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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE MINAS GERAIS CURSO DE MESTRADO EM PSICOLOGIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO LINHAS DE PESQUISA: INTERVENÇÕES CLINICAS E SOCIAIS SUBJETIVIDADE E RELIGIOSIDADE um estudo da religião católica em Sabinópolis Josélia Barroso Queiroz Lima Belo Horizonte 2006

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE MINAS GERAIS CURSO DE MESTRADO EM PSICOLOGIA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO LINHAS DE PESQUISA: INTERVENÇÕES CLINICAS E SOCIAIS

SUBJETIVIDADE E RELIGIOSIDADE

um estudo da religião católica em Sabinópolis

Josélia Barroso Queiroz Lima

Belo Horizonte 2006

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JOSÉLIA BARROSO QUEIROZ LIMA

SUBJETIVIDADE E RELIGIOSIDADE

um estudo sobre a religião católica em Sabinópolis

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do titulo de Mestre em Psicologia. Área de Concentração: Processos de Subjetivação Orientador: Professor Dr. William César Castilho Pereira

Belo Horizonte 2006

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Lima, Josélia Barroso Queiroz L732s Subjetividade e religiosidade católica : um estudo sobre a religião católica em Sabinópolis / Josélia Barroso Queiroz Lima. – Belo Horizonte, 2006. 133 p. Orientador: Prof. Dr. William César Castilho Pereira

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, Instituto de Psicologia Bibliografia.

1. Religiosidade. 2. Subjetividade. 3. Catolicismo 4. Igreja Católica – História – Sabinópolis. I. Pereira, William César Castilho. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Instituto de Psicologia. III. Título.

CDU: 291.67 Bibliotecária – Valéria Inês s. Mancini – CRB 6/1434

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JOSÉLIA BARROSO QUEIROZ LIMA SUBJETIVIDADE E RELIGIOSIDADE Um estudo sobre a religião católica em Sabinópolis

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Psicologia da

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Belo Horizonte, _____de__________ de 2006. _______________________________________________________ Professor Dr. Amauri Carlos Ferreira (PUCMG) _______________________________________________________ Professor Dr. Paulo Roberto Gomes (PUC/RJ) _______________________________________________________ Professor Dr. William César Castilho Pereira (PUCMG)

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Em memória de Semírames Barroso Queiroz Mafra

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Agradecimentos Ao Bruno e ao Júlio, pelo afeto e presença na minha trajetória Aos meus pais, Carlos e Ayde, pela amizade e pelo carinho

Aos meus familiares, pelo apoio sempre Aos amigos Abílio, Maria Helena e seus filhos

A Francisco Mafra (Chico)

Ao Flávio Márcio de Lima e a Paula Laudares, pela amizade e apoio

Aos docentes e funcionários do Curso de Mestrado, pela acolhida

À CAPES/PROSUP, por possibilitar o término desta dissertação

Ao Professor William César Castilho Pereira, meu orientador, pela confiança e incentivo

Ao Professor Johnny Mafra, pela gentileza em cuidar dos meus textos

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Resumo

Esta dissertação propõe analisar as relações entre religiosidade católica e

produção de subjetividade na cidade mineira de SABINÓPOLIS e mostrar como a

função sociológica e cultural da religião, como instituição, propiciou a expressão de

sentimentos que vinculam o homem a um universo simbólico, edificado sobre a noção

do sagrado. Mostra que a religiosidade, enquanto expressão, é também processual, pois

as significações se transformam, se reafirmam, e são produzidas ao longo da existência.

Mostra também que, embora assumam um caráter transcendental, as significações

religiosas são fruto do processo humano de implicação com o existir.

Para o proposto, a pesquisa recorreu à análise de documentos paroquiais, da

literatura sobre a cidade e de entrevistas, além da documentação iconográfica. A

sustentação teórica foi feita com a bricolagem de autores representativos das diferentes

linhas de pensamento que compõem o discurso científico sobre o objeto em estudo.

Palavras-chave: subjetividade, religiosidade, igreja católica, Sabinópolis

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Abstract

This work ains to analyse the relation-ships between the "Catholic Religionsity"

and the "Subjectivity" production at Sabinopolis, a city of Minas Gerais State, Brazil. It

also intends to show to present how the sociological and cultural functions of Religion,

as an institution, produced the expression of feelings which gather the human being to a

symbolic universe, which is built upon the sacred notion.

This work shows that "Religion", while expression, is also proccessual, because

its meanings are changed and reaffirmed as well as produced during the existence.This

paper also also presents the Religions meanings as a human process result related to the

existence, even considering thein transcendental characteristic.

The research methodology used "church", and local literature documents'

analyses, interviews, as well as "iconographic" documentation. The theoretical basic

was developed through different and representative authors from this area of study.

Versão para o inglês pela professora Ms.

Anneliese Maria Bento de Carvalho

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SUMARIO: INTRODUÇÃO 10 Capitulo 1 UMA BREVE REVISÃO SOCIOLÓGICA: SEGUNDO DURKHEIM 14 1.1 Introdução ao pensamento de Durkheim 14 1.2 O sagrado institui um território simbólico 18 1.3 A constituição do nómos social e do sujeito social 20

1.4 A experiência do sagrado das sociedades tribais 22 sociedade tradicional: diferentes paradigmas

1.5 A Institucionalização do Sagrado: a religião 24 1.6 Modernidade, Religião e Ciência 26 1.7 Religião e Religiosidade 32 Capitulo 2 PROCEDIMENTO METODOLÓGICO 41 2.1 A concepção de conhecimento aqui assumida 41 2.2 Sobre o tema estudado e a história de sua escolha 42 2.3 Sobre a cidade: caracterização 47 2.4 Da metodologia utilizada 50 2.5 Sobre as entrevistas e os sujeitos da pesquisa 56 2.6 A análise dos dados coletados e a bricolagem teórica 60 Capitulo 3 SABINÓPOLIS: POR TRÁS DAS MONTANHAS DE MINAS 67

3.1 A relação Brasil-Colônia e Igreja Católica 68 3.2 A constituição do Arraial São Sebastião dos Correntes 72 3.3 Igreja e Estado: Mudanças no período Imperial 75 3.4 Um acontecimento paradigmático: o roubo do missal em São Sebastião dos Correntes 81 3.5 Vigário Marcelino: o 'Império' do Pai dos Pobres 84 3.6 Brasil Republicano: a dissolução da relação Igreja/Estado 90

Capitulo 4 DE SÃO SEBASTIÃO DOS CORRENTES A SABINOPOLIS: O PARADIGMA DA MODERNIDADE 99 4.1 A emancipação do município 99 4.2 A cidade recebe seu pároco 102 4.3 A chegada do automóvel - a ruptura do isolamento sócio-geográfico 106 4.4 A aliança religião e política 108 4.5 A construção de uma moralidade católica 110 4.6 Entre o catolicismo tridentino e os avanços modernos 113 4.7 A década de 60: acontecimentos enunciadores de novos sentidos 116

Capitulo 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 123 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 130 ANEXOS 133

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O Deus Mal Informado

No caminho onde pisou um deus

Há tanto tempo que o tempo não lembra Resta o sonho dos pés

Sem peso Sem desenho.

Quem passe ali, na fração de segundo, Em deus se erige, insciente, deus faminto,

Saudoso de existência. Vai seguindo em demanda de seu rastro,

É um tremor radioso, uma opulência De impossíveis, casulos do possível. Mas a estrada se parte, se mil parte,

A seta não aponta Destino algum, e o traço ausente

Ao homem torna homem, novamente.

Carlos Drummond de Andrade

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INTRODUÇÃO

É unicamente através da análise histórica que nos podemos dar conta do que o homem é constituído; pois ele só se formou ao longo da história.

ÉmileDurkheim

Este estudo propõe analisar as relações entre a subjetividade e a religiosidade católica, na cidade mineira de Sabinópolis. Nascida com o nome de São Sebastião dos Correntes no inicio do século XIX, no fim do período do ciclo do ouro, tal cidade surge por doação de terras à paróquia de Vila do Príncipe – atual cidade do Serro. Através de escritura pública, o casal serrano doa à Irmandade São Sebastião as terras que dariam origem a São Sebastião dos Correntes/ atual Sabinópolis. A pergunta que deu origem a esse estudo foi produzida no interior do serviço

público de Psicologia, nos anos de 2001 a 2002, no atendimento vinculado ao PSF-

Programa Saúde da Família do município de Sabinopolis, MG. Ali, os atravessamentos

e as significações religiosas começaram a formular o problema que aqui ora se discute.

O discurso religioso assumia funções diferentes - seja para fundamentar uma segurança

ao enunciador, para garantir uma significação para o existir, seja para prescrever regras

com as quais o crente se vinculava, ora se aprisionando nelas - subordinadamente, ora

Colocando-as em questionamento. No entanto, em sua maioria, o medo advindo de um

desconhecido, da concepção de pecado e culpa, era o impeditivo de uma ação. Diante da

dúvida, a inércia prevalecia, casamentos sem sentidos, relações adoecidas, justificativas

míticas encobriam um entendimento do lugar social.

Outras vezes, esse discurso, ou o lugar religioso, era o que permitia a

organização do sujeito adoecido. No espaço religioso um lugar era encontrado. A visão

social sobre o adoecimento psíquico assumia uma perspectiva anímica, onde o

adoecimento tomava ainda as significações de "coisa do diabo", "vontade de Deus", ou

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"magia", "feitiço". Com tais significações, a perspectiva de processo de adoecimento, ou

da história social e cultural, sofria resistência. A produção de subjetividades adoecidas

ou não, não era percebida. Em outros momentos, era na crença religiosa que um outro

significado emergia, promovendo a ação do sujeito, por apoiar-se na fé.

Assim, o estudo sociológico da religião tem que considerar as mudanças

históricas que influenciaram o processo sócio-cultural, a construção do saber, a

produção de subjetividade e a própria função social da religião. Para isso, três grandes

marcos históricos podem ser definidos: o período colonial ou pré-moderno, a

modernidade e o momento atual, chamado por alguns de pós-modernidade.

A caracterização desses três tempos é distinta: o período colonial é marcado pelo

pensamento mítico-religioso, que organizava todas as esferas da vida humana, a

economia era movida pelo modo de produção colonial (rural, sustentado pelas fazendas

e no trabalho escravo), as relações sociais se fundamentavam na tradição, onde o

catolicismo era o fundamento da família patriarcal, a idéia de sujeito e indivíduo se

encontrava ausente, pois era o sagrado que ordenava o mundo e o coletivo. A idéia de

Deus se constituía como Cosmogonia. A modernidade baseia-se na produção industrial,

e no sistema de trocas (comércio), ocorre o nascimento das cidades, a perda de

hegemonia do saber religioso e a predominância do saber racional. Havendo o processo

de dessacralização da realidade, denominada como secularização. A racionalidade faz

nascer a individualidade, o sujeito racional, pensante. É pela razão e pelo progresso que

o homem proverá a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade, lema iluminista que

mobilizou a Revolução Francesa (séc. XVIII). Esses valores, no período colonial, eram

atribuídos ao transcendente, à religião. A pós-modernidade é marcada pela tecnologia

de informação, pela intensificação de um modo de vida urbano, pela descrença nos

ideais modernos: Liberdade, Fraternidade e Igualdade, descrença que tem sua origem no

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agravamento das desigualdades sociais e no uso da razão como instrumento de opressão

e dominação. O sagrado é vivido como experiência intima não mais propriedade ou

atributo da religião. Há pluralidade de religiões e não mais hegemonia de um único

discurso religioso.

O trabalho proposto foi organizado de modo a se compreender qual a função

social da religião e, de modo especifico, que modelos de religiosidade e subjetividade a

religião católica produziu e produz em Sabinópolis. Para tal, um autor escolhido foi

Émile Durkheim, pela importância de seus estudos sobre a sociologia da religião.

O primeiro capítulo objetiva levar o leitor a entender e relacionar como a

religião originou-se e produziu modos de pensar, sentir e agir, a partir da necessidade

humana de significar o existir. Aqui a idéia de sagrado, de numinoso, será o centro do

entendimento. Não apenas na perspectiva durkheimiana, mas também nas dos demais

autores escolhidos para dialogar sobre o objeto em estudo, Oswald de Andrade e

Guattari. O numinoso revela a intensidade da vida, intensidade que atravessa o homem,

o fazendo sentir, provocando a produção de significados para si e para o vivido. O

sagrado, que dá significado e une, produzindo um território simbólico, no qual o homem

transita. Mas os significados se transformam, modificam, fragmentam-se, sofrem

mutações, pois a existência quebra as fórmulas feitas.

Os capítulos 2 e 3 irão, numa perspectiva longitudinal e ao mesmo tempo focal,

recompor as relações entre o processo de colonização brasileira e a função do

catolicismo no Brasil. O leitor perceberá que a trajetória escolhida para recompor o

contexto histórico baseou-se em mudanças de cenário, em que os atravessamentos do

contexto mundial perpassarão o nacional, chegando ao foco da pesquisa: Sabinópolis.

Os três tempos acima: pré-moderno/colonial, moderno e pós-moderno serão recompôs-

tos. Entretanto, na realidade estudada não se pode dizer de uma grande influência de

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uma mentalidade pós-moderna, posto que o próprio processo de urbanização e de

modernização ainda se encontra em desenvolvimento, como será mostrado no decorrer

da dissertação. Ressalta-se ainda, que no capitulo 2, os procedimentos metodológicos

para recompor os cenários e cartografar as mudanças na religiosidade católica e nas

subjetividades serão detalhados, como também se discutirá qual a concepção de

conhecimento sustenta essa pesquisa.

O capítulo 4 - a inserção na modernidade - foi colocado em destaque, pois nele o

tempo histórico escolhido, 1927 a 1967, será priorizado, cartografando as mudanças na

religião católica - cenário mundial, nacional e local - na subjetividade e na religiosidade,

no contexto político, buscando evidenciar acontecimentos enunciadores de novas

composições subjetivas. Revelando como os modelos subjetivos aprendidos

fragmentam-se e organizam-se sobre a influência da religião católica. Nesse processo

cartográfico, as entrevistas, os dados documentais, a literatura específica vão possibilitar

a recomposição dos cenários.

Por fim, nas considerações finais, são desenvolvidos comentários sobre o

processo de subjetivação produzido no contexto estudado. Para tanto, o diálogo com os

autores escolhidos será retomado, não para se afirmar uma verdade, mas para produzir

um entendimento.

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Capítulo 1 UMA BREVE REVISÃO DA SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO SEGUNDO DURKHEIM

Quem deixou de ter fé é uma pessoa desiludida, eu não acredito que a pessoa não acredita em nada. A gente tem que acreditar em alguma coisa. Como a gente vai viver sem acreditar em nada?M.P.B.

[... importância da religião] é muito importante, pois através dela você

encontra um caminho. Um caminho para você sair do buraco, um caminho para você querer viver.Para você ter um desejo de viver.Se você não tem esperança nenhuma seu desejo de viver morre junto.A.M.J.1

1.1 Introdução ao pensamento de Durkheim

A análise sociológica terá como fundamento os estudos de Émile Durkheim. A

escolha do autor como referência teve por critério a importância sociológica de seus

estudos sobre a função da religião na constituição do nomos social e do sujeito social. A

idéia de constituição é fundamental, pois o homem é um ser construído socialmente e

assim reafirmado ou não. Em O suicídio, obra publicada em 1897, Durkheim analisa

várias sociedades e seus valores, apontando em que condições o indivíduo comete o

suicídio. Nesse contexto reflete sobre a função da religião católica, protestante, judaica

e argumenta que toda sociedade mantém valores, normas e instituições que a sustentam

em seu funcionamento, permitindo ao indivíduo um amparo simbólico no qual se

constitui. O que confere consenso social aos valores é o assentimento de autoridade que

o grupo – ou os indivíduos – atribuem a eles. Autoridade ‘sacrossanta’ e acima de

qualquer contestação. Entretanto, as sociedades transformam seus valores e suas

instituições ao longo de sua história, mantendo ou não o consenso social. A perda de

consenso leva à perda de hegemonia e de força simbólica, permitindo o questionamento

dos valores, das instituições e a mudança social. O questionamento gera o estado de

anomia, em que o sentimento de angústia e de desamparo provoca, por um lado, a 1 Trechos das entrevistas preliminares, realizadas no ano de 2005, com pessoas da comunidade em estudo, visando compreender a importância da religião.

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reafirmação de antigos valores, por outro, a sua destituição e a construção de novos

valores.

Nesse contexto de transformação social, Durkheim estuda o suicídio, refletindo

como isso afeta o indivíduo, levando ao ato suicida. Argumenta que a razão e o livre

exame sobre si favorecem o suicídio, em culturas que não possuem um consenso social

forte sobre seus valores. Assim, argumenta que as sociedades religiosas, sobretudo as

católicas, apresentam menor índice de morte por suicídio, pois unificam os indivíduos

em torno de uma doutrina religiosa e não favorecem a atitude do livre exame. O

católico recebe um corpo doutrinário dentro do qual constrói uma significação para si,

que lhe é passada conforme a tradição. O motivo que impede o ato último contra si

próprio é estar o indivíduo vinculado à coletividade religiosa, através de um princípio

unificador: o sagrado. A religião configura-se como um território simbólico, que une o

indivíduo a uma comunidade. Na citação a seguir pode-se ver o pensamento de

Durkheim sobre a importância da religião na vida de uma pessoa:

Ora, uma assembléia religiosa não existe sem um credo coletivo e é tanto mais forte quanto mais extenso é esse credo.[...] Ela só os socializa ligando todos a um mesmo corpo de doutrinas, e socializa-os tanto melhor quanto mais vasto e mais solidamente constituído é esse corpo de doutrinas. Quanto mais numerosas são as maneiras de agir e de pensar, marcadas por um caráter religioso, subtraídas, por conseguinte, ao livre exame, mais a idéia de Deus está presente em todos os detalhes da existência e faz convergir para um único e mesmo objetivo as vontades individuais. Inversamente, quanto mais um grupo confessional deixa ao julgamento dos indivíduos, mais ele está ausente de sua vida, menos tem coesão e vitalidade. (DURKHEIM, 2000:188)

Em 1912, Émile Durkheim publica As formas elementares da vida religiosa,

utilizando, por método de estudo, a observação e a descrição, modelo positivista da

ciência moderna. Nessa obra, buscou compreender as formas religiosas das tribos

australianas.

Seus estudos objetivaram responder a duas perguntas: o que é a religião e que

papel ela desempenhava na sociedade humana. O que motiva sua pesquisa é a

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preocupação com o funcionamento harmonioso da sociedade e a com a coesão social.2

A sociedade européia mostrava-se a seus olhos ainda pouco integrada e cheia de

contradições; a família e a religião acusavam sinais do enfraquecimento de suas antigas

funções. Ele acreditava ser necessário descobrir novas fontes de solidariedade e de

consenso entre os membros da sociedade para fortalecer sua coesão. (QUINTANEIRO:

1995)

Nessa perspectiva, voltou o estudo sociológico para a religião, e então fez crítica

a duas correntes cientificas que concebiam a religião como ilusão: o animismo e o

naturalismo. A primeira por entender que a religião seria um pensamento primitivo,

presente na criança em seu desenvolvimento inicial e típico dos primitivos; a segunda

por pensar que o fenômeno religioso seria uma confusão de ordem da natureza

lingüística, em que a metáfora seria a responsável pela existência do fenômeno

religioso.3 Sua defesa baseou-se no fato de que a religião tem uma história tão antiga

quanto a humanidade, portanto, uma ilusão ou um delírio não poderiam durar tanto

tempo. E enquanto ilusão, não poderia a religião desempenhar uma influência tão forte

nas consciências, influência que é tomada como característica fundamental da mesma.

Com esse raciocínio, o autor chegou à seguinte definição: 2 Küng 2004-Em Religiões do Mundo, adverte que os estudos sobre a religião realizados no modelo da Ciência Moderna ,no final do séc. XIX, apresentam dois paradigmas nos quais procuravam enquadrar as religiões tribais: a idéia de evolução e de progresso,no qual a magia, a religião e a ciência seriam diferentes estágios, sendo o ultimo o mais avançado. Na raiz desse pensamento estão as descobertas de Darwin. O outro modelo, oposto, referenciado na Bíblia e na idéia de que as religiões tribais conheceram o monoteísmo, tendo evoluído para o politeísmo, para depois degenerar em pura magia. Tinham portanto, conhecido o princípio unificador de um grande pai. A idéia de um evolucionismo fomentou a ‘superioridade’ ocidental/européia, não apenas na ciência, mas no domínio territorial nos diferentes continentes. Já Quintaneiro 1995,adverti-nos que a maior parte da vida de Durkheim transcorreu durante a Terceira Republica francesa (1870-1940), época caracterizada pela instabilidade política e pelas guerras civis, tendo isso influenciado seu estudo. 3 O naturalismo, ou naturismo, concepção que toma a natureza como a grande força cósmica. Tal idéia religiosa teria se desenvolvido a partir da sensação humana de infinito e de espanto frente à grandiosidade da natureza, sensação anterior a linguagem. Assim, as sensações seriam uma das bases do fundamento religioso naturalista. Com a evolução da linguagem e a necessidade humana de classificar, e pensar tais sentimentos foram nomeados metaforicamente: forte como uma montanha, livre como o vento etc. Neste sentido a religião existe pois é efeito de linguagem, portanto, ao se alterar a linguagem , alteraria a religião. Durkheim mostra que também o naturalismo entendia a religião como ilusão. Pois o discurso havia criado um mundo espiritual. “Ele (o naturismo) também fez da religião um sistema de imagens alucinatórias, já que a reduz a ser apenas imensa metáfora sem valor objetivo’ Durkheim:1989;pág.117

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... uma religião é um sistema solidário de crenças seguintes e de práticas relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas; crenças e práticas que unem na mesma comunidade moral, chamada igreja, todos os que a ela aderem. O segundo elemento que aparece na nossa definição não é menos essencial que o primeiro; pois, mostrando que a idéia de religião é inseparável da idéia de igreja, faz pressentir que a religião deve ser coisa eminentemente coletiva. (DURKHEIM, 1989:79)

O sagrado – sobrenatural – não está destituído de racionalidade, não há uma

cisão de sagrado e profano, pois o sagrado ordena a existência atribuindo-lhe

significação. As proibições e os ritos religiosos são formas de reafirmar o sagrado como

um ideal que unifica um grupo, que o torna elevado e fortalecido em seu ideal, pela ação

cooperativa, pelos modos de pensar e sentir em comum. Assim, não existe religião sem

Igreja. Toda e qualquer religião se expressa em um modo coletivo de pensar, sentir e

agir, modo que está intimamente ligado aos ideais projetados pelo grupo. O sobrenatural

não estaria relacionado ao extraordinário, ao inesperado, mas ao ordenamento do curso

da vida. Assim – concluía Durkheim – tanto no indivíduo quanto no grupo, a faculdade

de idealizar nada tem de misterioso. A religião, enquanto idealização, não é uma espécie

de luxo que o homem poderia dispensar, mas uma condição para sua existência. Ele não

seria ser social, ou seja, ele não seria homem. Ele (o sagrado) sistematiza a vida. A

citação a seguir é uma síntese do pensamento do autor sobre como a religião organiza o

mundo.

O aspecto característico do fenômeno religioso é o fato de que ele pressupõe uma divisão bipartida do universo conhecido e conhecível em dois gêneros que compreendem tudo o que existe, mas que se excluem radicalmente.As coisas sagradas são aquelas que os interditos protegem e isolam, as coisas profanas, aquelas ás quais esses interditos se aplicam e que devem permanecer á distancia das primeiras. As crenças religiosas são representações que exprimem a natureza das coisas sagradas e as relações que essas mantêm entre si e com as coisas profanas. Enfim, os ritos são regras de comportamento que prescrevem como o homem deve se comportar com as coisas sagradas. (DURKHEIM, 1989: 72)

1.2 O sagrado institui um território simbólico

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O sagrado é revestido de poder que fortalece o crente, dando-lhe significação.

Ele permite a constituição de um centro absoluto através do qual o homem e a

comunidade que crê ordenam o viver. Do ponto de vista simbólico, esse centro é

mantido por meio do culto, do credo coletivo (corpo de doutrinas) vivenciado em

práticas coletivas diversas que se transformam em hábitos. Os hábitos expressam como

a prática e o credo religioso foram internalizados pelos indivíduos, dominando sua

consciência e suas ações. E assim, mantendo a unidade do grupo em torno de um

princípio unificador: Deus. O sagrado funda ontologicamente o mundo e o homem, ao

fixar os sentidos e significados em torno do nómoi/ nómos, aquilo que tem caráter de

ser. A experiência de estar no mundo jamais é de todo inteligível e os conceitos não

conseguem dominar as nossas sensações e traduzi-las. Os conceitos, os sistemas de

representação (religião, ciência) de alguma forma 'matam' as sensações, ao lhe imprimir

um sentido, uma nomeação, o que permite a ação. Do contrário, o homem viveria

sobressaltado pela intensidade de suas sensações, numa posição de insegurança e

fragilidade diante da vida. A religião, ao se instituir em função do sagrado, torna-se,

pois, um elemento constitutivo da ordem social e do sujeito que crê, ao instituir uma

ética e uma moral que o orientam. Um território simbólico.4 É o que lemos no

pensamento de Durkheim:

... a religião é coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente no seio dos grupos reunidos e que se destinam a suscitar, a manter, ou a refazer certos estados mentais desses grupos. (DURKHEIM: 1989, pág.38.)

4 Território, não se refere ao espaço geográfico, e ao pertencimento grupal. Território designa ‘as máscaras, os rituais, as balizas de cartografia, configurações mais ou menos estáveis, que atravessam terras e grupos os mais variados: são transversais, transculturais. ’ROLNIK:1987;57.Ex: concepção de mulher, de homem.

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Nos cultos, o homem religioso revive a experiência do sagrado, atualiza sua

crença, ao sentir-se ligado com o transcendente, com o eterno. Pela vivência ritual e

simbólica, o homem se fortalece para enfrentar o mundo. Ele ‘abre-se’ à experiência da

vida, pois crê ser protegido pelo sagrado, vê o mundo como lugar de atualização do

transcendente, pois nele a força vital incriada atua sobre todas as coisas. Acreditando

nisso, o espaço é organizado em torno das coisas sagradas, a comunidade se situa

geograficamente voltada para o símbolo sagrado (a igreja, o templo, a pedra), o morar, o

viver e o morrer são ritualizados como forma de preservação da memória coletiva e de

iniciação dos novos membros nas significações que mantêm o grupo. O tempo é

dividido em dois: profano e sagrado. Enquanto o primeiro finda, o outro é atemporal,

eterno. A significação de sacralidade de si e do mundo se estende a todas as coisas,

constituindo uma cosmogonia, como observou Eliade (1969:188):

Convém precisar que todos estes rituais e simbolismos da "passagem" exprimem uma

concepção especifica da existência humana: uma vez nascido, o homem ainda não está acabado; deve nascer uma segunda vez, espiritualmente; torna-se homem completo passando de um estado imperfeito, embrionário, a um estado perfeito, de adulto. Numa palavra, pode dizer-se que a existência humana chega à plenitude por uma serie de ritos de passagem, em suma por iniciações sucessivas.

1.3 A constituição do nómos social e do sujeito social

A religião é uma representação social, que tem por função tirar o homem da

anomia, criando nómoi (normas), que garantem os laços sociais de convivência e a

significação do vivido.5 A função da religião e do culto é criar coesão, ao proporcionar a

um grupo de homens a condição fundamental para que possam conhecer o laço social.

Nesse processo, há a possibilidade do surgimento do novo e de ruptura com um modo

5 BEGER, Peter(1985) - A religião constituindo um nomos, favorece ao individuo uma realidade significativa que o sustenta frente aos fenômenos anômicos, e que envolve todas as suas experiências. O individuo que interioriza adequadamente esses sentidos transcende ao mesmo tempo a si mesmo.

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de vida. O homem religioso se sente mais forte que os outros homens, pois se sente

integrado ao sagrado.

O fiel que comungou com seu deus não é apenas homem que vê verdades novas que o incrédulo ignora: é homem que pode mais. Ele sente em si força maior para suportar as dificuldades da existência e para vencê-las. Está como que elevado acima de sua condição de homem; acredita-se salvo do mal, alias, sob qualquer forma que se conceba o mal. O primeiro artigo de qualquer fé é a crença na salvação pela fé. (DURKHEIM, 1989: 494)

O indivíduo que crê busca transcender os limites de si mesmo, ao assumir

princípios morais que o ligam à comunidade religiosa, ao sagrado, pelos valores

transcendentes/religiosos. A essência da religião não é a idéia, mas o ‘sistema de

forças’. Sistema que o crente acredita dominá-lo, ao mesmo tempo que o mantém e o

eleva acima de si próprio. O homem vive em constante conflito entre duas forças

opostas: a vivência egoísta de sua individualidade, de suas sensações e a vivência

moral/coletiva. O homem é homo duplex. A moralidade, para ser vivida, requer a

frustração dos impulsos egoístas. A sociedade pode impor tal vivência através do

sistema de forças punitivas coercitivas, como pode ser ela internalizada através da

experiência com a comunidade religiosa. Na base da moralidade há o respeito e o temor

sentido pelo crente diante do sagrado e o poder dele advindo.

O antagonismo humano frente à individualidade e à moralidade se revela em

dois conceitos distintos: o corpo e a alma:

“Enquanto o corpo se dissolve e morre, a alma sobrevive-lhe, e, nestas novas condições, prossegue, durante mais ou menos tempo, o curso dos seus destinos. Pode-se mesmo dizer que, embora estreitamente associados, o corpo e a alma não pertencem ao mesmo mundo. O corpo faz parte integrante do universo material, tal como o conhecemos pela experiência sensível; a pátria da alma está algures noutro sítio para onde a alma constantemente tende a voltar. Esta pátria é o mundo das coisas sagradas. Tem assim uma dignidade que foi sempre recusada ao corpo; enquanto este é considerado essencialmente profano, ela inspira algo como esses sentimentos que são sempre reservados para o que é divino. Ela é feita da mesma substância que os seres sagrados, diferindo apenas pelo grau.

“Uma crença assim universal e permanente não poderia ser puramente ilusória. Para que, em todas as civilizações conhecidas, o homem tenha sentido duplo, é preciso que haja nele algo que tenha dado origem a este sentimento. A análise psicológica vem efetivamente confirmá-

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lo: ela volta a encontrar a mesma dualidade no próprio seio da nossa vida interior”. (DURKHEIM, 1970:291)

O caráter duplo do homem e o antagonismo dele decorrente evidenciam o perigo

da vivência egoísta individualista, anômica, pois o homem se faz no processo de

socialização pela internalização dos nomoi sociais. Entretanto a dualidade ou a

ambigüidade que lhe é característica mantém elementos não socializados. Esses devem

ser submetidos às normas. Os ritos religiosos têm o papel de reafirmar o grupo,

santificando as normas da sociedade na religião, fortalecendo assim o ser social. Os

ritos possibilitam a vivência de sentimentos e a expressão do caos, evidenciando o

perigo, para depois ritualmente dominá-lo, reduzindo o medo e restabelecendo o

controle. Para Durkheim, tanto os ritos religiosos quanto o ritual de julgamento e

castigo de um criminoso são análogos, pois têm a função de dramatizar a condição

humana: caos e ordem.

“O espetáculo atua como um agente para ‘curar as feridas´ que o crime provoca nos ‘sentimentos coletivos’, e restabelece o respeito devido às normas da sociedade. De forma semelhante, a religião, em seus ritos,provoca a expressão de sentimentos que sustentam normas e valores fundamentais e, assim, os restabelece na consciência dos crentes”.(ODEA:1969:24)

1.4 A experiência do sagrado, das sociedades tribais à sociedade tradicional. Diferentes paradigmas

Nas sociedades tribais, a experiência do sagrado se

expressa numa vivência marcada pela continuidade e inserção do

homem no mundo. O caráter mágico de sua existência e o

pensamento anímico que caracterizam a vivência sagrada o

fazem sentir-se como uno e semelhante às forças naturais e

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cósmicas. Tal força de pertencimento possibilita a organização

de uma sociedade em que os sujeitos sociais, identificando-se com

seus Totens (animais ou elementos da natureza) e mantendo seus

tabus (proibições), sentem-se comungar da força sagrada

emanada dos mesmos. O homem 'primitivo' vê no mundo a

expressão de tal força. Do ato de colher, do ato de gerar, ao ato

de alimentar, há uma continuidade do ser sagrado. Portanto, não

há uma ruptura do eu e do mundo, pois o sagrado pode assumir

diferentes formas. Daí, a multiplicidade de forças, de deuses, de

rituais. A religião não se apresenta instituída de forma

hierarquizada ou burocratizada, porém tal e qual o homem

religioso das sociedades tradicionais ocidentais, o homem tribal

acredita que, pela força ritual da magia, das celebrações de seus

cultos, das festas e das danças, participa da origem sagrada da

existência e celebra a sua magnitude.

O olhar etnocêntrico do homem ocidental sobre as sociedade tribais, a concepção

de um modelo único de religião (cristianismo católico) e o paradigma de uma evolução

biológica do homem – de um pensamento primitivo, anímico ao pensamento evoluído,

razão – permitiu e justificou a dominação das sociedades consideradas 'primitivas',

incultas. Há que se considerar que a análise de Durkheim das sociedades tribais

fundamenta-se no paradigma evolucionista, entretanto, seu estudo não busca reafirmar a

supremacia do homem ocidental, mas relacionar a importância da magia (força sagrada,

religiosa) com o modo de vida e de organização tribal revelando que há um

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ordenamento do mundo que permite a constituição de uma sociedade, sua coesão e seus

laços societários. O homem tribal comunga um credo que lhe permite criar uma cultura,

sistema simbólico. Assim, a magia e o totem relacionariam ao ritual religioso o homem

ocidental de tradição cristã, tendo a importância de promover a elevação simbólica do

homem sobre si mesmo, unindo-o a uma coletividade através da experiência sagrada.

Dois modelos distintos: a religião tribal – politeísta, festiva, carnal, ritualizada e

mantida pela tradição oral, imanente; a religião cristã católica – confessional,

monoteísta, ritualizada, doutrinária, transcendental, mantida através dos textos bíblicos.

Dois universos simbólicos distintos, que possuem normas e significações que unificam

os indivíduos, fazendo-os superar sua condição de indivíduo e elevando-os à condição

de sujeitos sociais por estarem vinculados a uma concepção sagrada de existência, a um

sistema religioso. Dois modelos que traduzem experiências distintas de estar no mundo

e de conhecê-lo. No pensamento anímico tribal, o homem não apresenta um estatuto de

grandeza diferenciado dos demais elementos do mundo, ele não seria 'imagem e

semelhança do criador', pois tudo que o rodeia, e ele próprio, possuem a mesma

origem.6

Assim, o homem tribal não ignorava a morte ou a temia, pois a eternidade não

estava posta para além da vida, mas era a própria vida, com seus ciclos. Os rituais e as

cerimônias eram meios de transmitir e reviver o conhecimento dos antepassados,

conhecimento que se mantinha nas tradições, nos costumes, preservado na oralidade,

nos contos, mitos e lendas. O que importa para o homem tribal não é a história ou a

plausibilidade do que se conta, mas o sentido do que se conta para a compreensão e

6 Kung (2004), coloca-nos que a relação do homem tribal com a terra é de cuidado, pois ela é santificada pelos espíritos passados. O passado, o presente e o futuro constituem uma unidade indissociável, pois no mundo visível o eterno está invisivelmente presente. Portanto, não há necessidade de orações ou sacrifícios a divindades fora do mundo, como na tradição cristã, pois a eternidade não está no atemporal, mas no temporal, na natureza. 'A força vital incriada,eterna- é ela que atua sobre todas as coisas. Uma religião como essa, ligada a natureza, enraíza o indivíduo na eternidade. Confere-lhe uma identidade,uma consciência de um alto valor pessoal'.

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significação do mundo e de si mesmo. As normas sociais e a própria organização social,

advindas da concepção do sagrado, possibilitavam ao homem tribal uma ética para

consigo mesmo e com o outro, e tornavam possíveis a cooperação e a diferença, pois

representavam a multiplicidade da criação.

1.5 A institucionalização do Sagrado: a religião

O sagrado é vivido de forma ambígua, pois ao mesmo tempo em que investe o

que crê de poder, requer cuidado, sendo o comportamento controlado por proibições que

normatizam as ações do grupo social que nele crê. As normas, ritos e prescrições ligam

os que crêem ao sagrado, ao mesmo tempo que revivem a experiência originária. No

entanto, é necessário dizer que é no cotidiano do viver que a experiência do sagrado

acontece. E é nomeada como algo Outro, numinoso,7 por sua força e intensidade, o que

permite a significação e ou re-significação da existência e move o homem a agir e a

agrupar-se com outros – parceiros com os quais compartilha o experienciado. Para que

se mantenha a memória do grupo, os ritos são criados. Assim, institui-se a religião,

como forma de manter e divulgar a experiência do sagrado. Em sua origem, portanto, o

sagrado não se aprisiona à instituição, ele é parte do viver. Ou seja, é na imanência que

o transcendente é sentido, experimentado.

“A invenção cultural do sagrado se realiza como processo de simbolização e encantamento do mundo, seja na forma de imanência do sobrenatural no natural, seja na transcendência do sobrenatural. O sagrado dá significado ao espaço, ao tempo e aos seres que neles nascem, vivem e morrem.

“A passagem do sagrado à religião determina as finalidades principais da experiência religiosa e da instituição social religiosa”. (CHAUI,1997:308)

7 Expressão usada por Rudolfo Otto para expressar a experiência com o sagrado.

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È, pois, pela via do Sagrado que o homem transcende a sua condição de indivíduo, pois se liga a valores que remetem à coletividade, permitindo ao indivíduo sair de uma posição egoísta e narcisista, edificando-se em ser moral e social. A religião é fundamento de unificação social, sendo uma forma através da qual a sociedade forma o ser social, ao lhe transmitir valores e idéias, inserindo-o no grupo. Nas sociedades tradicionais, ela é um elemento forte de coesão social, de legitimação de um modo de vida. Ao legitimar o viver, a religião cria um discurso no qual as desigualdades são explicadas através do divino. Explicação que permite o funcionamento social, dando alento e proteção tanto para os pobres, quanto para os ricos, ao possibilitar um sistema de representação simbólica que justifica e legitima a situação social. Assim, coloca em suspenso a dimensão histórica do homem, pois a história é também entendida através do pensamento religioso Se, por um lado, a legitimidade garante a solidariedade grupal; por outro, ela impede a transformação social – donde o seu caráter alienante, como disse Ódea (1966:16):

“A religião, através de sua referência a um além, e por suas crenças referentes à

relação do homem com esse além, dá uma interpretação supra-empírica de uma realidade total mais ampla. No contexto dessa realidade, as decepções e as frustrações impostas à Humanidade pela incerteza e pela impossibilidade, e pela ordem institucionalizada da sociedade humana, adquirem significação em algum sentido final, e isso permite a sua aceitação e o ajustamento a elas.”8

É nesse contexto, que se pode compreender a não existência da idéia de

indivíduo nas sociedades tradicionais; idéia tão cara à modernidade, pois o homem só

era entendido como tal a partir dos modelos religiosos ou míticos com os quais

significava a existência e a si próprio. Tanto o pensamento anímico da religião tribal,

quanto o pensamento racional cristão de uma religião evoluída, posto que monoteísta,

eram um impeditivo da sociedade moderna. Na cultura ocidental católica cristã, a

imposição do cristianismo como verdade absoluta possibilitou o controle das ações

humanas, pela internalização do medo, da disciplina e da negação da verdade do homem

tribal. A absolutização do transcendente e a generalização de seu poder exerciam sobre

8 Também Boff, ao refletir sobre o catolicismo popular e questionar o que é o catolicismo, coloca-nos que a medida que o catolicismo cresceu ele deixou de ser uma mediação simbólica do corpo de cristo, para se tornar uma corporação de cristãos. Surgiram, assim, as necessidades próprias da organização religiosa (da igreja), reafirmando o desejo de segurança e certeza. E a fé no Evangelho começou a ceder lugar a fé no direito divino. O catolicismo assim tornou-se patológico, alienante, pois excluiu a dimensão histórica do cristianismo, e confundiu o religioso com o organizacional, ao afirmar que a igreja católica romana era a igreja de Cristo, e não uma mediação de Cristo no mundo.Tal posição só será revista, no séc. XX, com o Concilio Vaticano II. BOFF (1976:23).

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os corpos, espaços e consciência uma influência tal que impediam o desenvolvimento

de uma ontologia histórica.9

1.6 Modernidade, religião e ciência

Durkheim vê ameaçada a solidariedade social, sobretudo após a Revolução

Francesa, quando as instituições tradicionais, família e religião, perdiam legitimidade e

a individualidade passava a ser referenciada como valor, condição de liberdade. A perda

de consenso em torno dos valores religiosos tradicionais, o abalo na hegemonia do

pensamento religioso católico, possibilitaram o nascimento da racionalidade técnico-

científica, a desvinculação da filosofia da teologia e uma nova organização social

denominada modernidade. A idéia de indivíduo ganha legitimidade, mais que a

concepção de coletivo, grupo ou comunidade, valores que mantinham as sociedades

tradicionais/ medievais. O indivíduo ganhava um status maior que o coletivo, colocando

em xeque uma visão unificadora e hegemônica da sociedade. A coesão social e a

solidariedade moviam Durkheim em sua crítica à sociedade moderna, à racionalidade

iluminista e evolucionista. Pois o autor considerava a sociedade, o coletivo, como valor

maior que o indivíduo. Nesse sentido é que a religião assumia um papel social

fundamental, ao assegurar a vivência do coletivo, ao constituir uma comunidade -

unidade em torno das coisas sagradas, compondo uma mentalidade que permitia o

controle social do individuo e de seu comportamento egoísta. Na sociedade moderna, o

controle passa a ser exercido pelo Estado. No entanto, Durkheim se interroga: Como o

Estado pode manter o ideal coletivo? Qual força moral poderia levar o indivíduo a

9 No caso da sociedade tradicional ocidental, o controle social foi exercido através da força física e simbólica pela religião Católica. As cruzadas e o processo de colonização da América e em especifico, do Brasil exemplificam bem o exercício de poder e a hegemonia da instituição religiosa. Assim, renegado e explorado se encontrava o corpo, pois a salvação da alma é que era a garantia da eternidade.

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frustrar seus impulsos, em prol do social, uma vez que os ideais religiosos encontravam-

se em processo de fragmentação?

Não obstante, a contingência de transformação é marca da sociedade, e crê

Durkheim que os homens sempre se unem em torno de ideais que lhes permitem superar

o viver. Todo processo de transformação é precedido de desorganização, o que gera

anomia, ou seja, a perda de referência e de sentido para o vivido. Frente à anomia e à

angústia dela decorrente, o homem se volta para o grupo, para ideais e para a busca de

novos sentidos. O processo de desorganização gera perda dos laços de solidariedade,

desaparecimento de antigos grupos, em que os indivíduos encontravam segurança e

resposta, gerando, ainda, a perda de consenso, pois as respostas antes entendidas e

aceitas passavam a ser questionadas. Os territórios simbólicos são assim

desterritorializados. Tal fato é por ele observado na sociedade moderna em

desenvolvimento, uma vez que os valores sagrados transcendentais e a instituição

religiosa católica perdem espaço para os valores racionais, individuais, da cultura

emergente e a ciência e o Estado passam a fazer o papel da religião: a constituição de

um nomos social.

Entretanto, ainda que a instituição católica tenha se posicionado como verdade,

verdade que se vê questionada com o avanço da modernidade e do saber científico,

Durkheim argumenta que a tendência da religião não é desaparecer, mas se transformar,

pois um outro sentido pode vir a ser edificado, uma vez que os ideais são expressão da

força da vida em seu fluxo e da necessidade humana de significação da existência. E a

transformação é parte da condição social, condição pela qual os grupos e os indivíduos

não apenas incorporam ideais sociais, mas os modificam, acrescentando-lhes novos

elementos. E uma consciência coletiva só se faz consenso, quando ela promove uma

nova síntese, que traz em si elementos distintos do contexto social que gerou tal

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consenso. O autor adverte que tal visão sobre a religião não é um ''rejuvenescimento do

materialismo histórico", e assim defende sua posição:

Mostrando na religião uma coisa eminentemente social, absolutamente não

pretendemos dizer que ela se limita a traduzir, em outra linguagem, as formas materiais da sociedade e as suas necessidades vitais imediatas. [...] Mas a consciência coletiva é algo mais que simples epifenômeno de sua base morfológica, assim como a consciência individual é algo mais do que eflorescência do sistema nervoso. Para que a primeira aconteça, é preciso que se produza uma síntese sui generis das consciências particulares. Ora, essa síntese tem como efeito liberar todo um mundo de sentimentos, de idéias, de imagens que, uma vez surgidos, obedecem a leis que lhes são próprias. (DURKHEIM, 1989:501)10

Duas culturas distintas, a medieval tradicional e a moderna, dois sistemas simbólicos de significados implícitos e explícitos definem a situação humana e as condições de ação dos sujeitos sociais. No processo de transformação social, outras instituições e normas são produzidas, traduzindo os novos modos de pensar e de agir. A religião é uma instituição social que foi construída ao longo da história humana e é mantida através dos ritos, do grupo social, da igreja, e sua força se faz pela vinculação ao Sagrado. Como instituição social, ela sofre os efeitos das transformações sociais e, sendo uma produção humana, é passível de questionamento e de re-significação simbólica. O culto religioso nas sociedades tribais e tradicionais é vivido como ato de fé que organiza o real, tendo também a função de reafirmar a cultura através dos rituais. Cada sociedade tem necessidade de criar rituais através dos quais confirmam suas crenças, opiniões e valores. Portanto, a sociedade moderna e a sociedade tribal tinham em comum a fé, a primeira na ciência, a segunda nos ritos religiosos e mágicos. Se os ritos religiosos determinavam formas de comportamento que remetiam ao sagrado, a ciência, na sociedade moderna, determinava formas de pensar e comportar que remetiam à racionalidade. A ciência e a religião são, pois, formas de ordenação, classificação e nomeação do real.

A religião, para Durkheim, não projeta uma forma invertida de sociedade,11 ela

retrata a própria sociedade, com seus ideais e mazelas, desigualdades. E enquanto forma

de organização do real, ela não poderia ser negada pela ciência, pois tem a objetividade

daqueles que nela crêem. Ela é um fato social, no dizer durkheimiano, uma coisa, pois

tem realidade social. Cabe ressaltar que o ordenamento social não é hegemônico, sendo

hegemônico o ideal de salvação e de eternidade que a religião propõe. Ideal que não

10 Aqui novamente se percebe a força do movimento instituinte, o novo no seio do convívio social, mas o ultrapassa. 11 Marx, Karl (1843 e 1844). Para ele, a religião é uma consciência invertida do mundo, pois impede o homem de se perceber como sujeito histórico, criador e criatura de si mesmo. O homem busca a religião como ópio de que precisa para suportar a divisão social, a miséria real. A situação em que vive o homem, o faz necessitar de ilusões, daí a busca da religião. Ela o aliena de sua condição social, ao justificar as desigualdades sociais, não permitindo a transformação do status quo.

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pode ser vivido no tempo profano, mas no pós-morte (na concepção tradicional cristã

católica). O ordenamento social será significado de modos diferentes por aqueles que se

encontram em diferentes posições sociais. Porém, o significado justificará (ou não) o

nomos social.12

Durkheim compreendeu a função social da religião, tendo por referência a

análise da hegemonia da instituição religiosa católica na sociedade tradicional/medieval

e o pensamento mágico australiano. O cristianismo caracterizou a cultura da sociedade

medieval (séc. XI), ao passo que as sociedades tribais tiveram as consciências

moduladas pelo pensamento mítico religioso; constituindo uma cosmogonia e uma

teologia que impedia a anomia e a transformação social. O advento da modernidade

coloca em xeque a soberania da religião católica, evidenciando outros modos de pensar,

de agir, sentir e conhecer, a ciência.13 No âmbito religioso, a modernidade evidenciará o

protestantismo, não apenas como outro modo de viver a fé cristã, mas uma forma

racional subjetiva de viver a fé, em que o indivíduo é reconhecido e a ele é dado o

direito do livre exame, não somente sobre si, mas sobre os modos de pensar a sua fé. E

promoverá no seio da religião católica a reflexão e mudanças sobre o seu papel social

frente às desigualdades sociais e ao agravamento das mesmas; levando a

desterritorialização da concepção transcendente do Sagrado, inserindo a dimensão

12 Nesse sentido Marx e Durkheim se aproximam, pois Marx entendia que a religião era um modo de conhecimento e significação da realidade, que funcionava para as classes populares como uma ‘lógica e enciclopédia de um mundo sem espírito’. Segundo CHAUI,1997:310, Marx procurou mostrar que a religião é uma forma de conhecimento e de explicação da realidade, usada pelas classes populares- lógica e enciclopédia- para dar sentido às coisas, às relações sociais e políticas, encontrando significações_ o espírito no mundo sem espírito,que lhes permitem, periodicamente, lutar contra os poderes tirânicos. Marx tinha na lembrança as revoltas camponesas e populares durante a Reforma Protestante, bem como na Revolução Inglesa de 1644, na Revolução Francesa de 1789 e nos movimentos milenaristas que exprimiram, na Idade Media, e no inicio dos movimentos socialistas, a luta popular contra a injustiça social e política. 13 No caso brasileiro, o encontro de diferentes culturas em um mesmo território geográfico promovera o nascimento do catolicismo brasileiro, uma nova síntese e mentalidade coletiva será produzida revelando o sincretismo simbólico.

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histórica e imanente, promovendo outro modo de ser igreja. A modernidade possibilitou

a pluralidade religiosa, ao questionar a instituição católica e seu abuso de poder.

Antes de encerrar a análise sociológica, é importante ressaltar que o processo de

transformação social possibilitou a afirmação do conhecimento cientifico como saber

necessário a legitimação de uma nova cultura, baseada na racionalidade, no sujeito/

indivíduo, no conhecimento, promovendo a mudança do epicentro cultural do

pensamento religioso para o pensamento racional moderno. A transformação só pôde

acontecer, pois o consenso social em torno dos valores religiosos viu-se abalado. A

nova cultura necessitava de indivíduos livres. Assim, um modelo unificador era

desnecessário, o modelo patriarcal de tradição cristã não se aplicava à nova cultura,

sendo até mesmo um obstáculo a ela. E a condição de liberdade estava associada à

instrução, ao conhecimento. Durkheim percebe que o conhecimento é o meio pelo qual

o homem pode superar a anomia e sua busca pelo indivíduo só ocorre após o

enfraquecimento dos valores religiosos:

O gosto pelo livre exame não pode advir sem estar acompanhado do gosto pela instrução. A ciência, com efeito, é o único meio de que a livre reflexão dispõe para alcançar seus fins. Quando as crenças ou práticas irrefletidas perdem sua autoridade, é preciso, para encontrar outras, recorrer à consciência esclarecida, cuja forma mais elevada é a ciência. [...] Em geral, os homens só aspiram a se instruir na medida em que se libertam do jugo da tradição: pois, enquanto domina as inteligências, a tradição basta para tudo e dificilmente tolera poder rival. Mas, ao contrario, busca-se a luz assim que o costume obscuro deixa de responder às novas necessidades. Por isso a filosofia, forma primeira e sintética de ciência, surge quando a religião perde seu império, e só nesse momento; e em seguida vemo-la dar origem sucessivamente, à infinidade de ciências particulares, à medida que a própria necessidade que a suscitou vai se desenvolvendo. (DURKHEIM, 2000:190)

A análise sociológica até aqui realizada aponta-nos para a importância da

religião como sistema, ou seja, um conjunto de preceitos, valores, normas que permitem

a coesão grupal, que determina comportamentos e modos de compreensão e percepção

de mundo e que se revela nos hábitos sociais daqueles que a constituem. As crenças são

expressas não somente nos discursos, mas nas ações daqueles que crêem, e são

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alimentadas nos ritos, nos signos e festejos, num ordenamento do mundo. Seja pelo

olhar de Durkheim, de Marx ou Weber, o que de comum os três autores apontam é a

força que tal sistema possui para a constituição social de um povo, de uma mentalidade.

Ainda que haja divergência entre os três sobre a função social (no contexto da sociedade

moderna) da religião: alienação ou não, ela é um organizador social. Organizador, que

possibilita um ethos, uma moralidade, determinando um estilo de vida, e ideais que

fundamentam uma legitimidade social para os que dela participam, ao mediar um

sistema de significação que inclui o mundo e o sujeito. A religião é, portanto, uma

produção social, sujeita ao processo de transformação. Como nos diz o próprio

Durkheim (1989):

"não há evangelhos que sejam imortais e não há razão para se acreditar que a humanidade seja doravante incapaz de conceber outros. Quanto a saber quais serão os símbolos em que exprimira a nova fé, se se assemelharão ou não aos do passado, se serão mais adequados à realidade que deverão traduzir, essa é uma questão que supera as faculdades humanas de precisão e, aliás, não diz respeito à substância das coisas".

1.7 Religião e Religiosidade

A religiosidade é uma experiência de foro íntimo, algo difuso, que não tem

nominação. Ela pode se revelar nos modos de expressão da fé e independe dos ritos

religiosos institucionais. Experiência e sentimento que independem de um grupo para

se expressar. A religiosidade relaciona-se à busca de um sentido que permite ao homem

uma significação de si e de sua vida, levando-o a sacralizar – tomar como sagrado –

gestos, rituais que lhe possibilitem expressar uma vivência mística.

O termo Mística (relaciona-se com mistério mistério, em grego mysterion, que

provém de múein e quer dizer ‘perceber o caráter escondido, não comunicado de uma

realidade ou de uma intenção’) não possui um conteúdo teórico, mas está ligado à

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experiência religiosa, aos ritos de iniciação. Na celebração ritual, a pessoa é levada a

experimentar, por meio de cânticos, danças, dramatizações e realização de gestos

rituais, uma revelação ou uma iluminação conservada por um grupo determinado e

fechado. Importa enfatizar o fato de que mistério está ligado a essa vivência, à

experiência globalizante, que é sentida como poder.

A experiência mística é o que fundamenta os rituais simbólicos que permitem ao

sujeito uma re-ligação consigo e com o mundo. Nesse sentido, rompe-se a dualidade

sagrado / profano, pois o próprio existir torna-se expressão da mística, da religiosidade.

Religiões são cristalizações posteriores da experiência mística. Suas instituições valem,

na medida em que conservam essa experiência, transmitindo-as às gerações posteriores,

e pela capacidade de suscitá-la nas pessoas, que então se fazem religiosas.

A religiosidade relaciona-se à intensidade do vivido, intensidade que leva à

necessidade humana de compreender, de significar a existência, necessidade que se

pauta nas questões essenciais: de onde venho? para onde vou? quem sou eu? Sendo

assim, a religiosidade não se vincula necessariamente a uma religião/ instituição, ainda

que a religião dela se aproprie para se sustentar como sistema / instituição. A

religiosidade pode ser vivida de múltiplas formas, mesmo por aqueles que se nomeiam

não-crentes, não se vincula a uma idéia de Deus, ou de entidade explicativa,

unificadora, pois a religiosidade está intimamente relacionada à experiência de ser no

mundo, a uma busca de sentido, que permite re-ligar-se, crer. Religiosidade e fé então se

relacionam. A fé, o crer, vincula-se a um sentido que tem força de verdade. A fé pode

fundamentar uma religião, um princípio científico.

ECO (1999), ao argumentar sobre o que crêem os que não crêem, aponta que no

contemporâneo, vivemos uma religiosidade que não se vincula a uma idéia

transcendente de Deus, sobretudo um Deus que não pode ser questionado. A história de

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uma ‘religiosidade laica’ se fez pelo questionamento do princípio unificador, Deus, e de

todo o abuso de poder da igreja católica. Assim, o autor amplia o olhar sobre a

religiosidade, mostrando que ela está para além de qualquer instituição normativa

religiosa. Ela se vincula, sobretudo, a um modo de ser, de comporta-se diante da vida,

um modo de reconhecer o outro. Nesse sentido, a transcendência não é verticalizada –

num Deus que tudo vê – ela é horizontalizada. A transcendência não se refere ao ‘além’

– supra-empírico, mas um além de si, uma superação do narcisismo humano, que se faz

pelo reconhecimento do Outro, o diferente de mim, que, sendo outro, me faz perceber o

eu e construir o nós, através de um posicionamento ético-social. A transcendência é

condição da imanência. Ele define sua posição:

... creio poder dizer em que fundamentos se baseia, hoje, minha ‘religiosidade laica’_porque acredito firmemente que existem formas de religiosidade, e logo sentido do sagrado, do limite, da interrogação e da espera, da comunhão com algo que nos supera, mesmo na ausência da fé em uma divindade pessoal [...]. A dimensão ética começa quando entra em cena o outro.Toda lei, moral ou jurídica, regula relações interpessoais, inclusive aquelas com um Outro que a impõe. (ECO,1999:84)

FREI BETTO,14 como ECO, diz-nos de uma religiosidade que se fundamenta

numa transcendência histórica, que nos leva à busca de uma utopia, a mudanças, a uma

possibilidade de vida nova. Uma religiosidade não-laica, mas cristã, em que Cristo

deixa de ser ensinado como um modelo ‘monástico’ de viver e passa a ser símbolo de

uma vida nova, a ser construída. O Cristo e o Evangelho são percebidos em sua

dimensão histórica, com seus conflitos: o novo pode emergir, pois a lei pode ser

questionada. A concepção de transcendência histórica decorre do processo de

secularização, da influência da visão marxista – o homem é um ser histórico, sendo

também históricas as instituições, suas idéias e crenças. Do ponto de vista filosófico, tal

perspectiva de transcendência se dá a partir da ‘Morte de Deus’. Conforme

14 Debate entre Frei Betto e o filosofo Jose Arthur Giannotti - Frei Beto e Jose Arthur Giannotti, Diálogos Impertinentes: Religiões. Fita de Vídeo. TV PUC. São Paulo.

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GIANNOTTI, depois do século XVIII, depois de Kant, já não se pode falar de Deus,

pois a questão filosófica sobre sua existência se esgotou.

A ‘morte de Deus’, um Deus transcendente, onipotente e onisciente permitiu,

na modernidade e na atualidade, o ressurgir da religiosidade como construção de

sentido, não um sentido que promova a universalização de uma verdade legitimadora e

legisladora, como a pretendida e realizada pelas religiões instituídas, mas verdades que

dizem da condição do homem em seu tempo, em sua imanência e em sua possibilidade

de revolucionar seu fazer, seu viver. Uma religiosidade que, do ponto de vista cristão, se

baseia no princípio do Evangelho de ‘fazer novas todas as coisas’, e sobretudo, que se

pauta na possibilidade da dúvida, posto que a experiência do Sagrado não é um domínio

territorial simbólico religioso, mas é condição da vida e da humanidade em sua

trajetória histórica no mundo. Trajetória na qual o homem a experiencia situação-limite

que o leva a ter a crítica de si e de sua existência, podendo nomear o experimentado

como sagrado ou não.

Na situação-limite, o homem atinge um grau de transcendência diante do além. Este além é experimentado como sagrado, e a ele o homem responde com correspondente ambivalência É atraente e fascinante, embora amedrontador e ameaçador.... A resposta religiosa não é a única resposta possível ao principio fundamental.. O que realmente se enfrenta na situação-limite é um vazio. Enquanto o homem religioso afirma um “algo mais”, o homem não-religioso vê apenas um “nada mais.” (ODEA, 1969:48) A religião é uma resposta construída socialmente e mantida como forma de

significar a experiência vivida. No decorrer da história ocidental, e sobretudo, brasileira,

ela assumiu um caráter de dominação, sobretudo por se constituir como resposta

absoluta, um território simbólico, mantido e justificado através do significado

unificador: Deus. Significado que possibilitou ao homem organizar, nomear o real,

edificando uma sociedade temerosa e obediente ao princípio unificador que foi imposto.

Ainda que a instituição religiosa, em específico a católica, tenha mantido uma

hegemonia de modos de pensar e de sentir baseados numa transcendência supra-

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empírica e tenha exercido controle sobre mentes e sociedades, ela não escapou ao

processo de desterritorialização15 simbólica, posto que toda instituição está sujeita às

vicissitudes da vida, do momento histórico e do tempo.

“Embora as religiões surjam de tais experiências e respostas, e embora corporifiquem as respostas desenvolvidas em tais situações, a religião, uma vez estabelecida, não apresenta respostas seguras e permanentes. A vida e o pensamento continuam a conduzir o homem para além de sua representação em formas religiosas. Dentro do contexto religioso, surge a dúvida como um ponto crítico fundamental”. (ODEA, 1969:43)

Cabe, pois, afirmar que, enquanto instituição catolicismo no Brasil não assumiu

uma única forma, as condições do próprio território brasileiro com sua grande extensão,

o momento mundial no qual acontece o “achamento” das terras brasileiras (transição do

pensamento medieval para o moderno), o declínio do modo feudal de produção, o inicio

do capitalismo mercantil e a constituição de uma mentalidade racional foram elementos

que compuseram a história do catolicismo brasileiro. Nessa história é possível

identificar três grandes momentos que, intimamente relacionados a tempos históricos

distintos, irão marcar a religiosidade e os modos de expressão dos brasileiros: o

catolicismo tradicional, o catolicismo reformado e o catolicismo renovado.

Assim, no Brasil Colônia - séculos. XVI, XVII, XVIII e início do século XIX,

teremos a influência de um catolicismo tradicional, marcado pela influência lusitana,

fundamentada numa religiosidade popular, mantida através dos cultos e rituais de

procissões, orações, romarias e promessas, em que há pouca influência de um modo

eclesiástico de ser igreja. Os oratórios particulares, as ermidas e os símbolos cristãos -

cruzes e santos - mais que um símbolo sagrado, são marcas que orientam e significam as

terras em processo de apropriação pelos "descobridores". As festas religiosas assumem

um caráter social de encontro, quebrando a rotina de uma vida marcada pelo isolamento 15 A desterritorialização promove o nascimento de novos significados. Numa linguagem guattariana: o molar pode ser transformado, ou sofrer mutações pelo molecular. Ou outras palavras: no instituído surgem outras forças que apontam para um instituinte: algo novo, outro.Desterritorializar é pois o processo de transformação de significações e de sentido, que implica na destruição dos referenciais simbólicos, estéticos e cognitivos de um grupo, de uma sociedade.

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das fazendas. A religião será vivida através de muita fé e pouco padre. Tal catolicismo

será marcado pelo sincretismo religioso de povos diferentes: europeu, indígena,

africano.

No final do século XVIII e início do século XIX, com o avanço das idéias

iluministas e do racionalismo científico na Europa e a eclosão da Revolução Francesa,

fortalece no Brasil a postura dos bispos reformadores, objetivando instituir no Brasil um

catolicismo tridentino, marcadamente sacramental, pelo qual nega a religiosidade

popular e institui rituais organizacionais que visam a um controle da expressão popular

e a afirmação do poder centralizador do clero. O modo de vida colonial entra em

declínio e inicia-se um processo lento de transformação social urbana. O Brasil se

organiza politicamente como império, num mundo que proclama a república como

sistema político. A igreja, pela reforma, procura manter-se hegemônica. O catecismo, a

missa, a batina, as confissões, os sacramentos, são afirmados como expressão que

identifica o verdadeiro católico. E Roma se faz o centro de decisões das ações católicas,

num enfrentamento do Regalismo e as posições modernas assumidas pelo império. E as

ermidas e romarias passam a ser administradas pelo clero, subtraindo assim a

participação popular. Uma religiosidade marcadamente individualista e sacramental será

um recurso de controle e disciplina usado pela igreja, na tentativa de não permitir o

avanço do liberalismo racional moderno.

O final do século XIX e o todo o século XX são marcados pela consolidação

dos ideais republicanos, pela instituição do Estado laico e o avanço do capitalismo

industrial, que produzem um modo secular de viver e de pensar. O catolicismo busca-se

renovar, assumindo-se como mediação de um modo de viver a fé cristã e implicando-se

com a história, resgatando seu compromisso com o Evangelho e voltando-se para as

questões políticas e sociais que atravessam a história humana. Abrindo-se para o mundo

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em transformação. O Concilio Vaticano II proclama o aggiornamento da igreja e sua

posição de ser uma mediadora do cristianismo entre outras igrejas cristãs.

Assim, no Brasil não podemos falar de um catolicismo, ou de 'uma' religiosidade

católica. PEREZ (2000), em Breves notas e reflexões sobre a religiosidade brasileira,

argumenta que a vivência da religiosidade como busca de sentido se fez através de

múltiplas expressões simbólicas, em que a diversidade assumiu o lugar do discurso

unificante e aterrorizante das religiões tradicionais, sobretudo a européia. A autora

qualifica a religiosidade brasileira como festiva e carnal, pois a vivemos mais

teatralmente, pública e coletivamente, do que a sentimos na solidão do foro interior. O

argumento de uma religiosidade carnal e festiva se assenta na multiplicidade de códigos

e de símbolos com os quais historicamente estivemos expostos: diferentes culturas

(tribais, tradicionais), diferentes códigos de expressão (europeu, africano, indígena).

Em comum com PEREZ, AZZI (1976) defende que podemos falar de um

catolicismo brasileiro, pois sua expressão se fez diferentemente do modelo europeu,

numa vivência simbólica plural e não institucionalizada romana como na Europa.

Defende, pois, que:

...talvez a primeira nota que se deve colocar em evidência no catolicismo tradicional é seu aspecto familiar. De fato, ele está muito mais polarizado ao redor da própria instituição familiar do que da organização eclesiástica. Durante os três séculos de vida colonial, a presença da fé católica no Brasil se deve em grande parte a essa tradição católica que as famílias portuguesas trazem para o Brasil. É no seio das famílias em modo particular que se transmite e se mantém a chama da fé católica.

A diversidade de códigos nos possibilitou a vivência de uma religiosidade não

tão institucionalizada como a dos colonizadores. Entre a casa grande e a senzala houve a

hibridação simbólica religiosa. A colonização do Brasil – século XVI - se fez em pleno

processo de transformação cultural, no trânsito de uma sociedade medieval sacralizada/

encantada para uma sociedade moderna, dessacralizada/secular. A sobreposição de

significações é marca da religiosidade brasileira, o que justifica o sincretismo religioso.

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Assim, cartografando os diferentes momentos históricos pelos quais passamos, PEREZ

recompõe as paisagens sócio-culturais e revela como a religiosidade foi sendo

significada ora por uma religião tradicional medieval, em que o temor e a obediência

aos ritos e preceitos católicos constituíram o fundamento para um modo de vida colonial

e sua identificação com a organização política, através do regime de Padroado, no qual

o controle social se fazia pelo medo do transcendente, ora por uma religião identificada

com os valores seculares, racionais, do período republicano. Para a autora, a religião

católica foi ferramenta de edificação social:

“Elemento de importância indiscutível no empreendimento colonial português – não é sem razão que as terras conquistadas foram colocadas sob o patronato da Ordem de Cristo -, o catolicismo foi a ferramenta mais poderosa de organização e de controle da vida brasileira por longo período. Ele cimentou a união entre Estado e a Igreja, que só seria rompida quando da proclamação da República”. (PEREZ, 2000:10)

SANCHIS (1997), como PEREZ, analisa a multiplicidade de códigos religiosos e a influência do cristianismo católico e da cultura afro na constituição do Brasil. Argumenta que nosso catolicismo se constitui plural, apesar de todo o processo de dominação que o mesmo reproduziu.

“Dois tipos de sincretismos católicos são de fato possíveis. Na velha Europa, especialmente em Portugal, um sincretismo secreto faz uma identidade consciente e unificadamente católica ser efetivamente portadora das virtualidades de suas sedimentações passadas. Aqui, num espaço aberto e sem fim, o encontro de três povos desenraizados. Encontro, sem dúvida, estruturalmente desigual. Mas menos importa neste momento o macro-processo de dominação, exploração, etnocídio intencional, quase genocídio. Apesar dele, no seu avesso ou nos seus interstícios, deram-se os micro-processos do jogo das identidades. Nunca definitivamente unificadas. Uma pluralidade sistemática marca essa sociogênese do Brasil, logo traduzida em porosidade e contaminação mutuas.” (SANCHIS, 1997:38)

SANCHIS e PEREZ buscam cartografar, através da religião, o sincretismo

cultural, revelando o pluralismo simbólico a que o Brasil sempre esteve exposto.

Apontam para o duplo processo a que a religiosidade contemporânea está exposta: o

esvaziamento das religiões tradicionais e a explosão de uma religiosidade sincrética e

nômade, que remete para uma recomposição/renovação da sensibilidade religiosa, da

experiência do sagrado e do divino. Sensibilidade que não é mais formatada

institucionalmente pelos grandes sistemas religiosos que exigiam exclusividade de

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sentidos e significações, mas numa reunião de agrupamentos entre os quais podemos

transitar, sem que isto signifique contradição:

a moda de um self-service religioso o que evidencia a recusa de uma única via de salvação e a busca da felicidade intramundana, aqui e agora’. Por outro lado, cabe ressaltar que a recomposição a que estamos expostos diz respeito a uma sensibilidade religiosa que remete, ‘sobretudo, àquilo que – não importa sob que forma de expressão - nos une a uma comunidade, a uma ambiência repleta de comunhão, de mistério, de encantamento, enfim, de efervescência. Trata-se de privilegiar o estar-junto, isto é, a dimensão de re-ligação (religare) própria do religioso, como elemento fundamental de socialidade e de experimentação do mundo. (PEREZ, 2000:24) ...A presença ativa de remanências, a metamorfose de antigas certezas também fazem parte – e são a condição - de certeira projeção para o futuro. Como, ao contrário, podem embasar uma volta ao fechamento, à exclusividade e à exclusão que lhe são correlativas. Tal dialética revela sem dúvida uma problemática contemporânea fundamental, quem sabe a problemática essencial do momento: está em jogo no mundo um novo processo de definição e gerenciamento das identidades. (SANCHIS, 1997:42)

A religiosidade, como expressão humana, assim como a religião, vive

transformações que implicam outros modos de pensar, agir, e sentir o que denominamos

como sagrado. Entretanto, diferentemente do pensamento evolucionista da

modernidade, hoje, sabemos que as transformações subjetivas e sociais não se fazem

linearmente, diferentes composições de modos de pensar podem se relacionar em um

mesmo tempo, em um mesmo período histórico, pois as necessidades sociais de um

grupo social são diversas. E cada grupo tem uma história que o antecede e o atravessa.

Ainda, que na atualidade, haja uma aceleração de transformações subjetivas,

influenciadas pelo acelerado processo de informação tecnológica, industrial, comercial

não quer dizer que todas as sociedades se transformaram em busca de uma abertura, e

como afirma SANCHIS, pode até mesmo haver um revés de modos de pensar, no qual

um grupo social, agarrando-se as antigas certezas, evitem uma construção subjetiva que

promova o novo e a diferença, a multiplicidade.

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Capítulo 2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Uma atitude indagadora, prudente, ‘experimental’ é necessária a cada momento; a cada passo, devemos confrontar o que estamos pensando e dizendo com o que estamos fazendo, sendo.

Michel Foucault

2.1 A concepção de conhecimento adotada

O trabalho de pesquisa fundamentou-se na concepção de que o conhecimento é

construído. Assim, postula-se aqui que conhecimento é uma forma de organização e

entendimento de uma realidade, é um “argumento discursivo” e a visão sócio-política

do saber que sustenta a pesquisa realizada. O conhecimento produzido assume seu

caráter temporal, sendo passível de questionamento. SANTOS (2003) defende que a

ciência, hoje, tem que se implicar com seu tempo, e, não sendo neutra, é uma tentativa

de entendimento de uma realidade, é um argumento discursivo que traz em si a

incompletude. O autor afirma:

Sendo um conhecimento argumentativo, o novo paradigma recusa totalmente

outras características da ciência moderna – a intemporalidade das verdades científicas e

a distinção absoluta entre aparência e realidade – por achar que cada uma delas, a seu

modo, tem uma vocação totalitária. O conhecimento, no novo paradigma, é tão temporal

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como as práticas e a cultura a que se vincula. Assume plenamente a sua incompletude,

pois que, sendo um conhecimento presente, só permite a inteligibilidade do presente. O

futuro só existe enquanto presente, enquanto argumento a favor ou contra

conhecimentos e práticas presentes. Esta radical contemporaneidade dos conhecimentos

tem conseqüências fundamentais para o diálogo e a concorrência entre eles. (SANTOS,

2003:330)

O que fundamenta este trabalho é a consciência de que o conhecimento se dá na

relação entre o sujeito pesquisador e o objeto a ser conhecido. Como construção, o

conhecimento está sujeito ao seu tempo e às referências simbólicas que sustentam a

comunidade cultural e científica na qual é produzido. Assim, ao analisar os diferentes

saberes que discursam sobre a religião e a religiosidade, identidade e subjetividade, um

olhar crítico sobre os paradigmas que os fundamentaram foi necessário, sendo também

necessário o posicionamento do pesquisador frente aos mesmos, entendendo-os como

modos de pensar a cultura, a ciência e os discursos com os quais significamos a

realidade em estudo e a consciência de que o ‘recorte’ do objeto a ser conhecido é

permeado pelo olhar de pesquisador, requerendo dele uma escolha, uma definição

conceitual.

A idéia de construção toma aqui o sentido dado por Foucault, segundo o qual a

construção do conhecimento promove também a construção do sujeito, pois que não há

um sujeito a priori e um objeto a priori. É a relação de conhecer que faz a mudança e

formação de ambos. A idéia de construtivismo em Foucault aponta, sobretudo, para uma

ética do conhecimento que remete à necessidade de transformação, de corte, de ruptura,

que possam promover o novo, carregado de sentido, que possam fazer surgir uma nova

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subjetividade. Assim, o pesquisador voltará sua atenção para buscar entender como e

quando despertou para uma forma de pensar e agir, e quais práticas o levaram a isso.

Posto que o conhecimento e a sua produção estão implicados num espaço e num tempo,

numa história de relações, também os sujeitos e as subjetividades “são construídas a

partir de determinadas configurações históricas e sociais e, mesmo assim, nunca

determinadas de modo final e definitivo. São processos sempre em andamento,

submetidos a variações, alterações, diferenciações”. (FERREIRA-NETO, 2004:77)

2.2 Sobre o tema estudado e a história de sua escolha

A pesquisa buscou entender a religiosidade católica e a produção de

subjetividade em Sabinópolis, e seus significados, tomando por estudo os ritos, o

discurso, o gesto, a conduta daqueles que crêem e buscando entender o ethos produzido

e sua significação pelas pessoas. Daí, a necessidade de escutar e pesquisar o discurso

dos que crêem e dos que não, a instituição religiosa. Entendidas como discurso, as

práticas familiares, sociais, religiosas atravessam as subjetividades, configurando um

estilo, um jeito de ser, que permitem definir um território simbólico através do qual uma

cultura se organiza. Nesse entendimento, foram entrevistados descendentes das três

famílias mais antigas da cidade de Sabinópolis, com idades entre 73 e 92 anos,

representantes da igreja católica e um representante da igreja pentecostal. A religião,

sendo um território simbólico, produz subjetividades, ao imprimir significações que

permitem a construção de sentido e o controle dos que crêem.

... Na religião, o fenômeno do poder encontra terreno fértil para seu desenvolvimento, afirmação e perpetuação, porque o saber religioso é capaz de produzir o direcionamento da ação dos fieis, e isso, com raríssimas exceções, sem emprego de força, tendo em vista que se efetua segundo valores e normas

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interiorizadas por instrumentos nem sempre usuais, como o poder convencional. (SIEPIERSKI, 2003:133)

Para entender o nascimento da pesquisa aqui apresentada, remonto a agosto de 2001, período no qual assumi o trabalho clínico psicoterápico, no município de Sabinópolis, Minas Gerais, através do Programa de Saúde da Família (PSF). Nesse contexto, entrei em contato com os usuários do serviço público. No exercício da clínica, deparei-me com a questão que deu origem ao projeto: subjetividade e religião (tema inicial). Na escuta dos pacientes, percebia que a religião ocupava papel importante na construção do próprio discurso, sendo algumas vezes o espaço de expressão de identidade e re-inserção social, outras vezes, elemento organizador do delírio, sendo também, e sobretudo, elemento de repressão social.

As questões que surgiam eram: qual o papel da religião/religiosidade na

construção da subjetividade? Que modelo de subjetividade se molda nos ritos

religiosos? Como adentrar a subjetividade e resgatar ou levar o sujeito a questionar sua

postura, quando o discurso era alienante? Como possibilitar o pensar frente a posturas

dogmatizantes e alienantes?

Por entender a subjetividade como uma construção social, essas perguntas me

mobilizavam a todo tempo em consultório, já que no exercício da clínica era importante

compreender qual o significado por detrás do discurso. Quando ele era expressão da

subjetividade/singularidade do paciente, e quando era reprodução de um instituído. Essa

distinção não só era necessária ao terapeuta, mas, sobretudo, ao paciente, já que o

objetivo do atendimento era resgatar e ou levar a saúde mental do paciente, através de

sua apropriação do próprio discurso.16

Com essa compreensão, em julho de 2003, participei do processo seletivo do

Mestrado da PUCMG, tendo apresentado o projeto com o tema: Subjetividade e

Religião. Ao longo do estudo e no aprofundamento da temática, fui definindo melhor o

objeto de estudo e problematizando-o: qual o papel da religiosidade na construção da

subjetividade? Há outra questão subjacente à pergunta principal: que modelo de

subjetividade se molda no discurso religioso? Entretanto, após a revisão bibliográfica e

16 Cabe também a informação de que sendo a pesquisadora filha e moradora da cidade, o tema envolvia a própria história social da mesma, daí a afirmação da escolha do tema em estudo.

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as pesquisas preliminares, compreendi que o fenômeno religioso ultrapassa a

organização religiosa. Assim, o estudo voltou-se para o discurso, a vivência e as práticas

religiosas na comunidade de Sabinópolis. Para o entendimento do discurso produzido,

foi necessário o resgate histórico tanto da religião católica, quanto da história da

organização social brasileira.

Ainda que, em minha prática profissional, houvesse a compreensão da

subjetividade como construção, havia um pensamento sustentado numa visão de

conflito entre o sujeito e sociedade, que pode ser percebido na pergunta feita sobre a

religião instituída e sua relação com a subjetividade. No exercício de estudo, no

Mestrado, fui ampliando meu olhar e meu entendimento sobre o processo de produção

de subjetividade, que é permeado por movimento de afirmação de valores,

questionamentos e pela possibilidade de novos significados. A perspectiva de processo

como movimento, de forças que afirmam significações e ou as fragmentam, produzindo

subjetividades que são expressões de um tempo, de um contexto sócio-cultural, foi

sendo consolidada.

Guattari coloca-nos que “a subjetividade está em circulação nos conjuntos

sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, é assumida e vivida por

indivíduos em suas existências particulares”. Diz o autor que “o modo pelo qual os

indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de

alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe,

ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos

componentes da subjetividade, produzindo um processo que chamaria de

singularização”. ( GUATTARI, 1986: 33)

As perguntas sobre a religião e sua função levaram à elaboração de uma

pesquisa preliminar realizada de modo informal, através de conversas sobre o próprio

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objeto da pesquisa. Estudo da religião instituição ou da religiosidade? Seriam estudadas

as instituições religiosas da cidade: Católica, Pentecostal? Ou seria estudada a

religiosidade como modo de expressão?

As pessoas – moradores e filhos de Sabinópolis, ao saberem do tema de

pesquisa, logo expressavam sua opinião, seja para afirmar a importância da religião-

instituição, na cidade, seja para advertir quanto à polêmica do tema ‘religião e política

não se discute’. Advertência que já era em si um dado importante, pois indicava ‘um

certo cuidado defensivo’, revelando o tabu social sobre o tema e confirmando o exposto

por MAFRA (1989): Por outro lado, as entrevistas preliminares possibilitaram-me o

entendimento de que mais importante que a religião (instituição) o que era apontado

pelas pessoas era a necessidade da fé, de acreditar. A religiosidade se revelava como

expressão.

‘Religião afasta o homem de Deus. Religião é totalmente diferente de fé. Fé é aquilo que você acredita. A religião pode ser o que você busca para aprimorar a fé. A religião é dirigida por homens (pastor, padre) pode ser falha. M.P.B.

‘Eu não digo a religião, mas a palavra de Deus foi muito importante para mim.” A.J.

‘Religião para mim é a crença que cada um tem em Deus dentro de si. E na minha opinião cada igreja existe apenas para dar nome à religião de alguém.’.

Assim, foi no contato com os sujeitos de pesquisa que fui aprimorando e

observando o que de fato buscava compreender: como se constituíram os modos de

expressão (subjetivação) dos sabinopolenses? Que papel teve a Igreja Católica nesse

percurso? Quais modelos de religiosidade e religião sustentaram nosso modo de pensar

e agir ao longo de nossa história? No dizer foucaultiano, o objeto de conhecimento foi

ganhando forma e dando forma ao pensar do pesquisador, modificando-o à medida que

o conhecimento era construído.

Um tempo histórico – 1927 a 1967 – foi priorizado. A escolha desse período

deveu-se a alguns fatores: ser ele o marco da emancipação política do município,

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acontecimento que demarca a influência do pensamento moderno, liberal/republicano.

Ser um período de efervescência política e religiosa. No campo religioso, o catolicismo

tradicional/popular é confrontado com outros modelos: o tridentino, reformado com

forte presença clerical, e o catolicismo renovado, no qual há a abertura da Igreja para as

transformações mundiais. No campo político, tem-se o conflito e o trânsito de poderes,

de uma cultura conservadora, para uma abertura democrática que leva alguns

personagens a assumirem forte liderança no processo de afirmação de uma cultura

urbana, moderna, entre eles, o padre, os médicos, o farmacêutico. Várias instituições

que representam o pensamento moderno, republicano, são fundadas na cidade e, o ano

de 1967, foi o marco histórico da perda da hegemonia religiosa católica, posto que nesse

ano, foi instituída oficialmente a Igreja Pentecostal na cidade. Um acontecimento,

portanto, paradigmático que aponta para as transformações sociais já em curso no Brasil

e no mundo que adentram a cultura sabinopolense. E, por fim, a definição de um tempo

histórico se fez, posto que uma dissertação visa ao estudo de uma tema circunscrito ao

tempo próprio do mestrado, como coloca ECO (2003), um tempo mínimo de seis meses

e máximo de três anos, através do qual podemos estudar, documentar , pesquisar e

elaborar um texto que expresse a produção realizada.17

2.3 Sobre a cidade: caracterização

Sabinópolis é uma cidade com 16 mil habitantes, na zona urbana e rural, conforme dados do IBGE (2003), situada no Nordeste de Minas Gerais, no Vale do Rio Doce, numa área de 849 km, a 750m de altitude, aos 18 39' 30 "de latitude Sul e 43 05'15" de longitude Oeste, distante 270 km de Belo Horizonte. Segundo dados do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (2000), apresenta índice de desenvolvimento baixo frente a outros municípios mineiros, "ocupa a 592ª posição, sendo que 591 municípios (69,3%) estão em situação melhor e 261 municípios (30,7%) estão em situação igual ou pior". Ainda que a educação e o aumento da longevidade tenham contribuído para a melhoria do IDH entre 1991 e 2000, o analfabetismo atinge 30,8% da

17 Agradeço aos membros da banca do Exame de Qualificação e ao Orientador que me ajudaram a precisar o tempo histórico, ainda que durante o estudo, em que a leitura longitudinal da história tenha ocorrido.

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população adulta com mais de 25 anos, apresentando um índice de pobreza de 61,2 %. O IDH é 0,689: "o município está entre as regiões consideradas de médio desenvolvi-mento humano (IDH entre 0,5 e 0,8)". Por outro lado, a cidade conta com instituições educacionais públicas e privadas de ensino infantil, fundamental e médio. Atualmente, aprovadas pelo MEC, existem várias instituições privadas de ensino superior, nas cidades vizinhas, Serro, Guanhães e Virginópolis. A própria sede do município conta com outras instituições de ensino superior, em expansão pelo interior de Minas.

A economia é sustentada pela agropecuária, pelo comércio e por prestação de

serviços. O índice de desenvolvimento industrial ainda é muito incipiente. O Estado e o

próprio Município são os maiores empregadores da população. A agricultura familiar

movimenta parte da economia e vem sendo organizada através das feiras de produtores.

A produção leiteira e de derivados também encontra-se em processo de organização,

visando ampliar o comércio de exportação já existente. Portanto, o município tem uma

tradição agropecuária que remonta às origens. Em outros tempos, a exploração mineral

foi intensa, sendo tal prática vinculada à tradição portuguesa dos primeiros moradores

que lá se instalaram no final do ciclo do ouro, século XVIII e início do século XIX.

A relação entre atividade econômica e religião marca um modo de catolicismo

que se revela em sua simplicidade e que tem como característica um discurso

homogêneo, através do qual uma cultura significa sua existência. Também indica uma

mentalidade que tem no modo de vida rural suas origens. Essa homogeneidade sofre

influências à medida que há uma maior interação de outros modos de economia, avanço

nos meios de comunicação e de um progressivo processo de urbanização. No caso de

Sabinópolis, tal fato permite compreender a influência e a predominância do catolicismo

tradicional/popular, posto que a taxa de urbanização em 2000 cresceu 11,43%, passando

de 53,44% em 1991 para 59,55%, conforme dados do Altas do Desenvolvimento

Humano/2000. Ou seja, a urbanização não se deu de modo acelerado, mas vem

acontecendo gradualmente, o que explica a expansão de outros discursos religiosos:

Pentecostal, Testemunhas de Jeová, Quadrangular etc.

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CÉSAR (1976), analisando o catolicismo popular, comenta que o processo de

urbanização, produziu as religiões universais, estendendo, por meio delas, um sistema

de significação sobre o religioso, o social e o econômico. No entanto, o homem pagão –

do campo – resiste à imposição de uma nova fé. Assim, há uma manutenção de um

modo de vida rural que permite ao homem do campo dar um continuum a sua

experiência. A existência de um catolicismo popular é fruto dessa interação.

Foi visto o quanto a economia da monocultura configurava a existência de um

catolicismo mais simples. Da mesma forma pode afirmar-se a existência de um tipo mais homogêneo de religião em função da sua localização geográfica e do tipo de produção dominante – o que significa que as únicas regiões do Brasil Colônia e início do período do Império onde houve essa homogeneidade religiosa foram as da pecuária e as da agricultura de subsistência, onde a estrutura social era também mais simples e fluida. Entretanto, as novas e cada vez mais intensas relações entre o mundo rural e urbano certamente configuram outros elementos culturais e religiosos que, sob a influência dos meios de comunicação de massa, introduziram novos componentes na estrutura mais ou menos simples da relação entre religião e relações de produção. (CESAR . In: BOFF,1976:11)

A incidência de analfabetismo e de pobreza no município são expressões da

cultura colonizadora, a mudança de um sistema econômico fundamentalmente agrícola

para o industrial revelou uma população despreparada para enfrentar o novo modo de

produção. No sistema colonial/imperial bastava a força braçal. No entanto, esse capital

não é suficiente para a sociedade industrial/urbana. A nova realidade exige a

alfabetização e um modo de pensar racional que contrasta com os modos aprendidos.

Avoluma-se o problema social, e nesse sentido a religiosidade pode ganhar a

significação alienante, pois, ao fixar sentido para a existência, impede a transformação

social. A religiosidade, assim, comporta a ambigüidade, característica que abre as

possibilidades de ruptura, de produção de novas significações.

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2.4 Da metodologia utilizada

A metodologia de estudo foi organizada e construída à medida que o

conhecimento foi-se definindo. Alguns passos foram fundamentais para a construção

metodológica, entre eles a leitura da bibliografia básica sobre o fenômeno religioso:

sociologia da religião e filosofia, como meio de instrumentalizar o entendimento sobre a

função da religião; o levantamento de dados do IBGE, da Secretaria Municipal de

Cultura de Sabinópolis, do acervo sobre o tombamento do patrimônio cultural, do

acervo fotográfico dos entrevistados e particulares; consulta ao Altas sobre

Desenvolvimento Humano, aos documentos coletados pela ex-bibliotecária municipal,

Orny Leiva Mourão Josafá, e ao Álbum dos Municípios do Estado de Minas Gerais,

editado pela "A ORIENTADORA", em 1942, que gentilmente me foi emprestado pela

família da Sra Elza de Pinho Tavares; finalmente, a coleta de dados através de

entrevistas.

De modo específico, no aprofundamento da história de Sabinópolis, a leitura do

Livro do Tombo da Paróquia se tornou obrigatória. Este livro contém os registros

oficiais da Igreja Católica, sendo um documento no qual o Vigário – ou alguém por ele

– lavra a história da paróquia. A leitura se fez obrigatória, posto que a cidade nasceu

com a doação de terras para a Igreja Católica (história que será narrada ao longo da

dissertação). Os dados extraídos do Livro do Tombo apresentam-se incompletos, sendo

que, oficialmente, encontram-se as circulares recebidas de Diamantina do ano de 1928,

data da criação da paróquia até o ano de 1942. Depois as anotações ganham um caráter

mais subjetivo, e no ano de 1959, Monsenhor José Amantino dos Santos, personagem

que no período estudado assumirá forte liderança política e religiosa, tendo permanecido

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na cidade deste a fundação da paróquia (1928), escreveu sobre a edificação do hospital,

do ginásio, do cine-teatro e sobre a restauração do cemitério.

Os registros do Livro do Tombo apontaram para as formas de controle com que

a igreja se fazia presente no cotidiano das pessoas. Assim, desde a oração obrigatória

nas escolas até a informação de nomes de pessoas que se negavam a enviar os filhos

para o catecismo, e os meios que os padres usavam para chegar até a população

(esmolas, visitas, orações) permitiram perceber a sua influência religiosa e política na

constituição da cidade. Tais fatos revelam o modo clerical que marca a religiosidade e a

liderança política exercida por Monsenhor Amantino, numa ilustração do modelo

reformador tridentino que a religião católica adota, visando a enfrentar o avanço da

mentalidade liberal republicana. Nesse sentido, faz-se necessário salientar a importância

não apenas do líder religioso, mas de outros líderes da comunidade que, percebendo o

momento de transformação social por que passa o país, inserem a cidade nesse

movimento, através das fundações do hospital, da escola, do cinema. O mérito da

existência delas assume significação distinta nos discursos dos entrevistados – seja

percebendo como graça advinda do líder religioso, seja como fruto do trabalho social,

liderado e apoiado por aquele. Novamente, a ambigüidade de sentidos retrata o processo

social no contexto histórico vivido.

Paralelamente à leitura do Livro do Tombo, a pesquisa bibliográfica sobre os

livros de personalidades e estudos feitos sobre a cidade, foi possibilitando um roteiro de

pesquisa, no qual as relações entre religiosidade e subjetividade foram tomando forma.

A literatura da cidade possibilitou reconstituir a vivência social, os costumes, as

configurações históricas e sociais, podendo assim relacionar os dados bibliográficos, às

entrevistas e às informações recolhidas, para assim poder entender a constituição das

subjetividades e da religiosidade católica e relacionar os modos de vida com o modo de

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ser igreja. As demais informações que enriquecem os dados das entrevistas foram

coletadas da literatura publicada sobre a cidade: MAFRA (1992), BARROSO (1997),

QUEIROZ (2003).

No aprofundamento do estudo, o recurso da análise documental, da literatura

publicada sobre Sabinópolis, contribuiu com a pesquisa, ao permitir o resgate de um

cenário histórico, ao recompor os hábitos e costumes que compunham e ainda compõem

a cultura e os acontecimentos que foram enunciadores de uma mudança sócio-cultural,

possibilitando o olhar longitudinal sobre a história da cidade e sua relação com o

fenômeno religioso, e a vivência da religiosidade católica. No enriquecimento desse

trabalho, as fotografias têm o papel de ilustrar os dados coletados, ilustrando as

mudanças de paisagens sócio-culturais e permitindo um olhar sobre as subjetividades

produzidas. Algumas fotos foram feitas pela pesquisadora e outras doadas pelos

entrevistados e por moradores da cidade, recompondo, portanto, os cenários e a

realidade estudada.

A abordagem metodológica buscou cartografar a religiosidade católica em suas

múltiplas expressões, relacionando-a com a subjetividade produzida no contexto de

Sabinópolis, nas quatro décadas que remontam à inserção de uma mentalidade urbana,

pela qual outro modo social vai se modulando. A cartografia, diferente do mapa

(representação de um todo estático), é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo

tempo que os movimentos de transformação da paisagem. Como diz Rolnik (1987),

“paisagens psicossociais também são cartografáveis”. Entretanto, mais do que uma

cartografia da religiosidade católica na cidade, fez-se necessário cartografar a história da

religião católica no Brasil e os múltiplos modos de viver a fé católica, para que fosse

possível entender os 159 anos de hegemonia católica que compõem e atravessam as

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subjetividades dos entrevistados e os modelos de religiosidade que compõem a cultura

em estudo.

Na composição cartográfica das paisagens psicossociais, a pesquisa sobre 'Tabu

Lingüístico', realizada em 1989, por MAFRA, na comunidade rural e urbana de

Sabinópolis, foi fundamental, pois retratou como, na comunidade urbana, a temática

sobre religião, sexo e política era tema tabu. Essa pesquisa contribuiu para o

entendimento da postura tabu assumida por alguns entrevistados ao longo das

entrevistas. Postura como a proibição do registro – gravação – de algumas lembranças

consideradas perigosas por poder ferir ou gerar conflito sobre um assunto considerado

sagrado, portanto proibido, ou passível de punição, por macular a imagem de

personalidades consideradas como sagradas.

MAFRA (1989:5) argumenta que um tema tabu é “tudo aquilo que, por um

motivo ou outro, é evitado ou proibido”. Assim,“as expressões e palavras evitadas ou

proibidas em certos contextos revelam a existência de tabus no plano lingüístico”. O

tabu relaciona-se à história sócio-cultural da comunidade e está intimamente

relacionado a dois aspectos: as limitações do conhecimento humano e a existência de

certas normas e costumes sociais. A duração de um tabu relaciona-se à duração da

ignorância e das normas sociais e costumes da sociedade. É nesse sentido que seu

estudo de MAFRA nos interessa. Ao lançar entendimento sobre o tabu lingüístico, a

autora permite-nos compreender como as normas sociais e os costumes religiosos

marcaram a subjetividade dos entrevistados ao imprimir em suas significações um

cuidado, um receio, que expressa as marcas simbólicas e as normas sociais aprendidas.

Cabe aqui uma consideração, não apenas nos moradores da cidade esse receio pôde ser

notado, mas também nos representantes das igrejas: católica e pentecostal. Atitudes

como omissão de nomes, risos e ou desvios diante de lembranças ou fatos que

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marcaram a história da cidade, por serem paradoxais. Ex: um dos entrevistados

comentou que ao conhecer a cidade nos idos de 1960, sabia da existência de uma pessoa

atéia, porém durante a entrevista evitou citar o nome. A condição de assumir-se como

ateu numa comunidade eminentemente católica era por demais perigosa, podendo

significar a exclusão social deste ou de sua família. O mesmo pode ser dito para aquele

que se assumisse como maçom.

As omissões, os receios foram assim respeitados, garantindo a continuidade da

fala dos entrevistados, que, à medida que relatavam a história e que percebiam a

própria mudança de contingência social, de mentalidade e de costumes, reviam seus

silêncios, relatando os fatos, não mais com a atitude de “silenciamento” imposta pelo

tabu, mas com o questionamento sobre a própria atitude tabu. No decorrer das

entrevistas, isso foi evidente nas falas dos entrevistados de Sabinópolis. Os trechos que

se seguem, extraídos de algumas entrevistas, buscam expor esse movimento, os grifos

marcam a aparição do tema tabu:

...Aqui havia um padre tal, que inclusive me batizou, né. Mas que não relatou isso lá porque eu não tenho batistério. Ele não registrou meu batizado.Tudo é que contém na cidade, naquela época, era só de católico, católico mesmo [enfática]. Porque acerca de uns 20, 25 anos é que apareceu pessoas de outras religiões aqui, né. Os evangélicos entraram, né. Naquela ocasião era só católicos. Então, era um rebanho e um pastor só. [...] Ah...em 55 (1955), eu creio que sim. Em 55... que os ‘Muros de Jericó’ começaram a ser derrubados. Entrevistada Sempre Viva ...Tem horas que as vezes, eu acho que a religião deve existir e tal. Outra hora eu acho que eu não acredito, estou assim. Fico sem saber, eu leio e Bíblia e coisa e fico, as vezes pensando de onde veio Deus, antes de Deus o que que tinha, antes de Deus?E como ele apareceu? Com o poder que a religião católica fala. Como? Pregam hoje em dia. Se Jesus, Jesus tem muita coisa que, por exemplo, Jesus era filho de Nossa Senhora, não filho mesmo, era filho de criação porque ele, foi posto no frente dela pelo Divino Espírito Santo, né. Então, por que que Deus, pelo diz a Bíblia, criou o mundo e não...criou Adão, pôs uma companheira para Adão, Deus até tirou, mas porque que ele não coisa, Nossa Senhora na ocasião. Bom Nossa Senhora vem depois...depois que a mulher morreu eu perdi complemente. Agora, pelo que eu leio na Bíblia, etc, pelo meu ente de razão, pelo estudo que eu faço da religião, todas elas, eu acho que se a gente morreu, acabou. Se a gente morre, acabou. Esse negocio de alma. Tem Alma, essa alma vai para onde? Que dia, não apareceu nunca uma alma. Já, quantos já morreram, por coisas já morreram, no tempo de Deus, já morreram trilhões de

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pessoas, quer dizer a alma saiu, mas para onde é que ela foi? Todo mundo acredita na alma, não é? Eu acho que não, eu acho que a pessoa morreu acabou. Bom, isso até a gente não deve falar não porque tira a fé das pessoas. Entrevistado Cravo

Os trechos destacados mostram por um lado o assunto tabu e por outro o

questionamento do mesmo, a metáfora 'Muros de Jericó' usada por Sempre Viva retrata

a quebra da imagem sagrada da figura do padre: Monsenhor Amantino dos Santos. Na

entrevista de Cravo, temos todo um processo de questionamento de assuntos tabus – a

religião aprendida e seus dogmas – que envolvem questões fundamentais ao humano: a

sexualidade, a concepção de morte e finitude e sobretudo, o uso do livre exame, da

razão como instrumento de conhecimento, numa cultura católica. O processo de dúvida

por que passa Cravo foi deflagrado após a morte de sua esposa, católica fervorosa. A

dor da perda e de viver o processo doloroso pelo qual passou a esposa antes de falecer o

leva a se interrogar sobre o modelo religioso aprendido. Novas configurações

subjetivas, novos modos de viver a religiosidade vão sendo produzidos.

A dimensão tabu aparece no olhar sobre a cultura negra e na proibição de seus

modos de expressão religiosa, entendidos como magia e superstição. Os entrevistados –

sendo todos membros das famílias colonizadoras – revelam o modo hierarquizado de

enxergar os negros: vistos como inferiores, gente miúda, merecedora de caridade e

cuidado, de estar subordinada a.

A Igreja, não tinha essas religiões lá. Só católicos! No meu tempo de rapaz e etc,e tal era tudo católico, não sabe? A família Pinho toda foi criada na religião católica, seu pai, (referência a família da pesquisadora) seus tios todos, era tudo católico. Depois, é que começou lá, veio aquele seu Nicoolas era pentecostal. Ficou ali protegendo o povo, o povo miúdo. Trazia...ele até foi muito útil lá.Trazia muita coisa para eles, presentes, muita roupa que vinha lá da Holanda, e ele ajudou muito aquela pobreza. E ali ele conquistou uma... a religião dele pentecostal, cresceu um pouco, ficou sendo maior...depois veio outras religiões. Entrevista Cravo.

Entretanto, ainda que sobre a proibição da expressão negra houvesse o controle

da instituição católica, isso não impediu o desenvolvimento de uma religiosidade

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popular, vivida de modo festivo e anímico, através das crenças nos santos e nos rituais

de homenagem aos mesmos. Nos interstícios institucionais, os negros foram dando seu

tom à religião. O sincretismo simbólico possibilitou o nascimento de uma nova

significação existencial, que, encontrando brechas no catolicismo oficial, se mantinha

como força de resistência do negro e daqueles que encontravam-se à margem da cultura

do colonizador.

Apesar da influência simbólica da cultura negra no catolicismo tradicional

popular e da abertura para as diferentes expressões religiosas no Brasil, não se pode

dizer que haja livre culto em Sabinópolis. Os cultos afro-brasileiros foram

historicamente reprimidos pelos representantes oficiais da igreja, o que não quer dizer,

porém, que eles não aconteceram e ou que não aconteçam. De forma marginal e sob a

nomeação de macumba, as práticas mágicas são feitas, mas de modo marginal e

sofrendo a atitude tabu. Não há oficialmente registro de terreiros e ou práticas de

candomblé na cidade.

Os ritos negros são reconhecidos e valorizados através da Festa de Nossa

Senhora do Rosário, que ganha novo significado a partir da influência de Monsenhor

José Amantino, que oficializa a festa dos negros, dando-lhe nova significação, num

contexto social. Cabe dizer que Monsenhor Amantino era negro. Entretanto, a festa

ganha requinte da cultura burguesa, saindo da simplicidade que lhe era característica e

ganhando dimensões sociais maiores.

2.5 Sobre as entrevistas e os sujeitos da pesquisa

As entrevistas semi-estruturadas foram o instrumento de coleta de dados

utilizado por ser um roteiro composto de perguntas mobilizadoras da memória e do

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diálogo entre pesquisadora e os sujeitos da pesquisa. A opção pela entrevista semi–

estruturada se deu, pois ela é um recurso que permite a fala do entrevistado ao mesmo

tempo que há um organizador (há um roteiro), através do qual o diálogo se faz. Essas

foram realizadas com dois representantes da igreja católica, que conheceram Monsenhor

Amantino18 e a cidade, um representante da igreja pentecostal, instituída em 1967, cinco

membros idosos das famílias: Araújo-Abreu, Pinho Tavares e Barroso, por serem estes

memória viva da origem e da história de Sabinópolis – todos vivenciaram o tempo

paroquial de Monsenhor José Amantino dos Santos.

A entrevista pode revelar o não dito que existe por trás dos registros

de documentos oficiais. Ou, então, a divergência poderá apresentar-se em dois relatos perfeitamente válidos, a partir de pontos de vista diferentes, os quais, em conjunto, proporcionarão pistas essenciais para a interpretação final. (PEREIRA, 2004:19)

No roteiro das entrevistas, o primeiro passo era esclarecer o objetivo do estudo,

entender quais as relações entre a religiosidade católica e a subjetividade, na cultura de

Sabinópolis. Esclarecendo o próprio conceito de subjetividade: modos de pensar, agir,

costumes produzidos no tempo. Posteriormente ao esclarecimento, foi solicitada a todos

os entrevistados permissão para gravar as entrevistas, com a informação de que seus

nomes seriam mantidos em sigilo, podendo ser escolhidos codinomes que os

identificassem. Alguns escolheram, outros não, ficando os codinomes a cargo do

pesquisador.

As entrevistas realizadas com os moradores da cidade eram iniciadas com a identificação do entrevistado, sua formação, sua religião, sua origem familiar e social. Após isso, perguntava-se quais lembranças ele trazia do tempo de Monsenhor Amantino. Tal pergunta, por sua amplitude, permitiu o contar da história. Ao rememorar, os entrevistados se emocionavam ao recompor o cenário social no qual se percebiam imersos. Até mesmo a linguagem retratava o tempo vivido, os pronomes de tratamento Seu, Sá, (referência a Senhor e Senhora) apontam para isso, além do uso de certos verbos como infelicitar, etc.

18 Pároco católico que residiu por 40anos em Sabinópolis, tendo exercido forte influência sobre a cultura da cidade. Em decorrência de sua influência, foi escolhido como ícone religioso de referência para o estudo aqui desenvolvido.

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Ao longo das entrevistas, o cruzamento de dados históricos e da literatura

estudada possibilitaram outras perguntas que eram feitas ao entrevistado, visando a

precisar melhor as informações colhidas. No entanto, as perguntas comuns a todos os

entrevistados foram: Para você o que é religião? Fé e religião têm o mesmo

significado? Na opinião do entrevistado, que influência tinha a religião católica na

história de Sabinópolis?

Os entrevistados representantes da igreja católica e pentecostal tiveram como

pergunta principal: qual a influência da religião católica na construção da subjetividade

do povo de Sabinópolis? Tendo ainda a elaboração de perguntas sobre a história da

igreja católica e ou pentecostal em Sabinópolis. Também foi pedido que falassem um

pouco sobre a influência de Monsenhor Amantino nesse história, visando a cartografar

as significações em torno do líder religioso.

Como argumento discursivo, o conhecimento tem que promover o diálogo e,

nesse sentido, não há saber inferior ou superior, pois o que valida o conhecimento

científico não é sua verificabilidade, mas a força de sua argumentação, do “poder de

convicção dos argumentos em que é traduzido” (SANTOS, 2003:329). Por sua força de

argumentação, não há, portanto, conhecimento que não seja contemporâneo, uma vez

que o conhecimento se vincula aos sujeitos sociais e suas práticas, que são igualmente

contemporâneas. Nesse contexto, o poder é relacional e se não há conhecimento

superior ou inferior, o que se assume é a existência de conhecimentos subordinados.

Daí, SANTOS (2003:330)afirmar que “não há primitivos nem subdesenvolvidos, há,

sim, opressores e oprimidos”. Portanto, a ciência contemporânea não nega o poder, mas

busca o diálogo entre os diferentes argumentos. Assim, as entrevistas foram revelando o

conhecimento explícito e implícito através das diferentes vivências. Cada qual, ao seu

modo, percebia a transformação da prática e do discurso católico e a influência disso no

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espaço sócio-cultural. A significação dada aos rumos da religiosidade católica pelos

entrevistados assumia posições diferenciadas, do ponto de vista político-social,

conforme a trajetória social e a vivência de cada um.

As entrevistas foram um importante recurso de coleta de dados, possibilitando

compreender o processo de produção da subjetivação. Inicialmente, pensou-se em fazer

entrevistas com sujeitos aleatórios, como meio de ter acesso ao modo de pensar e de

expressar dos sabinopolenses. Porém, no decorrer do estudo bibliográfico e dos

documentos pesquisados, ficou explícita a necessidade de ouvir pessoas que pudessem

esclarecer e ou informar sobre os dados e personalidades que marcaram a história de

Sabinópolis. Os entrevistados foram então escolhidos conforme objetivo já exposto.

Durante as entrevistas, os entrevistados, sobretudo os moradores e filhos da

cidade, puderam recompor uma paisagem histórica, em que retratavam não apenas um

tempo, mas os modos de pensar e agir e as influências a que estiveram expostos,

podendo, inclusive pelo discurso, se interrogar sobre o vivido – ao problematizar o

vivido, podendo vir a formular outros modos de pensar. Nesse sentido, podiam também

se deparar com sua historicidade. Tecendo ainda considerações e comparações entre um

tempo e outro.

O que torna as entrevistas subjetivas e os dados coletados um

instrumento privilegiado para o pesquisador é a possibilidade de a fala ser reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores e símbolos e, ao mesmo tempo, ter a magia de transmitir, através de um porta-voz, as representações de grupos determinados, em condições históricas, socioeconômicas e culturais especificas. (PERERIRA,2004:20)

Houve o agendamento prévio da entrevista, que se realizou ora no espaço

familiar do entrevistado, ora no local de trabalho, e, em média, elas durava uma hora e

meia. Todos permitiram a utilização de gravador, para registro da entrevista. Os

entrevistados foram convidados a participar da pesquisa, sendo informados do objetivo

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da mesma, de modo geral a receptividade e a disposição em participar foi significativa,

pois todos se disponibilizaram a responder sobre o perguntado. As emoções do

relembrar, da comparação de tempos, de histórias, de costumes, permitiu ao

entrevistador um momento rico por experienciar, não apenas alegrias, mas medos e

sentimentos de opressão e ou dor diante da dúvida, que pôde, no decorrer do relato, ser

vivida e expressa, quebrando o silêncio em torno dos tabus aprendidos. Como bem disse

Foucault, a construção do conhecimento é um ato de transformação de si. E como disse

Guimarães Rosa há coisas antigas que fazem “balance” em nossa memória, muito mais

que coisas recentes .

2.6 A análise dos dados coletados e a bricolagem teórica19

Na construção da argumentação do conhecimento em construção, no

entendimento do contexto no qual os enunciados foram produzidos (seja dos

documentos lidos, seja das entrevistas realizadas) e na compreensão da mensagem

implícita por detrás da comunicação, a análise de conteúdo foi o instrumento

metodológico usado para se trabalhar os dados coletados. Através da análise de

conteúdo, as categorias temáticas puderam ser percebidas: moralidade, visão político-

social hierarquizada: o branco superior, o negro inferior, construção de gênero: a cisão

feminino e masculino, valores como obediência, disciplina e temor, a figura do pai, do

padre, de Deus, o sincretismo religioso: o catolicismo tradicional/popular, o catolicismo

tridentino/reformador e o catolicismo renovador.

19 A idéia de bricolagem refere-se à composição e à articulação de diferentes teóricos, que pensam a realidade social-cultural humana em distintos momentos históricos e posicionamentos científicos e políticos. A bricolagem permite o uso múltiplo de elementos que possam compor um novo objeto. Aqui, no caso em questão, produz um argumento discursivo capaz de entender a realidade estudada.

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..."o que se procura estabelecer quando se realiza uma análise, conscientemente ou não, é uma correspondência entre as estruturas semânticas e lingüísticas e as estruturas psicológicas ou sociológicas (por exemplo:condutas, ideologias e atitudes) dos enunciados. De maneira bastante metafórica, falar-se-á de um plano sincrônico ou plano "horizontal", para designar o texto e sua análise descritiva, e de um plano diacrônico ou plano "vertical", que remete para as variáveis inferidas.[...] Não se trata da atravessar significantes para atingir significados, à semelhança da decifração normal, mas atingir através de significantes ou de significados (manipulados) outros "significados"de natureza psicológica, sociológica, política e histórica". (BARDIN:2004;36)

No processamento das informações colhidas, optou-se pela análise qualitativa

dos dados, através da qual a inferência, ou seja, a inferência de conhecimentos relativos

às condições de produção da comunicação é feitas a partir do aparecimento de um

índice temático (moralidade, costumes, gênero) e não sobre a freqüência da sua aparição

– quantas vezes aparece o tema na comunicação. Assim, a análise das entrevistas

permite-nos transitar entre os temas, cartografando o cenário histórico que marca a

produção dos significados e dos hábitos que formam a cultura dos entrevistados e que

remetem à cultura religiosa católica, permitindo-nos construir um entendimento da

realidade estudada.

Compreender a função da religião, entender a importância, sobretudo, da religião

católica no processo de formação da cidade, de modo específico, e, de modo geral, na

cultura brasileira, foi outro passo do estudo. A concepção de uma religião institucional

dominadora articulada ao poder do Estado, através do sistema de Padroado, no Brasil

Colonial, e posteriormente, no sistema Regalismo, do Brasil Império, se mostrou não

apenas como um modo de ser igreja, mas como um instrumento social de controle e

dominação social. No dizer de DURKHEIM o nomos social. Nomos que possibilitou

uma arquitetura espaço-geográfica e uma organização hierarquizada de diferentes

classes sociais unificadas em torno de uma concepção religiosa instituída.

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Não obstante, no interior da organização social religiosa do Brasil-colônia outro

catolicismo foi sendo constituído, não fundamentado na perspectiva institucional da

Igreja, mas nas sobreposições de culturas diferentes que em solo brasileiro se encontram

e se misturam. Da concepção transcendente de Deus do português colonizador, ao poder

anímico e incriado das crenças indígenas e negras, um terceiro elemento surge

unificando povos: o catolicismo brasileiro. Produzindo uma religiosidade que se pauta

na alegria, na festa e na esperança, sobrepondo-se à religiosidade da dor, culpa e medo,

vivida pelo colonizador português.

Paralelamente ao entendimento sobre a religião e seus estudos, foi necessário

entender como a Igreja Católica se organizou enquanto instituição e como a organização

se constituiu em práticas sociais. Daí, a realização de entrevistas com representantes da

Igreja Católica para compreender a história da instituição. Dois tempos e modos de ser

igreja foram identificados: Igreja/Estado, Igreja e Estado. Momentos históricos distintos

que remetem ao Brasil Colônia/Império e Brasil/República.Tempos que remetem a

mudanças das paisagens sócio-políticas, de uma cultura que se baseava nos moldes

coloniais de produção, na realidade brasileira vivenciada pela cultura escravocrata,

agrária, de grandes propriedades de terra (fazendas), e a inserção dos modos industriais

de produção. Em outros dizeres, a saída da "Idade Média"20 e a inserção na

modernidade.

Outros fatos significativos que se destacaram no estudo foram: a posição

geográfica da cidade, situada num vale e rodeada de montanhas, que dificultavam o

acesso a ela, ficando isolada de pólos econômicos importantes: seja do ciclo do ouro,

20 O Brasil é 'achado' em pleno processo de desenvolvimento do capitalismo mercantilista, no avanço das idéias protestantes (Reforma). No entanto, na cultura lusitana do colonizador, predominou uma mentalidade medieval, ainda que no cenário mundial a mentalidade iluminista e a organização sócio-cultural secularizada já se encontrassem em processo de legitimação. A concepção de Estado Laico, república e a reforma religiosa mobilizavam a cultura ocidental européia. Tais idéias foram fortemente reprimidas no Brasil pela Igreja e pelo poder monárquico e do estado.

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seja do eixo comercial e, outras vezes, sendo mantida isolada; a origem social

portuguesa das três grandes famílias que constituíram o arraial, Barroso, Araújo-Abreu

e Pinho-Tavares, e os diferentes interesses que os levaram a ir e permanecer na região;

os casamentos entre famílias: Araújo-Abreu e Barroso, Araújo-Abreu e Pinho, Pinho e

Barroso, criando as relações de parentesco que mantêm as vinculações sociais, afetivas,

religiosas e políticas, compondo uma mentalidade territorializada nos modelos

hierárquicos vividos pela cultural colonial rural, centrada na família e no poder

patriarcal, e permitindo a visualização da relação família-religião e política que

atravessam a subjetividade e mantém a cultura patriarcal. Por outro lado, e de modo

especial, a explicitação das diferentes culturas: do senhor e do escravo, do branco e do

negro. Este, sujeito fundamental à compreensão da constituição da história, que aparece

nos discursos dos entrevistados de modo implícito e revestido de tabu, posto que

historicamente compreendido como cultura inferior, mas que revela a multiplicidade

cultural e os enfrentamentos sócio-culturais, muitas vezes silenciados.

No processo de subjetivação, uma multiplicidade de fatores entra em cena,

revelando a heterogeneidade que permite a organização de um sentido para o que

somos. Nesse processo, alguns acontecimentos ganham força para gerar novas

significações, e isso pode indicar um grau de fragmentação, que gera angústia e perda

de sentido, o que Durkheim nomeou como anomia. Decorre daí a possibilidade de

nascimento do novo, de novas composições subjetivas e ou o fechamento em

composições já arraigadas, pelo medo de fragmentar. Entretanto, o homem está inserido

no mundo e na história, exposto a condições que não controla e que contribuem para a

produção do que "é", mesmo quando não percebe. A relação com o sagrado se mostra

como um centro organizador que o integra, permitindo o enfrentamento da existência.

Entretanto, o sagrado se mostra de forma diversa, conforme a cultura: a concepção

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transcendental sustenta a visão ocidental, a concepção imanente a visão tribal, negra e

indígena.

Os estudos de Durkheim são argumentos de entendimento sobre o sagrado, sua

função social e sua relação com a produção de subjetividade, entendida como sentido,

significação sobre o indivíduo que crê. Na ruptura do olhar dicotomizado indivíduo

versus sociedade, concepção que sustentou a produção de conhecimento durkheimiano,

outro argumento foi acrescido ao olhar do pesquisador, o de produção de subjetividade,

entendida como resultante da relação homem/sociedade/espaço/tempo/cultura, relação

que aponta para um movimento constante de fragmentação e recomposição, movimento

constitutivo do processo de subjetivação, já que a existência é marcada por uma

intensidade que leva o homem a criar significações que possam dar sentido a ela e a si

próprio. Assim, os estudos sobre subjetividade de Guattari foram escolhidos. À medida

que mediaram a compreensão de que a religiosidade, relacionando-se a concepção de

sagrado (numinoso) se constituiu (e constitui) num território simbólico, no qual a

própria idéia de transcendente funda um modelo de subjetividade territorializada, fixada

a um universo simbólico, que o autor nomeia como hipertexto.

No entanto, a subjetividade como resultado de um processo de produção estará

sujeita, não apenas ao discurso, mas a acontecimentos que possam enunciar mudanças,

transformações e mutações de sentido. Assim, o autor implica o homem na existência,

descentralizando a produção de significações do universo antropo/lingüístico e afirma-o

como polifônico:

A subjetividade é produzida por agenciamentos de anunciação. Os processos de

subjetivação, de semiotizacao – ou seja, toda a produção de sentido, de eficiência

semiótica – não são centradas em agentes individuais, nem em agentes grupais. Esses

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processos são duplamente descentrados. Implicam o funcionamento de máquinas de

expressão que podem ser tanto de natureza extra-pessoal, extra-individual (sistemas

maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, de

mídia, enfim sistemas que não são mais imediatamente antropológicos), quanto de

natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de

sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens, de valor, modos de

memorização, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc).

(GUATTARI, 1986:31)

Na análise do sincretismo simbólico brasileiro e no entendimento de sua

formação, Oswald de Andrade foi escolhido por suas idéias precursoras e singulares. O

sincretismo simbólico, marca inegável da brasilidade, é resultante de um processo de

"digestão" de outros modos culturais. O autor defende que o homem se faz no jogo

múltiplo de intensidades, de afetos e de razão, e propõe o termo antropofagia como

meio de apropriação e transformação das experiências culturais vivenciadas ao longo da

história brasileira. Com esse termo, aquilo que foi dado como tabu é digerido e

transformado em totem. Seus argumentos foram então relacionados com o sentido de

subjetivação, sobretudo, ao mostrar que sob o domínio opressor do colonizador, nasceu

um outro modo de ser, capaz de integrar diferentes culturas, diferentes expressões,

gerando uma relação com a vida e com a religiosidade distinta daquela ensinada pelo

colonizador, em que a intensidade da vida se fez pela alegria, sendo ela mesma uma

marca da resistência a uma visão homogênea sobre a existência. Afirma, pois, Oswald

de Andrade (1972), “nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito

sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará”. O sentido de

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criação e de mutação da humanidade a partir da heterogeneidade cultural brasileira o faz

defender a utopia de uma sociedade humana capaz de conviver com a diferença.

Por meios distintos, os três autores escolhidos defendem a duplicidade

(ambigüidade entre caos e ordem, entre ser e não ser) do homem como condição de

transformação do que ele é. A processualidade das significações é o que os une e o que

permitiu a construção do argumento e do diálogo que ao longo do trabalho será

apresentado.

Para finalizar, vêm a propósito as palavras de Silva e Menezes:

...na era do caos, do indeterminismo e da incerteza, os métodos científicos andam com seu prestígio abalado. Apesar da reconhecida importância, hoje, mais do que nunca, se percebe que a ciência não é fruto de um roteiro de criação totalmente previsível. Portanto, não há apenas uma maneira de raciocínio capaz de dar conta do complexo mundo das investigações científicas. O ideal seria você empregar métodos, e não método em particular, que ampliem as possibilidades de análise e obtenção de respostas para o problema proposto na pesquisa. (SILVA e MENEZES, 2001: 28)

Capítulo 3 SABINÓPOLIS: POR TRÁS DAS MONTANHAS DE MINAS

“O catolicismo foi a ferramenta mais poderosa de organização e de controle da vida brasileira por longo período... Até mesmo o nascimento de uma cidade, em geral, fazia-se a partir da construção de uma capela e da adoção de um santo padroeiro, de quem geralmente a cidade recebia o nome.” (PEREZ, 2000:10)

“São Sebastião dos Correntes”. Com este nome, nascia o lugarejo que, em 1927, se tornaria a cidade de Sabinópolis. A história desta cidade, como a do Brasil, está intimamente ligada ao catolicismo. Situada no nordeste mineiro, no vale do rio doce, a cidade tem sua origem na fé católica, na doação de terras feitas pelo casal serrano Joaquim José Gouveia e Francisca Vitória de Almeida Castro que, por não possuírem herdeiros, doam suas terras à Igreja Católica, através de escritura pública à Irmandade São Sebastião, então vinculada à Arquidiocese de Mariana, no ano de 1805. Em 1808, foi edificada a Capela de São Sebastião dos Correntes, em homenagem a São Sebastião,

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que, mais tarde, seria seu padroeiro, e aos três rios Correntes que banhavam as terras doadas. As palavras de Francisca Vitória recompõem os motivos e o desejo de ver frutificar os filhos da terra e os filhos da fé:

O meu Deus, certamente sabia, Irá embalar o sono de criança, Meu Deus certamente queria Banhará os corpos cansados de seus pais, Um destino frutífero para estas terras... Renovará as plantações, Meu Deus é sábio! Dará, sempre, novo ânimo

Se do meu ventre Ao povoado, à cidade que neste lugar Não surgirão herdeiros Deus proverá! Para as terras que conquistamos Ele é sábio! Com trabalho e muito suor. Ele fará nascer esta polis, Deus proverá! Uma cidade de sábios Nas margens deste rio correntes De bravos lutadores, Correrá a vida feliz De gente que quer conquistar De milhares de pessoas. Sem medo da luta A correnteza mansa deste rio A felicidade diária.21

As terras que se situam às margens do Ribeirão Correntes, confluência dos

Córregos São Francisco e Boa Vista, região atualmente conhecida como Almeida,

passam assim a pertencer à Irmandade São Sebastião, irmandade dos homens brancos.

Nessas terras, após a edificação da Capela a São Sebastião, começa a ser constituído o

arraial São Sebastião dos Correntes. Assim, no Brasil Colônia do início do século XIX,

inicia-se a história de Sabinópolis.

3.1 A relação Brasil-Colônia e Igreja Católica

O descobrimento da América, seu “achamento”, se fez em pleno processo de

expansão do Capitalismo Mercantil, do ponto de vista econômico, do ponto de vista

simbólico, na expansão das fronteiras do “visível e um deslocamento das fronteiras do

invisível para chegar a regiões que a tradição dizia impossível ou mortais” (CHAUÍ,

2000:58). Enquanto a Europa vivia o questionamento dos valores religiosos e a perda da

hegemonia do catolicismo através da reforma protestante, as terras ‘descobertas’ pelos

21 Poema retirado de documento pertencente a Orny Leiva Mourão Josafá - bibliotecária aposentada da Biblioteca Pública Municipal de Sabinópolis.

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portugueses e tornadas colônias tomaram o significado de encontro da terra prometida,

reafirmando uma tradição religiosa, baseada no cristianismo católico medieval.

Reproduzindo, nas Colônias, a concepção de sacralização que dominava a cultura

medieval, em declínio na Europa, segundo Chauí (2000), o Brasil, como a América, são

uma criação dos conquistadores europeus. Criação que teve sua origem em um mito

fundador: o sagrado, através do qual a natureza, o tempo e o governo foram instituídos

e legitimados pela vontade divina. As terras descobertas, significadas como ‘Terra

Prometida’ ou ‘Paraíso Terrestre’, foram apropriadas pelos ‘descobridores’ sob o

símbolo cristão, o poder da Igreja e do Rei.

No período de conquista e colonização da América e do Brasil surgem os

principais elementos para a construção de um mito fundador. O primeiro constituinte

[...] a “visão de paraíso” e o que chamaremos aqui de elaboração mítica do símbolo

“Oriente”. O segundo é oferecido, de um lado, pela história teológica providencial,

elaborada pela ortodoxia teológica cristã, e, de outro, pela história profética herética

cristã, ou seja, o milenarismo de Joaquim de Fiori. O terceiro é proveniente da

elaboração jurídico-teocêntrica da figura do governante como rei pela graça de Deus, a

partir da teoria medieval do direito natural objetivo e do direito natural subjetivo e de

sua interpretação pelos teólogos e juristas de Coimbra para os fundamentos das

monarquias absolutas ibéricas.

Esses três componentes aparecem, nos séculos XVI e XVII, sob a forma das três operações divinas que, no mito fundador, respondem pelo Brasil: a obra de Deus, isto é a Natureza, a palavra de Deus, isto é, a história, e a vontade de Deus, isto é, o Estado”. (CHAUI, 2000:58)

A expansão marítima européia se faz num contexto de ruptura de um mundo

feudal, no declínio da sociedade tradicional e no agravamento das desigualdades sociais

justificadas pelo poder teocrático. Portanto, diferentemente de descobrimento, o

achamento supõe a procura de algo que já está previsto, ou profetizado, que, sendo

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encontrado, reforça a ‘providência divina’. Nas terras encontradas, o Reino de Deus será

garantido, pois nele se restaurará a ordem e se retornará às origens: o sagrado proverá o

profano. Assim no século XVI, na Renascença, período que antecede a Modernidade e

que a prepara, o cristianismo católico se mantém, baseado em duas literaturas teológicas

que justificam a monarquia absoluta e o poder eclesiástico: a milenarista e a profética,

que fundamentam a relação Igreja/ Poder e Reinado.

A literatura milenarista se fundamenta na idéia judaica e bíblica de um tempo

que se constitui como passagem para o fim, um tempo em que os sinais divinos

orientam e significam o sentido do mesmo. Nesse contexto, os homens se submetem à

vontade divina e se afastam ou se aproximam dos planos de Deus, por meio de suas

obras. A significação do tempo pode ser feita por alguns escolhidos: os profetas. Assim,

o texto bíblico é interpretado e, partindo dele, duas posições são assumidas: o Antigo

Testamento é interpretado como advento do Messias, e o Novo Testamento como a

profecia do Segundo Advento, a segunda vinda do Messias na qual a história estará

consumada. A interpretação sobre um Segundo Advento se fará, posto que, após a

morte de Cristo, o mundo não terminou, como se pensava, o fim não se deu. Um novo

advento reafirma, portanto, concepção determinista do tempo, da história.

“Como reação e afirmação de seu poderio, a instituição eclesiástica, ou a “Igreja dos justos e bons”, foi proclamada o Reino de Mil Anos ou a Jerusalém Celeste, determinando que a revelação estava concluída com a Encarnação de Jesus e que a história universal estava terminada com os Evangelhos. Tudo está consumado no mundo e mesmo que este não acabe hoje, mas somente quando Deus assim decidir, nada mais há para acontecer, senão o progresso individual do caminho da alma a Deus e a difusão da Igreja por toda a terra. Passa-se, assim, a se fazer uma distinção entre o século, ou o tempo profano, e a eternidade, ou o tempo sagrado: a ordem sagrada da eternidade está concluída e a ordem profana do século é irrelevante em termos universais, tendo relevância apenas para a alma individual, peregrina neste mundo e em itinerário rumo a Deus.” (CHAUI, 2000:73)

A sagração das terras brasileiras se faz nesse território simbólico determinista e é através dele que se constituiu a organização política e social da Colônia, pela divisão do país em Sesmarias e Capitanias Hereditárias concedidas

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aos donatários pela graça do Rei, proprietário das terras e Senhor de direito sobre elas. Direito que se fundamenta no poder divino. Essa relação de poder cria a intimidade institucional Igreja e Coroa, estruturando o sistema de Padroado, através da qual a Igreja reconhece o Rei como representante natural e de direito do poder divino e que na ausência do mesmo assume a Igreja a função de governar as terras de sua propriedade. Assim, legitima-se a ordem social colonial, marcada pela hierarquização verticalizada: daqueles que são agraciados pelo poder real e daqueles que devem atingir a graça pelo papel social que ocupam, servindo ao Rei e fazendo prosperar a Colônia pela “graça de Deus”. Portanto, justifica-se a condição do Senhor e do Escravo.

Nesse contexto, a escravidão africana é introduzida no Brasil, depois das

inúmeras tentativas de subordinação do índio ao trabalho escravo servil. Este, por sua

resistência, é nomeado “naturalmente incapaz” para o trabalho. A escravidão negra é

justificada racionalmente por ser o negro considerado um ser “inferior” e “primitivo”,

em relação aos europeus. Religiosamente, a escravidão é significada ora como caminho

para a libertação/ salvação, ora como justo cativeiro imposto por Deus a partir do

pecado original. Ou ainda, o negro é significado como descendente de Caim –

significação que o aproxima do mal, a ser repudiado por sua cor, símbolo de sua origem.

Pela força de seu poder, o branco impôs ao negro escravo (e ao índio/silvícola) a sua

cultura social e religiosa e esse a incorporou a seus ritos e crenças africanas.

Não obstante, no espaço institucional da igreja do Brasil colonial, se

organizaram as Irmandades nas quais as diferentes classes sociais puderam transitar e

ocupar papéis sociais distintos daqueles ocupados na hierarquia social. Assim,

encontraremos no período colonial a irmandade dos homens brancos, dos homens

negros e dos homens pardos. Cada irmandade assumiria características e significados

distintos, sendo um espaço de significação daqueles que as compunham, criando

códigos de pertencimento, de identificação para seus membros. É importante salientar

que ainda que no espaço social as relações fossem hierarquizadas e verticalizadas, na

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irmandade essas relações assumiam características horizontais. A organização espaço-

geográfico da Colônia revelará essa significação simbólica.

“Na medida em que surgia a comunidade, também surgiam estas Irmandades dentro

daquela comunidade. E a comunidade tinha senhores, tinha escravos e tinha pessoas que não eram nem senhores, nem escravos. Cada um queria ter o seu grupo, a sua irmandade. Inclusive tem irmandade que defendia muito a pessoa, eram uma maneira de a gente ter uma comunidade. Por exemplo, cada irmandade tinha o seu cemitério, então era um sepultamento, ou num cemitério grande do lugar tinha as repartições, setor de nossa senhora do rosário, setor disso, setor daquilo... nos cemitérios. Ainda hoje a gente encontra nestes cemitérios aqueles diversos setores. Então a comunidade procurava se organizar sempre a partir do religioso. E o religioso naquela época, o único religioso admitido era a igreja católica, então a igreja tinha estas divisões, estas irmandades, mas uma completamente independente da outra e uma geralmente convidava a diretoria da outra para sua própria festa. Mas elas tinham autonomia absoluta. Então as irmandades no Brasil eram quase como entidades dentro da igreja.”

Entrevista n°1- Informante eclesiástico.

Esse sincretismo religioso, sobreposição de símbolos da cultura branca e negra,

foi possível pela convivência de diferentes códigos, de ritos e linguagens. Enquanto a

cultura do senhor apontava para um sagrado transcendente, significado por uma religião

monoteísta que se impunha como verdade, a cultura do negro afirmava-se através de

suas festas, símbolos e ritos, que, apropriando-se dos símbolos cristãos, sobretudo

Nossa Senhora do Rosário, podia referenciar uma cultura religiosa fundamentada na

multiplicidade de deuses (orixás), de forças sagradas que se presentificavam no mundo,

na imanência. No seio da imposição cultural, nascia um universo simbólico que

mantinha a cultura negra, mutação simbólica capaz de afirmá-lo numa sociedade que o

negava.

Duas culturas conviviam: a religião primitiva do negro, vivida em suas festas e coletivamente, e a religião institucional tradicional do branco, vivida sobretudo na privacidade das orações, dos oratórios. No entanto, sobre o negro pesava a significação de exclusão, seja por sua cor, seja por sua cultura. A superioridade do senhor se fazia não apenas no lugar social político, como também religioso. Ser cristão era não somente uma condição de diferenciação social do senhor, mas a condição que justificava a coisificação do negro, a sua servidão e opressão. Todo o sistema colonial dependia da sua força de trabalho.

3.2 A constituição do Arraial São Sebastião dos Correntes

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A doação das terras coincide com o declínio do ciclo do ouro em Vila do Príncipe (atual Serro), a exploração do mineral já não era rendosa. As terras doadas constituíram numa possibilidade de nova vida. Assim, atraídos pela fertilidade do solo e pela possibilidade de produção de lavoura que sustentassem a província de Mariana e favorecesse o comércio, chegou a São Sebastião dos Correntes o primeiro casal de moradores: Joaquim Barrozo Álvares e Maria de Tal. Ambos de origem portuguesa. Com eles também chegaram os escravos e se reproduziu, nas novas terras, a mesma ordem social que definia as relações coloniais. No largo da Capela, pertencente à Irmandade São Sebastião, se instalaram os fazendeiros e comerciantes. Afastada do largo e em local alto, no final do século XIX, 1884, é concluída a edificação da Capela do Rosário, ligada à Irmandade dos homens negros. Ao direito de habitar associava-se o direito de governar. Direito que foi assumido por Joaquim Álvares Barrozo. Sua influência política provocou a nomeação da parte central que ladeava a Capela de São Sebastião de “Largo do Barrozo”, atualmente conhecido como Praça Monsenhor Amantino. Conforme BARROSO (1997), o sonho de enriquecimento fácil de Joaquim desmoronou e assim, em 1808, iniciava-se a constituição de São Sebastião dos Correntes:

“As minas de ouro de Vila do Príncipe já haviam praticamente se exaurido. As cidades que floresceram às margens das minas experimentavam uma profunda decadência. O jovem Joaquim, todavia, não se deixou abater. Recém-casado, não vislumbrando possibilidade de progredir em Vila do Príncipe, possivelmente atraído pela doação prometida por Joaquim de Gouveia, resolveu tentar melhor sorte nas terras férteis do Ribeiro Correntes”.(p.32)

Os primeiros moradores do arraial foram Padre Bento de Araújo Abreu, um dos primeiros capelães da igreja do arraial, seu irmão Alfares Antônio de Araújo Abreu, Antônio Borges Monteiro, mestre Urbano Taveira de Queiroga, Joaquim da Silva Campos, primeiro Escrivão de Paz , Antônio Monteiro Junior, Capitão Semeão Vaz Mourão, Alferes Antonio Fernandes do Amaral, Malaquias Pereira do Amaral, Manoel Coelho de Almeida, Capitão Antônio Jose Campos, João Pereira do Amaral, Francisco e Clemente José dos Santos.

"Em 1820 o arraial passou a ser capela filial da paróquia do Serro, Diocese de Mariana. Em 1822 foi nomeado o primeiro capelão, padre Bento de Araújo Abreu, irmão do Visconde de Itajubá, que era casado com a princesa Valmira, sobrinha de Guilherme I, imperador da Alemanha. Em 1840, a capela passou à condição de paróquia pela Bula Pontifícia de1838. Em março de 1840, contando já com 7.840 habitantes, tornou-se distrito por força da Lei Provincial n.184 de 12 de março de 1840. Em 25 de outubro de 1848, tomou posse da paróquia o seu primeiro vigário, Pe. Marcelino Nunes Ferreira, nomeado por Dom Viçoso, Bispo de Mariana. Vigário Marcelino dirigiu a

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paróquia por 54 anos, de 1848 a 1902, data de seu falecimento". (QUEIROZ, 2003:70)22

Do período de sua doação até o ano de 1854, o arraial ficou vinculado à

Arquidiocese de Mariana, tendo por ele passado vários padres que tiveram breves

passagens. Em 1822, ano da Independência do Brasil e já sob o regime imperial, toma

posse o padre Bento de Araújo Abreu. Com sua vinda para o arraial, também vem seu

irmão Antônio de Araújo Abreu. As famílias Barroso, Araújo Abreu e mais tarde a

família Pinho (1883) formaram a elite social que, amparada por diferentes regimes

políticos (colonial, imperial e republicano) e pela religião, se alternaram no poder.

O catolicismo do período colonial em São Sebastião dos Correntes é vivido através das orações, das festas do santo padroeiro, São Sebastião, da festa de Nossa Senhora do Rosário, festa dos negros, sem que haja uma intervenção muito grande de um modo eclesiástico de ser igreja: o chamado catolicismo tradicional popular. A religiosidade católica é mantida nos hábitos através das capelas edificadas junto às fazendas, no costume da reza do terço, na educação familiar, no culto às imagens dos santos de devoção, nas procissões, nas visitas de padres das regiões vizinhas ao povoado e às fazendas. A religiosidade assumia um cunho popular onde se misturavam diferentes símbolos e significados de duas culturas distintas: a do Senhor e a do Escravo. Uma religiosidade institucionalizada é dificultada pela extensão territorial da colônia e da província de Mariana, pelo número reduzido de sacerdotes, pela obrigatoriedade do celibato, pela condição de dependência da Igreja ao Império, condição que lhe impedia a autonomia de criar paróquias e de nomear párocos. Viveu-se, pois, uma religião de 'pouco padre e muita fé'. O período colonial – e posteriormente o Imperial – é marcado pelo conflito de

poder e pelo forte controle exercido pela Coroa e pela Igreja Católica sobre as

consciências tanto das elites quando dos negros mantidos sobre trabalho escravo. As

condições de exploração da colônia e os desmandos da coroa se fizeram presentes

também no arraial. Dois fatos são reveladores das condições de conflito de poder entre

fazendeiros e negros: a breve permanência dos padres, ou seja, a rotatividade dos

mesmos, no período de1808 a 1846, e a nomeação, em 1846, do negro Marcelino Nunes

Ferreira, por Dom Antônio Viçoso – bispo de Mariana, como vigário de São Sebastião

22Vigário Marcelino foi nomeado para padre de São Sebastião dos Correntes em 13 de Novembro de 1845, vindo a tomar posse em 03 de Janeiro de 1846, conforme documento de posse de Orny Josafá Mourão.

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dos Correntes. A nomeação de um negro, numa sociedade escravocrata, para o lugar de

vigário é um símbolo da tentativa de amenizar os conflitos advindos da estrutura social

colonial. Sendo ainda um indicativo de uma mentalidade anti-escravocrata nascente na

instituição católica, que tem em Dom Viçoso um forte representante. A ambigüidade de

sentidos enuncia as transformações sócio-culturais: o conflito entre a religiosidade

popular e a religiosidade tridentina/reformadora, a tentativa de conter o avanço de uma

mentalidade racional que visa à inserção de uma cultura baseada na liberdade, igualdade

e fraternidade, em que os valores religiosos começam a ser questionados, o declínio do

sistema colonial e a emergência do sistema imperial.

3.3 Igreja e Estado: Mudanças no período Imperial

Com a vinda da família real para o Brasil e a proclamação da Independência

(1822), um novo regime político é consolidado: o Império. Sob a influência do espírito

iluminista, que promoveu profundas alterações sociais e políticas na Europa, rumo a

uma sociedade secularizada, o Brasil proclamou sua independência política, sem,

entretanto, modificar as estruturas sociais que mantinham a organização do período

colonial. Os princípios iluministas de Liberdade, Igualdade, Fraternidade influenciaram

a mentalidade promovendo manifestações e movimentos em prol de um modelo político

que promovesse de fato a independência brasileira do jugo de Portugal e de todos

aqueles que mantinham um relação de exploração do Brasil, levando ao agravamento

dos conflitos sociais entre senhores e escravos, ao aumento da repressão, via Estado e

Igreja, ao questionamento da Igreja Católica e seu papel social: vivência de uma religião

transcendente "para o alto" alheia ao contexto político, vivência de uma religião inserida

no contexto político, comprometida com o cristianismo primitivo, na concepção de uma

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sociedade comunitária, fraterna, em que as desigualdades cediam espaço para a

comunhão e a partilha.

Entretanto, a relação entre Igreja e Estado não se alterou no período imperial, posto que a Igreja estava intimamente ligada ao Império e dependente dele. Pela constituição de 1824, o Brasil se torna uma monarquia hereditária e constitucional, de tradição católica. O padroado é substituído pelo Regalismo, no qual o poder não é advindo/concedido do papa, mas 'adquirido e próprio' do Imperador, estando a Igreja Católica Nacional submetida ao poder do mesmo. O poder é centralizado no monarca, e mantido legítimo pela sacralização da Igreja, que reconhecia no Imperador o representante de Deus, portanto tornava-o pessoa inviolável e sagrada. A instituição de um império católico atendia ao desejo de uma elite conservadora e de uma Igreja que pouco a pouco se tornaria romanizada, ambas desejosas de manter a hegemonia do poder. O regalismo evidencia as relações de conflito entre o Império e Roma,

evidenciando os rumos de uma sociedade que sofre influência das idéias iluministas, ao

admitir a livre consciência, a livre expressão e a soberania do Estado sobre a Igreja, a

religião perde sua exclusividade, diante do liberalismo que marca tal período. E a Igreja

Católica, enquanto instituição, se vê ameaçada em sua hegemonia, pressionada pela elite

portuguesa e pelo Brasil a se posicionar diante da Independência brasileira e do Império

instituído. Diante da pressão:

"O Papa Leão XII responde com a Bula "Praeclara Portugalliae" de 27-05-1827, criando no Império do Brasil a Ordem de Cristo e tornando o Imperador seu grão-mestre perpétuo. Estendendo desse forma ao monarca brasileiro a antiga concessão pontifícia que dava aos reis de Portugal direitos sobre a Igreja, nos seus respectivos territórios. A reação nos círculos do governo é sintomática para o espírito da época. O parecer sobre a Bula da Comissão Eclesiástica é inteiramente desfavorável. Considera-se o conteúdo do documento papal ofensivo aos dispositivos da Constituição, alegando que o Imperador já possuía todos esses "direitos" como inerentes à sua função especificada na Carta de 1824. Por isso, a Bula é considerada ‘ociosa e inutil’.” (MATOS, 2002:34)

Ainda que institucionalmente a dependência Igreja/Estado tivesse sido definida,

impedindo que a igreja e o clero manifestasse posições públicas contrárias às decisões

imperiais, o desejo de liberdade, igualdade e fraternidade fez nascer no interior da

igreja manifestações de repúdio: à escravidão dos negros, ao regime monárquico, às

desigualdades sociais e sobretudo, à condição de servidão ao Estado em que se

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encontrava a igreja após a Constituição de 1824.23 No Brasil Império, dois movimentos

de reforma marcaram a Igreja: o movimento por uma igreja nacional, regalista liberal e

o movimento ultramontano, conservador.

O movimento por uma Igreja Católica Nacional, vinculada aos clamores

populares e políticos, mas que acreditava que a reforma deveria partir do Estado/

Império. Portanto, um movimento: Nacionalista, Regalista e Liberal, defendendo o

direito à liberdade religiosa e a independência em relação a Roma. Nesse movimento,

havia uma forte identificação do clero com as questões populares. Do ponto de vista

religioso, o movimento se fundamentou no cristianismo primitivo, na concepção cristã

de partilha e de comunidade. O movimento via no celibato obrigatório um empecilho

para a efetiva moralidade do clero, sendo considerado letra morta, que existia no direito,

mas não de fato. Defendia uma caixa eclesiástica, através da qual a Igreja pudesse

promover fundos e sustentar as despesas do culto e pagamento do clero. No movimento

destacaram-se Frei Caneca (precursor) e Feijó.

Já o movimento ultramontano24 e conservador, baseado numa concepção

tridentina do catolicismo, defendia o poder soberano de Roma sobre a Igreja, e não do

Estado. A formação religiosa Lazarista fundamentou a reforma brasileira, na qual o

clero deveria preocupar-se com a moralidade e as virtudes espirituais, afastando-se do

mundo leigo, portanto, político, tendo o papel de divulgar a doutrina Católica Romana

pelo culto, pela Confissão e pela Missa. A religiosidade popular é criticada e

considerada como supersticiosa. Assim institui-se o Catecismo, as Missões – visitas

pastorais – como forma de difundir a fé Católica Romana e combater a ignorância do 23 A emergência de movimentos no interior da instituição Igreja revela-nos que não havia uma uniformidade de pensamento e de conduta do clero, sendo que a realidade hierarquizada - seja pela subordinação ao Império, seja pela subordinação eclesiástica - não impediu, como não impede, que a religião seja questionada em sua função social. A emergência de um novo modo de pensar relaciona-se ao conceito de instituinte, aquilo que pode modificar uma realidade dada e aceita - instituído. Tal conceito pode ser relacionado com a idéia de duplicidade que Durkheim atribui ao homem, algo que escapa à total socialização, podendo fazer romper com as normas sociais instituídas. 24 Esse movimento será de agora em diante nomeado pela expressão catolicismo reformador/tridentino.

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povo. São criadas associações e é impulsionado o culto Mariano – culto a Maria –, na

divulgação da devoção à Virgem Maria, instituído como contraponto ao protestantismo

que obscurece as 'virtudes da Virgem'. O celibato é defendido como modo de proteger o

sacerdote contra as 'tentações da carne', o uso da batina pelo sacerdote é obrigatório,

sendo um símbolo de sua sacralidade.

Os dois movimentos têm em comum o objetivo de promover a moralidade do

clero e a sua formação através dos seminários e a convicção da necessidade da religião

como instrumento de moralização da sociedade, sendo benéfica e necessária ao Estado,

pois 'sem fé, sem religião, a sociedade civil se desintegraria e caminharia para o caos'

(MATOS, 2002).

Entretanto, o movimento que paulatinamente se sobressai é o conservador

ultramontano, que teve como principal representante o bispo português de formação

lazarista: Dom Antonio Ferreira Viçoso, nomeado pelo Imperador Dom Pedro II, como

Bispo de Mariana. Por sua intervenção e trabalho, a fé católica é divulgada e difundida,

promovendo uma religiosidade baseada nos princípios morais, na valorização dos

valores espirituais sobre os corporais. A sexualidade era combatida, através da

divulgação dos castigos divinos àqueles que transgredissem a moralidade. As missões

tinham por função divulgar os princípios católicos, combatendo a imoralidade, ao final

das mesmas se obtinham a regularização de relações matrimoniais não oficiais, a

dissolução de relações não oficiais, as confissões e as penitências como condições

rituais de purificação.

Á religiosidade popular definida como 'fanatismo', 'supersticiosa', 'primitiva', foi

sobreposta a religiosidade 'esclarecida' e verdadeira vivida através do culto oficial, da

missa e dos sacramentos. Sob o lema: "lugar do padre é o templo", a institucionalização

da religiosidade é promovida. Nesse contexto é que Dom Viçoso instituiu o Catecismo

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de Mariana, que eram compêndios populares da doutrina católica, contendo orações

para as diversas circunstâncias, perguntas e respostas que deveriam ser decoradas,

contendo ainda uma parte prática, na qual os ensinamentos teóricos se aplicavam à vida.

"Em lugar das antigas devoções, herança do período luso de nossa historia, os bispos – nisso apoiados e incentivados por Congregações Religiosas estrangeiras – promovem novas devoções mais alinhadas à doutrina oficial, tais como a Devoção ao Sagrado Coração de Jesus, junto com a prática das nove primeiras sextas-feiras do mês... Paulatinamente os santuários populares e centros de romaria são subtraídos à direção das antigas Irmandades, passando a ser gerenciados pelo clero ou religiosos estrangeiros. O resultado deixa-se prever facilmente: quem tem o controle da imagem do Santo pode fiscalizar de perto a devoção e as festas do orago. Não obstante a clericalização das devoções populares, estas sobrevivem em diversas formas de piedade, expressões religiosas que tocam a alma do povo. De fato, muitas vezes esse mesmo fiel não se encontra nos ritos romanos da Igreja, distantes de sua realidade e versados em linguagem e gestos que não entende." (MATOS, 2002:97,98)

Tanto a Igreja quanto o Estado do período Imperial buscam a centralização do

poder para fortalecer o poder interno das respectivas instituições. O poder personificado

na pessoa do Papa e do Monarca foi um instrumento de enfrentamento da tendência de

democratização do poder, que influenciaram as revoluções internas à Igreja e ao

Império. O conservadorismo foi fundamental para a manutenção dos valores

tradicionais, em oposição à Modernidade, em expansão. Assim, são as revoluções

regionais – Revolução de 1842 (Minas Gerais) e Revolução Farroupilha – e os

movimentos reivindicatórios de autonomia (abolicionista) foram considerados como

ruptura da ordem, e em desacordo com a lê – ilegais –, contrário, pois, à vontade de

Deus. Frente ao processo de fragmentação dos nomos, foi necessário instituir ritos

capazes de manter os valores em processo de transformação.

Como tentativa de diminuir conflitos internos de ordem político-social, a Igreja, através do catolicismo reformador/tridentino, busca aproximar-se dos revoltosos, como modo de garantir a ordem social vigente. Justifica-se, assim, a inserção do negro na Instituição Católica, não mais pela Irmandade, mas pela formação do clero – lugar de ascensão, de poder e de controle social. Não mais pela via da religiosidade popular, mas pela religiosidade institucional reformadora.

Nesse contexto é que se pode entender a nomeação de um negro, num período escravocrata, para a então Paróquia de São Sebastião dos Correntes: Vigário Marcelino

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Nunes Ferreira. Cabe ponderar que a nomeação de párocos, no período Imperial, poderia ser feita pela consciência do bispo, quando tinham um candidato digno e preparado e ou por imposição da autoridade governamental. Nesse caso, os bispos aceitavam para não se indisporem com a autoridade governamental, submetendo assim o povo a um líder de formação duvidosa.

Com a expansão do Liberalismo, a Igreja buscou na parábola do Bom

Samaritano outro modelo de intervenção social, através do qual atendia às necessidades

da população pela prática da caridade cristã. No final do período Imperial, em pleno

avanço das idéias liberais, foram instituídas várias associações que visavam a atender

aos pobres: Sociedade São Vicente de Paulo, Santas Casas de Misericórdia, Casas de

Acolhimento aos menores abandonados, a mulheres, asilos. As irmandades voltaram-se

para a questão da liberdade negra, por via da alforria.

"Nessa época o pobre freqüentemente é visto como pessoa merecedora de

compaixão, um desamparado da sorte. Pouco aflora a questão da justiça social, sendo o pobre encarado no seu infortúnio individual e não como alguém inserido em um grupo social estruturalmente marginalizado. Raramente se pergunta pelas reais causas desse crônico estado de miséria coletiva." (MATOS, 2002:99)

3.4 Um acontecimento paradigmático: o roubo do missal em São Sebastião dos

Correntes

As mudanças advindas com o pensamento liberal pouco afetaram o povoado de

São Sebastião dos Correntes, na primeira metade do século XIX, ainda que o mesmo

estivesse muito próximo de Vila do Príncipe, sede de irradiação da Revolta Liberal de

1842. Dois fatores contribuíram para a manutenção de uma mentalidade conservadora:

o domínio político e econômico de Joaquim Álvares Barrozo e o Catolicismo. A

consolidação de poder de Joaquim estava associada ao seu desenvolvimento econômico,

através da produção de lavouras, seu território se expandiu: Fazenda São Bartolomeu,

Fazenda Bom Jardim – (distrito de Euxenita), Corrente Canoas, Graipu, Fazenda do

Santana, da Hortinha e as suas atividades de escrivão. Antes de 1830, foi agraciado

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com o título de Alferes da Guarda Nacional, e em 1836, é titulado como Capitão da

mesma Guarda. As guardas nacionais objetivavam manter a ordem pública e os

cidadãos agraciados com seus títulos eram aqueles que, em tese, prestavam serviços à

coletividade e tinham interesse na manutenção da ordem.

"Na década de 1830 criaram-se os partidos políticos. No arraial de São

Sebastião dos Correntes, as figuras mais representativas da localidade resolveram se reunir para fundar o Partido Conservador. O cidadão de maior prestígio na comunidade, o juiz de paz Antonio Borges Monteiro, recusa a chefia do partido, indicando, entretanto, como presidente, o seu escrivão Capitão Joaquim Barrozo Álvares. O povo semi-alfabetizado, recém-saído do regime colonial, em que não existiam partidos políticos, era em verdade incapaz de entender o seu significado. O partido era personalizado na pessoa de seu chefe, no caso o Capitão Joaquim Barrozo Álvares, sempre apoiado pelo venerável Antonio Borges Monteiro e sua roda de amigos. No arraial não existia, pois, espaço para o Partido Liberal. Não havia qualquer oposição ao Capitão Joaquim. Como a Igreja Católica era unida ao Estado, ou pela inexistência de prédios públicos, com espaço suficiente para realizar as eleições, estas, no império e mesmo na Velha República, eram sempre realizadas nos templos católicos. Em sucessivas eleições, a vitória do partido conservador no arraial era por absoluta unanimidade. Consolidava-se o indiscutível prestigio político do português. Sua chefia política no arraial era incontestável". (BARROSO, 1997:38)

Em 1840, por iniciativa política de Joaquim Barroso, com apoio de Antônio de

Araújo Abreu e seus correligionários, o arraial é elevado à condição de distrito de Vila

do Príncipe/ Serro, conforme parágrafo 11 do art.1 da Lei Provincial n184 de 12 de

março de 1840. A relação entre Barroso e Araújo Abreu se fortaleceu pela união

matrimonial entre os filhos das duas famílias.

O pensamento liberal se irradiava pela região de Vila do Príncipe, através das

idéias do jovem Teófilo Otoni e de suas publicações feitas no jornal por ele fundado e

redigido: 'Sentinela do Serro'. Teófilo Otoni tornou-se líder do Partido Liberal na região,

vindo a ocupar o cargo de Deputado da Assembléia Provincial e Senador. Em 1841,

com a vitória do Partido Liberal e a dissolução da Câmara pelo Imperador, Otoni foge

para Minas, preparando a luta armada contra o Império: a Revolução de 1842, contra a

qual o bispo Dom Viçoso se posicionará, por sua ilegalidade e por ser a mesma

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contrária à 'legitima autoridade'. Tendo mesmo rogado a Deus pela vitória da legalidade.

(MATOS, 2002). Sua posição antiliberal e centralizadora tornou-se necessária à

manutenção da Igreja e do Império.

As idéias liberais adentraram a Igreja. Em 1840, elas foram difundidas e

divulgadas por Padre Narciso Pereira Alves, em São Sebastião dos Correntes. Com seus

sermões, o padre criticava o mandonismo do chefe político Joaquim Álvares Barroso,

estigmatizando-o por não ser brasileiro. Pela força de seus sermões, o Partido Liberal

crescia em São Sebastião dos Correntes. Na eleição de 1843, o Partido Conservador,

percebendo-se ameaçado pela influência do padre e desejando evitar o seu sermão

dominical, planeja o roubo do missal. Àquela época, a missa era rezada em latim,

ficando o padre de costas para o povo. Com o argumento de que o "padre, de latim, nada

sabia", os conservadores planejam o roubo, objetivando evitar o sermão, que poderia

garantir a vitória do Partido Liberal.

"A sugestão foi energicamente repelida pelos circunstantes. Uns diziam-na mais

do que criminosa, porque sacrílega. Outros, estupefatos, acoimavam de herética. Os

demais taxavam-na de anti-cristã. Todos, exceto o Barroso, concordavam em um ponto:

se subtraíssem o missal, seriam irremediavelmente excomungados. A excomunhão,

notadamente para os fidelíssimos católicos da época, representava mais do que a morte

física, consistia na desgraça total, passaporte certo para o inferno".

(BARROSO,1997:41)

O missal foi roubado, alguns entenderam o seu sumiço como coisa do diabo,

evidenciando o pensamento anímico, marca da religiosidade popular, exceto os

membros do Partido Conservador que mantiveram segredo do ocorrido. O Partido

Conservador venceu as eleições por poucos votos. Padre Narciso, no mesmo ano, é

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removido do arraial. Em seu lugar, Dom Viçoso nomeia um clérico de sua confiança

que introduzirá o catolicismo reformador/tridentino. O arraial então sofre retaliações

dos liberais, deixando de ser freguesia do Serro, só voltando a sê-lo, quando os

conservadores retomam o poder. Nesse ambiente de conflito entre liberais e

conservadores, entre uma religiosidade popular, comprometida com os clamores

populares e uma religiosidade institucionalizada comprometida com os 'valores

espirituais', Vigário Marcelino, um negro em pleno Império escravocrata, assume a

Paróquia de São Sebastião. O roubo do missal tornou-se, pois, um acontecimento

paradigmático na história de São Sebastião dos Correntes, tanto do ponto de vista

político, quanto religioso.

3.5 Vigário Marcelino: o 'Império' do pai dos pobres

De meados do século XIX ao seu final, Vigário Marcelino consolidou a religião católica com o apoio das missões, das visitas pastorais, do catecismo e sobretudo dos sacramentos: casamento, confissão, batismo e eucaristia. A religiosidade institucional – tridentina/reformadora – consolidou não apenas a religião, mas um modelo de autoridade fundamentado no poder centralizador de Deus, do Imperador, do Padre, do Pai. A sociedade patriarcal branca se impunha sobre a visão matriarcal negra. Vigário Marcelino batiza vários negros – que assim deixavam de ser pagãos e ascendiam não apenas à condição de cristão, mas a uma posição social de reconhecimento, pois ser cristão, no Brasil imperial, era ser quase cidadão. Em 1884, foi terminada a edificação da Capela Nossa Senhora do Rosário. Vigário Marcelino agrega à religião Católica inúmeros negros, pelo batismo. A cristianização representava não apenas o fortalecimento da instituição católica, mas a formação de uma mentalidade fundamentada na obediência cristã, mentalidade que assim, pela via da religião, reprimia o avanço do pensamento liberal e disciplinava a cultura considerada anárquica. Vigário Marcelino assume um lugar de "pai dos pobres", por sua retidão de caráter e por sua força espiritual, obtendo uma autoridade na comunidade capaz de aplacar conflitos políticos e a violência que envolvia a disputa eleitoral da época. (BARROSO, 1997), autoridade que no Brasil Imperial lhe foi dada não apenas de modo oficial, mas sobretudo pela legitimidade de sua ação na paróquia de São Sebastião dos Correntes.

"O vigário Marcelino o povo tinha ele como santo. De formas que lá não tinha ainda

representante. Ele era... Vigário Marcelino dominava o povo assim nas eleições, viu? Em eleições etc, ele é que ganhava. Ninguém também não tinha, ele não tinha elementos contrários a ele não. Porque o povo gostava muito dele, ele não é do meu tempo. Mas Jose Barroso é que contava, o povo achava que ele era um santo. E ele era muito bom para o povo, e etc. Então,

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política era ele só. Quando aquele pessoal queria voto, ia lá, ele é que falava. O Vigário Marcelino daí a pouco todo mundo acompanhava ele. De maneiras que é isso".

Entrevista com informante: Cravo25. A 'santidade' de Vigário Marcelino ilustra como o povo incorpora novos

modelos aos seus universos simbólicos. Ainda que ele representasse um modelo clerical

institucional do catolicismo reformador, a religiosidade popular o ascende à categoria de

santo, integrando-o ao seu cotidiano, tomando-o como modelo de subjetivação. Assim,

a religiosidade popular que a igreja visa a controlar através do modelo tridendino,

resiste e cria estratégias de subjetivação que enunciam outro lugar social de

reconhecimento para o negro. Como coloca a entrevistada Margarida, relembrando

comentários de sua avó: 'vamos falar a verdade, a fé do povo começou com Vigário

Marcelino. Que antigamente o pobre era desligado mesmo. Os antigos falavam'...

O Imperador Dom Pedro II, em 1873, nomeia-o cônego e comendador da Ordem

da Rosa. A proximidade religião e poder político garantiu a hegemonia do Partido

Conservador. Tanto Vigário Marcelino como Dom Viçoso eram amigos da família

Barroso. Porém, o pensamento liberal já estava difundido, o que promoveu a fundação,

em 1870, do quilombo São José dos Quilombos, nas terras pertencentes a São Sebastião

dos Correntes, localizadas no caminho para Vila do Príncipe. No final do século XIX, a

escravatura passou a ser entendida como afronta aos princípios liberais, sendo

questionada como ordem social. Os castigos, maus tratos dirigidos aos negros passam a

ser expostos na impressa, o consenso em torno da ordem social foi abalado. A Igreja

oficialmente não podia se posicionar contra o regime escravocrata, devido a sua

vinculação com o Império. Não obstante, pelas visitas pastorais, os Bispos orientam os

senhores a manter os festejos dos negros e a guardar os dias santos, possibilitando ao

25 Os entrevistados filhos ao moradores da cidade para terem sua identidade preservada receberão codinomes por eles escolhidos e ou definidores pela pesquisadora. Assim, nomes de flores irão definir os diferentes entrevistados.

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negro o descanso e o meio de prover seu sustento, pois nesses dias poderiam cultivar

sua lavoura. Por via do discurso e dos ritos religiosos, a cultura popular negra

encontrava vias de se manter.

Ainda no século XIX, com a fundação da Arquidiocese de Diamantina, São

Sebastião dos Correntes passou a pertencer a ela, sob a orientação espiritual de Dom

João Antônio dos Santos, que manteve a mesma concepção reformista de Dom Viçoso.

Dom João defendia a alforria dos negros, tendo percorrido toda sua diocese pedindo-a.

Em 1887, sugeriu ao Governo Imperial que presenteasse ao Papa Leão XII com a

alforria dos negros da 'Terra de Santa Cruz'. (MATOS, 2002). A hegemonia dos valores

tradicionais coloniais encontrava-se abalada. Em São Sebastião dos Correntes, o Partido

Conservador e a liderança política dos Barrosos sofre tremores. As novas gerações se

aliam ao Partido Liberal. Mas é o Partido Conservador que se projetará nacionalmente

através de Sabino Barroso, filho de Sabino Alves Barroso e neto de Joaquim Álvares

Barroso.

Com o enfraquecimento do sistema colonial/imperial, a posse da terra deixa de

ser garantia de hegemonia política e os estudos passam a ser o 'capital' necessário à

manutenção de um lugar social para as elites. Com tal visão, os senhores de terra

enviam seus filhos homens aos centros formadores, que via de regra estavam sob o

controle educacional da Igreja Em Minas Gerais, os principais educandários eram

dirigidos pelos padres Lazaristas: Caraça e Diamantina. O deslocamento para os centros

formadores era feito a cavalo, em tropas que conduziam os viajantes, durante dias. Foi

nesse cenário que o Capitão Sabino Alves Barroso (filho de Joaquim Álvares Barroso)

promoveu a educação de seus filhos Sabino Barroso, Ignácio Alves Barroso e João

Evangelista Barroso. Enviando-os ao Seminário de Diamantina e ao Colégio do Caraça.

Para custear os estudos dos filhos, vendeu a Fazenda Bom Jardim à família Pinho, em

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1883, família que Sabino Alves Barroso (pai) conheceu em Diamantina, tendo dela

ficado amigo. Em decorrência do declínio da exploração do ouro e diamante, Sabino

convidou o amigo Joaquim de Pinho a morar em São Sebastião dos Correntes. Ele,

junto com o irmão Serafim, mudando para São Sebastião, constituíram família, vindo a

casarem-se com membros da Família Barroso e Araújo Abreu. Assim, formou-se a elite

política do arraial São Sebastião.

Sabino Barroso manteve o conservadorismo político de sua família, tendo

estudado no Seminário de Diamantina com os padres Lazaristas, depois no Colégio

Caraça, onde a formação educacional religiosa priorizava a disciplina, as tradições, a

obediência e finalmente, estudou na Faculdade de Direito em São Paulo. Seu retorno a

São Sebastião foi marcado por festejos e o relato de BARROSO (1997) permite

recompor a sociedade da época.

"Em fins de 1884... em São Sebastião dos Correntes, advogado formado era avis rara. Sabino26, acompanhado do filho e do fiel escudeiro e amigo Antônio, regressa a São Sebastião dos Correntes. Sua incontida alegria era contagiante. Começavam a se concretizar os seus acalentados sonhos. As famílias Barroso e Araújo Abreu não cabiam de contentamento. Sabino e Maria Josephina preparam uma grande festa no arraial, no casarão da família... Quase toda a população local compareceu àquele inusitado acontecimento. O Padre Vigário Marcelino celebra uma concorrida missa solene de ação de graças pela formatura daquele que batizara. Nas salas do casarão, um animado baile reunia a sociedade local. No terreiro, um batuque daqueles de levantar poeira congregava o povão. Desinibido e falante, Antonio (escravo da família, que acompanhou Sabino Barroso durante sua permanência em São Paulo), entretanto, era o que mais se destacava entre os convivas. Roubou a festa. Em um linguajar empolado contava a beleza de São Paulo, para uma roda de atentos e boquiabertos curiosos. Falava da iluminação a gás, das belas carruagens, dos bondes de tração animal, da locomotiva, da moda, enfim, do progresso de São Paulo". (BARROSO, 1997:67 e68)

Em 1885, Sabino Barroso, jovem advogado em ascensão, filiou-se ao Partido

Conservador e foi por ele eleito deputado da Assembléia Provincial, sendo escolhido

depois como líder do partido. Por argumentação e oratória tornou-se um político de

grande influência nacional, combatendo o Partido Liberal, assumindo posição a favor da

monarquia. Suas críticas ao Partido baseavam-se na não realização da reforma eleitoral, 26 O autor se refere ao Sabino Alves Barroso, pai de Sabino Barroso advogado que se tornaria político representante do Partido Conservador Mineiro.

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quando o partido ascendeu ao poder, e tampouco promovido uma revolução social. No

final do período imperial, tanto o Partido Liberal quanto o Partido Conservador se aliam

ao Partido Republicano. Contra sua inserção no Partido Republicano, manifestou-se

Theotônio Pereira Magalhães e Castro (Teotoninho), advogado serrano, líder do Partido

Liberal e um ferrenho divulgar do princípios liberais, portanto adversário político de

Sabino Barroso. Teotoninho, com a Proclamação da República, tornou-se 'prefeito' do

Serro. Entretanto, o Partido Republicano necessitava de aliados Liberais e

Conservadores para crescer. Assim, Sabino aliou-se ao ele.

Paralelamente aos acontecimentos políticos, um outro poder se consolidou: a

força espiritual de Vigário Marcelino, tornando-o popularmente aceito como exorcista,

sendo chamado para benzer e expulsar demônios em diferentes lugares nas imediações

de São Sebastião. Sendo sua moralidade inquestionável símbolo de sua autoridade para

com o povo e para com os políticos, assumiu assim, uma posição de liderança e

influência política e moral sobre os fiéis.Tendo se tornado um elemento fundamental no

posicionamento político da população de São Sebastião dos Correntes. Sobre ele

escreveu Joaquim de Salles, citado por QUEIROZ (2003):

"O Vigário de São Sebastião dos Correntes era Cônego Marcelino, de quase

oitenta anos, e preto retinto. Havia batizado e casado toda a população de São Sebastião.

Naquela freguesia ninguém brigava, não havia conflitos políticos, marido não

abandonava mulher, os meninos não eram peraltas. Nada disso havia, porque todos

timbravam em não dar desgosto algum ao Vigário Marcelino. O dinheiro, fossem

grandes ou pequenas quantias, não lhe parava nas mãos, ia todo diretamente para os

pobres. Os fieis é que lhe davam de comer e vestir, porque nunca se ouviu dizer que o

Vigário Marcelino houvesse passado uma só noite em casa dispondo de dez tostões

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sobre um móvel. De todos os mais afastados lugarejos do município ia gente a São

Sebastião para conhecer o preto santo". (p. 215)

Um fato marcou sua trajetória e a formação religiosa do povo de São Sebastião

dos Correntes, quase ao final de sua vida: Vigário Marcelino teve sua sobrinha neta

seqüestrada por Antônio Victorino Araújo. Este, após ter engravidado a sobrinha,

solteira, do Vigário Marcelino, seqüestrou-lhe a filha como forma de ocultar a criança,

evitando a fúria da população. Vigário Marcelino, ao ser informado do fato, valeu-se de

seu prestígio como padre para localizar e resgatar a criança. Tal acontecimento 'deu

muito o que falar. E até hoje dá' (QUEIROZ:2003), pois atingia a moralidade cristã, não

só por atingir um símbolo sagrado, o padre, como por revelar o ato de um representante

da uma elite familiar católica: Antônio Victorino Araújo era casado e rico. Diante do

acontecido, Teotoninho Magalhães, representante do Partido Liberal, envolve-se no

caso, tendo encontrado a criança e fazendo-a retornar aos cuidados de Vigário

Marcelino. Do ponto de vista político, o retorno da criança a São Sebastião dos

Correntes, feito por Teotoninho, representava um ganho para a causa liberal.

O Vigário Marcelino tinha, morava aqui, eram sobrinhas dele. Eu não sei porque tinha uma sobrinha dele que morava aqui. E aconteceu o seguinte: morava com ele uma sobrinha. Era uma moça velha, já de idade. E ela, essa moça foi infelicitada por .Antonio Vitorino de Araújo... era um grande fazendeiro que ele infelicitou a sobrinha de Vigário Marcelino. Então, ele era destemido, com um outro companheiro que era de Diamantina, seqüestraram a criança. A mãe dela, a sobrinha tava de resguardo ainda do parto e aquela ocasião, guardava dias, e ela estava na cama, em conseqüência do parto. E ele sabendo que o povo ia ficar revoltado com aquele ato, resolveram seqüestrar a menina. E Vigário Marcelino ao invés de condenar a sobrinha, ele queria a menina, saber onde estava. E aquilo, tinha aqui uma pessoa que era o pai de Plínio Magalhães (Teotoninho Magalhães) era um fazendeiro, era um advogado que tinha aqui, ele não era formado, era provisional e defendia muito júri lá no Serro, etc. E ele era político e procurou saber onde estava a menina e foi indo até ele descobrir que ela estava no Itambé. Aí a menina, o detentor da menina entregou a menina ao político, pai do Plínio Magalhães, que até foi deputado federal. Ele então trouxe a menina para o Vigário Marcelino, para fazer política, porque ele sabia, trouxe então foi uma espécie de uma festa enorme, o povo do distrito juntou toda para esperar a chegada da menina. O advogado, ele mesmo trouxe ela enrolado num lenço, foi lá em Itambé, ele mesmo trouxe a menina e entregou ao Vigário Marcelino... No dia da chegada

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da menina, a população juntou toda ai para assistir, foi mesmo uma festa, foi um povão. Dizem eu não vi não. Um povão, e eles até gritavam o nome do meu tio, então gritavam dizendo os defeitos do meu tio, e a população gritava: ‘Morra fulano de tal, morra’ . Meu tio ficou em situação difícil com a população que adorava Vigário Marcelino, e que por isso mesmo desprezava meu tio, apesar dele ser rico, ele era muito rico.

Entrevistado e informante: Cravo (grifos meus) Esse episódio ganha repercussão não apenas política, mas expressa a força

simbólica do padre, seu poder de influência sobre a população e sua integridade aos

preceitos religiosos cristãos, à medida que não esconde ou condena sobrinha, mas se

posiciona pela manutenção da vida daquela que poderia ser um símbolo do pecado,

numa cultura que tem a negação sexual, como fundamento da moral cristão tridentina,

por ele representado. Não obstante, é pela vida que ele se posiciona, levando à

mobilização social da população contra o membro da elite social da época. Um

acontecimento enunciador de uma força política em emergência – a democracia.

Após o falecimento de Vigário Marcelino Nunes Ferreira,27 seus restos mortais

foram mantidos na Igreja Matriz de São Sebastião. Suas vestes e parte de seus ossos

foram transformados em relíquias pelos devotos, que o acreditavam santo. Depois de

sua morte, vários padres passaram por Sabinópolis. E é somente no período republicano

e após a emancipação à condição de cidade, que a paróquia terá um novo líder religioso,

que, como o Vigário Marcelino, permanecerá muito tempo na direção paroquial.

3.6 Brasil Republicano: a dissolução da relação Igreja/Estado

Em 1888, por força das pressão internacional inglesa e por pressão interna dos

movimentos abolicionista e liberal, a escravatura é extinta. As idéias republicanas

conquistaram as elites conservadoras, que viram a possibilidade de ascender e manter

27 Vigário Marcelino morreu em 1902, tendo dirigido a paróquia de São Sebastião dos Correntes de 1846 a 1902.

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seu prestígio político. A perspectiva da instituição da República assustava a Igreja,

temerosa de perder a hegemonia religiosa social e o poder advindo da mesma. Por outro

lado, encontrava-se a instituição pressionada pelo controle social do Império e o descaso

do Imperador com o clero. Temia, pois, a instituição de um Estado secularizado, laico.

Portanto, posicionou-se contra os princípios republicanos. Entretanto, em 1889 a

República foi proclamada.

No período que antecede a Proclamação, a campanha dos Liberais contra a

Igreja Católica se intensificou, sendo que ser católico era ser considerado como

obstáculo à edificação de uma sociedade moderna. Em contraposição, a Igreja, apoiada

no clero conservador ultramontano, intensificou sua postura de uma reforma Católica

baseada nas posturas de Roma e fundamentada no Concílio Vaticano I (1870), no qual

foi promulgada a Infalibilidade Papal e reforçados os sacramentos como meio de

difundir e afirmar a fé católica: modelo tridentino.O pensamento antiliberal do então

Papa Pio XII reforçou as posturas ultramontanas do clero conservador brasileiro.

"As orientações provindas de Roma são para os bispos reformadores normas

seguras que não permitem tergiversação, inclusive no que diz respeito à Maçonaria. Em

termos políticos esses prelados são conservadores, defendendo a legitimidade da

monarquia como regime ideal para a Igreja". (MATOS, 2002:242)

Assim, em 1888, através de Dom Macedo Costa (bispo do Pará), a Igreja reagiu

ao Projeto governamental de Liberdade de Culto, revelando as condições de

enfraquecimento da Igreja, vinculada ao Império pelo regalismo, submetida a condições

precárias e questionada por sua vinculação com o poder político que impunha à

população – sobretudo negra – um regime opressor, sustentado por uma mentalidade

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teocrática, contrária aos princípios liberais e em oposição ao restante do 'mundo

civilizado'.

A postura de Roma contra os maçons provocou no Brasil Imperial o conflito,

conhecido como Questão Religiosa que veio a provocar um questionamento dentro do

próprio clero sobre a posição ambígua do Papa. O bispo de Olinda expulsou maçons de

algumas Irmandades, seguindo orientações da Santa Sé. As Irmandades recorreram ao

Imperador, como meio de reverter a expulsão, conforme direito constitucional de

Recurso à Coroa. Essa deu ganho de causa aos maçons. E o bispo veio a ser julgado em

tribunal, condenado a prisão e trabalhos forçados por desobediência às leis do Império.

A posição de Roma foi de condescendência com a Coroa. Tal posição, 'despertou a

consciência católica referente à ambigüidade do status oficial que o catolicismo gozava

no Império'. (MATOS, 2002) Estremeceu-se pois a posição dos reformadores católicos

ultramontanos.

Portanto, com a República e em conformidade com o pensamento liberal

democrático que sustentava o Estado Moderno, a relação Igreja e Estado foi rompida. O

decreto119-A, de 07 de Janeiro de 1890, determinou a separação total de Igreja e

Estado, tendo extinguido o Padroado/ Regalismo. Permitindo em território nacional a

liberdade de culto e reconhecendo a capacidade jurídica de as instituições religiosas

possuírem bens, como sociedades ou associações legalmente constituídas. O texto

republicano mostrou-se indiferente à Igreja Católica, instituição que foi sustentáculo do

regime colonial e imperial. A indiferença revelava o espírito laico que contagiava o

mundo ocidental e o Brasil, na busca por progresso, por modernização e que promovia a

transformação social de uma sociedade Tradicional Católica em uma sociedade

Moderna, laica.

Então fez a separação da Igreja e do Estado, uma coisa que não foi fácil porque como já existia antes aquela união, então muita gente da Igreja reagiu. O Estado não pode ser leigo, se o povo é religioso, o Estado para representar o povo deve ser

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religioso. Mas prevaleceu a tese da laicidade do Estado, o que para a Igreja foi muito bom, embora no começo os principais da Igreja tenham condenado, foi muito bom. Pois então a Igreja pode se desenvolver, até o momento da união, para se criar uma diocese precisava da aprovação do Estado. Para se criar uma paróquia precisava de aprovação, para nomeação de um vigário precisava, agora não, agora a igreja pode se desenvolver a partir dela. Não depende do relacionamento (condicionamento?) com o Estado. Ela teve um prejuízo de ordem material. Porque pelo fato de haver a união, os bispos e os párocos eram considerados funcionários do estado. Isso era cômodo, não precisavam estar se preocupando com a manutenção, a partir daí foi necessário implantar o dizimo, e o povo, e não foi fácil, ate hoje não é fácil esta questão da manutenção. Por outro lado, a igreja ganhou muito pois ela pode se desenvolver a partir dos próprios fieis.

Entrevista n 1 informante eclesiástico.

A organização de um Estado secularizado sofreu críticas não apenas dos

representantes eclesiásticos, mas também dos membros do Partido Conservador, que se

colocaram como opositores. A formação de uma sociedade fundamentada na liberdade,

igualdade e fraternidade não se deu de forma pacifica, mas pelo uso da violência, pela

'semi-ditadura do Marechal Floriano Peixoto' (BARROSO,1997). A imposição de força

já não mais justificada pelo poder teocrático, mas pela ciência. Como líder de oposição

e intelectual mineiro, Sabino Barroso publicou, em 1894, artigo intitulado Liberdade, na

revista jurídica: A REVISTA.

"É assim que o Estado moderno, perdida sua origem theocratica, se vai a

pouco e pouco humanisando ao influxo cultural da sciencia; o exercício do poder publico não se justifica mais em mysteriosa delegação do alto, nem é a vontade das maiorias à medida da acção do governo; a sociedade ou o homem colletivo não se considera superior ao homem individuo, a estrutura social não se mantem nem se explica pela força se não pela lei da coexistência harmônica de todos os indivíduos de que ella se compõe ou pelo direito, que é a lei da vida social, do mesmo modo que a gravitação é a lei dos mundos estellares.

D'ora em diante o direito sobrepujará á força e o direito será determinado pelas condições scientificas da lucta pela existência, isto é, pela extensão progressiva da justiça a todas as relações dos indivíduos e das sociedades". Retirado de BARROSO, (1997:108).

O Brasil adentrou o século XX organizando-se politicamente através da

República, modernizando sua economia, abrindo-se para a industrialização, ampliando a

formação educacional da população através do sistema público e almejando um

embranquecimento de sua população por via da imigração européia. As elites viam na

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cultura afro, no sincretismo religioso, um empecilho à formação de uma identidade

nacional, um símbolo de ignorância e de inferioridade em relação às sociedades

progressistas (européias). A liberdade de culto expandia os diferentes códigos

religiosos. E ainda que o pensamento positivista moderno exposto no símbolo nacional

'Ordem e Progresso' fosse o lema da elite política, isso não impedia que, na busca de

ascensão do poder e em sua manutenção, todos os ritos e símbolos fossem usados –

transitava-se do 'terreiro ao altar'. Se legalmente a relação religião e poder estava

desfeita, culturalmente ela se mantinha.

"A ambiência geral de secularização e de modernização -que assolou o Brasil a partir da

proclamação da Republica e que ganhou ímpeto acelerado a partir de 1930- assim como não impediu a expansão e solidificação do candomblé também não impediu um vigoroso movimento de reconfiguração de nosso quadro religioso, com o aparecimento em cena de novas religiões: no domínio mediúnico, o Kardecismo e a umbanda; no domínio evangélico, o pentecostalismo (ramo revivalista do protestantismo) e, mais recentemente, o neopentecostalismo.Ou seja, é em pleno período de florescimento e de consolidação da ordem moderna em nosso país, que a nossa já complexa diversidade religiosa torna-se mais complexa". (PEREZ, 2000:19)

O avanço do pensamento liberal, do capitalismo industrial, da ciência e

tecnologia não impediu o pensamento religioso. O século XX foi marcado por

acontecimentos como as duas guerras mundiais, a luta entre dois distintos modos de

produção e organização social: capitalismo e socialismo, o acirramento da violência, da

injustiça, da desigualdade social no cenário mundial e do processo de aceleração da

globalização, tudo isso permitiu a revisão do papel social da Igreja Católica. Assim,

inserida num contexto de profundas revoltas e transformações sociais, Roma convocou

o Concílio Vaticano II em 1962, através do então Papa João XXIII, que, diferente de Pio

XII, era sensível a rever a posição da Igreja frente ao mundo moderno. Pelo Concílio

Vaticano II, a Igreja Católica proclamou seu compromisso com sua missão

evangelizadora, assumindo seu compromisso para com os pobres. Inicia-se assim o

processo de abertura da Igreja, aggiornamento, num esforço de ininterruptamente

interpretar, viver e anunciar o conteúdo permanente da Revelação Cristã, segundo as

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exigências do contexto histórico em que se encontra inserida. “Um outro mundo é

possível, e é possível mesmo. E outra Igreja é possível, e é possível mesmo. Na opção

pelos pobres e excluídos. Na ação e vivência comunitárias, na oração e na militância dos

que sempre mantêm o senso de justiça dos corações ternos”. (CASADALIGA, 2005:18)

O Concílio Vaticano II foi um divisor de águas na instituição Igreja e um marco

significativo no século XX, pois oficializou um modelo de religião e religiosidade

vinculada à existência, através da qual a mensagem cristã deveria ser vivida no

cotidiano e pelas ações daqueles que, como Cristo, enfrentam o conflito da existência e

desejam a sua transformação, assumindo assim um posicionamento político de

questionamento das condições sociais e das estruturas que possibilitam ou impedem a

realização do Reino de Deus. Há, portanto, a afirmação de um cristianismo católico

baseado na concepção do Evangelho, no anúncio da Boa Nova; numa ruptura de um

modelo religioso fundamentado na absolutização do Transcendente e em uma

religiosidade pautada na culpa, no medo e na obediência. Afirmou-se, pois, uma religião

comprometida com o diálogo, no reconhecimento do outro, como outro. Diversidade.

Novamente, no seio da instituição Católica, dois grupos se organizam: os Renovadores e

os Conservadores.

Assim como a cristandade entra em crise a partir de meados do século XVIII, também no modelo tridentino de Igreja do Brasil entrou em crise a partir de meados do século XX. Neste último caso, porém, com uma imensa vantagem: o Concílio Vaticano II, realizado a partir de 1962, abria para a Igreja perspectivas de base teológicas e pastoral que possibilitavam a elaboração de um novo modelo de Igreja, designado como Igreja-povo de Deus. [...] Não obstante tudo isso, a mudança de modelo provocou uma forte crise, tanto no episcopado, como no clero, regular e secular e no próprio laicato católico. Essa crise, que assumiu uma conotação mais forte nos anos 60, perdura ainda hoje.(AZZI,1976:19)

A mudança no paradigma religioso é provocado pela Modernidade, pela

consciência do indivíduo, como sujeito histórico e sujeito de história, sendo ainda e

sobretudo, sujeito de conhecimento, não mais submetido ao conhecimento religioso,

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mas produtor do mesmo. O discurso mítico religioso não mais era suficiente para

significar a complexidade do viver, o tempo não mais entendido como repetição, mas

como história, em que os acontecimentos afetavam a todos, levando a consciência de

um mundo interligado, habitado por povos e culturas diferentes, com diversidade de

cultos e de modos de vida e de expressão de fé. A 'superioridade' e a 'verdade' de um

credo sobre os outros perdeu hegemonia. Os modelos de moral, de família, de gênero,

de classes dele advindos já não possuíam consenso e não mais sustentavam o nomos

social. Uma nova teologia comprometida com o homem histórico político surge como

força sagrada de ressignificação da religião católica: a Teologia da Libertação, que

lança base para uma outra prática religiosa comprometida com os pobres e excluídos,

com um olhar e um envolvimento das alas progressistas da igreja católica tanto no

Brasil como na América Latina.

Não obstante, no seio da instituição católica, outro movimento reafirma a força

conservadora do clero. Novamente Minas, e em específico a diocese de Diamantina,

através de Dom Sigoud (década de 70/80), assumiu um papel importante na visão

fundamentalista que sustentava o clero conservador que visava a manter a relação de

aliança entre Igreja e poder, por meio da domesticação dos fiéis, na manutenção da

ignorância litúrgica, de uma moral inflexível e excludente da mulher, entendida como

submissa ao homem, pois dele é derivada (Deus cria Eva de Adão), numa sexualidade

reprimida e mantida controlada no seio familiar, num modelo que reproduz o poder

patriarcal. O fundamentalismo católico, dos religiosos conservadores, portanto, se fez (e

ainda se faz) intolerante aos diferentes credos religiosos, vindo até mesmo a combatê-

los. Assumem, pois, uma postura que “na economia, é monetarista conservador, e na

política sempre exalta a qualquer custo a ordem, a disciplina e a segurança”. (BOFF,

2002)

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Pós Concílio Vaticano II, LIBANIO (2005), analisando as implicações da crise

de identidade do ser religioso decorrentes da Modernidade, expõe três modelos de

vivência religiosa que podem ser identificados no Catolicismo: o tridentino, o interior

evangélico e o sacramental. O modelo tridentino pelo qual se atribui importância aos

símbolos religiosos, aos costumes, aos hábitos, no duplo sentido de vestimenta como

práticas exteriores repetidas, em que diferentes códigos e linguagens distinguem aqueles

que se vinculam aos grupos religiosos e suas associações.Assim, os símbolos religiosos

são formas identificação, de pertencimento. E a autoridade é vivida conforme o

pertencimento no grupo. A comunidade de crentes cria uma guarida protetora, um

ninho, no qual o controle de um membro sobre o outro promove o controle e a proteção

das consciências.

O modelo interior evangélico se contrapõe ao modelo tridentino. Nele, a

religião é vivida na interioridade do sujeito, numa postura de escolha daquilo que mais

lhe agrada, numa tentativa de minimizar os conflitos com o mundo exterior. Há um

enfraquecimento de vínculos sociais e de responsabilidade para com a Congregação.

O modelo sacramental, advindo do Concílio Vaticano II, mantém a

exterioridade do modelo tridentino, pois não há sacramento sem sinal visível, porém

aponta para a interioridade do sujeito, pois o sacramento como graça deve significar e

ser significado por aquele que o recebe. O que sustenta o modelo é o sentido,

significado, realidade interior que as regras, as normas, os sinais, os símbolos, as

praticas têm. Portanto, o significado deve favorecer a experiência interior, a construção

de sentido, a consciência daquele que crê. Aqui, não é a exterioridade do sacramento

que garante a obediência advinda do habitus, mas o sentido e significado que o

sacramento assume para o sujeito religioso que o leva à disciplina e à obediência, não

por medo, mas por compreensão.

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A religião católica não sucumbe com a Modernidade, como pensaram os liberais

e os eclesiásticos, ela se questiona, e ao se questionar, ela resgata o mito fundador que a

edificou – Cristo. Resgatando a concepção de enfrentamento e de construção de um

Reino edificado na historicidade da vida, na angústia da finitude, na comunhão do

mistério e do sagrado que se revela na comunidade humana e no amor ao próximo. Um

novo posicionamento político move a instituição religiosa. Não obstante, é necessário

afirmar que os diferentes modelos de vivência religiosa (Renovador e Conservador)

podem ser encontrados no interior da instituição Igreja e nas comunidades por ela

atendidas.

É portanto, considerando esse cenário que será analisado que modelo de

religiosidade católica que predominou na experiência dos Sabinopolenses, nas quatro

décadas –1927 a 1967 – que ilustram a transformação de mentalidade e de organização

social de um modelo colonial/rural, para o modelo urbano industrial.

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Capítulo 4

DE SÃO SEBASTIÃO DOS CORRENTES A SABINÓPOLIS:

O PARADIGMA DA MODERNIDADE

4.1 A emancipação do município A abolição da Escravatura, a proclamação da República, a introdução da

industrialização no Brasil, o conhecimento científico e sua divulgação aceleraram o

processo de urbanização, levando ao declínio das fazendas, de todo um modo de vida

sustentado nas relações de servidão, da tradição, do trabalho manual, da oralidade, do

patriarcado, portanto, de uma mentalidade conservadora, tradicional. São Sebastião dos

Correntes, distrito inserido no processo de mudança, desejou sua autonomia, através do

líder político, o então farmacêutico e boticário Ignácio Alves Barroso, irmão do

deputado conservador Sabino Barroso, mobilizou-se e pleiteou a sua independência,

separando-se do município de Serro.

A trajetória política de Ignácio Alves Barroso reflete a importância de seu

conhecimento no espaço social do final do século XIX e o status que a ciência médica

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ganha junto à população. Em 1890, instala a Farmácia Barroso28 em São Sebastião dos

Correntes, tendo-a transferido do município do Serro.

"No final do século passado até o início da década de 1930, o farmacêutico Ignácio Barroso exerceu sua profissão no distrito de São Sebastião dos Correntes e após a sua emancipação, na cidade de Sabinópolis. Na época, não existia médico no distrito. Farmacêutico formado, o que era raro naquele tempo, Ignácio, pela absoluta carência de médicos, era forçado a exercer muitas vezes as funções de médico, não só em São Sebastião dos Correntes mas em uma extensa região dos vales dos rios Turvo e Guanhães. Homem de trato ameno, modesto, cordial, sem maiores ambições, prestando relevantes serviços de saúde à comunidade em que vivia, Ignácio foi gradativamente conquistando a simpatia e admiração de seus conterrâneos. Era geralmente conhecido apenas como "Seu Ignácio". Os médicos e farmacêuticos não só no Império como na República velha eram sempre guindados à liderança política de suas regiões. Com Ignácio não foi diferente. Embora sem vocação política, por consenso de seus concidadãos e talvez para garantir o apoio político do mano Sabino, viu-se na contingência de assumir a liderança da política local, o que, em verdade, não o atraía. A diferença dos horizontes políticos de Ignácio e Sabino era enorme. Sabino só pensava o Brasil em termos de Minas e Ignácio só pensava Minas em termos de seu querido São Sebastião dos Correntes." (BARROSO, 1997: 106/107)

A “diferença de horizontes políticos” entre Sabino e Ignácio levou este último a

lutar pela autonomia política e pelo reconhecimento do desenvolvimento do distrito de

São Sebastião dos Correntes. Contrariando o irmão Sabino, Ignácio se candidata a

deputado estadual como meio de lutar pela emancipação, em 1919. Nesse mesmo ano, e

antes mesmo da posse de Ignácio, morreu Sabino Barroso. Ignácio, passado o impacto,

batalhou pelo seu projeto, articulando a comunidade de São Sebastião para a realização

do mesmo e divulgando o projeto de emancipação de São Sebastião dos Correntes com

o nome de "Villa dos Correntes", entre os deputados da Assembléia Estadual. Com a

morte de Sabino Barroso, o projeto foi votado e aceito, com a ressalva de mudança de

nome de Villa dos Correntes para Sabinópolis, numa homenagem ao político e

intelectual. Cabe ressaltar que, no final do século XIX, Sabino Barroso aliou-se ao

Partido Republicano, somando forças ao pensamento liberal e posicionando-se contra a

Monarquia, posicionamento distinto do até então assumido. Adotou, portanto, uma

28 A Farmácia Barroso, uma das mais velhas do Estado de Minas Gerais ainda funciona em Sabinópolis, sendo de propriedade dos descendentes de Ignácio Barroso Junior, filho de Ignácio Alves Barroso.

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opinião contrária ao pensamento religioso da época, o que levou a um conflito entre a

liderança política de Vigário Marcelino e a liderança dos Barroso.

Tal fato é registrado num poema, intitulado "Eleições fim do céculo",29 (sic)

atribuído a Américo Barroso, escrito em 19 de abril de 1892.

Foi no próximo mês passado Um valeu-se da batina

Dia trinta de novembro Em prosa de virtuoso Que procedeu-se a eleição Fez do eleitorado chibata De camaristas e seus membros Para vingar-se dos Barrosos. [....] Houve uma luta medonha Ao nosso Rei Congo E um combate renhido Mil pêsames venho dar Bateram-se dois chefes Por brigar com os Barrosos Cada qual mais atrevido E com a derrota ficar.

A inserção de Sabino Barroso no Partido Republicano foi articulada por João

Pinheiro que o percebeu como força necessária ao crescimento do partido, ainda que

pesasse sobre ele o fato de ser um monarquista reconhecido, ele como todos os outros

egressos dos Partidos Liberal e Conservador, extintos com o advento da República. Pelo

poder de conciliação de João Pinheiro, Sabino filiou-se ao Partido Republicano, vindo a

tornar-se amigo pessoal do governador. E assim, que em 1890, nas eleições a força

conservadora da igreja e do Barão do Serro se aliam para derrubar os republicanos,

impedindo que as eleições acontecessem, através do boicote, pois percebiam a eminente

vitória do partido. Por eleições consecutivas, entretanto, Sabino Barroso foi eleito

deputado mineiro, assumindo no partido Republicano uma postura de articulador

político que o projetou na política nacional no princípio do século XX, junto com Bueno

Brandão e Wenceslau Braz.

Assim, não apenas o nome do município aponta para o paradigma da modernidade - a substituição do um nome do santo pelo do político, a mudança de poder de influência política do padre para o farmacêutico e boticário, mas também o enfrentamento de Ignácio ao pensamento conservador de seu irmão Sabino Barroso,

29 QUEIROZ, 2003:140,141.

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num ato de desobediência e de afirmação de autonomia, tanto pessoal como política. O espírito da época pode ser entendido pela argumentação de Ignácio em plenário:

"Nós não podemos perder de vista, na applicação prática das nossas idéias e no esforço de procurarmos, cada vez mais, melhorar e aperfeiçoar as nossas condições sociológicas; nós não devemos perder de vista a lei natural da reproducção das espécies. Os seres inferiores se transformam melhorando, progressivamente, as suas condições biológicas; os próprios mineraes se transformam; o carbono, por exemplo, transforma-se em diamante; as arvores florescem e fructificam reproduzindo, em novos specimens, as suas infinitas variedades. Justo é, portanto, srs.deputados, que procuremos também applicar ás nossas condições sociológicas essa lei da reproducção das espécies, sobretudo nesse principio que determina o aperfeiçoamento sempre progressivo de todos os seres organizados; e, assim, devemos propugnar, com ardoroso interesse, pelo melhoramento sempre crescente dos nossos municípios".

E ainda, no texto do Projeto de Emancipação elaborado em 1922, pode-se

perceber a mudança de discurso e de cenário social, onde o discurso religioso dá lugar

ao discurso laico, a educação e o conhecimento, antes restritos às cátedras católicas, se

tornam públicos, revelando uma sociedade que se pretende republicana e democrática:

"[...] O importante districto de São Sebastião dos Correntes, que foi creado pelo art.1, da lei n 184, de 12 de Março de 1840, possuía naquelle tempo, 7848 almas [...] Possue, actualmente, o districto de São Sebastião dos Correntes cerca de 13 a 14 mil habitantes, inclusive os dois mil e tantos que habitam a sua sede, onde se contam trezentas e poucas casas. Destacam-se, dentre estas, 15 predios assobradados. Contam-se 3 egrejas, com a matriz...possue o prédio do Grupo Escolar, a casa de detenção, o predio da futura Camara, 4 mercados e 11 moinhos dentro da sede". (BARROSO, 1997:210). (grifos meus)

Em 1923, pela Lei Estadual n 843, de 7 de Setembro, o município foi criado, sua

instalação festiva se deu em 24 de janeiro de 1924, graças ao deputado Ignácio Alves

Barroso e a mobilização da população através de um abaixo-assinado, que continha 516

assinaturas, dos homens, únicos eleitores de então. Em 1927, o município passou a

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Termo Judicial, no dia 27 de Fevereiro. Um ano depois, em 07 de Fevereiro de 1928, na

cidade tomou posse o vigário: Padre José Amantino dos Santos que se tornaria líder

espiritual e político num contexto marcado por divergências políticas entre dois

partidos, UDN e PSD, entre duas famílias, Barroso e Pinho.

4.2 A cidade recebe seu pároco

A ida de Padre Jose Amantino dos Santos para Sabinópolis, conforme

depoimentos dos entrevistados Cravo e Violeta, foi influenciada pelo contato com um

dos representantes da família Pinho, que, como de costume nas famílias de elite da

época, encaminhava os filhos homens para estudar no Seminário de Diamantina. Sinval

de Pinho conheceu o então professor do Seminário, Padre José Amantino dos Santos,

tendo percebido sua inteligência e liderança, o convida a ir para a então Sabinópolis.

Monsenhor ele veio para aqui, primeiro porque Sinval [...] teve no seminário, e falou com ele, ele tinha ordenado. “O Monsenhor, Monsenhor não. Ô padre porque o senhor não vai para Sabinópolis? (Sabinópolis estava sem padre). Ele falou: Não, nem vê, para Sabinópolis. [... aqui havia lutas bandidismo, por sinal]30 E Monsenhor , ele falava que único lugar que ele falava que ele nunca havia de ir era Sabinópolis, que Sabinópolis era lugar de gente matador, e tal e tal. Informante Violeta

Ainda que a nomeação do padre dependesse da decisão do Arcebispo, o convite

pode ter influenciado tal decisão. Cabe lembrar que o poder político com os ideais

liberais crescia em Sabinópolis, através de Ignácio Alves Barroso e a Igreja. Desde a

morte de Vigário Marcelino, em 1902, não conseguia manter um líder religioso na

paróquia de Sabinopolis. Por outro lado, a vinda de Padre José Amantino dos Santos

reafirmaria o poder mítico de um outro negro, Vigário Marcelino, podendo assim

mobilizar a massa de fiéis e garantir a hegemonia católica ameaçada pelo avanço do 30 A entrevistada se refere a uma pergunta feita pela pesquisadora sobre o ambiente político de Sabinópolis, que em época de eleição vivia conflitos e violência entre partidos rivais. Monsenhor nega-se a vir em decorrência disso.

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liberalismo democrático, político e religioso. Entretanto, do ponto de vista político

partidário, a proximidade do Padre com a família Pinho iria garantir a mudança de

liderança política da família Barroso para a família Pinho.

O modelo clerical tridentino do catolicismo institucional vai aos poucos

fragmentando o catolicismo tradicional do período colonial, alterando ritos e os

enfraquecendo, diminuindo a participação popular e centralizando na figura do padre as

decisões e ações, promovendo a afirmação de sua autoridade sagrada e política. Os ritos,

antes vividos coletivamente, passam a ser sacramentais e individuais. Essa transforma-

ção foi percebida por Cravo:

A Irmandade tinha. No meu tempo tinha, tinha aqui Irmandade que acabou: Irmandade São Sebastião, era de homens. Tanto que nas procissões eles (os homens) vestiam uma Opa vermelha, os membros da Irmandade. Eram muitos, aquelas pessoas mais velhas, todos faziam parte da Irmandade. Na procissão vinham duas alas dos irmãos de São Sebastião, chamavam os Irmãos de São Sebastião, todos vestiam uma opa, era uma opa bege e tinha uma gola assim vermelha, era muito bonito, tinha duas alas. Agora, tinha...essa Irmandade ela praticamente ela mandava aqui em Sabinopolis. Esses terrenos que pertenciam ao distrito, isso foi doado por alguém, pertencia a Irmandade. O sujeito ia construir uma casa, ele tinha que recorrer a Irmandade. Então, eles tavam o escrito, uma espécie de escritura, e concedia que o indivíduo... e assim Sabinopolis foi crescendo. Foram construindo... depois foi indo, com a vinda de outros padres, parece que os outros padres não se interessaram, não é...e a Irmandade foi ...Também existia a Festa de São Sebastião. A festa de São Sebastiao, havia procissão, banda de música, era uma festa bonita, juntava o povo todo do distrito e aqui do município.Tinha uma fé em São Sebastião, então, juntava o povo todo. No dia da procissão era, vinha o povo todo da região para a festa de São Sebastiào. Essa festa até hoje ainda tem a procissão de São Sebastião, né. Tem a procissão, não é mais, não tem mais aquela pompa, não tem. Não é como era antigamente que juntava todo mundo queria assistir a festa para a procissão de São Sebastião, tinha muita fé. Era...agora depois com a chegada de Monsenhor, Monsenhor já ... ele não cancelou a festa. A festa continua, quer dizer, a procissão até agora, tem a procissão de São Sebastião. Mas o Monsenhor começou então a fazer a Festa do Rosário.

A extinção das irmandades tinha como objetivo centralizar o poder da Igreja,

ameaçado frente à participação popular, e seus movimentos reivindicatórios. De acordo

com registros da Igreja, até o ano de 1959, em Sabinópolis, algumas se mantiveram. A

atitude do padre em cancelar a festa fazia parte do contexto institucional da Igreja e de

sua forma de enfrentar o avanço da secularização e da modernização por que passava o

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país. A figura eclesiástica tinha que ser legitimada, pois era por ela que o catolicismo

reformador seria difundido. Numa cultura ainda fortemente rural, com uma população

praticamente analfabeta, o padre, por seu acesso ao conhecimento e ao poder - político e

religioso - tornava-se símbolo da liderança e do poder eclesiástico católico.

Entretanto, não se podia excluir todas as manifestações populares, pois elas

também eram reservas culturais necessárias à vinculação do povo à instituição católica.

A festa do Rosário então se mantém não mais com o mesmo caráter dado pela

irmandade dos homens negros. Mas no caráter dado pela instituição católica. Daí a

afirmação de Cravo: "Monsenhor veio para aqui, modificou alguma coisa aí. E

continuou a Festa, a festa ...tornou-se uma espécie de patrimônio aí da igreja, a Festa do

Rosário".

Enquanto no cenário nacional e mundial as transformações sócio-politicas já não

dependiam da sacralizacao da Igreja, no interior das Minas Gerais, em Sabinópolis, o

mesmo não acontecia. A separação entre Igreja e Estado legalmente ocorrida não era

consenso na mentalidade da comunidade sabinopolense acostumada a se organizar em

torno de uma liderança pessoal - seja ela legitimada pela Igreja ou pela ciência. Assim,

aqueles que desejavam o poder e ascensão se aliavam ou com o padre ou com os

médicos. O primeiro sagrado por sua força simbólica/espiritual e por sua condição de

mediador com o transcendente. Os segundos, pelo conhecimento que garantia não

apenas o lugar social, mas o poder advindo do exercício da medicina.

O padre, por meio dos rituais sagrados da missa e da confissão mantinha sua

influência sobre a consciência e os atos dos fiéis. Uma religiosidade individualista e

confessional garantia a disciplina espiritual e moral e o enfraquecimento dos vínculos

sociais. A obediência ao pastor era significada como afirmação da fé católica, sendo

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recomendada pelo arcebispo, divulgada na oração do "Padre-nosso", e difundida pelo

catecismo:

Recommendamos em nosso Senhor que tenham como seu verdadeiro Parocho, como tal e acatem e estimem, obedecendo-lhe em tudo o que for de seu dever obrigação.Tomará posse, lendo a presente a seus parochianos à estação da Missa, na primeira dominga ou dia santo seguinte ao seu recebimento, da qual lavrará termo no verso e nos mandará official participação.

Arcebispo D. Joaquim Silvério de Souza, arcebispo de Diamantina, Livro do Tombo de Sabinópolis, 1928.

4.3 A aliança religião e política

Através da liderança político-espiritual, Mosenhor Amantino consolidou a

influência religiosa conservadora católica, ameaçada pelo pensamento liberal e pela

força política do Partido Republicano - representado pela liderança dos Barrosos. O

posicionamento político conservador da Igreja e de seu líder é retratado nas memórias

de QUEIROZ:

É muito vaga a minha lembrança. Em 1937 militavam dois grupos: PP - Partido Progressista e PRM - Partido Republicano Mineiro. Lembro-me de um cartaz enorme da Aliança Liberal, apresentando uma mulher em pé, meio inclinada, tendo as mãos amarradas numa corrente curta, presa ao chão. Mas eu nem sabia o seu significado, nem tinha curiosidade de saber. Este partido era dos Barrosos. O nome Artur Bernardes, chefe do PRM, era muito falado. Os Pinhos eram do PP. Nas vésperas da eleição, um grande cartaz deste partido, ou melhor, uma faixa foi afixada na parede da Matriz, por cima da porta principal. (QUEIROZ, 2003:223)

"A paixão política tem pesado na história de Sabinópolis" (QUEIROZ,2003), de

fato os conflito pelo poder atravessam a história, confrontando valores familiares, visão

de mundo e envolvendo alianças entre diferentes lideranças políticas e religiosas, que

visam a manter seu status quo. A aliança entre Padre José Amantino e os Pinho Tavares

garantirá a mudança de poder, reafirmando uma sociedade conservadora, patriarcal, que,

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tutelada pela Igreja, mantém um consenso silencioso e silenciado entre as montanhas,

isoladas por uma cultura que resiste aos avanços da modernidade. A rivalidade política

adentra as famílias, que são identificadas como aliadas ou não à Igreja. As relações de

compadrio garantem as vinculações de poder entre a elite e a Igreja e visam a se

sustentar numa sociedade que resiste à mudança.

Se no plano político as alianças garantem o controle social, no plano espiritual,

ele era exercido através das missões, dos sermões, das visitas domiciliares e paroquiais,

nos aconselhamentos dos pais e filhos, nos quais buscava preservar uma moralidade de

obediência, em que a autoridade paterna deveria ser garantida, ainda que para isso

usasse da violência. Um de seus lemas, conforme depoimentos de uma entrevistada, era:

"pai que poupa a varinha, não ama o filho”. Conforme ela mesma explica: "pai que

poupa a varinha não ama o filho, quer dizer que o pai deve castigar quando o filho

precisa. Ele era enérgico nesse ponto". A autoridade do pároco o colocava na condição

de disciplinador, definindo normas de comportamento dentro da igreja e fora dela.

Durante o período em que reside em Sabinopolis, a celebração da missa era feita em

latim, ficando o padre de costas para a assembléia - (ritual anterior ao Concilio Vaticano

II). Ainda nessa condição exercia o controle:

Ele proibiu as mães de família levar criança pequena na igreja. Ele falava: porque ela não ouve missa e nem ninguém que esteja em roda ouve. Porque a criança perturba. Elas... então ele preferia que elas não levassem. Que ele DISPENSAVA as mães. Não precisava de ir a missa, se ela não podia deixar o filho com alguém. Quando, naquela época, a missa era celebrada de costas, de costa para o povo. Quando ele ouvia uma coisa de criança, ele falava: qual é essa mãe TEIMOSA que taí na igreja? Então, elas ficavam com vergonha (rindo), dos pitos que ele passava. Ele não tinha disso com ele não. Falava:“ Faz favor de sair”. Era em latim. Tanto que o povo não participava. Tinha os auxiliares, aqueles meninos. Os coroinhas, que respondiam o padre. Informante Violeta. (grifos meus).

A não participação popular garantia o não refletir sobre o rito, mantendo a autoridade sagrada do padre, pois ele era a intérprete divino, uma vez que a população

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estava impedida de participar e compreender o rito, pois a língua era o latim. Não podendo assim pensar sobre ele, ou exercer, como coloca Durkheim, o "livre exame" do culto, o consenso sobre as verdades se mantinha. Entretanto, após o Concílio Vaticano II, a Igreja abriu-se para a participação popular, sendo a missa celebrada em língua natal. Não obstante, Padre José Amantino manteve o latim enquanto esteve vivo (1969), sobre isso comentam Lírio e Margarida:

Ele celebrava de costas, tudo em latim. Só de costas.Tudo em latim.

Missa contada era muita bonita. Depois veio a missa em português, ele não mexeu mais. Eu nunca ouviu. Eu ouviu muita missa lá, e era tudo em latim. Ele não mais celebrou missa de frente. Eu não lembro, se celebrou eu não estava aqui mais.

4.4 A construção de uma moralidade católica

Durante o culto, separados por uma grade que dividia o templo em dois espaços,

ficavam os homens e as mulheres. Os primeiros na metade próxima ao altar, as

mulheres na parte inferior do templo. A separação entre homens e mulheres, entendida

como natural, se estendia às instituições escolares, onde dois pátios dividiam os

meninos e as meninas, evitando que brincassem juntos. Até mesmo o horário de

catecismo e oração na Igreja era separado, sendo que o toque do sino anunciava os

diferentes horários. Somente, após a morte de Monsenhor Amantino tal costume foi

mudado, sendo retirado o gradil do interior da Igreja. O gradil servia como mesa de

comunhão, organizando o ritual da missa. Conforme depoimentos, caso a hóstia caísse

no chão, era necessário pegar um pano branco e recolhê-la num gesto de sacralidade. A

separação por sexo reforçava a legitimação da desigualdade, justificava a relação de

domínio do senhor sobre a serva. Um costume tornado hábito leva tempo para ser

mudado, a subordinação percebida no consultório tem uma longa história.

O exercício do poder religioso na construção de uma moralidade cristã se fazia,

sobretudo, no confessionário, pois ainda que a moralidade externa garantisse um

ordenamento social, no silêncio do confessionário a desordem poderia ser ritualmente

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corrigida, assim conforme registros do Livro do Tombo, de 1927 a 1935, o Padre recebe

o direito de, no foro interno do confessionário, absolver o pecado do aborto e de "pais

ocultos", a sexualidade feminina ritualmente aos poucos é controlada. Evitando a

anarquia "primitiva" dos instintos sexuais, que, desde o tempo colonial, era controlada

pelos sacramentos do casamento e do perdão.

Em 1934, após a morte do então arcebispo Dom Joaquim Silvério de Souza,

assume o trabalho pastoral o arcebispo Dom Serafim Gomes Jardim, que ainda mantém

o direito de absolvição do pecado do aborto até 1935, quando então é excluída a

concessão de absolvição do pecado do aborto, sendo mantida a absolvição do pecado de

pais ocultos. O silêncio das mulheres garantia o lugar do masculino e da moralidade

patriarcal, pela internalização da culpa. Ainda no campo do controle da sexualidade e da

moralidade, era dada a concessão de realização de casamentos entre grupos

consangüíneos, sendo que tal concessão poderia se referir "somente no território da

paróquia", devendo ser usada "em caso de urgente necessidade, havendo causas graves,

não havendo tempo de recorrer a nós ou a cúria". (JARDIM, Serafim Gomes: TOMBO,

1935)

As famílias de Sabinopolis casavam seus filhos entre si, quase sempre primos com primos e a cultura conservadora da cidade evitava a separação de casais, pois a comunidade era tutelada por uma igreja fortemente enraizada na comunidade, que procurava manter a família tradicional também fortalecida por um forte controle social. Os padres tinham grande influência na cidade. Informante eclesiástico II

A autoridade do Padre nutre nos fiéis uma mentalidade e uma moralidade

conservadora, exercendo sobre suas consciências o poder de controle através do temor,

da culpa, da repressão.A família tradicional é assim garantida pelo enlace matrimonial

de jovens primos e ou parentes, que viam suas famílias vinculadas através da

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consangüinidade e da religião. Os casamentos entre parentes também era um sinal do

isolamento sócio-geográfico da cidade, situada entre montanhas, sem acesso aos meios

de transportes: a ferrovia mais próxima chegava até Diamantina, a 90km de distância, as

viagens para outras comunidades demandavam dias e o meio de transporte predominan-

te eram as tropas, os cavalos.

Eles acabavam se casando entre eles, eles não tinham muitas opções. Não

tinham muitas opções, como também as famílias achavam certa segurança que você se

casasse com uma pessoa, que fosse seu primo, que fosse... eles se sentiam um pouco

protegidos. Então, pra você ter idéia, que o seguinte...dava... isso o que significava,

significava a opressão, controle social, exercido sobre os jovens, os jovens eram

submetidos a uma grande pressão social e eles não tinham muito como escapar. Isso

trazia conseqüências e traz ainda, algumas conseqüências, bastante eh.... bastante

desastrosas para os jovens e para os jovens casais, entendeu? Por quê? Porque era

praticamente impossível você pensar em outra...alternativa, que não ser a manutenção

de um casamento, que você preferia não fosse querido, o resto da vida. Não tinha outra

alternativa. Tanto assim que na historia de Sabinopolis, você vai encontrar muito pouca

separações. Ou quase nenhuma separação. Entrevista com informante eclesiástico

Em 1930, o isolamento será rompido e Sabinópolis viverá a chegada do

primeiro automóvel. Conforme QUEIROZ, assim aconteceu:

"O carro já está na serra...Era um Ford 29 de propriedade do senhor José Silveira

. Este moço anteriormente tinha vindo trabalhar no Serro [...] Mas encorajado por

...amigos, resolveu enfrentar os 42 quilômetros de caminho de tropa. E veio

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desbravando a "selva".Caminho de roça, estrada de carro de boi, córregos sem ponte,

atoleiros, despenhadeiros, foi ficando tudo para trás. Foram gastos dois dias de suor e

cansaço. Mas compensou! Por assim dizer, deu início a uma nova era.. Abriu-se um

horizonte novo. Inácio Alves Barroso era o prefeito. Sempre sonhando e colimando o

progresso de sua terra, deu a melhor cobertura, aproveitando sabiamente a oportunidade.

Solicitou logo, e obteve do presidente do Estado, Dr.Antonio Carlos, uma verba de

trinta contos de réis a fim de abrir estrada de rodagem para Serro e Guanhães".

(QUEIROZ,2003:106)

4.5 A chegada do automóvel - a ruptura do isolamento sócio-geográfico

A chegada do automóvel foi o marco de um novo tempo em que a comunicação

entre a cidade e a vizinhança começa a se fazer, ainda que sendo um símbolo de poder

sócio-econômico, portanto de acesso de poucos, o carro anuncia um outro mundo em

desenvolvimento. O largo da Matriz tornar-se-á o ponto de embarque e desembarque

dos primeiros usuários da condução motorizada. A modernidade se infiltra paula-

tinamente, provocando outros modos de agir e provocando novos modos de pensar.

Nesse contexto de transformações, a educação da elite antes endereçada aos

colégios católicos, Diamantina, Caraça, e dirigida apenas aos homens, passa a ser

ofertada também às mulheres, que são enviadas para o Colégio interno católico do

Serro, de Peçanha e Conceição do Mato Dentro. Com a ampliação do sistema público de

ensino e educação, além da instituição do Grupo Escolar em Sabinópolis, ocorre o

intercâmbio entre Sabinópolis e Guanhães. Posto que o ensino de lá fosse

reconhecidamente melhor do que o de Sabinópolis, Guanhães, por ser uma cidade de

passagem e de cruzamento entre várias outras cidades, se moderniza rapidamente,

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desenvolvendo um comércio forte. Em função de sua cultura liberal, a cidade e seu povo

são vistos com certo receio pela população (ou a elite) de Sabinópolis.

O isolamento de Sabinópolis, sobretudo com relação a Guanhães, era para que

Sabinópolis não fosse contaminada pela liberalidade relativa existente em Guanhães. Os

estudantes de Sabinópolis eram recomendados pelos pais para não se misturarem com

os colegas de Guanhães, para não adquirirem costumes que não se enquadravam com os

costumes de Sabinópolis. No campo religioso, cidades como Sabinópolis fizeram uma

verdadeira barreira para que o espírito renovador do Concílio Vaticano II penetrasse na

cidade e modificasse o comportamento do povo. Informante eclesiástico II.

As recomendações sobre um modo de comportar-se que priorizasse a virtude

(entendida como castidade), a retidão de caráter, a obediência e a disciplina estavam

implicadas numa visão religiosa tridentina, vinculada a uma concepção transcendente de

um Deus, e que se vê ameaçada pelo avanço da sociedade moderna. Por detrás do

conflito mundial - II Guerra Mundial - há o medo de perda da hegemonia sobre as

consciências. Para barrar o avanço da liberalidade e do pensamento laico, é necessário

reforçar os valores que sustentam a igreja tradicional, sobretudo entre aqueles que

ignoram o contexto social de produção do conflito mundial. Assim, a guerra assume o

significado conforme o olhar de interesse da Igreja católica, as mensagens enviadas por

Roma são divulgadas na arquidiocese e as ações de oração promovidas no mundo

católico são também promovidas nas paróquias. Por solicitação do Papa Pio XII , na

data de 24 de novembro de 1940, é feita a cruzada de oração, na qual solicita aos fiéis

que façam penitência, emendem suas vidas 'tornando-se mais conforme à lei de Cristo'.

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No 'isolamento' sócio-geográfico, a figura do sacerdote não apenas assumia um

caráter sagrado, mas ainda o caráter de porta-voz de notícias a serem divulgadas, um

elemento importante na formação de opinião dos fiéis. Em 1942, com o mundo em

guerra, o Brasil em situação de crise, Minas Gerais investe na campanha agrícola

solicitando ao clero que ajude a fazer propaganda junto à comunidade rural,

incentivando o plantio. Assim, o então Secretario da Agricultura de Minas Gerais:

Alcides Gonçalves, envia radiograma ao arcebispo Dom Serafim:

[...] A campanha da produção precisa ser desenvolvida com urgencia, porque estamos na época do plantio. Por esta relevante razão solicitamos anuência V.Excia. para que nos dirijamos direta e imediatamente aos seus Vigários de todo o Estado fazendo-lhes apelo para que colaborem nesta campanha da produção. Ao mesmo tempo: constituirá inestimável serviço de V. Excia. Rma. reiterasse nosso apelo junto aos párocos sob sua jurisdição no sentido de que se desenvolvessem propaganda direta na classe rural. (TOMBO:1942;54)

A influência e o poder de atuação do Monsenhor Amantino podem ser sentidos

no espaço social e na organização da cidade: levam o seu nome: ruas, praças, escolas,

bairro e associação de moradores. A cidade é, pois, atravessada por enunciadores

coletivos que reproduzem um modo de pensar, um estilo de ser. GUATTARI (1992)

falando sobre a cidade, argumenta que a cidade ‘produz o destino da humanidade’, ela

expressa as segregações, a formação de suas elites, ela aponta para o futuro e os

domínios. Ela produz, pois, subjetividade. Assim, busca-se preservar, através dos

equipamentos coletivos de enunciação (educação, espaço publico, família,etc), uma

mentalidade, um território simbólico, que resiste às transformações sociais. No processo

de subjetivação, há o movimento de territorialização e de desterritorialização, revelando

um fluxo constante pelo qual o homem constrói seus significados. Entretanto, quando o

sentido se mostra fixo, a multiplicidade não é percebida, sendo até mesmo negada. A

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negação produz o sentimento de segurança, dificultando as possibilidades de mudança.

Sobre a tutela de um território simbólico, religioso ou não, o homem cria a "falsa"

imagem de um mundo controlado, de uma "identidade" de si. Fixa-se à idéia de Ser e

não se percebe como parte de um processo mais amplo: a construção de si.

4.6 Entre o catolicismo tridentino e os avanços modernos

O vigário era a pessoa mais influente no lugar... Porque, hoje tem as diversas lideranças, mas naquela época não tinha, quem é que tinha curso superior? Lá no interior, não é? Quem é que tinha circulação de poder sair todo ano, ir as cidades grandes, quem é que recebia o jornal com as notícias, então o vigário era a liderança número um, mesmo que tivesse prefeito isso e aquilo, mas era o vigário, então era a palavra do vigário era acolhida como a palavra de quem tem autoridade. Então para pensar em uma comédia e coisas assim, sempre era o vigário e o que ele dizia tinha mais peso, do que outros diziam. Entrevista com representante eclesiástico I

De 1928 a 1967, o catolicismo tridentino se fez hegemônico, como também a

liderança de Monsenhor Amantino. A hegemonia clerical não se fazia apenas pela força

do sagrado, mas pelas contingências acima argumentadas. Associando a força da fé ao

poder político, Monsenhor promoveu a construção de instituições símbolos da

modernidade e da democracia, mas que são instituídas vinculadas à igreja, através das

fundações e associações. Perpetuando, assim, no imaginário social a idéia de que tais

instituições foram 'agraciadas' pela generosidade divina, através de seu líder espiritual,

excluindo-se, pois, a análise do contexto sócio-cultural que gesta as mudanças em

andamento, no âmbito nacional e mundial. Havia, portanto, fatores sócio-históricos que

pressionavam as transformações, sobretudo a organização de um modo de vida urbano,

que evidenciava as diferenças sociais decorrentes do período colonial. O processo de

urbanização, o aumento populacional e as precárias condições de moradia, educação

expunham a realidade da população pobre, em sua maioria negra, analfabeta à mercê do

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processo de desenvolvimento. Essa percepção social atinge outro líder político, o então

médico Joaquim de Pinho Tavares - Dr. Joaquim.

É tanto que se Monsenhor Amantino mais Dr Joaquim estavam de um lado ninguém ganhava. Ninguém. Em eleição ninguém ganhava mesmo. Entrevista informante Lírio.

Assim, conforme o livro do Tombo, 1959, foram edificados: o hospital São

Sebastião, o Ginásio Monsenhor José Amantino dos Santos, o cine-teatro, é restaurado e

organizado o cemitério. A criação das novas instituições indica o avanço de um

pensamento moderno, mas a vinculação do líder espiritual sobre elas teve a função de

exercer o controle sobre a mentalidade moderna, reafirmando o modelo clerical/

patriarcal que sustentava o catolicismo tridentino, as práticas da sua ação religiosa, os

ritos e a política familiar apontavam para a manutenção de uma religiosidade marcada

pelo controle, pelo conservadorismo. O paradoxo da época se revelava.

São dele as palavras que se seguem:

Convicto então de que a missão do Sacerdote em face da evolução social não deve se restringir à Sacristia, além do imprescindível desempenho dos sagrados deveres que me assistiam como guia espiritual e almas, confiadas ao meu pastoral, amplio o campo das minhas atividades incluindo nele a construção do Hospital "São Sebastião".Enfrentei obra confiado nos socorros divinos e na vontade decidida e capacidade realizadora de meus apostolados.[...]"Tudo é possível àquele que crê". Conhecedor mais do que ninguém da potencia realizadora dos meus paroquianos e surdo às ponderações e considerações dos menos avizados dei corajosamente prosseguimento à custosa construção de Edifício até o seu término final com o dispêndio de quase dois milhões de cruzeiros e hoje Sabinopolis possui um grande Hospital de que com justiça se orgulha. E todo o povo de joelho agradece a Deus a mercê recebida. (TOMBO,1959:7)

No texto acima, pode-se perceber a mentalidade clerical que chama para si e

para Deus a responsabilidade de uma ação coletiva. Conforme as entrevistas, a

população participou da construção das instituições, com doação, com trabalho, com

mobilização. Entretanto, não é a participação valorizada, mas a "mercê recebida".

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Evitava-se, assim, o reconhecimento do processo histórico e político da construção

social, mantendo-se a visão teocêntrica.

Segundo os entrevistados Lírio e Margarida, a construção do Cine-teatro teve o

objetivo de promover recursos necessários à edificação do hospital. Nele não só o teatro

amador era realizado, mas também filmes eram projetados. O cinema tornou-se um

meio de evangelização, à medida que difundia temas heróicos, documentários e

romances, não sem antes sofrerem a censura, feita pelo próprio Monsenhor Amantino.

Cenas que pudessem ofender a moralidade católica da época eram cortadas. Não

obstante, como argumenta Guattari e Durkheim, a duplicidade humana escapa a todo

controle, e o contato com o novo mundo mobilizou outros afetos e sentimentos.

QUEIROZ (2003) ilustra esse processo:

Muito cedo Sabinópolis conheceu o cinema. Mudo, pois não? Era o que chegava para nós. No falado nem se falava.E durante muito tempo; e se passaram numerosos filmes. Eu assistia com muito interesse. Ajudei bastante ao Pe. Amantino em venda de ingresso. Ele foi pioneiro nesta área. E curioso é que eu assistia às sessões com muito gosto, mas chegava em casa insatisfeito. Seria talvez por me ver distante do que eu admirava na tela?(p.189)

O cine-teatro foi vendido entre a década de 70 e 80, pelo pároco Elair e em seu

lugar foram edificados apartamentos. A venda do cine é um indicativo da

reterritorialização do catolicismo tridentino reformador/conservador. Ela não foi

recebida com agrado pela população, pois conforme já exposto, o cinema não era só

instrumento de evangelização, era também a possibilidade de contato com outra

realidade, abrindo para a população outras referências simbólicas. Jasmim explicita isso:

Houve assim, eu escutei várias pessoas contra. Que não, não deveria ter vendido ali, que era um ponto de diversão, de lazer afinal, porque tinha... passavam os filmes, bons, não é? Teatros. Eu me lembro no tempo de padre Leonardo mesmo, fazia, teve uma sessão publica que eu tomei parte, lá nesse salão, lá no... no...teatro.

4.7 A década de 60: acontecimentos enunciadores de novos sentidos

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Toda religião que surge, a religião católica mete o pau. Porque ela está perdendo força de dividindo força. Entrevistado Lírio.

A estradas possibilitavam a interação de novas culturas, porém o controle

católico sobretudo sobre novos cultos assumiria um caráter de intolerância com todos

aqueles que podiam ameaçar a hegemonia católica. Sob o comando de seu líder

religioso e com a interferência das associações religiosas, o padre organizava ações de

combate a todos que desejassem pregar novas idéias. Ainda que a constituição do Brasil

permitisse a liberdade do culto, tal liberdade não era admitida em Sabinópolis e aqueles

fiéis que não concordassem com as decisões de seu líder religioso perdiam o direito de

usar os símbolos que os ligavam a Irmandades e ou Associações. "E os Congregados

Marianos que não obedecessem, e coisa, perdia a fita. E saía da congregação"31

A intolerância religiosa e os atos violentos promovidos com a liderança do padre

mobilizam sentimentos contrários à postura daquele e prepararam o ambiente favorável

a tolerância de novos credos. É assim que nos explica Cravo:

... primeiro apareceu aqui um grupo, que não era Seu Nicolas32 não. Foi um grupo aí que parece que umas dez pessoas, que estavam introduzindo uma igreja, criando, fazendo propaganda para o protestantismo. Nessa noite que eles pediram o prefeito, o prefeito demarcou um lugar para eles, que é ali, tinha uma ponte ali, não tem mais a ponte. Era um aterro[...] eles reuniram, fizeram a propaganda e reuniram um pouco de pessoas. E fizeram a pregação deles, então Monsenhor foi o primeiro, então Monsenhor não gostou daquilo, ele reuniu, eram tinha nessa ocasião, tinha a Irmandade dos casados e a Irmandade dos solteiros, era separado. E Monsenhor reuniu as Irmandades e aí, quis atacar esses protestantes. Cruzou com o grupo lá e começaram a coisa. Até foi preciso o delegado entrar no meio e coisa,...com medo deles, católicos, atacarem os protestantes. Isso foi uma investida que Monsenhor...Aí, aquilo pegou mal. Porque aqueles que eram católicos, mais velhos, mas pessoas... acharam que aquilo foi uma coisa feia que Monsenhor que ele não devia de ter tomado em consideração. Foi a única coisa, no mais não houve, ele nunca incomodou. Informante Cravo

31 É necessário ressaltar que com a instituição da modernidade e a separação igreja/estado, as associações fundadas visavam garantir não apenas um espaço de convivência religiosa, mas um modo de garantir os recursos financeiros para sustentar a igreja. Como exemplo pode ser citado a Associação de São Jose instituída com a finalidade de arrecadar fundos para sustentar as vocações sacerdotais. 32 O informante se refere ao líder da Igreja Evangélica Pentecostal, instituída em 1967 em Sabinópolis, pelo pastor Nicolaas Willem van Eijk.

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A divergência dos católicos frente à atitude do padre aponta para a perda de

consenso em torno da liderança religiosa e a diminuição da postura intolerante dirigida

não somente aos protestantes, mas a todos que ousassem questionar o modelo católico.

A postura de divergência, portanto de questionamento, se gesta quando há maior

veiculação de informações, quando outras opiniões podem ser expressas e, sobretudo,

quando as mensagens já não respondem às necessidades sociais.

Uma comunidade situada em um mundo de transformações sociais necessita de

outros discursos que signifiquem a realidade. Segundo o "Album dos Municípios do

Estado de Minas Gerais", suplemento informativo, publicado em 1942, o município

tinha, naquela época, 16 aparelhos de rádio registrados, telégrafo:"foram expedidos

1508 telegramas em 1940 e recebidos 1272", e os meios de transportes eram compostos

por: "196, dos quais, 4 automóveis , 3 caminhões e 189 a tração animal, além de 1

jardineira". (ALBUM dos MUNICIPIOS,1942:276). A comunicação ampliava os

horizontes, por detrás das montanhas.

Na década de 60, no seio da Igreja católica, por meio dos fiéis, outro modelo de

ser igreja começa a se esboçar. E uma religiosidade vinculada ao posicionamento

político social se introduz na comunidade sabinopolense, através de Dr. Celso Generoso

e sua esposa, a carioca Miriam Grassie Generoso Pereira. Ele, filho de Sabinópolis,

educado em Diamantina, veio a cursar medicina no Rio de Janeiro, onde toma contato

com uma nova igreja, vinculada aos clamores populares. Celso Generoso foi

representante da JUC - Juventude Universitária Católica. E com o espírito de renovação,

casa-se com Miriam, enfermeira, vindo a residir em Sabinópolis, por acreditar em outro

modo de viver a fé católica, que pudesse promover uma cultura comprometida com a

visão cristã libertadora. Entretanto, ainda que sua participação intensa na comunidade

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fosse digna de ser relembrada pelos entrevistados, efetivamente, não alterou o modo de

pensar. Porém, produziu efeitos sobre a comunidade que percebia em suas atitudes outra

significação religiosa, comprometida e investida de compromisso social. Celso

Generoso será um dos principais responsáveis pela fundação do Ginásio Monsenhor

José Amantino, juntamente com o pároco de mesmo nome.

Sobre ele, assim comenta um dos entrevistados:

E Celso entusiasmado com Sabinópolis, vai para Sabinópolis com Miriam. Aí foi uma verdadeira revolução, viu. Eu acompanhava isto, não só por causa da minha amizade com Celso, mas também porque neste tempo eu estava fazendo aquele trabalho que eu te falei ( Irmandade da Providência), de circular por toda a diocese de Diamantina, organizando a Irmandade da Providência. Aí Sabinópolis, como essas cidades pequenas, era uma cidade de uma política muito baixa. Quer dizer, quem era de um partido, por exemplo, do, lá era, naquele tempo era UDN e PSD, quem era do PSD não conversava com quem era da UDN. Não podia, não ia na casa de quem era da UDN. Que que Celso e Miriam faz, eles chegando lá, eles começam a circular de um lado e de outro, independente de partido, os dois não tinham partido, não é... Mas então podiam conversar, conversar com um, conversar com outro e procuravam aproximar sobretudo os jovens. Os jovens independente de partido, porque com os jovens continuavam a mesma coisa, porque quem era filho de um psdebista, não conversava com quem é filho do undnista. Então eles aproximavam esse pessoal todo. E na igreja os dois faziam, o que causa a maior admiração... homem na igreja ficava lá trás, não iam para a frente, e as mulheres é que assumiam tudo. Faziam a leitura, coisa que valham, então Celso fazia a leitura, Miriam também. Os dois, com algumas pessoas é que preparavam os cartazes, para ilustrar aquela missa, que nesse tempo ainda era missa em latim, não é...Então, eles faziam os comentários da missa, e antes eles iam enfeitar, com as referencias daquela missa, quando as pessoas chegavam já viam lá ilustração daquela missa. Na hora de fazer a coleta da missa, Celso (entonação forte ao nome), o médico do lugar é que saia com a bolsa fazendo coleta, quem é que vai deixar de colocar?... e se vai colocar um real, um real ali...(rindo) sendo um fazendeiro e Celso conhecendo todo mundo, porque ele era dali. Então eles promoveram uma mudança profunda lá. Informante eclesiástico I

O retorno de Celso a Sabinópolis e sua inserção social e religiosa nos trabalhos

comunitários, apoiados numa religiosidade comprometida com a transformação sócio-

cultural, onde a participação popular e sua necessária instrução se faziam como

condição de diminuição da ignorância e da opressão social, foi um acontecimento que

marcou a memória da população, mesmo não tendo alterado substancialmente a

mentalidade tridentina. Entretanto, foi mais uma marca na religiosidade conservadora e

um apontamento para as novas posições que a Igreja assumia, na década de 60, tanto no

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Brasil como no mundo: a abertura para uma religiosidade comprometida com a

realidade social e suas mazelas. Ainda que a transformação não tenha de fato ocorrido,

não era mais possível manter o fechamento religioso que isolava Sabinópolis. Os limites

geográficos estavam diminuídos pelas estradas e novos saberes e profissões vinham

associar-se ao trabalho médico, educacional, religioso.

Assim, junto com Celso e Miriam, ele médico, ela enfermeira, vieram o

engenheiro João Parente e a educadora Letícia Parente. Esses dois desenvolveram um

trabalho social, tendo como instrumento a educação. Seja atuando na saúde, seja na

educação, na raiz do trabalho social desenvolvido pelos casais estava a concepção

religiosa, assentada na idéia de que “o que salva a gente não é o religioso, mas o

social". Uma religião eminentemente inserida e comprometida com a imanência abalava

a visão tradicionalmente transcendental da cultura sabinopolense. Inserindo um outro

conceito de política, uma política não partidária, nem tampouco familiar, mas social.

Essas quatro pessoas por sua atuação realmente mudaram Sabinópolis. A atuação deles na JUC os fez acreditar e agir na utopia de uma revolução social. A concepção que sustentavam era do religioso a partir do Evangelho. Dr. Celso e Dona Miriam eram dois jovens com ideais de mudar o mundo. Eles trabalhavam a consciência das pessoas e isto incomodava os “poderosos”. eles viviam uma religião a PARTIR DO Evangelho. A vinculação do religioso com o político revela a abertura do mesmo, se não o religioso fica fechado nele mesmo. (Separado do mundo - transcendente). Informante eclesiástico I (grifos meus)

Todos os acontecimentos até aqui expostos ilustram as mudanças no cenário

social. Mudanças que vão favorecer a instituição em 1967, da primeira igreja protestante

em Sabinópolis: A Igreja Missionária Pentecostal de Sabinópolis, instituída pelo pastor

Nicolaas Willem van Eijk. A década de 60 foi marcada pelo expansionismo do

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protestantismo religioso de origem americana no Brasil e Sabinópolis não ficou isolado

desse fato. A liberdade de culto, admitida pela Constituição Brasileira, abre espaço para

a inserção de uma outra igreja diferente da católica. O momento nacional é assim

descrito por SIEPIERSKI:

É impressionante o crescimento acelerado das Igrejas Pentecostais. No Brasil, em 1930, eram 10% do protestantismo: em 1950 correspondiam a dois terços: e, em 1965, eram 68,5 %. De 224.800 passaram a 2.239.000 adeptos. É indubitável que esse crescimento coincide com as mudanças sociais pelas quais passava o Brasil. A industrialização, a alteração da estrutura agrária e a migração interna fizeram aumentar a população da periferia. Aqui, criaram-se grandes contingentes marginais. Para esses grupos que viviam em insegurança social é que o pentecostalismo trazia sua mensagem. Ele oferecia salvação. Mas por que o catolicismo não ofereceu essa salvação ou por que o protestantismo tradicional não ofereceu essa salvação? (SIEPIERSKI, 2003, p.62)

Entretanto, houve resistência por parte do líder religioso e de fiéis, porém não

mais resistência explícita, como em outras épocas, mas por meio de ameaças realizadas

por aqueles que se encontravam ligados a ele. Assim comenta um dos entrevistados

eclesiásticos:

Como disse, eu admiro porque eu acho que um pai de uma família, ele tem que defender a família contra a invasão. Para eles, era a invasão da família. Estava (sendo) invadido o território deles. A motivação pela qual ele defendeu eu não posso julgar. Mas eu defendo também o meu rebanho. Então, eu acho que é uma coisa positiva. Agora a motivação é só [Deus], eu sei da minha, ele sabe da dele. Mas nessa parte eu até admiro pessoas que defendem aquilo que eles crêem, defendem as pessoas pelas quais eles são responsáveis. Agora maneiras, as vezes a gente tem que pensar. (Houve) ameaça várias vezes de morte, aqui. Atentados...

O cenário social mudou e a hegemonia católica não mais estava garantida, a

Constituição Brasileira, admitindo a liberdade de culto, promoveu a abertura que

garantiu o direito de fundação da Igreja Pentecostal na cidade. Por outro lado, o discurso

pentecostal atingiria um contingente da população que não encontrava significação no

modelo tridentino religioso católico, além do que encontraria na nova religião um

espaço social diferenciado, que promoveria novos processos de significação, onde a

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ignorância, a marginalidade sócio-cultural seriam questionadas. A naturalização da

pobreza seria colocada em xeque. Constituindo em dupla ameaça: a religião e a política

familiar local.

Em 1969, morreu o líder espiritual católico. Após sua morte, outros padres

passaram pela comunidade, entretanto sem ocupar o mesmo lugar de sua liderança.

Morre, pois, também, o sustentáculo de um modo de ser igreja e de fazer política. Os

fiéis se vêem sem seu ''grande pai". A morte de José Amantino, a inserção do

protestantismo na cidade e todo o cenário nacional favorecem ou maquinam a mudança

de uma religiosidade fundamentada no modelo tridentino, para uma religiosidade que

transita entre a interioridade, vivência subjetiva, para um religiosidade que busca ser

vivida no cotidiano da ação social, onde os sacramentos, não sendo um modo de

controle, são sobretudo uma expressão de uma crença e de um sentido que permite ao

grupo e ao sujeito que crê a identificação com o sagrado. Ainda que não possamos ver

no cenário cultural em estudo um questionamento profundo sobre a religião enquanto

instituição, é possível perceber nas entrevistas o questionamento sobre a religiosidade

aprendida e a afirmação da necessidade do sagrado como organizador de si.

Todos os entrevistados percebem a mudança do tempo, significam suas

diferenças, mas compreendem que não é o controle que unifica uma comunidade

religiosa, mas sua fé, a crença nos princípios. Há em suas falas uma nostalgia por um

lado, pois havia um consenso que favorecia uma vivência da religião como rituais

sociais que unificavam toda a comunidade: os cultos a Maria, as primeiras sextas-feiras

(que ainda hoje acontecem), as adorações ao Santíssimo Sacramento, as folias de rei,

etc. Percebem, pois, que os tempos são outros, e que Sabinópolis cresceu. Atualmente, a

cidade conta com diferentes igrejas: Testemunhas de Jeová, Deus é Amor,

Quadrangular, Assembléia de Deus etc.

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Houve um avanço nas telecomunicações e os 16 mil habitantes do município

contam com sistemas de internet, não públicos, correios e telégrafos, sistema de

transporte diário interurbano, há escolas de Ensino Fundamental e Médio, públicas e

particulares, e já possui Faculdades Particulares, o que mostra o avanço do nível de

escolaridade entre a população. Mas ainda que haja avanços, a cultura tradicional de

hierarquização social e submissão tem suas marcas profundas: o alto índice de

informalidade do trabalho, o controle dos meios de produção entre famílias, a

concepção política ligada às famílias se mantêm, em detrimento de uma visão político-

social mais ampla, a idéia de compadrio como meio de ascensão social.

Com tudo isso, a marca da tradição e do sincretismo religioso e cultural se revela

na Festa do Rosário. Festa que identificava a cultura negra: Irmandade dos homens

negros e que foi incorporada aos rituais de toda a população por Monsenhor Amantino,

imprimindo nela outros membros da sociedade - a elite católica - que acaba por

"controlá-la". Do ponto de vista político, isso significou o controle sobre a cultura

popular e a inserção dos valores da elite sobre o principal rito dos negros. Mas como diz

Sanchis, o sincretismo é a marca de nossa história, e a festa assume na atualidade, uma

celebração na qual o folclore, o religioso, o político se encontram.

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Capítulo 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estamos diante de uma escolha ética crucial: ou se"cientificiza" a subjetividade ou, ao contrario,tenta-se apreende-la em sua dimensão de criatividade processual.

Felix Guattari

Ao finalizar este trabalho, retomo uma questão que o acompanhou em quase

todo o processo de sua produção: que conceito seria mais adequado à leitura da

realidade estudada, identidade religiosa, ou subjetividade? Os dois conceitos distintos

remetiam a posiciona-mentos e leituras diversas sobre o tema. Entretanto, a opção pelo

argumento guattariano foi sendo confirmada. A discussão sobre identidade e

subjetividade remete à produção de sentido sobre o homem. Entretanto, a idéia de

identidade mantém a perspectiva de um modelo que se repete pela igualdade com, ou

pela apropriação de um modelo que nos organiza. Isso ao longo do trabalho foi sendo

mostrado, esse foi o recurso de manutenção de um modelo religioso que, desejando sua

permanência, criou ritos, significações capazes de unificar grupos, mas ao mesmo

tempo controlá-los, através da reafirmação de um território simbólico o

sagrado/transcendental. Identidades religiosas foram produzidas.

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Não obstante, o conceito de identidade comporta o questionamento: onde fica a

possibilidade de mudança, de transformação, de mutação? Como explicar a

multiplicidade de códigos, de símbolos, de ritos que compõe a cultura, mesmo quando a

mesma parece se manter "inalterada"? Como agregar ao conceito de identidade a

heterogeneidade? Não seria tal conceito um reducionismo ao sujeito psicológico? Não

seria ainda assumir uma hegemonia de um modo de pensar sobre o outro?

À medida que o conhecimento foi sendo construído, a escolha conceitual foi

acontecendo, porque o estudo e a análise de documentos, das entrevistas, da literatura

revelavam a força do argumento de produção de subjetividade. A polifonia de

enunciadores pôde ser ilustrada, através da recomposição das paisagens históricas,

mostrando os vários acontecimentos que contribuíram para a produção subjetiva,

permitindo a compreensão da própria produção dos modelos católicos instituídos e sua

função social, de reterritoriali-zação de sentidos.

O conceito de subjetivação possibilitou ainda o entendimento da necessidade de

manutenção de sistemas de referencia - territórios simbólicos/existenciais, como meio

de evitar a angústia decorrente do processo de fragmentação, de anomia. Ao mesmo

tempo em que também remete à abertura para outros sistemas de valor - universos

incorporais. Ou seja, produção de novas significações capazes de produzir novos modos

subjetivos, nova organização social e cultural. É nesse sentido que se pode compreender

o nascimento do catolicismo brasileiro. Ainda que o colonizador luso necessitasse de

afirmar sua cultura através do modelo religioso católico, no novo solo a diferença foi

produzida, e, mesmo na aparência de uma hegemonia, o que se fez foi uma diversidade

simbólica, influenciada pelo momento histórico, pelo espaço geográfico, pelas

condições tecnológicas da época.

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O processo de subjetivação pode favorecer ou não a surgimento do novo, pois

diante da fragmentação dos territórios simbólicos, não apenas a angústia, mas o medo

do novo pode favorecer a repetição discursiva, ou, no dizer de Guattari, os

equipamentos coletivos de enunciação entram em cena para manter a hegemonia dos

territórios. No caso em estudo, os equipamentos sociais, família, educação, política,

vinculados aos enunciados discursivos da Igreja Católica mantiveram a hegemonia de

território existencial transcendental, que dificultava a expressão da diversidade, quase

sempre considerada como marginal, produzindo subjetividades territorializadas, ao

vincular a condição de existir do sabinopolense à crença católica. Ser católico era

condição de ser reconhecido como Ser.

A "homogeneidade" discursiva favoreceu a criatividade folclórica dos grupos

populares, como meio de transformar a proibição expressiva. Entretanto, também gerou

a passividade, frente às desiguldades sociais, entendidas como "naturais". Essa não é

percebida, pois é significada como "cordialidade", "povo ordeiro". Sua origem vincula-

se à posição de obediência e de submissão aprendidas nos modelos dados como verdade

pela Igreja Católica, que produziam uma religiosidade baseada na culpa, na negação da

vida, pelo medo de enfrentar as intensidades do sentir, na negação do diferente,

sobretudo daquele que pudesse romper com o discurso hegemônico, fosse ele o negro, o

estrangeiro, o maçom, o ateu, a mulher, o protestante. Uma religiosidade baseada numa

moralidade patriarcal, através da qual Deus assume um lugar disciplinador. Não

obstante a tentativa de homogeneidade, outros elementos foram permitindo a

fragmentação discursiva: a mistura de culturas, o processo de urbanização, a inserção do

negro no catolicismo, o avanço das idéias liberais, a tecnologia etc Nesse processo,

outro sentido religioso foi sendo produzido, através do questionamento dos modelos

aprendidos.

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A religiosidade, ou seja, o sentimento de ligação com o sagrado, pôde abrir-se

para outros valores, não mais centrados na figura de um Deus disciplinador,

transcendental, supra-humano, mas num significado que permitisse a dúvida e a

existência da diferença, em que o transcendente permite o entendimento do existir e não

sua negação. Um ponto importante das entrevistas: todos os entrevistados moradores da

cidade, à indagação sobre se fé e religião significavam a mesma coisa, disseram que

não. Ainda que todos tivessem aprendido modos de expressão que sacramentalmente

expressassem a fé, todos afirmaram que a religião não garante a fé e que essa pode ser

descoberta fora do espaço religioso. Cada um à sua maneira, por modos diferentes, –

perda do ente amado, percepção de mudança dos tempos, perda do líder religioso de

referência, ampliação dos estudos, convivência em outros lugares – se interrogou sobre

a religiosidade católica aprendida, e como faz parte do processo de subjetivação a

ambigüidade, ela aparece – seja na expressão da dúvida, seja na afirmação de ritos:

Então quando ela sofreu, morreu, eu não conformei, até hoje, não conformei. De certa maneira perdi a crença. Acredito, mas não, acredito assim, tem horas que eu discordo, eu penso, leio a Bíblia, leio coisas, sabe? Tem horas que às vezes, eu acho que a religião deve existir e tal. Outra hora eu acho que eu não acredito, estou assim. Fico sem saber

Entrevistado cravo Eu posso ter fé e não ter religião. Então, por exemplo, fé em Deus. Porque tem muita gente que acredita em Deus, só. Religião, eles falam que é invenção, dos homens. Ah depois vai de como essa pessoa foi criada. Como os princípios que ela tem, né. Porque religião, fé não é eu falar que tenho fé não. Eu tenho que sentir. Não é questão deu querer, é questão deu sentir. Entrevista Violeta Eu acho que ela diminui (a religião diminui a fé) Mas eu acho que quem tem (fé) ... Muitas vezes, como ela disse... na religião eles fogem um pouco, para que a gente diminua a fé da gente, não é não? Mas a gente com aquela... não... não... vamos dizer, não leva aquilo em consideração, e segue a fé que a gente tem. Entrevistada Jasmim Eu acho que a fé, não quer dizer que seja só fé religiosa. É a fé em qualquer coisa, né? Que você sinta na vida, em seu interior. Isso, a fé é um valor. Eu considero mais assim, como um valor. Agora quando você tem a fé sobre o aspecto religioso, ai é muito bom também. Entrevista Sempre Viva Não, a fé eu acho que é alguma coisa que nasce no coração da gente, que a gente tem e guarda, porque às vezes tem muita gente que fala que tem religião e não tem fé.Eu não acho que fé é a mesma religião não. Entrevistada Margarida

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Eu acho que fé é o seguinte... primeiro lugar eu sempre falo: religião não salva ninguém. Ninguém. A única coisa que salva a pessoa primeiro é acreditar num ente supremo que é Deus, segundo ser bem intencionado. Está salvo, não precisa de ter religião não. Ele tento a fé que existe um poder: é Deus...Entrevistado Lirio

Cabem aqui algumas considerações. As transformações de sentido indicam a

descentralização do discurso institucional e da instituição católica, num deslocamento

do que antes era considerado sagrado e inquestionável. Apesar do movimento de

dúvida, há um retorno às significações aprendidas: a idéia de salvação, a leitura da

Bíblia, a necessidade de vincular-se a uma religião. O modelo tridentino no qual a

obrigatoriedade dos sacramentos era sinal e condição de ascensão ao mundo

transcendental e garantia da salvação, vê-se questionado, sendo questionada a própria

concepção de ser a religião sagrada – dada como sinal da presença de Deus. Tudo isso

mostra que há um processo de desterritorialização dos modelos aprendidos. Por outro

lado, todos os entrevistados, ao afirmarem a necessidade da fé, remetem a um novo

universo de valor – ainda em processo de significação, no qual há a percepção da

necessidade de crer em algo que possa promover a significação do homem e da vida. O

numinoso não está fixado, não necessariamente tem "imagem e semelhança", porém

provoca sentimentos que escapam à significação discursiva das representações.

A intensidade do existir é que produz o sentimento religioso, a religiosidade. E

ela independe das instituições religiosas. Aqui Durkheim, Oswad de Andrade e Guattari

novamente contribuem para o entendimento dos depoimentos. O primeiro, ao afirmar

que o sagrado é aquilo que nos eleva acima de nós mesmos e que o homem o percebe

pela força dos sentimentos que escapam às representações. O segundo, ao argumentar

sobre o sentimento órfico, “sentimento universal que marca todos os povos civilizados e

primitivos”, que escapa à racionalidade e gera a criação. O terceiro, ao postular sobre a

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intensidade de fluxos que atravessam a subjetividade, produzindo novos significados,

sentimento pático que enuncia universos de valor.

A idéia de transformação perpassa os três autores escolhidos e permite entender

não apenas o processo de subjetivação, mas o sincretismo simbólico religioso.

Ainda que na história recomposta de Sabinópolis a marca da religiosidade institucional

tridentina seja forte, ela é atravessada pela religiosidade tradicional popular onde a

prática da oração, dos ritos familiares, das festas, dos cantos e do culto aos santos se

mantém, ao mesmo tempo que se tem nos discursos a presença de um questionamento

sobre a religiosidade instituída e a busca por uma religiosidade que, diferindo do

modelo patriarcal, dê significado á multiplicidade de experiências.

O modelo patriarcal vivido por meio da religião e da política não comporta a

diversidade e alimenta sentimentos de exclusão, de negação, nutrindo uma cultura de

repressão às diferenças, antes entendidas como inferioridade, hoje como possibilidade

de modos de existir. A negação da mulher, do negro, a afirmação do poder masculino

através da figura do líder religioso, político e familiar ainda impedem uma prática

política partidária e educativa fundamentada no diálogo, na administração do conflito

necessário à convivência. O conflito ainda é visto como indisciplina, desobediência,

insubordinação. Entretanto, há uma abertura para outros possíveis.

De outro lado, na memória dos entrevistados há a marca dos grandes encontros

religiosos e dos tempos em que as celebrações reuniam os grupos em torno de um culto,

de uma festa, das procissões. Em que a beleza dos cantos e do rito promovia a emoção

do encontro.Um momento de socialização em que a cidade parava para celebrar seus

santos. Aí se compreende a importância da festa do Rosário, celebrada em agosto, que

promove a mistura de todos os modos aprendidos, pois, nela, folclore, sagrado, profano,

se misturam. Há a alegria da fé, da musicalidade negra, dos tambores dos cablocos, da

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irreverência dos bonecos, há a possibilidade de ruptura do tempo e a diversidade pode

expressar-se.

Como síntese de todas essas idéias, cito, para encerrar essas reflexões, o

argumento de Oswald de Andrade:

O que é a História, senão um contínuo revisar de idéias e de rumos?... nós brasileiros, campeões da miscigenação tanto da raça como da cultura, somos a Contra-reforma, mesmo sem Deus ou culto. Somos a Utopia realizada bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e mecânico do Norte. Somos a Caravela que ancorou no paraíso ou na desgraça da selva, somos a Bandeira estacada na fazenda. O que precisamos é nos identificar e consolidar nossos perdidos contornos psíquicos, morais e históricos. (ANDRADE, 1972:153)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANDRADE, Owasld de. Do Pau-Brasil à antropofagia e as Utopias. OBRAS COMPLETAS. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

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AZZI, Riolando. O catolicismo popular no Brasil - aspectos históricos. Petrópolis: Vozes, 1978.

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2004.

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Foto da Igreja São Sebastião, do inicio do século 1903

Foto da Igreja São Sebastião, largo da matriz, década de 60

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Visão parcial da cidade, década de 60

Visão parcial da cidade, ano de 2005

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Sobrado de inicio do séc.XIX onde funcionou a Prefeitura Municipal de Sabinopolis

Vista da Rua Monsenhor Amantino,2005

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Largo dos Barroso, atividade escolar do Grupo Sabino Barroso,final do séc.XIX(?)

Largo dos Barroso, construção da atual Praça Monsenhor Amantino.

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Festa do Rosário, década de 60, foto da cablocada, Rua Monsenhor Amantino

Festa do Rosário, década de 60 ,marujada, ao fundo casarões do final do século XIX.

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Foto da década de 70, prédio da Prefeitura.

No plano inferior, atual sede da Prefeitura Municipal de Sabinopolis.

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Vista parcial da cidade, do bairro do Rosário, primeiro plano década de 60.

Segundo plano ano de 2005

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Igreja do Rosário, fundada pela Irmandade N.Sra do Rosário, séc.XIX

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Vista parcial dos bairros periféricos, no plano superior década de 60,

no inferior ano de 2005.

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Igreja Missionária Pentecostal, fundada em 1969,crianças por ela atendida através

da BEM Bem Estar do Menor.

Década de 60, ônibus intermunicipal, ao fundo ruínas do antigo Cinema

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Igreja São Sebastião ao fundo, monumento em homenagem a Mosenhor Amantino,2005

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Foto de peça teatral, interior do Cinema. Possivelmente,década de 50.

Personagens folclóricos da Festa do Rosário, papai e mamãe vovó, década de 60

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Foto de Sabino Barroso, personagem do qual origina o nome da cidade.