................................................110
ANEXO A........................................................................................................................111
ANEXO B........................................................................................................................119
ANEXO C........................................................123
ANEXO D................................129
ANEXO E........................................................................................................................148
ANEXO F........................................................................................................................153
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INTRODUO
9. Ento Jav perguntou a Caim: "Onde est o seu irmo Abel?" Caim
respondeu: "No sei. Por acaso eu sou o guarda do meu irmo?"
10. Jav disse: "O que foi que voc fez? Ouo o sangue do seu irmo,
clamando da terra para mim.
11. Por isso voc amaldioado por essa terra que abriu a boca para receber
de suas mos o sangue do seu irmo.
12. Ainda que voc cultive o solo, ele no lhe dar mais o seu produto. Voc
andar errante e perdido pelo mundo".
13. Caim disse a Jav: "Minha culpa grave e me atormenta.
14. Se hoje me expulsas do solo frtil, terei de esconder-me de ti, andando
errante e perdido pelo mundo; o primeiro que me encontrar, me matar".
15. Jav lhe respondeu: "Quem matar Caim ser vingado sete vezes". E Jav
colocou um sinal sobre Caim, a fim de que ele no fosse morto por quem o
encontrasse.
16. Caim saiu da presena de Jav, e habitou na terra de Nod, a leste de den.
Gnesis, Captulo 4,9-161
Narra o texto bblico que aps matar e desaparecer com o corpo de seu irmo Caim foi
chamado por Deus para prestar contas de seu ato. Condenado por Deus que o declarou maldito,
Caim foi expulso da terra e recebeu uma marca. Caim temeu por sua vida pois quando
reconhecido em razo da marca poderia sofrer alguma represlia. Mas Deus respondeu-lhe que
aquele que matasse Caim seria punido sete vezes, o que representa na tradio bblica, um
nmero infinito de punies. Se Caim fosse punido com a morte poderia representar que seu
crime estivesse pago. E como diz Reys Mate2 o crime no admite pagamento, nem expiao e
por isso Caim precisava viver.
Para o citado autor a culpa se equipara responsabilizao e esta impagvel no se
podendo saldar nunca. Caso se admitisse uma quantidade de castigos pela morte de Abel poder-
se-ia crer que a falta de Abel estaria saldada. De outra parte algum poderia ter a tentao de
querer vingar Abel matando Caim e desta forma a morte tambm quitaria a ao fraticida, j
que teria pagado seu crime e lavado sua alma, isentando-o de toda sua responsabilidade.3
1 Bblia Sagrada Edio Pastoral Paulus - 8. impresso agosto de 1997 Sociedade Bblica Catlica
Intenacional e Paulus 1991 - So Paulo 2 MATE, Reys. Justicia de las Victimas Terrorismo, memoria, reconciliacion Fundacion Alternativas
Anthropos, Espaa, 2008:62 3 VALDECANTOS, Antonio. Emociones responsables, Universidad Carlos III de Madrid - ISEGORA/25
2001: 63-90
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Caim poderia, na perspectiva da renncia do mal, ter adotado um dos dois caminhos: o
que nasce do arrependimento ou o que nasce do remorso. O arrependimento uma forma de
negociao: o perpetrador declara que agiu mal e em contrapartida a vtima lhe devolve o estado
de inocncia. No segundo caminho, do remorso, o reconhecimento da irreparabilidade do crime
inexpivel. S cabe assumir a culpa por toda a vida.
E assim introduzo esta Dissertao com a esperana que ainda se manifeste o
arrependimento de quem ceifou vidas e projetos e a promessa de no repetio dos erros. E que
as vtimas, sejam reconhecidas para permanecerem sempre vivas nas prticas dos que seguem
lutando por um pas livre da mentira, da violncia e de toda forma de dominao.
Que juntos possamos favorecer o clima de confiana necessrio para os que se dispuserem
a falar a verdade, denunciar a cadeia da tirania e pedir perdo pelos erros cometidos.
No rescaldo dos regimes que atuaram contra os direitos humanos a Justia de Transio
revela a violncia e os meios empreendidos durante o estado de exceo, desvela a verdade
oculta e esquecida, visibiliza as vtimas, nicas autoridades que podem aceitar o pedido de
perdo dos algozes e oferece as condies polticas para a reconciliao. Para tanto me apoiarei
na linha de pensamento dos que afirmam que o perdo no sinnimo de amnesia,
esquecimento, ou anistia. O perdo um dom, um acesso gratuito para reconciliao. ato
exclusivo e gratuito das vtimas e um dever moral dos perpetradores e do Estado para com as
vtimas, a sociedade em favor da verdade, da justia e da paz.
A marca de Caim a culpa que no o abandonar por todo o sempre. o remorso de
Judas Escariotes que entregou Jesus s autoridades que o tinham como inimigo. Contudo,
tambm segundo os relatos bblicos no teria sido apenas Judas que traiu Jesus. Tambm o seu
amado amigo, Pedro, quando reconhecido por testemunhas negou trs vezes que pertencesse ao
grupo do prisioneiro. Condenado pelo poder poltico e religioso Jesus recebeu como Sentena
a pena de morte na cruz, pena aplicada aos condenados nos crimes considerados gravssimos.
Alcanados pelo remorso Pedro e Judas tiveram atitudes distintas. Enquanto Pedro
arrependido engajou-se numa nova militncia Judas agiu com desesperana contra a prpria
vida. O arrependimento o reconhecimento que o erro poderia ter sido evitado. O perdo o
dom absolutamente gratuito das vtimas que perdoam at os erros inimaginveis.
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Na Justia de Transio a confisso do erro, a reparao para as vtimas, e o compromisso
de no repetio so promessas que invocam o propsito de no repetio da violncia com fins
polticos e contra os direitos humanos. Enquanto o perdo no pressupe compensao ou
recompensa, no pedido de desculpas o ofensor redime as suas culpas com a vtima e com a
sociedade mediante a quitao dos compromissos de reparao e no repetio. O acerto dos
erros e a promessa de no repetio esto visceralmente ligados ao resgate da memria e o
conhecimento da verdade. Para o passado, a lembrana da vtima, para o presente, a recordao
dos protagonistas da Histria e para o futuro, a Memria.
O objetivo deste trabalho, desenvolvido em trs captulos , indicar a importncia do
sinal do perdo. Emprego o termo perdo no sentido agostiniano que compreende um sinal
como tudo aquilo que, alm de atuar por si em nossos sentidos, nos leva tambm ao
conhecimento de outra coisa concomitante. 4 O que apresento a perspectiva do perdo
horizonte que o Estado afirma para a sociedade o protagonismo das vtimas, revela os crimes
perpetrados contra os direitos humanos e promete a no repetio e erradicao da violncia
com o fim de lograr a reconciliao. Interpreto ao longo do trabalho que a reconciliao das
naes, povos e grupos que estiveram envolvidos em graves violaes de direitos humanos e
rupturas de relaes a condio para o estabelecimento de uma nova sociedade que efetiva a
paz e a democracia com justia. A este propsito a Justia de Transio sacramentaliza com o
pedido de desculpas e perdo, conceitos muitas vezes empregados um pelo outro. Apreendi das
leituras, especialmente em Paul Ricoeur, que o perdo trata de forma equnime a vtima e o
vitimrio, nada pede, enquanto que a desculpa pede e espera.
O perdo meta e o horizonte da justia. Discorro tambm sobre o papel preponderante
do perdo no refazimento de relaes pessoais e institucionais que foram rompidas pelo
autoritarismo, em especial no caso do Brasil pelas violaes de direitos cometidas durante a
ditadura militar. Por fim, nas Consideraes Finais reforo a busca de que amanh o perdo e
a reconciliao concorrem para edificao de uma sociedade mais justa, fraterna e solidria.
No Captulo 1 discorro sobre a justia retributiva e justia restaurativa, essa que visa a
erradicao das violncias, a superao do esquecimento como garantia de no repetio e
4 A Doutrina Crist, 2,1 http://www.veritatis.com.br/article/634 visitado em 16/12/2014
http://www.veritatis.com.br/article/634
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promessa de estabilidade democrtica. A justia restaurativa afirma o protagonismo da vtima
e o reconhecimento dos erros praticados pelo perpetrador. Desse modo, evolui do estado de
impunidade para a punio sem efeito prtico e volta-se para reparaes alternativas. O perdo
aparece em ambas as formas de justias. Porm so diferentes. Enquanto na justia retributiva
o perdo est inserido num contexto de punio, na justia restaurativa o perdo est vinculado
ao protagonismo da vtima e o reconhecimento dos erros praticados pelo perpetrador. Mais que
uma admoestao pessoal a justia restaurativa visa a responsabilizao social e institucional.
No Captulo 2 invoco as reparaes na forma de desculpas e do perdo. A desculpa como
ao indenizatria e o perdo como efetiva travessia do estado remanescente das rupturas, dos
traumas, do apagamento de memria para resgate da memria e reconciliao. Inicialmente
tratei o perdo como reparao moral praticada no mbito da Comisso de Anistia. No entanto,
no decorrer dos estudos e pesquisas verifiquei que o perdo um dom sem contrapartidas ou
condicionamentos, diferentes da desculpa cujo mrito maior o de poder levar ao perdo, sem,
contudo, possuir a generosidade do perdo. Comisso de Anistia cabe realizar o pedido de
desculpas em razo da incompletude dos requisitos necessrios para o pedido e a concesso do
perdo. A autoridade legtima para conceder o Perdo a vtima e pressupe o reconhecimento
do erro por quem deu causa. O perdo o ensaio de uma nova sociedade, reconciliada. Uma
utopia a ser buscada incansavelmente na construo de relaes igualitrias, reconstituindo
tecidos rompidos e almejando alcanar a cidade que efetivamente floresce fraternidade
solidariedade e cidadania. A reconciliao o horizonte do perdo e esse o horizonte da
memria. Est alm da reparao, depende do reconhecimento e do resgate da visibilidade das
vtimas.
O perdo recompe o estado anterior ao das rupturas decorrentes das violaes e da
quebra dos pactos sociais. Preenchidas as condies para a concesso e o acolhimento do pedido
de perdo caber exclusivamente s vtimas a ddiva de conced-lo.
Uma nfase se faz imprescindvel: a Justia de Transio quer a instalao da paz e a
erradicao da violncia, o reconhecimento no mais da vtima e sim do protagonista da histria
do perdo poltico ainda que este encontre inspirao no perdo religioso.
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Os crimes cometidos pelos regimes autoritrios geram prejuzos de ordem pessoal,
psicolgico, individual e coletivo. Da o direito de reparao que cabe s vtimas, para que
tenham possibilidades de recompor o estado anterior violao que lhes atingiu.
No Captulo 3 desenvolvo a experincia restaurativa brasileira a partir da Comisso de
Anistia. Tendo como ponto de partida o requerimento de quem relata a histria a partir do lugar
da vtima o rgo colegiado da Comisso aprova o requerimento e o recomenda para deciso
final do Ministro da Justia, a quem compete a deciso final.
No desempenho da atribuio constitucional e infraconstitucional, a Comisso de Anistia,
desde o incio de sua instalao, em 2001, no governo do ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso, guarda um ritual de solenidade que expressa a importncia do reconhecimento de
direitos aos que foram atingidos, em decorrncia de perseguio exclusivamente poltica, por
ato de exceo, institucional ou complementares e mantem a simplicidade e informalidade
prpria dos processos administrativos.
Num dos maiores programas de indenizao s vtimas que foram atingidas em
decorrncia de ato de exceo, institucionais ou complementares j realizado no Brasil, a
Comisso de Anistia no intuito de ampliar a pauta de reparao individual realiza o Projeto
Marcas da Memria com significativa participao da sociedade civil e desenvolve um
conjunto de aes voltadas para reflexo, aprendizagem coletivo de modo que aqueles
vivenciaram e possuem conhecimento do tempo que o Estado negou sistematicamente os
direitos humanos compartilhem suas leituras de mundo para que todos conheam a histria de
um tempo que no pode ser esquecido.
Dentre as aes realizadas pelo Projeto est inserida as das Caravanas da Anistia que tem
percorrido o pas todo levando as sesses de julgamento para os lugares mais prximos de onde
as vtimas sofreram as perseguies polticas. A Caravana cumpre duas partes: a primeira em
que ocorre a Sesso de Homenagens e a segunda a Sesso de Julgamento. So nas Sesses de
Julgamento que a Comisso se dirige aos requerentes para pedir-lhe desculpas em nome do
Estado pelos prejuzos que o regime excepcional causou aos requerentes, seus familiares e
toda sociedade.
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A participao pblica contribui para efetivao do resgate da verdadeira histria dos que
sofreram perseguio e que tambm acabaram sendo vtimas de verses falsas sobre os
acontecimentos.
A Comisso acredita que dever de todos e de cada um seguir lutando para o
aperfeioamento da democracia e das instituies, convidando a cada cidado e cidad ser uma
sentinela da democracia.
Por que tratar do Perdo nesta dissertao? Na minha juventude estive envolvida com
aes de solidariedade s vtimas da ditadura militar. Correspondia aos jovens da minha
gerao, vinculados com a linha eclesial identificada com a Teologia da Libertao, entre outras
tarefas, atender s aes de solidariedade aos familiares dos presos polticos, participar das
atividades de massa ou apenas aguardar nas rodovirias e aeroportos o retorno dos exilados
polticos. Cheguei a pensar que eu conhecia a dor dos que foram perseguidos na ditadura!
No obstante a convivncia com muitos ex-presos polticos pude constatar que s obtive
conhecimento dos cruis sofrimentos a que foram submetidos aqueles considerados subversivos
pelo regime militar nas atribuies de conselheira e vice-presidente da Comisso de Anistia,
seja pelos relatos escritos, seja pelos depoimentos prestados em sesses pblicas da Comisso.
Exemplo da falta de conhecimento dos horrores praticados pelos agentes da represso
ocorreu quando relatei o processo do metalrgico Jeronimo Alves, ex-empregado da fbrica
Lorenzetti, de So Paulo. Homem negro, militante da Pastoral Operria e da Ao de Libertao
Nacional ALN - Jeronimo foi preso diversas vezes e numa delas seu filho menor aprendiz
tambm o foi e ambos foram torturados. Seus poucos bens dispostos numa modesta casa da
periferia paulistana destrudos por mais de uma vez pela polcia. Como resultado das
perseguies sua esposa sofreu um acidente vascular cerebral, o filho suicidou-se e Jeronimo
nunca mais obteve emprego de metalrgico. Em 2007 Jeronimo veio Braslia para participar
do aniversrio da lei de anistia. Passou no Ministrio da Justia para comemorar o
reconhecimento que o Estado lhe fez5 e cumprimentar seus amigos. Estava elegantemente
vestido para visitar as autoridades de Braslia. No entanto, no chegou assistir sesso especial
pelo aniversrio da lei de Anistia promovida pela Comisso de Direitos Humanos e Minorias
5 Processo 2001.01.05130 deferido em 04 de dezembro de 2003 e declarado anistiado poltico brasileiro.
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da Cmara dos Deputados, passou mal e foi levado para o Hospital Regional da Asa Norte onde
faleceu.
Jernimo, como muitos ex-perseguidos, nunca falava dos seus sofrimentos. Silncio,
solido, medo, vergonha, ameaas, discrio, sentimento de preservao dos familiares e
amigos? Provavelmente tudo junto. Como aceitar o pedido de perdo quando a ferida continua
aberta, no foi cicatrizada? Como se reconciliar com que no se arrependeu ou no chegou a
manifestar que tudo poderia ter sido evitado? Jeronimo representa aqui todos e todas Jernimos.
O pedido de perdo contm o sentimento de arrependimento. O resultado das pesquisas e
das inquietaes pessoais me suscitou mais perguntas do que respostas. O Estado, ocupando o
lugar dos que em seu nome praticaram graves violaes, pode pedir perdo s vtimas? A
reparao econmica e moral substitui a manifestao de arrependimento e indicam a
disposio de reforma nas instituies que serviram ao aparato repressor? Creio que no! E a
sociedade que lugar ocupou, e, agora ocupa neste processo de restaurao de relaes?
Consultei, a terminologia que aqui convm, alguns anistiados, sobre o que lhe significou ouvir
o pedido de desculpas da Comisso de Anistia.
Dentre eles Darci Myako, e Joo Fragoso e obtive algumas respostas que tratarei adiante.
Tambm relembro a reao negativa que manifestou Gilka Rabello ao pedido de perdo que fiz
em nome do Estado brasileiro. Sob forte emoo Gilka repetiu vrias vezes que no perdoava
para que no voltassem a praticar os horrores que ela sofreu.
A Comisso de Anistia, lugar que desenvolvo minha pesquisa e reflexo sobre o tema,
realiza um pedido de soluo de culpa pelos erros que o Estado praticou contra os direitos
humanos. Este pedido passou ser feito de forma sistemtica a partir da adoo dos princpios
recomendados pela Justia de Transio, em 2007. A partir desta data a Comisso acrescentou
declarao de Anistia o pedido de perdo pelos erros que foram causados s vtimas.
O livro Caravanas da Anistia O Brasil pede Perdo6, publicado em 2012, retrata as
duas modalidades de reparao concedida pela Comisso de Anistia, a de contedo moral e a
6 Publicao apresentada no ano de 2010 1. Chamada Pblica do Projeto Marcas da Memria, da Comisso de
Anistia, do Ministrio da Justia, e selecionado por Comit Independente para Fomento. Organizao Maria Jos
H. Coelho, Vera Rotta Braslia DF -Ministrio da Justia; Florianpolis: Comunicao, Estudos e
Consultoria, 2012
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de contedo reparatrio econmico, e contm um conjunto de votos exemplares de todo o
tempo da comisso desde sua instalao.
O ttulo sugestivo indica as duas espcies de reparao: o resgate da verdade e o pedido
de perdo. No entanto, o pedido de perdo tem sido modificado para pedido de desculpa, como
desenvolverei no captulo 2.
O Perdo ato gratuito, prprio das vtimas, ele capaz de permitir a travessia, a
superao e alcanar a reconciliao. A Desculpa tem preo, negocivel, objetiva, no
gratuita.
Aproveito a oportunidade para registrar meu agradecimento ao Senhor Marcello
Lavnere Machado, ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, por ter-me
convidado em 2003, a compor o Conselho da Comisso de Anistia, onde permaneo e desde o
ano de 2007 atuo como vice presidente deste respeitado rgo, a convite do atual presidente
Senhor Paulo Abro Pires Junior, a quem tambm agradeo por ter-me permitido, ao seu lado
e ao lado dos conselheiros, conselheiras, servidores e amigos da Comisso, empenhar as difceis
travessias, certos que quando estamos juntos as dificuldades se tornam menores.
Registro tambm meu agradecimento pela confiana a mim creditada pelo Ministro Jos
Eduardo Cardoso na condio de sua assessora especial para servir na Comisso de Anistia.
Meu profundo respeito s pessoas que se fazem pontes para permitir as travessias que
favorecem os processos de cicatrizao e reconciliao.
Minha admirao e agradecimento ao pintor Claude Monet que guiou a minha
inspirao com a ponte do seu jardim.
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1 A JUSTIA DE TRANSIO E OS INSTRUMENTOS PARA
RECONCILIAO
Figura 1- Jardins de Monet
Fonte:http://www.conexaoparis.com.br/2007/06/27/giverny-a-casa-e-os-jardins-de-monet/7
Desconhecido da maioria da populao, inclusive dos operadores do direito, h
aproximadamente 20 anos o tema Justia de Transio tornou-se objeto de maior interesse,
especialmente nas sociedades que estiveram envolvidas em situao de graves conflitos
internos e internacionais.
A novidade que se apresenta a aplicao do conceito de Justia de Transio baseado
no direito internacional nos processos de transio, mas no somente nas situaes de ps
7 Disponvel em: http://www.contornospesquisa.org/2012/08/como-referenciar-figuras-imagens-e.html, Acesso
em 20 de outubro de 2014.
http://www.contornospesquisa.org/2012/08/como-referenciar-figuras-imagens-e.htmlhttp://www.flickr.com/photos/16179051@N07/
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conflitos e ou mudana de regime, como o caso da transio da ditadura para democracia.8
Tambm certo que a Justia de Transio compreende situaes de processos de paz dentro
de um conflito ascendente numa democracia formal.9
A busca de superao dos legados tem se dado de formas diferentes, pela via judicial e
ou no judicial, podendo ter nveis de participao diferenciada internacional ou mesmo sem a
participao internacional. Vale dizer, que seja pela via retributiva, seja pela via restaurativa ou
mesmo pelas duas vias, o resultado da Justia de Transio depende de vrios fatores, como o
papel que a antiga elite manter pois tambm no dizer de ambas, as possibilidades da Justia de
Transio aumentam na medida que diminui a influncia das antigas elites10.
Outro fator a ser considerado na avaliao do xito da Justia de Transio sero as
polticas e reformas polticas adotadas considerando o objetivo da reconstruo, da
consolidao da democracia e da reconciliao.
O psicanalista e escritor Srgio Telles fez circular no peridico Folha de So Paulo artigo
intitulado Desconstruindo o amanh, no qual resenhou o livro De que amanh..., resultado
de debate entre o filsofo Jacques Derrida e a psicanalista Elizabeth Roudinesco. Na articulao
de seu texto, o resenhista, destaca que:
A histria da humanidade uma tumultuada alternncia entre civilizao e barbrie,
na qual tem sido necessrio uma permanente vigilncia para que a primeira no seja
destruda pela segunda. Essa viso corrente necessita de correes, como mostrou
Freud. A maior delas reconhecer que a oposio civilizao-barbrie no marca
campos completamente heterogneos, pois a barbrie est inserida no prprio cerne
da civilizao11.
A conformao do que Telles chama de alternncia entre civilizao e barbrie que nos
faz olhar com a acuidade necessria para o passado com perspectiva de afastar os germes
remanescentes da barbrie.
8 AMBOS,Kai. O Marco Juridico da Justia de Transio In Anistia, Justia e Impunidade Reflexes sobre a
Justia de Transio no Brasil, Belo Horizonte, Editora Frum, 2010:27 9 Idem 2010:28 10 AMBOS, Kai. O Marco Juridico da Justia de Transio In Anistia, Justia e Impunidade Reflexes sobre a
Justia de Transio no Brasil, Belo Horizonte, Editora Frum, 2010:27 11 Artigo publicado no suplemento MAIS! do jornal Folha de So Paulo em 07/03/04
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Duas grandes guerras mundiais com milhares de mortos, genocdios, centenas de
conflitos por disputas geogrficas, religiosas, tnicas, ditaduras, escravido, expuseram e
seguem como que desafiando o ser humano s prticas que chegam a ser inarrveis, diablicas,
no fossem humanas. A maior parte dos que praticaram crimes em nome de regimes autoritrios
nunca foram responsabilizados pelos seus atos.12 Em meio a impunidade de crimes praticados
contra os direitos humanos prevalece o sentimento de extenso da perseguio, da injustia.
Para Hanna Arendt Os homens no so capazes de perdoar o que no podem punir, nem punir
o imperdovel.13
Esta afirmao faz pensar no nmero de situaes que no foram redimidas e impedem
a reconstituio de relaes sociais e a paz permanente. O valor da justia de transio est em
resgatar a memria e a verdade, firmar compromissos de efetivas aes que representem o
arrependimento e a garantia de no repetio das violaes dos direitos humanos.
Ao cabo da primeira Guerra Mundial foram contabilizados dez milhes de soldados
mortos, 20 milhes de feridos e perdas civis incalculveis e na segunda Guerra Mundial um
nmero ainda maior, quase 60 milhes de mortos. Quando se tornou conhecida a ocorrncia
das gravssimas violaes dos direitos humanos cometidas pelo regime nazista, reacendeu na
opinio pblica a discusso sobre a necessidade de responsabilizar os autores de guerra e de
graves atentados aos direitos humanos, buscando, especialmente, afastar a guerra das relaes
entre Estados.
Assim a ideia de uma justia entre as naes e da criminalizao da violncia extrema da
guerra no procede unicamente da mente de juristas e pacifistas, mas sobretudo de quem
conheceu o horror da guerra.14
Em 1919, os diplomatas que redigiram os acordos de paz fundaram uma Liga das Naes
para manter a paz, com a finalidade de afastar os conflitos, supervisionar o desarmamento,
12 Teitel, Ruti. Conceitos e Debates sobre Justia de Transio in Justia de Transio: Manual para a Amrica
Latina 2011: 139-140 Organizador Flix Retegui ICTJ ABC PNUD Comisso de Anistia Braslia & Nova
Iorque 13 ARENDT, Hanna. A Condio Humana 2010 Prefcio Celso Lafer Forense Universitria -10. edio/6.
reimpresso 2007:509 Rio de Janeiro 14 Garapon Antoine. Uma Utopia do Ps Guerra-Fria, in Crimes que no se podem punir nem perdoar Para uma
Justia Internacional Instituto Piaget 2002: 22
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20
arbitrar as disputas entre as naes e garantir direitos para minorias nacionais, mulheres e
crianas. Contudo, a Liga no teve xito. Assinado em 28 de junho de 1919 o referido Acordo
no impediu o surgimento do nazismo na Alemanha, do fascismo na Itlia e mais a deflagrao
da 2 Guerra Mundial com um nmero 06 vezes maior de vtimas em relao a Primeira Guerra
Mundial, sendo a maioria de civis e seis milhes de judeus mortos pelo fato de serem judeus.
Sua fragilidade deveu-se a falta de assinatura por quem deveria ter feito como ocorreu com os
Estados Unidos cujo Senado Federal no ratificou o acordo.
No final da 2 Guerra Mundial os pases aliados - em particular os Estado Unidos, a
Unio Sovitica e a Gr Bretanha determinaram aperfeioar a Liga das Naes. Alm da
estrutura, um novo corpo internacional previu o Conselho de Segurana, no dizer de Hunt,
dominado pelas grandes potencias, uma Assembleia Geral com delegados de todos os pases e
ainda providenciou a Corte Internacional de Justia, em Haia, nos Pases Baixos, para substituir
a Liga das Naes. S aps muita presso de organizaes dos mais diversos tipos de
organizao que os funcionrios da Liga cederam e concordaram em incluir os direitos
humanos na Carta das Naes Unidas. preciso que se diga que em 1945 os compromissos
com os direitos humanos no estavam nem um pouco assegurados15.
A trgica realidade de duas guerras mundiais no mesmo sculo apontou para necessidade
de uma vigilncia constante a favor da manuteno da paz e da democracia como preservao
da prpria humanidade. Se considerarmos os modernos recursos blicos superiores aos de
cinquenta anos atrs no hesitaremos em reafirmar o dilogo como recurso adequado para
conquista e manuteno da paz.
O nmero de mortos nos conflitos armados no o nico resultado negativo das guerras,
conflitos e ditaduras. A tortura, o sequestro, os estupros, as humilhaes agudizam os
sofrimentos causados pelos perpetradores, pois violam o corpo e a alma das vtimas, atingem o
indivduo e o coletivo, transpassam os limites sociais e geracionais.
Tornar as vtimas invisveis e mudas outra caracterstica dos regimes que negam o
direito individualidade, divergncia e verdade. As leis internacionais, regra geral, so
15 Hunt, Lynn. A inveno dos direitos humanos Uma histria Traduo Rosaura Eichenberg Companhia das
Letras. So Paulo, 2009
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21
ignoradas pelos estados de exceo16, descumprindo instrumentos pactuados em processos de
promessas de manuteno da paz.
Alm dos traumas individuais e coletivos o esgaramento das relaes sociais e a quebra
de confiana nas instituies compem o cenrio de tratamento da justia transicional.
Convm admitir que a realidade das atrocidades causadas nas guerras por inimigos
externos muitas vezes no se diferencia dos crimes praticados em conflitos internos e ditaduras,
quer tenham sido praticados por grupos rivais, quer pelo prprio Estado e por seus nacionais
que disputam suas posies em campos tnicos, raciais e religiosos.
Para tratar do legado do perodo autoritrio o governo democrtico necessitar de ponte
para restabelecer o liame entre o passado e o futuro, restaurando as fendas, praticando
procedimentos que possibilitem cicatrizaes e firmando compromissos que impeam o retorno
do autoritarismo. Este tratamento do legado do passado foi chamado pelas Naes Unidas de
Justia de Transio.
O Centro Internacional para Justia Transicional ICTJ17 assim define o que a justia
de transio ou transicional:
A Justia Transicional refere-se ao conjunto de medidas judiciais e extrajudiciais que
foram implementadas por diferentes pases, a fim de corrigir os legados de macias
violaes dos direitos humanos. Estas medidas incluem processos criminais, as
comisses de verdade, programas de reparao, e vrios tipos de reformas
institucionais.
A Justia Transicional no um tipo "especial" de justia, mas uma abordagem para
alcanar a justia em tempos de transio de conflito e / ou represso do Estado. Ao
tentar alcanar a responsabilidade e reparar as vtimas, a Justia de Transio
proporciona o reconhecimento dos direitos das vtimas, promove a confiana cvica e
fortalece o Estado democrtico de direito.
tambm uma resposta a violaes sistemticas ou generalizadas dos direitos
humanos Seu objetivo reconhecer a vtima e promover iniciativas de paz,
reconciliao e democracia. A justia transicional no uma forma especial de justia,
seno uma justia adaptada a sociedade que se transforma em si mesma depois de um
perodo de violao generalizada dos direitos humanos. Em alguns casos, estas
transformaes sucedem de um momento para o outro; em outros casos podem ter
lugar depois de muitas dcadas. 18
16 AGAMBEN, Giorgio o estado de exceo um espao anmico onde o que est em jogo uma fora de lei
sem lei (que deveria, portanto, ser escrita: fora de lei) Estado de Exceo Boitempo Editorial, 2004:61 17 International Center for Transitional Justice www.ictj.org 18BICKFORD, Louis. What is transitional justice? Transitional justice, op., cit ICTJ.
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22
A Justia de Transio no uma justia superior ou inferior. Ela uma justia que,
diferente da justia retributiva, visa alm da correio e recomposio, especialmente uma
mudana no conflito, na superao do prprio conflito e na reparao dos atos decorrentes do
conflito.19
Antoine Garapon assim distingue a justia retributiva e a justia reconstrutiva:
Justia retributiva e justia reconstrutiva no partilham nem a mesma anlise da
violncia criminosa nem a mesma concepo do tratamento que deve ser dado. Para
a justia retributiva, o mal est no insulto feito lei. No surpreende constatar que
aqueles que veem no crime contra a humanidade um atentado contra aquilo que h
de humano no homem20 preferem uma soluo judicial e repressiva. O modelo
retributivista, para o qual a pena no se justifica em si mesma, abstraindo-se de
qualquer outra finalidade, como a de reinserir o delinquente ou proteger a sociedade
constri-se em torno do postulado da universalidade da lei. Nessa perspectiva, o
universal est do lado da lei natural, de uma natureza humana: por isso que a
resposta aos crimes que transgridem essa lei deve-se de igual modo, ser a mais
homognea possvel por todo o mundo. Esta posio pode conduzir a um imperialismo
cultural, ao impor uma soluo nica processos do tipo Norumberga -, ou mesmo
uma espcie de fundamentalismo judicirio defasado da situao concreta de cada
pas.
Ou seja, no entender de Garapon o crime contra a humanidade est menos para o crime
contra o direito natural e mais para violao de uma relao, dando justia mais o sentido de
reconstrutora dessa relao. Nesta definio a vergonha, resultado da ao, est para o direito
restaurativo como a priso est para o direito retributivo.
A justia reconstrutiva pretende a reabilitao da vtima, a revelao da verdade,
valendo-se de uma cerimnia de linguagem e uma celebrao de consentimento, para reparar o
grupo poltico no seu todo. Enquanto a justia retributiva visa punio, a justia restaurativa
visa reconciliao.
A adoo dos mecanismos da Justia de Transio depende de vrios fatores. A histria
de cada Estado envolvido no conflito, da cultura, a durao do conflito, o contexto internacional
no perodo de transio so fatores que interferem decisivamente na aplicao da justia de
transio. Simone Rodrigues Pinto assim discorre:
19 AMBOS, Kai Anistia. Justia e Impunidade Reflexes sobre a Justia de Transio no Brasil, Editora Frum,
2010, Belo Horizonte 20 ARENDT, Hanna. Quest-ce que la politique? Op. cit. In Garapon Crimes que no se podem punir nem
perdoar Para uma Justia Internacional, Instituto Piaget 2002:248
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23
A durao e a gravidade dos crimes influenciam muito. Se a represso se deu em
perodo curto, pode ser que instituies democrticas anteriores no tenham sido
eliminadas totalmente e uma cultura de direitos humanos possa ser restaurada.
Estatutos de limitao nesses casos so improvveis de ser adotados.
O contexto internacional pode tambm influenciar as medidas adotadas nos pases que
sofreram destituio de governos democrticos. No perodo de transio na Blgica,
Holanda e Frana, por exemplo, as normas internacionais de direitos humanos ainda
eram muito incipientes. J hoje, a censura internacional aos abusos aos direitos
humanos muito maior, criando uma grande presso para que os violadores no
fiquem impunes. Outros fatores tambm contribuem para a definio da poltica de
transio como por exemplo, a memria coletiva, que determina a inclinao para
esquecer e perdoar.21
As experincias de aes que ultrapassam as fronteiras geogrficas dos pases so
incentivadas pelas decises das cortes internacionais. A considerar que os direitos humanos tm
o condo de serem bens da humanidade legtimo a defesa moral, jurdica e poltica dos direitos
humanos independente do solo que tenha sido transgredido.
A escolha da melhor poltica de mecanismos para tratar com o legado de grandes
violncias praticadas no passado, para assegurar a responsabilizao, promover justia e obter
a reconciliao um grande desafio para o governo de transio. A deciso do que fazer com
crimes do passado passa por embates muitas vezes altamente polarizados e aparentemente
imodificveis.
De um lado esto os que se posicionam por virar a pgina sem olhar o passado, sem
investigar os fatos, a pretexto de afastar-se de aes que possam ser identificadas como
revanchistas e desestabilizadoras da nova ordem. De outro os que defendem a mais ampla
revelao do que ocorreu no passado sob o argumento que no se pode virar a pgina do livro
da histria sem antes t-la lido. Esses indicaro a exigncia de buscar meios de justia para
iluminar os fatos e revelar os envolvidos. De toda forma, uma ou outra escolha poltica, destaca
Simone Pinto ter que passar por duas questes chaves: Reconhecimento (reprovao moral) e
Responsabilizao (punio). 22
21PINTO, Simone Rodrigues: No reconhecer que houve crime e no responsabilizar os culpados representa um
convite recorrncia do abuso alm de configurar um desprezo pelos sentimentos das vtimas, serve tambm
para demonstrar o compromisso do novo Governo com os valores legais e democrticos Memria, verdade e
responsabilidade, 2012:61-62
2012:74 PINTO, Simone Rodrigues. Memria, verdade e responsabilidade Uma perspectiva restaurativa de
justia transicional Editora Unb 22 PINTO, Simone Rodrigues. Memria, verdade e responsabilidade, , 2012:61
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24
Dois pilares so vitais na superao do passado autoritrio: a justia e a transio. O que
se pretende com a poltica transicional estabelecer tratamento adequado das violaes e que
se cumpra o papel de ponte do locus anterior a violncia do passado e o locus do presente em
vista das perspectivas democrticas.
A construo da ponte firme para efetivar a passagem depender, sobremaneira, do
debate poltico, no dizer de Simone Rodrigues Pinto, e da disposio dos personagens que
atuaro no processo. 23
Se por um lado trata-se de tarefa desafiadora desfilar os processos de rupturas desde a
antiguidade, por outro lado no difcil acompanhar o pensamento de Jon Elster24 quanto a
ideia de reconhecimento da busca de mecanismos para superar legados do passado, ainda que
no se deva equiparar ao processo desenvolvido no sculo XX. Para ele a idia da justia de
transio to antiga quanto a prpria democracia.
O marco inicial seria a experincia ateniense, entre 411 e 403 a.C. quando a passagem da
democracia para oligarquia, seguida da volta dos democratas ao poder, foi acompanhada de
medidas punitivas, contra os oligarcas, e da promulgao de novas leis que visavam dissuadir
futuras tentativas de tomadas de poder. Se no primeiro momento no foram atacadas as causas
que levaram ao golpe oligrquico e o principal mecanismo adotado foi a punio em 403,
buscando principalmente a reconciliao, os democratas que voltaram ao poder reagiram de
forma diversa, aprovando mudanas constitucionais com o objetivo de eliminar determinados
aspectos da legislao que teriam causado a interrupo do governo democrtico, o que vale
dizer que a poltica de superao das prticas antidemocrticas feita a partir de experincias
anteriores, ainda que se leve em conta as particularidades de cada realidade.
Num primeiro momento a transio foi acompanhada de medidas punitivas contra os
oligarcas e da promulgao de novas leis que visavam afastar futuras tentativas de tomada de
poder. Esta poltica de punio fez com que as causas que levaram ao golpe oligrquico no
fossem revisadas.
23 Idem 2012 2012:61 24 ELSTER, Jon Closing. The Books Transitional Justice in Historical Perspective The press Syndicate of the
University of Cambridge, september 6, 2004
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25
J em 403, buscando principalmente a reconciliao, os democratas que voltavam ao
poder reagiram de forma diversa, aprovando mudanas constitucionais com o objetivo de
eliminar determinados aspectos da legislao que teriam causado a interrupo do governo
democrtico.
Para Elster, naquele momento surgiram as principais caractersticas do que s
recentemente viria se tornar conhecido como Justia de Transio, com o reconhecimento de
punio aos perpetradores e o direito de compensao s vtimas.
O uso de mecanismos de Justia de Transio na restaurao de monarquias tambm teria
ocorrido muitas vezes na histria da humanidade. Exemplifica o mesmo autor com o caso da
Frana, sculo XIX, que durante a Segunda Restaurao, os Bourbons adotaram amplas
medidas de punio e reparao, que incluram expurgo na burocracia e o pagamento de
indenizaes. Porm, Elster acentua que no h registros importantes de justia de transio em
novas democracias como as ocorridas em Atenas e a da metade do sculo XX.
Assim verifica-se a proeminncia dos principais conceitos da Justia de Transio, mais
especificamente a categoria de vitimrios ou criminosos, e a de vtimas, geralmente reparadas
por intermdio de compensao. 25
Para Teitel a Justia Transicional pode ser definida como a concepo de justia
associada a perodos de mudana poltica caracterizados por respostas no mbito jurdico, que
tem o objetivo de enfrentar os crimes cometidos por regimes opressores do passado26.
25 ELSTER, Jon. Closingthe books: transitional justice in historical perspectiva, Nova York, Cambridge
University Press, 2004, p. 3-4, 8, 21-22, 24, 45-47 26 TEITEL, Ruti. Genealogia da Justia Transional in Justia de Transio Manual para a Amrica Latina
coordenao de Felix Retegui Brasilia ; Nova Iorque Centro Internacional para Justia de Transio
2011:135
-
26
Enquanto para alguns autores a Justia de Transio o intervalo dado entre um regime
poltico e outro27 para outros, a Justia de Transio o perodo que sucede ao fim do conflito.
28
Um elemento importante no resgate da verdade que se prope a justia de transio diz
respeito histria registrada. Arendt faz meno a inmera quantidade de documentos que
comeou aparecer em decorrncia do julgamento dos principais criminosos de guerra, em 1946,
em Nuremberg aps a edio de seu livro Origens do Totalitarismo, em 1958, o que a provocou
aditar e substituir sua obra. No obstante a importncia da revelao dos documentos reside
muito mais na necessidade de uma gerao responder O que havia acontecido? Por que havia
acontecido? Como pode ter acontecido?.
Arendt ainda destaca a quantidade de informao que foi descoberta no quartel-general
de Smolensk, quando de sua captura pelos norte-americanos, 200 mil pginas de documentos,
praticamente intactas; no entanto sabido que o acervo muito maior pois os registros
encontrados no contem a indicao do nmero de vtimas, dados estatsticos vitais e ainda
sofrem a contradio de informaes.
A deliberada omisso de fornecimento de documentos que contribuam para o
esclarecimento dos fatos tem sido prtica dos regimes autoritrios. Oferecer um livro com
pginas em branco obstaculizar o direito das vtimas e da sociedade de conhecer a Histria, a
Verdade e a identidade de Nao.
Experincias como as de frica do Sul, Serra Leoa, Alemanha e tantas mais revelam as
escolhas que os pases que estiveram envolvidos em graves violaes muitas vezes tiveram que
fazer para garantir uma transio sem volta, dada s suas instabilidades polticas. E assim que
em lugar de responsabilizar os vencidos autores de graves violaes os Estados optam pela paz
em lugar da responsabilizao e concedem anistia como forma de esquecimento e quitao de
culpas.
27Referencia a Guilhermo ODonnell e Philippe C. Scmitter, Transition Front Authoritarian Rule: Tentativa
Conclusions About Uncertain Democracies 6 (1998) feita por RutiTeitel in Genalogia da Justia Transcional
135:2011 28 ZYL, Paul van. Promovendo a Justia Transicional em sociedade ps conflito in Justia de Transio Manual
para a Amrica Latina coordenao de Felix Retegui Brasilia ; Nova Iorque Centro Internacional para
Justia de Transio 2011:47ss
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27
Como ocorreu em El Salvador, pas arrasado por uma longa guerra que matou
aproximadamente cem mil pessoas e outras tantas encontram-se desaparecidas quando o ex-
presidente, Mauricio Funes, pediu perdo pela violncia contra crianas, mulheres e
camponeses de Monzote que sofreram bombardeios sem que nada e ningum lhes pudesse
proteger, dizimando quase toda a populao.
Ocorre que os responsveis pelos ataques sequer demostraram arrependimento e os
sobreviventes no contam com nenhuma poltica de reparao que alivie seus sofrimentos
fsicos. o exemplo de pedido sem efeito, os vitimrios no declararam arrependimento e as
vtimas no esto seguras que a violncia que lhes atingiu no poder se repetir.
tambm com um caso de El Salvador que ilustro a dificuldade de conceder o perdo:
Na segunda sesso do Tribunal de Justia Restaurativa de El Salvador, ocorrida em maro de
2010, no Departamento do Suchitoto, Mario Zamora Filho foi ouvido como vtima e
testemunha. O jovem salvadorenho contou aos membros do Tribunal que seu pai, Mario
Zamora, Procurador da Repblica de El Salvador, amigo de Dom Oscar Romero, foi executado
por grupos paramilitares.
A Testemunha relatou que homens mascarados invadiram a residncia, renderam todos
os presentes obrigando-os a permanecerem deitados no cho, e, em seguida, levaram o pai para
um banheiro e o assassinaram com arma silenciosa.
Contou ainda que sua me por acreditar que no entregando as chaves das portas
impediria os criminosos de sequestrar o marido escondeu as chaves. Deitada no cho escondia
as chaves e protegia o filho sob seu corpo o que a fez sofrer vrias agresses. A testemunha
tinha poca por volta de 6 anos e lembra-se de ter sentido no seu corpo os golpes que a me
sofreu. Com muita emoo Mario Zamora Filho, hoje com aproximadamente 40 anos de idade
pergunta aos membros do Tribunal:
Me pedem para perdoar, e, eu quero perdoar.
A quem devo perdoar?
Quem matou meu pai?
Quem deu ordens para matar meu pai?
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28
O Pedido de Desculpas tem rosto ao contrrio dos algozes de Mario Zamora que agiram
de rosto encoberto. E assiste razo a Mario, s ele como vtima pode perdoar quem roubou da
morte o desfecho da vida de seu pai, como referiu-se Hanna Arend.29
1.1 Genealogia e instrumentos da Justia de Transio
A considerar a importncia de todos os instrumentos da Justia de Transio, a saber, a
reparao, a busca da verdade e a construo da memria, a regularizao da justia e o
reestabelecimento da igualdade perante a lei e a reforma das instituies perpetradoras de
violaes contra os direitos humanos30, permissvel afirmar que o conhecimento da verdade
talvez seja o elemento mais sensvel que a Justia de Transio pode oferecer. O conhecimento
da verdade o ncleo central da poltica transacional, o que d robustez a realizao dos demais
instrumentos e que legitima o pedido de perdo. No se pode pedir perdo do que no se lembra,
to pouco com esquecimentos, sonegaes e omisses histricas.
A liturgia dos procedimentos de reparaes morais e econmicas devem compreender: (i)
a reparao; (ii) a busca da verdade e o resgate da memria; (iii), a regularizao da justia e
restabelecimento da igualdade perante a lei; (iv) a reforma das instituies perpetradoras das
violaes contra os direitos humanos31. As medidas reparatrias visam atenuar os sofrimentos
causados pelos vencidos e adoo de medidas que alcancem a paz duradoura.
A Justia de Transio tem merecido em quase todo o mundo rica literatura de
expressivos autores que publicaram as mais avanadas pesquisas e estudos. Ganha particular
destaque o fato dos referidos autores e autoras serem, em sua maioria, ativistas das lutas pela
superao do autoritarismo e sentinelas da preservao das democracias. Com pesquisas que
29 ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo, So Paulo, Companhia ds Letras, 2004:498 Trad. Roberto
Raposo 30 TEITEL, Ruti. Transitional Justice. Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 2000; bem como
ZALAQUETT, Jos. La reconstruccin de la unidad nacional y el legado de violaciones de los derechos humanos.
In: Revista Perspectivas, Facultad de Ciencias Fsicas y Matemticas, Universidad de Chile, Vol. 2, Nmero
especial, 20 p.; e GENRO, Tarso. Teoria da Democracia e Justia de Transio. Belo Horizonte: EDUFMG,
2009. 31 ABRO, Paulo e Genro, Tarso. Os Direitos da Transio e a Democracia no Brasil Estudos sobre Justia de
Transio e Teoria da Democracia Editora Frum 2012:59
-
29
antecedem a 1. Guerra Mundial os autores partem de procedimentos adotados, ou no, de
responsabilizao, para superao dos traumas e adoo de mecanismos para efetivao da
transio.
A Justia de Transio transcorre em contexto temporal, poltico, social e cultural. De
acordo com essa Justia o perdo o resultado de um processo restaurativo. Com linguagem
prpria, capaz de liberar a memria para o esquecimento consentido, para, enfim, promover a
Reconciliao mediante a promessa de no repetio.
As experincias de povos e grupos que adotaram polticas de justia restaurativa tm
demonstrado importantes resultados na harmonizao e reconciliao nacional. o caso da
frica do Sul que diante do reconhecimento dos erros praticados pelos perpetradores as vtimas
puderam, na grande maioria, aceitar o pedido de perdo, libertando um e outro do pesado
passado de graves violaes.
Esta tem sido a misso da Justia de Transio: restabelecer pontes onde as violaes de
direitos humanos ocorreram de forma sistemtica ou generalizada. Afirma o ICTJ:
Elementos de una poltica de justicia transicional integral
Los elementos que componen las polticas de justicia transicional no constituyen una
lista azarosa, sino que estn interrelacionados prctica y conceptualmente. Los ms
determinantes son:
Las acciones penales, sobre todo contra los criminales considerados de mayor
responsabilidad.
Las reparaciones que los Gobiernos utilizan para reconocer los daos sufridos y tomar
medidas para abordarlos. Esas iniciativas suelen tener un componente Material (como
los pagos monetarios o los servicios sanitarios), as como aspectos simblicos (como
las disculpas pblicas o los das del recuerdo).
La reforma de instituciones pblicas implicadas en los abusos -como son las fuerzas
armadas, la polica y los tribunales-, con el fin de desmantelar, con los procedimientos
adecuados, la maquinaria estructural de los abusos y evitar tanto la repeticin de
violaciones de derechos humanos graves como la impunidad.
Las comisiones de la verdad u otras formas de investigacin y anlisis de pautas de
abuso sistemticas, que recomiendan cambios y ayudan a comprender las causas
subyacentes de las violaciones de derechos humanos graves.
No estamos ante una lista cerrada. Cada pas va incorporando nuevas medidas. La
memorializacin, por ejemplo, que se compone de diversas iniciativas destinadas a
mantener viva la memoria de las vctimas mediante la creacin de museos y
monumentos, y otras medidas simblicas como el cambio de nombre de los espacios
pblicos, se ha convertido en parte importante de la justicia transicional en la mayora
de los pases del mundo.
A pesar de que las medidas de justicia transicional se asientan en slidos compromisos
jurdicos y morales, los medios para satisfacerlos son muy diversos, de modo que no
hay una frmula nica para todos los contextos.
http://ictj.org/es/our-work/transitional-justice-issues/justicia-penalhttp://ictj.org/es/our-work/transitional-justice-issues/reparacioneshttp://ictj.org/es/our-work/transitional-justice-issues/reforma-institucionalhttp://ictj.org/es/our-work/transitional-justice-issues/verdad-y-memoria
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30
La justicia transicional es el conjunto de medidas judiciales y polticas que diversos
pases han utilizado como reparacin por las violaciones masivas de derechos
humanos. Entre ellas figuran las acciones penales, las comisiones de la verdad, los
programas de reparacin y diversas reformas institucionales32.Grifo nosso.
Caracteriza-se a Justia de Transio como reconhecimento da vtima e promoo de
iniciativas de paz, reconciliao e democracia. Compem a Justia de Transio procedimentos
de reparaes morais e econmicas, o pedido de perdo, as medidas indenizatrias, o resgate
da memria, a afirmao da verdade e a responsabilizao dos agentes causadores dos prejuzos
decorrentes das perseguies polticas. As medidas reparatrias visam atenuar os sofrimentos
causados pelos vencidos.
Esta referncia reflete a realidade histrica que testemunha um grande nmero de
guerras, conflitos internos que causaram grandes sofrimentos e at mesmo a erradicao de
povos e culturas. As marcas das guerras ultrapassam fronteiras e atingem moralmente a
humanidade. difcil precisar qual o conflito, qual a ditadura, que guerra foi mais avassaladora,
pois qualquer violncia que atinja os indivduos fere a dignidade da humanidade.
Este o cerne da questo: Como tratar o legado das guerras, das ditaduras, dos conflitos
tnicos, religiosos na perspectiva da reconciliao? Bauman33 que pergunta o que teria feito
com que milhares matassem e milhes assistissem os assassinatos sem protestar? E querendo
aplicar o questionamento do socilogo polons para outras realidades me pergunto o que teria
feito com que milhares de vidas fossem sacrificadas pelas ditaduras da Amrica Latina, da sia,
pases do Leste europeu ou ainda nas guerras fraticidas da frica muitas vezes em meio a um
silncio autorizativo de tais massacres?
Nos espaos de falas que ocorrem nos fruns de resgate da verdade, nota-se que os
algozes agiam com tamanha crueldade como se as vtimas no pertencessem universalidade
albergada por direitos consagrados em constituies, pactos, convenes. Desde as investidas
de disseminao de preconceitos, de segregao, s caadas como de animais violentos, s
capturas, com todos os preenchimentos de atentados contra integridade fsica, moral e
psicolgica, na maioria das vezes para obteno de informaes, verifica-se que os agressores
agem sem reconhecimento, sem proximidade, sem sentimento de igualdade com a vtima.
32 Disponvel em: Acesso em 20 de outubro de 2014). 33BAUMAN, Zygmann. Traduo Marcus Penchel, 97:1989, Modernidade e Holocausto, Jorge Zahar, Justia
de Transio Editor Rio de Janeiro
http://ictj.org/es/que-es-la-justicia-transicional
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31
Para Bauman a proximidade significa responsabilidade e, responsabilidade
proximidade, ou seja, uma depende da outra. Afirma o socilogo polons que a
responsabilidade surge da proximidade com o outro e o tijolo constitutivo de todo o
comportamento moral. a responsabilidade que me faz sujeito34.
O fim da Justia de Transio resgatar a proximidade que foi rompida pelo arbtrio de
aniquilamento do outro. O tema da responsabilizao ganha ainda maior relevncia pois uma
nova sociedade pressupe o resgate da ideia de responsabilidade para no incorrer em repetio
do passado.
O cenrio de alternncia e fracasso dos compromissos a favor da paz confirmam a tese
que pactos, convenes, estatutos no afastam a incerteza do propsito. Da a necessidade da
vigilncia a favor da democracia e a consolidao dos instrumentos a favor dos direitos da
humanidade.
A Justia de Transio no uma forma especial de justia, mas sim a prpria justia
que corresponde a necessidade de transformao da sociedade. Em alguns casos estas
transformaes ocorrem imediatamente aps o cessamento do regime de exceo, em outros
casos podem ocorrer em muitas dcadas.
Para Aristteles a justia dar a cada um o que seu o que equivale em justia
restaurativa resgatar a autoestima e a dignidade dos que a tiveram subtrada por atos
autoritrios. Na justia restaurativa o resgate da dignidade das vtimas mais importante que a
punio dos culpados.
A pergunta que ecoa longe quanto tempo pode durar a transio? A transio tem data
para comear? e qual a data para terminar?
Wladimir Safatle, autor, colunista da Revista Carta Capital, in nmero 788, de 26 de
fevereiro de 2014, assinou o artigo A eterna transio. No referido artigo o jornalista afirma
que no Brasil vende-se a falsa verso de que o Brasil seria um pas de reconciliao fcil, capaz
34 Idem 332.p.212.
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de mobilizar todos os setores da sociedade para uma superao de traumas passados. No
mesmo artigo o jornalista afirma que os traumas no so superados simplesmente por nunca
serem nomeados pelo fato de no os enfrentarmos, como mostram as reflexes sobre os 50
anos do golpe. Suas principais crticas dizem respeito matria veiculada e atribuda ao general
Rmulo Beni Pereira35 que sem qualquer sentimento de constrangimento tratou da grandeza
da Revoluo de 64 e do prprio veculo de comunicao que teve participao de apoio aos
militares que deram o golpe.
Por fim o articulista reclama a necessidade de se colocar claramente como objetos de
repdio pblico aqueles que destruram no apenas 20 anos da histria brasileira e contriburam
para um presente ainda assombrado pelos piores fantasmas. De fato, chama a ateno o fato
de o regime autoritrio ter sido deposto e os ex-representantes continuarem com posturas
ufanistas.
A corrente majoritria faz coro com o articulista quando defende que a transio no tem
data predeterminada. Enquanto subsistirem reminiscncias do passado autoritrio vigora a
necessidade de ao de polticas que restabeleam as condies de convivncia democrtica e
a transio segue inconclusa.
A Justia de Transio diz respeito exigncia tica, moral, antropolgica para o
conhecimento da verdade onde prevaleceu o obscurantismo e a mentira, para o resgate da
memria onde o silncio autoritrio imps o esquecimento obsequioso, para a prtica da justia
como condio da prevalncia da paz e para a concesso do perdo como gesto de repactuao
com os que se arrependeram e assumem efetivos compromissos de no repetio.
Os regimes de exceo decorrentes de guerra, conflitos raciais, tnicos, religiosos,
ditaduras, causam prejuzos individuais e coletivos, violam os direitos individuais e
desumanizam os perpetradores, agentes pblicos e outros indivduos envolvidos nas agresses.
A Justia de Transio estabelece as regras democrticas de convivncia e de
desenvolvimento coletivo e celebra uma nova legislao que visa a manuteno da paz e a no
repetio dos erros do passado.
35 General de Exrcito da RI (da Reserva) foi chefe de Estado-Maior da Defesa (2004)
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A Justia de Transio mais ampla que a justia praticada pelos poderes constitudos.
Isto decorre da necessidade que ela tem de contar com o especfico das instituies e se valer
do melhor de todos para o resultado almejado. Da se poder afirmar que a Justia de Transio
supera limites estritos dos poderes executivo, legislativo e judicirio para alcanar a justia no
sentido amplo.
As feridas, rupturas, prejuzos de ordem moral, econmica e psicolgica, individuais e
coletivas decorrentes de violao macia dos direitos humanos, especialmente aquelas
praticadas por agentes em nome de instituies governamentais, necessitam da profilaxia,
realizada pelos governos democrticos. o que afirmou a presidente do Chile, Michele
Bachelet (2006): somente as feridas lavadas podem ser curadas.36
Para bem cumprir a passagem do autoritarismo para a democracia a Justia de Transio
recomenda um conjunto de mecanismos para enfrentar o legado de violaes de direitos
humanos, com vistas a contribuir para o resgate da memria e superar prticas advindas do
modelo autoritrio.
Cecilia MacDowell Santos37 em seu artigo Questes de Justia de Transio: a
mobilizao dos direitos humanos e a memria da ditadura no Brasil, apresentado no
Seminrio Internacional Represso e Memria Poltica no Contexto Luso-Brasileiro,
promovido pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em parceria com a
Comisso de Anistia do Ministrio da Justia do Brasil, em 21 de abril de 2009, na cidade de
Coimbra-Portugal,38 relembra que o termo transicional justice (Justia de Transio) foi
cunhado pela professora Ruti Teitel, em 1991, referindo-se aos processos de transformao
poltica e jurdica nos contextos de transies para as novas democracias na Amrica Latina
e na Europa do Leste.
Para Ruti Teitel Justia de Transio oferece um importante marco terico para se
compreender as prticas jurdicas, sociais e polticas que envolvem o trabalho da
memria poltica e da justia histrica, com limites analticos,
(...)
36 Disponvel em: S feridas limpas
podem cicatrizar Michelle Bachelet, entrevista a Der Spiegel, 11/03/06. 37 Santos, Ceclia Macdowell. Professora Associada de Sociologia da University of San Francisco, EEUU. 38 A palestra da prof. Ceclia Macdowell Santos Questes de Justia de transio: a mobilizao dos direitos
humanos e a memria da ditadura est publicada no livro Represso e Memria Poltica no Contexto Ibero-
Brasileiro, publicado em 2010 pela Comisso de Anistia/MJ, PNUD, e entidades parceiras. 2012:129
http://www.trela.com.br/arquivo/S-feridas-limpas-podem-cicatrizar
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... prope uma abordagem indutiva, construtivista e contextualizada da Justia de
Transio. O Estado de direito adquire caractersticas excepcionais em momentos
fundacionais como os de transio poltica em oposio a momentos de
normalidade poltica: tanto prospectivo quanto retrospectivo, contnuo e
descontnuo, e vai alm de suas funes habituais, interligando-se poltica em um
esforo construtivo.
Ainda citando Macdowell a funo do direito promover a construo da mudana
poltica, manifestaes jurdicas transicionais so mais vivamente afetadas por valores polticos
em regimes de transio do que em contextos onde o Estado de Direito encontra-se firmemente
estabelecido por esta poltica. Em momentos de transio, diferentes ramos do direito
contribuem para transformaes radicais da comunidade poltica, e o direito orienta-se para um
novo paradigma. Argumenta a autora que, nos momentos de transio poltica, o direito tanto
constitutivo da poltica de transio, como constitudo: a jurisprudncia de transio.
Distinto do que se possa sugerir no existe um s modelo de Justia de Transio. A
histria de cada povo, com sua cultura, a dominao sofrida, a condio poltica, sobretudo,
determina os modelos adotados no perodo ps conflito.
Simone Rodrigues Pinto,39 in Memria, verdade e responsabilidade, descreveu trs
processos de pases envolvidos em graves violaes de direitos humanos e processos de Justia
de Transio, Ruanda, frica do Sul e Serra Leoa: 40
Primeiro caso: Ruanda. A autora tratou do genocdio ocorrido em 1994. Em Ruanda,
afirma a autora, foram empregadas para dirimir as controvrsias e julgar centenas de acusados
de agresso e morte de membros da etnia oponente, aproximadamente oitocentos mil pessoas,
assassinadas num perodo de cem dias, modelos de justia adversativa e retributiva e tambm
o Tribunal Internacional, sediado em Arusha para julgar os mentores do massacre, tribunais
locais e alternativas domesticas. Contudo, este modelo encontrou grande dificuldade para
contribuir com a reconciliao social daquele pas, no dizer da autora, rasgado pela rivalidade
tnica41. Sem estrutura e com graves denncias de corrupo o Tribunal Internacional tem um
grande gasto, um nmero pequeno de julgamentos e de condenao. Uma contradio existe
entre o Tribunal Internacional e o Domstico, enquanto o Tribunal Internacional no aplica a
39PINTO, Rodrigues Pinto. Memria, verdade e responsabilidade, Editora UNB,Universidade de Brasilia
19:127ss2012 40 Idem 20:2012 41 Idem 20:2012
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pena de morte o Tribunal Domestico a aplica. O Tribunal Domstico pautado de rigoroso
formalismo de procedimentos judiciais, adepto da tradio germnica-romana e se vale da
lngua francesa mesmo que esta no seja falada em algumas partes do pas. Nem o Tribunal
Internacional nem o Domstico tem sido capazes de evitar as divises internas que se acirraram,
perpetuando a oposio entre vtimas e perpetradores, tutsis e hutus. Simone Pinto considera
que o afastamento da comunidade no processo seja negativo, dificultando o restabelecimento
das relaes sociais prprias no processo de dilogo e da expresso dos sentimentos. Aps seis
anos da priso dos acusados, Ruanda despertou para necessidade de experimentar uma nova
frmula de justia, os chamados tribunais gacaca, formados pela prpria comunidade local, que
aplicavam medidas de restaurao psicossocial das vtimas e de reintegrao dos perpetradores
e que, diante da incapacidade dos meios formais de justia, buscavam uma resposta mais eficaz
frente ao desafio do restabelecimento do convvio social e pacifico e solidrio.42
O segundo caso cronologicamente anterior ao de Ruanda, tratou o processo de transio
ps-apartheid na frica do Sul43. Nesse processo, em lugar de uma concepo de justia
retributiva, o que se buscou com a Comisso da Verdade e Reconciliao foi uma nova viso
de justia, centrada no perdo e na restaurao da dignidade das vtimas e dos acusados. A
frica do Sul insere-se no grupo de pases envolvidos em conflitos que optou por valorar
prioritariamente a busca da verdade e o reconhecimento dos prejuzos causados em lugar da
punio. Com forte influncia religiosa a comisso da verdade e reconciliao foi presidida pelo
bispo anglicano Desmond Tutu. Simone Rodrigues Pinto lembra que o bispo africano um dos
maiores defensores das comisses da verdade e da justia restaurativa e que para ele esta forma
de justia no est baseada apenas em ideias crists de perdo para aqueles que reconhecem
seus erros mas tambm no conceito indgena africano de ubuntu44 . Ubuntu na tradio africana
est ligada busca de harmonia social. Nas palavras de Tutu: Um ser humano s um ser
humano atravs dos outros e se um deles humilhado ou diminudo o outro ser igualmente.
E o terceiro caso o de Serra Leoa. Serra Leoa tambm procedente de uma histria de
sujeio s colnias. Rica em minrios, especialmente diamantes, herdeira de um passado de
escravido e disputas internas, aps 11 anos de guerra civil, sanguinria, com requintes de
perversidade com prticas reiteradas de amputaes, o pas logrou em 1998 um acordo de paz
42 Idem 20:2012 43 Idem 2012:167 44 PINTO, Simone Rodrigues. Memria, verdade e responsabilidade Uma perspectiva restaurativa de justia
transicional Universidade de Braslia Editora UNB 2012:178
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que consistia em anistia geral, desarmamento e desmobilizao das tropas e o estabelecimento
de uma comisso da verdade e reconciliao45. Contudo o representante especial da ONU fez
constar no Acordo que a anistia e o perdo no se aplicavam a crimes internacionais de
genocdio, crimes contra humanidade, crimes de guerra e outras srias violaes do direito
humanitrio internacional. Tempos depois essa ressalva se tornou o fundamento do
estabelecimento da Corte Especial em Serra Leoa. Alm de outras medidas de carter poltico
e administrativo as partes tambm concordaram com a criao de uma fora de paz neutra,
formada por um contingente de pas diversos (RASHID, 2000). Em maro de 2002 foram
realizadas eleies presidenciais e parlamentares com a participao das foras rebeldes da
Frente Revolucionria Unida FRU - inaugurando perodo considerado exemplar para as
Naes e grupos que vivem conflito.46
Enquanto Ruanda representa a nfase nos modelos de justia retributiva e adversativa
(com exceo dos tribunais gacaca) e a frica do Sul surge como exemplo de opo poltica
pela justia restaurativa e dialgica, Serra Leoa tenta conjugar os dois modelos, por meio da
Comisso da Verdade e Reconciliao e a Corte Especial ambas com a funo de promover a
reconciliao nacional.47 A deciso do Conselho de Segurana da ONU, de agosto de 2009, foi
pelo estabelecimento de um tribunal para os crimes de guerra e para as violaes dos direitos
humanos, dotando um modelo diferente dos tribunais internacionais da Iugoslvia e de Ruanda.
O principal objetivo do processo visava a reintegrao das mulheres que sofreram abusos
sexuais e escravido e das crianas transtornadas pela guerra.
Em junho de 2000, o ento presidente de Serra Leoa, Almad Tejam Kabbah, escreveu ao
secretrio-geral da ONU requerendo a assistncia das Naes Unidas para estabelecer uma corte
a fim de julgar pessoas que cometeram atrocidades no pas. Em 14 de agosto do mesmo ano, o
Conselho de Segurana aprovou a resoluo que permitiu que a Corte Especial fosse
estabelecida. A resoluo requeria ao secretrio-geral a negociao de um acordo com o
governo de Serra Leoa para a construo da corte. O acordo de Lom, firmado entre o Governo
de Serra Leoa e a Frente Revolucionria Unida FRU - garantiu liberdade e perdo absoluto
45 Idem 2012:203 46 Idem 2012:193 47 Idem 2012:195
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s pessoas que participaram da guerra em Serra Leoa, desde 1991, por qualquer ato durante o
curso do conflito, antes da assinatura em 07 de julho de 1999.48
Um dos graves crimes praticados em Serra Leoa foi contra crianas que foram recrutadas
para guerra, com idade inferior a 15 anos. Sob efeito de drogas pesadas as crianas praticaram
terrveis violaes contra os direitos humanos. Sua reabilitao e reinsero sociedade
representa uma das maiores tarefas relativas reconstruo do pas.
Se a idade poca atestava serem crianas, por outro lado muitas crianas tinham cargo
de comando nas foras da Frente Revolucionria Unida FRU, o que impe medidas punitivas
adequadas necessidade de proteo da infncia.
A Corte Especial tomou caractersticas diferentes das anteriores, no tratou de ser uma
Corte puramente internacional nem exclusivamente domstica de Serra Leoa. uma mistura
de dois sistemas, com aplicao do direito internacional e a lei interna do pas.
Teitel descreve as fases distintas da Justia de Transio e destaca que o Estado de Direito
adquire caractersticas excepcionais em momentos fundamentais como os de transio
poltica (em oposio a momentos de normalidade e poltica) tanto prospectivo quanto
retrospectivo, contnuo e descontnuo, vai alm de suas funes habituais, interligando-se a um
esforo construtivo. O estado de direito encontrado visa promover a construo da mudana
poltica, manifestaes jurdicas transicionais so mais vivamente afetadas por valores polticos
em regimes de transio do que em contextos onde o Estado de Direito encontra-se firmemente
estabelecido. 49
salutar que se reafirme que as origens da Justia de Transio moderna remontam
Primeira Guerra Mundial. Contudo, a Justia de Transio comea a ser compreendida como
extraordinria e internacional no perodo do ps-guerra, depois de 1945. Esta segunda fase se
associa com a onda de transies at a democracia e modernizao que comeou em 1989. At
48PINTO, Rodrigues Pinto. Memria, verdade e responsabilidade, Editora UNB,Universidade de Brasilia
203:2012 49 TEITEL, Ruti in Justia de Transio Manual para a Amrica Latina Conceitos e Debates para Justia de
transio Produto do Acordo de Cooperao Tcnica BRA/08/021 Cooperao para o intercmbio
internacional, desenvolvimento e ampliao das Polticas de Justia de transio no Brasil, firmado entre a
Comisso de Anistia do MJ, MRE e PNUD e desenvolvida pelo ICTJ Braslia 2011:215
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o final do sculo XX a poltica mundial se caracterizou por uma acelerao em resoluo de
conflitos e um persistente discurso por justia no mundo do direito e sociedade.
Por fim a terceira fase, o estado estvel, na qual a Justia Transicional est associada com
as condies contemporneas do conflito persistente que alcanam as bases para estabelecer
como normal um direito de violncia.
A Profa. Teitel, em artigos publicados in Harvard Human Rights Journal (2003),
Transitional Justice Genealogy e Manual para a Amrica Latina, 2011, apresenta a Justia
de Transio como concepo de justia associada com perodos de mudanas polticas
caracterizados por respostas legais contra os perpetradores de crimes de regimes do passado.
No estudo da evoluo do conceito de justia transicional durante os perodos de mudana
poltica, a partir dos acontecimentos da segunda metade do sculo XX, Teitel fez importantes
observaes e identificou trs fases no que chamou Genealogia da Justia Transicional. Teitel
afirma que a genealogia da justia transicional demonstra, atravs do tempo, uma relao
prxima entre o tipo de justia que se almeja e as restries politicas relevantes. Atualmente,
aponta a especialista em Justia de Transio, que o discurso est voltado para preservar um
Estado de Direito mnimo, identificado com a conservao da paz. No entanto, a autora deixa
claro que no se trata de separaes acsticas que dividiam estas fases e que muito
possivelmente existem superposies entre as trs fases propostas50.
Assim se verifica que as origens da Justia Transicional moderna remontam ao tempo da
Primeira Guerra Mundial. A primeira fase, que corresponde ao modelo de Justia de Transio
posterior a Segunda Guerra Mundial, cujo objetivo central era o de delinear a guerra injusta e
demarcar o parmetro de uma punio justificvel imposta pela comunidade internacional.
Depreende-se nessa fase o alcance dos procedimentos internacionais, especialmente a propsito
da soberania nacional e governabilidade internacional reconhecido por aqueles pases
envolvidos.51
50 TEITEL, Ruti in Justia de Transio Manual para a Amrica Latina Conceitos e Debates para Justia de
transio Produto do Acordo de Cooperao Tcnica BRA/08/021 Cooperao para o intercmbio
internacional, desenvolvimento e ampliao das Polticas de Justia de Transio no Brasil, firmado entre a
Comisso de Anistia do MJ, MRE e PNUD e desenvolvida pelo ICTJ Braslia 2011:136 48 TEITEL, Ruti in Justia de Transio Manual para a Amrica Latina Conceitos e Debates para Justia de
Transio 2011:139
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Entretanto, a Justia Transicional comea a ser entendida como extraordinria e
internacional no perodo ps-guerra de 1945. A Guerra Fria termina com o internacionalismo
desta primeira fase, ou fase ps-guerra, da justia transicional. A autora admite que
indubitavelmente, h exemplos anteriores no sculo, porm so respostas de pequena
escala52.
A segunda fase, ou fase do ps-Guerra Fria, est associada a um perodo de acelerada
democratizao na Amrica Latina e tambm no Leste Europeu, frica e Amrica Central e foi
caraterizada como terceira onda de transies. Na Amrica associa-se com as ondas das
transies para a democracia e modernizao iniciadas em 1989. At o final do sculo XX, a
poltica mundial se caracterizou por uma acelerao na resoluo de conflitos e um persistente
discurso por justia no mundo do direito e na sociedade. A marca proeminente desta fase so
os Tribunais de Nuremberg conduzidos pelos aliados.
A importncia do significado do modelo de Nuremberg deve-se adoo, em termos
universalizantes da definio do Estado de Direito. Enquanto a fase I simplesmente assumiu a
legitimidade de punir os abusos aos direitos humanos, na fase II a tenso entre punio e anistia
implicou maior desafio com a admisso e reconhecimento dos dilemas prprios aos perodos
de mudanas polticas. Nesta fase a Justia de Transio indica que os valores relevantes no
eram exatamente aqueles do Estado de Direito ideal cujo propsito era promover e consolidar
a legitimidade, os princpios do pragmatismo guiaram a poltica de justia e o sentido de adeso
ao Estado de Direito.
Em contrapartida da jurisprudncia transicional se vinculou a uma concepo de justia
imparcial e imperfeita e em decorrncia surgiram mltiplas concepes de justia na fase II.
O propsito de fazer valer a responsabilidade dos fatos por meio do direito penal, com
frequncia gerou dilemas prprios incluindo a retroatividade da lei, a alterao e manipulao
indevida de leis existentes, um alto grau de seletividade na submisso de processos e um poder
judicial sem suficiente autonomia.
52 Idem 2011:137
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Na terceira fase o estado estvel (steady-state) da justia transicional caracteriza-se pelo
fenmeno de acelerao da justia transicional de fim de sculo, associada com a globalizao
e tipificada por condies de marcada violncia e instabilidade poltica. A justia transicional
altera-se de exceo da norma para converter-se em um paradigma do Estado de Direito. Nesta
fase contempornea, a justia humanitria, construindo para o direito uma organicidade
associada a conflitos universais, contribuiu assim para o estabelecimento das fundaes do
emergente direito sobre terrorismo.53
Durante o perodo compreendido entre uma e outra guerra, o objetivo central da justia
transicional era delinear a guerra injusta e demarcar os parmetros de punio justificvel de
acordo com a comunidade internacional. As perguntas formuladas inferiam se a Alemanha
devia ser punida, e em caso positivo de que forma, com que castigo por sua agresso. Tambm,
at que ponto e que com