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5 Artigos Subjetividade e saber na escrita literária* Heloisa Caldas Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, n o 144, 5-13 onsiderações preliminares no desenvolvimento de uma pesquisa, com base na obra do escritor contemporâneo José Saramago, sobre a relação entre subjetividade e escrita literária em sua perspectiva ética de transmissão de saber. A partir das teorizações de Freud e Lacan, leva-se em consideração a escrita como uma forma ética de bem-dizer que contém o mal-estar e eleva o abjeto à condição de objeto. Palavras-chave: Sujeito, objeto, gozo, saber e ética his article consists of tentative considerations for research based on the writings of the contemporary Portuguese author José Saramago regarding the relationship between subjectivity and literary writing from the ethical perspective of transmitting knowledge. Based on theorization by Freud and Lacan, writing is taken as an ethical form of discourse which contains discontent and raises the abject to the condition of object. Key words: Subject, object, jouissance, knowledge and ethics. T C * Este trabalho faz parte da pesquisa de doutoramento no Curso de Doutorado em Psicologia do Instituto de Psicologia da UFRJ, sob orientação da Prof a Vera Lopes Besset. Foi apresen- tado à Profª Tânia Coelho dos Santos, a quem agradeço as observações e comentários, ao final da disciplina “Sobre as pulsões e as modalidades do gozo”, por ela ministrada, no Pro- grama de Teoria Psicanalítica da UFRJ. objetivo deste trabalho é trazer algumas considerações prelimina- res ao desenvolvimento de uma pes- quisa, com base na obra do escritor contemporâneo José Saramago, sobre a rela- ção entre subjetividade e escrita literária em sua perspectiva ética de transmissão de sa- ber, a partir das teorizações de Freud e Lacan. O

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5ArtigosSubjetividade e saber naescrita literária*Heloisa Caldas

Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, no 144, 5-13

onsiderações preliminares no desenvolvimento de uma pesquisa, com basena obra do escritor contemporâneo José Saramago, sobre a relação entre

subjetividade e escrita literária em sua perspectiva ética de transmissão de saber.A partir das teorizações de Freud e Lacan, leva-se em consideração a escritacomo uma forma ética de bem-dizer que contém o mal-estar e eleva o abjeto àcondição de objeto.Palavras-chave: Sujeito, objeto, gozo, saber e ética

his article consists of tentative considerations for research based on thewritings of the contemporary Portuguese author José Saramago regarding

the relationship between subjectivity and literary writing from the ethicalperspective of transmitting knowledge. Based on theorization by Freud andLacan, writing is taken as an ethical form of discourse which contains discontentand raises the abject to the condition of object.Key words: Subject, object, jouissance, knowledge and ethics.

T

C

* Este trabalho faz parte da pesquisa de doutoramento no Curso de Doutorado em Psicologiado Instituto de Psicologia da UFRJ, sob orientação da Profa Vera Lopes Besset. Foi apresen-tado à Profª Tânia Coelho dos Santos, a quem agradeço as observações e comentários, aofinal da disciplina “Sobre as pulsões e as modalidades do gozo”, por ela ministrada, no Pro-grama de Teoria Psicanalítica da UFRJ.

objetivo deste trabalho é trazeralgumas considerações prelimina-

res ao desenvolvimento de uma pes-quisa, com base na obra do escritor

contemporâneo José Saramago, sobre a rela-ção entre subjetividade e escrita literária emsua perspectiva ética de transmissão de sa-ber, a partir das teorizações de Freud e Lacan.

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1. Deve-se ressaltar que o conceito lacaniano de gozo engloba o campo do pulsional segundoa última dicotomia de Freud – pulsão de vida e pulsão de morte – assim como leva em consi-deração o mal-estar na cultura e a soberania de um princípio que ultrapassa o ideal do beme a regulação do princípio do prazer (Freud, 1930).

LITERATURA E ÉTICA

José Saramago é um escritor português,laureado com o Prêmio Nobel de Lite-ratura em 1998, cuja obra vasta incluipoesias, crônicas, teatro, diários e ro-mances. Além do contato com algunsde seus livros, bastante impressionantesdo ponto de vista de sua abordagem danatureza humana, outro fator que desen-cadeou o desejo de estudar a obra desteautor, à luz da psicanálise, foi a leiturada transcrição de uma conferência pro-ferida por ele, em março de 1997, emPequim, por ocasião da cerimônia delançamento da versão chinesa de suaobra intitulada “Memorial do convento”(1997).Nessa conferência, ele toma como fiocondutor de seu discurso a questão“para que serve um escritor?”. Suas res-postas passam por pontos cruciais einteressantes que me encorajaram a umaarticulação a conceitos fundamentais dapsicanálise. Desta forma, foi a partir daleitura dessa conferência que se descor-tinou a possibilidade de transpor aquestão “para que serve um escritor?”para a questão “para que serve a escri-ta?”, a qual vem orientando os primeirosdesdobramentos de interesse nessa in-vestigação sobre a subjetividade e aescrita literária.Essa investigação não pretende ter o

escopo de uma pesquisa sobre a escri-ta como arte. Ainda que não se possaperder de vista o sentido da arte para oser humano, esse aspecto vai nos inte-ressar apenas enquanto uma dasformas, postuladas por Freud, de se li-dar com a pulsão, isto é, a escrita comosublimação. Além dessa perspectiva,vislumbra-se a possibilidade de tomar aescrita em seu sentido mais amplo,como Lacan a aborda em seu textoLituraterre (1985), no qual propõe quea escrita cria e funda o mundo humanoviabilizando inclusive que neste univer-so se possa regular e extrair o gozo.1

Essa questão, colocada nos termos:para que serve a escrita?, permite pro-por que a escrita serve à constituiçãodo sujeito. Convém ressaltar que, a par-tir da idéia psicanalítica de que aconstituição do sujeito se dá pela via dodiscurso, tal constituição é correlata àconstituição de seu objeto. Portanto, emum desdobramento, pode-se sublinharque se trata também da constituição doobjeto para um sujeito. Nesse sentidovai importar o destino da pulsão, deno-minado por Freud (1915) de sublimação,que viabiliza destacar o objeto do hor-ror, o abjeto, da sua condição demal-estar para circunscrevê-lo em umavia elevada de sublimação.Essa perspectiva de articulação da cons-

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tituição do sujeito e o objeto pela via dasublimação, como um dos destinos pos-síveis da pulsão, pode ainda remeter àinvestigação de uma outra questão, maiscircunscrita. A escrita é uma maneirade conter e responder de forma ética aomal-estar? Qual a relação entre a escri-ta literária e a política de um autor? E,de que forma essa política se transmi-te? Considerando aqui política nocontexto da definição de Lacan (1959-60) de que a política do sujeito dapsicanálise é a do desejo, norteada pelaética de bem-dizer.Por essa via de investigação, alguns pon-tos e articulações que a psicanáliseestabelece com a escrita se descorti-nam: o enigma, o ciframento e odeciframento, o sentido e a falta de sen-tido, o prazer ou o horror na construçãopela via do sentido, assim como a posi-ção ética do sujeito em questão. Estesforam os pontos que, inicialmente, cha-maram atenção diante da pergunta “paraque serve uma escrita?”, com essa pres-suposta resposta de que a escrita atendeà constituição do sujeito frente ao ob-jeto para conter o excesso e mortíferodo mal-estar, e que, além disso, a es-crita funda um campo de saber passívelde transmissão.

A ESCRITA ENTRE PRAZER E MAL-ESTAR

Inicialmente Saramago afirma que nãose contenta em distrair ou comover osleitores com sua obra. Ele foge, portan-to, da via mais comum de oferecer pelaliteratura uma fonte de prazer ao leitor,e que foi, aliás, a primeira via pela qual

Freud abordou a questão, comparandoa obra literária ao sonho, especialmenteem seu texto intitulado “Escritores cria-tivos e devaneio” (1907). Nesse artigosua opinião é a de que o artista suspen-de a barreira do recalque e propicia aoleitor desfrutar do prazer do interdito poressa via que ele, leitor, não seria capazde abrir. Desta forma, tanto a obra lite-rária como os sonhos teriam o mesmoprocedimento na obtenção do prazerpela via da realização do desejo.Esta teorização de Freud data de 1907.Muito antes que ele próprio tivesse con-cebido outro princípio do funcionamen-to mental que ultrapassasse a regulaçãode prazer/desprazer. Posteriormente,com sua formulação em “Além do prin-cípio do prazer” (1920), o sonho trau-mático e o pesadelo são revistos nateoria. Pode-se, desta forma, acordarpara continuar dormindo, pois o sonho,guardião do sono, falhou em produziruma cadeia significante, um texto, quecontivesse o desejo sem deixá-lo ultra-passar os limites do prazer e tocar nohorror inominável.A obra de Saramago é visivelmente de-dicada a problemas, impasses. Não setrata de romances que nos convidem aosonho cor-de-rosa. São obras que to-cam questões cruciais convidando-nosao despertar e não ao sono. Ensaio so-bre a cegueira (1995) é um dosmelhores exemplos, pois mostra comoé frágil a estrutura de nossos laços so-ciais. Ao cabo de poucas semanas deuma cegueira coletiva há uma revoluçãodos princípios éticos que regem as re-

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lações entre os sujeitos, com a irrupçãodo mal, para além do que poderíamosconsiderar como a inocente luta pela so-brevivência. Como Saramago comentana conferência mencionada:

... os animais exercem violências sobre ou-tras espécies, mesmo os herbívoros exer-cem violência sobre os vegetais de que sealimentam, portanto a violência, entendi-da desta maneira, é condição da própriasobrevivência, simplesmente, há uma di-ferença, uma diferença trágica, se me per-mitem a palavra: é que o ser humanoacrescentou à violência, que é de todos enecessária para todos, acrescentou acrueldade. A crueldade é uma invençãohumana. [...] E é a crueldade que nega arazão.

Constatamos, assim, que o autor toca naquestão da pulsão de morte, fusionadaàs pulsões eróticas, pois que a cruelda-de como invenção não deixa de servir àrecreação humana, e que a razão queregula tal operação só pode ser conce-bida como transcendente à concepçãode razão da filosofia clássica correlacio-nada ao bem e ao belo.Freud revolucionou o século justamen-te por ter proposto uma teoria sobre asubjetividade humana na qual a razãoestá submetida a outra ética que nãoesta da tradição filosófica. A ética dodesejo inconsciente descentra o sujeitoda consciência e da razão cartesiana,posicionando a razão que produz o atoe a criação humana como submetidosaos princípios que governam as pulsões(Lacan, 1957).

A ESCRITA E O DECIFRAMENTO:DO HORROR AO SUBLIME

Esta revisão da criação segundo a teo-ria que revê os princípios dofuncionamento mental, por acrescentarà regulação do prazer/desprazer um ter-ceiro princípio que porta o mal,certamente vai implicar em pensar a re-lação entre o objeto de horror, o abjeto,e a sua elevação à categoria de belo. Asublimação, como destino da pulsão dis-tinto do recalque, destaca na literaturaa qualidade discursiva da pulsão. Freuddestacou a gramática da pulsão e Lacanseu viés de discurso (cf. Caldas, 1997).Ainda que seja possível generalizar eafirmar que toda arte é discursiva, é tex-to, mesmo a pictórica, na arte escrita oaspecto discursivo é preponderante.Portanto, as relações entre enigma e de-ciframento tornam-se mais evidentes,apontando para o circuito pulsional navia da cadeia significante e o objetocomo o que esta cadeia contorna e criaem seus rodeios. Inclusive há a possi-bilidade de comparar, como propõeBesset (2000), a sublimação à aptidãoao trabalho psicanalítico que ocorre emfunção do deslizamento significante eque permite ao neurótico traçar a via deseu desejo segundo uma ética do bem-dizer. É o que Saramago atesta ao dizerque, ao contrário de muitos outros es-critores, ele não busca o título de seuromance ao final. Seus livros partem dotítulo, como se fossem enigmas que oprovocassem ao deciframento:

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... no meu caso, as primeiras palavras sãoo título. Isso significa que partindo dumaidéia que está consubstanciada num títu-lo, ou no título que consubstancia umaidéia, o proposto desse livro pretende re-solver um problema que eu tenho; querdizer, cada livro que eu escrevo tenta re-solver um problema que eu tenho naminha relação com o mundo, na minha re-lação com os outros.

Baseados nessas afirmações do autor,podemos fazer equivaler seu processode criação com o do trabalho incons-ciente: a via do discurso, do desfilamen-to da cadeia significante, dirigida aoOutro do sentido, em que se apela à sig-nificação do mal-estar. Tal processo écorrelato ao trabalho de um sujeito emanálise. Certamente que não se trata dedizer que fazer análise é sublimar, pro-duzir arte. Freud lamenta que nem to-dos possam se utilizar desse recurso. Noentanto, é inegável que no trabalho deanálise o sintoma, a fantasia, o sonho,enfim, todo o material tem o aspecto decifra enigmática que porta um sentidoa desvendar. A produção e criação des-te sentido como poesis é o que vem adissolver o excesso de mal-estar e pos-sibilitar o advento de algo novo que pos-sa quebrar a inércia repetitiva esintomática de um sujeito.Saramago declara que, com este proce-dimento, questiona seu ser e aimportância do que faz. Diz o que pen-sa sobre para que serve um escritor,ressaltando que não está dando conse-lhos a ninguém e nem pretendeexaustiva sua definição:

... um escritor deve servir, não só para di-zer quem ele é, embora ele não possa viversem tentar satisfazer a necessidade de di-zer quem é, como sobretudo para dizercomo é que ele vê o mundo; o que é omundo para ele.[....] eu não gosto do mun-do em que vivo.

Ora isso é o que faz com que possamosaproximar o trabalho deste autor ao deum sujeito em análise no sentido de queo trabalho psicanalítico, consoante aotrabalho do próprio inconsciente, obede-ce à ética da produção de um bem-dizersobre a incômoda posição original dedesamparo e de ser para a morte da sub-jetividade humana. Vale ressaltar, porém,que há uma distinção a fazer entre a ra-zão psicanalítica e a razão poética (cf.Jô Attie, 2000). Na primeira encontra-mos a lógica do funcionamentoinconsciente que passa por um lugar deendereçamento e que leva ao lugar va-zio do sujeito depois da queda do objeto;na arte literária ao se debruçar direta-mente sobre um objeto que é a letra,qualquer que seja o endereçamento, cria-se o vazio do objeto. Miller (1988),inclusive, comenta que a arte é para serconsiderada como uma produção e, por-tanto como um objeto e não comoformação do inconsciente.

O SABER NA ESCRITA LITERÁRIA:DO SINGULAR AO UNIVERSAL

Com freqüência a psicanálise enalteceua literatura e recorreu às referências li-terárias. Freud a considerou, dentreoutras áreas de conhecimento, a maisadequada à formação do analista uma

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vez que, em sua opinião, a literatura de-tinha um saber próximo ao dapsicanálise. Ele chega a afirmar que ospoetas e romancistas “estão bem adiantede nós, gente comum, no conhecimen-to da mente, já que se nutrem emfontes que ainda não tornamos acessí-veis à ciência” (1907).Com esta afirmação, Freud contrapõe osaber da arte, no caso a literatura, aosaber da ciência com relação ao acessoque cada um destes possa ter à verda-de. Ele nos aponta um segredo naliteratura: eles, poetas e literatos, sabem.Este segredo, no entanto, nos propõeuma questão: como pode a criação lite-rária singular, o texto como um,sustentar uma verdade compartilhadapor tantos? Qual é a relação de sabersobre o sujeito que o texto literário man-tém com a verdade sobre o humano? Sea escrita serve para transmitir saber so-bre o sujeito, que saber transmite em suasingularidade?Os desdobramentos dessa questãoapontam, de início, para um ponto deli-cado que surge quando se trata de ler,à luz da psicanálise, uma obra literária:procurar-se na obra o que representa-ria a encarnação pessoal do desejo doautor, em especial de um autor, comoJosé Saramago, que vive contempora-neamente o apogeu de sua produçãoartística. Sublinhamos, portanto, que oviés a ser tomado do inconsciente comodiscurso não se confunde com uma her-menêutica. O inconsciente estruturadocomo uma linguagem situa o desejocomo articulável apenas na via da ca-

deia significante, ainda que em nenhummomento possamos aprisioná-lo na ar-ticulação. A transposição do parconteúdo latente/manifesto de Freudpara enunciado/enunciação, operada porLacan, impede que se desenvolva umtrabalho que possa aventar o que querque seja que o discurso explícito do au-tor, em sua obra, não permita dizer.A subjetividade na obra de um autor vai,certamente, implicá-lo como sujeito de-sejante, o que não quer dizer que setenha que proceder a interpretações quepossam trazer a público algo do caráterprivado de sua subjetividade. A obra édizer público, discurso de sujeito e decidadão que não se furta a se implicarna vida política de seu tempo. Essaperspectiva restringe a pesquisa ao cam-po de enunciação pública que o autornos oferece. Consideramos, no entan-to, justamente a partir da noção lacaniana(Lacan, 1987) de sintoma como o quar-to elo que ata os três registros que,inevitavelmente, a escrita do autor é amanifestação da irrupção do que em suasubjetividade há de mais privado no âm-bito do público (cf. Barros, 1999).O que importa, portanto, não é a parti-cularidade privada com que o autordelineia o objeto, mas, ao contrário, oque desse delineamento é passível detransmissão de saber, apreensível pelodiscurso enquanto laço social, tendoefeito sobre leitores, críticos, estudio-sos etc. Como sugere Didier-Weill(1997), é possível situar o artista comointérprete concreto e singular de seutempo o que não pode deixar de con-

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templar seu posicionamento ético e po-lítico.Retomando a questão sobre a transmis-são de saber da escrita literária, vale res-saltar que a discussão sobre o valor daverdade universal e compartilhada ante-cede à psicanálise e à ciência. Remontaà obra de Platão, o que nos permite co-locar a mesma questão em termos filo-sóficos: podemos articular o logos,discurso argumentativo, ao mythos, nar-rativa e ficção? (cf. Droz, 1997). A dis-tinção entre a ficção poética, tida comofalsa ilusão, e a verdade rigorosamentedemonstrada é um dos principais eixosda filosofia socrática. A despeito disso,Platão, escriba desse ensino, não deixade lançar mão do mito em sua obra. Emquase todos os seus diálogos, encontra-mos a narrativa mítica usada como umrecurso à imaginação e provocando umaruptura no discurso argumentativo. Asrazões para esse recurso parecem servariadas, mas podem ser atribuídas, emparte, a uma impossibilidade da total re-dução do objeto, seja ele qual for, a con-ceitos. A narrativa ou ficção cumpre umpapel na produção de sentido e na cria-ção de verossimilhança.Não encontramos na obra de Freud umadistinção clara entre a psicanálise e aciência. Por muitas vezes ele explicitaque sua expectativa é a de que a psica-nálise seja reconhecida como ciência. Apartir dessa concepção, Freud coloca apsicanálise ao lado da ciência e da ver-dade universal, contrapondo-a àliteratura, assim como a filosofia opu-nha o discurso argumentativo à ficção.

Desta forma, há momentos em queFreud enaltece a literatura, mas há ou-tros em que apresenta uma visão doescritor como um inibido que recusa averdade da falta de objeto com sua pro-dução fantasiosa, como ressaltaDidier-Weill (1997).Em um de seus textos que integram suascontribuições à psicologia do amor,Freud (1910) questiona o valor com-probatório do que o artista tem a dizer:

Os escritores estão submetidos à neces-sidade de criar prazer intelectual eestético, bem como certos efeitos emocio-nais. Por essa razão, eles não podemreproduzir a essência da realidade tal comoela é, senão que devem isolar partes damesma, suprimir associações perturbado-ras, reduzir o todo e completar o que falta.Esses são os privilégios do que se con-vencionou chamar de “licença poética”.[...] A ciência é, afinal, a renúncia maiscompleta ao princípio de prazer de que écapaz nossa atividade mental.

Com Lacan (1966), a partir de sua teo-rização sobre a questão no escrito inti-tulado A ciência e a verdade, apsicanálise passa a se distinguir da filo-sofia e da ciência na produção do sabersobre a verdade. A dicotomia entre fal-so e verdadeiro, comprovável e ilusórioé revista, de forma que sua construçãoteórica busca delinear as formas possí-veis do saber que suportam a impossi-bilidade de saber tudo. O saber daciência em que a subjetividade é aboli-da pela descoberta de uma verdade quea exclui cede lugar, na psicanálise, a umaprodução de saber que só pode se dar

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se nela incluirmos o sujeito como dese-jante, o inconsciente como linguagem,o que, por conseguinte, implica a ver-dade como invenção. Esta tese já se en-contrava no conceito de realidadepsíquica de Freud. Parece, no entanto,que nas suas idas e vindas sobre queprincípios regulariam o funcionamentomental desta construção, Freud hesitaem declarar desde logo a impossibilida-de de um acesso ao mundo que não fos-se necessariamente tributário dalinguagem.Lacan trabalha sobre o conceito de rea-lidade psíquica salientando três registrospara a construção desta realidade sub-jetiva: simbólico, imaginário e real. Trêsaspectos interligados e interdependentesde construção de saber subjetivo. Nes-sa perspectiva teórica, a idéia de umarealidade funcionando segundo leis pró-prias e externas ao sujeito desaparece.Não se exclui o sujeito da produção desaber e o mundo não é mais uma coisaa descobrir, anterior à palavra que lheconvém. Ao contrário, o discurso fun-da o mundo, delineia suas formas einexoravelmente falha em reduzi-lo aoque diz e forma. Este escape, situadocomo o registro do real, insiste comocausa para novas ressignificações. Aprodução de saber perde seu horizontede poder um dia chegar a ser comple-ta, de alcançar uma verdade definitiva eúltima.Essa lógica de um saber não-todo fun-ciona e se aplica tanto para o argumen-tativo como para o narrativo, sendo naarticulação entre ambos que a teoria

avança. A obra de Freud permite a re-visão do recurso ao mito na polarizaçãoentre o complexo e o romance familiar;e a obra de Lacan situa a oposição en-tre o matema e o nome próprio do gozo.Nessa linha de forças entre o múltiplo eo um, a obra de Freud ganha coloridocom os casos clínicos e os personagensliterários nos quais ele assinala o aspectotrágico dos complexos nucleares, sen-do Édipo o exemplo por excelência. La-can (1987), por sua vez, redobra oscuidados no rigor de suas fórmulas de-puradas e desossadas da estrutura dosujeito, sem deixar, no entanto, deilustrá-las com exemplos da manifesta-ção viva deste par-l-être, acrescentan-do assim a concepção arrojada de queé na escrita que vamos encontrar a mar-ca-limite entre o saber e o gozo. Há,pois, uma tensão entre o matema, repre-sentante do saber demonstrado e expos-to na transmissão, e o impossível dedizer sobre a singularidade do gozo, oque se toca pela alusão tangencial e queopera na transmissão como saber su-posto (Miller, 1999).Dentro desse raciocínio, podemos pen-sar que o ensino e a transmissão sobreo sujeito com um rigor lógico parecemnão poder prescindir do recurso à fic-ção para encarnar esse sujeito, no sen-tido estrito do termo – situá-lo na carnecomo a substância gozante. Nesse sen-tido a transmissão de saber tanto na es-crita literária como na psicanálise nãopoderiam prescindir da experiência dalinguagem nos seus passes e impasseséticos de sujeito, de objeto e de saber.

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Artigo recebido em novembo/1999Revisão final recebida em março/2001