subjetividade e tecnologia

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Subjetividade e tecnologia: as novas máquinas produtoras de corpos Carlos Camargos Mendonça * Resumo Este artigo 1 pretende refletir acerca da am- pliação do entrelaçamento entre o humano e a máquina através das tele-tecnologias e da disseminação dos dispositivos e da lógica hipertextual que acabou por alcançar o próprio corpo, que é submetido a todo tipo de operações: modelizado por programas computacionais (no domínio do cinema e das experimentações artísticas), entregue ao jogo das aparências e da simulação das identidades nos chats e salas de con- versação, conectado a próteses artificiais, vasculhado em seu interior - mas sem ser penetrado - pelas nanotecnologias ou pelos programas de realidade virtual, tornado lugar de implantes biotecnológicos, ou então movido e afetado à distância por meio dos dispositivos - técnicos e artísticos - que se servem da telepresença. Poderíamos afirmar que, mais do que objeto de desejo (como comprovam todas as paixões eróticas que * Mestre em Comunicação Social, professor do Departamento de Comunicação Social da Fa- fich/UFMG e membro do Grupo de Pesquisa em Ima- gem e Sociabilidade da Fafich/UFMG 1 Este artigo é uma versão ampliada do trabalho apresentado no VIII Colóquio Internacional de Socio- logia Clínica e Psicossociologia, realizado no período de 03 a 06 de julho de 2001, na Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. pululam na Internet, das mais perversas às mais inocentes), o corpo aparece aí como um objeto de projeto - segundo a expressão do artista australiano Stelarc. O que pretendemos demonstrar ao longo deste artigo é que, mesmo aí, quando fala- mos do corpo e da sua hibridação ou inte- ração com a máquina, encontramos o vín- culo entre o socius e a subjetividade 2 , agora sob a forma de um corpo partilhado a dis- tância. Desta maneira, consideramos que as metamorfoses sofridas pelo corpo, seja através do objeto artístico ou ainda pauta- das nas experiências tecnológicas, estão - antes de mais nada - imbricadas em estra- tos sócio-culturais, códigos culturais e flu- xos de espaço-tempo que além de modelizar o corpo metamodelizam a subjetividade con- temporânea. A aproximação entre o corpo físico natu- ral e a máquina tecnológica está sendo elabo- rada nas mais variadas instâncias de pesqui- sas e estudos. O que nos chama a atenção é 2 Por subjetividade entendemos - com Félix Guat- tari - o “conjunto de condições que torna possível que instâncias individuantes e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto- referencial em adjacência ou em relação com uma al- teridade ela mesma subjetiva”. (Cf. GUATTARI. Ca- osmose, p.19).

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  • Subjetividade e tecnologia: as novas mquinasprodutoras de corpos

    Carlos Camargos Mendona

    ResumoEste artigo1 pretende refletir acerca da am-

    pliao do entrelaamento entre o humanoe a mquina atravs das tele-tecnologiase da disseminao dos dispositivos e dalgica hipertextual que acabou por alcanaro prprio corpo, que submetido a todo tipode operaes: modelizado por programascomputacionais (no domnio do cinema edas experimentaes artsticas), entregueao jogo das aparncias e da simulaodas identidades noschats e salas de con-versao, conectado a prteses artificiais,vasculhado em seu interior - mas sem serpenetrado - pelas nanotecnologias ou pelosprogramas de realidade virtual, tornadolugar de implantes biotecnolgicos, ou entomovido e afetado distncia por meio dosdispositivos - tcnicos e artsticos - que seservem da telepresena. Poderamos afirmarque, mais do que objeto de desejo (comocomprovam todas as paixes erticas que

    Mestre em Comunicao Social, professordo Departamento de Comunicao Social da Fa-fich/UFMG e membro do Grupo de Pesquisa em Ima-gem e Sociabilidade da Fafich/UFMG

    1 Este artigo uma verso ampliada do trabalhoapresentado no VIII Colquio Internacional de Socio-logia Clnica e Psicossociologia, realizado no perodode 03 a 06 de julho de 2001, na Universidade Federalde Minas Gerais, Brasil.

    pululam na Internet, das mais perversas smais inocentes), o corpo aparece a comoum objeto de projeto - segundo a expressodo artista australiano Stelarc.

    O que pretendemos demonstrar ao longodeste artigo que, mesmo a, quando fala-mos do corpo e da sua hibridao ou inte-rao com a mquina, encontramos o vn-culo entre osociuse a subjetividade2, agorasob a forma de um corpo partilhado a dis-tncia. Desta maneira, consideramos queas metamorfoses sofridas pelo corpo, sejaatravs do objeto artstico ou ainda pauta-das nas experincias tecnolgicas, esto -antes de mais nada - imbricadas em estra-tos scio-culturais, cdigos culturais e flu-xos de espao-tempo que alm de modelizaro corpo metamodelizam a subjetividade con-tempornea.

    A aproximao entre o corpo fsico natu-ral e a mquina tecnolgica est sendo elabo-rada nas mais variadas instncias de pesqui-sas e estudos. O que nos chama a ateno

    2 Por subjetividade entendemos - com Flix Guat-tari - o conjunto de condies que torna possvel queinstncias individuantes e/ou coletivas estejam emposio de emergir como territrio existencial auto-referencial em adjacncia ou em relao com uma al-teridade ela mesma subjetiva. (Cf. GUATTARI.Ca-osmose, p.19).

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    no s o desenvolvimento de algoritmos quepossibilitam a modelagem de diferentes ti-pos de slidos, mas tambm as criaes con-ceituais tais como aquelas da teoria da com-plexidade ou surgidas das experimentaesestticas que promovem a inter-relao entrearte, corpo e tecnologia.

    Peter Pl Pelbart, no incio de sua obraAvertigem por um fio, atenta para o fato de quea fabricao social e histrica da subjetivi-dade no um dado novo. Para ressaltar talconstatao, o autor remonta Nietzsche eos mtodos evocados por estes para dizer dadomesticao do corpo.

    Recentemente se mostrou que a docili-zao de um corpo pode recorrer a tec-nologias mais suaves, dispensando atmesmo a violncia direta, fsica... Novasmaneiras de moldar o corpo, model-lo,marc-lo, excit-lo, erotiz-lo, obrig-loa emitir signos etc. No cabe aqui apro-fundar o sentido desta domesticao, daqual, pelo visto, ainda nada vimos. Bastalembrar que da se depreende mais emais como um trusmo: se a forma dohomem, a forma do homem uma mode-lagem histrica complexa e mutante, noh por que desesperar-se com a excla-mao do filsofo: estamos cansados dohomem. O que o enfastia o fato de queo homem se tornou um verme medocre einsosso, e que esse apequenamento nive-lado se tornou meta de civilizao...

    preciso seguir Nietzsche at o fim,mesmo e sobretudo quando seus textossugerem que o homem aprisionou a vida,e que preciso livrar-se do homem paralibertar a vida...

    Mas como liberar as foras aprisiona-das sob a carcaa atual do homem? uma guerra total, cruel, brutal e sofisti-cada ao mesmo tempo, no menos vio-lenta talvez, do que aquela que deu ori-gem a essa forma que hoje se quer re-mover, e cujo campo de batalha no outro se no o prprio corpo do ho-mem, desde seus genes at os seus ges-tos, sua percepo, seus afectos. Nadaest decidido, pois o homem continuasendo, conforme a definio de Nietzs-che, o ainda no domado, o eternamentefuturo. O retrato que Nietzsche nos lega tambm um chamamento: o homem, umgrande experimentador de se mesmo."(PELBART.2001: 13)

    Segundo Edgar Morin (1993), todo or-ganismo vivo uma mquina que neces-sita, para manter-se vivo, do trinmio ma-tria/energia/informao exterior, sem des-considerar a utilizao de seu patrimnio ge-ntico. Computamos as informaes exteri-ores para garantirmos nossa sobrevivncia.Toda estrutura do mundo, seja ela uma c-lula, um grande organismo vegetal ou ani-mal funciona como uma mquina compu-tante. Criamos autonomias e depednciaspara nos mantermos vivos. Somos seres-mquinas.

    O paradigma da auto-organizao de-fendido por Heinz von Foerster e por HenriAtlan est presente no pensamento de EdgarMorin. Para von Foerster, um dos fundado-res da ciberntica, a criao da mquina ar-tificial, diferentemente da mquina natural,no a capacita para auto-organizar seus pro-gramas medida em que esses so operados.Mquinas artificiais dependem de constanteprogramao exterior. Essas mquinas no

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  • Subjetividade e tecnologia: as novas mquinas produtoras de corpos 3

    so capazes de se auto-gerir ou mesmo deefetuar algum tipo de pensamento. A impre-visibilidade do pensamento humano no estpresente nos programas de computadores, oque os impede de imitar a inteligncia hu-mana. O armazenamento de dados matem-ticos e linguagens computacionais no con-figura memria. O computador no tem me-mria, tem apenas armazenamento de dados,ele nunca descrever suas memrias, concluio autor.

    atravs de noes como a de seres-mquinas, de corpos hbridos, metamode-lizados por mltiplos agenciamentos maqu-nicos3, habitantes do encontro virtual das re-des, que buscamos perceber uma possvelcomposio que organiza os novos modos desubjetivao e de sociabilidade.

    O surgimento das redes telemticas e dacultura digital, a criao do ciberespao, aproliferao das comunidades virtuais, asmudanas no mundo do trabalho proporci-onadas pela insero dos computadores nosmodos de produo e comercializao debens e produtos, as prteses eletrnicas uti-lizadas na medicina ou mesmo as combina-es da engenharia gentica so elementosque modificam o nosso corpo. Os novos apa-relhos para exames mdicos possibilitam vero interior do corpo sem cort-lo; a ultrasso-nografia, por exemplo, detalha formato, ta-manho e textura dos rgos.

    3 Guattari denomina maqunico o estrato de sen-tido formado por matrias expressivas heterogneas,no-linguisticamente formadas, mas ainda assim denatureza semitica. Substncias de expresso hetero-gneas como as codificaes biolgicas ou as formasde organizao prpria aosocius como aquelas de-rivadas de instituies como a famlia ou a escola atravessam, transversalmente, os domnios de sentidopropriamente lingusticos. A esse respeito, cf.Caos-mose, p.35-38.

    Pesquisas como a da Universidade deWashington, nos Estados Unidos, so de-senvolvidas, desde o incio de 1998, como objetivo de criar procedimentos cirrgi-cos atravs de realidade virtual. A univer-sidade deSimom Fraser,em Burbanaby, noCanad, tambm pesquisa cirurgias em am-bientes virtuais. Na California, Estados Uni-dos, aComputer Motion, empresa que desen-volve braos robticos, desenvolveu o robZeus. Com trs braos, ele auxilia e melhoraa operao mdica. Dados como estes indi-cam que o corpo humano est passando portransformaes, seja na sua relao com asmquinas, seja na sua inter-relao com ooutro mediada pelas tecnologias. Para An-dr Lemos

    Vivemos hoje, sem dvida, um processode converso do mundo em dados bin-rios. A artificializao avana com o di-gital, atravessando todos os aspectos dacultura comtempornea. neste con-texto que pode surgir o discurso sobreos cyborgs. Embora seja fruto de pro-cessos ancestrais da simbiose homem-tcnica, o cyborg s pode existir nummundo traduzido em bits. No a toa queo corpo passa a ser uma superfcie de es-crita de vrios textos; um grande hiper-texto, desaparecendo enquanto corpo na-tural (processo de hiper-exteriorizaocom prtese, nanotecnologia, vacinas; ehiper-interiorizao - construo de sub-jetividade).(LEMOS. 1998: 54)

    Tal como escreve Andr Lemos, osprocessos de hiper-exteriorizao e hiper-interiorizao, por sua vez, adquirem forana aproximao entre o corpo fsico natu-ral e as mquinas tecnolgicas. A hiper-

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    exteriorizao ganha um relevo consider-vel na modelizao informtica do corpo.As tecnologias no inauguram simplesmenteum corpo imaginrio, desejado, elas nos pro-porcionam um corpo at ento no imagi-nado: o cibercorpo.

    Para o artista australiano Stelarc, estamosestendendo as capacidades do corpo com ouso das tecnologias. Em suas performances,o artista utiliza a combinao de prteses ede estmulos nervosos a partir de correnteeltrica sobre seu corpo, buscando uma im-bricao entre movimentos voluntrios, in-voluntrios e programados. O corpo nocomo sujeito, mas como um objeto no umobjeto de desejo, mas um objeto de projeto.(STELARC.1997:55)

    A biotecnologia est nos dando novas di-menses da interioridade e da exterioridadedo corpo fsico natural. O corpo adquire umanova espessura, no ciberespao ele se tornahbrido, misturando os componentes do hu-mano e da mquina. Paul Virilio dedica umcaptulo de seu livroA Arte do Motor dis-cusso da relao entre os novos dispositivostecnolgicos e o corpo fsico natural. Par-tindo do super-homem nietzscheano e che-gando at o superexcitado Stelarc, Virilioanalisa o que ele denomina intra-estrutura,ist , a inseminao do corpo fsico humanopelas biotecnologias, possibilitada pelo de-senvolvimento da nanotecnologia.

    Paul Virilio comenta que a nanotecnologiaest propiciando uma colonizao do corpo,produzindo at mesmo uma invaso microf-sica do corpo e surgindo assim como ltimorecurso, ou recurso de ponta, para domesti-car o homem. Segundo ele, houve uma mo-dificao no espao ocupado pelas tecnolo-gias de ponta, que deixou de ser o universosem fronteiras do ambiente planetrio para

    ocupar nossos rgos. A perda, ou maisexatamente, o declnio exclusivo da ausn-cia de intervalo das teletecnologias do temporeal resulta inevitavelmente na intruso intra-orgnica da tcnica e de suas micromquinasno seio do que vive.(VIRILIO.1996:92)

    O corpo-prprio sofre o ataque da bi-otecnologia que agora capaz de povoaras entranhas do sujeito. As novas tcnicassuplantam revolues como a industrial e aprovocada pela transmisso imediata de in-formao pelos meios de comunicao demassa. A revoluo de agora a dos trans-plantes, que tm em si o poder de povoar ocorpo vital com tcnicas estimulantes, afirmaVirilio.

    Se durante toda a sua histria a tcnicase desenvolveu no sentido do corpo geof-sico, agora ela caminha na direo do corpofsico, excitando-o e estimulando-o ao m-ximo como forma de compensao diante dainrcia a que est condenado pelas modernasformas urbanas de vida:

    No se pode descrever melhor o estadodos lugares de nossa ps-modernidadeonde os superexcitantes so prolonga-mentos de uma sedentaridade metropo-litana em vias de generalizao acele-rada, notadamente graas a essa telea-o que substitui doravante a ao ime-diata...A inrcia, a passividade do ho-mem ps-moderno exige um acrscimode excitao, no somente atravs dasprticas esportivas abertamente desna-turalizadas, mas tambm no caso de ati-vidades cotidianas em que a emancipa-o corporal devida s tcnicas da tele-ao em tempo real liquida as necessi-dades tanto de vigor quanto de esforomuscular.(VIRILIO.1996:93)

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    As mudanas que hoje atingem o corpovo muito para alm das transformaes pro-porcionadas pela cirurgia plstica. Um novoprojeto de corpo redimensiona o velho mo-delo de carne e osso para coloc-lo mais pr-ximo da hibridao homem-mquina. Umnovo tecido cobre a pele, desnudada e pe-netrada por aparelhos bio-tecnolgicos: Ocorpo hoje pode ser construdo, apagado,restaurado. J no h mais verdade nocorpo, afirma o artista multimdia e pro-fessor daThe School of the Art Institute ofChicago(EUA) Eduardo Kac, em entrevis-tas ao Jornal Folha de So Paulo na aberturada exposio Arte Suporte Computador, naCasa das Rosas, em So Paulo, no dia 11 defevereiro de 1997.

    s 21h30 daquele dia, em uma maca, Kactomou uma anestesia local para fazer umainciso com bisturi no tornozelo esquerdo eimplantou ali umchip como parte da obraTime Capsule. O chip, que ficar no corpo doartista para sempre, tem o tamanho de 15 mmx 2 mm e trazia um nmero aleatrio que po-deria ser decodificado: 026109532. A opera-o foi transmitida ao vivo pela TV Culturade So Paulo e pelainternet. Para o artista, oimplante fazia parte de um trabalho de arte eno foi apenas uma cirurgia.

    Em outros trabalhos seus, como oOrnitor-rinco, por exemplo, um rob pode ser ope-rado a distncia e em tempo real viainternet.Desse modo, o espectador pode explorar, distncia, o espao no qual o rob est.

    Os elementos imateriais so mais ade-quados para o meu trabalho: luz, lu-gares remotos e diferentes zonas tempo-rais, conversaes orais, videoconfern-cias, navegao robtica, multiplicidadedos espaos virtuais, sincronicidade, in-

    terao humano/mquina, interao ani-mal e planta, interao humana e animalmediada por telerrobs, e transmisso,recepo e troca de informaes digitais.(KAC.1997:322)

    Por meio dessa estranha interao entre asmquinas e os seres vivos (animais e huma-nos) as obras de Kac colocam em coexis-tncia elementos do espao virtual e do realna busca de expandir o corpo fsico naturalatravs do espao eletrnico e das diferen-tes formas de tele-ao. Um corpo feito feitode perceptos e afetos mutantes4. A ttulo deilustrao sobre os perceptos e afetos mutan-tes, desencadeados pelas hibridaes entreos corpos e as mquinas, podemos nos lem-brar do filme Matrix. Nessa obra, a vida uma iluso produzida por dispositivos tecno-lgicos operados por um grupo de intelign-cias artificiais que se rebelou contra os hu-manos. No ciberespao foi criada uma repro-duo do mundo fsico natural e os humanosso usados, sem saber, como fonte de energiapara as mquinas. Aqueles que conseguiramse libertar - ou se desconectar, como dizemeles - usam a grande rede para fazer a passa-gem de seu mundo fsico para o mundo pos-svel (segundo a caracterizao de Eco paraa fico cientfica5) representado pelas redes.

    4 Segundo Deleuze e Guattari, perceptos e afetosso seres de sensao que transbordam o vivido e aprpria percepo, e se conservam nos diferentes ma-teriais da arte. Enquanto o percepto aquilo que nosarranca das percepes vividas, o afeto aquilo quenos revela os devires no-humanos do homem. Cf.Deleuze, Guattari.O que filosofia?p. 216-217

    5 Para Eco, a metatopia ou metacronia denomi-nao mais apropriada para a fico cientfica. Essetipo de narrao remete, imediatamente, a uma visode tempo futuro: "Metatopia ou Metacronia: as po-cas retratadas nas obras representam um tempo fu-

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    Quando se servem desse processo, uma to-mada cheia de microsoftwares implantada nanuca permite a conexo do corpo com a redeinformtica chamada Matrix. Nessa rede, ocorpo pode adquirir qualquer forma ou fun-o, ser construdo ou reconstrudo quantasvezes for necessrio, desde que no sofra ne-nhuma ao letal. O corpo de quem no selibertou da grande rede est preso em cpsu-las, apenas a mente trabalha estimulada pelailuso de que est tendo uma vida comum.Identificamos a um tipo de Corpo sem r-gos(CsO).

    Deleuze e Guattari definem o Corpo semrgos - CsO, do seguinte modo:

    Um CsO feito de tal maneira que ele spode ser ocupado, povoado por intensi-dades. Somente as intensidades passame circulam. Mas o CsO no uma cena,um lugar, nem mesmo um suporte ondeaconteceria algo. Nada a ver com umfantasma, nada a interpretar. O CsO fazpassar intensidades, ele as produz e asdistribui num spatium ele mesmo inten-sivo, no extenso. Ele no espao e nemest no espao, matria que ocupar oespao em tal ou qual grau grau quecorresponde s intensidades produzidas.Ele a matria intensa e no formada,no estratificada, a matriz intensiva, aintensidade = 0, mas nada h de nega-tivo neste zero, no existem intensidadesnegativas nem contrrias.(DELEUZE eGUATTARI.1996:13)

    turo que, por mais diverso que seja do real, poss-vel e verossmil porque as transformaes a que foisubmetido nada mais fazem do que complementar aslinhas de tendncia do mundo real."(ECO.1989:168)

    O CsO uma experimentao inevitvel,que pe em contato ocorpuse osociuscon-cedendo aos rgos uma outra funo, mo-dificando sua funo natural, permitindo vercom a pele ou sentir com os olhos, tal comofizeram em diferentes ocasies, em suas ex-perimentaes literrias, criadores como Ar-taud, William Burroughs, Carlos Castaedae Henry Miller. Para Deleuze,

    do mesmo modo como o mecnico su-pe uma mquina social, o prprio or-ganismo supe um corpo sem rgos,definido por suas linhas, seus eixos eseus gradientes, todo um funcionamentomaqunico distinto das funes orgnicassociais tanto quanto das relaes mec-nicas.(DELEUZE. 1998.p.122)

    Atualmente, modificaes profundasemergem dos novos modos de relaohumana, no s com referncia aos corposque habitam o ciberespao, mas tambm noque diz respeito ao cotidiano, nas interaessimples do dia a dia. As ingerncias dasmutaes tecno-cientficas nas sociedadescomplexas desse fim de sculo reconfigurama ecologia social. Guattari afirma que aecologia do virtual se faz to necessriaao mundo de hoje quanto a ecologia domundo natural e humano. Segundo ele, asartes nos servem como ricos instrumentose como paradigmas de referncia paraas novas prticas sociais. A ecologia dovirtual, aliada ecologia do mundo natural ehumano, produzir a ecologia geral ou, nostermos do autor, a ecosofia, que

    agir como cincia do ecossistema, comoobjeto de regenerao poltica mas tam-bm como engajamento tico, esttico,

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  • Subjetividade e tecnologia: as novas mquinas produtoras de corpos 7

    analtico, na iminncia de criar novossistemas de valorizao, um novo gostopela vida, uma nova suavidade entre ossexos, as faixas etrias, as etnias, as ra-as...(GUATTARI.1993a:116)

    Quando levamos em conta os perceptos eafetos mutantes, produzidos na conforma-o do cibercorpo - com suas infinitas inter-faces que se desdobram em interioridade eexterioridade - percebemos os agenciamen-tos hipercomplexos que compem o corpomeio-objeto meio-sujeito a que estamos nosreferindo. Nesse corpo, modificado pela tec-nologia no s no seu aspecto fsico, mastambm na sua estrutura psico-social, os ve-lhos rgos se expandem e se retraem paraproduzirem novos movimentos e estmulosque configuram uma subjetividade que apro-xima o humano e as mquinas.

    Deleuze e Guattari nos apresentam umapequena procisso de corpos: o corpo hipo-condraco, o corpo paranico, o corpo es-quizo, o corpo drogado e o corpo maso-quista. Tomemos como referncia, nessemomento, o corpo drogado. A personali-dade fendida com a droga passa a desen-volver um modo diferenciado de ser. No-vos objetos so apreendidos por esse sujeitoem seu territrio existencial, com uma dife-rena: entradas existenciais adquirem um ca-rter desigual, algumas se tornam mais im-portantes que as outras. Esse processo im-prime, em uma primeira viso, uma desterri-torializao dos modos de subjetivao exis-tentes, mas acaba por construir uma reterri-torializao conservadora no territrio exis-tencial. O usurio doecstasy, por exemplo,busca eternamente recuperar oshoom(sen-sao de bem estar) da fase inicial de usoda droga. Sem sucesso, desenvolve algumas

    patologias como a depresso crnica, depen-dncia psquica e uma dificuldade em lidarcom o mundo real, que nem sempre todivertido como uma pista de dana de umarave.

    A crescente produo de materiais infor-mticos, de linguagens, de produtos infor-macionais, de novos dispositivos eletrnicos como as copiadoras com dados armazena-dos emchipsou as cmeras de vdeo produ-zidos com perifricos de computadores en-curta as distncias espao-temporais e alarganossas representaes. O corpo desdobra-se em caractersticas hipertextuais e rizo-mticas, extrapola o universo traduzido embits para regalar-se em experincas estti-cas, sensoriais, cognitivas e conceituais queo desterritorializam numa escala at entodesconhecida.

    Maffesoli (1996) afirma que, na perspec-tiva de uma esttica ampliada, h uma erticados corpos, ou seja, eles funcionam como fa-tores de unio e de criao de comunidades.Se podemos afirmar que estamos frente aoestabelecimento de alguns pressupostos queapontam para a constituio das comunida-des virtuais, como ento desprezar uma apro-ximao entre os cibercorpos?

    Concordar com as afirmativas que decli-nam um vasto repertrio sobre o carter nar-cotizante que as experincias mediadas pelatecnologia apresentam, significa desprezarque h um entrelaamento ou uma apropri-ao da forma tcnica pelo lao social. Ea essa apropriao os cibercorpos no esca-pam.

    Os planos da alteridade no sero despre-zados pelos corpos construdos ou estendi-dos pelas tecnologias. Quando em umchat frunson lineque funcionam em temporeal, o sujeito muda seus componentes

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    identitrios, ele produz um corpo ilusrio,no somente para si mesmo, mas para es-tabelecer um contato com o outro. Sobre omotivo dessa escolha que permite jogar coma aparncia poderamos escrever um sem n-mero de artigos, o que no nosso objetivo.O que queremos dizer que nesse modo detele-presena, em que a voz ainda muitopouco usada, a iluso do corpo, nos termosde Maffesoli, constitui um forte elementopara a sedimentao de relaes.

    Partindo das conversason linee chegandoat as experincias de Kac e do superexci-tado Stelarc, que interferem sobre o prpriocorpo para criarem suas performances arts-ticas, ainda a no podemos dizer de umaatitude solitria, individualista. A opo dainterveno sobre o corpo individual, noresta dvida, mas a atitude a produzida temefeitos coletivos. Maffesoli, a partir de Ni-etzsche, ao comentar a transposio da artepara o cotidiano, afirma que o homem pro-duto da esttica, ele participante de um ge-nius coletivo que o ultrapassa de longe. tomado pelas formas, como um banho ma-tricial que o modela e faz dele o que ele .(MAFFESOLI.1996:150)

    importante relembrar aqui que Maffe-soli confere ao termo esttica um sentidoamplo, um sentido de agregao que cons-titui as relaes sociais a maneira de umapulso. A prpria atitude, seja ela produzidano ciberespao ou sobre o corpo fsico, no o sintoma de uma subjetividade narcsicae solipsista, mas, paradoxalmente, signode um narcisismo de grupo, nos termos deMaffesoli. Parafraseando o autor, comonos rituais de algumas sociedades da IdadeMdia, o sujeito est oferecendo sua carneem partilha, no para uma colonizao, maspara uma exaltao coletiva do corpo, seja

    na sua hibridizao com as mquinas, sejaquando afetado distncia.

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