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Stella Teresa Aponte Caymmi O Portador Inesperado A obra de Dorival Caymmi (1938-1958) Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz Rio de Janeiro 24 de Março de 2006

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Stella Teresa Aponte Caymmi

O Portador Inesperado A obra de Dorival Caymmi

(1938-1958)

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz

Rio de Janeiro 24 de Março de 2006

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Stella Teresa Aponte Caymmi

O Portador Inesperado A obra de Dorival Caymmi (1938-1958)

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz Orientador

Departamento de Letras - PUC-Rio

Profa. Heidrun Krieger Olinto Departamento de Letras - PUC-Rio

Prof. Frederico Augusto Liberalli de Góes Faculdade de Letras - UFRJ

Profa. Marília Rothier Cardoso Departamento de Letras - PUC-Rio

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia e

Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 24 de março de 2006

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Stella Teresa Aponte Caymmi

Graduou-se em Comunicação Social (Jornalismo) pela PUC-Rio, em 1986. Ingressou no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio, Mestrado, em 2004, e Doutorado, em 2006. Publicou artigos em jornais e revistas nacionais, além de perfis biográficos para songbooks de artistas brasileiros, pela Editora Irmãos Vitale. Publicou o livro Dorival Caymmi: o mar e o tempo, em 2001, pela Editora 34, finalista do Prêmio Jabuti (2002), da Câmara Brasileira de Livros, na categoria Biografia-Reportagens. Atuou em congressos, seminários e palestras sobre biografia e música popular brasileira.

Ficha catalográfica CAYMMI, Stella Teresa Aponte

O portador inesperado – a obra de Dorival Caymmi (1938-1958) / Stella Teresa Aponte Caymmi; orientador: Júlio Cesar Valladão Diniz. – Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Letras, 2006.

151 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras. Inclui referências bibliográficas. 1. Letras - Teses. 2. Cultura brasileira. 3. Música

Popular. 4. Recepção de obra. 5. Caymmi, Dorival. I. Diniz, Júlio Cesar Valladão. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.

CDD:800

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Para meus pais, Nana e Gilberto, e meus avós, Stella e Dorival,

com todo o meu amor.

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Agradecimentos Ao meu orientador, Professor Júlio César Valladão Diniz, pela inteligência, amizade e dedicação. À Professora Heidrun Krieger Olinto, pela inspiração e transpiração amorosa. Ao Professor Frederico Góes, pela gentileza e generosidade. À Professora Marília Rothier Cardoso, pelo carinho e atenção. Ao CNPq, à Capes e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não poderia ter sido concretizado. À Francisca Ferreira de Oliveira pelo apoio constante. À Regina Paganotti, pelo carinho e colaboração. À Simone Malaguti Caymmi, Regina Padilha e Clarice Abdala, pelo incentivo decisivo. Ao Professor Luiz Lima, pelos valiosos esclarecimentos sobre Fernand Braudel. À Professora Ligia Vassalo, pela generosidade. Aos queridos colegas Luciana Gattass, Luciana Arnaud, Roberto Dutra, Eduardo Roberto Severino, Angeli Rose do Nascimento, Josias Costa Jr., Juliana Maia e Myrtes Folegatti, pelas contribuições para este trabalho. À Beatriz Bloch, pela ajuda inestimável. Aos amigos Consuelo Chevrand, Edna Tikerpe, Rejane Guerra, Hugo Rojas, Guilherme Motta, Elisa Galeffi e José Enrique Barreiro, pelo carinho e força em todas as horas. À minha afilhada Nur Khattab Chevrand, pelo amor e apoio espiritual. À Evelyn Dizitzer, Ricardo Valença, Ricardo Ferreira, Lilian May, Victor Pecsen e Ana Paula Menna Barreto pelo cuidado e atenção.

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Resumo

Caymmi, Stella Teresa Aponte; Diniz, Júlio Cesar Valladão. O portador

inesperado – a obra de Dorival Caymmi (1938-1958). Rio de Janeiro, 2006. 151 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O portador inesperado – a obra de Dorival Caymmi (1938-1958) é uma

investigação que tem por objetivo traçar um mapeamento parcial da recepção da

crítica cultural à obra de Dorival Caymmi, compositor e cantor da Música Popular

Brasileira, de 1938 a 1958, a partir da descrição de horizontes de expectativa

subjacentes à circulação da produção do artista baiano. Este período compreende

desde a estréia do artista no Rio de Janeiro até o surgimento da Bossa Nova,

responsável pela mudança da canção popular brasileira nos anos 1950. A crítica

estética e cultural é representada por pesquisadores e críticos de música e

literatura; artistas de modo geral, mas especialmente cantores, compositores e

músicos; jornalistas e intelectuais. Considerando a música na sua dimensão

textual, a perspectiva utilizada neste estudo será a da estética da recepção, no

âmbito dos estudos literários, representado pelo pensamento de Hans Robert

Jauss. A partir dos conceitos propostos por Jauss e sua adaptação ao campo da

música, será também investigada a permanência e atuação da obra de Dorival

Caymmi no desenvolvimento da música popular brasileira e, para tanto, será

também convocada a contribuição do historiador Fernand Braudel.

Palavras-chave Cultura Brasileira; Literatura; Música Popular; Recepção; Dorival Caymmi.

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Abstract

Caymmi, Stella Teresa Aponte; Diniz, Júlio Cesar Valladão (Advisor). The

unexpected bearer – the work of Dorival Caymmi (1938-1958). Rio de Janeiro, 2006. 151 p. MSc. Dissertation – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The unexpected bearer – the work of Dorival Caymmi (1938-1958) is a

study whose aim is to provide a partial mapping of the reception to the cultural

criticism of the work of Dorival Caymmi, composer and singer of Música Popular

Brasileira (Brazilian popular music), from 1938 until 1958. In order to

accomplish this goal, this dissertation will survey the horizon of expectations

underlying the production of the Bahian artist, beginning with his debut in Rio de

Janeiro and spanning until the dawn of Bossa Nova, which altered the panorama

of the Brazilian popular song in the 1950s. The cultural and historical criticism is

here represented by researchers and critics of literature and music, artists in

general, especially singers, composers and musicians, along with journalists and

intellectuals as well. Considering the music in its purely textual dimension we

employ a method borrowed from literary criticism, namely Hans Robert Jauss’

“reception-aesthetic”. Utilizing the concepts proposed by Jauss as well as their

adaptation to the music field, we examine the permanence and role of Caymmi’s

work in the development of the Música Popular Brasileira. In this particular

portion of the study, we rely on the contribution of historian Fernand Braudel.

Keywords Brazilian culture; Literature; Popular music; Reception; Dorival Caymmi.

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Sumário

1. Introdução 10

1.1. Apresentação 10

1.2. Objetivos 11

1.3. Percurso 12

2. Estética da Recepção 13

2.1. Considerações Gerais 13

2.2. Crítica às Teorias Literárias Marxista e Formalista 15

2.3. Conceitos Fundamentais da Estética da Recepção 17

2.4. As Sete Teses 19

3. Recepção à Obra de Dorival Caymmi: 1938-1945 – Mapeamento I 31

3.1. Consideração Inicial 31

3.2. Época de Ouro 31

4. Recepção à Obra de Dorival Caymmi: 1946-1958 – Mapeamento II 62

4.1. Fase de Transição ou Pré-Bossa Nova 62

4.1.1. Canções Urbanas 67

4.2. A Bossa Nova e Caymmi 99

5. Dorival Caymmi – O Portador Inesperado 110

5.1. O Portador Inesperado e a História Atuante 110

5.2. Recepção Inicial 113

5.3. Recepção no Período de 1947-1957 118

5.4. Caymmi e a Bossa Nova 125

5.5. Jauss e Braudel: a Questão da Permanência 134

5.6. Considerações Finais 138

6. Referências Bibliográficas 141

7. Anexos

7.1. Anexo 1 - Lista dos Jornais e Revistas Citados 146

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Yet the instant of actuality is all we ever can know

directly. The rest of time emerges only in signals

relayed to us at this instant by innumerable stages

and by unexpected bearers.

George Kubler, em The Shape of Time.

Remarks on The History of Things. New Haven, London: Yale UP,

1962, p.17

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1. Introdução

1.1. Apresentação

Próximo de completar 92 anos, Dorival Caymmi, cantor e compositor, um

dos últimos representantes vivos da chamada Época de Ouro da Música Popular

Brasileira, permanece hoje uma referência importante no cenário cultural do país,

não obstante tenha cessado sua atividade profissional e suas aparições na mídia

sejam cada vez mais raras. Entretanto, um levantamento do que foi publicado pela

imprensa ao longo de sua carreira, iniciada em 1938, particularmente em torno das

comemorações e homenagens pelos seus 90 anos, em 2004, além de gravações e

citações de artistas de várias gerações e perfilados nos mais diversos gêneros

musicais, permite constatar sua surpreendente atualidade, sem esquecer que o

artista é referência imprescindível nos livros de história e críticas da música

popular do país.

Sua influência no cenário artístico ultrapassou o campo da música e atua em

outros contextos culturais. Apenas para citar alguns exemplos recentes: a coleção

da grife Totem Praia1, no evento Fashion Rio, no Museu de Arte Moderna do Rio

de Janeiro, em 2005, foi inspirada na obra do baiano, apresentando, na trilha

sonora do desfile, registros originais do artista; Caymmi, em novembro de 2005,

foi tema da sexta edição do projeto A Imagem do Som, lançado no Paço Imperial,

no Rio de Janeiro, em que “80 artistas visuais contemporâneos de diferentes áreas

de atuação desenvolveram livremente suas criações para as 80 músicas” do

compositor, em que o resultado pode ser conferido em exposição e livro (Taborda,

2005, p. 9); sua maciça presença na trilha sonora JK, minissérie da TV Globo, de

2006, ambientada em grande parte nos anos 1940 e 1950, auge da carreira do

1 UOL Últimas Notícias (http://moda.uol.com.br/ultnot/2005/06/18/ult2976u103.jhtm). Acesso em 02.03.2006.

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compositor, com citações de “Maracangalha”, “Só louco”, “A vizinha do lado”,

“Sábado em Copacabana” – as duas últimas presentes em CD da gravadora Som

Livre –, entre outras.

1.2. Objetivos

O objetivo desta dissertação é reconstruir parcialmente os horizontes de

expectativas que nortearam a recepção da crítica estética e cultural à obra de

Dorival Caymmi, entre 1938 e 1958, quando surgiu o movimento da Bossa Nova

que mudou a face da canção popular brasileira, com a gravação de “Chega de

saudade” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), por João Gilberto, em disco de 78

rpm, em 10 de julho de 1958. Em seguida, a partir deste mapeamento, será feita

uma investigação sobre a atuação e a permanência do compositor no

desenvolvimento da Música Popular Brasileira, à luz dos pressupostos teóricos da

Estética da Recepção, de Hans Robert Jauss, aplicados ao campo da música,

compreendida na sua dimensão textual, e dos conceitos da História das

Mentalidades, de Fernand Braudel.

O levantamento da crítica estética e cultural à obra de Dorival Caymmi,

entre 1938 e 1958, foi feito a partir de artigos, entrevistas, críticas e notas

publicados na imprensa da época; artigos e citações em livros sobre o período;

depoimentos; gravações em 78 rpm e long play (LP), de 10 e 12 polegadas;

programas de rádio; referências em cinema, televisão, artes plásticas, moda e

publicidade. A pesquisa do material da imprensa sobre o compositor, desde a

década de 30 até os dias atuais, reuniu um acervo de cerca de sete mil registros da

imprensa escrita, entre jornais e revistas, a partir do qual foi feita uma criteriosa

seleção. A crítica estética e cultural será representada por pesquisadores e críticos

de música e literatura; artistas de modo geral, mas especialmente cantores,

compositores e músicos, além de jornalistas e intelectuais.

A escolha da Bossa Nova como limite desta pesquisa se deveu à percepção

de que somente a partir do movimento se constituiu o horizonte de expectativas

em condições de compreender e avaliar, na sua real dimensão, as inovações

estéticas de Dorival Caymmi, o que possibilitou, na perspectiva da fusão de

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horizontes, que o compositor continuasse a atuar no cenário da Música Popular

Brasileira até os dias atuais.

1.3. Percurso

O segundo capítulo desta dissertação apresenta a teoria da Estética da

Recepção, a partir do texto inaugural de Hans Robert Jauss, A História da

Literatura como Provocação à Teoria Literária, de 1967, das reformulações e

autocríticas empreendidas na década seguinte pelo teórico alemão, além da análise

e crítica de outros autores.

O terceiro e o quarto capítulos apresentam o mapeamento parcial da

recepção da obra de Dorival Caymmi, com a reconstrução dos horizontes de

expectativas do período estudado, em que são descritas as modificações destes

horizontes, nas fases denominadas pelos historiadores e críticos de Música

Popular Brasileira de Época de Ouro, de transição ou Pré-Bossa Nova e de Bossa

Nova.

O quinto, e último capítulo, analisa o mapeamento feito nos dois capítulos

anteriores, avalia as transformações sofridas na recepção do compositor ao longo

do tempo, aprofunda a compreensão da relação de Dorival Caymmi com a Bossa

Nova, discute as razões da permanência do compositor, à luz das teorias de Hans

Robert Jauss e Fernand Braudel, e apresenta as considerações finais.

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2. Estética da Recepção

2.1. Considerações Gerais

Em 1967, com a publicação de A História da Literatura como Provocação à

Teoria Literária, texto inaugural da Estética da Recepção, Hans Robert Jauss

causou uma revolução epistemológica na historiografia literária e na teoria da

literatura. Alguns meses antes, em 13 de abril, ele havia ministrado a conferência

“O que é e com que fim se estuda história da literatura”, na Universidade de

Constança, Alemanha, quando enunciou pela primeira vez as sete teses da Estética

da Recepção, que desenvolveu em seu livro.

A teoria formulada por Jauss (1994), que além de teórico é também

historiador da literatura, provocou grande impacto nos meios acadêmicos dos

estudos de literatura da época, ao reivindicar o ingresso da história na metodologia

da análise do texto literário e ao investir contra as teorias em voga que

estabeleciam o primado absoluto do texto e ignoravam o papel do leitor na

experiência literária. O pesquisador alemão ressalta a presença, ainda em curso,

do legado platônico “na filosofia contemporânea da arte sempre que se concede à

verdade, manifestada pela arte, a primazia sobre a experiência da arte, na qual se

exterioriza a atividade estética como obra dos homens” (Jauss, 1979, p. 43). Para

ele, não faz sentido que o leitor de Dom Quixote, por exemplo, no momento da

sua produção, há quatrocentos anos, tivesse a mesma experiência estética que o

leitor de Quixote do século XX1. Jauss investe contra uma noção que fechava a

obra literária numa interpretação única e imutável, o que tornava a historiografia

literária ou impossível ou decadente. A idéia de História é vinculada a processos

1 Jorge Luis Borges antecipou muitas das discussões das novas teorias literárias em seu conto “Pierre Menard, autor de Quixote” (Ficções). A esse respeito, conferir Olinto, Heidrun Krieger. “Letras na página, palavras no mundo”. Rio de Janeiro: Palavra, 1, 1993. p. 9.

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de mudança. Já nos primeiros parágrafos do texto inaugural da estética da

recepção, é traçado um panorama desfavorável da história da literatura existente:

A história da literatura vem, em nossa época, se fazendo cada vez mais mal-afamada – e, aliás, não de forma imerecida. Nos últimos 150 anos, a história dessa venerável disciplina tem inequivocamente trilhado o caminho da decadência constante. (...) Como matéria obrigatória do currículo do ensino secundário, ela já quase desapareceu na Alemanha. No mais, histórias da literatura podem ainda ser encontradas, quando muito, nas estantes da burguesia instruída. (...) Nos cursos oferecidos nas universidades, a história da literatura está visivelmente desaparecendo. (Jauss, 1994, p. 5-6)

Jauss aponta duas modalidades de historiografia literária em voga ainda nos

anos 60. Uma, buscando fugir de uma enumeração puramente cronológica,

organizava-se em conceitos gerais como gêneros, estilos de época, entre outros, e

a partir destes apresentava obras e autores, estes sim em ordem cronológica. Faz

parte deste modelo historiográfico a maioria das histórias das literaturas

modernas. A outra modalidade, assumidamente cronológica, agrupava seu

material no esquema “vida e obra”, padrão seguido pelos historiadores desde a

antigüidade clássica. Para Jauss (1994, p. 7), ambos os modelos são

problemáticos. As obras do primeiro modelo enfrentam “a dificuldade – crescente

à medida em que se aproximam do presente – de ter de fazer uma seleção dentre

uma série de autores e obras cujo conjunto mal se consegue divisar”. Acrescenta,

ainda, o fato de ser “malvisto que um historiador da literatura profira veredictos

qualitativos acerca de obras de épocas passadas”. O ideal de objetividade que

move tal historiador acaba por levá-lo a uma encruzilhada: ele fica limitado à

(...) apresentação de um passado acabado, deixando ao crítico competente o juízo acerca da literatura do presente inacabado e apegando-se ao cânone seguro das ‘obras-primas’, permanecerá ele, o mais das vezes, em sua distância histórica, uma ou duas gerações atrasado em relação ao estágio mais recente do desenvolvimento da literatura. (p. 8)

Para Jauss, esse historiador torna-se um parasita da crítica. A propósito do

texto de fundação da Estética da Recepção e sua repercussão, Heidrun Krieger

Olinto afirma que o

(...) texto manifesto (...) tornou evidente, no campo das letras, uma crise latente na compreensão da história da literatura, motivando nos anos subseqüentes reformulações fundamentais nos pressupostos epistemológicos, teóricos e políticos que moldam as discussões sobre literatura, história e história da literatura (...)

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[com] contribuições francesas, alemãs e americanas recentes para novas propostas teóricas e práticas na escritura de histórias da literatura2.

Entre as referidas propostas teóricas, estão as que discutem conceitos como

a história imediata e a idéia de historiador do presente e a nova história como

abordada por Jean Lacouture (1990) e Pierre Nora (1984), respectivamente.

2.2. Crítica às Teorias Literárias Marxista e Formalista

O fundador da Estética da Recepção dirige a sua crítica especialmente aos

modelos teóricos da Teoria Literária Marxista e da Escola Formalista. Jauss

(1979) explica que

Via então a oportunidade de uma nova teoria da literatura, exatamente não no ultrapasse da história, mas sim na compreensão ainda não esgotada da historicidade característica da arte e diferenciadora de sua compreensão. Urgia renovar os estudos literários e superar os impasses da história positivista, os impasses da interpretação, que apenas servia a si mesma ou a uma metafísica da “écriture”, e os impasses da literatura comparada, que tomava a comparação como um fim em si. Tal propósito não seria alcançável através da panacéia de taxinomias perfeitas, dos sistemas semióticos fechados e dos modelos formalistas de descrição, mas tão só através de uma teoria da história que desse conta do processo dinâmico de produção e recepção e da relação dinâmica entre autor, obra e público, utilizando-se para isso da hermenêutica da pergunta e da resposta. (p. 47-48)

O pesquisador alemão apresenta a teoria e o método da Estética da

Recepção como resposta ao impasse entre a literatura e a história que se

materializava na oposição entre as escolas Formalista Russa e Marxista. Ele

observou que os dois caminhos teóricos oferecidos por essas escolas se excluem

mutuamente, configurando uma crise que as impede de prosseguir. Tal impasse,

diagnostica Jauss, se deve à impossibilidade de ambos os métodos darem uma

resposta satisfatória à relação entre literatura e história, seja no que privilegia a

chave estética, a Escola Formalista, seja na chave da representação, a Escola

Marxista. Neste sentido, ele observa que

Por caminhos opostos, ambas tentaram resolver o problema de como compreender a sucessão histórica das obras literárias como o nexo da literatura, e ambas mergulharam, por fim, numa aporia cuja solução teria exigido que se estabelecesse

2 Ementa da disciplina Teoria da História da Literatura, Programa 2005.1, p. 1, do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio.

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uma nova relação entre a contemplação histórica e a contemplação estética. (Jauss, 1994, p. 15)

Entre as críticas à Escola Marxista, destaca-se o apego a “uma delimitação

nacional da história da literatura” (Jauss, 1994, p. 16), o problema da relação entre

literatura e sociedade, que faz objeções à teoria do reflexo3 (a literatura entendida

como espelhamento da sociedade), que, segundo ele, não apreendia a literatura

moderna: “Somente uma porção reduzida da produção literária é permeável aos

acontecimentos da realidade histórica e nem todos os gêneros possuem força

testemunhal no tocante à lembrança dos motivos constitutivos da sociedade” (p.

16).

O teórico assinala, entre as fraquezas da historiografia literária marxista, a

heterogeneidade do simultâneo, isto é, a multiplicidade de fenômenos literários

que não são redutíveis a uma unidade em um momento histórico. Ainda que uma

obra importante venha a confirmar a teoria da representação, ditando o rumo do

processo literário, o que fazer com todas as produções literárias do mesmo período

histórico que “correspondem a uma tendência já ultrapassada de gosto, mas cujo

efeito sobre a sociedade” (Jauss, 1994, p. 16) parece pesar tanto quanto a obra

inovadora? E, finalmente, Jauss critica a construção de cânones, prática cara a

essa escola.

As críticas que Jauss faz aos formalistas russos são menos contundentes.

Reconhece que no desenvolvimento do método da Escola Formalista a

historicidade da literatura, a princípio negada, é retomada. Ele assim comenta:

(...) a escola formalista começou a buscar seu próprio caminho de volta rumo à história. Essa sua nova proposta distinguia-se da velha história da literatura pelo fato de abandonar a concepção básica desta última de um processo linear e continuado, e por contrapor, assim, ao conceito clássico de tradição um princípio dinâmico de evolução literária. O prisma da continuidade perdia, pois, sua velha primazia no conhecimento histórico. A análise da evolução literária desnuda, na história da literatura, a autogeração dialética de novas formas. (Jauss, 1994, p. 19)

Entretanto, ainda é uma história da literatura insuficiente e insatisfatória

aquela proposta pela Escola Formalista. Entender uma “obra de arte em sua

história”, como uma evolução de sistemas, através da “influência das obras sobre

a obra”, como considerava F. Brunetière, citado por Jauss (1994, p. 20), ainda

“não é o mesmo que contemplá-la na história”. Não se trata, para o teórico

alemão, de fazer uma historiografia interna, no interior da história da literatura 3 A teoria do reflexo, segundo Jauss, não apreendia a literatura moderna.

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entendida como transformação formal, estrutural, estilística e semântica, mas de

conhecê-la naquilo que a circunscreve e delimita, isto é, “no horizonte histórico de

seu nascimento, função social e efeito histórico” (p. 20). Ou seja, não basta um

olhar desde dentro, mas desde fora do sistema literário, para não cair numa

história da literatura esquizofrênica. Jauss ambiciona resolver o dilema que põe as

Escolas Formalista e Marxista em campos adversários, através da Estética da

Recepção.

2.3. Conceitos Fundamentais da Estética da Recepção

Para o teórico alemão, está no leitor, que deve ser entendido como leitor

socializado e inserido em contextos históricos concretos, a resposta e a chave para

abordar os dois aspectos enfatizados pelas duas escolas, Formalista e Marxista,

erroneamente apresentados como opostos e excludentes. O leitor não é uma tábula

rasa sobre a qual o texto vai imprimir seu sentido. Ao contrário, diante de um

texto literário, ele traz consigo o repertório das obras já lidas, dos valores e idéias

que regem o sistema literário a que pertence, portanto do seu contexto, que serão

as molduras através das quais vai interpretá-lo. Não se lê um livro da mesma

maneira, sobretudo em épocas diversas. Encarando o fenômeno literário como um

processo dialógico, isto é, como um processo de comunicação e, portanto,

“descobrindo” o aspecto oculto do papel do leitor como verdadeiro destinatário da

literatura, Jauss pensa ter encontrado uma teoria, método e resposta para o

impasse entre as duas correntes que enfatizam, antes de mais nada, a historicidade

do processo. Argumenta que a experiência estética é vivida pelo leitor, elemento

praticamente esquecido pelas duas escolas mencionadas no estudo do fenômeno

literário e critica o papel secundário relegado ao leitor, quase inexistente, em

ambas as teorias:

Leitores, ouvintes, espectadores – o fato público em suma, desempenha naquelas duas teorias literárias um papel extremamente limitado. A escola marxista não trata o leitor – quando dele se ocupa – diferentemente do modo como ela trata o autor: busca-lhe a posição social ou procura reconhecê-lo na estratificação de uma sociedade. A escola formalista precisa dele apenas como o sujeito da percepção, como alguém que, seguindo as indicações do texto, tem a seu cargo distinguir a forma ou desvendar o procedimento. Pretende, pois, ver o leitor dotado da

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compreensão teórica do filólogo, o qual, conhecedor dos meios artísticos, é capaz de refletir sobre eles – do mesmo modo como, inversamente, a escola marxista iguala a experiência espontânea do leitor ao interesse científico do materialismo histórico, que deseja desvendar na obra literária as relações entre a superestrutura e a base. Contudo – e como afirmou Walther Bulst –, texto algum jamais foi escrito para ser lido e interpretado filologicamente por filólogos, ou – acrescento eu – historicamente por historiadores. Ambos os métodos, o formalista e o marxista, ignoram o leitor em seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o histórico: o papel do destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa. (Jauss, 1994, p. 22-23)

Jauss quer demonstrar que pode estar justamente na relação entre literatura e

leitor o nexo entre as obras literárias. O escritor, ao escrever uma obra, tem em

mente (também) o leitor, o que configura um processo comunicativo que faz dele

o seu destinatário. Pensá-lo assim aproxima a Estética da Recepção das teorias de

comunicação que tiveram amplo desenvolvimento na segunda metade do século

XX.

A partir do leitor empírico, o fenômeno literário se oferece como fenômeno

estético e, ao mesmo tempo, como fenômeno social. Isto porque reconhece na

relação literatura-leitor implicações estéticas e históricas. A partir deste enfoque, a

literatura, em seu nexo com o leitor, se viabiliza para uma historiografia. A

implicação estética está no fato de a recepção primária de uma obra pelo leitor já

envolver um juízo estético quando ele a compara com outras obras já lidas. A

implicação histórica, por sua vez, surge da possibilidade de se estabelecer uma

série histórica de recepções de uma obra, a partir da compreensão dos leitores no

momento da produção, isto é, a partir do momento em que a compreensão do

texto se enriquece de geração a geração (visão essencialista de Jauss, que será

muito criticada, como se verificará na análise da quarta tese da Estética da

Recepção), permitindo descrever o significado histórico da obra e “tornando

visível sua qualidade estética” (Jauss, 1994, p. 23). Este parece ser o cerne da

Estética da Recepção, teoria e método: a dimensão da recepção e efeito (estético)

da obra sobre o leitor. Para Jauss, a inteligibilidade do fenômeno literário se

encontra aí. Ele propõe uma história das interpretações da literatura. A aparente

“oposição entre o aspecto estético e o aspecto histórico da obra” (p. 23) é, para

ele, mediada pelo leitor. É no leitor-mediador que os aspectos estético e histórico

vão se encontrar, se conjugar. É nele que as oposições vão se resolver. E o método

que vai dar ao leitor este papel decisivo, segundo a sua defesa, é a Estética da

Recepção. “Isso” – salienta Jauss (1994, p. 73) – “numa época na qual o

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estruturalismo havia desacreditado o conhecimento histórico e começava a

expulsar o sujeito dos sistemas de explicação do mundo”.

O leitor, para Jauss (1994, p. 73), passa a ser a terceira instância da história

da literatura, onde até então, “tradicionalmente, havia sido uma história dos

autores, das obras, dos gêneros e dos estilos”. A partir da Estética da Recepção, é

possível uma compreensão histórica da literatura, baseada na experiência estética

do leitor. O leitor realiza a atualização – outro conceito importante para Jauss – da

obra a partir das suas molduras.

Jauss vai buscar o leitor concreto da obra, historicamente situado no tempo e

no espaço. O leitor, na perspectiva da Estética da Recepção, conforme expõe

Regina Zilberman (1989, p. 114), é o “leitor explícito, indivíduo histórico que

acolhe positivamente ou negativamente uma criação artística, sendo, pois,

responsável pela recepção (v.) propriamente dita dessa”. Este leitor, bem

entendido, não é o leitor comum; é a comunidade de leitores que compartilha o

mesmo horizonte de expectativas circunscrito em uma época específica de uma

determinada sociedade.

2.4. As Sete Teses

À maneira de um manifesto, a Estética da Recepção é formulada por Hans

Robert Jauss em sete teses. Nas quatro primeiras teses, ele apresenta os conceitos

fundamentais em que se apóia a nova historiografia literária. Nas três últimas, são

expostos os princípios metodológicos da nova teoria.

Já na primeira tese, Jauss surpreende ao afirmar que a relação dialógica é o

pressuposto da história da literatura. O leitor, à frente do autor e da obra, passa a

ser a figura central da renovação historiográfica proposta pelo teórico alemão,

com base na estética da recepção e do efeito. A partir desta moldura dialógica, a

obra é atualizada pelo leitor. Esta atualização diferirá de acordo com a época;

assim, em épocas diferentes, novas atualizações serão feitas sem necessariamente

excluir as anteriores, mas certamente modificando-as.

A partir da mudança proposta por Jauss, a literatura passa a ser encarada

como evento, como acontecimento, como gesto que mobiliza todo um universo

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comunicativo complexo. Ele descreve a história da literatura como “um processo

de recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários

por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do

crítico, que sobre eles reflete” (Jauss, 1994, p. 25). O leitor, aqui, deverá ser

entendido como leitor crítico.

O pesquisador alemão estabelece um circuito que considera escritor-obra-

leitor no processo de experiência literária. O escritor, que está na instância da

produção da obra literária, é, ele mesmo, um leitor que está sujeito à mesma

moldura histórico-cultural do leitor de sua época, para quem escreve. Por essa

razão é possível remontá-la. É sobre este aspecto que se assenta a segunda tese da

Estética da Recepção. Antecipando-se aos críticos, Jauss nega qualquer vestígio

de subjetividade ou psicologismo à sua teoria, o que a levaria a cair num

impressionismo vulgar. Para a análise objetiva da experiência literária, ele oferece

o conceito de horizonte de expectativas. Por horizonte de expectativas, Jauss

(1994, p. 27) entende o

(...) sistema de referências que se pode construir em função das expectativas que, no momento histórico do aparecimento de cada obra, resultam do conhecimento prévio do gênero, da forma e da temática de obras já conhecidas, bem como da oposição entre linguagem poética e a linguagem prática.

Há um “saber prévio” (p. 28), baseado em experiências anteriores –

experiências de leitura aí incluídas – que permite ao leitor compreender e receber

uma obra. O gênero romance policial é um excelente modelo desse tipo de

expectativa. Seu leitor busca os ingredientes costumeiros – e conta com eles para

esse tipo de literatura. Para os que argumentam acerca da dificuldade de se

remontar o horizonte de expectativa de obras mais antigas, Jauss defende que três

fatores podem resolvê-la:

Em primeiro lugar, a partir de normas conhecidas ou da poética imanente ao gênero; em segundo, da relação implícita com obras conhecidas do contexto histórico-literário; e, em terceiro lugar, da oposição entre ficção e realidade, entre a função poética e a função prática da linguagem. (Jauss, 1994, p. 29)

É na obra, compreendida dentro de um sistema comunicacional mais amplo

e mais complexo, que se encontram os elementos necessários para a descrição do

horizonte de expectativa no momento da sua produção. Jauss (1994) cita Dom

Quixote para exemplificar obras que atraem o leitor por evocarem gêneros, temas,

estilos ou formas familiares ao seu horizonte de expectativas para, em seguida,

contrariá-lo, com o propósito não apenas crítico, mas também estético. Cervantes

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rompe com o horizonte de expectativas do leitor de sua época, que esperava

encontrar em Dom Quixote os elementos habitualmente presentes nos “populares

romances de cavalaria, romances estes que a aventura desse seu último cavaleiro

parodia, então, profundamente” (Jauss, 1994, p. 28-29). Este é o tema da terceira

tese. A obra de valor, de qualidade, é aquela que, tal como Dom Quixote, contraria

a expectativa do leitor, obrigando-o a reestruturar o horizonte interno das suas

percepções. Esta idéia está em conformidade com os formalistas e estruturalistas,

que defendem o conceito de inovação para aludir à qualidade de uma obra. Jauss

introduz o conceito de distância estética da obra em relação ao horizonte de

expectativas dos leitores como um dos meios de avaliar seu valor estético. Isto

significa que uma obra de valor oferece as condições de ampliação e modificação

do horizonte de expectativa do leitor socializado. Por outro lado, obras que visam

exclusivamente atender ao horizonte de expectativas do seu público são

consideradas pejorativamente por ele de “ligeiras ou culinárias”, como a literatura

de massa. Regina Zilberman critica o conceito de distância estética como aferição

do valor do texto por considerá-la uma fórmula simplista e acrescenta, com plena

razão, que Jauss

(...) também não deixa de resvalar para o maniqueísmo comum à abordagem dos produtos da indústria cultural, nesse ponto solidarizando-se à posição de Adorno e dos teóricos da Escola de Frankfurt, tão combatidos em vários outros aspectos. E, mais significativamente, reitera a visão, neste caso, idealista, de arte autêntica ou superior, de reminiscência, certamente à revelia do autor, platônica. (Zilberman, 1989, p. 35)

Jauss (1994) herda o conceito de horizonte de Hans-Georg Gadamer, assim

como sua concepção de hermenêutica filosófica. Gadamer, por sua vez, herdou o

conceito de horizonte de expectativas de Edmund Husserl4, fundador da

fenomenologia. No livro Verdade e Método, Gadamer (1997) critica o intérprete

que pensa atingir o sentido “atemporalmente verdadeiro” de uma obra por ignorar

a “história do efeito (Wirkungsgeschichte) no qual se encontra enredada sua

própria consciência histórica”. O filósofo alemão adverte que aquele que defende

o objetivismo histórico nega “as premissas involuntárias e não arbitrárias, mas

4 “O objeto da consciência intencional não é experimentado como isolado, mas sempre dentro de um contexto, a partir do qual ele adquire o seu ‘perfil’. Este contexto é o horizonte, o que inclui, enquanto ‘horizonte interno’, tudo o que se pode saber acerca do objeto, e que inclui, enquanto ‘horizonte externo’, tudo o que se pode saber acerca das relações deste objeto com outros objetos” (Peter Naumann, em nota ao texto “Que significa a recepção dos textos ficcionais?”, de Karlheinz Stierle. In: LIMA (1979, p. 169).

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determinantes, que balizam a sua própria compreensão” (p. 37). Gadamer defende

a impossibilidade de reconstrução do horizonte histórico original, idéia que Jauss

vai subscrever, pois este sempre será abarcado pelo horizonte presente. Sempre

haverá, portanto, uma fusão de horizontes, outro conceito de Gadamer, que será

recuperado pelo fundador da Estética da Recepção. O horizonte de expectativa

atual de Dom Quixote – para nos mantermos no mesmo exemplo – englobará

todos os horizontes de expectativas, desde a data da sua produção.

A quarta tese também é profundamente influenciada por Gadamer, quando

Jauss aplica à literatura a lógica da pergunta e da resposta do filósofo alemão.

Através da reconstrução do horizonte de expectativa original da obra – sem

esquecer que tal operação é feita a partir da fusão de horizontes – é possível

reconstituir a pergunta para a qual o texto é a resposta, o que permite ao

pesquisador saber como a obra foi compreendida na época, se foi bem recebida, se

passou despercebida, se foi rejeitada, se promoveu alguma ruptura ou, ao

contrário, se adaptou-se ao contexto do período sem oferecer nenhuma inovação.

Por meio de um levantamento das obras contemporâneas ao texto em questão e do

conhecimento do público da época é feita a reconstituição. Trata-se de uma

operação hermenêutica que permite conhecer a história da recepção ao verificar a

diferença “entre a compreensão passada e a presente de uma obra” (Jauss, 1994, p.

35), que Gadamer (1997) chamará de Wirkungsgeschichte, cuja tradução mais

adequada é “história atuante”. Sem mudanças não há historiografia e Jauss

pretende, com isso, rejeitar “o dogma platonizante da metafísica filológica” (p.

35) que estabelece uma essência imutável ao texto, cabendo ao leitor unicamente a

tarefa de descobri-la. Ele se volta ainda contra qualquer tentativa de compreensão

modernizante da obra literária. O autor se refere ao “intérprete que, julgando-se

isento, eleva seu próprio pré-entendimento estético à condição de norma

inconfessa, modernizando irrefletidamente o sentido do texto antigo” (p. 36).

Jauss vai afirmar, ainda na quarta tese, que a obra literária contém

virtualmente em si mesma todo o potencial de sentido que será desdobrado em

sucessivas recepções com seu respectivo horizonte de expectativa. Esta afirmativa

é problemática no corpo teórico da Estética da Recepção, pois a idéia da obra

conter todo o potencial de sentido que será revelado nas sucessivas recepções está

muito próxima à idéia de essência da obra, que Jauss diz combater, e por isso foi

muito criticado. Além disso, ainda na quarta tese, ele não oferece uma

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argumentação consistente para a questão dos clássicos ou as chamadas obras-

primas, ponto em que ele discorda de Gadamer. O estranhamento causado no

leitor por uma obra de valor, no momento de sua produção, vai desaparecendo

com as sucessivas recepções, com os leitores dominando a inovação inicial. Tal

obra corre o risco de tornar-se, ela própria, “arte culinária”. A solução oferecida

por Jauss, de resto insuficiente, é sugerir que “um esforço particular faz-se

necessário para que se possa lê-la ‘a contrapelo’5 da experiência que fez-se hábito

e, assim, divisar-lhe novamente o caráter artístico” (Jauss, 1994, p. 32). Enquanto

uma obra suscitar perguntas e respostas interessantes, ela não perderá o status de

obra-prima. É o que parece ocorrer, por exemplo, com Shakeaspere, que inspira

uma numerosa produção acadêmica na atualidade. Jorge Luis Borges parece

concordar, quando afirma a seu próprio respeito:

Las emociones que la literatura suscita son quizá eternas, pero los medios deben constantemente variar, siquiera de un modo levísimo, para no perder su virtud. Se gastan a medida que los reconoce el lector. De ahí el peligro de afirmar que existen obras clásicas y que lo serán para siempre. Cada qual descree de su arte y de sus artificios. Yo, que me he resignado a poner en duda la indefinida perduración de Voltaire o de Shakespeare, creo (esta tarde de uno de los últimos días de 1965) en la de Schopenhauer y en la de Berkeley. Clásico no es um libro (lo repito) que necesariamente posee tales o cuales méritos; es un libro que las generaciones de los hombres, urgidas por diversas razones, leen con previo fervor y con una misteriosa lealdad.6

Gadamer (1997) entende os clássicos como mediadores entre o passado e o

presente, superando a distância histórica. Nesse ponto, Jauss discorda

enfaticamente do mestre ao afirmar que o texto literário

(...) antecipa caminhos da experiência futura, imagina modelos de pensamento e comportamento ainda não experimentados ou contém respostas a novas perguntas. É precisamente desse significado virtual e dessa função produtiva no processo da experiência que a história do efeito da literatura se vê subtraída quando se deseja colocar a mediação entre a arte passada e o presente sob o signo de tal conceito do clássico. (...) o clássico há de voltar nosso olhar para o fato de que, à época de sua produção, a arte clássica ainda não se afigurava ‘clássica’, mas, antes, terá outrora ela própria aberto novas perspectivas e pré-formado novas experiências, as quais somente em função da distância histórica – no reconhecimento do já conhecido – causam a impressão de que uma verdade atemporal se expressa na obra de arte. (Jauss, 1994, p. 39)

5 Contrapelo: conceito de Theodor Adorno, significando uma anti-história, a destruição construtiva da história (cfe. ADORNO, Theodor. "Crítica cultural e sociedade". Prismas. São Paulo: Ática, 1998, p. 25). 6 BORGES, Jorge Luis. “Sobre los clasicos”. In: Prosa Completa. Vol 2. Barcelona: Narradores de Hoy-Bruguera, 1980, p. 303.

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Em resumo, Jauss defende a recuperação do correto horizonte de perguntas

em torno do texto literário, incluídos aí os clássicos. Gadamer divisa no clássico o

protótipo de toda mediação histórica que, portanto, não necessita fazer a

superação da distância histórica entre o passado e o presente. O fundador da

Estética da Recepção entende passado e presente em relação dialógica. Desse

modo, uma obra do passado só emergirá no presente se o leitor atual propuser

novas perguntas que a tirem do seu isolamento. E, de fato, é o que se verifica na

prática.

As três últimas teses do momento da fundação da Estética da Recepção vão

tratar da historicidade da literatura em três aspectos: diacrônico, sincrônico e

função social da literatura. A diacronia, a série literária, assunto tratado na quinta

tese, é considerada por Jauss não como uma evolução, como defende a teoria

formalista, em que são relacionadas cronologicamente as inovações dentro do

sistema literário. Inovação e caráter artístico são sinônimos no entender dos

formalistas. Há uma visão organicista da literatura: em determinado período surge

uma nova forma, que se desenvolve, atinge o ápice, é automatizada e se desgasta,

entrando em decadência.

Na perspectiva da Estética da Recepção, o valor de um texto poderá ser

ignorado por longo tempo, até que em dado momento ele é descoberto, através da

pergunta correta no horizonte de expectativa propício à sua compreensão. A série

literária não está dissociada da experiência estética do leitor. É através dessa

experiência, numa relação dialógica entre texto e leitor, que se divisa o lugar da

obra na série literária, que, por sua vez, não é fixo e estará na dependência de

novas recepções e molduras. Uma “forma velha” pode, por exemplo, através de

uma nova recepção, reordenar a série literária levando à reformulação da história

da literatura. A história da literatura está em constante movimento. Uma nova

forma literária pode abrir para a compreensão de uma obra que no passado

escapou aos seus contemporâneos. Um exemplo foi a reabilitação de Góngora,

propiciada pela lírica de Mallarmé. “Um passado literário só logra retornar

quando uma nova recepção o traz de volta ao presente” – afirma Jauss (1994, p.

44).

Jauss faz uma observação a propósito da recepção do leitor. Este encara toda

a produção literária que lhe chega como simultânea, ainda que as obras estejam

separadas por séculos no momento da sua produção. Para o leitor, tudo é

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simultâneo, como uma biblioteca que se oferece inteira a ele a um só tempo.

Segundo o autor, “tal multiplicidade recompõe-se – do ponto de vista da estética

recepcional – na unidade de um horizonte comum e significativo de expectativas,

lembranças e antecipações literárias” (Jauss, 1994, p. 48). Isto significa que, para

o leitor, obras produzidas em períodos distintos serão apreendidas como atuais e

serão submetidas às mesmas molduras, ao horizonte de expectativas

contemporâneo a ele. E mais: este mesmo leitor as relacionará sincronicamente,

sem levar em conta, na maior parte das vezes, a distância temporal que existe

entre elas. As implicações da sincronia é o objeto da sexta tese. Além do corte

diacrônico habitual na história da literatura, o autor defende ser

(...) possível efetuar um corte sincrônico atravessando um momento do desenvolvimento [da produção literária], classificar a multiplicidade heterogênea de obras contemporâneas segundo estruturas equivalentes, opostas e hierárquicas e, assim, revelar um amplo sistema de relações na literatura de um determinado momento histórico. Poder-se-ia, então, desenvolver o princípio expositivo de uma nova história da literatura dispondo-se mais cortes no antes e no depois da diacronia, de tal forma que esses cortes articulem historicamente, em seus momentos constitutivos de épocas, a mudança estrutural na literatura. (Jauss, 1994, p. 46)

Assim como se opõe ao essencialismo presente na história da literatura,

Jauss se opõe igualmente à idéia de que os acontecimentos de um período

histórico pertencem a um processo único. A esse respeito, o autor se ancora no

teórico alemão Siegfried Kracauer, que afirma a “factual não-simultaneidade do

simultâneo” e defende a existência de “momentos de curvas temporais bastante

diversas” (Jauss, 1994, p. 47). O historiador Fernand Braudel oferecerá um

modelo muito complexo, que articulará variações de tempo em curta, média e

longa duração. Para Braudel, o “evento”, próprio do tempo de curta duração, deve

ser analisado em perspectiva sistêmica, articulado com temporalidades de média e

longa duração. Fenômenos particulares simultâneos, tais como aqueles discutidos

por Jauss, por exemplo, que coexistem no mesmo período, podem pertencer a

linhas causais diferentes, de média e longa duração. E, nesse sentido, o evento

deve ser analisado contra esse pano de fundo. Essa compreensão que advém da

história das mentalidades permite compreender fenômenos, que muitos entendem

como essências imutáveis, como valores que sobrevivem na longa duração, tempo

que está no limite da imobilidade (Braudel, 1980, p. 44-45).

Retornando à sexta tese da Estética da Recepção, vê-se que Jauss discorda

da narrativa homogeneizadora do historiador e aponta para uma história da

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literatura que leve em consideração as semelhanças, diferenças, inter-relações e

coexistências presentes num mesmo período, no mesmo corte sincrônico. Para o

leitor, do seu posto de observação, que é seu horizonte de expectativa, uma obra

pode ter recepções distintas, pode ser considerada atual ou ultrapassada, na moda

ou fora de moda, avançada ou atrasada em relação ao seu tempo. Jauss (1994)

afirma que “a historicidade da literatura revela-se nos pontos de interseção entre

diacronia e sincronia” (p. 48). Acredita que um quadro de compreensão mais

complexa surgirá desta perspectiva. O corte sincrônico, o presente na sua

multiplicidade, vai ele próprio exigir o seu passado e o seu futuro, isto é, vai

exigir o corte diacrônico – nesta tese, Jauss se aproxima mais dos formalistas do

que a princípio imaginava ou indicava na tese anterior. É nesse sentido que Jauss

vai pensar o conceito de reocupação na série literária, considerando que uma obra

poderá mudar seu lugar na série de acordo com as recepções sucessivas que

sofrerá, fato que demonstra a mobilidade do modelo da Estética da Recepção.

Esse processo é assim descrito por Zilberman (1989, p. 38):

É preciso proceder à análise do simultâneo, bem como das mudanças, comparando os cortes e descobrindo os pontos de intersecção, a fim de definir que obras têm caráter articulador, acionando o “processo de ‘evolução literária” em seus momentos formadores e nas rupturas”. Estas obras, postas em destaque, são as que provocam efeitos, sendo encaradas, pois, também desde a perspectiva de sua recepção.

É por essa razão que o modelo teórico estético-recepcional causou uma

revolução epistemológica ao propor, entre outras coisas, pensar a literatura como

processo comunicativo historicamente situado. Sobre o que considera a dupla

tarefa da hermenêutica literária, que deve distinguir dois modos de recepção, Jauss

pretendeu

(...) de um lado aclarar o processo atual em que se concretizam o efeito e o significado do texto para o leitor contemporâneo e, de outro, reconstruir o processo histórico pelo qual o texto é sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de tempos diversos. A aplicação, portanto, deve ter por finalidade comparar o efeito atual de uma obra de arte com o desenvolvimento histórico de sua experiência e formar o juízo estético, com base nas duas instâncias de efeito e recepção. (Jauss, 1979, p. 46)

Finalmente, na sétima tese, Jauss vai pensar na relação entre literatura e

sociedade. E faz uma nova inversão em relação à teoria marxista, que entende a

primeira como reflexo e representação da segunda, ao pretender para a literatura

um papel transformador do leitor. O texto literário – nesse sentido, se alinha com

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a Escola Formalista e Estruturalista – propicia ao leitor a ampliação ou

modificação do seu horizonte de expectativas e, assim, sua visão de mundo, não

só no plano estético como no plano ético. Jauss (1994, p. 50) acredita que “a

experiência literária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida

prática, pré-formando seu entendimento do mundo e, assim, retroagindo sobre seu

comportamento social”.

É importante salientar que a práxis estética, para o fundador da Estética da

Recepção, manifesta-se historicamente em três atividades: produtora (Poiesis),

receptiva (Aisthesis) e comunicativa (Katharsis). A propósito da experiência

estética, Regina Zilberman (1989, p. 113) explica, no “Vocabulário Crítico”, que

o:

(...) fruto do relacionamento da obra e o leitor é o aspecto fundamental da teoria fundada na recepção. Compõe-se em três etapas, inter-relacionadas: a poiesis, pois o recebedor participa da produção do texto; a aisthesis, quando este alarga o conhecimento que o destinatário tem do mundo; e a katharsis, durante a qual ocorre o processo de identificação (v.) que afeta as possibilidades existenciais do leitor. (...) Identificação equivale à resposta do leitor quando da experiência estética e tem um significado tanto intelectual quanto afetivo.

De todo modo, ainda que tente fundamentar seu argumento da função

socialmente constitutiva da literatura em sociólogos da importância de Karl

Mannheim e Karl Popper, localizando em seus ensaios antecipações do conceito

de horizonte de expectativas, Jauss foi alvo de severas críticas. Sua defesa da

literatura como emancipadora do homem e formadora da sociedade é encarada

com reserva. Peter Naumann7 se refere assim a esse respeito:

Este programa, no dizer de Hans Ulrich Gumbrecht “a meta mais ambiciosa da estética da recepção” (...) já sofreu crítica exaustiva (...), que resumo nas seguintes proposições: (1) os textos “literários” não são lidos, via de regra, com o propósito de orientar a ação social dos seus leitores (embora não se possa negar a influência da leitura sobre a ação dos leitores, o que deve ser levado em conta também na avaliação das proposições seguintes); (2) é impossível determinar, com precisão metodológica, a função (isto é, o grau de participação) da recepção de textos “literários” na ação social dos leitores (...); (3) é lícito suspeitar no endosso desta tese, a presença de interesses ideológicos, a saber da legitimação ideológica da profissão acadêmica (esta última proposição não foi formulada de forma tão inequívoca por Gumbrecht).

7 Em nota ao texto “Que significa a recepção dos textos ficcionais?”, de Karlheinz Stierle. In: LIMA (2002, p.167-168).

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Regina Zilberman (1989), como foi afirmado anteriormente, também aponta

falhas na Estética da Recepção. Uma delas aparece na crítica que faz do conceito

de distância estética, que considera um conceito de “qualidade duvidosa” e que,

segundo a autora, “reduz o impacto da obra a uma medida quantitativa e fixa” (p.

39). Assinala ainda o fato de algumas noções se confundirem como as de recepção

e efeito, “este significando às vezes impacto da obra na sociedade e na história, às

vezes na resposta do leitor” (p. 40). Critica também o fato da experiência do leitor

– preocupação central de Jauss – ter sido “insuficientemente” descrita. Ainda que

suas críticas sejam pertinentes, Jauss, ao menos nas definições, procurou deixar

claro que o efeito de uma obra pode ser medido pelas modificações que essa obra

exerce em determinado período histórico sobre o público e sobre novas obras,

pelas inovações que gera e pelas alterações que causa na série literária. A

recepção, por outro lado, se daria, sobretudo, na reação do leitor à obra. Nessa

fase, o pesquisador avalia se a obra foi ou não compreendida na época, se foi bem

recebida ou rejeitada, ou se o público foi indiferente a ela. Sem dúvida nenhuma,

quando se indaga se a obra trouxe alguma nova contribuição à literatura, seja na

forma ou no tema, e se esta contribuição promoveu alguma ruptura na série

literária, fica a dúvida se a resposta significa seu efeito ou sua recepção.

Quase dez anos depois da publicação de A História da Literatura como

Provocação à Teoria Literária, Jauss escreveu A Estética da Recepção: um

método parcial8, posfácio ao capítulo De l’Iphigénie de Racine à celle de Goethe

(Jauss, 1975, p. 243-262), que, a partir do reconhecimento desde o título da

Estética da Recepção como um método parcial, representa uma autocrítica em

relação a vários conceitos da sua teoria. Nele, afirma que se limitará “a responder

às críticas, procurando esclarecer o que a Estética da Recepção pode trazer e o que

ela não pode trazer sozinha à renovação atual da reflexão sobre a arte, sua

historicidade e sua relação com a história em geral” (Jauss, 1975, p. 243 - grifo do

autor). Após deixar claro que sua teoria não pretende “reivindicar a qualidade

plena e integral do paradigma metodológico” (p. 244), mas tem condições de

contribuir para a teoria e história da arte, o autor, em seu texto, procura elucidar

seu caráter parcial em três problemáticas principais: recepção e ação; tradição e

seleção; e horizonte de expectativa e função de comunicação.

8 Tradução para o português a partir da tradução francesa, por Stella Caymmi e Beatriz Bloch.

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Sobre recepção e ação, ou o efeito que uma obra produz, ele compreende o

texto, que produz um apelo, e o leitor, seu destinatário, como partes de uma

“constituição dialética de sentido” (p. 246). O procedimento da Estética da

Recepção, reafirma Jauss, é o de “esclarecer a evolução da relação entre a obra e o

público, entre o efeito da obra e sua recepção, usando da lógica hermenêutica da

pergunta e da resposta” (1975, p. 248). No que se refere à problemática da

tradição e seleção, ele entende a Estética da Recepção como método parcial, que

tem validade dentro dos seus limites, “pelo reconhecimento do fato de que toda

re-produção do passado artístico é condenada a ficar parcial”. Tradição

pressupõe seleção, e o preço é o esquecimento de parcelas da arte do passado. Por

fim, em horizonte de expectativa e função de comunicação, Jauss (1975) amplia o

conceito de horizonte de expectativa para além do sistema literário, quando afirma

que “o leitor naturalmente não está isolado no espaço social, ‘reduzido à única

qualidade de indivíduo leitor’” (p. 357) e reconhece que, para a reconstituição dos

processos de recepção, o conceito é tributário das contribuições da história, da

sociologia do conhecimento e das teorias da comunicação.

De todo modo, a partir da década de 80, os teóricos não se sentem mais tão

seguros se a opção sobre o problema da história da literatura é trocar a história da

obra pela história da recepção (leitor). Mas é certo que a Estética da Recepção

propicia a visão de um processo de leitura, não como um processo linear, mas

como um processo de obstáculos para o leitor.

Outra fragilidade da teoria de Jauss parece ser a aplicabilidade do conceito

de horizonte de expectativas para avaliar a recepção a uma obra, embora o autor

tenha ampliado o conceito. Quando se considera períodos pouco documentados,

em que não há condições de avaliar a recepção do leitor em fontes mais diretas,

esperar da obra todas as respostas ou se basear na perspectiva sincrônica e

diacrônica parece insuficiente. Entretanto, em épocas muito bem documentadas,

em que este problema não surge, a Estética da Recepção pode ser um instrumento

teórico muito útil para dar inteligibilidade à obra e permitir uma historiografia

mais rica, em que o leitor tem uma participação fundamental, como nos

fenômenos da comunicação de massa.

É nessa perspectiva, sobretudo a partir da ampliação que Jauss fez no

conceito de horizonte de expectativa, que se insere o presente trabalho sobre a

obra do compositor e cantor Dorival Caymmi. O artista terá sua obra, entre 1938 e

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1958, situada no contexto social, cultural, político-histórico, além do campo da

Música Popular Brasileira propriamente dito. A Estética da Recepção, que busca

compreender o fenômeno estético em um processo dialógico, é um modelo

plausível para dar visibilidade ao sistema musical em que Dorival Caymmi atua e

para aclarar as causas do seu sucesso junto ao público e aos seus pares.

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3. Recepção à Obra de Dorival Caymmi: 1938-1945 Mapeamento I

3.1. Consideração Inicial

Jauss assinala, à época da publicação do texto-manifesto da Estética da

Recepção, a decadência dos estudos de história da literatura. Analisa e critica o

fosso existente entre as duas principais escolas teóricas vigentes: Formalismo

Russo e Marxismo. Critica especialmente o modelo historiográfico da maioria das

histórias das literaturas modernas que se organizam através de conceitos gerais,

como gênero e estilos de época, para, em seguida, apresentar autores e obras em

ordem cronológica. Este parece ser também o modelo que predomina nas histórias

da música brasileira, em geral, e, especificamente, na história da música popular

brasileira.

3.2. Época de Ouro

A Época de Ouro, também conhecida como a Era do Rádio, é fundamental

para a reconstrução do horizonte de expectativas em que circularam as produções

de Dorival Caymmi neste período de sua carreira – que tem como marco oficial

sua estréia na Rádio Tupi, no Rio de Janeiro, em 24 de junho de 1938. Consagrou-

se entre pesquisadores, historiadores e críticos de música chamar de Época de

Ouro o período da Música Popular Brasileira que vai de 1929 a 1945. Tal

denominação costuma ser justificada por eles pelo incrível número de talentos –

entre músicos, cantores, compositores e arranjadores – que emergiram nesta fase

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da música brasileira. Mas não foi só o surgimento de tantos talentos que os levou

a batizarem este período de Época de Ouro. Outros elementos foram

fundamentais para que merecesse tal título.

Um dos fatores ocorre ao longo dos anos 30, quando o samba e a marchinha

renovaram a Música Popular Brasileira, libertando-se da herança do maxixe. O

samba torna-se o gênero musical mais gravado, impulsionando a indústria

fonográfica no país. A marcha também aparece em número expressivo de

gravações. A chegada ao Brasil de vários inventos – radiodifusão, gravação

eletromagnética do som, gramofone eletrificado, microfone, cinema falado – foi

fundamental. Outro fator importante é o rádio. No Brasil desde 1922, o rádio

torna-se, a partir dos anos 30, um meio de comunicação eficaz graças a uma

tecnologia mais barata e ao advento da publicidade. O teatro de revista, cujo

templo era a Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, estava no auge, com seu

repertório repleto de maxixes, sambas e marchas. O cinema nacional teve um

papel decisivo no período, produzindo comédias musicais e divulgando os

cantores da época.

Por se tratar de um período longo, dezesseis anos, costuma-se dividir a

Época de ouro em três fases: a primeira vai de 1929 a 1936; a segunda de 1937 a

1942; e a terceira de 1942 a 1945. Dorival Caymmi está, portanto, na segunda

fase. Destacam-se na primeira fase os compositores Noel Rosa, Ary Barroso,

Lamartine Babo, Braguinha (João de Barro); os cantores Mario Reis, Carmen e

Aurora Miranda, Sylvio Caldas, Almirante, o conjunto Bando da Lua; os músicos

Benedito Lacerda, Radamés Gnattali, Luperce Miranda e Carolina Cardoso de

Menezes. Na segunda fase, encontram-se, além de Dorival Caymmi, os

compositores Geraldo Pereira, Wilson Batista, Herivelto Martins, Ataulfo Alves;

os cantores Ciro Monteiro, Deo, Araci de Almeida, Dalva de Oliveira, Carmen

Costa; os músicos Garoto, Laurindo de Almeida, Jacob do Bandolim. Na terceira

e última fase da Época de Ouro, continuaram atuantes a maioria dos artistas das

fases anteriores.

O período da chamada Época de Ouro coincide com o início da Revolução

de 1930 até o fim do Estado Novo, que vai da data da sua implantação, em

setembro de 1937, até outubro de 1945, com a renúncia de Getúlio Vargas. Jorge

Caldeira et al. (1999, p. 274-280) esclarecem a importância estratégica do controle

do rádio para a política de Vargas:

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Em 1932, um decreto governamental regulamentou o sistema de emissão radiofônica, permitindo a veiculação de publicidade (que não era proibida). Em troca do “favor”, transformava em concessão estatal o direito de operar as emissoras. Amigos do governo foram privilegiados nas concessões e montaram uma programação voltada para os consumidores de música popular, a única capaz de atrair publicidade. E quase todas as emissoras apoiavam o governo, que lhes garantia o mercado através de concessões. O impacto da mudança foi violento, dando início, em pouco tempo, à “era do rádio”. A audição garantida pelos músicos populares fez com que muitos adquirissem os aparelhos receptores e isto, por sua vez, acabou tornando viável o investimento publicitário. O rádio transformou-se então num elemento fundamental para a divulgação da música popular brasileira. (...) O êxito desses compositores populares revelou algo novo: o início da era da comunicação de massa, sob o controle do governo. (...) O Estado Novo foi o primeiro governo no Brasil a se preocupar com a autopromoção. (...) Para tanto criou, em dezembro de 1939, o Departamento de Imprensa e Propaganda, para fazer a censura e propaganda. O DIP lançava mão tanto do poder policial (cada jornal tinha seu censor) como do econômico (o papel de imprensa era importado pelo governo, que decidia a cota de cada jornal). O rádio ficou sob o controle do DIP, assim como o teatro, o cinema e a música popular.

É necessário distinguir o samba baiano do samba carioca. O termo samba

provavelmente se origina do quimbundo semba, que significa umbigada, e

costuma designar dança de roda, muito popular em todo o Brasil:

A estrutura poético-musical do samba baiano obedece à forma verso-e-refrão, ou seja, compõe-se de um verso único, solista, a que se segue outro, repetido pelo coro dos dançarinos da roda como estribilho. Não havendo refrão, o samba é denominado samba-corrido, variante pouco comum. (...) No Rio de Janeiro, o samba era inicialmente dança de roda entre habitantes dos morros. Foi daí que nasceu o samba urbano carioca, espalhado hoje por todo o Brasil. (Marcondes, 1998, p. 705)

Foram os “Bambas do Estácio” – do bairro carioca do Estácio –, como eram

chamados os integrantes do grupo formado por Ismael Silva, Alcebíades Barcelos

(Bide), Armando Marçal, Newton Bastos, entre outros, que deram ao samba

carioca a feição até hoje adotada, livre do traço rítmico do maxixe. Noel Rosa e

Ary Barroso são os grandes compositores da época que aderem a esse gênero.

Sobre a origem do samba, segue um trecho do livro Dorival Caymmi – O

mar e o tempo (Caymmi, 2001, p. 64-66):

Foi no ano de 1928, alguns meses depois, que sambistas do Estácio de Sá, no Rio, fundaram a Deixa Falar, a primeira escola de samba carioca, que já nos primeiros anos tinha predileção pela fantasia de baiana. Quando as tropas que combateram em Canudos regressaram ao Rio, muitos soldados trouxeram consigo baianas, com quem se uniram durante a guerra, que fora longa. Vinham sobretudo de Favela, um morro no arraial de Canudos, no interior da Bahia. Foi assim que o antigo morro da Providência, no Rio, passou a ser conhecido como Favela, nome que mais tarde foi estendido ao conjunto de moradias pobres em morros cariocas. Muitos pesquisadores atribuem a essas baianas radicadas no Rio uma das influências que levaram à criação do samba. A verdade é que se o samba nasceu no Rio, a casa era

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de uma baiana. Ou seja, se não criaram o samba, participaram no tempero. É certo que o primeiro samba de sucesso foi feito na casa da baiana Ciata, mais conhecida como Tia Ciata, na rua Visconde de Itaúna, no centro do Rio, num dos muitos regabofes que aconteciam por lá, onde não faltava música. O samba era Pelo Telefone, de Donga (Ernesto dos Santos) e Mauro de Almeida – conhecido como "Peru dos Pés Frios" – seus autores oficiais, gravado em 1917.

Dorival Caymmi comentou a diferença entre o samba carioca e o baiano, em

entrevista ao crítico e jornalista Tárik de Souza1:

Nos contatos com a vida musical do povo baiano, nos festejos, consegui tirar, por instinto, uma fórmula pessoal, em torno do samba de rua. Esse tipo corridinho, mexidinho, de ‘quando você se requebrar caia por cima de mim’2, sabe? Aquele jogo de palavras com música, uma maneira muito local, condicionada naquele ambiente negro, mestiçado, do azeite-de-dendê, das festas da Conceição da Praia, da Ribeira. Isso aliado à voz do povo, sem alto-falante, aquele tipo de som puro, solto, era uma música em estado puro. Já o samba carioca tem uma forma especial, uma malícia de ritmo que obedece a um sincopado que nada tem a ver com o remelexo do samba baiano.

Será feito, neste capítulo e no próximo, o ensaio do mapeamento da

“história dos efeitos” da obra de Caymmi, no período entre 1938 e 1958,

procedimento que, na concepção de Jauss, tem como finalidade registrar e avaliar

o impacto de uma obra sobre o público e sobre o meio literário, conceito que aqui

será adaptado ao meio musical. É preciso ressaltar que o público objeto desta

pesquisa não é o leitor/ouvinte amador das obras de Caymmi, mas o leitor

especializado ou próximo a isso, tais como pesquisadores e críticos de música e

literatura; cantores, compositores e músicos; jornalistas e intelectuais de modo

geral. Em outras palavras, a recepção da crítica cultural à obra do compositor

baiano.

Um conceito importante para Jauss, para a compreensão da recepção de uma

obra, é o da “emancipação”. Uma obra que apresenta uma inovação poética

contraria, no todo ou em parte, o horizonte de expectativas do leitor e do sistema

literário de uma época, obrigando o leitor, na sua experiência estética, a alargá-lo

e modificá-lo. Trata-se de uma dissonância que convoca a participação mais ativa

do leitor. Este, num primeiro momento, vai passar por um período de

estranhamento até chegar à “identificação” – conceito que significa a resposta do

leitor à obra estética. Na concepção estético-recepcional, as obras que nada

exigem do leitor são irrelevantes, são aquelas que unicamente se adaptam aos

1 Entrevista publicada em 1972, na revista Veja (Editora Abril). 2 Verso de O que é que a baiana tem?

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modismos e gostos da época. As obras-primas são aquelas que rompem, e nesse

sentido, transgridem com o horizonte de expectativa do período, e só assim

exercem verdadeiramente a função emancipadora da arte. No entender de Jauss,

esta seria a razão por que certas obras são progressivamente esquecidas pelo leitor

e outras mantêm permanente vitalidade junto ao público ao longo do tempo.

O fato é que as músicas do compositor baiano, ou ao menos parte delas, não

eram de fácil assimilação, exceção talvez possa ser feita aos sambas, apesar das

diferenças já vistas entre as vertentes carioca e baiana do gênero, mas que não são

de modo algum inconciliáveis.

Caymmi chegou ao Rio de Janeiro em 4 de abril de 1938, vindo de

Salvador. Já nos primeiros dias, o compositor freqüentava o Café Nice, onde

encontrava os amigos, fazia outros e via seus ídolos do rádio de perto. Foi assim

que conheceu Ubirajara Nesdan. Nesdan era amigo de Lamartine Babo, famoso

compositor e radialista que, na época, tinha um programa chamado Clube dos

Fantasmas, na Rádio Nacional. Numa noite de poucas atrações para o programa

que iria ao ar à meia-noite, Nesdan lembrou de Caymmi. No Rio de Janeiro, nos

primeiros tempos da consolidação do rádio no Brasil, a maioria das coisas eram

resolvidas na informalidade. De repente, o baiano estava cantando no programa de

um dos radialistas mais populares de então, além de compositor de sucesso,

famoso pelas músicas carnavalescas e sambas-canção. Em pleno ar, Lamartine

brincou, como era de seu costume, com a sua atração da noite:

– Como você se chama? – perguntou Lamartine.

– Dorival Caymmi – respondeu de pronto o jovem baiano.

– Cay-em-mi – Lamartine falou acentuando bem o ‘mi’ – É musical.

Caymmi é de mi! – concluiu rindo.

Naquela noite, Dorival Caymmi cantou “Noite de Temporal”, com seu

vozeirão característico, apesar de ser bem franzino na época. A canção causou

estranheza em Lamartine, provavelmente por sua melodia impressionista, seus

acordes incomuns e pela dramaticidade da letra:

“É noite..., É noite... Ê lamba ê Ê lambá... Pescador não vá pra pesca Pescador não vá pescá Pescador não vá pra pesca Que é noite de temporá...”

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– “Isso é meia-noite mesmo!” – exclamou o radialista, fazendo referência a

um outro programa seu, O Clube da Meia-Noite. Sobre a canção, Caymmi

explicou, em depoimento para sua biografia: “Em ‘Noite de Temporal’, minha

primeira canção praieira, procurei tocar acompanhado pelo toque de berimbau de

capoeira. Sempre pus esses elementos, por isso meu violão era diferente”. Apesar

da hora tardia, o programa gozava de boa audiência.

Mas quem ajudaria a definir a situação de Dorival Caymmi seria o jornalista

Edgar Pereira, da revista O Cruzeiro. Caymmi falou do seu desejo de trabalhar na

revista, desenhando. “Mas o Pitanga me disse que você canta, faz música, toca

violão, não é verdade?” – inquiriu Pereira, referindo-se ao primo do compositor

que havia arranjado aquele contato. Em seguida, escreveu num papel o nome

completo de Theófilo de Barros Filho, o endereço da Rádio Tupi, avisando ao

compositor a hora em que deveria estar lá, duas e meia da tarde, para fazer um

teste. E que não esquecesse de levar o violão.

A Tupi, prefixo PRG-3, funcionava num barracão do Santo Cristo, bairro do

Rio de Janeiro próximo ao Centro. Os corredores fervilhavam num burburinho

típico de emissora de rádio. Theófilo de Barros Filho, um alagoano boa-praça,

excelente jornalista, levou-o para seu escritório. Naquela tarde decisiva de 1938,

o compositor cantou “Noite de Temporal” e “No Sertão”. Theófilo ficou tão

impressionado que foi buscar Assis Chateaubriand em pessoa para ouvi-lo. Sem

desconfiar de quem se tratava aquele senhor de terno cinza, Caymmi caprichou

mais ainda na segunda audição. “Cantei ‘Promessa de Pescador’ e fiz um

rebuliçozinho no escritório de Theófilo” – lembrou o compositor em entrevista

gravada para sua biografia. Chateaubriand, impressionado com o jovem baiano,

repetiu várias vezes, com forte sotaque: “Seu Theófilo, o senhor é um gênio, este

homem é um telúrico, é um homem da terra, um poeta... Quantos anos você

tem?”. “Vinte e quatro”– respondeu Dorival Caymmi. Era o proprietário dos

Diários Associados, um império da comunicação, que incomodava os poderosos

do país. “Mas ‘Seu’ Theófilo, ele é um menino, ele tem que ficar na Taba” –

ordenou Chateaubriand, referindo-se aos Diários Associados (Caymmi, 2001, p.

120).

Tanto “Noite de Temporal”, cantada para Lamartine Babo, quanto

“Promessa de Pescador”, apresentada a Assis Chateaubriand e Theófilo de Barros

Filho, eram dissonantes, difíceis, diferentes do que se produzia em música na

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época. Eram extremamente originais. Ambas são canções praieiras, como ficaria

conhecido todo o conjunto de canções do compositor que tinha o mar como tema.

“Um gênero musical que não existe” – apressou-se em esclarecer Luís da Câmara

Cascudo, escritor e mestre do Folclore, a propósito das canções praieiras –

expressão criada pelo próprio compositor na tentativa de classificar as suas

músicas (Caymmi, 2001, p.156). Estas canções não se pareciam com nada do que

se escutava na rádio de então. Um comentário publicado no jornal A Pátria

(21.04.1939), no início da sua carreira, com o título “O creador de rythmos”,

resume bem essa sensação: “Mas que acento de ternura, que misto de saudades e

melancolia nesses ritmos que apesar de tão nossos, tão de nossa gente, nos

pareciam tão estranhos e tão novos”. Sejam os pregões das baianas vendeiras das

ruas de Salvador, sejam os cantos aos orixás das roças de candomblé, suas

músicas evocavam as raízes africanas do país.

Aliás, esses acordes já causavam estranheza em sua casa, na Bahia. Seu pai,

Durval Caymmi, que tocava violão e bandolim, tentava ensinar ao filho os acordes

perfeitos, mas Caymmi gostava mesmo era de dissonâncias, como está relatado

em sua biografia:

Mas o pai seguiria estranhando o modo de seu caçula tocar. ‘Acontece que eu preferia sempre a harmonia alterada, porque descobri, depois que fiz muita coisa de orelhada, que a harmonia realmente pode ser exótica, com as sétimas, as nonas, a inversão de acordes. Deve ser instintivo, porque desde pequeno acho que o som deve ter outra beleza, além do acorde perfeito. Foi assim que tive sorte na música. Papai dizia que não estava certo, porque o meu arpejo, a maneira que eu puxava as cordas do violão, não levava os dedos certos. Eu puxava as cordas de uma raspada só, com um dedo, o que tecnicamente era considerado errado. Mas, nesse sistema, embora errado, consegui tirar os acordes que sentia instintivamente’ – explica Dorival. (Caymmi, 2001, p. 58)

Dissonante no Rio de Janeiro era o próprio Caymmi, com uma sonoridade

estranha aos ouvidos cariocas, a começar pelos acordes estranhos, as letras

enxutas, nada grandiloqüentes, e os sambas sacudidos, como costumava chamá-

los. É ele quem explica: “Sempre procurei trazer para a minha música os ruídos da

Bahia. Por isso, meu violão tem toque de berimbau e escapa dos acordes perfeitos,

quadrados. Meus dedos procuram um som harmônico diferente, esquisito”

(Caymmi, 2001, p. 533). E completa: “A música típica brasileira é samba. E o

samba, na Bahia, era um estilo de samba de mote e glosa, é você abrir um

estribilho e o outro responder. É o samba de umbigada, samba de rua, com

influência portuguesa e africana” (Caymmi, 2001, p. 132-133).

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Theófilo propôs a Caymmi estrear na festa junina da rádio, no dia 24 de

junho. Fez ainda o baiano prometer que não cantaria em lugar nenhum até a sua

estréia. A festa junina aconteceu numa quinta-feira, no quintal do barracão do

Santo Cristo. Estava lá o elenco da Tupi em peso: as meninas do Quarteto Tupã,

Herivelto Martins, Dalva de Oliveira, entre muitos. Nessa época, tudo era ao vivo,

sem nenhum recurso de gravação. De repente, começou a chover e a festa foi

transferida às pressas para o barracão. Caymmi cantou “Noite de Temporal”, que

havia agradado tanto a Theófilo de Barros quanto ao Dr. Assis. O mais

surpreendente era ele ser compositor e cantor das suas músicas. Nos anos 1930 e

1940, era raro um compositor interpretar suas próprias obras.

Foram muitos os telefonemas para a Rádio naquela noite querendo saber

quem era o artista que acabara de cantar, incluindo profissionais curiosos. Entre os

que ligaram, estavam o cantor Jorge Fernandes – que fazia grande sucesso com

“Meu Limão, Meu Limoeiro”, do folclore –, o compositor Waldemar Henrique e

sua irmã, a cantora Mara Costa Pereira, todos profissionais profundamente ligados

ao folclore brasileiro. A primeira recepção de Dorival Caymmi é a de cantor e

compositor de temas folclóricos, ligados sobretudo à Bahia. É classificado como

regionalista – o que não deixa de apontar para uma certa tensão centro-periferia,

considerando que sua música diferia muito da que se fazia na capital – , fato que

vai se repetir ao longo de sua carreira. O próprio Caymmi, em entrevista a Paulo

Mendes Campos, para a Revista de Música Popular, em 1953, afirmaria que “o

folclore é uma das coisas mais sólidas do canto popular”.

Logo recebeu notícias de Salvador, parentes e amigos que haviam escutado

a sua apresentação na Rádio Tupi. Junto, vieram recortes de jornais que

publicaram sua estréia. Um deles, na revista Radiomania, em 22 de julho de 1938,

apresentou uma nota com direito a foto com os exageros da época, mas já

apontando para um outro aspecto recepcional forte da sua obra, a de cantor e

compositor de temas ligados ao mar: “Dorival Caymmi venceu no Rio. Está

cantando na Tupi, do Rio, produções de sua autoria, sobre a vida dos praieiros

baianos”. Em O Imparcial – onde trabalhou – saiu reportagem completa, na

coluna Broadcasing (25.07.1938). A foto ostentava a legenda “Dorival Caymmi, o

nosso vitorioso ‘crooner’”. E o jornalista profetizava:

Dorival Caymmi, senhor de uma voz belíssima, com verdadeiro senso artístico, inteligente e instruído, é alguém capaz de consagrar-se definitivamente,

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enaltecendo nossa radiofonia que, positivamente, possui artistas de valor. É o que sempre temos evidenciado. Dorival Caymmi é mais um vitorioso, fadado ao triunfo.

A imprensa carioca, por sua vez, anunciou a estréia de Dorival Caymmi na

Rádio Tupi e reforçou a recepção marcada pelo tema do mar e do folclore, com

ênfase no regionalismo, relacionando sua obra musical desde o princípio à obra do

escritor Jorge Amado, além de assinalar suas qualidades de violonista e intérprete,

como se pode verificar na reportagem publicada em O Jornal (19.07.1938) com o

título "O mar, eterna fonte de inspiração - Todo o encanto das brancas praias

nordestinas revelado ao Brasil através de impressionantes páginas musicaes”:

(...) Dorival Caymmi, um jovem talentoso, nascido na Bahia, desde a infância viveu abysmado ante a attracção incomparável de Neptuno, escutando-lhe o rumorejar das ondas, auscultando-lhe as queixas e comprehendendo seus murmúrios inconstantes. Dorival Caymmi, músico e poeta, que hoje à noite será revelado ao Brasil através do microphone (...). Dentro do folk-lore, pode-se dizer que Dorival fez uma obra tão importante quanto Jorge Amado no romance, escrevendo ‘Mar Morto’. Acresce ainda que o compositor e observador dos themas marinhos possue voz cálida e tropical, apresentando suas creações ao violão manejado dextramente para interpretar novas cadências. (...) Esse raro artista da sensibilidade nacional constituirá a grande revelação da Tupi nos últimos tempos. Estreará às 22 horas, cantando, também, às 22h45.

Em agosto, o compositor foi procurado pelo baiano Dermival Costalima,

amigo do tempo do jornal O Imparcial, por Erick Cerqueira (speaker) e Eduardo

Brown – uma verdadeira comissão de nascidos na Bahia – para levá-lo para a

Rádio Transmissora (PRE-3), que anos depois se tornaria Rádio Globo, com o

argumento de que os baianos tinham que ficar todos juntos. A proposta era

irrecusável. Significava 400 mil-réis que garantiriam seu sustento no Rio de

Janeiro para se apresentar num programa patrocinado pelo Dragão, chamado Meia

Hora do Dragão. Tudo combinado de boca, com a informalidade típica da época,

sem nenhum contrato. No cast estavam artistas como Marília Batista, Dircinha

Batista, Manoel Reis, Ciro Monteiro, Antenógenes Silva, Bilu e Eugênio Martins

com o seu regional, entre outros. Destacando a originalidade e o caráter inovador

da obra do compositor, denominado “Verdadeiro intérprete da música typica”, o

jornal O Radical (06.10.1938) noticiou:

‘A Bahia de todos os Santos e do pae de Santo Jubiabá’ já conta, no ‘broadcasting’ carioca, presentemente, com um verdadeiro intérprete da sua música typica – Dorival Caymmi. O jovem artista do norte apresentou-se com um gênero, podemos dizer, novo, de folk-lore, o folk-lore exclusivamente bahiano, absolutamente bahiano, originalíssimo, sincero. Elle recolheu os motivos na sua terra e aproveitou-se de maneira intelligente, com muita arte e com uma cor local

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evidente. É um verdadeiro artista, esse Dorival Caymmi, que tem chamado a atenção dos que apreciam as bellezas musicaes da nossa terra. Dono de uma voz bonita, com um admirável poder de expressão, o cantor bahiano também interpreta outras canções de gêneros diversos, sempre com excepcional successo. (...) Dorival Caymmi na Transmissora conquista aplausos de todos os ouvintes.

Mister Brown, na coluna Rádio, do jornal A Nota (03.11.1938), descreve

sua música como diferente: “(...) a ‘Transmissora’ incluiu no seu ‘cast’ o artista

do ‘folk-lore’ praieiro da Bahia de Todos os Santos, dessa música differente que

só elle, o cantor e compositor, que ‘chegou, viu e convenceu’ sabe cantar”.

Almirante, A Maior Patente do Rádio, título que sempre o acompanhava,

tinha um programa de muito sucesso na Rádio Nacional, chamado Curiosidades

Musicais. Ele e Braguinha – ou João de Barro – tinham sido do Bando dos

Tangarás, conjunto musical desfeito em 1931. Foi ainda um dos mais importantes

pesquisadores da música brasileira, cujo acervo seria, décadas mais tarde, a base

do Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro. Em sete anos de Rádio

Nacional, criou nove programas, entre os mais importantes do período. Almirante

havia assistido a uma participação do baiano na Rádio Transmissora quando se

conheceram. Algum tempo depois, o radialista lhe telefonou: “Amanhã, estou

passando aí para irmos à casa de Carmen Miranda” (Caymmi, 2001, 127).

A cantora vivia numa bela casa na avenida São Sebastião, na Urca. Ela os

recebeu com muita simpatia. E Carmen pediu a Caymmi que tocasse “O Que é

Que a Baiana Tem?”. “Agora sim, Almirante, ao vivo é outra coisa” – comentou

animada a artista, interrompendo o samba pelo meio. Caymmi ficou surpreso.

Almirante se apressou em explicar que no dia anterior tinham usado um pretexto

qualquer para fazer uma gravação do samba do baiano para que Carmen pudesse

aprová-lo. Estavam correndo contra o tempo. Queriam a canção para o filme

Banana da Terra, da Sonofilmes, cujas filmagens estavam muito atrasadas.

Nessa noite de domingo, em casa de Carmen, conheceu Aloysio de Oliveira,

um dos integrantes do conjunto vocal Bando da Lua, que contava ainda com Hélio

Jordão Pereira, Vadeco (Osvaldo de Morais Eboli), Ivo Astolf e os irmãos

Afonso, Armando e Stênio Osório. Aloysio foi outro importante amigo de

Caymmi, influindo decisivamente um na carreira do outro nas décadas seguintes,

sobretudo nos anos 60. Com Aloysio, veio Braguinha, que trabalhava também na

produção de discos e musicais para o cinema. Como não tinham tempo a perder,

dali foram todos para os estúdios da Tupi fazer a sonorização do filme. Almirante

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deixara os demais músicos de sobreaviso. Apesar de não aparecer no filme,

embora muitos garantam erroneamente o contrário, Dorival Caymmi cantou na

sonorização, solando uma parte do samba.

O que Almirante não contou para Dorival Caymmi é que Ary Barroso já

havia sido contratado para ceder dois números, “Boneca de Pixe” e “Na Baixa do

Sapateiro”, para Carmen Miranda cantar no filme Banana da Terra, com

lançamento previsto para antes do Carnaval de 1939 e distribuição pela Metro-

Goldwyn-Mayer do Brasil. Braguinha, Mário Lago, J. Rui e Alberto Ribeiro eram

os autores do roteiro e encarregados de toda a produção – cenários, figurino,

canções e artistas. O musical teria a participação de artistas do rádio como

Dircinha e Linda Batista, Aurora Miranda, Carlos Galhardo, Orlando Silva,

Oscarito. “A Jardineira”, “Sei Que é Covardia”, “Mas...”, “A Tirolesa”, entre

outras, estavam entre as músicas escolhidas. J. Rui era o diretor do filme. Os

cenários e figurinos estavam prontos quando Ary Barroso exigiu dez contos de

réis, o dobro do combinado, para autorizar suas canções para a película. O

produtor Wallace Downey, um americano que vivia no Brasil há pelo menos dez

anos, considerou absurda a pretensão de Ary e recusou pagar o que o compositor

pedia.

A produção, com o prazo se esgotando, procurava duas novas músicas que

substituíssem as de Ary Barroso, de modo que não fosse necessário alterar o

cenário. Alberto Ribeiro foi o primeiro a lembrar de Caymmi, recebendo a

aprovação imediata de Braguinha e Almirante, segundo o pesquisador Jairo

Severiano. Caymmi confirma esta versão. A idéia era substituir “Na Baixa do

Sapateiro” por “O Que é Que a Baiana tem?”, um samba de roda estilizado,

tipicamente baiano, que Ribeiro ouvira na rádio. Mário Lago confirmou em

entrevista: “Downey chamou Alberto Ribeiro e Braguinha para fazerem as

músicas que substituiriam as de Ary Barroso. Alberto disse a Downey – falando

de ‘O Que é Que a Bahiana Tem?’ – ‘existe uma música sobre a Bahia que é

especial’”. Mário Lago lembra perfeitamente do dia em que eles conheceram o

compositor baiano:

Fomos assistir na Rádio Transmissora a estréia da Orquestra do Fon-Fon (Otaviano Romero Monteiro), que era um grande saxofonista. Ficamos fascinados, eu, Alberto Ribeiro e Almirante com Caymmi. Todo mundo gostou. Caymmi bateu, valeu. No que cantou, estourou e seguiu em frente. Formou-se um círculo incrível em torno de Caymmi. (Caymmi, 2001, p. 129)

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Aloysio de Oliveira resumiu o significado do que veio a seguir:

Este incidente mudou definitivamente o destino de três pessoas: o de Caymmi, o da Carmen e o meu. O Caymmi conheceu o seu primeiro sucesso, partindo para muitos outros. A Carmen se apresentou vestida pela primeira vez de baiana no Cassino da Urca logo a seguir e foi contratada para a Broadway. E eu, com o Bando da Lua, que se apresentou pela primeira vez junto com a Carmen no Brasil, também parti para os Estados Unidos. Graças ao Ary Barroso. (Oliveira, 1982, p. 63)

Mais tarde, quando soube de toda a história, Caymmi se impressionou: “Eu

soube depois e fiquei embaraçado, porque era o extremo, eu, um anônimo, e Ary

Barroso, a glória da música popular” – recorda-se Caymmi, em entrevista

gravada. Na verdade, há uma imprecisão no depoimento de Oliveira. Um pouco

antes do filme, em dezembro de 1938, Carmen já havia se apresentado de baiana

cantando “Na Baixa do Sapateiro”, no Cassino da Urca – na platéia estavam

Tyrone Power e sua noiva Annabella, que se tornam amigos da cantora.

Comentaram que ela teria condições de fazer sucesso em Hollywood. O que se

pode dizer é que até ali o traje da baiana era apenas decorativo e, a partir do

samba de Caymmi, tornou-se parte indissociável da personalidade artística da

Pequena Notável. Abel Cardoso Junior, em seu livro Carmen Miranda - A

Cantora do Brasil (1978, p. 132), esclarece: “De 1930 a 1939 a ‘baiana’ não

existiu para Carmen, se bem que tal imagem sobre a cantora se formasse”. O

pesquisador refere-se ao fato de temas baianos aparecerem com freqüência no

repertório de Carmen Miranda, mas “a fantasia surgiu mesmo em 1939, no filme

‘Banana da Terra’, quando ela cantou ‘O Que é Que a Baiana Tem?’”.

Almirante propôs ainda a Caymmi conversarem sobre outros assuntos do

interesse de ambos. O radialista fez muitos elogios às músicas do baiano e

combinou um encontro para o dia seguinte. No encontro, Henrique Foréis

Domingues, conhecido como Almirante, fez-lhe duas propostas. A primeira

pretendia que Caymmi colaborasse com seu programa Curiosidades Musicais,

com costumes e folclore da Bahia, fato que consolidava ainda mais a primeira

recepção do compositor. A segunda, e mais importante, que fosse para a Rádio

Nacional com um contrato de três meses, com pagamento mensal de 700 mil-réis,

mais publicidade no jornal A Noite e nas revistas Noite Ilustrada e Carioca. O

músico assinou contrato com Oduwaldo Cozzi, diretor da Rádio Nacional.

Tudo aconteceu muito depressa. Em junho, Caymmi estava na Tupi, em

agosto na Transmissora, e no dia 13 de novembro já assinava contrato com a

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Rádio Nacional Afinal, para quem chegara no início de abril, sem nenhuma

perspectiva profissional definida, ser disputado por três rádios da Capital indicava

uma carreira meteórica. Porém, só se deu conta da sua ascensão quando a Revista

Carioca, de rádio e cinema, publicou uma foto sua, um inquestionável sinal de

prestígio. No jornal A Noite (14.11.1938), uma segunda-feira, foi noticiada a sua

contratação com detalhes da sua estréia, referindo-se ao compositor como “uma

autêntica novidade” e considerando o folclore como um gênero musical – o que

mostra uma certa confusão entre tema e gênero da canção:

A Soc. Radio Nacional acaba de contratar um novo artista, que é Dorival Caymmi, cantor de ‘folk-lore’, possuidor de uma grande classe artística e vigoroso poder de interpretação. Dorival Caymmi, uma autentica novidade para os ouvintes de todo o Brasil, é baiano de nascimento, dedicando-se sempre ao estudo do nosso ‘folk-lore’, gênero em que triunfou como intérprete e autor. Para a sua estréia, que terá lugar amanhã à noite, Dorival Caymmi mereceu da direção artística da PRE-8 carinho especial, pois todas as músicas de seus primeiro quarto de hora foram orquestradas especialmente pelo maestro Radamés Gnatalli, com espírito harmônico moderno.

Dias depois, na Noite Ilustrada (29.11.1938), a recepção de cantor e

compositor do folclore é uma vez mais confirmada:

Dorival Caymmi, que vemos na fotografia acima, é a mais recente descoberta da Sociedade Rádio Nacional. Cantor do ‘folk-lore’ brasileiro e autor de magníficas peças regionais da Baía, Dorival Caymmi já conquistou definitivamente a admiração do público.

Na revista Fon-Fon (28.01.1939), a recepção se repete: “Dorival Caymmi,

compositor e intérprete festejado do nosso folk-lore, está vencendo brilhantemente

no rádio, pelo valor do repertório e pela belleza da voz. Integra o ‘cast’ da

Nacional”.

Voltando ao filme, Almirante considerava Banana da Terra muito

deficiente; apesar disso, ao estrear bateu todos os recordes de bilheteria do

Cinema Metro, na Cinelândia. Em carta a Braguinha, o radialista e produtor relata

que, em apenas três dias, nos onze cinemas em que foi levado, o filme rendeu 208

contos de réis, o que representava uma boa quantia na época. O sucesso do samba

de Caymmi pode ser avaliado pela reportagem publicada em O Globo, de 17 de

fevereiro de 1939:

O celulóide nacional Banana da Terra vem obtendo êxito sem precedentes na sala do Metro. Há duas coisas pelo menos ótimas: a dança do Pirulito e o formidabilíssimo samba de Carmen Miranda O Que é Que a Baiana Tem?, cujo autor o programa não determina, e que é o grande, o grandíssimo samba deste ano.

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Se o Pirulito apresentado por Almirante e Carmen é uma deliciosa invenção, o samba da baiana representa qualquer coisa de notável, novo, expressivo.

A música realmente chamou a atenção. No cartaz, Carmen Miranda aparecia

vestida de baiana, mas nem o nome de Caymmi nem o nome do seu samba

constava da peça promocional, embora incluísse “Jardineira”, “Sem Banana

Macaco Se Arranja”, “Não sei se é Covardia”, “Pirulito”, “Amei”, “Eu Vou” e

“Menina do Regimento”. Tudo leva a crer que a produção não contava com o

sucesso de “O Que é Que a Baiana Tem?” ou então optou por figurar no cartaz

somente os nomes conhecidos do público.

“O Que é Que a Baiana Tem?” foi um dos grandes sucessos do carnaval de

1939, fato atestado pela PRAnove – revista informativa da Rádio Mayrink Veiga,

de prefixo PRA-9 – na publicação de janeiro e fevereiro: “Norival Caimim é o

autor da célebre ‘O QUE É QUE A BAHIANA TEM’, cantado por Carmen

Miranda no filme ‘Banana da Terra’, e que constituiu, desde o seu apparecimento,

um dos maiores sucessos do carnaval deste anno”. O jornalista V. Sobrinho

confirma o feito em A Nota (17.02.1939):

Todos os que viram ‘Banana da Terra’ e os que ouviram Carmen Miranda cantando fora da tela essa música são unânimes em affirmar que ‘O que é que a bahiana tem?’ é um grande successo do carnaval de 39. ‘Abafou, como diz a gyria carioca. O que poucos sabem, entretanto, é que ella não representa, apenas, um successo da composição, mas principalmente uma revelação do compositor. Quem é o autor de ‘O que é que a bahiana tem?’ O nome é tão desconhecido, tão novo, que nem com o assombroso êxito da sua música chegou a popularizar-se. A música venceu. Elle ainda está em caminho da victoria.

No mesmo A Nota (02.03.1939), Dorival Caymmi é chamado de “a maior

revelação do rádio, nestes últimos tempos” e é comentado que “poucos artistas

provincianos conseguiram em pouco tempo a popularidade que desfructa”. Em

seguida, na mesma matéria, é dito que “a sua música e os seus versos são

differentes, são bizarros e de um rythmo profundamente agradável”. No jornal A

Tarde (27.03.1939), na coluna No Rádio, apesar do filme receber críticas muito

negativas, o jornalista aborda a importância do samba de Caymmi na carreira de

Carmen Miranda:

Banana da Terra’ foi mais uma dolorosa etapa do cinema brasileiro. Mas aquele pedaço gostoso, ‘O que é que a bahiana tem’ pôde ser cortado e enviado pelo mundo agora para propaganda nossa. Esse explendido Dorival Caymmi – a maior revelação do broadcasting nacional nesses últimos tempos, deu ensejo a Carmen Miranda exceder-se a si mesma, voltando a ser a mais popular e legitima intérprete da nossa música. Dorival Caymmi, bahiano levado do diabo que Nosso Senhor do Bonfim nos mandou, tem mais esse credito comnosco. Nós lhe devemos a

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restituição integral de Carmen Miranda, inconfundível, absoluta e mais do que nunca cem por cento Carmen Miranda.

Carmen Miranda convidou o compositor para gravar o samba com ela:

“Caymmi, seu samba é sucesso absoluto aqui em São Paulo. Vamos gravá-lo” –

decidiu a cantora. Em 27 de fevereiro de 1939, gravaram “O Que é Que a Baiana

Tem?” (lado A) e “A Preta do Acarajé” (lado B) em um disco de 78 rotações pela

gravadora Odeon. Acompanhando-os estava o Regional da Mayrink Veiga.

“Garoto, Laurindo de Almeida e outros músicos da Mayrink, uns quatro. E

Antonio Sergi no pistom” – recorda Dorival Caymmi, em gravação para sua

biografia. Sobre a participação do pistonista de São Paulo o compositor comenta:

“Sergi viu aquele remelexo todo, pensou logo em rumba – na rumba, o forte é o

pistom – e deu aquele molho caribenho à introdução”. Caymmi considera que isso

descaracterizou um pouco o samba. Não seria a única vez em sua carreira que isso

aconteceria com suas composições, especialmente na concepção dos arranjos e do

acompanhamento musical.

Dorival Caymmi foi convidado por César Ladeira, diretor da emissora, para

integrar o elenco da Mayrink Veiga, a rádio mais importante do período. O

convite era conseqüência direta do sucesso de “O Que é Que a Baiana Tem?”.

Carmen Miranda, sua estrela maior, estava lá desde 1933. No mesmo programa

em que estreou, em 14 de março de 1939, às 18 horas, pelas mãos de Carmen

Miranda, estavam Sylvio Caldas, Cândido Botellho, Maria Amorim, Garoto e

Cordas Quentes, Barbosa Júnior, Jararaca e Zé do Banjo. O speaker era o próprio

César Ladeira. Às 20 horas entrava a Hora do Brasil. Das 21 às 22 horas, o

programa retornava. A revista Fon Fon (01.04.1939) repercutiu assim: “Dorival

Caymmi, uma grande descoberta de Carmen Miranda, também é mais um

exclusivo da Mayrink Veiga”.

César Ladeira era famoso pelos títulos que dava aos artistas: Carlos

Galhardo, O cantor que dispensa adjetivos; Carmen Miranda, A Pequena Notável;

Francisco Alves, O Rei da Voz; Sylvio Caldas, O Caboclinho Querido. Impagável

foi o título que deu ao pianista Nonô (Romualdo Peixoto), O Chopin do Samba.

Com o compositor baiano, saiu-se com Dorival Caymmi, o Colombo dos

Balangandãs, e acrescentou outro mais tarde: O homem que mandou o samba

para os Estados Unidos.

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A repercussão da estréia do cantor e compositor baiano pode também ser

avaliada pelo artigo publicado com o título “Sensação do Momento”, em O Globo

(20.03.1939) – apesar da dificuldade em acertar a grafia de seu nome:

Uma sensação, na verdade, esse Lourival Caiymi – acho que se escreve assim – apparecido de repente nesta povoada nação dos compositores e que, de golpe, se impõe com o seu estupendíssimo ‘O que é que a bahiana tem”, o successo absoluto no momento, que fez eclypsar tudo o mais, no repertório popular. (...) Quem ouviu, quem viu Carmen Miranda fazendo o já famoso samba, no radio, na ‘Banana da Terra’, logo sentiu naquelle autor o tom forte da inspiração, a originalidade marcante, a pureza quase virgem dos seus achados melódicos, a superabundância do seu rhythmo, a emoção e a profundidade de seus poemas... É que ‘Que é que a bahiana tem?’ basta para definir um compositor. (...) ouvimos Caiymi no seu programa da Mayrink (...). Um delles, ‘O vento’, simplesmente uma jóia do gênero. E com uma vocalização primorosa: porque Caiymi, além de acompanhar-se ao violão, possue uma grande voz expressiva, rica de accentos e de colorido.

Foram muitos os jornais e revistas que publicaram matérias sobre o

compositor e sua estréia na Mayrink Veiga, entre eles o Meio-Dia, de 04.03.1939

("um dos novos valores destinados ao maior sucesso da temporada”); o jornal A

Tarde, de 18.03.1939 (“Está cantando para o Brasil inteiro as histórias simples, de

costumes mais simples ainda... É compositor. Despretensioso”); o jornal Diário de

Notícias, de 30.04.1939, na coluna Radiophonices (“Dorival Caymmi é o artista

do momento no rádio carioca. Trouxe da Bahia, um magnífico repertório de

composições populares do gênero folklorico”); o jornal O Imparcial, de

15.04.1939 (“A sua forma original de interpretar as suas próprias composições,

(...), fez do cantor bahiano um nome victorioso nos meios raddiophonicos do

paiz”); o jornal A Tarde, de 05.06.1939), na coluna No Rádio (“O autor de ‘O que

é que a bahiana tem’ é mais um attestado da riqueza do Norte e da exuberância

dessa Bahia que no mesmo anno dá petróleo e Dorival”) e o jornal Correio da

Noite, de 09.05.1939, na coluna Falando a Todo Mundo (“Dorival constitue a

revelação sensacional dos últimos tempos em nosso broadcasting”).

Igualmente, o repertório de Caymmi vai despertando a atenção da imprensa

e da crítica como no artigo de João da Antena, em A Notícia (29.03.1939):

Lourival Caimy é, sem favor, o maior espectacullo do nosso radio. Tudo nelle se casa para a ostentação quase irritante de uma unidade. Seus dedos criaram pedaços sonoros da vida brasileira e sua voz dá ainda mais força e mais calor humano às próprias creações. (...) Lourival Caimy veio fazer um grande mal aos ouvintes. Estes, depois de ouvi-lo ficam irremediavelmente dispostos a congelar o ‘dial’, achando o resto tão insípido e tão chocho...

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Em A Nota (14.04.1939), também V. Sobrinho volta a falar de Caymmi para

analisar as suas canções enfatizando a qualidade da sua interpretação em

comparação com a de outros cantores:

O successo das composições de Dorival Caimmy determinou, como sempre acontece, em casos semelhantes, o apparecimento de intérpretes improvisados, que as pretendem cantar com a mesma expressão do seu autor. O que a nenhum desses cantores ocorre, entretanto, é que as músicas de Caimmy não são como esses sambas que até os calouros interpretam mais ou menos bem, porque não são mais do que uma questão de rythmo e de afinação. As composições de Caimmy são differentes. Têm algo mais do que cadencia. São, em sua maior parte, de uma perfeição descriptiva admirável e retratam scenas da vida bahiana com precisão e arte extraordinárias.

“A Preta do Acarajé”, lado B do 78 rpm que trazia “O que é que a baiana

tem?”, mereceu a atenção da crítica da Revista da Semana (01.04.1939): “Negra

do Acarajé, por exemplo, é linda. Não fica a dever nada a ninguém. Há muito de

Brasil primitivo, tosco, nos seus versos e a desmanchar-se na sua musica negra. E

assim os seus números de sucesso absoluto, cantados na Mayrink”. Assegura, no

artigo, que “as músicas nortistas estão na ponta”, reforçando a recepção pela clave

do regionalismo, como na frase a seguir: “(...) veio da Bahia com o estylo próprio

da Roma Negra de Paul Morand”.

No horizonte de expectativa do Brasil, e naturalmente no horizonte carioca,

a Bahia na música não era um tema novo. Só no repertório de Carmen Miranda

havia várias canções que tratavam de temas da terra de Caymmi: “No Tabuleiro

da Baiana” (Ary Barroso/1936); “Baiana do Tabuleiro” (André Filho/1937);

“Quando Eu Penso na Bahia” (Ary Barroso e Luiz Peixoto/1937), em dueto com

Sylvio Caldas; “Na Bahia” (Herivelto Martins e Humberto Porto/1938); “Na

Baixa do Sapateiro” (Ary Barroso/1938); “Nas Cadeiras da Baiana” (Portelo Juno

e Leo Cardoso/1938), para citar algumas. Mas Caymmi não trouxe apenas uma

temática de apelo popular, pois além de suas letras trazerem aspectos e usos da

vida baiana desconhecidos do resto do Brasil, como balangandãs ou os pregões

das baianas, seu trabalho era inteiramente diferente do que se ouvia no rádio de

então. A novidade da sua música não passou despercebida a quem entendia do

assunto. Um exemplo disto é a recepção de “O que é que a Baiana Tem?”, uma

estilização do samba-de-roda da “boa terra”, brejeiro, sensual.

Além do sucesso do samba, uma palavra contida na letra causou estranheza,

atraiu a curiosidade do público e levou jornalistas, folcloristas e antropólogos,

entre outros, a pesquisarem seu significado para explicá-la aos fãs da canção:

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balangandãs. Não foi à toa que César Ladeira o chamou o compositor de Colombo

dos Balangandãs, por ter descortinado tantos aspectos culturais da Bahia,

desconhecidos dos cariocas e dos brasileiros de modo geral. Nesse caso, a

originalidade introduzida pelo samba é temática. Jorge Amado observou que

graças ao samba a palavra “voltou novamente, por assim dizer, a incorporar-se ao

dicionário das palavras vivas... e até discussão de filólogos ela provocou...”. É

Caymmi quem explica:

Balangandã era uma jóia antiqüíssima das negras chiques, negras do partido-alto da Bahia. Era uma corrente usada na cintura por cima da saia. Às vezes corria a cintura em duas voltas. Era uma penca com amuletos, promessas, muitas delas feitas em ouro ou marfim. Era para quem podia. As negras do partido-alto eram baianas que tinham proteção de homens ricos. Chegavam na Igreja do Bonfim ou da Misericórdia com um menino levando uma cadeirinha de ajoelhar para a hora da reza. (Caymmi, 2001, p. 134)

O fato é que se, de um lado, o artista baiano correspondeu em parte ao

horizonte de expectativas da sua época, de outro, ele frustrou, trazendo inovações

que contrariaram as expectativas, o que na visão de Jauss atesta sua originalidade

e valor como obra de arte. No caso de “O que é que a baiana tem?” havia

elementos que se adequavam a expectativa da época – como o tema exótico da

baiana, já abordado em músicas de outros compositores, o ritmo do samba que se

adequava a dança, e, portanto, ao espírito do carnaval – e, ao mesmo tempo, trazia

novidades tanto no vocabulário utilizado quanto na forma original de descrever a

baiana.

Carmen Miranda fez uma temporada no Cassino da Urca nos dias que

antecederam ao Carnaval. O cachê de Carmen havia subido devido ao grande

sucesso do samba de Dorival Caymmi. O grito de guerra A, E, I, O, Urca, criado

especialmente por César Ladeira para a casa do mineiro Joaquim Rolla, anunciava

mais uma noite de grandes atrações. Carmen, vestida de baiana pelo artista

plástico Gilberto Trompowsky, brilhava cantando “O Que é Que a Baiana Tem?”,

acompanhada pelo Bando da Lua, quando chamou a atenção de Lee Schubert,

grande produtor norte-americano, dono da Select Operanting Corporation, que

administrava metade dos teatros da Broadway. Junto com a estrela Sonja Henie,

patinadora do cinema, e Marc Connelly, Schubert desembarcara do Transatlântico

Normandie, no Rio de Janeiro, para passar quatro dias. Schubert decidiu contratar

aquela cantora brejeira, ardida como pimenta, originalíssima, para a Broadway e o

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contrato foi assinado em 27 de março seguinte. Carmen Miranda relatou o fato à

revista O Mundo Ilustrado, em 29 de dezembro de 1954:

A Urca foi meu trampolim. Nessa época, nem sonhava em vestir uma baiana... Acontece que eu tinha de me apresentar cantando O Que é Que a Baiana Tem? e a letra da música explicava que ela tinha isto, tinha aquilo, coisas que a minha fantasia precisava ter. Então pedi ao Trompowsky que desenhasse uma baiana para mim. Foi a minha primeira fantasia. Era branca, com uma barra preta e um Pão de Açúcar ao lado. Para completá-la, comprei na avenida Passos uns colares de mil e quinhentos réis e duas cestinhas de sete mil-réis. Sentindo o sucesso que a originalidade da vestimenta e a beleza da música brasileira fariam nos Estados Unidos, Sonja Henie – a madrinha do meu sucesso – insistia tenazmente com Schubert para me contratar. Ele não queria, mas acabou vencido pela perseverança da minha amiga, e de um dia para o outro eu me vi em palcos americanos, cercada de aplausos por todos os lados.

De fato, a cantora embarcou, no dia 4 de maio de 39, para os Estados

Unidos, levando o conjunto Bando da Lua, para assegurar o acompanhamento fiel

dos sambas que interpretava. Antes, em 29 de abril, gravou mais um samba-de-

roda do de Dorival Caymmi, “Roda Pião”, cantando com ele e acompanhada do

Conjunto Odeon – Luperce Miranda (cavaquinho/bandolim), Tute (Arthur de

Souza Nascimento/violão), Nonô (Romualdo Peixoto/piano), Esmerino Cardoso

(trombone), Walfrido Silva (bateria) e Djalma Guimarães (trompete). O disco foi

lançado em agosto seguinte. A coluna Falando a Todo Mundo, do Correio da

Noite (09.05.1939) comentou:

Carmen Miranda, antes de embarcar para os Estados Unidos, gravou a cantiga infantil de Dorival Caimmy ‘Roda Pião’. A gravação foi feita em duo com o autor da música. Na outra face do disco será impressa esta semana ‘Rainha do Mar’, também de Dorival Caimmy e cantada só pelo autor.

César Ladeira cobre, no Broadhurst Theatre, na rua 44, na segunda-feira,

dia 19 de junho de 1939, a estréia de Carmen Miranda na Broadway, em Nova

Iorque. Vibrante, Ladeira relata numa crônica para a Rádio Mayrink Veiga:

O público a recebe entusiasticamente. Aliás, acolhe-a, quando Carmen começa O Que é Que a Baiana Tem?, com um silêncio angustiante, silêncio que demonstra interesse pela artista do Brasil que lhe é apresentada e que pode transformar-se numa grande vitória ou num fracasso decisivo. E Carmen vence. (Caymmi, 2001, p. 145-146)

A partir daí, A Pequena Notável se torna Carmen Miranda Brazilian

Bombshell e toma os Estados Unidos de assalto. O Imparcial (21.06.1939) noticia

que “Carmen Miranda conquistou o público da Broadway com ‘O que é que a

baiana tem?’, de Dorival Caymmi, Touradas de Madrid e Bamboleo”

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Já famosa nos Estados Unidos, a artista reconheceu com humildade, fato

raro em celebridades, o papel dos compositores no seu sucesso:

Sei que contribuí bastante para a divulgação da música popular brasileira no estrangeiro. Mas, também, a verdade é que tive muita sorte. Em primeiro lugar, tive sorte por ter sido a primeira a trazer números como Tico-Tico, Mamãe Eu Quero, Cai, Cai, O Que é Que a Baiana tem?, Na Baixa do Sapateiro, No Tabuleiro da Baiana, e tantos outros para os Estados Unidos. (Cardoso Júnior, 1978, p. 193)

Em 26 de dezembro de 1939, a cantora gravou “O Que é Que a Baiana

tem?”, em dueto com Aloysio de Oliveira e o Bando da Lua, seu primeiro 78 rpm

nos Estados Unidos, contratada pela gravadora Decca. No ano seguinte, The Mills

Brothers, o famoso grupo vocal americano – ao longo da carreira de mais de seis

décadas o grupo venderia cinqüenta milhões de discos –, que exerceu enorme

influência sobre o Bando da Lua, também gravou o samba. Foi a primeira vez que

um grupo estrangeiro gravou Caymmi no exterior. A versão foi feita por Al

Stillman e o samba recebeu o nome de Brazilian Nuts.

Em Serenata Boêmia, sétimo filme de Carmen Miranda nos Estados

Unidos, lançado pela Fox, alguns anos depois, em 1944, a cantora interpreta mais

uma vez “O Que é Que a Baiana Tem?”. Na película, a cantora, contracena com

Don Ameche, Vivian Blaine, William Bendix, Emil Rameau, entre outros. A

recepção extraordinária ao samba nos Estados Unidos pode ser avaliada pela

influência que exerceu na moda. O samba era um fenômeno nos Estados Unidos,

a baiana era uma febre, seus adornos influenciaram os costureiros da Quinta

Avenida, e eram vistos espalhados pelas vitrines de Nova Iorque. Aloysio de

Oliveira (1983) escreveu em suas memórias:

Uma das mais importantes lojas de Nova Iorque, o Sacks Fifth Avenue, dedicou todas as suas vitrines aos lançamentos da moda baseada na baiana de Carmem (...) E as joalherias passaram a criar pulseiras e colares de fantasia à la balangandans. Caymmi nunca poderia ter imaginado que a letra de O Que é Que a Baiana Tem? viria a ser exposta nas vitrines da Quinta Avenida. (Oliveira, 1982, p. 73)

Ainda no ano de 1939, Josephine Baker, famosa atriz americana, em

temporada no Cassino da Urca, cantou “O Que é Que a Baiana Tem?” e muitos

veículos da imprensa noticiaram que a cantora acrescentou o samba ao seu

repertório em Paris, entre eles O Globo (25.05.1939): “Josephine Baker lançará,

em Paris, o já célebre samba de Dorival Caymmi, ‘O que é que a baiana tem?’”.

A moda dos balangandãs influenciou o espetáculo beneficente organizado

por D. Darcy Vargas, a primeira-dama da República, no Teatro Municipal, entre

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julho e agosto daquele ano. A renda iria para a Cidade das Meninas e a Casa do

Pequeno Jornaleiro, duas entidades que assistiam crianças pobres. O espetáculo,

de dimensões ambiciosas, com mais de 280 amadores da sociedade e alguns

poucos profissionais atuando, chamava-se Joujoux e Balangandãs, nome da

composição de Lamartine Babo – uma marchinha – feita especialmente para a

ocasião e sob a influência dos balangandãs lançados por Caymmi. Seu diretor, o

escritor Henrique Pongetti, fez um espetáculo em dois atos, apresentando as

influências francesa e africana na cultura brasileira em esquetes e números de

canto e dança. A platéia tinha a oportunidade de ver na vitrine do foyer do Teatro

uma exposição de balangandãs autênticos, peças antigas do tempo da escravatura,

algumas de ouro e prata, que pertenciam a colecionadores. Se pairasse alguma

dúvida sobre o sucesso que a palavra vinha obtendo ao longo de todo o ano de

1939, tal exposição em local tão nobre como o Teatro Municipal do Rio de

Janeiro a dissiparia por completo.

Não se pretendia chamar profissionais para participar do espetáculo, exceto

o cantor Mário Reis, que também pertencia à chamada fina flor da sociedade

carioca, cantando “Joujoux e Balangandãs” em duo com Mariah, cantora amadora,

o barítono Cândido Botelho (intérprete de Villa-Lobos), cantando Aquarela do

Brasil, e o maestro Radamés Gnattali, dirigindo a orquestra. Lucilia Noronha

Barroso do Amaral, a cantora que iria interpretar “O Mar”, ficou insegura e

desistiu de participar. Dona Darcy convidou Caymmi para fazer o número. O

artista relata o episódio:

Então, eu fui na costureira e improvisou-se uma roupa de pescador. Arranjou-se um cenário para a ocasião, aproveitando-se o cenário de infinito que estava lá no Municipal, colocaram uma linha de bailarinas da Dona Clara Korte, professora de dança para jovens da sociedade. Ela improvisou um balé ali para fingir ondas. E eu vinha de pescador, me apoiava numa canoa do cenário e cantava O Mar. E depois cantei O Que é Que a Baiana Tem?, apenas com o violão e uma menina cantando comigo a parte feita por Carmen Miranda. (Caymmi, 2001, p. 160)

O cenário da encenação de “O Mar” foi concebido por Gilberto

Trompowski e Fernando Valentim. A apresentação de “O Mar” ofuscou o samba

dos balangandãs e firmou a imagem de Caymmi como cantor e compositor de

canções praieiras. A repercussão do evento foi grande. O jornal O Globo

(21.07.1939), trouxe estampado, em destaque na primeira página, duas fotografias

em que aparecem as bailarinas que encenaram “O Mar”. A legenda cita a

“lindíssima canção de Dorival Caymmi”.

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Também foi de canções praieiras o primeiro disco solo de Caymmi, lançado

em setembro de 1939, pela gravadora Odeon, com “Rainha do Mar” e “Promessa

de Pescador”, que não alcançaram o sucesso de “O Que é Que a Baiana Tem?”.

“Já encontrei dificuldades para agradar meu público na linha do sucesso que eu

vinha fazendo” – assinala o compositor, em depoimento gravado. Como não

obteve a repercussão esperada pela gravadora, teve o contrato rescindido. “Logo

depois consegui fazer dois discos avulsos pela Columbia” – continua. Não foi

difícil, pois lá estava Braguinha como diretor artístico, que não fez pressões nem

contratos exigindo sucesso. No dia 7 de novembro de 1940, gravou “O Mar”, em

duas versões. Para o jornalista e crítico de música Luís Antônio Giron, as

modulações de “O Mar” são “um dos marcos iniciais da liberdade harmônica na

Música Popular Brasileira”. A música, entretanto, não foi uma unanimidade,

como se pode verificar pela reportagem da jornalista Atenéia Feijó, feita para a

revista Manchete, nos anos 70:

Caymi gravou ‘O Mar’, canção acusada recentemente por José Ramos [Tinhorão], em seu livro ‘O Samba agora vai’, de ter sido montada sobre tema de Grieg. Ora, o próprio compositor, em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som, chamou atenção sobre o fato: explicou que muito tempo depois de tê-la composto, notou certa semelhança na melodia, mas tratava-se de mera coincidência. Na verdade, é difícil imaginar que Caymi pudesse ser tão ingênuo a ponto de plagiar um compositor tão célebre.

A vertente das canções praieiras trazia inovações harmônicas de difícil

assimilação pelo público. Eram canções que contrariavam o horizonte de

expectativas da época, diferente da vertente do samba baiano, como “O que é que

a baiana tem?” que, se trazia inovações na temática, correspondia ao horizonte de

expectativa da época, sobretudo no seu ritmo, além da melodia fácil de

memorizar, que se adequava à perfeição no carnaval.

Não foi só Carmen Miranda a perceber a força dos sambas baianos de

Caymmi. Os dois conjuntos vocais de maior importância no período, o Bando da

Lua e os Anjos do Inferno, lançaram vários sambas do compositor ao longo de

suas carreiras alcançando enorme sucesso. A atração que Dorival Caymmi exercia

sobre os conjuntos vocais foi analisada pelo crítico Luís Antônio Giron (Folha de

São Paulo, Caderno Mais, 17.04.1994), que afirmou que o compositor, desde o

início, afastou-se da “quadratura do samba e da canção porque adotou o único

método que tinha à disposição: o modalismo (sistema baseado em escalas

diversas), típico da música afro-baiana”. E finaliza:

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Talvez por se esquivar ao quadrado, tenha sido adotado pelos grupos vocais dos anos 40, como Os Anjos do Inferno, que tentavam a fusão do samba brasileiro com o swing norte-americano. O contorno afro aproximou de viés o estilo de Caymmi ao jazz. Daí ele soar tão cosmopolita desde a estréia.

Esta é uma pista importante para compreender mais à frente a atração

posterior de João Gilberto por esses mesmos sambas. Em 1940, o Bando da Lua

voltou ao Brasil para fazer dois discos pela Columbia. Com um deles, “O Samba

da Minha Terra”, música inédita de Dorival Caymmi, o conjunto alcançou enorme

sucesso. Foi a última gravação do grupo no país. Não há no Brasil quem não

conheça a famosa estrofe “Quem não gosta do samba/ Bom sujeito não é/ É ruim

da cabeça/ Ou doente do pé”.

No ano seguinte, seria a vez de Os Anjos do Inferno gravarem dois sambas

inéditos de Caymmi: “Requebre Que Eu Dou um Doce” e “Você já foi a Bahia?”,

lançados num disco de 78 rotações pela Columbia. Nesse ano, o conjunto vocal e

instrumental já estava na sua segunda formação: Moacir Bittencourt e Filipe

Brasil (violões), os irmãos Antônio (pandeiro) e José Barbosa (violão tenor),

Milton Campos (piston nasal) e Léo Vilar (cantor), que substituía o cantor Oto

Alves Borges, que saíra do grupo em 1936.

A própria Carmen Miranda quando voltou ao Brasil, em 1940, aproveitou

para gravar mais um samba de Caymmi, entre as dez músicas que pretendia

registrar pela Odeon, “O Dengo Que a Nega Tem”, acompanhada pelo mesmo

conjunto Odeon que havia participado da faixa “Roda Pião”. O lado B, do 78

rotações, trazia “É um Quê Que a Gente Tem”, samba de Ataulfo Alves e Torres

Homem. O disco foi lançado em abril do ano seguinte, sem a presença da cantora

que, insegura com o clima desfavorável que encontrou aqui, levou catorze anos

para regressar ao país.

Carmen Miranda foi hostilizada pelo público que foi assisti-la no Cassino da

Urca, em 15 de julho de 1940. Cantou “South American Way”, de Jimmy

McHuch e Al Dubin, e a platéia aplaudiu friamente. “Cantamos juntos ‘O Que é

Que a Baiana Tem?’ e o gelo foi maior ainda” – conta Aloysio de Oliveira, em

suas memórias. Mas não foi só esse episódio. Muitos criticavam Carmen.

Costumavam dizer que ela estava “muito besta”, “metida à prosa”, “cheia do

dinheiro”. Inconformada com as críticas de que estava americanizada, que tinha

desnacionalizado o samba, encomendou um novo repertório.

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Entre os sambas que foram compostos para responder às críticas que a

cantora vinha recebendo, a maior parte deles era da dupla Luiz Peixoto e Vicente

Paiva: “Disso é Que Eu Gosto”, “Voltei Pro Morro”, e o divertido “Disseram Que

Voltei Americanizada”. Este último voltava a mencionar os balangandãs:

E disseram que eu voltei americanizada/ com o burro do dinheiro/ que estou muito rica/ que não suporto mais o breque do pandeiro/ e fico arrepiada ouvindo uma cuíca/ Disseram que com as mãos estou preocupada/ e corre por aí, eu sei, certo zum-zum/ que já não tenho molho, ritmo, nem nada/ E dos balangandãs já nem existe mais nenhum...

Os “balangandãs” ainda aparecem no samba “Diz Que Tem”, de Vicente

Paiva e Aníbal Cruz, gravado pela cantora, em 2 de setembro de 1940: “Ela diz

que tem, diz que tem/tem o cheiro de mato, tem o gosto de coco/tem samba nas

veias, tem balangandãs”. É interessante notar que o letrista usa o verbo “ter” com

freqüência, o que segundo, Caymmi, é um achado que dá força rítmica ao samba

“O Que é Que a Baiana Tem?”.

Dorival Caymmi retornou para a Rádio Nacional no mesmo ano em que a

emissora foi encampada pela União, sob o governo de Getúlio – no dia 8 de março

1940. Gilberto de Andrade foi nomeado diretor. Paradoxalmente, a encampação

da Nacional (PRE-8), longe de prejudicá-la, deu-lhe condições invejáveis,

colocando-a em pouco tempo na liderança do mercado com um cast incrível. Sua

estréia foi noticiada em A Noite (10.05.1940), onde o artista é descrito como “o

notável cantor e autor baiano (...) detentor de grandes sucessos de folklore

brasileiro”. No Jornal da Moças (18.07.1940), na seção Radioatividades, é

publicado um artigo que procura distinguir para o público o falso do verdadeiro

folclore, destacando neste os nomes de Gustavo Barroso, Villa-Lobos, Almirante

e Dorival Caymmi:

A citação dos nomes de Gustavo Barroso e Villa Lobos vem a propósito do falso folclore, que infelizmente, é uma verdadeira praga no meio radiofônico. (...) Almirante e Dorival Caymi. Dentre os poucos folcloristas sinceros do radio, é justo que se destaquem esses dois nomes. Almirante, com as suas notáveis ‘Curiosidades Musicais’, tem sido um precioso elemento divulgador das nossas riquezas no terreno da música e da poesia populares. (...) Quanto a Dorival Caymi, direi que ele difere de Almirante por uma razão fundamental: Fóreis é um estudioso da poesia e da música sertanejas; Caymi é a própria alma do sertão cantando. Caymi é, sem nenhum favor, a nossa maior e mais bela expressão de arte regionalista. Poeta, ele não procura rimas nem rebusca imagens. É simples, espontâneo, expressivo.

O jornal A Tarde (01.02.1940), de Salvador, empolga-se com o sucesso da

Bahia no cenário da música popular brasileira:

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A Bahia vem, de algum tempo para cá, sendo a inspiradora dos nossos compositores populares. O morro deixou de ser a grande atração. O mulato bamba, de violão em baixo do braço, os barracões de zinco, (...) cedeu logar à Bahia, aos motivos da Bahia, aos feitos da Bahia. Hoje, o que há de mais elegante é o nosso traje típico. E não há representação teatral, programa de rádio, não há mais nada que se faça, que lá não esteja a bahiana, dominando e glorificada. A Bahia surgiu e venceu. (...) Além de muitos outros, que também transportaram para a música os motivos bahianos, Ari Barroso escreveu a sua magnífica ‘Baixa dos Sapateiros’, já editada e cantada no estranjeiro. Dorival Caími fez ‘O que é que a bahiana tem?’, a maior vitória da música popular de todos os tempos. Veio depois a ‘Preta do Acarajé’.

Em 13 de junho de 1940, Errol Flynn, famoso ator americano, em visita ao

Brasil, surpreendeu o público ao cantar “O Que é Que a Baiana Tem?”, quando

dava uma entrevista para um jornal brasileiro.

Duas novas composições de Caymmi, de temática praieira, foram lançadas

pela Columbia, em 1941: “É Doce Morrer no Mar” e “A Jangada Voltou Só”. “É

Doce Morrer no Mar’, uma parceria com Jorge Amado, nasceu num almoço de

São João, em Vila Isabel, na casa do coronel João Amado de Faria, pai do escritor,

no ano anterior. Uma turma de amigos estava ali para comemorar a data: Moacir

Werneck de Castro, Otávio Malta, Clóvis Graciano, Érico Veríssimo, além de

Jorge e Dorival. O almoço avançava em clima de tertúlia em que se lia, recitava e

cantava. Caymmi, de brincadeira, anunciou que iria musicar alguns versos de Mar

Morto, romance de Amado, publicado em 1936. Decidiram fazer um concurso

para completar os versos da canção. “Todas as idéias boas foram de Jorge, mas eu

tive de consertar, completar a letra e tal” – comenta Caymmi (Caymmi, 2001,

p.193). No livro, além de “É Doce Morrer no Mar”, havia também versos que

foram aproveitados na canção, como “ele se foi afogar” e “nas ondas verdes do

mar”. Caymmi ainda revela um fato interessante: “os versos de Érico Veríssimo

ficaram sem efeito em função da melodia e do que requeria a canção. Jorge estava

mais senhor da situação” (p. 193). E a toada foi terminada naquele mesma tarde.

Jorge Amado dedicou a Dorival Caymmi, Otávio Malta, Samuel e Bluma Wainer

seu novo livro ABC de Castro Alves, com ilustrações de Santa Rosa, publicado em

março de 1941, pela Editora Martins.

Apesar do sucesso, Caymmi enfrentou dificuldades, como revela em

entrevista para sua biografia: “Eu fui muito marcado pelos medalhões da música

popular brasileira da época, fui invejado e sabotado”. O compositor não esqueceu

de um artigo de David Nasser, em que o jornalista afirmava que Carmen Miranda

cantou “O Que é Que a Baiana Tem?” de cara amarrada. “O que é um acinte. Só

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para tirar a força do sucesso” – comenta o baiano. Wilson Lins, em artigo para O

Imparcial (5.12.1941) comentou o assunto:

Por circunstâncias inexplicáveis, encontram uma exposição surda, por parte de certos broadcasters ‘cariocas e alguns provincianos’. E é o que há de mais triste. Não se compreende como um artista da estirpe de Caymmi encontre combate no seio de seus camaradas, que devem ter nele um motivo de grande orgulho.

Sobre a competição no meio artístico da época, o cantor Cauby Peixoto, que

foi um fenômeno do rádio, explica: “O rádio não tem nada a ver com arte. O

Caymmi se afastou por causa da mediocridade do meio. Não era preconceito – ele

é simples, simpático e humilde demais pra isso. A gente é que não agüenta”

(Caymmi, 2001, p. 190).

Foi em 1941 que Dorival Caymmi fez sua primeira turnê, a partir do convite

de João Duma, proprietário da Ceará Rádio Clube para fazer uma temporada de

dois meses na emissora. De Fortaleza seguiu para Recife, Maceió e Salvador. Por

força das suas canções praieiras que descreviam a vida dos pescadores, Caymmi

foi convidado a fazer um filme de curta duração, pelo Departamento de Imprensa

e Propaganda do governo (DIP), em Fortaleza.

O Correio do Ceará (19.10.1941), entre outros jornais locais, publicou uma

reportagem completa sobre o filme: “Iniciaram-se, ontem, em Mucuripe, os

trabalhos de filmagem do short do DIP, dirigido por Lourival Fontes, casado com

a bela poetisa Adalgisa Néry. Dorival Caymmi transformado em um autêntico

pescador dos ‘verdes mares bravios’”. Rui Santos era o câmera do filme e

Henrique Pongetti, o mesmo do espetáculo “Joujoux e Balangandãs”, fez o roteiro

baseado em uma canção praieira do baiano, “A Jangada Voltou Só”. Além de

cantar, Caymmi atuava no filme como um jangadeiro cearense. “Eu vestia uma

roupa de pescador, botava aquele chapéu de couro pintado de tinta grosseira” –

conta o compositor. O pesquisador Jairo Severiano recorda-se da passagem de

Dorival pela sua terra: “Ele se sentia como se estivesse na Bahia. Logo, se

enturmou com a fina flor da boemia da cidade. Era visto com freqüência nos bares

da praça do Ferreira” (Caymmi, 2001, p. 197).

Praticamente todos os jornais repercutiram sua participação na programação

da Ceará Rádio Club, a apresentação no Teatro José de Alencar e a atuação no

filme do DIP, entre eles O Povo (08.10.1941): “Dorival Caymmi, nome motivo de

orgulho para o patrimônio artístico do país”); Correio do Ceará (14.10.1941):

“Está na terra o autor do mais famoso de todos os sambas até agora feitos no

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Brasil: ‘O que é que a baiana tem’”; Gazeta de Notícias (15.10.1941): “Um

compositor baiano em Fortaleza: estréia o grande folclorista patrício”; O Estado

(22.10.1941), em reportagem assinada por Filgueira Lima: “Dorival Caymmi,

artista de raça, criador do verdadeiro sentido da palavra, psicólogo e poeta”;

Unitário (29.10.1941): “Dorival Caymmi, o maravilhoso autor e intérprete de ‘O

Mar’. O autor de ‘O que é que a baiana tem?’ e de outras belas composições dará

um único recital em Fortaleza”; Correio do Ceará (29.10.1941): “Ouvir Dorival

Caymmi é assistir a um espetáculo diferente, é sentir alguma coisa de original, de

diferente. É escutar o Brasil nas suas origens, na sua tradição”; Gazeta de

Notícias (02.11.1941): “Dorival Caymmi, o cantor das graças de Yemanjá, desde

que chegou à Fortaleza, tem recebido do nosso público as mais consagradoras

demonstrações de simpatia”; O Povo (26.11.1941): “O rádio-ouvinte viveu ontem,

nos estúdios da PRE-9, momentos intensíssimos de emoção, entusiasmo e

encantamento. Caymmi, o grande artista que o Ceará aprendeu a amar, apresentou

o seu recital de despedida”.

O compositor, depois de curta passagem por Recife e Maceió, em que

realizou algumas apresentações, chegou a Salvador, onde foi recebido como herói.

Dorival Caymmi saíra anônimo e voltara famoso. Foram muitas as homenagens e

os compromissos profissionais ao longo dos quatro meses em que permaneceu em

Salvador. Fez três espetáculos ao ar livre e mais três programas na Rádio

Sociedade da Bahia, entre outras apresentações. Todos os seus compromissos

foram patrocinados pela prefeitura da cidade. Wilson Lins, jornalista e político,

auxiliou o prefeito Durval Neves da Rocha, pessoalmente empenhado em

homenagear o baiano. Em artigo sobre Caymmi, para O Imparcial (24/12/1941),

Lins escreveu:

Não é apenas um cantor de rádio. (...) A sua arte não tem apenas a intenção de distrair, não. As intenções ocultas da arte poderosa desse compositor notável sugerem coisas que deixam a gente besta. Talvez nem Caymmi saiba o que significa, para o espírito das novas gerações, a sua arte admirável. (...) Caymmi é o sociólogo prescrutador da música popular brasileira. (...) Caymmi é um grande propagandista da Baía e das coisas da Baía. Nesses quatro anos de atividade artística, ele fez mais pela Baía que os bureaux de propagandas.

Caymmi retornou ao Rio de Janeiro. Havia enorme dificuldade de

transporte na época devido ao chamado “esforço de guerra” que dava preferência

aos militares em trânsito. O compositor não podia fazer viagens de longa distância

como a que fez ao Ceará ou mesmo para mais perto. Era sempre uma incógnita

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saber se conseguiria chegar a tempo para uma apresentação. Preferia não arriscar.

Fazia shows em São Paulo e Minas, além do interior do Estado do Rio.

Assis Chateaubriand procurou Caymmi para gravar “Acalanto”, canção que

fizera para sua filha Nana, para encerrar a programação de todas as suas emissoras

de rádio. “Acalanto” se tornou uma das cantigas de ninar mais conhecidas do país.

A gravação aconteceu em 1943, com a participação do Coro dos Apiacás, dirigido

por D. Lucília Guimarães Villa-Lobos, primeira mulher do maestro e compositor.

A cantora Stella Maris, esposa de Caymmi, que havia abandonado a profissão

para se casar, participou do registro. Stella só voltaria a gravar nos anos 60, no

disco que reuniria sua família e Tom Jobim.

Foi por essa época que o compositor pensou em estudar música seriamente.

Já havia começado a estudar em casa por conta própria quando comentou com

Villa-Lobos e Radamés Gnattali o projeto. Ambos o dissuadiram da idéia.

Temiam que Caymmi perdesse sua espontaneidade de compositor popular. Em

vista disso, ele desistiu dos planos. Em São Paulo, viveu momentos de ídolo

popular nas suas apresentações pela Rádio Tupi, celebrado como O Cantor dos

Mares do Norte. No dia da estréia, em 17 de abril de 1943, que praticamente

fechou a rua, o estúdio sofreu um prejuízo. O Diário de S. Paulo (18.04.1943)

noticiou:

O grande autor e intérprete criador de O Mar, Abaeté, Saudade Matadera e tantas outras maravilhosas páginas musicais, teve comprovada a sua enorme popularidade em São Paulo, com uma grande multidão que foi aplaudi-lo no auditório da PRG-2. Foi de tal forma o interesse do público em conhecer o novo cartaz das Lãs Sams, famoso principalmente pela sua criação O Que é Que a Baiana Tem?, que algumas dezenas de ‘fãs’, não se conformando com o fato de já estar completamente lotado o auditório, num assomo do mais culminante entusiasmo puseram abaixo a porta principal dos estúdios da G-2.

Meses depois, o jornal Diário da Noite (19.11.1943) publica: “Dorival

Caymmi, que deu fama e vestiu o samba brasileiro, que criou modas e disse muito

mais da Baía nos seus sambas que todos os versos do poetas de lá”. E, em

entrevista, revela as preferências de leitura do compositor, em que prevalece o

interesse pelo folclore: “Leio tudo que existe sobre folclore, raças e costumes.

Tenho em casa uma pequena biblioteca formada por Jorge Amado, Érico

Veríssimo, Basílio de Magalhães, Gustavo Barroso, Jorge de Lima, Nina

Rodrigues e Câmara Cascudo”. Nino Guimarães, no Diário de Notícias

(01.03.1944), reforça a recepção de folclorista do artista: "Dos compositores

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nacionais, Dorival Caimi aparece num plano de destaque, o que se justifica pelos

seus valiosos serviços prestados à nossa música folclórica e regional”.

A vida noturna no Rio de Janeiro tinha muitas opções. O jogo era permitido

e cada cassino apresentava um espetáculo mais grandioso que o outro. O Cassino

da Urca era muito procurado. Havia também o Cassino Atlântico, próximo do

Forte Copacabana. Mas nada poderia se equiparar à elegância do Cassino do

Copacabana Palace. Os cassinos mantinham, no mínimo, duas orquestras se

revezando em seus salões. O mercado para cantores, músicos e atores não podia

ser melhor. Os estrangeiros com condições financeiras acabavam vindo para o

Rio, fugindo da guerra que assolava a Europa. Não raro, famosos atores de

Hollywood vinham passar uma temporada na cidade. Para não perdê-los para

Buenos Aires, os produtores se esmeravam nas atrações. Davam preferência aos

artistas estrangeiros como Jean Sablon, Pedro Vargas, Marta Eggerth, Jan Kiepura,

John Boles, Adelina Garcia, Josephine Baker (a Vênus de Ébano), Elvira Rios,

Tito Guizar, Libertad Lamarque, entre outros. A explicação de Caymmi para isso

era simples: “Não há comparação. Você entra num auditório de rádio, senta e vê o

artista nacional. Naquele tempo você via seu artista predileto até na rua” (Caymmi,

2001, p. 217). O artista estrangeiro gerava mais expectativa e atraía um público

mais sofisticado. Entretanto, a imprensa reclamava constantemente da ausência de

espetáculos de artistas nacionais nos cassinos, principalmente no Copacabana

Palace. Foi Dorival Caymmi quem quebrou este jejum firmando sua posição de

showman em um grande espetáculo, um marco em sua carreira que contava apenas

seis anos.

O barão Von Stuckart, diretor-artístico do Copacabana Cassino Teatro, do

Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, telefonou para o artista dizendo que o

queria como atração principal do espetáculo daquela temporada no grill-room do

Cassino. Ele foi convidado para estrelar, sozinho, por dois meses, um show no

Copacabana Palace, um verdadeiro templo da elegância do Rio de Janeiro. A

produção de Jangadeiros, título do espetáculo cujo tema era centrado nas canções

praieiras do compositor, pôs seu elenco fixo à disposição do artista: Carmen

Costa, Quatro Ases e um Coringa, Nuno Roland e Nelson Gonçalves, entre outros.

Sem falar, é claro, das inúmeras coristas. O repertório era exclusivamente de

composições do baiano. O maestro Radamés Gnattali ficou responsável pelos

arranjos e regência da orquestra, com a nata dos músicos da época. O espetáculo

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custou a pequena fortuna de dois mil contos de réis a Otávio Guinle, dono do

Cassino, valorizou o salário de Caymmi na Rádio Tupi que passou de mil e

oitocentos para quatro mil e quinhentos cruzeiros, e reforçou a imagem pública

ligada ao mar do compositor, que se apresentava vestido de pescador.

Enquanto isso, as tradições da Bahia continuavam despertando a atenção da

imprensa e da intelectualidade, como se pode verificar na crônica da escritora

Rachel de Queiroz que saiu em defesa do comércio de doce das baianas no Rio de

Janeiro, escrita para o jornal Folha Carioca (05.08.1944) – é interessante observar

aqui como a imagem de Dorival Caymmi já ocupa no imaginário popular um

lugar de referência para os usos e costumes baianos, não só quando a crônica se

refere a ele diretamente, mas quando critica pesadamente a baiana estilizada de

Carmen Miranda, para consumo de Hollywood, indicando que o compositor está

descolado da figura da cantora, ainda que ela o tenha lançado:

Um ilustre confrade da imprensa diária denunciou há dias certa ameaça que me encheu de alarme e de mágoa: pretendem as autoridades cariocas acabar com o comércio de doces das baianas (...) Gostamos de baianas na cozinha, no radio ou no cinema, sem falar dos que gostam muitíssimo de baianas dentro de casa. Ensinamos até os americanos a apreciá-las; e não é culpa nossa nem delas se os americanos as estragaram, as estilizaram, as deturparam, transformando-as numa espécie de carro alegórico; também não era fácil fabricar uma baiana de verdade com uma portuguesa e alguns penachos! (...) Não podemos nós nem as baianas pagar pelos pecados de Hollywood. (...) Senhora Autoridade, ai, decerto nunca foi à Bahia, numa segunda-feira do Bonfim! Nunca viu de perto as baianas lindas e líricas, flutuando nas ondas engomadas das saias brancas, o peito de pomba-rola nas rendas do cabeção, a chinela miudinha... mal a gente começa a falar em baiana, fica feito personagem de Dorival Caimi...

Os Anjos do Inferno, que já haviam lançado, com sucesso, pela Columbia,

três sambas inéditos de Caymmi, “Vatapá” – um samba-receita na opinião do seu

autor – e “Rosa Morena”, em 1942, e, no ano seguinte, “Tem Dó” (em parceria

com Antônio Almeida, Alberto Ribeiro e Braguinha), tornaram a gravar duas

músicas inéditas do compositor, dessa vez pela gravadora Continental: “Acontece

que eu sou baiano” e “Vestido de bolero”. Esta última, aliás, um samba ao estilo

brejeiro da Bahia, enfrentou problemas com a censura e quase o disco não sai em

1944. O DIP resolveu implicar com a letra do samba que originalmente dizia:

Se o casaco for vermelho Todo mundo vai usar Saia verde e amarela Todo mundo vai gostar

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O censor do DIP implicou com o vermelho. Achou que misturar as cores da

bandeira com vermelho era uma alusão ao comunismo. ‘Convidou-o’, então, a

mudar as cores. “O Departamento não só controlava a imprensa e as diversões

como também procurava interferir na criatividade dos artistas, através de

‘conselhos’ e ‘sugestões’” – explica o pesquisador Jairo Severiano, autor do livro

Getúlio Vargas e a Música Popular (1983, p. 30). O compositor, que não tinha

nenhuma intenção panfletária quando fez a letra, substituiu o trecho por “saia

verde, azul e branco” e a música foi liberada.

A nova produção da Disney, The Three Caballeros, exibido naquele ano,

recebeu no Brasil o título de uma canção sua: Você Já foi à Bahia? No filme, o

samba de Caymmi era apresentado inicialmente numa versão instrumental e

depois entrava interpretado por um conjunto vocal. Outras músicas entraram na

trilha do desenho: “Na Baixa do Sapateiro”, com o nome de “Bahia” – como é

chamado o samba no exterior e que obteve enorme sucesso –, e “Os Quindins de

Iáiá”, ambas de Ary Barroso e interpretadas por Aurora Miranda, irmã de Carmen;

e “Pregões Cariocas”, de Braguinha, que entrou como música incidental. Por trás

desta produção estava Aloysio de Oliveira, que desligado do seu trabalho com

Carmen, fazia parte da equipe dos estúdios Disney. No ano anterior, fora exibido

outro filme de Walt Disney, Saludos Amigos, com o título brasileiro de Alô

Amigos, tudo dentro do espírito da política da boa vizinhança.

Em 1945, Caymmi e Stella saíram do Grajaú e mudaram-se para o Leblon.

O jornalista Antônio Maria escreveu diversas crônicas sobre esse período de

Caymmi no Leblon, como a de 9 de janeiro de 1952 (Caymmi, 2001, p. 227).

Antigamente na pátria Leblon, uma das coisas melhores do mundo era ficar no bar do Costa, o Clipper, e beber o scotch mais gostoso do mundo. Lá estava o Jimmy, quase sempre vinha o Rocha. Caymmi chegava e sentava ao lado. Era o melhor papo da margem do Atlântico.

Maria, no início de uma de suas crônicas do livro Pernoite (1989, p. 46),

intitulada “Roteiro Leblon”, escreveu: “Se Caymmi não fosse preguiçoso como

uma procissão, ninguém melhor que ele para escrever esta história. Ninguém sabe

e sente tanto quanto ele o que acontece do posto de gasolina do Jardim de Alá à

pedra onde o hotel está encravado”. Caymmi era um habitué das crônicas de

Maria.

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4. Recepção à Obra de Dorival Caymmi: 1946-1958 Mapeamento Il

4.1. Fase de Transição ou Pré-Bossa Nova

A guerra finalmente acabou. As tropas brasileiras regressaram da Itália. No

Brasil, encerrava-se mais um ciclo histórico. O país vivia agora um imenso

paradoxo. Como conciliar a imagem do governo que participa da guerra em defesa

da democracia com o governo autoritário e repressor, como era a ditadura Vargas?

Getúlio Vargas foi deposto pelo Exército – pelo general Góes Monteiro –, após

uma ditadura de 15 anos. Eurico Gaspar Dutra venceu as eleições para presidente

naquele ano. Meses depois, decretou o fim do jogo. A decisão do presidente

mudou o panorama artístico do Rio de Janeiro e do Brasil. Obrigou todos os

cassinos a encerrarem suas atividades e, como conseqüência, deixou centenas de

pessoas desempregadas, incluindo todos os artistas – músicos, atores, cantores,

dançarinos – que tinham nos shows dos cassinos sua principal fonte de renda.

Além de tudo, foi um golpe na noite carioca.

Era o fim do Estado Novo e da Época de Ouro. O horizonte de expectativa

se modificava rapidamente. Iniciava o período da música popular brasileira que

consolidou o samba-canção, entre 1946 e 1957, sem esquecer o boom do Baião,

um dos fenômenos que marcou esta fase. Por ser encarada como uma fase de

transição entre a Época de Ouro e o surgimento da Bossa Nova, em 1958, e na

falta de uma nomenclatura marcante, alguns pesquisadores costumam chamar o

período de pré-Bossa Nova. Jairo Severiano, que prefere chamar de música

popular brasileira a produção que vai até 1957, e de moderna música brasileira a

produção que é feita partir de 1958, resume em seu livro com o jornalista e crítico

de música Zuza Homem de Mello:

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O período 1946-1957 funciona como uma espécie de ponte entre a tradição e a modernidade em nossa música popular. Nele convivem veteranos da Época de Ouro, em final de carreira, com iniciantes que em breve estarão participando do movimento bossa nova. Suas maiores novidades são as modas do baião e do samba canção depressivo, o chamado samba fossa. A primeira vigorou de 46 a 52 e a segunda, entre 52 e 57. (...) Na realidade, já existia na época um clima favorável a esse tipo de canção, com a invasão do bolero e a repercussão da polêmica Dalva/Herivelto. Mas, sem as letras de Antônio Maria e voz de Nora Ney dificilmente o samba-de-fossa se transformaria em mania nacional. (Severiano & Mello, 1997 p. 241)

Os autores chamam a atenção para o declínio da música de carnaval no

período. Entre os iniciantes que eles consideram precursores da Bossa Nova,

destacam os cantores Dick Farney, Lúcio Alves, Dóris Monteiro, Silvia Teles; o

grupo vocal Os Cariocas; Os músicos Chiquinho do Acordeon, Johnny Alf

(também cantor), Luís Bonfá, Moacir Santos, João Donato, Paulo Moura; os

compositores e cantores Tito Madi, Dolores Duran, Billy Blanco, o arranjador

Lindolfo Gaya, além de Antonio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes e João

Gilberto – personagens principais da Bossa Nova. Sobre as novidades

tecnológicas do período, os pesquisadores esclarecem:

São excepcionais as inovações que chegam ao país: a televisão (1950), o elepê de 33 rotações (1951), o disco de 45 rotações (1953) e o aperfeiçoamento do processo de gravação do som, com o emprego da fita magnética e da máquina de múltiplos canais, em substituição ao antigo registro em cera. Acompanhando essas inovações, passam a ser fabricadas modernas eletrolas, os chamados aparelhos ‘hi-fi’, com evidente melhoria na reprodução das gravações. (Severiano & Mello, 1997 p. 242)

Caymmi viveu no Rio de Janeiro a década de transição do ambiente cultural

carioca, a década de 40. Com a crescente influência da cultura americana através

do cinema, da música e de todos os modismos que traziam, pouco a pouco, o

comportamento do carioca foi mudando, e o restante do Brasil seguia a reboque

da Capital. Se quando Caymmi chegou ao Rio o centro dos acontecimentos

culturais e de entretenimento era os cabarés da Lapa e os teatros de revista da

Praça Tiradentes, além da Cinelândia, com seus cinemas e casas de chá, alguns

anos mais tardes, as boates de Copacabana, íntimas e pequenas, passaram a ser

sinônimo da vida noturna carioca, que teve em Antônio Maria seu mais talentoso

cronista e freqüentador, e em Caymmi uma das suas grandes atrações.

Esse processo chegou ao auge nos anos 1950. O Brasil “Joujoux e

Balangandãs” perdera a força. A influência francesa na nossa cultura diminuíra

consideravelmente e temas africanos já não despertavam tanta curiosidade do

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público, fascinado pelos musicais americanos, pelas vozes de Bing Crosby e

Frank Sinatra, pelos passos de Fred Astaire e Gene Kelly, pela beleza de Rita

Hayworth e Ava Gardner. As big bands norte-americanas invadiam as rádios e

rapidamente começaram a aparecer orquestras brasileiras montadas nos mesmos

moldes, como a do maestro Carioca; a Tabajara, de Severino Araújo; a de

Oswaldo Borba; a Fon-Fon e Sua Orquestra, de Otaviano Romero Monteiro; a de

Napoleão Tavares e Seus Soldados Musicais.

Caymmi viveu essas experiências, absorveu com originalidade as mudanças

dos ventos dos costumes e os incorporou à sua obra, numa nova fase musical,

chamada a fase das canções urbanas ou românticas. Canções como “Marina”

(1947), “Saudade” (1948), esta em parceria com Fernando Lobo, “Nunca Mais”

(1949), as primeiras desta época, caíam como uma luva nessa nova época da

boemia carioca. A qualidade de suas músicas permanecia a mesma. Continuava

um compositor absolutamente original. Alguns pesquisadores e críticos, como

João Máximo, chegam a considerar a fase das canções urbanas de Caymmi melhor

que a das canções praieiras, apesar desta última ser mais marcante.

Na fase urbana, por outro lado, soube captar os anseios de uma época, e de

uma classe média ansiosa por viver uma vida próxima do que lhe era apresentado

nos filmes, e colocá-los em canções. E, nesse sentido, Caymmi participava da

mudança de horizonte de expectativa do período e naturalmente sua produção era

influenciada por ela. Era a um só tempo produtor e leitor/ouvinte e, portanto, sua

obra dialogava com as mudanças. Em tempos de pós-guerra, em meio às ameaças

de bomba atômica, importava viver o aqui e o agora. Era exatamente esta geração

que ouvia Dorival Caymmi. De todo modo, Caymmi não esgotou jamais a fase

praieira e seus discos mais importantes dessa vertente da sua produção foram

lançados exatamente na década de 50, período em que atingiu o auge da carreira.

Tampouco a vertente baiana foi abandonada. A despeito disso, recebeu duras

críticas pela nova safra de composições, que contou com um parceiro assíduo em

pelo menos sete canções, Carlos Guinle. Juntos assinam sete canções: “Sábado em

Copacabana”, “Valerá a Pena”, “Não Tem Solução”, “Tão Só”, “Ninguém Sabe”,

“Você Não Sabe Amar” e “Rua Deserta”, as duas últimas também em parceria

com Hugo Lima, amigo que fazia parte da roda de Guinle.

O compositor conheceu Carlinhos, jovem empresário da família Guinle,

quando fez o show “Jangadeiros”, no Copacabana Palace. Tinham em comum,

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entre outras coisas, o amor pelo mar – e, dizem, pelas mulheres. A afinidade era

tanta que Carlinhos se tornou o parceiro mais freqüente em sua obra (com Jorge

Amado, o compositor fez seis músicas), ao menos oficialmente, apesar das más

línguas, que concordavam com Stanislaw Ponte Preta, que fazia uma gozação com

a dupla, dizendo que na parceria Caymmi entrava com letra e música e o playboy

com o uísque. Não faz muito tempo, o compositor declarou: “A verdade é que

Carlinhos não fez nenhuma dessas músicas. Eu queria mesmo era homenageá-lo”

(Caymmi, 2001, p. 220). O mais provável na questão da participação ou não de

Guinle nas composições de Caymmi é o milionário ter entrado com uma idéia

aqui, outra ali. Dentro do conceito de fusão de horizontes destaca-se o que Jairo

Severiano escreveu no prefácio da biografia do compositor, em 2001, sobre a fase

dos sambas-canção urbanos, iniciada no fim dos anos 1940:

Mais adiante, integrando-se à vida carioca, sem perder a baianidade, ele criaria a quarta vertente, a dos requintados sambas-canção. Aliás, requintados como já eram as músicas que compunha em outros gêneros. Impressionando pela simplicidade da linguagem utilizada, suas composições têm letra e melodia muito bem trabalhadas, com cada palavra se casando com as notas adequadas aos efeitos desejados, num exercício de paciência perfeccional. Daí, a decantada lentidão de seu método de compor, em parte responsável pela fama de preguiçoso que o persegue. (Caymmi, 2001, p. 13-14)

Severiano tinha 14 anos quando ouviu pela primeira vez a música de

Dorival Caymmi, em 1941, quando o compositor cumpriu temporada na Ceará

Rádio Clube, em Fortaleza. Ele observa que as três primeiras vertentes que

reconhece na sua obra já existiam:

Detalhe importante: as músicas cantadas nessa temporada, relativas tão somente aos anos iniciais de sua carreira, já eram de alta qualidade, nada ficando a dever às que viriam depois. São cerca de 15 composições, entre as quais os futuros clássicos “O mar”, “É doce morrer no mar”, “A jangada voltou só”, “Você já foi à Bahia?”, “O que é que a baiana tem?”, “A preta do acarajé” e “Roda pião”. Dessas, as três primeiras são canções praieiras, as duas seguintes sambas sacudidos, inspirados no samba de roda, e as duas últimas composições desenvolvidas sobre motivos folclóricos. Na verdade, um repertório que apresenta três das principais vertentes da obra caymmiana, as vertentes baianas. (Caymmi, 2001, p. 13)

A fase dos requintados sambas-canção, como chama Severiano, causou

estranheza e mesmo repúdio para os acostumados com suas pungentes canções

praieiras e sambas-de-roda com temática baiana, que marcava a recepção das

obras de Caymmi desde o início da carreira, sempre com o acento folclórico e

regional. Ele foi duramente criticado por parte da imprensa pelo novo gênero de

composições a que passou a se dedicar, principalmente em fins dos anos 40 e ao

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longo de toda a década seguinte. Tal reação era parcial, mas indica que a crítica se

dividiu. É certo que a recepção a essa nova fase não vinha com a quase

unanimidade que acompanhou as demais vertentes do seu repertório até ali.

O jornalista de São Paulo, Arnaldo Câmara Leitão, em sua coluna Rádio

Show, escreveu um pesado artigo, com conotações políticas, com o título O Outro

Caymmi:

(...) Outra particularidade, tristemente notória no atual Caymmi, são alguns de seus últimos sambas. Parece que as aristocráticas boemias, em que o compositor tem andado de tempos para cá, estão influindo negativamente em sua produção. Dorival Caymmi está se afastando do povo. Mormente os sambas-canções tipo dos feitos em parceria com o milionário Guinle, românticos, sofisticados e burgueses, traduzem um estado mental suficiente e acomodado, completamente ao inverso daquele que gerou páginas admiráveis, já integradas em definitivo no melhor cancioneiro nacional, que narram a luta e o sofrimento do nordestino do mar e da cidade. Mas, claramente, esse será o tributo pago às reportagens publicitárias valorizadoras, ao champanha e uísque das mansões confortáveis, aos cruzeiros marítimos de iate, etc. Ou será que um dos até agora compositores populares máximos do país atingiu o saturamento criador? (Caymmi, 2001, p. 220)

Os sambas-canção de Caymmi eram muito modernos para a época – e nem

todos percebiam sua originalidade. A crítica de Câmara Leitão demonstra as

dificuldades de uma geração com as modificações – não só na música – que o

Brasil e o mundo vinham sofrendo. Um mundo cansado de guerras e em busca do

tempo perdido. O Brasil, mais que nunca, vinha num esforço de modernização

crescente, principalmente industrial, que também se refletia na cultura. A classe

média urbana crescia e se mostrava dócil à influência americana. O país entrava

numa fase de prosperidade, o que dificultava o avanço de ideais revolucionários.

A esquerda ainda teve que engolir um duro golpe, com Vargas retornando ao

poder democraticamente, pelo voto.

A resistência às novas composições do artista também pode ser verificada

nas críticas da jornalista Isa Silveira Leal, na revista Radar (21.9.1950): “Não é no

ambiente artificial de uma boate que se criam coisas como É Doce Morrer No

Mar”. A jornalista criticava frases – que considerava frias – como “não tem

solução” e “convém a nós” e pedia: “Caymmi, por favor, não se transforme!

Continue aquele mesmo poeta que já estávamos acostumados a admirar”.

Entretanto, em 1947, pela Odeon, Orlando Silva, legítimo representante da

Época de Ouro, conhecido como O Cantor das Multidões, gravou “Saudade”, um

dos sambas-canção dessa nova safra, composta em parceria com Fernando Lobo.

Um fenômeno típico de um momento de transição, como bem assinalaram Jairo

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Severiano e Zuza Homem de Mello (1997), em que o tradicional convive com o

moderno. Ao mesmo tempo demonstrava que, no meio artístico, havia quem

absorvesse as mudanças, ainda que não fosse fácil.

4.1.1. Canções Urbanas

Não foi só Orlando Silva a gravar Dorival Caymmi em 1947. “Marina”, um

dos seus sambas-canção que, junto com “Saudade”, apontaria para esta nova fase

do compositor, a das canções urbanas, contaria no mesmo ano com quatro

gravações. O acontecimento derrubava o tabu existente entre as gravadoras que

impediam que mais de um intérprete gravasse a mesma canção. O cantor

Francisco Alves, O Rei da Voz, outro fenômeno da Época de Ouro, se renderia à

beleza de “Marina”, gravando-a originalmente pela Odeon, além dos cantores

Dick Farney pela Continental – que fez a gravação mais famosa e que vivia nos

EUA, de onde retornaria no ano seguinte –, Nelson Gonçalves, pela RCA-Victor e

do próprio Caymmi, que quis dar a sua versão à canção. A gravação que Caymmi

fez do samba-canção, em 11 de julho de 1947, comprova sua necessidade em

escapar da concepção de acompanhamento baseada no regional, modelo

vigente/muito em voga na maioria das gravações da Época de Ouro, praticamente

uma imposição das gravadoras e rádios. É ele mesmo quem conta:

Aconteceu que eu fiz Marina. Fui para a Victor e disse: ‘Quero gravar essa música’. Disseram: ‘Canta aí. É uma beleza!’. Eu avisei: ‘Não quero botar regional com flauta. Bastam dois violões, um cavaquinho, um bandolim e um pandeiro. Tem um rapaz que toca na Rádio Mauá, mas não tem chance, não tem oportunidade. Ele é um instrumentista solitário, que toca bandolim’. Era o Jacó do Bandolim, um virtuoso, que trabalhava numa Vara de Justiça ali perto. Fiz amizade com ele. Marina foi um negócio assim: Jacob abria com uma introdução muito refinada, eu cantava Marina, com ele fazendo aquele floreio, dois violões, o Dino Sete Cordas (Horondino Silva) e o Meira (Jaime Florence), e Canhoto II (Waldiro Frederico Tramontano) no cavaquinho, um pandeiro e um reco-reco. No contrabaixo, Tarzan. Eu eliminei da gravação o aspecto comum do regional. Ficava muito igual. Então, eu fiz assim: tira a flauta, tira o instrumento de sopro, saxofone, não bote excesso de ritmo, de bateria, surdo ou qualquer coisa exagerada. Deixa um pandeiro discreto, bota um cavaquinho para fazer o ritmo, e bote para colorir Jacob do Bandolim. (Caymmi, 2001, p. 254-255)

No lado B do 78 rpm em que gravou “Marina”, o compositor lançou “Lá

vem a baiana”, um autêntico samba sacudido, como costuma chamar os sambas

tipicamente baianos, em que torna a descrever a baiana e seus encantos na arte de

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seduzir, o que por si só desmente que estivesse abandonando suas características

para se dedicar unicamente aos sambas-canção modernos.

Jorge Amado convidou Caymmi para compor as músicas da adaptação

teatral de seu romance Terras do Sem-fim, feita por Graça Melo. O compositor era

avesso a compor por encomenda. O jeito encontrado por Amado foi levá-lo com a

família para seu sítio em Nova Iguaçu e praticamente obrigá-lo a compor. Foi

neste sítio, batizado de Peji de Oxóssi, que significa altar do orixá da caça, que

Caymmi compôs quatro canções, três em parceria com o escritor, “Cantiga de

Cego”, “Retirantes” e “Canto de Oba”, além de “História pro Sinhozinho”. A

peça, encenada no Teatro Ginástico, no Rio, em agosto de 1947, contou com um

elenco de primeira categoria, em que se destacavam Ziembinsky, Cacilda Becker,

Maria Della Costa, Ruth de Souza, Jardel Filho e Sandro Polloni, entre outros. Na

direção do espetáculo estava Zigmunt Turkow e os cenários eram do paraibano

Santa Rosa, poeta e desenhista, ilustrador de vários livros de Amado. A revista

Cena Muda (12.08.1947) publicou uma foto de Caymmi com a legenda: “Dorival

Caymmi, autor da música que acompanha a peça ‘Terras do sem-fim’, de Jorge

Amado e Graça Melo, que marcou a volta de ‘Os Comediantes Associados’”.

Foi nesse mesmo ano que Dorival Caymmi lançou o livro Cancioneiro da

Bahia, pela Livraria Martins Editora, a mesma de Jorge Amado. O escritor e

Clóvis Graciano convenceram Caymmi a fazer um livro com suas canções. As

ilustrações são de Graciano e o prefácio é de Jorge Amado, que teve participação

ativa na obra. Os comentários atribuídos no livro a Caymmi, na verdade saíram do

punho do autor de Mar Morto, a partir de depoimentos de compositor e da sua

própria imaginação. Assim como o escritor também colaborou com a divisão ora

temática (canções do mar, mas tarde designadas canções praieiras) ora

obedecendo a gêneros musicais (sambas) da obra de seu compadre.

Em 1947, o artista contava em sua obra (número oficial) sessenta e duas

canções. Trata-se do número de canções que consta na primeira edição do

Cancioneiro da Bahia. Parece pouco, mas seria praticamente metade de toda sua

obra. Obra considerada pelos especialistas como pequena e perfeita. No livro, as

canções de Caymmi estão classificadas como Canções do Mar, Sobre Motivos do

Folk-lore, Cantigas do Folk-lore Bahiano (com essa grafia) e Sambas. Na orelha

da obra – segundo o compositor provavelmente escrita pelo próprio Amado – é

chamado de “verdadeiro e legítimo poeta”:

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Talvez este seja o primeiro caso de se reunir em livro, numa edição feita com esmero e com todos os cuidados da arte gráfica, a obra musical de um compositor popular. Ocorre porém que Dorival Caymmi, Cantor das graças da Bahia, é além de um inspirado músico, um verdadeiro e legítimo poeta. (...) Caymmi é sobretudo o poeta da Bahia. Jorge Amado, o grande romancista, chamou-o, certa vez, o Castro Alves redivivo, o Castro Alves da música popular. Na verdade, muitas as afinidades existem entre um e outro. E, mais recentemente, Pablo Neruda, o altíssimo poeta chileno, por sugestão das composições de Caymmi, visitou a Bahia e lá, numa oração de amor à terra de Jubiabá, afirmou que aquele cantor, ‘com voz doce e profunda, leva sua saudade da Bahia por todo céu do Brasil’. E assim é realmente. A inspiração do músico-poeta está enraizada ao gênio do povo do seu solo e ‘só ele faz o samba e a canção bahianas, só suas melodias são bahianas’. (Caymmi, 1947, orelha)

Caymmi só pôde publicar no Cancioneiro da Bahia apenas um pequeno

trecho da partitura de cada canção, pois, na época, os direitos eram todos das

editoras de música, que não tinham interesse em perder a exclusividade na

impressão das canções. O compositor, que recebeu seu primeiro exemplar em 8 de

novembro, relata:

Pelo direito autoral só podiam entrar até quatro compassos para ilustrar musicalmente, para saber de que música se tratava. Quando a música ainda não tinha editora, eu colocava a canção por inteiro, mas são raras no livro. Ficou tudo pronto muito rápido. Clóvis foi entregando as ilustrações e Jorge fez um prefácio em cima da perna, coisa que não deu trabalho. (Caymmi, 2001, p. 259)

Sobre o ilustrador, é comentado na orelha: “Clóvis Graciano (...) era o

artista indicado para ilustrar o poeta Dorival Caymmi. Pelas gravuras do pintor

paulista salienta-se o sentido social e político, o aspecto humano e cultural da obra

desse músico que conquistou o difícil aplauso popular”.

Jorge Amado, em seu prefácio, já salienta a importância de “O Mar” no

conjunto da obra de Dorival Caymmi. Apesar de ver conotações sociais na obra de

seu conterrâneo ele nega seu envolvimento político através das composições:

Enternecido poeta dos pescadores. Chegando aí à obra-prima como O Mar. Não creio na arte pela arte e eis que esse compositor tampouco o crê. Não que seja interessadamente social ou político. Mas o social – e mesmo o político – se impõe sobrando da dor em torno, da miséria em derredor. A vida difícil dos pescadores lhe fornece suas melhores composições...

Sergio Milliet – ensaísta, além de crítico literário e de artes plásticas –

publicou crítica do Cancioneiro da Bahia, no Jornal O Estado de S. Paulo (27.11.

1947):

O cantor baiano, que conquistou o grande público, mas também bom número de intelectuais, sabe principalmente escolher seu repertório. No folclore da ‘boa terra’ é que ele o tem encontrado mais amiúde. O tema principal é desenvolvido pelo

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compositor com exata compreensão do espírito de sua terra, com uma simpatia que nada esquece e uma acuidade que seleciona sem hesitações o mais característico.

Para Milliet, a obra é “indiscutivelmente útil”, pois são registrados “certos

momentos regionais e mestiços que talvez venham a desaparecer dentro em

pouco”. Flávio Cavalcanti escreveu, em Mundo Social (21.12.1947), sua coluna

dominical no jornal carioca Folha da Manhã, que o livro já havia se esgotado em

São Paulo. Cavalcanti comenta ainda:

Encontra-se de parabéns a Bahia que nos mandou o seu mensageiro musical, que nos enviou um sujeito simples, bom, modesto, para nos contar, através de seus versos ingênuos e profundos, através de suas música meiga e pura, toda a beleza das praias de Itapoan, todo o feitiço do requebro da Yayá, toda a gostosura de um vatapá que com qualquer dez mil réis e uma nega se pode fazer... De parabéns também se encontra a editora Livraria Martins que nos deu este exemplar tão belo e necessário.

Edgar Cavalheiro publicou artigo sobre o Cancioneiro da Bahia no Jornal

de Notícias (janeiro, 1948):

Trata-se de um livro que nos permitirá uma aproximação mais íntima com a arte desse admirável seresteiro e compositor, desse poeta e estudioso da música popular brasileira, que é Dorival Caymmi (...) “O poder de comunicação do compositor é universal, e sua música muito em breve será moeda corrente em toda e qualquer parte do mundo”. (...) “E melodias como a de ‘Canção de Ninas’ – para citarmos um exemplo – estará destinada a se tornar peça clássica, nada ficando a dever às melhores no gênero, antigas ou modernas”. (...) Sinto que meu entusiasmo por Caymmi torna esta crônica algo adjetivosa. Alguém já disse, e com muita razão, que não há nada mais difícil de que falarmos daquilo que nos agrada integralmente”. (...) “Apesar das limitações do nosso meio, é um consolo, no entanto, verificarmos a repercussão comercial e intelectual de uma obra como “Cancioneiro da Bahia”. Este livro poderá ser colocado, em todas as estantes, ao lado da obra de um Jorge Amado, um José Lins do Rego, um Graciliano Ramos, de todos enfim que souberam fixar, em termos de arte, o drama do nosso povo.

Dias antes do Natal de 1947, a Folha da Manhã (22.12.1947) publica o

anúncio: “Chá Dançante Clipper apresentando Dorival Caymmi, o famoso

compositor de Dora e Marina”. Bem diferente, portanto, de anúncios de

apresentações anteriores do artista que costumavam aludir seja à Bahia seja a

temas folclóricos e praieiros, indicando uma recepção favorável aos sambas-

canção apesar das críticas.

A revista Cena Muda (17.04.1948) cobriu, em ampla reportagem com fotos,

a filmagem de Estrela da Manhã na restinga da Marambaia, litoral da cidade do

Rio de Janeiro. Jorge Amado, autor do argumento de Estrela da Manhã para o

cinema, definiu um papel de destaque como ator para Dorival Caymmi. O médico

Osvaldo Marques de Oliveira, mais conhecido como Jonald, dirigiu a película. No

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elenco, Dorival Caymmi, Paulo Gracindo e Dulce Bressane – estreando no cinema

aos dezoito anos –, formavam o triângulo amoroso. A fotografia é de Rui Santos,

que também assina o roteiro com Jonald. A história do filme gira em torno de uma

colônia de pescadores que sofre uma séria epidemia. O médico – personagem de

Gracindo – chega ao lugarejo para resolver o problema, mas acaba se envolvendo

com a namorada do pescador, personagem do compositor. No filme Dorival canta,

ao violão, “Nunca Mais” e “O Bem do Mar”, ainda inéditas – respectivamente um

samba-canção e uma canção praieira. Radamés Gnattali é o responsável pelos

arranjos. Caymmi não chega a comprometer o filme com a sua atuação, mas não

convence como ator. O filme demoraria a estrear, o que aconteceu no dia 24 de

agosto de 1950 nos cinemas Metro, do Rio e de São Paulo, com boa repercussão.

Além de “O Bem do Mar”, Caymmi lançou em abril de 1948 mais duas

canções praieiras pela RCA-Victor, “A Lenda do Abaeté” e “Saudade de Itapoã”.

Ambas fizeram muito sucesso, mas houve problemas na gravação de “Saudade de

Itapoá”. Contra a sua vontade, que desejava se acompanhar ao violão na gravação

da faixa, teve que se submeter ao acompanhamento de dois violões em ritmo de

samba-canção. Mais uma vez teve de ceder à imposição da gravadora cujos

diretores desejavam um produto que agradasse a público, não ousavam contrariar,

como queria Caymmi, o horizonte de expectativa da época. Ele tinha uma

concepção estética diferente para o acompanhamento da sua música, queria gravá-

la somente com o violão, com seu estilo próprio de tocar e sonoridade. A gravação

ficou boa, mas Caymmi estava seguro que sozinho ao violão faria muito melhor.

Lançou ainda, pela mesma gravadora, “Cantiga” e “Sodade Matadera”. Esta

última foi feita a partir de um tema folclórico recolhido no interior de Minas por

Almirante: “Ai, sodade/ai sodade/ai sodade matadêra/ condo eu caço e qui num

acho/meu benzim em minha bêra”. Caymmi conta como se arranjou para

emoldurar um lamento tão tristonho: “Fiz um samba bem ‘corridinho’, à moda

baiana”. De fato é um samba de roda bem típico da sua terra, entremeada pelo

refrão melancólico. A letra conta uma infeliz história de amor. “Chateaubriand

ficou doido com a frase Pra vivê sem ela custa a acostumá, que eu também gosto

muito. O bonito é registrar a fala do povo” – revela o artista (Caymmi, 2001, p.

268). A propósito dos temas folclóricos, usados com freqüência por Caymmi,

houve quem criticasse esse procedimento. Em entrevista a Pedro Bloch, publicada

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em 26 de outubro de 1963, na revista Manchete, o compositor fala sobre essa

questão:

– Caymmi, muita gente crê na lenda do seu ‘aproveitamento do folclore baiano’. Eu acho que o folclore baiano é que explora você. É verdade? – Pedro, vou lhe dizer uma coisa que ainda não disse. Você está repetindo o que Villa-Lobos me falou um dia: ‘Você, Caymmi, está criando o folclore musical baiano. Suas canções são bonitas demais. E me explicou minha música. Eu não aproveito a peça folclórica. Um pregão, um jeito, um grito, um ponto, uma maneira me servem de ponto de partida...

Uma análise mais detida da obra do compositor, em geral rara na imprensa

da época, assinada por A.C.L., foi publicada no Diário da Noite, (20.01.1949). A

aceitação (recepção) do público, a originalidade da obra, a qualidade das letras e

temas das canções, a característica própria do seu violão e autonomia que o

instrumento permite ao artista são alguns dos elementos abordados:

Caymmi é a figura mais interessante da música popular brasileira. É certo que suas composições têm mais um caráter típico nordestino. Mas não vamos muito nisso de regionalismo exclusivista: a alma brasileira é idêntica em todas as fronteiras; Caymmi é, antes, um cantor da alma brasileira nativa. E como as suas composições são diferentes! E como ‘pegam’, santo Deus!”(...) “O que reflete o prestígio da música caymminiana é a divulgação e aceitação que encontra no seio das massas. E nós, que nos temos batido por uma melhoria nos versos de nossas melodias populares, suplicamos a todos, inclusive aos compositores: reparem na letra de qualquer música de Dorival. Atentem para a delicadeza de sentimento, a perfeição de forma, a originalidade de idéias, a absoluta lisura moral, a singeleza adorável e incisiva, sem linhas sinuosas, sem oportunidade de interpretação maliciosa. Aliás, Dorival Caymmi é um artista. É autor publicado. É um intelectual. ‘O Mar’, ‘Dora’, ‘Marina’... E a ‘Jangada Voltou Só’, ‘Lá Vem a Baiana’, são exemplos de perfeição musical e literária populares. O moço Caymmi, entre os nossos cantores de grande cartaz, é um dos poucos que, sem acompanhamento de orquestra, se impõem ainda assim como dignos de serem ouvidos. Com efeito, acompanhando-se a si mesmo ao violão, que prazer é ouvi-lo!

Na seção Literatura, do jornal O Estado de Goyaz (30.01.1949) é, por sua

vez, enfatizada a temática baiana do trabalho do compositor quando afirma que

“O moço Caymmi é o cantor dos mares da Bahia. Dos pobres jangadeiros, de suas

lendas, de seus amores, de suas desgraças”. Mais a frente, a seção destaca que ele

“além de compositor e pintor é um bom poeta, faz geralmente os versos de suas

composições”. E termina relacionando-o a Jorge Amado, quando comenta que “É

deste material que o moço Caymmi, como o chama seu amigo Jorge Amado, faz

sua música”.

Em 1949, Lúcio Alves, cantor precursor da Bossa Nova, lançou, pela

gravadora Continental, “Nunca Mais”, um samba-canção característico da fase

urbana de Dorival Caymmi. “Nunca Mais” se ajustou ao timbre aveludado do

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cantor, considerado moderno na época. O samba-canção foi gravado ainda em um

disco de 78 rpm, apesar de um ano antes a Columbia, após nove anos de pesquisa,

ter apresentado ao mercado americano o long play de 33 1/3 rotações por minuto.

A Philco, na mesma época, lançou o aparelho que reproduziria o novo disco.

Jean Sablon, famoso cantor francês, também gravou uma inédita do baiano,

o samba “Por Quê?”, composta a seu pedido. Eles se conheceram ao longo da

temporada que ambos fizeram no Cassino do Copacabana Palace. A letra de “Por

Quê?” homenageava o Rio de Janeiro, a Bahia e os boêmios do Arpoador, praia

preferida do cantor. Sablon gravou o samba em português, com uma pronúncia

impecável, em Jean Sablon – Souvenir Album, LP de dez polegadas, em que

cabiam oito músicas, quatro de cada lado, lançado em 1949, pela Decca

americana. Apesar disso, Carl Sigman consta como co-autor – no caso, da versão

para o inglês – nos créditos do samba, em que o cantor francês é acompanhado de

Paul Baron e sua orquestra. Em 18 de abril, foi a vez de Caymmi gravar um dos

seus sucessos de temática praieira, a inédita “O Vento”, acompanhado pelos

músicos Dino Sete Cordas e Meira, pela RCA-Victor.

Naquele mesmo ano, Caymmi e Stella se mudaram para a rua Dias

Ferreira, no final do Leblon, bairro da zona sul do Rio de Janeiro. Fato

corriqueiro, caso Antônio Maria – que tinha no baiano um dos personagens mais

constantes – não tivesse mencionado poeticamente a passagem de Caymmi pelo

apartamento em crônica que comentava também a resistência do compositor às

exigências do mercado de música:

Hoje o Leblon é seu país. Ir à cidade se parece com as viagens e pede despedidas e arrumações. Há um homem na varanda de um primeiro andar da Dias Ferreira. Ali espera a música chegar, sem a sofreguidão de marcar pontos no trimestre autoral. Ali imagina e compõe seus sambas... ali, reage contra as gravações e prefere que seu repertório seja inédito a sujeitá-lo ao comercialismo de discos, que tocam, tocam até banalizar a música. Isto pode não render, mas é muito bonito. (Caymmi, 2001, p. 273)

Ao mesmo tempo em que Maria ressalta em sua crônica a capacidade de

adaptação de Caymmi ao Leblon, à realidade urbana, às exigências do mercado e

às negociações que isso implica, a escritora Rachel de Queiroz, na revista O

Cruzeiro (15.04.1950), vai buscar o Caymmi praieiro, o contemplador de Itapoã,

na sua crônica Jangadas: “As cantigas do mar têm todas o mesmo tema: o

pescador que sai numa madrugada e de noite não torna mais. Uma das mais belas

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canções de Dorival Caími é precisamente aquela que fala na mãe sentada na areia

esperando o filho voltar”.

A recepção de cantor de músicas típicas da Bahia e praieiras permanece

sempre muito forte e emblemática. Em duas estréias, uma na Rádio Jornal do

Commercio, em Pernambuco, em julho de 1950, e outra na Boate Acapulco, em

Copacabana, em 8 de agosto, é anunciado como O Cantor das Lendas Baianas e

como Cantor dos Mares do Norte, respectivamente. Entretanto, cada vez mais é

solicitado a trabalhar nas casas noturnas, tanto em Copacabana quanto em São

Paulo, em que a nova safra de sambas-canção é apresentada: “Você Não Sabe

Amar” (Caymmi, Guinle e Hugo Lima/1950), “Não Tem Solução” (1950), “Nesta

Rua tão Deserta” (1950) e “Sábado em Copacabana” (1951), as três últimas

compostas por Dorival Caymmi e Guinle.

Caymmi recebeu, em 27 de maio, uma carta de Carlinhos Guinle, que estava

na França, em que o parceiro pergunta: “Você gostou do nosso samba Você Não

Sabe Amar? Que tal a gravação, fez sucesso?”. Guinle se referia à gravação feita

em 78 rpm, na RCA-Victor, pelo carioca Francisco Carlos – cujo slogan era O

Cantor Namorado do Brasil e que viria a ser eleito em 1953 o melhor do ano na

sua categoria, pelos ouvintes da Rádio Nacional. A gravação de “Você Não Sabe

Amar” não chegou a fracassar, mas não alcançou o sucesso ansiado por Guinle.

Sucesso mesmo a dupla teve com “Não tem Solução” com Dick Farney, pela

Sinter, que também gravou “Lembrança do Passado” no lado B do 78 rpm. Esta

última depois passou a se chamar “Rua Deserta”. “Lembrança do Passado foi um

título decidido às pressas, por telefone. Rua Deserta ficou melhor. Foi idéia de

Carlinhos” – explica o compositor baiano (Caymmi, 2001, p. 280). Lúcio Alves

grava “Sábado em Copacabana”, pela Continental. O samba-canção é um retrato

da Copacabana dos anos 1950, exaltando seu romantismo e seus bares à meia-luz,

no dizer dos seus autores, “um bom lugar para se amar”. Tanto Dick Farney

quanto Lúcio Alves são cantores de muito sucesso no período. Guinle

comemorava o sucesso passeando em seu iate, “pelos mares das canções de

Caymmi” – conforme noticiou a revista O Cruzeiro, em 21 de abril de 1951 –,

com Evelyn Keyes, atriz americana, heroína do filme Que Espere o Céu.

Foi inaugurada a primeira emissora carioca de televisão, a Tupi, de Assis

Chateaubriand. A estréia, em 20 de janeiro de 1951, dia de São Sebastião, o

padroeiro da cidade, entre outros programas, contou com um show escrito por

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Antônio Maria, chamado A Tupi e a Televisão, com a participação de Dorival

Caymmi, Aracy de Almeida, Jorge Veiga, Dircinha e Linda Batista, Mazzaropi,

Alvarenga e Ranchinho, José Vasconcelos e Almirante. Caymmi se lembra

quando o locutor Osvaldo Luiz o anunciou na noite de estréia da TV no Rio de

Janeiro: “Agora, com vocês, O Moço Caymmi, conhecido astro já do nosso cast, e

que é agora também artista da nossa Televisão Tupi” (Caymmi, 2001, p. 285).

José Cezar Borba, no Correio da Manhã (08.04.1951), repercutiu, na

matéria “Katherine Dunham chegou da Bahia – A ‘batucada’ e o ‘frevo’ no

Champs Elysées”, o novo espetáculo da famosa bailarina e coreógrafa em Paris

onde prestava uma homenagem a Caymmi com figurino de baiana:

A suíte brésilienne, sua inspiração mais recente, sua tentativa de interpretar a poesia do nosso folclore e a sua expressão plástica compunha toda a primeira parte do espetáculo. A maior homenagem era prestada a Dorival Caymmi, a quem, no programa, ela se referia falando da simplicidade dos seus cantos e da beleza dos versos sobre a sua Bahia. (...) Katherine Dunham de taboleiro à cabeça, blusa branca engomada, saia de algodão rendada, bamboleando o seu garrido pano da costa, transporta aos Champs-Elysées toda a graça e trejeitos da baiana. Que gosto é ouvir-se nesse imenso teatro o pregão da negra do acarajé... E que emoção é sentir as últimas notas da melodia serem abafadas pelos aplausos, o público a exigir que Katherine Dunham cante outra vez a música e os versos de Dorival Caymmi.

No ano seguinte, Dorival Caymmi voltou a protagonizar um grande

espetáculo, na famosa casa noturna de Carlos Machado, Casablanca, na Urca.

Coisas e Graças da Bahia, título do show assinado por Paulo Soledade e

Fernando Lobo, passeava pelo universo do artista com baianas, pescadores e

cenários relatados nas canções. O show contava ainda com a cantora Ângela

Maria, em início de carreira, o conjunto vocal As Três Marias – na sua penúltima

formação com Hedinar Martins (irmã do compositor Herivelto Martins), Nilza de

Oliveira e Carmen Déa – e o violonista Bola Sete que, em 1959, se mudaria para

os Estados Unidos. “Dorival Caymmi – eis um dos nomes mais conhecidos do

público. (...) Brilha como intérprete, compositor, poeta e pintor. Trabalha muito.

Na rádio, na sua pintura e na boate Casablanca, onde está atuando em ‘Coisas e

Graças da Bahia”, escreveu Antônio Rocha, na seção 24 Horas na Vida de um

Artista, da Revista do Rádio (1952). Além das casas noturnas, Caymmi também se

apresentava em festas particulares e clubes, entre eles o fechado Country Clube do

Rio de Janeiro. “No Country Clube do Rio de Janeiro, que era muito chique, nem

todo mundo cantava lá. Eu tive o privilégio” – relata o compositor (Caymmi,

2001, p. 289).

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No período, a imprensa publica matérias e críticas, feitas por jornalistas,

intelectuais e compositores, mais extensas e mais detalhadas a respeito do artista e

sua obra, a partir de perspetivas diversas. Fernando Lobo, jornalista e compositor,

escreveu uma longa reportagem em que analisa a obra de Caymmi na revista O

Cruzeiro:

Qualquer um pode ver e analisar a obra musical de Dorival Caymmi. Ela é perfeita e passará aprovada no microscópio da crítica mais rigorosa. A sua popularidade de compositor e de cantor é, no entanto, relativamente pequena diante da de alguns fazedores de samba de caixa de fósforo ou uma voz macia recordista dos pavilhões dos subúrbios. A oportunidade da sua entrada no rádio aconteceu por acaso e não por descoberta de algum diretor. A sua consagração como compositor surgiu de uma série de fatos onde a Carmen Miranda ganhava mais ‘chance’, onde os seus direitos autorais foram discutidos e literatos descobriram coisas e coisas. Ora, Caymmi poderia andar por aí ainda como durante muito tempo andou Vadico, parceiro de Noel, nos teclados dos cabarés da Lapa.

Antônio Maria, por sua vez, preferia abordar em seus artigos características

pessoais, ou mesmo íntimas, do artista como na Revista da Semana (Coluna

Plantão Noturno, s/d), em crônica mesclada de nuances autobiográficas, com o

título curioso de “Um homem bem macio”:

Juntos, aprendemos uma porção de coisas: o respeito à preguiça, a necessidade de reagir um pouco a certos horários, a utilidade de duvidar sempre da lealdade dos outros, o bem que é gostar do piano de Radamés e do bandolim de Jabob, a certeza de que vamos acabar e ser esquecidos daqui a pouco e a enorme ambição de sairmos do Rio e voltar cada um para a praia de sua terra, antes que aqui passe alguém e pergunte: - Você não foi, Fulano? Dorival Caymmi é o homem essencialmente macio, sem aquela necessidade urgente de ir a Europa ou de musicar um filme de Disney. Todos os êxitos que lhe aconteceram deviam estar na linha da mão, porque ele não fez força, nem rezou para isso. Das desilusões que teve nunca disse nada a ninguém. Sua música, que é feita de mar e vento, vai continuar depois de nós. Seu violão talvez seja entronizado numa vitrina do Museu Folclórico.

Jorge Amado por diversas vezes enfatizou a qualidade da poesia do

compositor, profundamente enraizada na cultura popular, como em artigo

publicado na revista Rio Magazine, nos anos 50, com o título “Dorival Caymmi,

poeta da Baía”:

(...) eu vejo um acontecimento da maior importância na nossa vida intelectual e artística: o aparecimento do compositor popular Dorival Caymmi, jovem baiano que faz ressurgir as melhores tradições da poesia da sua terra (...) Dorival Caymmi, ramo da árvore de Castro Alves, é o poeta mais enternecido dos pescadores e dos negros baianos. (...) Nessa hora de tão lamentável decadência na poesia brasileira, surge na figura desse compositor de sambas e canções um grande poeta, transportando para a música e a letra das suas composições toda a força poética que escorrega das duas da cidade de Todos os Santos. (...) Na música popular brasileira, o caso de Dorival Caymmi é um caso a parte. Não é possível ligar o seu nome aos

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de tantos fazedores de sucessos, de tantos sambistas de um momento. Sua música tem outra consistência, outra substância, tem realmente uma base popular, tem algo de seriedade que falta à maioria dos nossos compositores populares. (...) Se me perguntassem hoje quaes os dois maiores poetas brasileiros deste decênio eu responderia que foram dois músicos populares: Noel Rosa, poeta comovido dos bairros seresteiros da cidade do Rio de Janeiro, e Dorival Caymmi, poderoso poeta da beira do caes da Baía.

A vida artística de Caymmi não se limitava ao Rio de Janeiro. Continuava

viajando e se apresentando em outras capitais, inclusive Salvador, onde esteve em

junho de 1952, sendo aclamado como Embaixador da Música Folclórica Baiana.

Nessa ocasião, o compositor participou de um recital folclórico, produzido em sua

homenagem pela Prefeitura e transmitido pela emissora associada, antecipado

pelo Estado da Bahia (02.06.1952):

Sob o patrocínio da repartição cultural da Comuna, em homenagem à Comissão Bahiana de Folclore e, exclusivamente, para os alunos dos colégios secundários baianos, o maior cantor brasileiro de temas folclóricos bahianos, o grande Dorival Caymi dará amanhã, às 15 horas, no Auditório do Instituto Normal, um recital folclórico, cantando as músicas que fizeram a Bahia e o Brasil mais conhecidos no exterior, superando a ação dos próprios embaixadores do Itamarati. O programa a ser cumprido é o seguinte: a) – O valor do Folclore e a música de Caymi. Palavras pelo folclorista e intelectual bahiano, prof. Valter da Silveira, da Comissão de Assuntos Educativos da Prefeitura do Salvador. b) Canções da Terra – Dorival Caymi (...) c) Canções do Mar – Dorival Caymi.

Ao mesmo tempo em que interpretava o folclore da sua terra, Caymmi era

um dos assíduos freqüentadores das reuniões de jazz promovidas por Carlinhos

Guinle, um amante do gênero. Segundo o jornalista Brício de Abreu, o empresário

foi o primeiro a popularizar as jam sessions em terras cariocas. O compositor

revelou seu interesse por jazz a Paulo Mendes Campos, em entrevista à Revista da

Música Popular (Jan. 1955), com fotografias de Darwin Brandão:

– E você gosta de jazz? – Muito. Não há nada mais puro e espontâneo em nosso tempo do que o jazz. Amo no jazz a improvisação, o virtuosismo instrumentista e a criação. O jazz é, a meu ver, a expressão musical mais forte do meu tempo. – Suas predileções? – Para mim, o maior é Jelly-Roll Morton. Vou até Fats Walter e Louis Armstrong. – E o be-bop? – De be-bop não gosto. É uma espécie de ‘dadaísmo’ musical”

Em entrevista, o escultor baiano Mario Cravo definiu o papel de Dorival

Caymmi na Música Popular Brasileira, ressaltando a autonomia do homem com

seu instrumento ao mesmo tempo em que refletiu sobre a função do artista de

modo geral:

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Ele está ligado umbilicalmente ao processo de difusão do cancioneiro popular brasileiro. Dorival faz parte ainda dessa autonomia perdida, em que não se precisava de conjunto musical, de orquestra, nem de rádio. É o homem e o instrumento que o acompanha, e que ele domina. Ele é o autor, ele é o intérprete, torna a expressão mais única, não há intermediário. (...) Eu acho que o artista, de um modo geral, realiza as angústias da maioria, as insatisfações, os anseios e os prazeres. Eu tenho a impressão que a cultura, a criatividade, é como o efeito dos círculos quando você joga uma pedra numa superfície líquida, parada. Você provoca um elemento e ele vai se desdobrando para a periferia. Ela é um módulo, é uma onda que se propaga em todos os sentidos. Os artistas são profissionais, são pedras atiçadas na água, que é a vida. E eles criam círculos que se intercruzam e se tocam uns nos outros, no espaço e no tempo”. (Caymmi, 2001, p. 276)

No ano em que completaria quinze anos de carreira, Dorival Caymmi

recebeu uma grande homenagem na Bahia. Em 24 de maio de 1953, o vereador

Osório Vilas Boas apresentou o projeto de lei à Câmara Municipal, denominando

Praça Dorival Caymmi ao largo onde se situa a igreja matriz de Itapuã.

Personalidades importantes foram unânimes na aprovação da homenagem.

“Caymmi é um artista cheio do espírito de sua terra” – afirmou, na ocasião, Mário

Cravo”. “Caymmi não merece somente um nome numa rua; merece estátua na

praça pública” – declarou Carybé. Um convite da Federação das Colônias de

Pescadores da Bahia assinado por Mário Paraguassu (presidente), Arnaldo

Marcelino Pereira (secretário) e Atalídio Caldeira da Costa (tesoureiro) foi

publicado nos jornais:

A Federação das Colônias de Pescadores da Bahia, pela sua Diretoria abaixo firmada, tem a satisfação de convidar os pescadores, destacadamente das colônias Z 6, de Itapoã, e Z 35, da Boca do Rio, para tomarem parte na homenagem que será prestada, amanhã, 27, ao festejado cantor baiano, Dorival Caymmi, na inauguração da praça do seu nome em Itapoã, prova do nosso reconhecimento pelo muito que tem feito, cantando o nome da Bahia, terra do seu berço, por todo o país, elevando-o cada vez mais alto. (O Estado da Bahia, 27.06.1953)

Entre inúmeros discursos feitos na noite da inauguração da Praça Dorival

Caymmi, em 27 de junho, Antonio Maria falou em nome dos amigos do

compositor e publicou posteriormente na Revista Manchete (18.07.1953):

Vós que aqui viestes (os pescadores), sois dignos de todas as ternuras. Não viestes para ouvir os políticos e, deles, arrancar promessas. Não viestes para exibir vossa pobreza, na face anemiada de vossos filhos ou na humildade de vossas roupas. Viestes para ouvir e exaltar Dorival Caymmi, que nada promete, a não ser, enquanto vivo, dizer em canções, que a Bahia é bonita, que o seu povo é o suave, o crente, o bem humorado, o heróico e festeiro povo de todas as douçuras baianas. Andai pelo mundo em fora e, em toda parte, numa confissão de mulher ou de poeta, haverá sempre um grande desejo de conhecer o Bonfim, de contemplar o silêncio feiticeiro da Lagoa do Abaeté, de sentir a exuberante autenticidade do

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casario baiano, com o azulejo de suas fachadas e o jacarandá sisudo dos seus balcões...

O vereador Osório Vilas Boas, autor do projeto e com enorme prestígio

entre os pescadores de Itapuã, em seu discurso disse que a Bahia orgulhava-se de

Ruy, Castro Alves e Caymmi, porque Ruy doutrinou, Castro Alves versejou e

Caymmi cantou. Após os discursos, aconteceu um grande show com mais de dez

artistas contratados de várias rádios. Entre eles Dóris Monteiro e Ademilde

Fonseca, da Rádio Tupi.

Rubem Braga escreveu para o Diário da Bahia (27.06.1953) uma crônica –

publicada dias antes no Correio da Manhã – sobre o homenageado:

Vou fazer uma viagem para assistir à inauguração de uma placa. Vou, porque sou amigo velho e admirador grande desse homem que vai ser emplacado, e se chama Dorival Caymmi. Conheci-o, muito magro e tímido, logo que chegou ao Rio – foi na rua Álvaro Alvim uma noite, ele estava com um violão debaixo do braço. A cidade de Salvador resolveu dar seu nome a uma praça em Itapuã, perto da lagoa escura, uma praça com as morenas de Itapuã, os coqueiros de Itapuã. Vejam que ainda há justiça no Brasil. E vou lá, não posso deixar de ir ver Caymmi virando praça. Como se ele não tivesse sido sempre, e não continuasse a ser, uma boa, uma grande praça.

De volta ao Rio de Janeiro, Caymmi estrela o espetáculo Acontece que eu

sou baiano, na Boate Casablanca, com roteiro de Antônio Maria e Paulo

Soledade, que repetiu o sucesso do ano anterior. No elenco, Angela Maria,

Terezinha Austregésilo, Lord Chevalier, João Gilberto, em início de carreira,

integrando o conjunto Quitandinha Sereneders, entre outros. “Ele participava

vestido de pescador, o figurino do show” – recorda o compositor se referindo a

João Gilberto (Caymmi, 2001, p. 305). Provavelmente se conheceram ali.

Ainda em 1953, Caymmi lançou o samba-canção “João Valentão”, pela

Odeon – o lado A, do 78 rotações, era “Tão Só”, outra parceria com Carlinhos

Guinle, gravada no mesmo período por Jacques Klein – um grande sucesso seu,

que levara nove anos para terminar, o que só fez alimentar a sua fama de

preguiçoso. Ele havia começado o samba-canção em 1936, no veraneio em Itapuã,

na Bahia. Quando veio para o Rio de Janeiro, Caymmi tinha parte dele pronto.

Mas só foi terminá-lo em 1945.

O compositor era contratado exclusivo da Rádio Nacional quando a

emissora resolveu concentrar sua programação nas radionovelas – que faziam um

enorme sucesso no período, sucesso comparado às telenovelas de hoje –,

diminuindo seu elenco ligado à música, que era enorme. Houve uma dispensa em

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massa. Caymmi retornou à Tupi, mas logo depois, insatisfeito, preferiu trabalhar

“avulso”, com ele mesmo gosta de dizer. Mas não ficou “avulso” por muito

tempo, foi convidado para a trabalhar para a TV e Rádio Record em excelentes

condições. De todo modo, o episódio com as rádios Nacional e Tupi já

prenunciava o fim de uma era, e o baiano percebia as mudanças no mercado. É o

pesquisador e escritor Sérgio Cabral quem explica:

O que ocorria na segunda metade da década de 50 era o fim do chamado rádio Broadcasting, criado no tempo em que a competição entre as emissoras obrigava-as a contratar com exclusividade elencos fabulosos, com a participação de cantores, orquestras, pequenos conjuntos, atores, produtores, escritores, humoristas, etc. (Cabral, 1996, p. 17)

O contrato com a Record era de um ano, com sua participação patrocinada

pelos charutos e cigarrilhas Sumatra, da Suerdieck Bahia, fabricado no estado

natal do compositor pela empresa alemã. Semanalmente, Caymmi e o cantor

Carlos Galhardo viajavam para São Paulo, para apresentações na emissora. A

televisão, nos primeiros tempos, era feita na base do experimentalismo ou, melhor

dizendo, do amadorismo completo. Seus profissionais vinham do rádio. Tudo era

ao vivo. Ainda não havia o videoteipe. Caymmi descreve sua passagem pela

Record:

Eu tinha de fazer um visual bonito e entrar com meu violão, que era minha facilidade, ou com a orquestra da casa, tudo montado, tudo iluminado e fazer a minha parte. Eu era um recurso bom, porque tinha uma cenografia típica, com um cenário praiano atrás e uns figurantes na frente, fazendo pescadores, aquele negócio da Bahia. (Caymmi, 2001, p. 313)

Os maestros Milton Calazans e César Guerra-Peixe costumavam reger as

orquestras que o acompanhavam. Todos aprendiam juntos a lidar com esse novo e

extraordinário veículo de comunicação. A participação de Caymmi na televisão

repercutiu bem na imprensa. As temáticas baianas e praieiras das suas canções

permitiam exploração de cenários, figurino e coreografias típicas que

funcionavam bem na tela e compunham o quadro das suas apresentações. No

jornal Folha Carioca (Caymmi, 2001, p. 313), Almeida Rego o elogia por ser um

dos poucos artistas que podia prescindir de orquestra ou qualquer outro

acompanhamento. “A sua orquestra vem dependurada ao pescoço. É o seu violão”

– afirma o jornalista, em sua coluna Ondas Radiofônicas. Acrescenta que o cantor

e compositor tem “uma dose acentuada de sangue ameríndio, como todo caboclo

nordestino, mas isso não prejudica seu aspecto em nada, uma vez que, é sabido, os

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morenos são barbaramente beneficiados pela televisão”. O moreno aqui é um

eufemismo para negro, uma vez que Caymmi descende de negros, italianos e

portugueses.

Sobre a estréia do baiano na Rádio Record, foi publicada uma reportagem

de Carlos Maria, na Revista Carioca (20.03.1954): “Finalmente aconteceu o

programa de estréia de Dorival Caymmi ao microfone da popular Rádio Record.

(...) foi um sucesso tremendo, com os ingressos para o auditório já esgotados dois

dias antes”.

Além do trabalho na Record, o artista fazia temporadas em casas noturnas,

como a boate Hugo, em São Paulo, e a Monte Carlo e a Flag, no Rio de Janeiro.

Em entrevista, perguntaram-lhe se ao cantar em boates, em detrimento das rádios,

não estaria se distanciando do povo, crítica que vinha sofrendo. Sua resposta foi

prática: “Outra ‘invencionice’. Como profissional, encaro as coisas sob um prisma

econômico: quem me quiser, que pague o que julgo valer. Se o rádio me oferece

um bom contrato, eu aceito. Se é da boate que vem a oferta, aceito. Isto é tudo”

(Caymmi, 2001, p. 313).

Em 22 de maio de 1954, na Revista da Semana, Antônio Maria publicou

uma entrevista polêmica com Ary Barroso, que atingiu Dorival Caymmi.

Perguntado quais os dois maiores compositores do Brasil em todos os tempos,

Ary apontou Eduardo Souto e Ernesto Nazareth – já numa entrevista a Paulo

Mendes Campos no mesmo período, havia dito que era Ataulfo Alves. Maria

perguntou: “E Dorival Caymmi?”. Ary respondeu:

Veio ruim da Bahia e melhorou no caminho. Em O Que é Que a Baiana Tem? há muito do meu No Tabuleiro da Baiana. Há outra música que chega a ter uma frase inteira do meu Onde o Sol Doira as Espigas. Mas melhorou muito. Em muitas vezes, chegou a ser genial.

A Revista do Rádio (14.08.1954) comentou o episódio: “Antonio Maria diz

que Ari Barroso falou que Caymmi ‘copiou algumas músicas dele e que O que é

que a baiana tem é plágio de Tabuleiro da Baiana’. Ari disse que não disse, e que

mandou uma carta a Caymmi esclarecendo o assunto”. De fato, Ary Barroso

desmentiu a declaração e enviou de São Paulo uma carta de esclarecimentos e

desculpas – datilografada e assinada:

Meu caro Dorival Caymmi, Se você fosse um João qualquer. Se você não fosse baiano. Se você não me conhecesse há tantos anos. Se você fosse burro. Se você fosse homem de titicas. Se você não estivesse acostumado a essas ondas periódicas que se levantam no nosso

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desajustado ambiente – admitiria ficasse você magoado com o que saiu na Revista da Semana pela pena do nosso Antônio Maria...

Ele continua seu preâmbulo para, em seguida, “dar o sentido exato” das suas

palavras, publicadas na entrevista:

Eu disse que você chegou ao Rio numa época em que o estilo do samba era o dueto em torno de assuntos da Bahia. Influenciado como é muito natural por esse estilo você faz O Que é Que a Baiana Tem?. Não há aí nenhuma restrição ao seu valor como compositor. Eu que meto o pau nesses sambas melosos da época atual dei para fazer coisa parecida porque não posso e nem devo ficar parado. Onde o Sol Doira as Espigas foi uma seqüência de um sem número de sambas que constituíram um outro capítulo da minha vida de compositor, sambas que Carlos [Lacerda] denominou heróicos. Seguindo esse sistema, você compôs alguns sambas heróicos. Não quer dizer que você tenha copiado nada de Onde o Sol Doira as Espigas. Quanto ao final da resposta da tal entrevista, acredito que você não tenha nenhuma restrição a fazer. Sinceramente o considero genial. Não vamos pôr fogo na fogueira. Não desejo estremecer a relação de velha amizade que muito prezo e que muito me envaidece. Eram as explicações que eu devia ao amigo.

Ary Barroso, quando menciona “sambas heróicos”, está se referindo ao

samba-exaltação. É interessante saber que o samba “Onde o Sol Doira as Espigas”

não foi gravado até os anos 90. Se tocou no rádio duas vezes, foi muito. Isso em

1944. Caymmi teria de ser um dos privilegiados que a escutou numa dessas duas

vezes em que o mineiro Moraes Neto a interpretou. O samba foi censurado na

época porque sua letra pintava os horrores da guerra com tintas muito fortes e

temiam que isso desanimasse a população no esforço da guerra, no momento em

que as tropas brasileiras estavam sendo enviadas à Europa. Mais tarde, Barroso

modificou a letra da primeira parte da música – a mais pesada –, mas ainda assim

ela não foi gravada, pois não cabia numa face de um disco de 78 rpm. Aliás, se

Moraes Neto não tivesse guardado a partitura de “Onde o Sol Doira as Espigas”, o

samba quedaria no mais completo esquecimento. Ele só a gravou, em 1991, pelo

selo Revivendo, do produtor e pesquisador Leon Barg. Ficou ainda uma pergunta

no ar: qual samba de Caymmi seria plágio daquele? Mas Ary Barroso nada disse a

esse respeito na entrevista. “Pode ser pura sacanagem de Antônio Maria

envolvendo Caymmi e Ary, ele se divertia com essas coisas” – sugeriu Sérgio

Cabral, biógrafo do compositor mineiro (Caymmi, 2001, 317).

Entretanto, ocasionalmente, a imprensa fazia comentários, buscando

indícios de desavença entre os dois compositores, especulando que o episódio da

substituição de uma das canções de Ary Barroso pelo samba “O que é que a

baiana tem?”, de Caymmi, no filme Banana da Terra, tivesse deixado seqüelas. O

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fato é que nenhum dos compositores jamais alimentou essa polêmica. Um

exemplo disso foi a matéria que saiu na coluna de Ari Serrano, na coluna Fichário

Musical, de O Jornal (23.07.1958):

Naquele ano de 1939, rodavam o filme ‘Banana da Terra’ e Ari Barroso faria dois números afro-baianos para a película. Ari, entretanto, se indispôs com a direção e resolveu não fazer mais a sua parte. João de Barros, encarregado da partitura, lembrou-se então de um moço que cantava no rádio algumas músicas da sua autoria, coisas da Bahia. Era o Caymmi. Convidado, apresentou aquela música que depois de bem sucedida foi gravada por Carmen Miranda. Talvez venha daí a pouca simpatia que Ari dedica a Caymmi. (...) Alguém disse que Caymmi veio ruim da Bahia e melhorou no caminho.

Antônio Maria, provavelmente a partir daquela entrevista que fez com Ary

Barroso, em 1954, passou a ser alvo e a alimentar a polêmica, como leva a crer a

reportagem de O Globo (15.05.1958):

Terça-feira, no programa Rio, Gosto de Você, da TV-Rio, Ari Barroso comentou com malícia que Antônio Maria gostava de fazer previsões metereológicas musicais. No programa seguinte, Antônio Maria disse que Ari vivia à base da necessidade de se afirmar e que sentia permanente dor de cotovelo por causa de Caymmi.

Em 1954, Dorival Caymmi lançou Canções Praieiras, seu primeiro long

play de dez polegadas, onde cabiam oito canções, pela Odeon. Nele, gravou

“Saudade de Itapoã”, “É Doce Morrer no Mar”, “Noite de Temporal”, “Promessa

de Pescador”, “O Mar”, “O Vento”, “O Bem do Mar” e “Quem Vem Pra Beira do

Mar”, acompanhado exclusivamente do violão. “Quem Vem Pra Beira do Mar” já

havia saído em disco de 78 rpm, naquele mesmo ano, junto com “Pescaria”

(“Canoeiro”). O long play demonstrou a unidade das canções praieiras, dando

uma dimensão da importância do compositor. Sobre o LP, Lúcio Rangel escreveu,

na Revista da Música Popular (22.01.1955), uma extensa crítica, com o título

“Um artista: Dorival Caymmi”:

Compositores que interpretam as próprias criações é coisa comum. Tanto no Brasil como em outras plagas. Mas cantor que interprete melhor do que ninguém as obras que cria, isso é raro. Vemos um Trenet, na França, realmente um bom compositor popular e intérprete excelente. Um Hoagy Carmiachael, no Estados Unidos, compondo, cantando e acompanhando-se ao piano, todo ele bom. Um Noel Rosa, aqui entre nós, compositor, violonista e cantor razoável. Mas exemplo perfeito do criador-intérprete é, não me lembro de outro, no mundo inteiro, esse íntimo de Iemanjá, dos mares bravios da Bahia, dos rudes pescadores e das lendas de sua terra – Dorival Caymmi, o imperturbável Caymmi. Desde o momento da criação, o artista está ele inteiro presente, fazendo a melodia com a voz, o ritmo com o violão e os versos com o sentimento de grande poeta que é. Desde esse momento tudo está perfeito e indivisível. Dir-se-ia que as peças de Caymmi só podem ser cantadas por ele próprio, tal a identificação entre o criador e o intérprete”. (...) Telúrico? Sim, telúrico. Por tudo isso, o ideal é se ouvir uma música de Caymmi, cantada por

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Caymmi, tendo ao violão Caymmi. Tudo o mais é supérfluo. E é o que temos nossa verdadeira maravilha da discografia brasileira que é o long-playng Canções Praieiras em boa hora lançado pelo Odeon. O artista está nele presente sem artifícios, sem orquestras que perturbem os acordes do violão do baiano. (...) Caymmi não faz música para grã-finos, faz música para o povo, é o intérprete dos sentimentos da sua gente. É um artista másculo, não faz coisa ‘bonitinha’, nem busca seus motivos em outras terras. Suas músicas parecem feitas num só bloco, como esculturas de um artista consciente. Daí, sua grandiosidade. (...) Dorival Caymmi está inteiro na sua obra, o homem, o poeta e o músico e quando um homem consegue ser músico e ser poeta, atenção, companheiros, vamos tirar o chapéu a ele...

Entre os artistas que gravaram Caymmi, em 1954, estavam o pianista

Jacques Klein e os cantores Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Marlene, Ivon

Curi e Stellinha Egg. A Revista da Semana (14.08.1954) apregoa sobre o

compositor: “Um homem da praia da Bahia, um poeta. A nosso ver, é o melhor

compositor nacional em 100 anos de canção brasileira”.

O segundo LP, Sambas de Caymmi, veio em 1955. Dessa vez, Caymmi

gravou duas outras vertentes de sua obra, os sambas típicos baianos e os sambas-

canção. O lado A trazia “Sábado em Copacabana” e “Não tem solução” – ambas

em parceria com Carlinhos Guinle –, “Nunca mais” e “Só Louco”. No lado B,

Caymmi atacava de sambas sacudidos, com muito remelexo, como “Requebre

Que Eu Dou um Doce”, “Vestido de Bolero”, “A Vizinha do Lado” e “Rosa

Morena”.

Paulo Mendes Campos entrevista Caymmi para a Revista da Música

Popular (Jan. de 1955) e aborda a questão do mercado de música no país:

– E é possível fugir ao comercialismo? – Não há como fugir; toda a nossa indústria musical é dirigida ao fácil, tanto por

parte do público como dos editores. Eu, por exemplo, não posso pilotar um movimento de renovação de nossa música, eivada de vícios: sou cantor, apareço em exibições públicas e sou compositor. Tenho de ganhar a vida.

No número seguinte da mesma revista (mar./abr. 1955), Rubem Braga

escreveu o perfil “Uma Figura: Dorival Caymmi” e traz de volta a mesma questão

de Paulo Mendes Campos, que parecia estar no centro das preocupações, o

comercialismo na Música Popular Brasileira:

(...) Acha que o folclore brasileiro é muito belo, rico e sério, mas diz que a nossa música popular está sofrendo demais a influência de exotismos e principalmente comercialismo. (...) Fora disso só há a dizer que o ‘Doriva’ é um boêmio conformado em ser bom chefe de família (...). Porque ternura, amizade e Bahia, tudo são coisas da competência muito especial do bom homem Dorival Caymmi.

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É Braga, dessa vez na Folha da Tarde (09.05.1955), quem manifesta, em

crônica escrita em viagem a Santiago do Chile, o tipo de sentimento que uma

canção de Caymmi inspira:

(...) Quando voltamos por Techos Verdes, Llolleo e Santo Antonio, a noite vai caindo; abandonamos o mar, mas o rádio do carro começa a tocar uma música demasiado conhecida: ‘Peguei um ita no Norte...’. Você ficaria muito comovido se estivesse aqui, com este vinho no craneo, nesta riba de outro mar, neste começo de noite, Dorival Caymmi, poeta de meus mares, meu camarada e meu irmão.

Na reportagem “Os melhores de sempre” – um tema recorrente no noticiário

da imprensa –, da Revista Radiolândia (12.02.1955), Eugênio Lyra Filho justifica

seu voto em Caymmi reafirmando a recepção de compositor e cantor dos

costumes e da gente da Bahia:

Votei em Dorival Caymmi. No moço baiano que chegou modestamente, que fez do encanto das coisas singelas o colorido fascinante de suas músicas, que lutou sem astúcia, venceu sem orgulho e que, retraído, modesto, não reclamou nunca da glória, senão o direito de dedilhar seu violão – e cantar as coisas bonitas de sua terras e as histórias comoventes de sua gente, a gente boa da Bahia de seus amores.

Em análise mais apurada, mas que mantém a recepção de cunho regionalista

embora destaque o caráter inovador das músicas de Caymmi, Pedro Sá, escreve

para a revista Coletânea (maio/1955), o artigo “Uma voz e um violão”:

Dorival Caími, o compositor de canções hoje populares em todo o Brasil e mesmo além das fronteiras do país. (...) o autor de autênticas jóias inspiradas em nosso folclore, tais como ‘Marina’, ‘Noite de Temporal’ e outras não menos conhecidas. (...) Tendo descoberto com surprêsa que a música que trazia das praias da Bahia era algo de novo e bom, o compositor deu-lhe caráter, preservou-a de deturpações, enfrentando com firmeza os vícios e os modismos. (...) Cumprindo atualmente vários programas de televisão, Dorival Caími tem abertas as portas de todas as emissoras do país. Sua voz inconfundível lhe deu segurança, tornando-o um dos mais bem pagos profissionais do rádio brasileiro, como cantor e compositor.

A revista Parada de Discos (jul. 1955) publica artigo em que assinala o

estilo próprio do compositor e sua temática regional e folclórica, declarando sua

posição canônica na Música Popular Brasileira:

É, sem dúvida alguma, um dos monumentos da música popular brasileira. Seu nome figura hoje como um dos maiores intérpretes e compositores das Américas. Possuidor de um estilo próprio, Caymmi dá às suas composições um colorido todo regional dentro de um costume todo folclórico. (...). Sua discografia é das mais belas existentes, e nos fala profundamente ao coração. Nela, se apresenta vestida a rigor, o que há de mais significativo na música brasileira.

Antônio Maria volta a escrever sobre Caymmi – um de seus personagens

constantes –, em sua coluna Mesa de Pista, em O Globo (28.11.1955), dessa vez

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para apelar que volte a se apresentar no Rio. O jornalista dá a medida da

popularidade do compositor quando menciona as festas cariocas embaladas por

suas canções, na coluna organizada em ordem alfabética, com o título “ABC da

Noite”:

D de DORIVAL CAYMMI... e é urgente que o cantor volte ao Rio. Há quase um ano está fora daqui e faz mais de dois que não aparece cantando numa boate. Caymmi pertence a duas cidades: Salvador (de onde nunca deveria ter saído) e Rio (patrimônio de conquista). Agora mesmo, várias pessoas estão interessadas em fazer constantes festas de terraço, à base das cantigas marinhas e do violão do nosso Caymmi.

Mais uma vez, na mesma coluna (19.05.1956), Antonio Maria menciona

Caymmi para falar da mais nova fã do artista baiano:

Edith Piaff passa os dias em seu apartamento de Copacabana, quase não saindo, a não ser quando o sol bota a cabeça de fora. Dizem que a maior parte do seu tempo ela o gasta ouvindo gravações de Dorival Caymmi. Quando encontra alguém, fala muito em la voix du pêcheur ( a voz do pescador).

Não era só Maria quem mencionava a ausência de Caymmi do rádio e da

noite carioca. Em O Mundo Ilustrado (10.03.1956), Borelli Filho, escreveu a

reportagem “Volta Caimmi”:

Não se entendia, mesmo, que o velho Dorival, tão querido do público – e com um cartaz que não tem mais tamanho – andasse divorciado do rádio, de vez que o rádio sempre o desejou de braços abertos. (...) O violão de Caimmi estará outra vez timbrando nos aparelhos receptores. E aquela voz tranqüila, descansada e envolvente, chegará novamente aos ouvidos do público, cantando novas melodias e também aquelas que já se fixara em nossos clássicos. (...) É, assim, um artista dos próprios artistas, inclusive. Fato não muito comum.

Borelli Filho se referia à recente contratação de Dorival Caymmi pela

Socipral1, da organização Victor Costa, para a programação da rádio Mayrink

Veiga, no Rio de Janeiro. A emissora cercou a estréia de seu novo contratado com

uma estratégia de marketing inovadora para a época, chamando a atenção de toda

a imprensa especializada com um aparato digno de um astro, com bufê baiano

para a imprensa e convidados, demonstrando que, a despeito da nova vertente dos

sambas românticos urbanos, a recepção à obra de Caymmi permanecia

marcadamente na vertente baiana, a começar pelo nome do programa – a nova

vertente incorporada à obra de Caymmi demoraria alguns anos para ser assimilada

ao horizonte de expectativa dos ouvintes da época. Chamado A Bahia de Caymmi,

1 Socipral, grupo da Organização Victor Costa, congregava as rádios Mayrink Veiga, Nacional do Rio de Janeiro e Nacional de São Paulo.

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com roteiro de Antônio Maria, este seria veiculado aos domingos, às 21 horas,

com o patrocínio da Vulcan Material Plástico S/A.

A importância alcançada pelo artista no panorama da Música Popular

Brasileira – dois anos antes do surgimento da Bossa Nova – pode ser avaliada pela

repercussão da sua volta para a Mayrink Veiga somada à uma longa temporada de

muito sucesso no palco da casa noturna Club 36, no ano de 1956. O jornal Última

Hora (12.03.1956), por exemplo, repercutiu o acontecimento com o artigo “Bossa

Nova na O.V.C.!” – curiosamente o título vem com a expressão Bossa Nova, sem

ainda ter o sentido que viria a seguir, o de um novo ‘gênero’ da canção popular:

Dorival Caymmi, como se sabe, assinou contrato com a ‘Socipral’ (Organização Victor Costa). E para o lançamento do baiano no microfone da Radio Mayrink Veiga (dia 16), Victor Costa e Luís Vassalo idealizaram marcar o acontecimento com uma grande festa de características baianas. (...) desejam (...) decorar o auditório da Mayrink com coisas da Bahia, ornamentando o ambiente com muitas moças vestidas de baianas e algumas baianas autênticas, sem se falar nas comedorias que serão exclusivas da culinária da ‘Boa Terra’. (...) Enfim, uma festança que dará muito o que falar nesta praça carioca. É uma inovação, sem dúvida.

O programa teve ampla cobertura da imprensa. Entre os veículos, destacam-

se o Correio da Manhã, de 14.03.1956 (“Dorival Caymmi é um dos maiores

artistas brasileiros (...) Estréia na Mayrink com programa especialmente escrito

por Antonio Maria”); O Globo, de 14.03.1956, na coluna O Ouvinte

Desconhecido (“Será uma festa auditiva para todos os ouvintes, que já andavam

ralados de saudade da música de Caymmi, cantada pelo próprio Caymmi”);

Última Hora, de 15.03.1956 (“Com a ajuda do Senhor do Bonfim, Dorival Caymi

e a moçada da Socipral convida-nos para uma ‘Noite na Bahia’”); O Dia, de

18.03.1956, com o título Caimmy, Afinal! (“A sua volta teria que ser uma festa,

uma noite de imensa brasilidade, uma espécie de feriado nacional da música

popular”); Correio Paulistano, de 20.03.1956 (“O ‘cantor das graças de Iemanjá’

cantará nos prefixos de rádio e TV da OVC”); O Globo, de 20.03.1956 (“Dorival

voltou ao rádio, cantando ao microfone da Mayrink Veiga. (...) O número mais

aplaudido da noite foi o samba de Maracangalha”); Correio da Manhã, de

21.03.1956 (“Moço Caymmi estreou domingo, de volta ao ninho antigo que o viu

crescer como cantor popular, mais velho, mais humano, mais despido de ilusões,

mais Caymmi do que nunca”); Diário Trabalhista, de 21.03.1956, assinado por

Nelson Batinga (“Dorival Caymmi voltou ao rádio, cantando aquelas composições

gostosas, sem parceria de discotecários”); Tribuna da Imprensa, de 21.03.1956

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(“Dorival Caymmi finalmente estreou domingo”); O Globo, de 22.03.1956

(“Dorival Caymmi apresentou no seu programa de estréia, na Rádio Mayrink

Veiga, no domingo passado, um novo samba que é uma beleza, chamado Só

Louco”); Tribuna da Imprensa, de 22.03.1956 (“Ouviram? O novo samba de

Dorival Caymmi, ‘Só Louco’. Dentro de alguns dias estará na rua uma gravação

que é qualquer coisa de sensacional”); Correio da Manhã, de 25.03.1956

(“Retorna o poeta do mar, o compositor folclorista da ‘boa terra’”). A Revista do

Rádio (21.04.1956) publica:

As apresentações de Caimmy, entretanto, precisavam de um texto bastante expressivo, que falasse das emoções e belezas contidas, em tão alta dose, nas suas melodias. E que recordasse coisas intimamente ligadas ao poeta-cantor, evocando trechos e motivos que o levaram a compor e cantar músicas que já se fixaram entre os clássicos nacionais. Por isso, foi Antônio Maria o escolhido para escrever o texto dos programas de Caimmy, ele que é amigo do cantor há longos anos, com ele vivendo suas alegrias e tristezas. O resultado foi um sucesso.

Dois meses depois, a mesma Revista do Rádio (16.06.1956) comenta: “Vale

a pena ouvir Caymmi de novo, na plenitude da sua carreira artística”. Antônio

Maria, com o humor e exagero de sempre, convidava para o show de Caymmi,

em sua coluna Mesa de Pista, de O Globo (14.03.1956): “O Rio inteiro está

convidado para ouvir o cantor do ‘36’”. Na coluna O Ouvinte Desconhecido, do

mesmo jornal (17.04.1956), o convite se repetia: “Conselho: Ouvir Dorival

Caymmi nas noites de domingo, na Mayrink, é uma delícia, mas não chega.

Procurem ouvir pessoalmente, no pequeno bar da Rodolfo Dantas”. Exageros à

parte, o show de Caymmi fazia enorme sucesso como indicava o título “Dorival

está com tudo”, de matéria publicada em no Correio da Manhã (27.03.1956),

parodiando uma reportagem de cunho investigativo:

Domingo, antes da meia-noite, passou um nosso representante pelo 36, a fim de certificar-se a quantas andava mestre Dorival em dia de casa fraca. E verificou que o sucesso do baiano continua espetacular, superlotando aquele bar (...) lá estavam, prestigiando o futuro prefeito de Maracangália, anotou ele nosso prezadíssimo Di, armado de Beryl, e a parceria Rubem Braga & Zico Freitas, dividindo suas atenções em torno de uma principesca criatura de belos cabelos negros.

Na imprensa muito adjetivada da época, alguns jornalistas se debruçavam

com mais vagar sobre a obra e o canto do baiano, a parte essa repercussão mais

imediata, como o comentário escrito por Henrique Pongetti com o título “O novo

Caími”, na coluna O Show da Cidade, publicada em O Globo (22.03.1956):

Dorival Caími é uma dessas vozes perfilhadas pelo tempo. (...) Em que consistem as melhoras do canto de Caími? Eu diria que seu coração amadurecido encontrou

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nas suas primeiras cantigas as reservas emocionais. (...) Caími refaz seu itinerário melódico como se voltasse à sua juventude pelo caminho mais grato – o da música. Canta como se recuperasse um a um todos os dias felizes da sua existência.

Em O Dia (25.03.1956), na coluna Rádio, saiu uma consideração diversa a

propósito da voz do cantor acompanhada de uma análise de seu trabalho e do

sucesso de sua carreira:

Sem ser um grande cantor, dono de voz bonita, mas de curta extensão, Caimmi conta um sucesso em cada criação. Por que? São vários os fatores de seu sucesso. A sua fidelidade aos ritmos bem brasileiros de que se fez intérprete. Caimmi vive na cidade absorvente e tentacular, mas não se deixou jamais envolver pelas suas manhas e seduções. Mas o principal motivo de seu êxito é qe Dorival Caimmi é, antes de tudo e acima de tudo, poeta. Os seus versos simples são doces e melodiosos.

Algumas dessas análises soavam nostálgicas como a que saiu publicada no

Diário de Notícias (28.03.1956), com o título “Ouvindo a Mayrink”, onde

também há uma crítica sobre os arranjos das canções apresentadas na emissora em

tom opinativo:

Ouvindo a Mayrink, domingo, tive a impressão de que o rádio voltara aos bons tempos da música popular, com a apresentação de Dorival Caymmi (...). Narrava o locutor episódios interessantes da Bahia, focalizando alguns dos seus tipos tradicionais. E Caymmi cantava com acompanhamento de orquestra ou de violão, páginas bonitas do seu repertório: ‘Rosa Morena’, ‘A Jangada voltou só’, ‘Valerá a pena’, ‘Acontece que eu sou baiano’... E, finalmente, ‘Marina’. A deliciosa canção de Caymmi, no meu sentir, resulta mais expressiva quando entrecortada de acordes ao violão. O volume sonoro das orquestras tira da melodia aquele tom de queixa sentimental, que é a sua maior beleza. Notei, também, um ritmo mais acelerado, que prejudicou um pouco a pronúncia das frases dentro da linha melódica.

Em O Globo (24.08.1956), na coluna O Ouvinte Desconhecido, comenta sua

participação na programação da TV Tupi:

Mais uma vez Dorival Caymmi esteve diante das câmeras da TV-Tupi na terça-feira passada, cantando ‘Viagem a Alagoinhas’, ‘Lá Vem a Baiana’ e ‘Festa da Conceição da Praia’. É um dos melhores espetáculos que a televisão carioca tem atualmente para oferecer aos telespectador.

Das músicas de Caymmi citadas pelos periódicos da época, “Só Louco” e

“Maracangalha” destacavam-se. Esta última, recém lançada em 1956, foi um dos

maiores sucessos, senão o maior, de toda a sua carreira. Ary Vasconcelos, escritor

e pesquisador de música, escreveu uma reportagem sobre o compositor de

“Maracangalha” para O Cruzeiro (04.08.1956), com fotos do jornalista e fotográfo

da revista na ocasião, e hoje produtor de cinema, Luiz Carlos Barreto, em que

assinala uma mudança em seu estilo:

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Platão imaginou a República, Campanela sonhou com a Cidade do Sol, James Hilton criou Shangri-La, Manuel Bandeira saiu-se com Pasárgada... Dorival caymmi bolou um dia a sua Maracangalha e pra lá vai ele, de clássico uniforme branco, com ou sem Anália. Como um coqueiro de Itapoã que, transplantado para Copacabana, mudasse também o sabor de seus cocos, assim Dorival Caymmi, saindo da Bahia, mudou bastante seu estilo. Foi como se Caymmi tivesse morado, de certa forma, na filosofia expressa na frase famosa: ‘A Bahia é boa terra, ela lá e eu aqui’. (...) Agora Caymmi passa os sábados em Copacabana. E as segundas, terças, quartas, etc., cantando no 36. (...) Há apenas a meia-luz onde, de sua garganta (...) brotam seus grandes sucessos, `João Valentão’, ‘Não Tem Solução’, ‘Nem Eu’. Também seus últimos e fabulosos ‘Só Louco’, ‘Fiz Uma Boa Viagem’, ‘Maracangalha’.

As comparações com “Pasárgada”, poema de Manuel Bandeira, eram

freqüentes na imprensa quando se tratava de escrever sobre “Maracangalha”,

como a publicada no Correio da Manhã (21.03.1956), na coluna Rádio e TV, com

os exageros típicos da imprensa do período: “Entre a Maracangalha cantada pela

viola de Dorival e a Pasárgada louvada na lira de Manuel, o coração de Barnabé,

brejeiro, balança”.

“Maracangalha”, ao contrário de algumas canções suas, foi composta

rapidamente e foi lançada em 1956, pela Odeon, com arranjo de Radamés

Gnattali. No lado B do 78 rpm, Caymmi gravou “Eu Fiz uma Viagem”. Quando o

compositor gravou o samba, em 22 de junho de 1956, Aloysio de Oliveira já

estava à frente da gravadora, como seu diretor-artístico. Ele ficou empolgado

quando o amigo lhe mostrou “Maracangalha”: “Vamos gravar, Caymmi. A gente

põe orquestra, cordas, regional, o Raul de Barros no trombone, uma zoeira.

Ninguém vai entender”(Caymmi, 2001, p. 330-331). Se de um lado, o long play

permitia uma visão de conjunto de parte da obra do compositor, por conter pelo

menos oito músicas – no LP de doze polegadas cabia ainda mais, entre dez e

dezesseis músicas –, o disco de 78 rpm, ainda em uso no Brasil no período, dava

maior agilidade aos lançamentos por só conter duas canções, às vezes a mesma

em duas versões, o que permitia que o produto chegasse rapidamente ao mercado,

já que os custos, o processo e tempo de gravação eram menores. Nos anos 60,

surgiriam o compacto simples, com duas canções, e o compacto duplo, com

quatro, que cumpririam essa mesma função.

Aloysio de Oliveira, ex-Bando da Lua, viera dos EUA especialmente para

assumir o cargo na Odeon. O que ele jamais soube foi que sua ida para a

gravadora aconteceu por indicação de Caymmi, que relata o episódio:

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O diretor da Odeon, um inglês – um cavalheiro baixinho, muito afável e gentil – queria que eu fosse o diretor-artístico da gravadora. Lembro-me bem: o convite foi feito num chá das cinco, num estilo bem inglês, no escritório dele, na avenida Rio Branco. Sabe o que eu disse para ele? – ‘O homem que o senhor quer não sou eu. O homem que o senhor precisa vive nos Estados Unidos e se chama Aloysio de Oliveira’. Para a minha surpresa, coisa que muita gente não acredita, o carro dele, do diretor da Odeon, emparelhou com o meu táxi na rua do Russel, no Flamengo, e ele me falou: ‘Olha, achei o homem. Ele vem pra assumir a Odeon’. Ele tinha ido aos Estados Unidos buscar o Aloysio. Dias depois, ele era o diretor-artístico da Odeon. (Caymmi, 2001 p. 331)

Sem imaginar, Dorival Caymmi colaborou com a contratação para uma das

maiores gravadoras do país do homem que lançaria a Bossa Nova, dois anos mais

tarde. Talvez em função do seu perfil, Aloysio de Oliveira, por sua experiência

artística acumulada, com passagem pelos EUA e seu passado de músico

profundamente enraizado na Música Popular Brasileira, pudesse ter uma visão

mais aberta, mais panorâmica, sem preconceito, capaz de antecipar e reconhecer

novas tendências na música.

“Maracangalha”, por sua vez, excedeu todos os prognósticos de Oliveira.

Oswaldo Miranda escreveu no Última Hora (18.10.1956) um artigo sobre o disco

com o título “Dorival Caymmi abre uma flor: ‘Eu vou pra Maracangalha’”:

O disco do baiano para a Odeon está vendendo muito e sua produção já se consagrou no assobio anônimo das ruas cariocas. De repente a cidade é sacudida por um samba bom, um samba muito brasileiro que ganha fácil o assobio das ruas, a repetição nos programas de calouros, a consagração imediata. É o ‘Eu vou pra Maracangalha’, do baiano Dorival Caymmi – sim, aquele mesmo do ‘Dora, Rainha do Maracatu’, do ‘Nem eu’, do ‘O que é que a baiana tem?’ e tantos outros sucessos marcantes na música regional brasileira. (...) Ouço a três por dois o admirável samba, que sobre ser bonito, original e poético, é um primor de simplicidade, o que, talvez, seja a sua mais forte característica. Esse é o samba que a gente aprende e canta instintivamente, porque fala diretamente ao nosso coração, ao nosso gosto estético.

A coluna O Ouvinte Desconhecido, de O Globo (14.12.1956), considera que

“Maracangalha” é “a música do ano” e prognostica seu sucesso no carnaval de

1957:

‘Maracangalha’, a extraordinária melodia que Dorival Caymmi lançou no Rio de Janeiro no corrente ano, merece sem dúvida alguma as honras de ‘A Música do Ano’. Tem todas as características de um grande clássico do nosso repertório popular: depois de embalar romanticamente a gente durante seis meses, renasce vivíssimo como ritmo carnavalesco, prometendo figurar entre as mais cantadas do próximo carnaval.

Lamartine Babo também antecipa o sucesso do samba no carnaval, em

entrevista ao jornal O Globo (4.02.1957), prevendo que “esse moço de talento

enorme, maior que a praça que tem o seu nome na Bahia, fará sucesso no

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Carnaval com Maracangalha”. Fernando Lobo atestou, em sua coluna Astros e

Estrelas do Rádio (1957): “Ora, que as coisas sempre acontecem como o poeta

Vinicius de Moraes disse em verso: ‘De repente, não mais que de repente’. Este

Brasil inteiro está inteiramente sacudido por uma música chamada

Maracangalha”.

Carlos Drummond de Andrade cita a música de Caymmi no poema Ao Sol

da Praia, publicado em 1956, na coluna do poeta: “Já não vou a

Maracangalha/Anália: pára um pouco e lê-me/O melhor é ficar na praia de

Ipanema, Leblon e Leme” – a poesia está no livro Versiprosa, de 1967. Para

Drummond, “Maracangalha” era aqui, no paraíso carioca. Mas, assim como o

público ficou curioso para saber o que eram “balangandãs” em 1939, à época do

sucesso de “O Que é Que a Baiana Tem?”, o mesmo sucedeu com

“Maracangalha”. Várias publicações escreveram a respeito.

O nome da cidade é uma corruptela de “amarrar a cangalha”. Cangalha é

uma armação de madeira ou de ferro onde se equilibra a carga dos burros. A

população da cidade, não mais que mil pessoas na época, não gostava do nome. O

argumento era consistente: lugar de amarrar cangalha é burro. O Diário de

Notícias (30.12.1956) fez uma extensa reportagem sobre o assunto do momento,

com ilustração da cidade feita por Carybé. A região, localizada no Recôncavo

Baiano, tinha sua economia ligada à cana-de-açúcar, que era a carga levada pelos

burros. Daí o nome. Com o sucesso da música de Caymmi, ser maracangalhense

dali por diante virou motivo de orgulho.

O compositor deu uma entrevista ao repórter Silvio Guimarães, da Revista

Paratodos (1.11.1956), em que adiantou um trecho de uma nova composição,

“Adalgisa”, um samba baiano, cujo refrão diz “que a Bahia tá viva ainda lá”,

mostrando que o samba e a temática baianos continuavam vivos em sua obra. O

artista respondeu ainda a respeito da desnacionalização da nossa música, assunto

que estava na ordem do dia, naquele período, provocando discussões calorosas:

Ao meu ver, os verdadeiros compositores de música popular, os que se conservam fiéis à melodia brasileira, aos sentimentos brasileiros – homens como Lamartine Babo, Ary Barroso, Pixinguinha, Ataulfo Alves etc., que mantêm a verdadeira tradição brasileira – deviam iniciar uma campanha, através de mesas-redondas, debates, como vem fazendo Almirante, para que assim jovens compositores encontrem as referências capazes de encaminhá-los na criação da verdadeira música popular brasileira. (...) Tenho a impressão de que os novos não têm o menor conhecimento da música brasileira em suas fontes originais, em sua pureza, vivem de cada moda que aparece.

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A preocupação com a influência estrangeira na música brasileira não era

nova, mas nunca havia sido tão sentida quanto naquele momento. A revista

Radiolândia chegou a fazer uma série de reportagens a respeito, em tom de

campanha. Caymmi não estava só em suas críticas. Com ele, estavam Dircinha

Batista, Almirante, Pixinguinha, Sylvio Caldas, entre outros.

Mas o país estava mesmo mudando. O otimismo que veio na esteira da

eleição de Juscelino Kubitschek à presidência da República, empossado em 31 de

janeiro de 1956, podia ser resumido pelo seu slogan de campanha “Cinqüenta

anos em cinco”, que prometia desenvolvimento, modernização da economia e

fortalecimento da indústria nacional. Otimismo que virou euforia a partir de 1958,

com a seleção brasileira de futebol vencendo a Copa do Mundo, apesar dos 13%

de inflação. O brasileiro vibrou ainda com os dois títulos de simples da tenista

Maria Esther Bueno, no Torneio de Wimblendon (1959/60), e com o pugilista

Eder Jofre, campeão mundial na categoria peso-galo, em 1960. Mas nem só

esportes e obras alimentaram a Era JK. Na cultura, a mudança dos ventos trouxe

novidades, renovações e efervescências: Orfeu Negro – filme do francês Marcel

Camus, com roteiro de Vinicius de Moraes –, premiado com a Palma de Ouro em

Cannes e com o Oscar de melhor filme estrangeiro; o Cinema Novo; a Bossa

Nova; o Concretismo; o Grupo Oficina de Teatro.

O presidente acrescentou ao seu Plano de Metas a construção de Brasília –

um projeto audacioso do urbanista Lúcio Costa e do arquiteto Oscar Niemeyer. A

imprensa da época não falava em outra coisa. Uma charge de Suez foi publicada

na revista Careta retratando o presidente cantando “Eu vou pra Maracangalha, eu

vou...”. O samba seguia sua carreira de sucesso.

Tal como previra Lamartine Babo, “Maracangalha” pegou no carnaval de

1957. A música rendeu ainda a Caymmi o convite para fazer um comercial do

Ron Merino, ainda que rum esteja mais para rumba que para samba. Na

propaganda, veiculada durante o carnaval, o compositor aparecia recostado numa

rede, muito à vontade com seu violão, com o sugestivo slogan: “Eu vou pra

Maracangalha... mas só com Ron Merino”. Este foi um dos muitos comerciais

feitos por Caymmi ao longo da vida associando-o à rede, reforçando sua imagem

de baiano e de preguiçoso na imprensa e no imaginário popular. O curioso é que

ele não é de rede – quem adorava uma rede era o capixaba Rubem Braga. O

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compositor baiano declarou que gosta mesmo é de cadeira de balanço, daquelas de

palhinha, com espaldar alto.

Dorival Caymmi foi eleito, pela Revista do Rádio (Caymmi, 2001, p. 345), o

melhor cantor de TV do ano, ao lado de Linda Batista, a melhor cantora. Mister

Eco, na sua coluna Noite Vadia, da Revista da Semana (12.01.57), reclamou de

Caymmi não ter sido eleito o melhor compositor de 1956: “Maracangalha, sucesso

indiscutível que ninguém se assuste se dominar o Carnaval, não elegeu Caymmi -

como era de esperar – o melhor compositor de 56, por mistérios que fogem à

prosaica espuma do nosso sabonete”.

De volta aos Diários Associados desde o ano anterior, o baiano se

apresentava, em 1957, na TV Tupi, Canal 6, todas às terças-feiras, às 21h50, com

grande sucesso. “A Mayrink havia perdido a força dos velhos tempos” – revela o

compositor, explicando sua breve passagem pela Rádio Mayrink Veiga e seu

retorno aos domínios de Chateaubriand, onde começara sua carreira. (Caymmi,

2001, p. 345)

Foi na TV Tupi, em seu novo programa semanal, que Caymmi lançou

“Saudade da Bahia”, samba que, ao lado de “Maracangalha”, proporcionou ao

artista dois grandes sucessos nacionais seguidos, que o mantiveram no auge no

período. O país inteiro cantou “Saudade da Bahia”, como havia cantado

“Maracangalha”. Curiosamente Caymmi havia composto “Saudade da Bahia” dez

anos antes:

A história de Saudade da Bahia é mirabolante. O samba fora guardado à sete chaves, por dez longos anos, pelo compositor (desde 1947!), que a compôs de uma tacada só, de cabeça (como era de seu estilo), numa tarde, no Bar Bibi, do Leblon, se valendo de um papel de embrulho, pedido no balcão, para não esquecer a letra. Saudade da Bahia sequer entrou no Cancioneiro da Bahia editado naquele ano. Aloysio de Oliveira precisava de uma canção forte para ser lançada depois de Maracangalha. Não podiam deixar a peteca cair, argumentava o produtor com Caymmi. Quando este confidenciou ao amigo que não tinha nenhuma composição nova para oferecer, o diretor da Odeon logo se lembrou de Saudade da Bahia, que conhecia do seu convívio em casa do baiano. Ele resistiu o quanto pode, mas não escapou das pressões do produtor, cujo bom gosto e faro para o sucesso eram infalíveis. O artista acabou por render-se gravando o samba em 26 de fevereiro daquele ano, num 78 rpm, que trazia também a regravação de Roda Pião, canção sobre motivo de folclore. Em maio, saiu o tão esperado disco de Caymmi – e não decepcionou. Pelo contrário... (Caymmi, 2001, p. 346-347)

As razões para Caymmi não desejar gravar “Saudade da Bahia” eram

pessoais. Sua melodia melancólica e sua letra confessional revelavam seu estado

de espírito quando a compôs, ele que cultiva o otimismo. Daí sua resistência em

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mostrá-la. Mas o produtor venceu. O compositor lançou, devido ao sucesso de

“Maracangalha” e “Saudade da Bahia”, o LP “Eu Vou pra Maracangalha”, em

que, além dos dois sambas, gravou pela primeira vez “Acontece Que Eu Sou

Baiano” – até aqui só havia a gravação do conjunto Anjos do Inferno, de 1944 – e

“Vatapá”, entre outras regravações. A capa do disco é uma caricatura do baiano

feita pelo desenhista Lan. A Revista do Rádio (06.03.1957), em matéria com o

título “Acontece que eu sou baiano”, mistura o artista e sua terra: “Dorival

Caymmi - que é a Bahia”.

Claribalte Passos2, jornalista e folclorista, escreveu, a respeito do long play

de Dorival Caymmi, para o Correio da Manhã, (30.06.1957), uma crítica extensa

e cuidadosa intitulada “Grande expressão da alma artística brasileira”, analisando

pormenorizadamente música a música, o texto da contracapa, além dos vários

elementos que compõe a gravação – como arranjos, desempenho da orquestra,

acompanhamentos, interpretação –, fato incomum na imprensa da época, mas que

provavelmente buscava fazer face ao novo produto:

Selecionou Dorival Caymmi composições antigas e modernas, neste seu novo disco, todas elas ornadas por expressivas vestimentas orquestrais, porém sem tirar a beleza e o lugar do seu instrumento preferido plangente violão. Assim, não é apenas o grupo homogêneo da orquestra, com particular revelo de atuação do ‘naipe’ de cordas, como a tradição contagiante do Regional e a voz personalíssima do ‘pinho’ brasileiro, tudo aqui convida a um soberbo concerto de música popular e folclórica nacional. Começa o autor, com o originalíssimo e típico ‘Maracangalha’, pintando em cores vivas um recanto modesto da sua Bahia tradicional. Nada tem o lugarejo com o ‘Shangri-La’ imaginado pelo escritor norte-americano James Hilton, conforme acentua no seu mau gosto o ex-cantor do Bando da Lua, Aloysio, nas inexpressivas notas da contracapa do disco. (...) Segue-se Caymmi, ao violão, cantando de forma soberba ‘Samba da Minha Terra’. Esta belíssima página é inspirada em sambas de roda, no qual são cantados os estribilhos concernentes ao ‘Bole-bole’, ao ‘requebrado’, sugestões oriundas, sem dúvida, do movimento ardente e sensual das ancas das pretas da Bahia, ou ainda, do remelexo característico e identificador da música negra. Temos, posteriormente, a mais recente das composições de Caymmi – ‘Saudade da Bahia’ – autêntico samba de ‘teléco-téco’, cuja letra é uma verdadeira obra-prima. Podemos dizer, sinceramente, que esta página anos oferece o mais notável instante criador do intérprete neste disco. Preciosa, igualmente, a colaboração de Léo Peracchi e sua orquestra. Encerrando este primeiro grupo musical, Caymmi aparece acompanhando-se ao violão, no maravilhoso samba ‘Acontece que eu sou baiano’. A letra de feição religiosa afro-brasileira. (...) Na segunda coletânea, encontramos de início cantiga sugestiva do folclore bahiano – ‘Fiz uma Viagem’. Aqui,

2 Claribalte Passos, nascido em Caruaru, em 1923, publicou diversos títulos sobre o folclore: Folclore e tradição (1965), A cana de açúcar no folclore (1966), Judith Cleason e o folclore do negro no Brasil (1967), Raízes folclóricas na música popular moderna (1969), Alfenim: açúcar com alma de gente (1971), Valdevino Felicidade – filósofo do engenho (1972), A arte da xilogravura na terra do açúcar (1973).

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observamos a autêntica viagem do Retirante. (...) ‘Vatapá’ é o mais saboroso e popular dos pratos baianos, aparecendo aqui como autêntico ‘hino’ à culinária da Bahia. (...) ‘Roda Pião’ faz parte de uma coletânea de canções, sobre motivos do nosso folclore. (...) Finalmente, ‘365 Igrejas’, página que imortaliza a suntuosidade e a tradição dos tempos religiosos da Bahia.

Após uma breve passagem pela Europa, para cumprir uma agenda de

trabalho com a cantora Dóris Monteiro em Portugal – o Diário de Lisboa

(06.05.1957) o considerou “o embaixador da canção brasileira” –, cuja principal

motivação era representar Assis Chateaubriand na cerimônia de doutoramento de

Edgar Santos, reitor da Universidade da Bahia, pela Universidade de Coimbra,

Caymmi pode constatar o êxito de “Saudade da Bahia”, sucesso absoluto em todo

o país. O disco era recorde de vendas em São Paulo. Só naquele ano, o samba fora

gravado nove vezes, além de Caymmi: as cantoras Nora Ney e Marlene, Paulo

Marquez, o conjunto Norberto Baldauf, o acordeonista Mário Gennari Filho, a

Turma do Vale Tudo, Miguel Caló, Altamiro Carrilho e o Trio Nagô.

No Diário da Noite (01.07.1957), sob o título “Dorival Caymi está cantando

como nunca”, saiu publicado: “Dorival Caymi, o intérprete de tantos e tão

remarcados sucessos, depois de sua excepcional temporada na Europa, voltou ao

rádio e à televisão cariocas. Ei-lo diante das câmeras da TV Tupi”. Para a revista

O Cruzeiro (05.10.1957), o pesquisador Ary Vasconcelos voltou a escrever sobre

Caymmi, com fotos de Hélio Passos, com o título “Minha terra tem Caymmi (e

palmeiras)”:

“Minha Terra Tem Palmeiras” vem sendo uma das grandes atrações radiofônicas nas noites de terça-feiras, obrigando os diversos botõezinhos dos aparelhos receptores, por ventura dispersos, a girarem nessa hora para a Rádio Tupi. (...) ‘Minha Terra Tem Palmeiras’contou, em sua última audição, com esplendias ilustrações musicais a cargo de Dilu Melo e Dorival Caymmi (...) o que prova que nossa terra não é só rica em palmeiras, mas principalmente em música, como a que sai, por exemplo, do violão e da garganta de Caymmi.

Na coluna O Ouvinte Desconhecido, de O Globo (26.08.1957), é feita uma

sugestão ao compositor:

Pelo fato de ser bom de verdade, Dorival Caymmi jamais cansa aos ouvintes e espectadores, e é sempre um prazer ouvi-lo, como na quarta-feira passada, na TV-Tupi, interpretando ‘Dora’, ‘A Lenda do Abaeté’ e ‘Rainha do Mar’. Por que o excelente compositor e intérprete não organiza um ciclo de audições dedicado inteiramente ao repertório das suas canções praieiras, que constituem uma das mais preciosas jóias do nosso cancioneiro popular?

Dorival Caymmi torna a gravar um long play dedicado exclusivamente às

canções praieiras, com arranjos de Leo Peracchi. Caymmi e o Mar, lançado pela

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Odeon, ainda em 1957, trazia História dos Pescadores, constituída de cinco

canções inéditas (“Canção da Partida”, “Adeus da Esposa”, “Temporal”, “Cantiga

da Noiva” e “Velório”) – que Aloysio de Oliveira insistiria em chamar de Suíte de

Pescadores, título que o compositor não gosta por considerar pretensioso demais.

No disco, o compositor representa um velho pescador que narra a vida dos

pescadores com a participação das cantoras Silvia Telles, Lenita Bruno, Odaléa

Sodré Fernandes e Consuelo Sierra. O texto de apresentação, em tom poético, é

assinado por Fernando Lobo que sobre Caymmi escreveu: “Cumpriu o destino

que o mar lhe impôs e seguiu rumos e terras, sem deixar nem se esconder de seu

mar amigo”.

Claribalte Passos volta a assinar a crítica desse novo trabalho do compositor

– com o pomposo título “O Maior Intérprete de Netuno!” – para a seção

Discoteca, do Correio da Manhã (1957), em que comenta detalhadamente música

por música:

A composição inédita – HISTÓRIA DE PESCADORES – contada pelo próprio CAYMMI (que aliás faz uma excelente demonstração como narrador e poeta), aparece-nos no ritmo de marcha-de-rancho. Sendo a pintura viva da tragédia do pescador, no seu canto esperançoso, ao partir no romper da madrugada – rumo à perigosa tarefa da pesca em alto mar e representando o adeus de suas esposas que fazem preces para que Yemanjá não permita o mau tempo – achamos inapropriada a mudança do ritmo. Talvez, admitida no caso, por questão comercial. Todavia, no plano artístico e original, a execução de uma tão soberba página musical vem em detrimento da exuberância criadora da notável obra de Caymmi. Três são as personagens: Um velho pescador (Caymmi), a noiva (Sílvia Telles) e as esposas (Lenita Bruno, Odaléa Sodré Fernandes e Consuello Sierra). Literária e musicalmente, ‘História de Pescadores’ está dividida pelo autor em seis partes. E o mais elevado nível, a interpretação de Caymmi, o mesmo acontecendo aos seus colaboradores artísticos – ‘CANTIGA DA NOIVA’, na voz da cantora SYLVIA TELLES, é algo excepcional. ‘Promessa de Pescador’, criação que encerra a face A, apresenta-nos CAYMMI e seu violão. É uma belíssima oração, impregnada uma extraordinária força poética, dedicada à Yemanjá. No segundo grupo musical, temos logo de início ‘DOIS DE FEVEREIRO. Inegavelmente, é um das mais lindas melodias do inspirado compositor; mas também nela observamos a mudança do ritmo para samba-batucada no estilo bem carnavalesco. Certamente, outra adaptação para fim comercial. Aos discófilos, acreditamos que tais ressalvas passem despercebidas, uma vez que mesmo justificando as restrições anteriores, a execução e interpretação convergem além da natural beleza musical. E tem ainda a valorizá-la a personalidade inconfundível do autor. Segue-se ‘O VENTO’, obra amplamente conhecida através de sucessivas gravações. “SAUDADE DE ITAPUAN’ é outra página de assinalada expressão, onde colabora, eficientemente, um coro feminino. Um dos mais atraentes momentos desta audição. Temos a salientar, igualmente, o sugestivo arranjo e uma bela introdução das cordas em ‘trêmolo’. Retorna, a seguir, o violão lamentoso de Caymmi em ‘NOITE DE TEMPORAL’. Finalmente, a tocante ‘cena baiana’ inspirada na festa tradicional da Conceição da Praia, que é levada a efeito em frente à igreja da Conceição, no dia 8 de dezembro. A ela comparecem todos os capoeiristas, os mestres de saveiros,

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pais-de-santos e as ‘ymnõs’ e os ‘órgãos’. É o reinado do baticum do samba. Maravilhosos os solos realizados, numa estupenda marcação rítmica, pelo trombone em surdina. ‘O MAR’ é o fecho de ouro deste long-playing. É o retrato da obra musical e poética de CAYMMI. Tecnicamente, o nível de sonoridade das gravações é perfeito. (...) Um lançamento recomendável, não só pela alta qualidade técnica e artística das gravações como pelo seu valor musical no plano das realizações fonográficas de maior relevo no final de 1957”.

Mister Eco, na Revista dos Espetáculos, do Diário Carioca (23/03/1958),

comenta acerca de Silvio Caldas, Elizete Cardoso e Dorival Caymmi, que eles

“são os donos da posição e formam o grande trio dos nomes mágicos. (...) E é de

se notar que, com o passar do tempo, Sílvio, Elizete e Caymmi estão cada vez

melhor, confirmando o adágio do velho vinho”. Nos anos 50, Caymmi estava no

ápice de sua carreira.

Em 1958, foi lançado o novo romance de Jorge Amado, Gabriela, Cravo e

Canela, que até o final do ano venderia cinqüenta mil exemplares, tornando-se o

acontecimento literário do ano. No mesmo dia foi lançado conjuntamente o LP

Canto de Amor à Bahia e Quatro Acalantos de Gabriela, Cravo e Canela,

também de Jorge Amado com ilustração musical de Dorival Caymmi. O LP saiu

pela gravadora Festa, de Irineu Garcia. A foto da capa era de Pierre Verger,

etnólogo francês que radicou-se na Bahia. Mais uma vez, o texto da contracapa

assinado por Caymmi, saiu na verdade da pena de Jorge Amado, com a simbiose

costumeira. O lançamento no Rio, concorridíssimo, com ambos autografando

juntos, foi na Livraria São José, prestigiado por Gilberto Freyre, Di Cavalcanti,

Manuel Bandeira, Marques Rebelo, Oscar Niemeyer, além do cineasta francês

Marcel Camus, entre outros.

Na Revista Manchete (1958), o escritor Orígenes Lessa fez uma reportagem

sobre o compositor, com quem convivera quando ambos moravam no Leblon,

antes de Caymmi mudar-se para Copacabana. Mencionando a praça que leva o

nome do baiano em Itapoã, Lessa o chama de poeta:

Uma voz e um violão fizeram amados do Brasil inteiro coqueiros, areais, morenas de Itapoã... E saudades de Itapoã todos sentem agora, mesmo aqueles que só conheceram outros coqueiros, outras areais, outras morenas... (...) Matriz de lugarejo na beira mar é sempre poesia. Mas em Itapoã o Largo da Matriz se chama agora Praça Dorival Caymmi. Houve beleza no gesto. Humanizou-se ainda mais a velha praça. Em vez de poesia, o poeta. Poeta de Itapoã, poeta...

Em outubro daquele mesmo ano, Aloysio de Oliveira lançou o disco Ary

Caymmi - Dorival Barroso: Um Interpreta o Outro (Odeon). Os dois artistas não

chegaram a se encontrar no estúdio ao gravarem o disco – segundo Caymmi, por

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causa da concorrida agenda de Ary Barroso –, entre os meses de junho e julho. O

projeto foi inteiramente concebido por Oliveira. A capa é bem humorada, com o

compositor mineiro de chapéu de palha, descalço, calças arregaçadas e uma vara

de pescar na mão – o pescador improvisado –, e Caymmi agachado, ao lado,

vestido com a camisa do Flamengo (de cujo time Ary era torcedor doente), com

pinta de jogador. Este disco é uma oportunidade rara para se observar Caymmi

unicamente como intérprete, uma vez que ele interpreta clássicos de Ary Barroso

acompanhando-se ao violão.

4.2. A Bossa Nova e Caymmi

Caymmi estava no auge do sucesso. Compôs muito – considerando-se seu

ritmo de ourives, é claro – e ao longo dos últimos dez anos teve praticamente

todas as suas canções consagradas pelo público, unindo sucesso à qualidade de

suas composições, fato apontado por muito dos pesquisadores e críticos que se

debruçaram sobre sua obra. Como já foi ressaltado, além das canções praieiras,

canções sobre motivo folclórico e seus sambas de inspiração tipicamente baiana –

que por si só representam uma página importante na música brasileira –, teve

fôlego e talento para lançar-se numa fase que os pesquisadores cunharam de

urbana, em que compôs sambas-canção com ricas e complexas harmonias, que,

junto com as demais vertentes da sua obra, colaboraram com as bases da chamada

moderna música brasileira. “Saudade de Itapoã”, “A Lenda do Abaeté”,

“Saudade” (em parceria com Fernando Lobo), “Nunca Mais”, “E Eu Sem Maria”

(com Alcyr Pires Vermelho), “Não tem Solução” (com Carlinhos Guinle), “Nem

Eu”, “Sábado em Copacabana” (com Carlinhos Guinle), “João Valentão”, “Quem

Vem pra Beira do Mar”, “Maracangalha”, “Só Louco” e “Saudade da Bahia”,

produções do período, embalaram toda uma geração, aí incluída a futura geração

de músicos que Caymmi assistirá nascer.

A Bossa Nova surgiu no momento em que Dorival Caymmi encerrou o ciclo

do seu papel inovador na música popular. E, como assinalou o poeta, tradutor e

ensaísta Antônio Risério, “com Caymmi, a inovação nunca teve um caráter

traumático (como aconteceu com João Gilberto...)” (Risério, 1993, p.15). Aquele

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foi o momento em que Caymmi, e com ele toda uma geração que até ali dominara

os cânones da música brasileira, assistiu a uma mudança sem paralelo que trazia

uma nova forma de compor, cantar e tocar. Para grande parte da geração anterior à

Bossa Nova, foi, sem dúvida, um momento traumático. Com “Chega de Saudade”

tudo mudava inexoravelmente.

O samba fora gravado pela primeira vez, em abril daquele ano, por Elisete

Cardoso, no LP Canção do Amor Demais, pelo selo Festa, dedicado

exclusivamente ao repertório de Tom e Vinicius. Nele, “Chega de Saudade” e

“Outra Vez” vêm com o decisivo e genial acompanhamento de João Gilberto ao

violão, mas ainda cantado em estilo ‘operístico’, fruto da influência da escola

italiana por aqui. Não haveria mais volta, como o tempo se encarregaria de

demonstrar. “Chega de Saudade”, gravado pelo próprio João Gilberto, em 10 de

julho de 1958, num 78 rotações (com “Bim-Bom”, de sua autoria, no lado B), da

gravadora Odeon, a mesma de Caymmi, apontou uma direção para uma geração

ávida de novos rumos e novas sonoridades, inaugurando oficialmente o

movimento. Antes de lançar o disco, Aloysio de Oliveira, diretor artístico da

Odeon, mostrou a gravação para Caymmi pedindo sua opinião:

Dorival Caymmi passou na Odeon e Aloysio de Oliveira o chamou. “Ouve isso aqui” – disse ao baiano, botando Chega de Saudade, que ainda não fora lançado, no toca-disco. “Aloysio olhava para a minha cara esperando que eu adivinhasse quem era o cantor” – relembra o compositor. E continua: “Eu não consegui reconhecer aquela voz, mas achei o camarada um fenômeno”. Era João Gilberto, o Joãozinho do grupo Garotos da Lua, que ele conhecia mas nunca escutara antes num número solo. “Aloysio, você descobriu uma mina de ouro!” – exclamou Caymmi. Sobre o disco Canção do Amor Demais, analisou: “O João naquele disco está fazendo de boca um som de trombone misturado a orquestra. Ninguém percebeu que ele fazia aquela picardia. Se sente o ritmo, a modificação do ritmo. Foi um ponto de partida. (Caymmi, 2001, p. 375)

No jornal Diário Carioca (19.11.1958), foi publicada uma foto de Caymmi

e João Gilberto, acompanhada da legenda que promovia o novo disco do cantor

estreante:

Caymmi e João Gilberto. O primeiro famoso; o segundo, cantor e violonista dos mais promissores, com a sua arte, brevemente conquistará a consagração popular. Artista de grandes recursos, agora contratado da Odeon, estreou de maneira magnífica com as gravações curiosas de Bim Bom e Chega de Saudade.

Para o pesquisador de música Júlio Diniz, “a Bossa Nova representa uma

mudança conceitual importante na maneira de fazer e tocar música no Brasil dos

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anos 50”. Diniz revela, entretanto, que há controvérsias quanto à definição da

Bossa Nova:

Há três possíveis concepções para o termo bossa nova, nem sempre compatíveis e complementares. Os pesquisadores na área possuem visões distintas, o que demonstra a complexidade e a importância histórica e estética da bossa nova em nosso cancioneiro popular. A primeira possível definição refere-se a um “jeito específico de cantar e tocar”; a segunda tendência a considera um gênero musical e a última refere-se à BN como um movimento na história da MPB. (no prelo)

Caymmi não parecia ter problemas para absorver aquela novidade – o que

não significa que fosse compor Bossa Nova –, como foi para muitos, presos ao

formato tradicional do samba. Muitas das suas canções apresentavam

dissonâncias, acordes alterados, harmonias modernas comuns àquele gênero.

“Quem faz Só Louco, já faz bossa nova” – afirmou o compositor. Amante do jazz,

desde a adolescência na Bahia, freqüentador das jam sessions de Carlinhos

Guinle, empolgou-se com a modernidade da proposta estética, que segundo alguns

autores era muito influenciada pelas novas harmonias do cool-jazz e do be-bop.

Tom Jobim tanto sabia disso que não se fez de rogado em acrescentar um

“Caymmi também acha” no post scriptum da sua apresentação de João Gilberto,

na contracapa de Chega de Saudade, LP do jovem baiano, lançado em março de

1959 – depois do sucesso do seu segundo 78 rpm, que trazia “Desafinado”, de

Tom e Newton Mendonça, e “Oba-La-Lá”, de sua autoria:

João Gilberto é um baiano ‘bossa-nova’ de 27 anos. Em pouquíssimo tempo influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores. Nossa maior preocupação neste ‘long-playing’ foi que Joãozinho não fosse atrapalhado por arranjos que tirassem sua liberdade, sua natural agilidade, sua maneira pessoal e intransferível de ser, em suma, sua espontaneidade. Nos arranjos contidos neste ‘long-playing’ Joãozinho participou ativamente; seus palpites, suas idéias, estão todas aí. Quando João Gilberto se acompanha o violão é ele. Quando a orquestra o acompanha a orquestra também é ele. João Gilberto não subestima a sensibilidade do povo. Ele acredita que há sempre lugar para uma coisa nova, diferente e pura que – embora à primeira vista não pareça – pode se tornar, como dizem na linguagem especializada: altamente comercial. Porque o povo compreende o Amor, as notas, a simplicidade e a sinceridade. Eu acredito em João Gilberto, por que ele é simples, sincero e extraordinariamente musical. P. S. : Caymmi também acha. Antonio Carlos Jobim

Com o prefácio de Tom Jobim, responsável pelos arranjos do disco, ficava

claro o apadrinhamento de Dorival Caymmi a João Gilberto e à Bossa Nova. Se a

Bossa Nova rejeitava os padrões estéticos das gerações anteriores, promovendo

uma ruptura, não parecia ser uma radicalização total, mesmo considerando o

“caráter traumático” do movimento conforme assinalou Risério (1993). Prova

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disso é o fato de o próprio João Gilberto gravar, em seu primeiro LP, “Morena

Boca de Ouro” e “É Luxo Só”, de Ary Barroso (esta última em parceira com Luiz

Peixoto); “Aos Pés da Cruz”, de Marino Pinto e Zé Gonçalves, além de “Rosa

Morena”, de Caymmi; sinalizando a fonte que o abasteceu desde Juazeiro, na

Bahia. Sem falar na sua admiração por Assis Valente, que ficaria evidente logo a

seguir. Se a Bossa Nova fosse de fato uma ruptura radical com a Música Popular

Brasileira que se fazia até então, não haveria condições no horizonte de

expectativa do momento da sua produção para a sua recepção. Seria preciso

esperar uma ou mais gerações para que se criassem as condições necessárias para

absorvê-la. Não foi o que se viu. A inovação que a Bossa Nova trazia – e nesse

sentido, ela cumpre a função que Jauss define para uma obra de efetivo valor em

seu campo estético – foi responsável pela ampliação do horizonte de expectativas

da música brasileira, mas ela só foi imediatamente aceita, ainda que alvo de

críticas e resistência por alguns, e produziu o efeito de influenciar grande parte da

geração contemporânea e futura, porque trazia em si mesma elementos

pertencentes ao horizonte de expectativas da época, caso contrário seria rejeitada,

como aconteceu com MadameBovary, de Flaubert, exemplo clássico de Jauss.

O caráter inovador da Bossa Nova pode ser avaliado através da entrevista

reveladora concedida por João Gilberto – que costumeiramente evita a imprensa –

a Tárik de Souza, jornalista e crítico de música, para a seção Páginas Amarelas,

da revista Veja (12/5/1971), quando o compositor menciona a influência que

sofreu de “Rosa Morena”, samba de Dorival Caymmi:

Uma das músicas que despertaram, que me mostraram que podia tentar uma coisa diferente foi Rosa Morena, do Caymmi. Senti que aquele prolongamento de som que os cantores davam prejudicava o balanço natural da música. Encurtando o som das frases, a letra cabia certa dentro dos compassos e ficava flutuando. Eu podia mexer com toda a estrutura da música, sem precisar alterar nada. Outra coisa com que eu não concordava era as mudanças que os cantores faziam em algumas palavras, fazendo o acento do ritmo cair em cima delas para criar um balanço maior. Eu acho que as palavras devem ser pronunciadas da forma mais natural possível, como se estivesse conversando. Qualquer mudança acaba alterando o que o letrista quis dizer com seus versos. Outra vantagem dessa preocupação é que, às vezes, você pode adiantar um pouco a frase e fazer às vezes com que caibam duas ou mais num compasso fixo. Com isso, pode-se criar uma rima de ritmo. Uma frase musical rima com a outra sem que a música seja artificialmente alterada.

A respeito desta entrevista, Caymmi comentou, anos depois, que João

Gilberto era “um sujeito ardiloso”. E analisou a interpretação que ele fez de Rosa

Morena:

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(...) mas são aquelas esperas, ‘Rosa’ (canta), ele deixa a zona vazia para botar o molho. Dá para fazer vinte rotações de bunda nesse pedaço vazio. E João Gilberto é um ourives do espaço vazio, que obriga todo mundo a querer encher o tempo, essas bobagens. Ele não brinca com isso. O espaço vazio ele deixa para você. Para você construir, sentir, gozar. Ele deve ter achado a ourivesaria do negócio. Ele está atento, é perigosíssimo. O João não tem ouvidos, ele tem outros aparelhos. É um mistério. (Caymmi, 2001, p. 376)

Para os pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello (1998), o

surgimento da Bossa Nova se deveu primordialmente às modificações

introduzidas por João Gilberto na música popular. Ao definirem o gênero,

“inovador e revolucionário”, comentaram:

(...) o canto intimista, a letra sintética, despojada, o emprego de acordes alterados e, sobretudo, um extraordinário jogo rítmico entre o violão, a bateria e a voz do cantor. Responsável por este jogo rítmico, seu intérprete, João Gilberto, assumia assim de imediato um papel destacado no trio – completado pelo compositor Tom Jobim e o poeta Vinicius de Moraes – que, criando a bossa nova, alteraria de forma irreversível o curso de nossa música popular. Apenas com Tom e Vinicius teríamos certamente uma música moderna, sofisticada, renovadora, mas que não seria o que se chamou de bossa nova”. (Severiano & Mello, 1998, v. 2, p.27-28)

Tom Jobim, em entrevista a Almir Chediak, músico e editor, para o

songbook dedicado à sua obra, é da mesma opinião que Severiano e Mello: “Não

fosse João Gilberto, a bossa nova jamais teria existido. Nos anos 50 vinham

acontecendo grandes mudanças na música popular brasileira: harmonia, letra,

melodia, etc. ... Mas João foi a espoleta, o estopim que detonou a bossa nova”.

(Caymmi, 2001, p. 374).

Dorival Caymmi, ainda sobre João Gilberto, completa:

Já o João Gilberto é o homem das criações totais. O que eu posso dizer é que gostaria de ter gravado minhas músicas como ele cantou. Aquela maneira à meia-voz, quase como um instrumento. Fazia um trombone afinadíssimo. É um tipo de canto sem artifícios. (Caymmi, 2001, p. 377)

Enquanto isso, a partir da matriz gerada pela tríade João Gilberto, Tom

Jobim e Vinicius de Moraes, a Bossa Nova se alastrava, sobretudo nos meios

urbanos, mais precisamente no Rio de Janeiro, em reuniões musicais em casas da

Zona Sul carioca, com jovens talentos como Carlinhos Lyra, Ronaldo Bôscoli,

Roberto Menescal, Nara Leão, entre outros. Sem falar em Johnny Alf, João

Donato e Newton Mendonça, que já podiam ser ouvidos na noite do Rio. Eram

jovens fartos da dramaticidade dos sambas-canção reinantes e do bolero, seu

primo-irmão, desembarcado por aqui em meados da década de 40. Era uma

geração, segundo os críticos, que não se identificava com a estética do

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sentimentalismo rasgado, o culto à fossa em letras como “afogue as saudades nos

copos de um bar”, de “Risque”, clássico de Ary Barroso, menos ainda às

desventuras de amor descritas em “Ninguém me Ama”, sucesso de Antônio Maria

e Fernando Lobo. Queriam algo mais leve e o baião de Luiz Gonzaga e Humberto

Teixeira, que reinava na época, com sua incrível vitalidade, não satisfazia às

aspirações de uma juventude sofisticada e urbana.

Talvez se encontre aí – afora os experimentalismos de João Gilberto – uma

explicação parcial da incorporação de Dorival Caymmi ao movimento. Apesar de

colecionar clássicos do samba-canção, seu espírito alegre e brejeiro não o deixava

compor nada excessivamente derramado. Mesmo em letras como “Nunca mais

vou querer os seus beijos” (“Nunca Mais”) ou “Só louco amou como eu amei”

(“Só Louco”) é preservada uma boa dose de autocrítica e não chega a exigir a total

embriaguez do desesperado amante. Antônio Risério assinalou esta característica

do compositor :

Caymmi, contraria uma arraigada tradição do samba: não rima amor com dor. Não tematiza a frustração amorosa. Pelo contrário, negaceia inconvincentemente diante dos acenos femininos, como em Acontece que eu sou baiano. Uma chinfra, no final das contas. Suas mulheres não são cruéis, nem diabólicas. Inútil procurar aqui o discurso do apaixonado infeliz dos sambas de Ataulfo Alves, Mario Lago, Lupicínio Rodrigues. Caymmi não é um sofredor. Nem buscou, à maneira do Ismael Silva de Uma jura que eu fiz, o sossego da solidão. (Risério, 1993, p. 83-84)

Mesmo assim Dorival Caymmi não era uma unanimidade entre os bossa-

novistas. Roberto Menescal, por exemplo, em depoimento ao Jornal do Brasil

(24.04.1994), revelou o preconceito que sentia em relação a Caymmi na época do

surgimento da Bossa Nova:

Aprendi violão tocando as músicas dele, mas não escutava nada de Caymmi em rádio ou em disco, porque eu só queria ouvir coisas novas. Confesso que tinha um certo preconceito em relação a ele, mas quando conheci os sambas-canção, por intermédio de Lúcio Alves e Dick Farney, descobri suas harmonias modernas e fiquei louco.

Nos anos seguintes ao aparecimento da Bossa Nova, Dorival Caymmi

lançou dois LPs, Caymmi e Seu Violão e Eu Não Tenho Onde Morar, em 1959 e

1960 respectivamente, ambos pela Odeon, ainda sob a direção artística de Aloysio

de Oliveira. Caymmi e seu Violão é considerado pela crítica especializada uma

obra-prima na discografia do artista baiano. Acompanhado apenas pelo seu violão,

para muitos ficou provado em definitivo o gênio do compositor, músico e

intérprete. Mas o baiano recorda que não foi fácil convencer a gravadora a fazê-lo

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desta forma: “Briguei muito para fazer um disco só de canto e violão, as fábricas

não deixavam. Diziam: Canto e violão puro fica muito vazio”. As gravadoras

estavam na contramão da proposta de João Gilberto, o “ourives do espaço vazio”,

com bem disse Caymmi (Caymmi, 2001, p. 376).

Mas as transformações do cenário musical devido à Bossa Nova eram

sentidas. Ainda que a bossa nova não tivesse virado as costas a Caymmi – muito

pelo contrário, como se viu até aqui – o compositor evidentemente sentiu o baque

das mudanças que se sucediam. Uma nova geração veio para tomar lugar de outra

na preferência musical do público. E um artista não passa por isso sem traumas.

Nem mesmo Caymmi. Como revelou Dori Caymmi, seu filho do meio, que sofreu

na pele o choque de gerações musicais em conflito, já que ele próprio, como

compositor, músico e arranjador, fazia parte desta mudança:

O artista, de repente, já não tem o prestígio que tinha numa determinada época. Então começa a se sentir um pouco frustrado. Teve esse lance muito claro na vida do papai e da mamãe. Ele começa a se recuperar desse susto quando o João (Gilberto) começa a gravar, começa a cantar a música dele. (Caymmi, 2001, p. 387)

Os anos seguintes provariam que os laços de Caymmi com João Gilberto,

Tom e Vinicius, conhecidos como a “santíssima trindade da Bossa Nova”, só

fariam se estreitar. Um breve percurso entre 1960 e 1999 será aqui esboçado para

demonstrá-lo. João Gilberto volta a gravar sambas de Caymmi: “Doralice”

(parceria com Antônio Almeida), em 1960, em LP e 78 rpm; “Samba da minha

terra” e “Saudade da Bahia”, ambos em 1961, em LP e 78 rpm. A primeira fase da

Bossa Nova, a de maior evidência, de acordo com Jairo Severiano e Zuza Homem

de Mello – a segunda fase, é também conhecida como a “era dos festivais” ou a

“turma dos festivais” –, “esgota-se nos últimos meses de 1962, quando acontece o

espetáculo “Encontro”, o único a reunir num palco o trio Jobim-Vinicius-Gilberto,

e o legendário show no Carnegie Hall, em Nova York” (Severiano & Mello, 1998,

p. 15).

“O Encontro” aconteceu em agosto de 1962, na boate Au Bon Gourmet, na

zona sul do Rio de Janeiro. Além de Tom, Vinícius e João Gilberto, participavam

do show histórico o conjunto vocal Os Cariocas e os músicos Otávio Bailly e

Milton Banana. Em 21 de novembro, aconteceu o “Bossa Nova - New Brazilian

Jazz", espetáculo que reuniu no palco do Carnegie Hall, em Nova York, João

Gilberto e Tom Jobim junto com Luiz Bonfá, Carlos Lira, Oscar Castro Neves,

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Sérgio Mendes, entre outros. Nomes como Peggy Lee, Miles Davis, Dizzy

Gillespie, presentes na platéia, ouviram João Gilberto cantar “O Samba da Minha

Terra”, de Dorival Caymmi, “Corcovado e Desafinado”, ambas de Tom Jobim,

sendo que a última em parceria com Newton Mendonça. Era a segunda vez que

um cantor brasileiro, que ganharia projeção internacional, estreava em Nova

Iorque cantando Caymmi. A primeira havia sido Carmen Miranda, em 1939,

cantando “O Que é Que a Baiana Tem?”, na Broadway.

Em 1964, João Gilberto regravou “Doralice”, em seu disco com o

saxofonista americano Stan Getz, chamado Getz/Gilberto, pela Verve, que lhe

rendeu dois Grammys, como cantor e violonista. Em outubro do mesmo ano, foi

lançado o LP Caymmi Visita Tom e leva seus filhos Nana, Dori e Danilo, pela

Elenco, gravadora fundada por Aloysio de Oliveira. O disco, idealizado por

Oliveira, contava ainda com três músicos de primeiríssima qualidade e com a

marca Bossa Nova: os bateristas Dom Um Romão e Edison Machado, além do

baixista Sérgio Barroso. Duas faixas inéditas se tornaram clássicos: “Só Tinha de

Ser Com Você”, de Tom, e “...Das Rosas”, de Caymmi.

No mesmo ano, Caymmi e Vinicius Moraes dividiram o mesmo palco, da

boate Zum Zum, de Paulo Soledade, para um show de enorme repercussão no Rio

de Janeiro. Mais uma vez pelas mãos de Aloysio de Oliveira. Caymmi, Vinicius,

as baianinhas do Quarteto em Cy – Cyva, Cinara, Cylene e Cybele – e o conjunto

de Oscar Castro Neves, que fez os arranjos, ficaram cinco meses em cartaz – entre

o fim do ano seguinte e o início de 1966 voltariam àquele palco para uma nova

temporada. O diálogo improvisado de Vinicius com Caymmi, no meio do

espetáculo, era uma atração a mais na casa lotada. Oliveira, inicialmente, pensara

num show de Caymmi com as ‘baianinhas’ e o som bossa nova do conjunto de

Oscar Castro Neves – formado por Ico Castro Neves, baixo, irmão gêmeo do

Oscar, Alfeu, na bateria, e Hugo Marota, no vibrafone. Vinicius, recém chegado

da Europa, aderiu ao projeto já em andamento, que foi reestruturado para receber

o poeta. O sucesso era enorme, como lembra Cyva:

Era casa lotada todos os dias. Era só um dia de folga, segunda-feira. As pessoas ficavam enlouquecidas. Até Manuel Bandeira foi ver esse show. Na realidade, se a gente quisesse ficar o ano inteiro, podia ficar. Mas Vinicius não podia beber muito, já estava naquela fase de ter que se internar pra desintoxicar. (Caymmi, 2001, p. 405)

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Em 6 de abril de 1965, Caymmi viajou para Los Angeles para participar do

programa de TV Andy Williams Show, pela NBC, que era transmitido, em cores,

para 600 estações, o chamado coast to coast, com uma audiência de dezesseis

milhões de espectadores. A emissora era a segunda na preferência do público

americano. Williams, que também era cantor, estava fazendo sucesso nos Estados

Unidos com a gravação de “And Roses and Roses”, versão de Ray Gilbert para

“...Das Rosas”, e resolvera mandar buscar seu autor para cantarem juntos a música

no programa. Caymmi passou uma temporada na casa de Tom Jobim, que estava

morando nos EUA para melhor controlar seu repertório e cuidar da versão da sua

obra para o inglês. Lá recebeu um cartão de João Gilberto, Miúcha – casada com

ele na época – e Sérgio Buarque de Holanda, pai da cantora, convidando-o para

visitá-los em Nova Iorque. João Gilberto escreveu, com a economia de sempre:

“Não posso te escrever, mas quero que tudo seja bom para você”.

Caymmi conheceu Andy Williams no dia do programa. Sérgio Cabral, em

sua biografia sobre Tom Jobim, conta que Tom “foi uma espécie de padrinho de

Dorival Caymmi, quando este compareceu ao programa de TV, paparicando-o até

o início da gravação” (1997, p. 239), que aconteceu em 15 de abril, uma quinta-

feira, no estúdio da NBC. Juntos, Caymmi ao violão, cantaram “...Das Rosas” –

Williams em inglês, claro –, acompanhados do violonista Lulu (Aluísio Antunes

Ferreira), do Bando da Lua, e do baterista Dom Um Romão. “Tom, João Donato,

Lulu fizeram um corozinho para nós” – revelou Caymmi, em depoimento para sua

biografia. O resultado foi ao ar em maio. No programa, o compositor apareceu

muito à vontade ao lado de Andy Williams, revirando os olhos, sestroso, e vestido

com uma camiseta listada, uma das suas marcas registradas.

De volta ao Rio de Janeiro, o compositor reuniu-se com Vinicius para

gravarem o disco Vinicius/Caymmi no Zum Zum, pela Elenco. Na contracapa,

Aloysio de Oliveira escreveu que o show “teve tal repercussão nos nossos meios

artísticos” que eles não puderam “arriscar uma gravação ao vivo”. Cyva explica:

“Ele não queria gravar direto na boate para não se perder com o ruído do

ambiente, de copos, essas coisas todas” (Caymmi, 2001, p. 419-420). A gravação

foi no estúdio Rio Som. A capa do disco foi feita por Eddie Moyna. A Elenco se

destacava também pelas belas e modernas capas.

Vinicius e Caymmi voltariam a se apresentar juntos no palco outras vezes.

Em 1968, juntos com Baden Powell – parceiro de Vinicius na época dos famosos

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afro-sambas – e o Quarteto em Cy, fizeram o espetáculo Sabor y Color do Brasil,

produzido por Aloysio de Oliveira, no Gran Teatro Opera, em Buenos Aires, no

dia 13 agosto. O evento fazia parte de uma ofensiva de marketing do Instituto

Brasileiro do Café contra o café colombiano. O IBC atacava com música

brasileira, patrocinando shows de artistas nacionais.

Em 1971, Vinicius de Moraes homenageou Caymmi na letra do samba

“Tarde em Itapoã” – escrita no próprio bairro de Itapuã, no final da década de 60,

quando o poeta viveu em Salvador –, composta com Toquinho, seu novo parceiro:

Depois da praça Caymmi Sentir preguiça no corpo E numa esteira de vime, Beber uma água de coco É bom passar uma tarde em Itapoã

“O Samba da Minha Terra” foi regravado, com sucesso, em 1973, pelo

conjunto Os Novos Baianos, uma nova geração de músicos e cantores baianos,

que incorporaram Caymmi ao seu repertório via João Gilberto, que orientou o

grupo no seu início de carreira. Os Novos Baianos eram um conjunto vocal

formado por Paulinho Boca de Cantor, Pepeu Gomes, Moraes Moreira, Baby

Consuelo (hoje Baby do Brasil), Luís Galvão, Jorginho Gomes, Dadi, Baixinho e

Bolacha.

O próprio João Gilberto revisita o repertório de Caymmi em mais três

discos. Em 1981, Caetano Veloso e Gilberto Gil se juntam a ele, para gravar

Milagre, pela gravadora WEA. Em 1993, João Gilberto interpreta Samba da

Minha Terra em CD, pelo selo americano JazzDoor. No ano seguinte, grava três

músicas do compositor de uma só vez pela gravadora Epic/CBS: “Lá vem a

baiana”, “Rosa Morena” e “Você não sabe amar”, esta última uma parceria com

Carlos Guinle e Hugo Lima – curiosamente, único samba-canção da fase urbana

do compositor gravada por João Gilberto.

Em 1999, quando Dorival Caymmi completou 85 anos, O Globo

(30.04.1999) publica uma extensa entrevista com o compositor feita, pelo cantor,

compositor e arranjador Mario Adnet. Na capa do Segundo Caderno do jornal

vinha estampada uma foto de Caymmi com João Gilberto com o título da matéria,

“Uma ode ao mestre”. Em destaque, um poema de João Gilberto dedicado a

Caymmi, exclusivo para aquela edição:

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Meu Dorival Caymmi Amo você desde menino Você é imenso, único Obrigada por tudo Agora cantamos pra Deus proteger-te Um beijo carinhoso, João Gilberto

No poema, João Gilberto faz uma citação à “Menino do Rio”, canção de

Caetano Veloso, que diz “Eu canto pra Deus proteger-te”. Na entrevista ao jornal

O Globo, Dorival Caymmi revela:

Quando João começou a gravar minhas músicas foi muito importante. Ele me telefonava, tão seguro e perfeccionista que era, e cantava as músicas perguntando se as letras estavam certas, se as melodias era exatamente aquelas. Um dos poucos da nossa profissão que teve o respeito, o cuidado de saber como o autor compôs, letra e música.

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5. Dorival Caymmi - O Portador Inesperado

5.1. O Portador Inesperado e a História Atuante O portador inesperado, parte do título deste trabalho, foi extraído de uma

frase de George Kubler, citado por Olinto (2003, p. 27), sobre a natureza da

atualidade, cuja tradução é “ainda assim, este instante da atualidade é tudo que

podemos conhecer de forma direta, o resto do tempo emerge apenas em sinais e

vestígios trazidos até nós do passado por portadores inesperados”1. A imagem a

que esta expressão remete se adapta à idéia que a presente dissertação defende

sobre Dorival Caymmi. O termo “inesperado”, aqui, contém uma ambigüidade,

que vem bem a propósito. Por um lado, a inovação que a obra musical de Caymmi

traz no momento da sua produção é, ela própria, inesperada. Ela emerge no tempo

e surpreende. Por outro lado, a permanência e vitalidade desta obra no presente,

percorrendo quase sete décadas, são igualmente inesperadas. Ainda que o

compositor tenha como ponto de origem da sua carreira o ano de 1938, em plena

Época de Ouro, momento de produção e circulação de sua obra, esta mesma obra

apresenta uma permanência, uma continuidade, inesperada no presente, embora há

mais de dez anos sua atividade profissional tenha cessado, tanto como compositor

quanto como cantor – excetuando-se algumas participações esporádicas. Caymmi,

como portador inesperado, porta e traz para o presente “sinais e vestígios” do

passado. Ele impregna o presente com sua obra. Esta idéia está em sintonia com o

conceito de história atuante proposto por Hans Robert Jauss. Um evento histórico

– e sua atuação – não pode ser condenado a ficar circunscrito ao tempo da sua

emergência. Da mesma forma, a obra de Dorival Caymmi, nem tampouco a de

outro artista – que tenha valor, tal como o entende Jauss, a partir da experiência

estética –, tem vigência apenas no período da sua produção.

1 “Yet the instant of actuality is all we ever can know directly. The rest of time emerges only in signals relayed to us at this instant by innumerable stages and by unexpected bearers.”

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A questão central neste trabalho é compreender a sobrevivência de Dorival

Caymmi no horizonte de expectativa cultural, em geral, e da Música Popular

Brasileira, em particular. O modelo historiográfico que é comumente oferecido

em manuais e livros de história da Música Popular Brasileira não responde

satisfatoriamente à questão da permanência da obra do compositor baiano até os

dias atuais. Este modelo, em geral, se organiza em períodos, que podem

eventualmente receber nomes convencionais. Um exemplo é a divisão oferecida

por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, no livro A Canção no Tempo – 85

anos de músicas brasileiras, publicado em dois volumes, entre 1997 e 1998. O

período inicial da Música Popular Brasileira, segundo os autores, de 1901 a 1916,

é caracterizado como “nossa belle époque musical” (p. 18, vol. 1), fase que entra

em declínio com o início da I Guerra Mundial. Segue-se uma fase de transição e

modernização, de 1917 a 1928, marcada pelo “advento do samba e da marchinha,

iniciando o ciclo da canção carnavalesca” (p. 49, vol. 1). A Época de Ouro – ou a

Era do Rádio, designação também adotada por alguns autores –, iniciada um

pouco antes da Revolução de 30 e que atravessa todo o Estado Novo, uma das

fases mais longas que vai de 1929 a 1945, é “uma das etapas mais férteis e

estabelece padrões que vigorarão pelo resto do século” (p. 85, vol. 1) na Música

Popular Brasileira. Nova fase de transição vem em seguida, de 1946 a 1957 –

conhecida também como fase pré-Bossa Nova ou a fase do samba canção –, em

que “as maiores novidades são as modas do baião e do samba-canção depressivo,

o samba-de- fossa” (p. 241, vol. 1). O surgimento da Bossa Nova instaura uma

nova etapa, entre 1958 e 1972, dividida em duas fases, em que a segunda ficou

muito popularizada como a Era dos Festivais (1964-1972), “anos de sofisticação

da música brasileira” (p. 16, vol. 2), “passando pelo tropicalismo e outras

tendências” (p. 15, vol. 2). O último período estudado pelos autores vai de 1973 a

1985, cujo término coincide com a redemocratização do país, em que o melhor da

produção musical se deve “às gerações pós-Bossa Nova e pós-festivais” (p. 187,

vol. 2). O jornalista e pesquisador Tárik de Souza, coordenador da publicação,

justificou na orelha do segundo volume de A Canção no Tempo o motivo da

pesquisa de Severiano e Mello cobrir a Música Popular Brasileira até o ano de

1985: “Este distanciamento de mais de dez anos é considerado pelos autores para

a sedimentação de um êxito, especialmente numa época como a atual, de alta

ebulição midiática – e grande descartabilidade de conceitos”.

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O modelo historiográfico exemplificado acima, considerando as devidas

proporções, comporta as mesmas dificuldades e impasses que Jauss apontou e

criticou nos modelos historiográficos da literatura de sua época, representado

pelas escolas Formalista e Marxista. Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello

repetem em A Canção no Tempo este modelo. Este é um exemplo mais recente,

mas seja pelo viés formalista, seja pelo viés marxista, historiadores e

pesquisadores da Música Popular Brasileira, como Mario de Andrade (Aspectos

da Música Brasileira, Ensaio sobre a Música Brasileira, Pequena História da

Música etc.), Ary Vasconcelos (Panorama da Música Popular Brasileira, Raízes

da Música Popular Brasileira etc.), José Ramos Tinhorão (Pequena História da

Música Popular Brasileira: da Modinha à Canção de Protesto, Música Popular:

do Gramofone ao Rádio e TV etc.), Ricardo Cravo Albin (O Livro de Ouro da

MPB), além dos já citados, entre outros, realizam uma história de cunho

evolucionista, em moldes tradicionais. Esta é uma moldura teórica que tanto

serve a formalistas quanto a marxistas. Por outro lado, é importante assinalar que

há ensaístas, como Julio Diniz, Claudia Neiva de Matos, Santuza Cambraia

Naves, Fred Góes, Carlos Sandroni, Hermano Viana, para citar alguns, que fazem

uma leitura crítica da Música Popular Brasileira, sem seguir uma historiografia

com começo, meio e fim.

Da mesma forma que ambas as escolas, Formalista e Marxista, segundo o

teórico alemão, não explicam o nexo entre história e literatura, tampouco o fazem

os manuais de história da Música Popular Brasileira no tocante às relações entre

história e música. O que se observa é que a maioria destes manuais,

provavelmente por influência dos modelos historiográficos aplicados à literatura e

a outros objetos da arte, se organiza cronologicamente, ao mesmo tempo em que

apresenta um misto de elementos marxistas e formalistas na sua disposição. Os

elementos marxistas, baseados na representação, podem ser percebidos, no

exemplo de A Canção no Tempo, quando se verifica que o término da Época de

Ouro, por exemplo, coincide com o fim da Era Vargas. Da mesma forma, os

elementos preconizados pela Escola Formalista, que privilegia a chave estética,

aparecem quando é afirmado que no mesmo período, isto é, na Época do Ouro, o

samba e a marchinha renovaram a Música Popular Brasileira, libertando-se da

herança do maxixe. Neste caso, o que se defende é a idéia de uma evolução de

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sistemas, em que o gênero maxixe dá lugar aos gêneros samba e marchinha – a

autogeração dialética de novas formas (Jauss, 1994, p. 19).

Jauss defende que está na relação entre literatura e leitor o nexo entre as

obras literárias – no caso do presente trabalho, a relação entre música e leitor

elucidará o nexo entre as obras musicais, pois reconhece nela, distingue nela,

implicações estéticas e históricas. Este capítulo pretende também discutir a

permanência e a atuação da obra de Dorival Caymmi no panorama da cultura

brasileira, à luz dos conceitos propostos pela Estética da Recepção e sua

adaptação ao campo da música, recorrendo também aos conceitos legados pelo

historiador Fernand Braudel, conforme foi antecipado no capítulo 2 do presente

trabalho.

5.2. Recepção Inicial A recepção da obra de Dorival Caymmi, no momento da produção, é a de

compositor e cantor de canções da Bahia, do folclore e praieiras, sempre na clave

regionalista. O mapeamento da recepção que se estende desde a sua estréia na

Rádio Tupi, em 24 de junho de 1938, até 1947, quando acrescenta uma nova

vertente ao seu repertório, demonstra a estabilização dessa imagem e classificação

no horizonte de expectativas do período.

A originalidade da temática de suas canções, seja baiana, folclórica ou

praieira, sobressai mais do que os aspectos musicais propriamente ditos. É preciso

levar em consideração que a imprensa não tinha espaço nem crítica de música

especializada que pudesse analisar as inovações da obra no cenário da Música

Popular Brasileira. A despeito disso, ainda que sem maiores elaborações, essa

originalidade da música também foi assinalada, com adjetivos e expressões

variadas em notas e pequenas reportagens. Ademais, a reação de um profissional

da imprensa como Assis Chateaubriand – “este homem é um telúrico, é um homem

da terra, um poeta” – claramente se apóia na temática, enquanto o estranhamento

causado por “Noite de Temporal” no compositor Lamartine Babo, “Isso é meia-

noite mesmo!”, é sintomático de uma música que é percebida como diferente. Por

outro lado, a mesma canção foi cantada em sua estréia na Tupi e, segundo

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depoimento do compositor, chamou mais a atenção de cantores e compositores –

Jorge Fernandes, Waldemar Henrique, Mara Costa Pereira, entre outros – ligados

ao folclore, atraídos pelo tema em comum.

São inúmeros os exemplos encontrados no mapeamento feito no capítulo 3,

que comprovam a recepção no escaninho do regionalismo ou do folclore. Sem a

pretensão de esgotar o assunto, entre eles destacam-se: “Está cantando na Tupi, do

Rio, produções de sua autoria, sobre a vida dos praieiros baianos” (O Imparcial,

coluna Radiomania, 22.07.1938); “Dentro do folk-lore, pode-se dizer que Dorival

fez uma obra tão importante quanto Jorge Amado no romance, escrevendo ‘Mar

Morto’” (O Jornal, 19.07.1938); “Verdadeiro intérprete da música typica” (O

Radical, 06.10.1938); “o artista do ‘folk-lore’ praieiro da Bahia de Todos os

Santos” (Mister Brown, na coluna Rádio, de A Nota, 03.11.1938); “é baiano de

nascimento, dedicando-se sempre ao estudo do nosso ‘folk-lore’, gênero em que

triunfou como intérprete e autor” (A Noite, 14.11.1938); “Cantor do ‘folk-lore’

brasileiro e autor de magníficas peças regionais da Baía” (A Noite, coluna

Ilustrada, 29.11.1938); “Dorival Caymmi, compositor e intérprete festejado do

nosso folk-lore” (revista Fon-Fon, 28.01.1939); “o notável cantor e autor baiano

(...) detentor de grandes sucessos de folklore brasileiro” (A Noite, 10.05.1940);

“Dorival Caymmi, o cantor das graças de Yemanjá, desde que chegou à Fortaleza,

tem recebido do nosso público as mais consagradoras demonstrações de simpatia”

(Gazeta de Notícias, 02.11.1941); “Dos compositores nacionais, Dorival Caimi

aparece num plano de destaque, o que se justifica pelos seus valiosos serviços

prestados à nossa música folclórica e regional” (Nino Guimarães, Diário de

Notícias, 01.03.1944); “mal a gente começa a falar em baiana, fica feito

personagem de Dorival Caimi” (crônica da escritora Rachel de Queiroz, na Folha

Carioca, de 05.08.1944).

É interessante observar que havia a preocupação em distinguir o verdadeiro

do falso folclore, como demonstra o trecho no Jornal das Moças que agrupa em

torno de sua manifestação considerada autêntica nomes consagrados como

Gustavo Barroso, Villa-Lobos e Almirante e o estreante Dorival Caymmi.

A repercussão do sucesso do samba “O que é que a baiana tem?”, desde o

seu lançamento no filme Banana da Terra, quando “pega no carnaval”, passando

pelo seu lançamento em disco em dueto com Carmen Miranda, até a estréia de

Dorival Caymmi na Rádio Mayrink Veiga, permite percorrer vários momentos da

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recepção que reafirmam a ênfase na temática baiana. A indicação de Alberto

Ribeiro, um dos roteiristas de Banana da Terra, para o produtor do filme Wallace

Downey – “existe uma música sobre a Bahia que é especial” é um exemplo. Outro

exemplo, é o pedido que Almirante fez ao baiano, antes mesmo de ser contratado

pela Rádio Mayrink Veiga, para que colaborasse com dados sobre costumes e

folclore da Bahia no seu programa Curiosidade Musicais, na Rádio Nacional. Ou

ainda, quando César Ladeira, diretor da Mayrink, o batizou primeiramente de

Colombo dos Balangandãs, para, em seguida, chamá-lo de O homem que mandou

o samba para os Estados Unidos.

Na imprensa não foi diferente, a recepção se repete: sobre o sucesso

meteórico do compositor, foi publicado que “poucos artistas provincianos

conseguiram em pouco tempo a popularidade que desfructa” (A Nota,

02.03.1939); opinaram que “‘Banana da Terra’ foi mais uma dolorosa etapa do

cinema brasileiro. Mas aquele pedaço gostoso, ‘O que é que a bahiana tem’ pôde

ser cortado e enviado pelo mundo agora para propaganda nossa” (A Tarde,

27.03.1939); “Está cantando para o Brasil inteiro as histórias simples, de costumes

mais simples ainda” (A Tarde, 18.03.1939); “Dorival Caymmi é o artista do

momento no rádio carioca. Trouxe da Bahia, um magnífico repertório de

composições populares do gênero folklorico” (Diário de Notícias, coluna

Radiophonices, 30.04.1939); “O autor de ‘O que é que a bahiana tem’ é mais um

attestado da riqueza do Norte e da exuberância dessa Bahia que no mesmo anno

dá petróleo e Dorival” (A Tarde, coluna No Rádio, 05.06.1939); “Seus dedos

criaram pedaços sonoros da vida brasileira” (João da Antena, A Notícia,

29.03.1939).

O aspecto inovador da obra de Dorival Caymmi, ainda que inicialmente

causasse estranheza, sem uma reflexão mais profunda, aparecia sobretudo nas

canções praieiras e em algumas canções sobre motivos de folclore, canções mais

difíceis, que entravam relativamente em choque com o horizonte de expectativas

da época, diferente da vertente do samba baiano, como “O que é que a baiana

tem?”, que se trazia inovações na temática, na maneira de retratar a Bahia e seus

costumes, nas palavras exóticas como balangandã, correspondia ao horizonte de

expectativa da época, sobretudo no seu ritmo. O samba, a despeito das diferenças

entre o samba carioca e o baiano, de modo algum inconciliáveis, além da melodia

fácil de memorizar, se adequava plenamente ao carnaval. É preciso, entretanto,

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ressaltar que a originalidade do tema Bahia na obra de Caymmi, estava na forma

própria do artista em explorá-lo, na cor local que apresentava, já que, conforme já

exposto no capítulo 3, o estado já fosse freqüentemente tematizado na Música

Popular Brasileira.

“A Preta do Acarajé”, gravada no lado B do mesmo disco que traz “O que é

que a baiana tem?”, já não era tão fácil de assimilar, e se obteve recepção

favorável, não gozou da mesma popularidade. Sobre a canção, foi dito que

evocava o Brasil primitivo na sua música negra. De todo modo, como se pode

verificar em praticamente todos os eventos selecionados no mapeamento até 1946,

a ênfase da recepção do já complexo sistema musical do período recai sobre o

regionalismo, traduzido em expressões que mencionam o típico, o folclórico, o

exótico.

O sucesso, nos EUA, da baiana de Carmen Miranda, criada a partir do

samba de Dorival Caymmi, influenciou a moda americana, invadindo as vitrines

da Sacks Fifth Avenue e popularizando os balangandãs baianos nas pulseiras e

colares criados pelas joalherias de lá. Os balangandãs não eram só exóticos para

os americanos, soavam exóticos aqui mesmo no Brasil, a exceção talvez seja

somente a Bahia. A imprensa traduziu esse impacto em diversas matérias, como a

do Diário da Noite (19.11.1943). Um exemplo foi o espetáculo Joujoux e

Balangandãs, no Teatro Municipal, propiciando uma nova composição de

Lamartine Babo, de mesmo nome, além de uma exposição de exemplares do

adereço no foyer do teatro.

Apesar de “O Mar”, apresentada pelo compositor no espetáculo organizado

por D. Darcy Vargas, ter sido considerada a “lindíssima canção de Dorival

Caymmi” (O Globo, 21.07.1939), a canção praieira quando gravada em disco de

78 rpm (1940) não alcançou a mesma aceitação de “O que é que a baiana tem?”, o

mesmo acontecendo com seu primeiro disco solo (1939) que vinha com mais duas

canções de temática praieira, “Rainha do Mar” e “Promessa de Pescador”. É o

próprio Caymmi quem reconhece que já tinha dificuldades para agradar seu

público “na linha do sucesso que eu vinha fazendo”. É curioso observar que “O

Mar” gerou duas recepções distintas décadas depois. Caymmi foi acusado pelo

jornalista e crítico de música José Ramos Tinhorão, na década de 60, de ter

montado “O Mar” em cima de um tema de Grieg, o que configuraria plágio, fato

negado pelo compositor em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, segundo

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narra a jornalista Atenéia Feijó (Revista Manchete, anos 1970), em longa

entrevista que fez com o baiano, embora ele reconheça a semelhança e considere o

fato uma coincidência. Entretanto, para o crítico de música Luís Antônio Giron,

em sua análise da obra de Caymmi nos anos 1990, as modulações de “O Mar” são

“um dos marcos iniciais da liberdade harmônica na Música Popular Brasileira”,

como afirma no texto “Um harmonizador por força da intuição”, escrito para o

encarte da caixa de discos Caymmi Amor e Mar (EmiMusic, 2000, p. 8).

Como foi dito anteriormente, apesar da inovação propriamente musical da

obra de Caymmi não ter sido elaborada pela comunidade de leitores no momento

da produção, não há dúvidas da sua existência já na recepção primária, pelos

comentários e adjetivos que ela suscitou. Destacamos alguns, a título de exemplo:

“apresentou-se com um gênero, podemos dizer, novo, de folk-lore, o folk-lore

exclusivamente bahiano, absolutamente bahiano, originalíssimo, sincero” (O

Radical, 06.10.1938); “dessa música differente que só elle, o cantor e compositor,

que ‘chegou, viu e convenceu’ sabe cantar” (Mister Brown, coluna Rádio, A Nota,

03.11.1938); “Dorival Caymmi, uma autentica novidade para os ouvintes de todo

o Brasil” (A Noite, 14.11.1938); “o samba da baiana representa qualquer coisa de

notável, novo, expressivo” (O Globo, 17.02.1939); “a sua música e os seus versos

são differentes, são bizarros e de um rythmo profundamente agradável” (A Nota,

02.03.1939); “a originalidade marcante, a pureza quase virgem dos seus achados

melódicos” (O Globo, 20.03.1939); “as músicas de Caimmy não são como esses

sambas que até os calouros interpretam mais ou menos bem, porque não são mais

do que uma questão de rythmo e de afinação. As composições de Caimmy são

differentes” (A Nota, 14.04.1939); “ritmos que apesar de tão nossos, tão de nossa

gente, nos pareciam tão estranhos e tão novos” (A Pátria, 21.04.1939); “Ouvir

Dorival Caymmi é assistir a um espetáculo diferente, é sentir alguma coisa de

original, de diferente. É escutar o Brasil nas suas origens, na sua tradição”

(Correio do Ceará, 29.10.1941).

Além da imprensa, essa percepção da originalidade musical de Caymmi

aparece no depoimento de Mario Lago, quando afirma que ele, Alberto Ribeiro e

Almirante haviam ficado fascinados com o compositor quando o ouviram pela

primeira vez. É importante sublinhar que os três citados eram músicos e

compositores. Outro evento que confirma esta recepção é o fato de os maestros

Villa-Lobos e Radamés Gnattali serem contrários ao projeto do compositor de

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estudar teoria musical alegando que ele perderia sua espontaneidade de

compositor popular – uma questão discutível, em todo caso. Isso indica que para

eles o estudo teórico poderia atrapalhar algo que eles entendiam como um valor,

uma qualidade, uma originalidade.

5.3. Recepção no Período de 1947-1957

O período de 1947 a 1957 é destacado neste item por três razões

fundamentais, que se interpenetram. A primeira, e mais óbvia, é o reconhecimento

de que o horizonte de expectativa de todo o sistema sóciocultural desta fase sofreu

profundas modificações que foram parcialmente apontadas e contextualizadas no

capítulo 4. A segunda, reside no fato de que, a partir de 1947, estendendo-se por

todo o período assinalado, Dorival Caymmi acrescenta uma nova vertente à sua

obra, causando um impacto na sua recepção, gerando certa instabilidade,

obrigando a ajustes e modificações no horizonte de expectativas da comunidade

de leitores do período para absorvê-la. A terceira razão, não menos importante, é o

aparecimento de um novo suporte em substituição ao disco de 78 rpm, o long

play, que vai igualmente exigir ajustes na recepção das obras de cantores,

compositores e músicos da época, tanto por parte da comunidade de ouvintes

como da imprensa, passando pelos historiadores, pesquisadores e críticos de

música, embora de modo incipiente, quando se compara com a sofisticação do

sistema cultural nos dias atuais.

A forma como ficou conhecida entre os profissionais da imprensa e entre

pesquisadores, músicos, compositores e cantores essa nova produção de Dorival

Caymmi, e que perdura até hoje, foi a fase urbana ou de sambas-canção urbanos,

ou ainda, em menor número, fase carioca – Jairo Severiano e Zuza Homem de

Mello (1997) são exceção, ao optarem por chamá-la de vertente dos requintados

sambas-canção. Tal denominação surge da evidente necessidade de se definir esta

nova obra em face da produção já conhecida, classificada como regionalista, ao

mesmo tempo em que reforça às avessas a recepção já estabilizada no período

anterior. É, contudo, e uma vez mais, a temática das canções que determina sua

recepção primária. É o tema que chama a atenção, seja quando ele é de cunho

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regionalista, seja quando é urbano e fala de amor. Fazem parte deste grupo de

sambas-canção “Marina” (1947); “Saudade” (1948), em parceria com Fernando

Lobo; “Nunca mais” (1949); “Nem eu” (1952); “Só louco” (1955); mais as sete

feitas em parceria com Carlinhos Guinle, como “Não tem solução” (1950),

“Sábado em Copacabana” (1951), “Tão só” (1953), “Valerá a pena” (1955),

“Ninguém sabe” (inédita), “Você não sabe amar” (1950) e “Rua deserta” (1950),

nestas duas últimas entra Hugo Lima como terceiro autor.

Aparentemente, pela dificuldade de se elaborar as duas facetas do

compositor num conjunto maior, até porque é uma obra em processo, no nível da

recepção, elas aparecem justapostas, sem síntese. Isto é, ora regionalista, ora

urbano, ora regionalista e urbano. Parece ser uma espécie de momento de

transição para a posterior fusão das duas recepções. Ainda assim, o que prevalece

no período é o Caymmi praieiro, baiano, folclórico ou típico, pela força que

projeta no imaginário coletivo, pela recepção inicial já consolidada, pela surpresa

que e resistência causada pelas novas e inesperadas composições, e, até mesmo,

pela facilidade de se cair no lugar comum a respeito de um artista, sobretudo na

mídia que tem entre as suas características informar a notícia e repercutir os

eventos em espaço muito curto de tempo, nem sempre com condições para uma

análise mais apurada. Apesar do seu inegável sucesso junto ao público, não houve

consenso da crítica na recepção desta nova safra de Dorival Caymmi. As

manifestações, como se viu no mapeamento parcial da recepção à obra do

compositor, variavam do aplauso à total rejeição.

É bem verdade que, ao menos até onde pode ir o mapeamento parcial da

obra do compositor no período, tal rejeição se baseava, no mais das vezes, no

receio de que as novas canções de Caymmi, principalmente, da produtiva parceria

com o empresário Carlos Guinle – ainda que tenha-se popularizado a divertida

hipótese, divulgada por Stanislaw Ponte Preta, de que ele “tenha entrado com o

uísque” nas parcerias, sem falar que o próprio Caymmi já afirmou em entrevista

que compôs praticamente sozinho as canções –, fossem indicativas da decadência

do compositor, corrompido pela fama e pela boemia. Como foi dito no capítulo

anterior, apesar da recepção da crítica ter sido parcial, não representando a

totalidade da crítica do período – até onde se pode falar em crítica musical na

época –, ela é bastante representativa por indicar que àquela altura não houve

consenso, como em outros momentos da carreira do compositor. Do ponto de

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vista da Estética da Recepção, essa mudança da experiência estética é que vai

permitir a compreensão da obra. Nessa perspectiva, é reveladora, portanto, a

crítica de Arnaldo Câmara Leitão, jornalista de São Paulo, na coluna Rádio Show,

com o título muito significativo “O Outro Caymmi”, que considera a fase urbana

do compositor um sinal de acomodação e saturamento criador.

Não há dúvidas de que a crítica se dividiu em torno dos sambas urbanos de

Caymmi, mostrando que a unanimidade alcançada nos anos iniciais da sua

carreira acabara. Não é possível ignorar nessas manifestações, entretanto, um tom

de preconceito, mas que ao mesmo templo reflete a dificuldade em lidar com um

fenômeno que contraria os horizontes de expectativas consolidados. A jornalista

Isa Silveira Leal, na revista Radar (21.9.1950), é outro exemplo quando escreve,

quase em tom de queixa, que “não é no ambiente artificial de uma boate que se

criam coisas como É Doce Morrer No Mar”. Câmara Leitão e Silveira Leal são

exemplos das dificuldades diante das transformações, não só na música, que

ocorriam no Brasil e no mundo. Como o compositor fizesse muitas temporadas

em casas noturnas no período, surgiu ainda a crítica de que estava se distanciando

do povo, deixando de cantar nas rádios, preferindo as boates.

Entretanto, é importante observar que ao compor tantos sambas-canção de

temática amorosa, Caymmi estava em plena consonância com o horizonte de

expectativas da época, que levou ao auge este gênero. O que não faz da fase

urbana do compositor uma obra culinária, por conter inovações na forma de fazer

sambas-canção. A cantora Nana Caymmi, filha do compositor, apresenta um outro

aspecto da questão quando se recorda da necessidade que o pai tinha de “compor

para ter repertório para cantar nas boates”. Jauss alerta para o fato, às vezes

esquecido, de que o autor é também um leitor e, portanto, participa do horizonte

de expectativas da época. Há nisso um ajuste que envolve o autor(leitor)-obra-

leitor que ocorre dentro de um sistema complexo de comunicação.

Outro fator importante ao longo do período foi a progressiva substituição do

disco de 78 rpm pelo long play, inicialmente com dez polegadas e depois

ganhando mais espaço, com doze polegadas. Durante a década de 1950, e

entrando pelo início da década de 1960, os dois suportes conviveram no mercado

fonográfico, até que o 78 rpm foi definitivamente superado, virando objeto de

colecionador. O primeiro LP de Caymmi, Canções Praieiras, foi lançado em

1954, e, até 1960, ele faria mais seis discos, todos pela gravadora Odeon, além das

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gravações em 78 rpm: Sambas de Caymmi (1955); Caymmi e o mar (1957); Eu

vou pra Maracangalha (1957); Ary Caymmi – Dorival Barroso: um interpreta o

outro (1958); Caymmi e seu violão (1959) e Eu não tenho onde morar (1960). Em

geral, os LPs de Caymmi do período reuniam inéditas, com músicas já gravadas

em 78 rpm. Nem por isso o número de discos deixa de surpreender, em vista de

uma obra pequena – cerca de 120 músicas, em aproximadamente sessenta anos de

carreira – e da famosa lentidão do artista para compor.

Além disso, os LPs permitiam mais facilmente entrever o conjunto da obra

de Dorival Caymmi, e neles se apresentavam, em discos separados ou no mesmo

trabalho, as diversas facetas do compositor, das canções praieiras aos sambas

baianos, passando pelos sambas urbanos, sem esquecer as canções sobre motivos

folclóricos. Essa talvez tenha sido uma das grandes contribuições que a nova

tecnologia trouxe, além da inegável qualidade de som e de gravação. Mas também

foi um grande desafio, sobretudo para a imprensa, pois obrigou a um novo

reajuste no horizonte de expectativas, ao exigir uma compreensão de um conjunto

de músicas reunidas em um único produto e, a partir de uma discografia maior,

uma visão mais abrangente da obra de um compositor. Sem mencionar os livros

de história da Música Popular Brasileira, cujo impacto do LP precisaria ser

investigado.

Ao permitir esta visão de conjunto, o novo suporte aumentava o universo

comparativo, exigia que se fizessem relações mais complexas, classificações mais

precisas, sofisticando a recepção. Naturalmente, mas não de forma imediata, e

muitas vezes com avanços e recuos, este acontecimento exigiu (idealmente) mais

espaço físico na imprensa para a avaliação de um LP e uma maior qualificação e,

às vezes, até especialização de quem escreve sobre o tema. O que não significa

que, nos dias atuais, inclusive, velhos clichês, rótulos e chavões não sejam

repetidos à exaustão. Mas, inegavelmente, todos esses fatores permitiram uma

(re)avaliação do artista, possibilitando que se redimensionasse a sua importância.

No caso de Caymmi, que chega a este período com uma fama incontestável, pelo

menos no que se refere à recepção de sua obra, o desafio, tomando as canções

praieiras como exemplo, era não só analisá-las em seu conjunto, mas em face da

sua obra e, até mesmo, em face da produção da Música Popular Brasileira. E

assim com todas as suas vertentes, de modo que fosse possível avaliar, ou

delinear, a obra do compositor.

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As críticas assinadas por Lúcio Rangel (Revista da Música Popular,

22.01.1955) e Claribalte Passos são exemplos, ainda que raros, dessa nova postura

e recepção. Rangel escreveu uma crítica de Canções Praieiras, long play de 1954,

e Claribalte Passos analisou Caymmi e o mar (Correio da Manhã, 1957) e Eu vou

pra Maracangalha (Correio da Manhã, 30.06.1957), os dois discos lançados no

mesmo ano. O primeiro crítico ainda está muito preso à temática das canções –

“esse íntimo de Iemanjá, dos mares bravios da Bahia, dos rudes pescadores e das

lendas de sua terra” –, mas fica evidente a preocupação com a letra das canções,

interpretação, acompanhamento do violão – “O artista está nele presente sem

artifícios, sem orquestras que perturbem os acordes do violão do baiano”. O

segundo, um especialista em folclore, com vários livros publicados sobre o

assunto, além de compositor, explora igualmente o universo temático de Dorival

Caymmi, com mais riqueza inclusive que Rangel, mas demonstra um maior

fôlego para a apreciação do trabalho. Passos analisa música a música,

caracterizando tema, gênero e ritmo, sem esquecer aspectos relevantes como

arranjos, desempenho da orquestra (quando, por exemplo, destaca o naipe de

cordas no LP Eu vou pra Maracangalha ), violão, interpretação, qualidade técnica

da gravação. Igualmente, o ponto de vista literário é levado em consideração na

crítica feita ao conjunto de canções inéditas contidas em Caymmi e o mar, quando

afirma que “Literária e musicalmente, ‘História de Pescadores’ está dividida pelo

autor em seis partes” ou ainda quando conclui que o disco “É o retrato da obra

musical e poética de CAYMMI”. Como, ao longo deste período, além dos

sambas-canção, Caymmi prosseguisse compondo vigorosamente obras

importantes nas demais vertentes, como se pode verificar nos sete long plays

gravados até 1960, a tese de decadência do artista caiu por terra.

Alguns acontecimentos no período merecem destaque. Logo em 1947, o

impacto de “Marina”, que rompe com o tabu que impedia que um artista gravasse

a mesma canção lançada por um colega. Era considerado anti-ético. Entretanto,

três cantores importantes do período, além do próprio compositor, gravaram a

canção naquele ano: Francisco Alves, O Rei da Voz, representante máximo da

Época de Ouro; Nelson Gonçalves, cantor também de linha mais tradicional, e

Dick Farney, um cantor diferente, moderno, da nova geração, que alcançou

enorme sucesso com sua versão, a mais famosa, aliás. No registro que fez do

samba-canção, Caymmi, enfrentando resistências dentro da gravadora, ousou

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fazer algumas modificações no esquema fechado do regional, formação musical

que imperava na época – “Não quero botar regional com flauta. Bastam dois

violões, um cavaquinho, um bandolim e um pandeiro”.

É possível identificar claramente a mudança na recepção do compositor,

quando é publicado o anúncio (Folha da Manhã, 22.12.1947) de uma

apresentação do artista tratando-o como “o famoso compositor de Dora e Marina”,

e não, como se costumava fazer até então, “O cantor das graças da Bahia”, “O

cantor das graças de Yemanjá, “O Cantor das Lendas Baianas”, “O Colombo dos

balangandãs”, “Cantor da alma brasileira nativa”, “O cantor dos mares da Bahia”,

ou mesmo “O cantor baiano”. É claro que esses clichês retornarão com freqüência

e variações na caracterização da obra de Caymmi, mesmo nos dias atuais, mas

este dado indica o início de mudança no horizonte de expectativas da comunidade

de leitores que ‘lê’ a obra do compositor.

O mapeamento da recepção parcial no período ressalta ainda as relações da

intelectualidade, sobretudo na literatura, mas também na pintura, com a obra de

Dorival Caymmi – suas músicas circulam dentro de um complexo sistema

cultural, com inúmeras variáveis. Ademais, muitos escritores e poetas

acumulavam trabalho na imprensa. E nomes como Carlos Drummond de Andrade,

Orígenes Lessa, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Antônio Maria

escreveram sobre o compositor e sua obra. Além disso, a amizade de Jorge

Amado e Caymmi tinha se aprofundando ao longo dos anos e, por diversas vezes,

a carreira de ambos se cruzaram. “É doce morrer no mar” (1941) – que nasceu

numa reunião na casa do escritor baiano, em que também estavam Érico

Veríssimo, Moacyr Werneck de Castro, Otávio Malta e Clóvis Graciano –

inaugurou uma parceria que rendeu ainda mais cinco músicas, três delas, “Cantiga

de Cego”, “Retirantes” e “Canto de Obá”, compostas especialmente para a

adaptação teatral de Terras do Sem-fim (1945/47), além do “Hino da campanha de

Prestes” (1945) e “Beijos pela noite” (1939), esta última com Carlos Lacerda

como terceiro parceiro. O Cancioneiro da Bahia – livro que reúne cerca de

sessenta letras de músicas do compositor, com pequenos trechos da partitura,

ilustrações e comentários –, publicado também em 1947, deve muito da sua

existência ao empenho de Jorge Amado e Clóvis Graciano pela sua publicação.

O Cancioneiro da Bahia chamou a atenção do crítico literário Sérgio Milliet

(O Estado de S. Paulo, 27.11.47) que considerou-o “indiscutivelmente útil”, por

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preservar “momentos regionais e mestiços” que poderiam se perder. O

regionalismo, como se pode verificar, prepondera. Milliet também observa na sua

crítica a atração que a obra do compositor exerce sobre os intelectuais.

Interessante a intuição de Flávio Cavalcanti, que, ao escrever sobre o livro (Folha

da Manhã, coluna Mundo Social, 21/12/47), definiu Dorival Caymmi como

“mensageiro especial” – em consonância com o título desse trabalho, “O portador

inesperado” –, informando que o livro havia se esgotado em São Paulo. Edgar

Calheiros (Jornal de Notícias, janeiro de 1948), por sua vez, dá uma idéia da

recepção que o livro obteve, alinhando Caymmi a conceituados escritores da

época – como Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego –, embora

reconheça “que não há nada mais difícil do que falarmos daquilo que nos agrada

integralmente”.

Assinado por A.C.L. (Diário da Noite, 20.01.1949), foi publicada uma

análise mais detida da obra musical de Caymmi, pelo menos para os padrões da

época, que enfatizava o fato do compositor ser um “autor publicado”, um

“intelectual”.

É preciso mencionar o surgimento da televisão – embora somente na década

seguinte o veículo fosse se impor definitivamente como o grande veículo de

massa – e o concomitante declínio do rádio, anunciando, como explicou o

pesquisador de música e escritor Sérgio Cabral, “o fim do chamado rádio

Broadcasting”. A temática das músicas de Caymmi, principalmente as canções

baianas e praieiras, caíram como uma luva para o figurino e cenário exigidos pela

nova tecnologia, como bem assinalou o próprio compositor. Sem falar no

comentário do jornalista Almeida Rego (Folha Carioca, coluna Ondas

Radiofônicas) sobre Caymmi ser beneficiado na televisão pela aparência de

“caboclo nordestino”.

Não se pode esquecer de apontar a homenagem dos pescadores de Itapuã

que, através do vereador Osório Vilas Boas, deram o nome de Dorival Caymmi à

praça localizada em frente à matriz do bairro. Uma etapa a mais no processo de

canonização do artista, a inauguração, em 1953, contou com todos os elementos

que costumam ocorrer em um evento dessa magnitude. No caso de Caymmi, além

dos discursos políticos de praxe, houve a fala de Antônio Maria, a crônica de

Rubem Braga, a presença dos pescadores, de amigos, parentes, fãs, políticos,

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imprensa, que deu ampla cobertura, além de um espetáculo ao ar livre com a

participação dos colegas de rádio.

E para finalizar, ao menos por hora, já que o período é rico em

acontecimentos marcantes, em 1958, é lançado, junto com o romance Gabriela,

Cravo e Canela, de Jorge Amado, o LP Canto de Amor à Bahia e Quatro

Acalantos de Gabriela, Cravo e Canela, de autoria também do escritor baiano,

com ilustração musical de Dorival Caymmi. Presentes ao lançamento estavam

representantes da nata da intelectualidade brasileira como Gilberto Freyre, Di

Cavalcanti, Manuel Bandeira, Marques Rebelo, Oscar Niemeyer, além do cineasta

francês Marcel Camus, entre outros.

5.4. Caymmi e a Bossa Nova

Em 1958, quando a Bossa Nova irrompeu no cenário da Música Popular

Brasileira, Dorival Caymmi gozava de imensa popularidade, obtida em vinte anos

de carreira e incrementada por dois sucessos nacionais seguidos,

“Maracangalha”(1956) e “Saudade da Bahia” (1957). A Odeon, gravadora de

Caymmi, era a mesma que havia lançado o primeiro disco solo de João Gilberto, o

78 rpm com “Chega de Saudade” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) e “Bim

Bom”, de autoria do cantor, marco inaugural do movimento. Do triunvirato da

Bossa Nova faziam parte João Gilberto, Tom e Vinicius. Caetano Veloso, cantor e

compositor, em entrevista exclusiva para a biografia de Dorival Caymmi, em 26

de maio de 1995, afirmou que “João Gilberto (...) é um grande revolucionário, um

inventor; no momento da Bossa Nova ele realmente partiu para uma intervenção

cirúrgica na história da música brasileira”.

A Música Popular Brasileira, de fato, nunca mais seria a mesma, a ponto de

o pesquisador Jairo Severiano preferir, como já mencionado anteriormente,

denominar a música que se produz no país, a partir da Bossa Nova, de Moderna

Música Brasileira, em contraposição àquela produzida até 1958. Uma rápida

consulta no ano de 1959, na sua obra A Canção no Tempo (1998), escrita em

conjunto com Zuza Homem de Mello, demonstra a amplitude da mudança. Das

dez músicas que se destacaram naquele ano, cinco eram da nova safra de canções

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da Bossa Nova e, dessas, quatro eram de Tom Jobim, com diferentes parceiros:

“Desafinado” (com Newton Mendonça), “Dindi” (com Aloysio de Oliveira), “Eu

sei que vou te amar” e “A felicidade” (ambas da dupla Tom e Vinicius). “Lobo

Bobo”, de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, a quinta canção da lista, junto com

“Desafinado”, havia sido gravada por João Gilberto, no seu primeiro LP Chega de

Saudade (1959), sucesso absoluto no período. Os autores assinalam ainda, sob o

título “Outros Sucessos”, as canções “Brigas nunca mais” (Tom e Vinicius), “Este

seu olhar” (Tom Jobim), “Ho-ba-la-la” (João Gilberto), “Maria ninguém” (Carlos

Lira), “Minha saudade” (João Donato e João Gilberto), junto com outras canções

importantes no período, mas que não pertenciam ao movimento (Severiano &

Mello, 1998, p. 27-34).

A ruptura na Música Popular Brasileira, promovida pela Bossa Nova,

decretou a obsolescência de grande parte da produção que vinha antes dela, que

“envelheceu” rapidamente. O que chama a atenção é que não o fez com Caymmi,

embora no primeiro LP de João Gilberto, de 1959, ele tenha gravado ao lado das

canções da Bossa Nova, canções de outros compositores tradicionais, como

“Morena Boca de Ouro”, de Ary Barroso; “Aos pés da cruz”, de Marino Pinto e

Zé da Zilda (José Gonçalves); e “É luxo só”, também de Ary Barroso e Luiz

Peixoto, além de “Rosa Morena”, do compositor baiano.

“Rosa Morena”, surpreendentemente, parece ter sido a música ativadora de

toda essa revolução, como se viu, no capitulo 3, na entrevista que João Gilberto

concedeu ao jornalista e crítico de música Tárik de Souza (Veja, 1971). A

entrevista, que evidencia a importância de “Rosa Morena” para João Gilberto, é

comentada, posteriormente, por Caetano Veloso, em depoimento gravado para a

biografia de Dorival Caymmi:

Essa canção [Rosa Morena] foi a base, foi a canção que ele trabalhou para criar o estilo, a batida, o jeito, tudo. O que eu estou dizendo é o seguinte: João Gilberto diz que esse samba moderno, que os sambas-canções modernos tinham uma coisa, estavam à frente, eram como a modernização, muito mais à frente e muito mais brasileiro do que os outros modernizadores e que eram melhores. Ninguém fez igual ao Dorival Caymmi. E que contribuiu para a modernização geral. E quando ele próprio, João, chegou a querer fundar a batida, ele foi para os sambas tradicionais de Caymmi. Porque as canções da Bossa Nova são sobretudo sambas. E o próprio João Gilberto quase que só gravou sambas. Os três primeiros long plays do João são de samba. Na Odeon, os três primeiros: Chega de Saudade, O Amor, o Sorriso e a Flor, João Gilberto. São os três discos com orquestração do Tom Jobim e são um deslumbramento. Ele, aliás, gravou Rosa Morena no primeiro disco logo.

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A respeito das relações de Caymmi com a Bossa Nova, Chico Buarque,

também em depoimento para a mesma biografia, fez uma afirmação que se tornou

uma das principais forças motivadoras da presente investigação:

Por ser um movimento revolucionário, a Bossa Nova recusou muita coisa. Recusou Noel, Ataulfo Alves, os grandes da música brasileira. E não podia recusar Caymmi. E quando Caymmi gravou com Tom, pronto, ficou evidente o porquê. E em Chega de Saudade, naquele prefácio em que Tom escreve ‘Caymmi também acha’, é um pedido de aval de Caymmi para o que tava sendo feito ali. (Caymmi, 2001, p. 379)

Chico refere-se a dois LPs, Chega de Saudade, de João Gilberto, e Caymmi

visita Tom e leva seus filhos Nana, Dori e Danilo (Elenco, 1964). Na contracapa

do primeiro está o famoso prefácio de Tom Jobim apresentando João Gilberto e a

Bossa Nova, citado no capítulo 4, com o “P. S.: Caymmi também acha”. O

segundo, o LP da Elenco – que reúne Tom Jobim, Caymmi e seus filhos, os três

iniciando carreira na música popular, além dos bateristas Dom Um Romão e

Edison Machado, e o contrabaixista Sérgio Barroso, músicos comprometidos com

a Bossa Nova – é, na opinião de Chico Buarque, a prova indiscutível da afinidade

entre a obra de Dorival Caymmi e de Tom Jobim e, por conseguinte, da afinidade

do compositor baiano com a Bossa Nova.

O caráter moderno dos acordes de Caymmi é revelado por Tom Jobim:

“Caymmi passou a empregar notas de sexta e sétima maiores nos acordes

menores, imprevisíveis modulações de meio-tom, coisas que ninguém usava na

época” (Chediak, 1994, p. 24). Essas modulações já estavam presentes em “O

mar” (1940), que, segundo o jornalista e crítico de música Luís Antônio Giron, “é

um dos marcos iniciais da liberdade harmônica na MPB”, o que “não chega a ser

um atrevimento em termos de história da música (Wagner, Schumann e Liszt

modulam bem mais que Caymmi), mas estabelece um novo degrau de

experimentação” (Giron, 2000, p. 8).

No início desta investigação foi levantada uma hipótese para a questão

alavancada pelo depoimento de Chico Buarque: por que a Bossa Nova não podia

recusar Caymmi? A resposta a esta pergunta poderia esclarecer uma outra questão

maior, mobilizadora deste trabalho, que busca compreender as razões da

permanência da atuação de Caymmi sobre a Música Popular Brasileira até os dias

atuais. Afinal, embora Chico tenha esboçado alguns argumentos prévios para a

sua análise – o pedido de aval de Tom Jobim a Caymmi para a Bossa Nova e o

disco Caymmi Visita Tom – ainda restava a dúvida: como um compositor com

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uma recepção que o classifica como tradicional, folclorista, regionalista,

primitivo, conservador, portanto, foi admitido e incorporado por um movimento

revolucionário, cosmopolita e moderno, como a Bossa Nova? A hipótese inicial

desta pesquisa foi a de que a vertente dos sambas-canção urbanos do compositor,

os sambas-canção modernos e requintados, como “Só Louco”, teriam feito a

mediação entre Caymmi e a Bossa Nova. Entretanto, as considerações de Tom

Jobim e Luís Antônio Giron a propósito dos acordes modernos e da liberdade

harmônica presentes já nas primeiras composições do compositor baiano

contrariavam, ao menos parcialmente, esta suposição. Parcialmente, porque, além

da fase urbana ser igualmente moderna na sua estrutura harmônica, havia

elementos nela que a aproximavam da Bossa Nova: simplicidade, letras enxutas e

coloquiais – sem a carga de dramaticidade e sentimentalismo que imperava nos

sambas-canção da época –, a temática urbana e cosmopolita (como em “Sábado

em Copacabana”). Esta explicação, porém, não era suficiente porque, excetuando-

se a temática urbana, os demais elementos já existiam nas primeiras composições

de Caymmi. Ou seja, as inovações que ele introduziu são anteriores a esta

vertente. Ele já era moderno antes.

A entrevista de João Gilberto, publicada na revista Veja (12.5.1971), sobre a

importância de “Rosa Morena” para suas pesquisas musicais foi um fator

importante para afastar a hipótese da fase urbana de Caymmi ser a responsável

pela aproximação do veterano compositor com a Bossa Nova. Mas o que é

decisivo é o fato de João Gilberto ter gravado os sambas de Caymmi. Ele não

gravou nenhuma canção praieira em toda a sua carreira e só tardiamente o fez com

um samba-canção urbano, “Você não sabe amar” (Dorival Caymmi, Carlos

Guinle e Hugo Lima), no cd Eu sei que vou te amar, pelo selo Epic/CBS, em

1994. No mesmo disco, interpretou “Lá vem a baiana” e “Rosa Morena”, esta

última pela quarta vez. Além de “Rosa Morena” no LP Chega de Saudade

(Odeon, 1959), João Gilberto gravou os seguintes sambas do compositor:

“Doralice” (O amor, o sorriso e a flor, Odeon, 1960), em parceria com Antônio

Almeida, “Samba da minha terra” e “Saudade da Bahia” (João Gilberto, Odeon,

1961); “Doralice” (Getz/Gilberto, Verve/Odeon, 1964); “Samba da minha terra” e

“Rosa Morena” (Getz/Gilberto 2, Verve/Copacabana, 1965); “Samba da minha

terra” e “Rosa Morena” (Herbie Mann & João Gilberto, Atlantic, 1965) e

“Milagre” (Brasil – João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil, WEA, 1981).

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Em outra das suas raras entrevistas, dessa vez ao jornalista Carlos Alberto Silva

(Jornal do Brasil, 31.10.1979), explica que Bossa Nova é samba:

Meu trabalho foi sempre com a música brasileira. Com o samba, nossa música infinita. Aquilo que as pessoas chamam de bossa nova e que eu chamo de samba, de música brasileira - ampla, rica, infinita, sobre a qual o artista pode criar o seu fraseado pessoal. Fazer essa música lá fora é fácil: eles nos respeitam. Vêm e vão gerações, e o amor e a admiração aumentam pela nossa música. Muito mais do que aqui, no Brasil. Esta é a verdade: o respeito maior é deles e não nosso. O Brasil ainda não se apercebeu da importância que lhe é dada lá fora, em termos de música. É por isso que eu não penso em bossa nova. Penso em samba. Música brasileira.

A razão de tanta veemência em marcar que Bossa Nova é samba, tanto da

parte de João Gilberto quanto da parte de Caetano Veloso, declarações separadas

por mais de quinze anos, mas que se fundem no horizonte de expectativa atual

sobre o assunto, é em função do fato de que alguns defendem a idéia de que o jazz

modernizou a Música Popular Brasileira e que a Bossa Nova é o resultado dessa

modernização. Caetano Veloso explicita bem isso em seu depoimento gravado

para a biografia de Caymmi:

Porque justamente a aparição do João Gilberto é uma coisa mais brasileira. Na verdade é uma volta de uma radicalidade brasileira, na inspiração, na forma, na ligação com a tradição. Embora seja uma ultra modernização, maior do que qualquer um tivesse feito antes. Porque o que se estava fazendo até então era uma americanização. O Dick Farney, o Johnny Alf, até os nomes que eles escolheram já dizem tudo. Mas mesmo o Lúcio Alves, Os Cariocas, a própria Dóris Monteiro, tudo isso era uma coisa meio americanizada. É bom, é interessante, mas não dá para comparar. O João trouxe uma coisa brasileira, é uma ligação, a coisa do João, a tríade fundamental do João é Dorival Caymmi, Orlando Silva (esse é o grande inspirador do João como cantor) – Orlando Silva, que foi o maior cantor do Brasil. Dorival Caymmi, Orlando Silva e Ciro Monteiro, esse é o tripé do João Gilberto. Aí está tudo de onde João Gilberto tirou o negócio dele. Agora, o conhecimento do be-bop, das harmonias impressionistas usadas pelo be-bop, pelo cool jazz, foram importantes. E o conhecimento da tradição da grande canção americana, de Gershwin, Cole Porter foi importante para Tom Jobim, Carlos Lyra, para os compositores da bossa nova. Entendeu? Mas o João reuniu esses elementos todos com o modo dele tocar e cantar e possibilitou uma coisa... E com um instrumento muito nosso e usado de uma maneira totalmente nossa, inventada, moderna, mas saída daqui, que não tinha em lugar nenhum, que ninguém saberia fazer. É um negócio incrível.

Em entrevista a Almir Chediak, para o seu songbook, Tom Jobim argumenta

contra a suposta americanização da música brasileira pela Bossa Nova e relata a

recepção difícil das modernas harmonias que compunha no início da sua

produção:

Quando esse pessoal dizia que a harmonia da Bossa Nova era americana, eu achava engraçado, porque essa mesma harmonia já estava em Debussy. Não era americana

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coisa nenhuma. Chamar o acorde de nona invenção americana é um absurdo. Esses acordes de décima primeira, décima terceira, alterada com tensões, com adendos, com notas acrescentadas, isso aí você não pode chamar de americano. É americano do Norte, mas é americano do Sul também. O norte-americano pegou a Bossa Nova porque achou interessante. Se fosse cópia do jazz, não interessaria. Cópia do jazz eles estão cansados de conhecer. Tem jazz sueco, jazz francês, jazz alemão – alemão tá cheio de jazz. Depois, passou-se a chamar de jazz tudo o que balança. Ora, o que balança está nos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil. Isso é que balança. (...) é a essência que nós temos – um negócio negro com um negócio branco. É um problema de nomenclatura. É Latin jazz, Brazilian Jazz; daqui a pouco a gente não sabe do que está falando. Se jazz fosse tudo que balança, a música brasileira seria puro jazz. É preciso livrar o Brasil desses esquemas que acabaram inventando. Eu enfrentei preconceitos enormes. Tocava uma nona e diziam ‘o Tom toca be-pop’. Diziam que o [João] Donato era be-bopeiro, veja só. A gente tocava uma quarta aumentada, uma décima primeira e aparecia logo o cara pra dizer: ‘Olha aí, é be-bopeiro’. Isso naturalmente vem do fato de o Brasil ser um país de poucos pianos. A pessoa tinha poucas chances de tocar esses acordes, até porque no violão você precisa completar esses acordes com o cavaquinho. Se você quiser complicar ou ter muitas segundas juntas na parte harmônica, vai ter que fazer com dois violões. (Chediak, 1990, p. 4)

É possível que o sucesso alcançado pela Bossa Nova no exterior, uma

recepção extraordinária não só do público, mas dos músicos estrangeiros,

sobretudo nos Estados Unidos e também na Europa – sem mencionar a atualidade

do fenômeno no Japão de hoje, cujo mercado fonográfico adotou o movimento,

uma verdadeira febre por lá –, tenha reforçado no Brasil a recepção de que se

tratava de uma americanização ou uma “jazzificação” da música brasileira. Mas

uma consulta à Encyclopedia of Jazz in the sixties2 poderia alimentar com novos

dados a questão, forçando um arejamento do horizonte de expectativas da época.

Leonard Feather, no verbete dedicado a João Gilberto, corrobora o argumento de

Tom Jobim: “Apesar de Gilberto não ser estritamente um artista de jazz, sua

influência foi sentida profundamente nos círculos do jazz americano,

particularmente quando ele veio para os Estados Unidos e gravou um álbum com

Stan Getz, que foi best seller por vários anos”. O maestro Julio Medaglia, em seu

artigo “O Balanço da Bossa Nova” (Suplemento Literário de O Estado de São

Paulo, 17.12.1966) analisa o impacto de João Gilberto na música americana:

E foi com o seu canto cool, com o seu violão bem articulado, com suas harmonias precisas e sua ''batida'' clara e inconfundível, tudo feito da maneira mais despojada e sutil, que João Gilberto, depois de revolucionar a música brasileira, pôs em xeque vários aspectos da música popular norte-americana, chegando a criticá-la

2 Though Gilberto is not strictly a jazz artist, his influence was very deeply felt in American jazz circles, particularly when he came to the U.S. and recorded an album with Stan Getz, which remained a best seller for several years. Leonard Feather - The Encyclopedia of Jazz in the sixties. New York: Horizon Press, 1966, p. 124.

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criativamente através de suas interpretações - e quem o afirma é a própria revista Down Beat, o mais credenciado e especializado periódico do jazz americano: ‘há 40 anos ninguém influenciara a música americana como hoje o faz João Gilberto’.

Tárik de Souza, no texto “As marés do maestro modernista” (Chediak, 1990,

p. 8-9), também inverte a equação no tocante a Tom Jobim – “Debussy & Ravel

fizeram mais a cabeça do compositor que a dupla Rodgers & Hart” –e avalia sua

repercussão na música americana:

A primeira anotação à margem da obra (Tom) jobiniana é a de que ela convive com alguns estereótipos martelados numa só nota pela mídia. Como o totem de papa da Bossa Nova influenciado pelo jazz. (...) É provável que uma auditoria comparativa do acervo do maestro com parcela do jazz que lhe é contemporânea ou posterior na matriz daria um resultado curiosamente inverso ao anátema. Ou seja: tomando por base a pedra inaugural – o registro de Stan Getz (sax) e Charlie Byrd (guitarra), que vendeu um milhão de cópias de Desafinado no princípio dos anos 60 –, a partir de um determinado momento a influência de Jobim sobre o cenário do jazz é proporcionalmente maior que o movimento inverso. (...) A ocorrência dos procedimentos do jazz na obra jobiniana é inferior ao estigma. O mais correto seria anotar sua sincronia com a American Song exportada para o planeta no pós-guerra. Afinal, Gershwin, Cole Porter e Berlin já haviam filtrado do jazz harmonizações modernas para suas baladas encharcadas de swing e torch songs com veneno dissonante.

A propósito do violão mencionado anteriormente por Medaglia e Caetano

Veloso, o instrumento de Dorival Caymmi e João Gilberto, o uso que o

compositor de “Rosa Morena” fez dele, é outro aspecto importante que o

aproxima do estilo da Bossa Nova. O pesquisador de música Carlos Rennó3

explica que ele

(...) alterou o acompanhamento do violão de uma maneira que ninguém havia feito até então, como um impressionista. Por isso, representou um irresistível fator de sedução para músicos sofisticados – Tom Jobim, por exemplo, relevou a precursora modernidade de seus acordes.

Rennó prossegue descrevendo a importância do instrumento na releitura que

João Gilberto fez da Música Popular Brasileira, a partir da obra de Caymmi:

De fato, seu estilo violonístico se constituiu num marco histórico do uso do violão entre nós brasileiros. Principalmente entre grandes autores-cantores que se acompanham ao instrumento e que revolucionaram o modo de tocá-lo. Gente como Gilberto Gil e Jorge Benjor. Mas sobretudo João Gilberto. João colocou-o numa nova perspectiva, na drástica seleção que fez do que era grande na tradição nacional. Ao lado das canções americanas dos anos 30, do cool jazz e do canto de Orlando Silva, a composição de Dorival Caymmi figurou na base da construção "joãogilbertiana" da bossa nova. Como afirmou Caetano Veloso, "o grande esforço de modernização de João se apoiou na modernização sem esforço de Caymmi.

3 Fonte: Dorival Caymmi: Personalidades da MPB (http://www2.uol.com.br/dorivalcaymmi), site criado por Carlos Rennó, com aspectos da vida, obra e trechos de letras de música do compositor.

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É importante acrescentar a esta discussão as importantes observações que

Luís Antônio Giron (no encarte Amor e Mar, p. 4) faz a respeito da unidade

existente entre o violão e a poesia de Caymmi, que, segundo ele, teria atraído a

atenção e admiração dos integrantes da Bossa Nova, sobretudo João Gilberto e

Tom Jobim:

Não é inútil notar, que naquele ano de 1953, (...), João Gilberto ainda cantava como Lúcio Alves e Tom Jobim compunha boleros eruditos no piano-bar (aliás, muito à maneira da vertente de Caymmi, a urbana). A senha do material de Caymmi está no domínio intuitivo da harmonização ao violão, que ele põe a serviço da poesia. O artista conhece muito as duas dimensões e sabe assimilá-las num objeto íntegro, indivisível – e que tem uma dimensão mais ou menos oculta: a da cor, inspirada na pintura e traduzida em timbres.

O violão, além de tudo, dava a Dorival Caymmi uma autonomia e

mobilidade que nenhum outro instrumento permitia. Com seu violão e “com sua

voz de baixo profundo, forneceu argumentos para que os compositores das novas

gerações assumissem o encargo de interpretar suas próprias músicas” (Giron, p.

7). De outra feita, no jornal Gazeta Mercantil (23.02.2000), Giron garante que

“Chico Buarque, na sua convicção de cantar mal o que compõe bem, só apareceu

pela benção de Caymmi”. Por outro lado, Paulo Jobim, compositor e arranjador,

debruçou-se recentemente sobre a obra do compositor para compreender,

reproduzir e transcrever em partituras sua forma personalíssima de tocar sem

sucesso, não conseguindo desvendar o segredo deste “violonista inventivo, dono

de uma verdadeira orquestra, na síntese das seis cordas convencionais” (Tárik de

Souza, Editora Abril, s/d).

As inovações que Caymmi trouxe para a Música Popular Brasileira, tanto na

primeira fase quanto na segunda fase, assinaladas nos itens 4.2. e 4.3. deste

capítulo, quando foi feito um delineamento da recepção de cada uma, são

indicadoras de uma distância estética em relação ao horizonte de expectativas do

período, horizonte emoldurado pela produção e estética da chamada Época de

Ouro e fase de transição. Tal distância estética, segundo Jauss, conforme

abordado no capítulo 2, permite que se distinga a obra inovadora da obra

culinária. Ao mesmo tempo, foram precisos vinte anos, de 1938 a 1958, para que

se constituísse – e a recepção e incorporação da obra de Caymmi pela Bossa Nova

parecem indicá-lo – um horizonte de expectativas, a partir da Bossa Nova, em

condições de compreender a originalidade e modernidade do compositor. A idéia

de precursor não é adequada nem para a avaliação da atuação de Caymmi sobre a

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Bossa Nova e mesmo sobre outros desenvolvimentos posteriores na história da

Música Popular Brasileira, tampouco o é na perspectiva da Estética da Recepção,

que defende o conceito de história atuante. Ser precursor ainda aprisiona o

compositor no passado e carrega consigo a idéia de superação posterior, o que não

é o caso, quando se fala de um modelo que propõe olhar o fenômeno estético

como algo que atravessa o tempo, atuando sobre ele.

Por tudo que foi dito acima, pode-se concluir que o vínculo existente entre

Caymmi e os criadores da Bossa Nova, sobretudo João Gilberto, está ligado

profundamente ao samba brasileiro e à forma de compô-lo. Isso fica claro quando

João Gilberto afirma que a Bossa Nova é samba. A prova disso é que ele grava,

entre outros, sambas de Caymmi, que como se viu é o samba baiano,

completamente diferente do modo carioca de fazer samba. Entretanto, Caymmi é

considerado moderno com um gênero que, em princípio, é tradicional e

conservador, o que é um aparente paradoxo. A sofisticação reside nesse paradoxo.

É nele que parece estar a chave da questão evidenciada pela sensação de João

Gilberto e Caetano Veloso de que não é necessário ir ao jazz ou ao be-bop, porque

a expressão da modernidade musical brasileira já está presente na obra de

Caymmi, que a Bossa Nova vem consolidar. Assim, o vínculo com a modernidade

musical brasileira propiciou um diálogo estético, que permitiu a releitura e o

reprocessamento da obra de Caymmi pelo movimento. A partir da recepção que a

Bossa Nova faz de Caymmi, as novas gerações têm acesso à sua obra, ou melhor

dizendo, os horizontes de expectativas sucessivos passam a incorporar sua obra

nesta nova perspectiva. A Bossa Nova traduziu Caymmi, possibilitando esse

diálogo com as novas gerações. Arnaldo Antunes, representante da nova geração,

escreveu sobre Caymmi um artigo (O Globo, 24.4.94) que traz uma frase

esclarecedora – chave importante para esta discussão: “Me vejo ante a eternidade

da sua obra, que vem antes de mim e continua depois de mim mantendo intacta

sua delicada beleza”. Para a formação das gerações que vieram após a Bossa

Nova, a tradução de Caymmi feita por João Gilberto – e as sucessivas traduções

de outros intérpretes – foi fundamental.

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5.5. Jauss e Braudel: a Questão da Permanência

Não há dúvida quanto ao lugar canônico reservado a Dorival Caymmi na

história da Música Popular Brasileira – como, de resto, não há dúvidas quanto ao

de Noel Rosa, Ary Barroso, Tom Jobim, entre outros. Entretanto, à luz da Estética

da Recepção, a questão do cânone é redimensionada, como foi demonstrado no

capítulo 2. Inicialmente, Hans Robert Jauss argumentará que nenhuma obra é

canônica no momento da sua produção. Para ele, na medida em que uma obra

desafia os padrões estéticos consolidados no horizonte de expectativas da

comunidade de leitores obrigando-a a reestruturá-lo ou ampliá-lo, seu valor é

evidenciado. A questão que se coloca é: como fica a condição da obra inovadora,

depois que sua contribuição foi incorporada ao horizonte de expectativas e se

tornou rotina? Ela deixa de ser canônica e fica relegada à função de uma obra

culinária ou ligeira? Jauss vai apresentar, dentro do seu modelo, uma saída

plausível para este embaraço, ao propor que se faça sobre ela uma leitura ‘a

contrapelo’ – conceito emprestado de Adorno – da obra canônica que se tornou

um hábito. Em outras palavras, novas e interessantes perguntas deverão ser feitas

à obra clássica, de modo que ela saia do seu isolamento e recupere sua atualidade

no presente. O lugar da obra na série literária não é fixo e estará sempre na

dependência, portanto, da relação dialógica entre texto e leitor, que condicionarão

novas recepções. Uma nova recepção reordenará a série literária, obrigando a

história da literatura a estar em constante movimento.

Na sexta tese da Estética da Recepção, em que discute as implicações da

sincronia, para além do corte diacrônico habitual na história da literatura, Jauss

abre uma janela para que se possa investigar, na área da música, a permanência de

Dorival Caymmi na história da Música Popular Brasileira até os dias atuais.

Assim como os tradicionais livros de história da literatura, as histórias da Música

Popular Brasileira utilizam um modelo que não atende à complexidade de seus

objetos. Tais modelos os enclausuram em períodos convencionalmente

delimitados, agrupados em torno de temas, gêneros, estilos e ritmos comuns, sem

atentar para as diferenças entre eles. A obra de Caymmi, mais rica e mais variada

do que se supôs, não se encaixa, com exatidão, na homogeneidade que se quis dar

a ela. É necessário, à semelhança do que aconteceu na literatura, repensar os

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modelos historiográficos que vêm sendo aplicados à música. A Estética da

Recepção é um modelo plausível para dar visibilidade ao sistema musical dentro

do qual Dorival Caymmi atua.

Por trás da unidade aparente e confortável, contida no que se convencionou

chamar de Época de Ouro, Bossa Nova ou Era dos Festivais, há uma

heterogeneidade que se tornou invisível – é possível que a dificuldade dos

historiadores e críticos em nomear os períodos que vieram a seguir se deva a uma

percepção maior desta heterogeneidade. O conceito de história atuante implica

compreender a história em movimento, envolvendo um processo que se estende

para além dessas compartimentações estanques. Dorival Caymmi é um autêntico

exemplo da história atuante. Ele atua nas três fases investigadas aqui e continua

atuando até os dias de hoje, seja ao nível da produção, seja ao da recepção,

embora com ênfases desiguais. Tais fases são vistas como homogêneas, mas o

fato mesmo de Caymmi atuar na Época de Ouro, na fase de transição para a Bossa

Nova e na Bossa Nova demonstra, por si só, que esses períodos não são de modo

algum homogêneos.

Como foi dito anteriormente, toda a produção musical, atual ou não, que

chega à comunidade de leitores é encarada como simultânea, embora as obras

pertençam a períodos diversos. Isso se deve ao fato de que essa

(...) multiplicidade dos fenômenos literários [no caso, fenômenos musicais], de algum modo, criava uma unidade a partir de um horizonte comum de expectativas, memórias e antecipações, fazendo com que o público leitor percebesse as obras como se estas fossem do seu presente. (Olinto, 2003, p. 26).

Quando João Gilberto gravou “Rosa Morena”, em 1959, no calor da

novidade representada pela Bossa Nova, o público passou a conhecer Caymmi na

atualidade, no contexto daquele movimento. A Bossa Nova configurou um novo

horizonte de expectativa, que naquele instante pareceu tomar todo o espaço

musical do período, decretando o desaparecimento das formas que a antecediam.

O público estava contagiado pela nova forma. Entretanto, Dorival Caymmi é o

portador inesperado, na imagem de George Kubler, que se localiza no “então”,

mas é ouvido no “agora”, está atuante nesse “agora”. Ele é um portador do

passado que viaja para o presente:

A natureza dos signos implica que a sua mensagem não existe aqui e agora, mas lá e então (there and then). Se for signo, trata-se de uma ação passada, afastada do agora do presente. A percepção de um signo ocorre now, mas os impulsos e sua

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transmissão se localizam no then. Em todos os eventos, o instante presente é o pano de fundo sobre o qual os signos serão projetados. (Olinto, 2003, p. 27)

Resta ainda investigar uma última questão propiciada pelo depoimento de

Chico Buarque, já citado acima, quando descreve que “Por ser um movimento

revolucionário, a Bossa Nova recusou muita coisa. Recusou Noel, Ataulfo Alves,

os grandes da música brasileira. E não podia recusar Caymmi” (Caymmi, 2001, p.

379). Foram considerados aqui os fatores que levaram a Bossa Nova a incorporar

Caymmi, mas ainda parecem estar suficientemente claras as razões para o

movimento recusar a produção anterior, aquela contemporânea de Caymmi. Isto é,

as razões para a “drástica seleção”, como define Carlos Rennó, efetivada por João

Gilberto na Música Popular Brasileira. Antes, porém, é preciso fazer um reparo,

pois embora a Bossa Nova tenha recusado Noel Rosa, ele foi amplamente

atualizado pelas mãos de Chico Buarque, nas décadas seguintes. Rosa, de forma

alguma, ficou pra trás.

Para aclarar a questão acima, é necessário voltar à sexta tese de Jauss. O

teórico alemão, em apoio à sua argumentação, recorre à “factual não-

simultaneidade do simultâneo” defendida por Siegfried Kracauer, baseado no

livro The Shape of Time, de George Kubler:

O projeto de Jauss, ao questionar a consideração diacrônica única nas histórias da literatura pela consideração do corte sincrônico, encontrava, na década de 1960, apoio declarado em considerações de Siegfried Kracauer, quando este criticava precisamente a primazia daquele modelo, responsabilizando o historiador pela destruição artificial da simultaneidade do heterogêneo por causa de sua tendência de impor, retrospectivamente, uma visão homogeneizadora à história. Esta concepção, fundada sobre a idéia de que eventos de todas as esferas da vida que emergem em momentos cronológicos simultâneos representam processos consistentes e unitários, exibindo, portanto, marcas similares, é questionada pelo autor, no ensaio “Time and History”, de 1966. (Olinto, 2003, p. 25)

A simples constatação da coexistência de uma multiplicidade de eventos no

mesmo período de tempo não faz deles um fenômeno único e homogêneo. Ao

contrário, tais eventos pertencem a curvas temporais distintas que são

determinadas pelas “leis da sua própria história específica” (Olinto, 2003, p. 26) e

não permitem síntese. A partir dessa constatação, é possível formular a hipótese

de que a obra de Dorival Caymmi pertence a uma temporalidade distinta daqueles

contemporâneos do compositor, cuja música envelheceu, e que desapareceram. O

fato de a sua obra ter sobrevivido até os dias atuais, enquanto a de parte de seus

contemporâneos ter desapareceu a partir do advento da Bossa Nova, parece

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comprovar esta hipótese. A saber, a de que sua temporalidade tem maior duração,

dado que sua atuação não se esgotou, nem dá sinais de esgotamento, mantendo

sua vitalidade.

O historiador Fernand Braudel oferece um modelo, muito oportuno para o

trabalho desenvolvido nesta dissertação, que vai conjugar três temporalidades –

mas que permitem outras durações, quando afirma que “A história estabelece, no

sentido vertical, múltiplas ligações de um ‘patamar’ temporal para outro”

(Braudel, 1983, p. 29): o tempo de curta duração, do evento, factual, também

chamado breve ou nervoso, da história tradicional; o tempo social, de ritmo lento,

da história econômica e social ou conjuntural; e, finalmente, o tempo quase

imóvel ou tempo geográfico, das lentas transformações, da história de longa e

longuíssima duração. Ele propõe que “seja um escalonamento de histórias, a

serem vistas obrigatoriamente todas juntas, pois que juntas vivem” (Braudel,

1992, p. 355). Todas essas temporalidades são perceptíveis pelas pessoas, pois

ocorrem no nível empírico. Braudel, em oposição à idéia defendida por Marc

Bloch, de que só há história quando há mudança, vai propor a dialética da

mudança e da permanência (permanência compreendida como longa duração):

O importante é que a mudança deve compor necessariamente com a não-mudança. Como a água de um rio condenado a correr entre duas margens, muitas vezes mesmo entre ilhas, bancos de areia, obstáculos... A mudança é como que pega de antemão numa cilada e, se consegue suprimir um pedaço considerável do passado, é preciso que esse pedaço já não tenha uma resistência excessiva, que já tenha desgastado por si mesmo. Na verdade a mudança adere à não-mudança, segue as fraquezas desta, utiliza suas linhas de menor resistência. [grifo meu] (Braudel, 1992, p. 357)

O fato de a mudança aderir à não-mudança, utilizando suas linhas de menor

resistência, significa dizer que quando algo muda é porque já se encontrava

fragilizado, corroído ou decadente. Ou seja, muda o que é mais fraco, o que

perdeu o seu vigor, ou esgotou a sua curva temporal. Aplicando esta definição à

história da Música Popular Brasileira, pode-se formular a hipótese de que a

mudança representada pela Bossa Nova só ocorreu porque uma grande parcela da

música que se produzia no período entrou em decadência, já tinha esgotado sua

força. E mais: se Caymmi sobreviveu a essa mudança, isso pode significar que sua

obra pertence a uma temporalidade maior do que aquela de seus contemporâneos

que desapareceram. Diante da atualidade, vigor e fôlego de sua obra tudo indica

que essa temporalidade ainda não se esgotou – a modernidade de Caymmi, entre

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elas as inovações harmônicas de que falava Tom Jobim, ainda fazem parte do

horizonte de expectativa atual. É uma obra que mantém sua vitalidade, oferecendo

respostas e suscitando novas perguntas ao leitor.

5.6. Considerações Finais

Depois de quase quatro décadas, a Estética da Recepção já se encontra no

altar das teorias canonizadas, já foi (auto)criticada e parcialmente superada. Seus

conceitos se popularizaram, instrumentalizando pesquisadores de diversas áreas

das chamadas ciências humanas, um guarda-chuva de vários setores da

epistemologia. Inúmeras teorias literárias vieram depois dela e, entre elas,

“assinalam-se nitidamente tentativas de construir, ou adaptar, modelos complexos

para o fenômeno literário compreendido como sistema social de múltiplas

dimensões” (Olinto, 1996, p. 29).

Apesar disso, a Estética da Recepção parece conservar o seu frescor e sua

validade. Embora de forma mais restrita e com todos os reparos e limitações

necessários, ela configura ainda um corpo teórico muito útil para investigação de

diversos objetos. No campo da música – e em outros campos – a revolução

epistemológica que promoveu, ao colocar o leitor socializado (a comunidade de

leitores ou, para facilitar, simplesmente o público) no centro da experiência

estética, permitiu análises e respostas inesperadas acerca de seus objetos, que

outras teorias não permitiam entrever. Entender o fenômeno literário, ou o

fenômeno musical, no caso deste estudo específico, como um processo dialógico

que envolve o autor-obra-leitor, e não somente autor e obra, é, além de um grande

passo, uma proposta para se olhar o fenômeno estético de maneira mais ampla,

com contribuições enriquecedoras e surpreendentes, que descortinaram relações

até então invisíveis nos processos investigativos. É bem verdade que substituir o

autor ou a obra pelo leitor não respondeu e não resolveu o problema da

historiografia, mas trouxe uma contribuição inestimável para os estudos em

literatura. O desenvolvimento posterior de novas e complexas teorias literárias a

partir da Estética da Recepção comprova a qualidade e amplitude do seu projeto.

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Com relação ao fenômeno da Música Popular Brasileira, fenômeno, aliás,

com pouco mais de um século de existência, o recorte que se fez sobre ela através

da obra de Dorival Caymmi, suas implicações e repercussões estéticas, à luz da

teoria de Jauss, permitiu uma nova abordagem da sua história e deu visibilidade à

comunidade de leitores de uma obra musical em sucessivas recepções. A

incorporação do leitor ao jogo interpretativo ampliou as possibilidades de

compreensão do fenômeno. À semelhança dos produtos utilizados pela perícia

para tornar visíveis os sinais da cena do crime, antes invisíveis a olho nu, com o

objetivo de desvendá-lo, uma nova moldura teórica renova a maneira de se

investigar o mesmo objeto, traz à tona novos dados, possibilitando ângulos

insuspeitos na forma de compreendê-lo. Todos saem ganhando, ainda que o preço

seja a perda de algumas “certezas”, além do desconforto de não se ter todas as

respostas.

O percurso deste trabalho se desenvolveu em seis etapas: a percepção de que

grande parte dos livros, manuais, ensaios de história e críticas da Música Popular

Brasileira estão em descompasso em relação à complexidade do seu objeto e que,

portanto, precisariam instrumentalizar-se com novas molduras teóricas, que

poderiam ser buscadas ou inspiradas nas renovações ocorridas nas ciências da

história e da literatura no século XX; a partir dos conceitos da Estética da

Recepção, de Hans Robert Jauss, e da História das Mentalidades, de Fernand

Braudel, adaptados ao campo da música, discutiu-se a atuação e permanência da

obra de Dorival Caymmi na Música Popular Brasileira, em vista da insuficiência

dos modelos existentes em oferecer uma resposta satisfatória a esta questão; a

realização do mapeamento parcial da recepção da crítica estética e cultural a esta

mesma obra, abrangendo vinte anos da carreira do compositor (1938-1958); a

verificação, a partir daquele mapeamento, de que a Bossa Nova, vinte anos depois

das inovações introduzidas por Dorival Caymmi na Música Popular Brasileira,

constituiu o horizonte de expectativas inicial propício para a compreensão de sua

obra; a constatação de que a incorporação da obra de Caymmi ao universo da

Bossa Nova se deveu ao fato de que as modernizações introduzidas pelo

compositor, dentro do samba tradicional, foram adotadas, desenvolvidas e

consolidadas pelo movimento; o entendimento de que o fato de Dorival Caymmi

prosseguir atuando sobre a Música Popular Brasileira, quando uma grande parcela

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de seus contemporâneos cessou sua contribuição, indica que o compositor e sua

obra pertencem a uma temporalidade distinta, de maior duração.

Parece legítimo também concluir que a busca de uma nova compreensão

sobre os objetos do campo da Música Popular sinaliza, por sua vez, que o

horizonte de expectativa dentro do qual ocorriam estas investigações modificou-se

também, produzindo novas abordagens e molduras teóricas. Por fim, para além da

aridez dos conceitos e teorias fica o conselho de João Ubaldo, em “Esfinge

Benigna”4:

Escutai Caymmi: ele não quer que decifreis nada, a não ser vós mesmos, como é a empresa sagrada dos grandes poetas. E Caymmi, para nós, seus afortunados compatriotas, é também Orfeu: dedilha a nossa lira, poeta a nossa vida, canta pra nós a existência que não vemos e precisamos ver, decifra-nos com a mais doce das ternuras. Em verdade vos digo, sou melhor, ou menos ruim, por causa dele, sois melhores por causa dele.

4 Texto do encarte do CD Dorival Caymmi, coletânea da gravadora Columbia com vários artistas, lançado em 1994.

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6.

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7.

Anexos

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146

7.1.

Anexo 1 – Lista dos Jornais e Revistas Citados

Jornais O Jornal. Rio de Janeiro, 19 de julho de 1938.

O Imparcial, coluna Radiomania. Salvador, 22 de julho de 1938.

O Imparcial, coluna Broadcasting. Salvador, 25 de julho de 1938.

O Radical. Rio de Janeiro, 6 de outubro de 1938.

A Nota, coluna Rádio, de Mister Brown. Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1938.

A Noite. Rio de Janeiro, 14 de novembro de 1938.

O Globo. Rio de Janeiro, 17 de fevereiro de 1939.

A Nota, matéria assinada por V. Sobrinho. Rio de Janeiro, 17 de fevereiro de 1939.

A Nota. Rio de Janeiro, 2 de março de 1939.

Meio-Dia. Rio de Janeiro, 4 de março de 1939.

A Tarde. Salvador, 18 de março de 1939.

O Globo, artigo publicado com o título “Sensação do Momento”. Rio de Janeiro, 20 de março de 1939.

O Globo. Rio de Janeiro, 20 de março de 1939.

A Tarde, coluna No Rádio. Salvador, 27 de março de 1939.

A Notícia, artigo de João da Antena. Rio de Janeiro, 29 de março de 1939.

A Nota. Rio de Janeiro, 14 de abril de 1939.

O Imparcial. Salvador, 15 de abril de 1939.

A Pátria. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1939.

Diário de Notícias, coluna Radiophonices. Rio de Janeiro, 30 de abril de 1939.

Correio da Noite, coluna Falando a Todo Mundo. Rio de Janeiro, 9 de maio de 1939.

A Tarde, coluna No Rádio. Salvador, 5 de junho de 1939.

O Globo. Rio de Janeiro, 21 de julho de 1939.

A Noite. Rio de Janeiro, 10 de maio de 1940.

Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 2 de novembro de 1941.

A Tarde. Salvador, 1º de fevereiro de 1940.

A Noite. Rio de Janeiro, 10 de maio de 1940.

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147

Jornal da Moças, seção Radioatividades. Rio de Janeiro, 18 de julho de 1940.

O Povo. Fortaleza, 8 de outubro de 1941.

Correio do Ceará. Fortaleza, 14 de outubro de 1941.

Gazeta de Notícias. Fortaleza, 15 de outubro de 1941.

Correio do Ceará. Fortaleza, 19 de outubro de 1941.

O Estado, reportagem assinada por Filgueira Lima. Fortaleza, 22 de outubro de 1941.

Correio do Ceará. Fortaleza, 29 de outubro de 1941.

Gazeta de Notícias. Fortaleza, 2 de novembro de 1941.

O Povo. Fortaleza, 26 de novembro de 1941.

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O Imparcial, artigo de Wilson Lins. Salvador, 24 de dezembro de 1941.

O Diário de S. Paulo. São Paulo, 18 de abril de 1943.

Diário da Noite. Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1943.

Diário de Notícias, matéria de Nino Guimarães. Rio de Janeiro, 1º de março de 1944.

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O Estado da Bahia. Salvador, 27 de junho de 1953.

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Última Hora. Rio de Janeiro, 12 de março de 1956.

Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 14 de março de 1956.

O Globo, coluna Mesa de Pista, de Antônio Maria. Rio de Janeiro, 14 de março de 1956.

O Globo, coluna O Ouvinte Desconhecido. Rio de Janeiro, 14 de março de 1956.

Última Hora. Rio de Janeiro, 15 de março de 1956.

O Dia. Rio de Janeiro, 18 de março de 1956.

Correio Paulistano. São Paulo, 20 de março de 1956.

O Globo. Rio de Janeiro, 20 de março de 1956.

Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 21 de março de 1956.

Diário Trabalhista, texto de Nelson Batinga. Rio de Janeiro, 21 de março de 1956.

Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 21 de março de 1956.

Correio da Manhã, coluna Rádio e TV. Rio de Janeiro, 21 de março de 1956.

O Globo. Rio de Janeiro, 22 de março de 1956.

Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 22 de março de 1956.

O Globo, coluna O Show da Cidade, de Henrique Pongetti. Rio de Janeiro, 22 de março de 1956.

O Dia, coluna Rádio. Rio de Janeiro, 25 de março de 1956.

Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 25 de março de 1956.

Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 27 de março de 1956.

Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 28 de março de 1956.

O Globo, coluna O Ouvinte Desconhecido. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1956.

O Globo, coluna O Ouvinte Desconhecido. Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1956.

Última Hora, artigo de Oswaldo Miranda. Rio de Janeiro, 18 de outubro de 1956.

O Globo, coluna O Ouvinte Desconhecido. Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1956.

Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 1956.

O Globo. Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1957.

Diário de Lisboa. Lisboa, 6 de maio de 1957.

Correio da Manhã, texto de Claribalte Passos. Rio de Janeiro, 30 de junho de 1957.

Diário da Noite. Rio de Janeiro, 1º de julho de 1957.

O Globo, coluna O Ouvinte Desconhecido. Rio de Janeiro, 26 de agosto de 1957.

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Correio da Manhã, seção Discoteca, texto de Claribalte Passos. Rio de Janeiro, 1957.

Diário Carioca, suplemento Revista dos Espetáculos. Rio de Janeiro, 23 de março de 1958.

Última Hora. São Paulo, 19 de novembro de 1958.

Diário Carioca. Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1958.

O Globo. Rio de Janeiro, 15 de maio de 1958.

O Jornal, coluna Fichário Musical, de Ari Serrano. Rio de Janeiro, 23 de julho de 1958.

Correio da Manhã, texto “Caymmi, o eterno cantor do mar”, de Claribalte Passos. Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1959.

Folha Carioca, coluna Ondas Radiofônicas, de Almeida Rego. Rio de Janeiro, [s/d], anos 50.

O Estado de São Paulo, suplemento Literário, artigo “O Balanço da Bossa Nova, de Julio Medaglia. São Paulo, 17 de dezembro de 1966.

Jornal do Brasil, entrevista de João Gilberto a Carlos Alberto Silva. Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1979.

Folha de São Paulo, Caderno Mais, matéria de Luís Antônio Giron. São Paulo, 17 de abril de 1994.

Jornal do Brasil, depoimento de Roberto Menescal. Rio de Janeiro, 24 de abril de 1994.

O Globo, texto de Arnaldo Antunes. Rio de Janeiro, 24 de abril de 1994.

O Globo. Rio de Janeiro, 30 de abril de 1999.

Gazeta Mercantil, texto de Luís Antônio Giron. Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 2000.

Revistas Radiomania. Rio de Janeiro, 22 de julho de 1938.

A Noite Ilustrada. Rio de Janeiro, 29 de novembro de 1938.

Fon-Fon. Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1939.

PRAnove-Rádio Mayrink Veiga. Rio de Janeiro, jan.-fev de 1939.

Fon Fon. Rio de Janeiro, 1º de abril de 1939.

Revista da Semana. Rio de Janeiro, 1º de abril de 1939.

Cena Muda. Rio de Janeiro, 12 de agosto de 1947.

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Cena Muda. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1948.

Revista Radar, artigo de Isa Silveira Leal. Rio de Janeiro, 21 de setembro de 1950.

O Cruzeiro, crônica “Jangadas”, de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro, 15 de abril de 1950.

O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1951.

Revista do Rádio, seção 24 Horas na Vida de um Artista. Rio de Janeiro, 1952.

Revista de Música Popular. Paulo Mendes Campos entrevista Dorival Caymmi. Rio de Janeiro, 1953.

Revista Manchete, discurso de Antônio Maria. Rio de Janeiro, 18 de julho de 1953.

Revista Carioca, texto de Carlos Maria. Rio de Janeiro, 20 de março de 1954.

Revista da Semana, coluna de Antônio Maria. Rio de Janeiro, 22 de maio de 1954.

Revista do Rádio. Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1954.

Revista da Semana. Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1954.

O Mundo Ilustrado. Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1954.

Revista da Música Popular, entrevista de Dorival Caymmi a Paulo Mendes Campos. Rio de Janeiro, jan. 1955.

Revista da Música Popular, texto de Lúcio Rangel. Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1955.

Radiolândia, coluna de Eugênio Lyra Filho. Rio de Janeiro, 12 de fevereiro de 1955.

Revista da Música Popular, perfil “Uma figura: Dorival Caymmi”, de Rubem Braga. Rio de Janeiro, mar.-abr. 1955.

Revista Coletânea, artigo “Uma voz e um violão”, de Pedro Sá. Rio de Janeiro, maio de 1955.

Parada de Discos. Rio de Janeiro, julho de 1955.

O Mundo Ilustrado, reportagem de Borelli Filho. Rio de Janeiro, 10 de março de 1956.

Revista do Rádio. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1956.

Revista do Rádio. Rio de Janeiro, 16 de junho de 1956.

O Cruzeiro, texto de Ary Vasconcelos. Rio de Janeiro, 4 de agosto de 1956.

Revista Paratodos, texto de Sílvio Guimarães. Rio de Janeiro, 1º de novembro de 1956.

Revista da Semana, coluna Noite Vadia, de Mister Eco. Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1957.

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Revista do Rádio. Rio de Janeiro, 6 de março de 1957.

O Cruzeiro, texto de Ary Vasconcelos. Rio de Janeiro, 5 de outubro de 1957.

Revista Rio Magazine, artigo de Jorge Amado. Rio de Janeiro, anos 50.

Manchete, texto de Orígenes Lessa. Rio de Janeiro, 1958.

Manchete, entrevista de Dorival Caymmi a Pedro Bloch. Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1963.

Veja, Páginas Amarelas, entrevista de João Gilberto a Tárik de Souza. São Paulo, 12 de maio de 1971.

Manchete, reportagem de Atenéia Feijó. Rio de Janeiro, anos 70.

Revista da Semana, crônica “Um homem bem macio”, de Antônio Maria. Rio de Janeiro, [s/d]

Revista Careta, charge de Suez. Rio de Janeiro, [s/d]

O Cruzeiro, matéria de Fernando Lobo. Rio de Janeiro, [s/d]

Revista da Semana, coluna Plantão Noturno. Rio de Janeiro, [s/d].

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