souza. sem uma teoria a literatura é o óbvio

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Teoria da Literatura I Prof. Julio Frana

PASTA 47

Sem uma teoria, a literatura o bvio Roberto Aczelo Quelha de Souza A pergunta "O que literatura?", dirigida a uma pessoa que, mesmo interessada em livros e leituras, no faa parte daquele crculo mais estreito dos que se ocupam profissionalmente com ela professores e estudantes de Letras, escritores, jornalistas , causar certamente embarao a seu destinatrio. E o embarao no ser decorrncia do pressentido carter complexo da resposta a ser dada; ao contrrio, a pessoa interrogada achar to bvia a resposta que no atinar com o motivo por que se faz uma pergunta to... idiota. Provavelmente, nosso interrogado imaginrio franzira a testa, surpreso pelo inusitado da questo, e rebater com outra(s) pergunta(s): Como?! Hein?! O qu?! O que literatura?!. Se insistirmos, a resposta ser algo equivalente ao seguinte: Bem, literatura uma obra escrita, quero dizer, um romance, um livro de poesias, ou de contos1. Respostas assim, na verdade, no chegam a responder pergunta feita. No formulando uma definio, limitam-se a alinhar exemplos obra escrita, romance, livro de poesias, livro de contos , o que equivale a aceitar uma espcie de noo difusa e naturalizada de literatura. Difusa porque o vocbulo literatura, segundo tais respostas, no corresponderia a um conceito, isto , a algo abstrato, definido ou delimitado, antes ilimitando seu alcance, por cobrir inumerveis exemplos mais ou menos semelhantes entre si; e naturalizada porque corresponderia a uma idia comunitariamente admitida como to normal, to natural, que destitui de toda pertinncia e sentido a pergunta O que literatura?. Voltemos agora quele crculo mais estreito dos que, de algum modo, se ocupam profissionalmente com a literatura. Para os integrantes desse crculo, a pergunta seria tambm embaraosa. E isso certamente, como j se ter percebido, no porque ela seja impertinente ou sem sentido, nem porque sua resposta seja bvia; ao contrrio, a perturbao do interrogado derivar de sua familiaridade com o carter complexo da questo proposta, cujos desdobramentos extrapolam muitssimo o espao incontroverso de um alinhamento de exemplos ou de uma definio conclusiva. Assim, ele estar advertido tanto para a inconsistncia de respostas limitadas a listas de exemplos quanto para os argumentos contrrios que qualquer definio inevitavelmente acarreta; saber, ainda, que os termos com que venha a definir literatura ficam sujeitos, por sua vez, s competentes definies respectivas, o que engendra ampla e complexa rede de conceitos, definies e termos tcnicos. Enfim, este segundo interrogado imaginrio parte do princpio de que a literatura objeto de uma problematizao, de um questionamento, apto a revelar a superficialidade da atitude para a qual ela corresponde apenas a uma noo difusa e naturalizada, sendo o bvio, portanto. Provisoriamente, digamos que a segunda atitude por ns descrita fazer da literatura um objeto de questionamento ou problematizao implica a construo de uma teoria. Provisoriamente, ainda, fixemos o seguinte: uma teoria, construda em funo de qualquer campo de observao que se oferea ao homem - quer esse campo se situe na natureza, quer se situe na cultura - implicar sempre criar problema(s) onde o senso comum no v obscuridades cujo esclarecimento justifique o empenho da razo analtica. Quem se banha ou mata a sede numa fonte limita-se a servir-se dessa coisa cristalina que a gua, no se coloca o problema da sua composio qumica ou de seu estado fsico. Quem se apaixona apenas vive a agitao de um sentimento, no o transforma num problema a ser equacionado em termos psicolgicos. Desse modo, no privilgio da literatura a faculdade de subtrair-se ao reino do bvio por interveno de uma teoria. Fechemos agora este captulo explicando por que insistimos no carter provisrio das duas assertivas desenvolvidas no pargrafo anterior. Quando explicamos que a 1iteratura se transforma num problema medida que enseja a construo de uma teoria, utilizamos o termo teoria ainda numa acepo demasiado ampla, como equivalente de estudo e anlise metdica; assim, no estamos ainda pensando na disciplina conhecida pelo nome de teoria da literatura, que, conforme se ver em captulo adiante, constitui apenas uma das disciplinas que se propem fazer da literatura um problema digno de estudo. Por outro lado, quando caracterizamos teoria em geral como certo tipo de considerao problematizante de uma determinada regio da realidade cultural ou natural, no chegamos a compor uma concepo mais plena do que seja uma teoria. Dessa concepo mais plena pretendemos gradativamente nos aproximar, medida que os prximos captulos forem acrescentando, a esta primeira, outras determinaes do que se entende por teoria.(SOUZA, Roberto Aczelo Quelha de. Captulo 1 - Sem uma teoria, a literatura o bvio. Teoria da Literatura. 10 ed. So Paulo: tica, 2007. pp. 7-9.)

1 Cf. FORSTER, E. M. Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo, 1969. p. 19-20.