sorrir aovento fechado · porque ela tropeçou e caiu bem em cima de mim. sua mãe, uma bela...

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11 Um 29B. Eu me lembro muito bem do número de meu assento e pouco de meu companheiro de voo: ca- belos grisalhos, óculos metálicos, olhos... castanhos? E bem calado. Ou será que fui eu que tranquei a boca para não deixar escapar uma grosseria ao vê-lo comer como um porco? Vinte horas de voo podem ser muito ou pouco tempo; como a vida: você decide se deve aproveitar ao máximo ou deixar secar como uma uva-passa. Tenho certeza de que com ele aconteceu assim também: nós nos deixamos secar porque éramos indiferentes um ao outro. Nossas energias entraram em conflito e os neurônios decidiram não perder tempo, e se ignora- ram. Não foi culpa dele. Naquele voo, ainda que estivesse ali o cara mais sexy do mundo — Keanu Reeves —, eu não teria percebido. Meus olhos estavam cegos e meu coração parecia uma geleira de tão gelado. Meu relacionamento com Gonzalo tinha chegado ao fim. Nove anos de amor: a relação havia des- moronado como um castelo de cartas. Não me lembro de como eu disse “Aca- bou!”. A beleza das coisas está no fato de não durarem para sempre. Mas na- quele avião, eu não fui capaz de fazer tal reflexão, nem nenhuma outra. Estava arrasada e não sabia por onde começar a analisar. Fazia apenas duas semanas que Gonzalo tinha saído de casa, com uma cara sem expressão e sem entender

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Page 1: Sorrir aoVento FECHADO · porque ela tropeçou e caiu bem em cima de mim. Sua mãe, uma bela mulata, foi buscá-la e, sem alterar demais a voz, deu-lhe uma bronca que a menina encarou

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Um

29B. Eu me lembro muito bem do número de meu assento e pouco de meu companheiro de voo: ca-

belos grisalhos, óculos metálicos, olhos... castanhos? E bem calado. Ou será que fui eu que tranquei a boca para não deixar escapar uma grosseria ao vê-lo comer como um porco? Vinte horas de voo podem ser muito ou pouco tempo; como a vida: você decide se deve aproveitar ao máximo ou deixar secar como uma uva-passa. Tenho certeza de que com ele aconteceu assim também: nós nos deixamos secar porque éramos indiferentes um ao outro. Nossas energias entraram em conflito e os neurônios decidiram não perder tempo, e se ignora-ram. Não foi culpa dele. Naquele voo, ainda que estivesse ali o cara mais sexy do mundo — Keanu Reeves —, eu não teria percebido. Meus olhos estavam cegos e meu coração parecia uma geleira de tão gelado. Meu relacionamento com Gonzalo tinha chegado ao fim. Nove anos de amor: a relação havia des-moronado como um castelo de cartas. Não me lembro de como eu disse “Aca-bou!”. A beleza das coisas está no fato de não durarem para sempre. Mas na-quele avião, eu não fui capaz de fazer tal reflexão, nem nenhuma outra. Estava arrasada e não sabia por onde começar a analisar. Fazia apenas duas semanas que Gonzalo tinha saído de casa, com uma cara sem expressão e sem entender

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nada. Sempre foi muito bom com teoria ou com o papo de “se não me dizem na cara, não compreendo”. Muito dos homens; ficar com a primeira definição do dicionário por regra e, como exceção, olhar o resto. Minha memória, além de seletiva, é caprichosa e decide sempre prender-se às lembranças agradáveis e expulsar as dolorosas. O rompimento com Gonzalo vive dentro de mim, mas sem forma. Ainda mais por eu estar enfiada neste avião por tantas horas e com a cabeça fervilhando com frases soltas daquela noite, daquele fim.

“Não sou feliz.”“A planta morreu.”“Há anos não temos mais admiração um pelo outro.”“Não existe uma terceira pessoa, mas... não aguento mais!”“Dói, dói, me dói muito.”Não consegui remontar o quebra-cabeça. O que aconteceu conosco?

Quando começamos a amassar o amor até ele virar uma bola de papel para jogarmos no lixo? Chorei muito naquele avião: por mim, por não entender e por saber que faria qualquer coisa para evitar nosso desmoronamento. Depois de aprender a mexer no controle cheio de botõezinhos e analisar suas múltiplas possibilidades, escolhi o filme: O exótico hotel Marigold. Tive dificuldades para me concentrar por causa de meu vizinho, Mr. Nasty,1 e seus ruídos.

Havia também uma menina negra de cabelos muito cacheados que anda-va para lá e para cá. Às vezes, parava e me olhava fixamente: as crianças têm o dom de transpor barreiras e desarmar as pessoas num piscar de olhos. Não trocamos uma palavra, mas nos comunicamos. A primeira vez que eu a vi foi porque ela tropeçou e caiu bem em cima de mim. Sua mãe, uma bela mulata, foi buscá-la e, sem alterar demais a voz, deu-lhe uma bronca que a menina encarou corajosamente. Lembrei-me de Yago quando tinha a idade dela. Aos 5 anos e depois de uma bela briga com Gonzalo, nós dois fomos ao parque. Yago não quis brincar, sentou-se a meu lado em um banco e permaneceu olhando para mim fixamente, em silêncio. Depois de um tempo, disse:

“Nós dois podemos ser muito felizes, mamãe.”Fiquei espantada, petrificada, transformada em estátua. Ainda não tinha

pensado em uma resposta ao primeiro comentário, quando ouvi o segundo.“O papai deixa você triste, você não sorri mais.”Contive as lágrimas e o abracei.“Yago... a mamãe e o papai são muito felizes, o que acontece é que... às

vezes, nós nos irritamos um pouco. Como quando você e eu discutimos, mas nos amamos muito.”

1 Desagradável.

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Eu olhava para aquela menina e imaginava Yago naquele dia, com os olhos grandes e redondos, sentado a meu lado, tão pequeno, mas sempre me protegendo. Desejava minha felicidade a todo custo, ainda mais do que a dele. Sete anos depois da conversa, meus olhos se encheram de lágrimas enquanto eu bebia uma Coca-Cola e pensava em meu filho, que agora, aos 12 anos, não entendia nada e me culpava pelo que tinha ocorrido. A adolescência é traiçoei-ra, e por ser menino, um futuro homem, ele ficou do lado do pai.

“Não! Não pode fazer isso!”Eu não soube o que responder. Nem antes, nem agora, nem nunca. Voltar

atrás era algo que eu não podia fazer comigo. Por isso estava dentro do avião, levando o desconsolo na mala, a confusão e a culpa como companheiros.

Tudo por uma noite de insônia e desespero na qual planejei voltar a fu-mar depois de quase oito anos. Terminei com uma cuba-libre, a mesa cheia de fotos e falando ao telefone com meu amigo Pablo. Decidi que precisava viajar, que precisava me encontrar. Fazia uma semana que estava trancada em casa. Chorava, falava de Gonzalo e Yago com muita culpa, dormia, chorava de novo, não me arrumava, não queria fazer nada. Naquela noite, enquanto conversava com meu amigo e chorava sem parar vendo as fotos, na televisão passava um documentário sobre Bali.

— E ainda por cima assistindo a um documentário sobre o destino pre-ferido dos recém-casados! Você só pode estar de brincadeira...

Pablo era um apaixonado pela ilha.— Álex, por que não vai a Bali? É um paraíso e você precisa pensar e se

recuperar. Estou ficando preocupado.— Você está impossível! Aliás, aproveito para levar alguns dos meus li-

vros de “maldito desamor” ou de “cure sua mente”.— Não seria nada mau se você colocasse em prática o que escreve neles.— Você sabe que não acredito nessas bobagens. Só ganho a vida com

elas. São as bíblias dos ateus. Na verdade, nada cura a decepção, o desespero... Nada. Apenas aprendemos a viver com eles.

— Você precisa sair daí. Deixar a casa por um tempo e pensar.Pablo começou a enumerar os diversos motivos pelos quais eu tinha que

ir a Bali, enquanto eu ia derrubando cada um deles com justificativas cada vez mais fracas. Eu sabia que precisava fazer alguma coisa, mas meu corpo, minha mente e meu coração continuavam imóveis.

— Você poderia aprender a surfar. Lá é o lugar ideal.— Sim, aos 43 anos e com uma forma física de dar pena.— Por que não? Você sempre quis aprender, certo? Então, já tem um

bom motivo para ir. Decidir e aprender a surfar... Alô, Álex? Você está aí?

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Tive um ataque de riso. Fazia tempo que não ria tanto até... ficar sem fôlego e sentir vontade de fazer xixi. Para mim, aquele era o motivo mais sur-real da noite e, ao mesmo tempo, fazia cada vez mais sentido. Viajar para sur-far, me recuperar, ouvir a mim mesma, isolar-me e decidir de uma vez por to-das fechar a porta “Gonzalo e eu” ou voltar a abri-la.

— Pablo, tenho que desligar! Decidi que vou para Bali.Sem esperar pelo dia seguinte, com medo de perder a coragem e voltar

atrás, comecei a procurar passagem. Pesquisei nos sites para saber alguma coisa sobre a ilha e fiz uma lista de tudo que precisava fazer:

• Falar com Gonzalo (ele vai enlouquecer!)• Falar com Yago (não sei se ele vai me perdoar por deixá-lo)• Telefonar para o escritório e pedir férias agora mesmo!• Telefonar para o meu pai...• Banco• Mala: pouca roupa... repelente, anti-inflamatório e ibuprofeno• Passaporte em dia• O iPad... e todos os carregadores...

Feita a lista, comprei a passagem para Bali: ida em 9 de agosto e volta no dia 25 de setembro. Um mês e meio para sentir o vento no rosto e aprender a surfar. Sem ter planejado nada, essa viagem se converteria na experiência pela qual eu ansiava: aventura, risco, diversão, novos horizontes...

Eu tinha conseguido dormir sem tombar para o lado, quando Mr. Nasty pas-sou por cima de mim como uma avalanche com um simples desculpe para ir ao banheiro. Procurei na telinha do avião o mapa do trajeto já percorrido: estáva-mos voando havia apenas seis horas. Que pesadelo! Eu devia matar o Pablo e me matar. Quem pensaria em ir ao fim do mundo para aprender a surfar e parar de chorar? Uma pessoa com o coração seco e a barriga cheia de álcool deveria ser proibida de tomar decisões, porque é um atentado ao bom senso. Esperei que o botãozinho do banheiro passasse de vermelho a verde. (Na ver-dade, não é um botãozinho, mas sim uma alavanca. Dentro de um avião, há tantas coisinhas, fichinhas e cartõezinhos, que costumo chamar tudo de botão-zinho.) Descalça e esperando a minha vez, comecei a entrar em pânico diante da insensatez, da loucura por estar dentro daquele avião, cheio de casaizinhos dormindo abraçados e com meios sorrisos, amigos, jovens semiadolescentes querendo sol, ondas e aventura. Eu estava ali como um peixe fora d’água, to-

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talmente deslocada do meu hábitat. O que eu esperava encontrar em Bali? Senti o coração acelerar a ponto de perceber as pulsações. Não tinha nem mes-mo um guia turístico da ilha, nem sabia onde dormiria nem a qual região iria.

“Bali é uma ilha grande? Acredito que com meu inglês... sem problemas, certo?”

Enquanto fazia xixi (sempre um momento de grande lucidez em minha vida), eu me dei conta de que estava em meio a um caos emocional. Acabava de entrar na terceira etapa ou sequência típica de uma separação:

1. Comoção: fase de paralisia física e emocional na qual, depois de dizer “acabou!”, a pessoa é incapaz de articular uma palavra coerente e não consegue nem mesmo piscar. Segue como uma sombra de si mesma pela vida. Se puder, não tira o pijama nem toma banho durante dias; fica na cama, presa ao álcool e aos lenços de papel. A duração dessa fase varia de pessoa para pessoa. Eu passei dez dias em uma situação de semiexistência, meio morta e meio partida ao meio.

2. Negação: fase de não aceitação do ocorrido. É a fase do sim, mas não. Do “aconteceu”, mas “pode ter sido fruto de má interpretação”. Foi quando me ocorreu, como uma revelação, que eu tinha me precipitado. Peguei o telefone e liguei para o Gonzalo.

“Preciso falar com você. Podemos nos encontrar à tarde? Sim, sim, não importa, em casa.”

Eu me embonequei e me arrumei como se fosse nosso primeiro encontro. Repetia o mantra: “Você ainda o quer, ele continua sendo o homem de sua vida.” Olhei para o relógio do celular umas vinte vezes, até ele marcar seis em ponto. Sete minutos depois, escutei a chave na fechadura. Fiquei de pé e contive o ímpeto de sair correndo até ele, para não parecer desesperada. Eu o vi entrar.

“Olá.”Seco, ríspido e sem olhar para mim, bufou e jogou-se no sofá.“Pode dizer... o que está acontecendo que é tão urgente?”Fiquei calada e, em menos de um segundo, voltei ao estado de comoção

e de novo à negação, e repeti: “Quero ele, quero ele, quero ele, quero ele, quero ele, quero ele, quero ele...”

“Álex, pode me contar logo o que está acontecendo?”Olhei para ele. Estava tudo igual: barba de três dias, camisa listrada, jeans

surrado, tênis, lentes dos óculos de aros grossos cheias de marcas. Poucas coisas tinham mudado, exceto a mais importante: eu não sentia por Gonzalo o que queria, desejava e fantasiava sentir. Uma lágrima desceu solitária pelo caminho sem volta; pouco tempo depois, seguiu-se uma procissão delas.

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“Sinto muito, Gonzalo. Não sei o que aconteceu, mas aconteceu. Segui-mos caminhos diferentes.”

“Não acredito! Foi para isso que me chamou? Para voltar a falar que nos-so relacionamento já não estava bom havia muito tempo, além de cem justifi-cativas, uma mais absurda do que a outra?

“Não é fácil, sabe?”“Olha, Álex, não se faça de vítima, porque foi você quem decidiu acabar

com tudo. Não consigo entender o que está acontecendo... Acredito, sincera-mente, que você está passando por uma crise pessoal e, logo, logo, vai perceber o tamanho da besteira que fez.”

Gonzalo também estava na fase da negação. Tinha se levantado do sofá e andava de um lado para outro ao longo da mesa, levantando os braços de modo enérgico, olhando para mim e para o chão, para o chão e para mim, xingando sem parar. Tinha razão, eu tinha dito “acabou!” por instinto de so-brevivência, por não mais aguentar me sentir infeliz, sem paixão, tomada pela rotina e sem me lembrar do que era sexo. Tinha apenas 43 anos recém-feitos e não queria passar o resto da vida daquele modo. Foi assim que passei ao tercei-ro estágio.

3. Caos emocional: fase em que uma pessoa começa a aceitar que o rela-cionamento terminou e abre diante de si a lista de projeções baseadas no NÓS e no FUTURO. Desequilíbrio emocional caracterizado pela incapacidade de sustentar uma emoção por mais de meia hora: pena, raiva, alegria, euforia, ira, indiferença, relaxamento... a lista de projetos aumenta e a pessoa toma mais consciência de como o NÓS diminuiu o EU até reduzi-lo ao tamanho de uma pulga.

Era exatamente nesse estágio em que eu me encontrava dentro do avião. Tinha certeza de que os passageiros que prestavam atenção em mim deviam estar pensando que eu estava meio perturbada ou prestes a enlouquecer. Não existe uma ordem lógica para a manifestação, a intensidade e a duração de minhas emoções. Tinha perdido o controle sobre elas e me tornei um ser ins-tável e extremamente suscetível diante de qualquer coisa que ouvisse, visse, cheirasse ou comesse. Qualquer coisa podia causar em mim um acesso pseu-dopsicótico. Sinceramente, não acreditava que, naquela alienação temporária, um avião fosse o lugar mais recomendável dentro do qual permanecer presa por vinte horas.

4. Aceitação intelectual: momento no qual podemos justificar, com certo critério lógico, os motivos para o fim. Ainda que continuemos nos sentindo mal, a vida começa a tomar forma de novo. E era disso que eu precisava na via-

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gem para Bali. Dentro do avião, não tinha como saber que minha aventura na ilha se tornaria a decisão mais importante de minha vida.

O caos está para a ordem assim como a ordem está para o caos. Fruto do caos, organizei minha vida para compreender que o caos e a ordem existem para viver em harmonia.

Após lançar um comentário grosseiro à aeromoça de sorriso cínico por ter se esquecido de trazer uma Coca-Cola para mim, decidi, depois de dez horas e cinquenta minutos de viagem, que precisava me organizar e parar de me lamentar. Era uma verdade: minha vida, como eu a tinha planejado, ima-ginado e desejado, tinha ruído bem embaixo do meu nariz. Estava claro que eu tinha um filho, 43 anos e levava a vida escrevendo livros de autoajuda para pessoas de fé cega. Nada mais. O resto era uma maldita folha em branco. Que eu preencheria!

Olhei ao redor: pessoas com fones de ouvido de frente para as telinhas, sorrindo, com os olhos semicerrados. Corpos encolhidos, cobertos pela manti-nha fina que protege pouco do frio. A menininha travessa adormecida no colo da mãe, que lia um livro com atenção. Mr. Nasty jogando Tetris e, do outro lado do corredor, uma mulher de cabelos grisalhos lendo Mente sã, corpo são. Deve ter mais de 60 anos, mas é linda. Parece estar viajando sozinha como eu, mas não como eu. Mostra-se serena, virando as páginas de maneira harmônica, respirando calmamente. Tem a beleza mais cativante: a de quem se sente em paz. Talvez vá para Cingapura? Acho que não, não parece uma mulher de ne-gócios, mas talvez vá visitar o filho, que mora lá. Ela levantou a cabeça e me viu olhando para ela. Que vergonha! Sorrio para ela um pouco corada. Ela retribui o sorriso. Que simpática! É espanhola, sem dúvida, porque eu a vi em Barajas. Todos os seus movimentos são tão discretos, breves e suaves que chamam a atenção. Suas roupas são confortáveis: calça jeans comum, sandálias de couro marrom modelo pescador, camisa branca de linho e um lenço grande enrolado no pescoço. Tirou as sandálias e vestiu meias, usa óculos de descanso e um anel de prata no dedo médio da mão direita. Eu gostaria de interromper sua leitura e puxar conversa, mas não me atrevo. Quando eu me preparava para tentar dormir, brigando com minha mantinha, ouvi sua voz:

— Nunca entendi por que essas mantas são tão finas e pequenas, com o frio que faz dentro dos aviões!

Virei a cabeça para olhar e vi que ela falava comigo. Olhava para mim por cima das lentes de seus óculos, com grandes olhos cor de mel.

— Serve como passatempo a bordo: brigar com a manta e sofrer com o frio.Sorriu ao fechar o livro.

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— Eu me chamo Blanca, e você?— Álex, prazer.— Está viajando de férias a Bali?— Não exatamente... Bem, sim, talvez... Não sei... Pode...Comecei a me perder com as frases, expressões sem sentido, porque não

sabia o que dizer. A verdade? Gonzalo, rompimento, noite, bebedeira, solução--reflexão: Bali.

Sem perceber, eu desembestei a tagarelar e ela aguentou até o fim, esbo-çando um sorriso. Senti que ela me entendia, compreendia exatamente a si-tuação na qual eu me encontrava. Continuei contando como tinha sido minha vida nos últimos nove anos, sobre como tinha sido feliz, ao mesmo tempo em que sabia como tinha errado em tantas coisas. Descobri que sua vida também não tinha sido nada fácil. Casou-se muito jovem, teve dois filhos, Yolanda, de 30 anos, e Miguel, de 27, e ficou viúva aos 50. A vida lhe tirou seu grande amor, sua alma gêmea, com uma violência impressionante: um infarto fulmi-nante. E a deixou, por mais de um ano, num estado de choque do qual pensou que nunca sairia. Seis anos mais tarde, depois de compreender várias coisas e aceitar outras que não têm explicação, sente-se em paz com a vida e consigo mesma. Viaja duas vezes por ano a Bali, para ficar em contato com a natureza, fazer um retiro de ioga e conversar com Kemang, o terapeuta que deu um novo caminho à sua vida. Eu gostei de escutá-la, sua voz era uma melodia curativa, que faz as lágrimas secarem e dá otimismo. Ela não voltou a se apaixonar, mas descobriu a si mesma: a mulher. Longe da mãe, da esposa e da amante. A mu-lher que tinha permanecido durante todos aqueles anos calada, escondida e negligenciada. Ela me contou tudo isso sem censura nem culpa, mas, sim, como mais uma parte de seu aprendizado.

— Se eu tivesse compreendido a minha essência muito antes, talvez mi-nha vida tivesse sido muito mais consciente e reveladora.

Não é que pensasse não ter sido feliz, pois sabia que tinha sido. Nem que não tinha sido uma boa mãe, nem que, se tivesse se descoberto antes, não teria amado Antonio como o amou. Mas teria adquirido tons diferentes, seus tons, e isso teria resultado em uma existência muito mais rica e reveladora.

— O amor não é renúncia nem sofrimento. Não se engane. O amor é um redescobrir contínuo de nós mesmos e do outro. Nunca uma renúncia ao outro nem um poder excessivo ao eu.

Sabemos muito pouco sobre o amor e somos corajosos por entrarmos nele de cabeça. Quando levamos uma rasteira, nós o amaldiçoamos, acreditan-do que amar é algo que se aprende de primeira.

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— Amar é algo que se aprende andando e caindo 20 mil vezes. Eu decidi levar esses tombos com a mesma pessoa. Mas fazer isso com pessoas diferentes não é um fracasso maior.

Ela dizia isso, mas eu me sentia frustrada por não ter conseguido conti-nuar com Gonzalo. Sentia-me fracassada como amante e como mãe, e perdida como mulher. O que faria com 43 anos e um filho de 12?

Passamos o resto da viagem juntas, conversando e trocando experiências. Ela me falou sobre Bali e de seu primeiro contato com a ilha. Recomendou uma pousada barata em Seminyak, perto da praia, e me animou a descobrir Desa Seni, o refúgio orgânico e centro de ioga mais maravilhoso que já havia conhecido. Ficava em Ubud e era onde ela permaneceria por quinze dias. Mar-quei os dois nomes em uma caderneta e todos os bons conselhos que ela me deu: onde trocar as rupias, pechinchar sempre, discutir preços, não deixar de fazer massagens e, se pudesse, contratar um motorista todos os dias e pagar um preço fechado por passeio, aproveitar os arrozais, o entardecer e o amanhecer. Desligar-me, ficar livre, leve e solta, ser levada pela energia do lugar.

Conversou comigo e até me convenceu de que eu havia acertado na esco-lha do destino para me livrar da tristeza e do desconsolo. A Indonésia é um país que representa a manifestação da energia Dourada, aquela que nos dá a opor-tunidade de trabalhar para dissolver os aspectos não positivos do carma e a manifestação de nossos projetos mais estimados. Apesar de não acreditar em nenhuma vírgula de tudo aquilo, decidi escutá-la e acalmar minha angústia pela decisão repentina de viajar para o fim do mundo planejando nada além de aprender a surfar aos 43 anos.

Ela me contou que Bali é a energia da cor azul (não sabia que havia energia de cores diferentes) que está no vulcão Kintamani (templo Pura Be-sakih), e que é um lugar de apenas 140km de extensão e 90 de largura, proje-tado para que as pessoas se isolem e encontrem coisas exóticas e, ao mesmo tempo, que entrem em contato com seu interior. Bali significa “oferenda” e é conhecida como a Residência dos Deuses pela variedade de templos: ninguém sabe com exatidão o número de templos, mas se calcula que existam cerca de 300 mil.

— O único problema com a ilha é que, chegando lá, você não quer mais sair. Não acreditei quando li sobre isso, mas foi o que aconteceu comigo.

— Para ser sincera, uma transa com um surfista para afogar as mágoas já me bastaria.

Corei por dizer tamanha bobagem. Nós nos entreolhamos e demos boas risadas. A gargalhada é uma ótima terapia!

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Blanca fez com que eu acreditasse, por algumas horas, que havia acertado em cheio ao escolher meu destino. Uma ilha pequena, com clima bom e paisa-gens magníficas. Senti vontade de explorar e conhecer cada canto da ilha; ga-nhei força para realizar essa aventura sozinha e desfrutar o máximo dela.

Restavam apenas duas horas de viagem, e parecia que eu havia passado uma eternidade dentro do avião. O lamento mais pesaroso havia se transfor-mado em vontade de chegar, de pisar naquela terra mágica que muitos acredi-tavam ser curativa e viver a experiência ao máximo.

Finalmente, terra à vista. Estava morrendo de vontade de desaparecer de perto de Mr. Nasty e tomar um banho. Estava animada, nervosa, contente. A meni-ninha olhou para mim sorrindo. Estávamos de pé, prestes a desembarcar. “Será que minha mala vai aparecer?” Sempre que aterrisso, sinto o mesmo medo. Blanca olhava para mim com curiosidade, não havia perdido nem um pouqui-nho de sua elegância mesmo depois de quase vinte horas de voo. Eu, por outro lado, com certeza estava com uma aparência péssima. Na realidade, quase to-das as pessoas estavam assim, mas contentes por terem chegado ao destino.

Na alfândega, mostrei o passaporte, peguei alguns panfletos de excursões para vários locais, assim como de massagens e mapas incompletos da ilha, pa-guei os vinte euros de taxas e... livre! Ready for the adventure in Bali! 2

As portas se abriram e um grande grupo de pessoas nos esperava. Que umidade! Todas com cartazes ou procurando reconhecer o rosto da pessoa que haviam ido buscar. Havia bastante barulho e movimento.

— Hi, ma’am, do you want a taxi? Can I bring your baggage? 3

Fiquei constrangida ao ver tantos rostos diferentes, ao pisar em um local desconhecido. Era noite e senti um pouco de pânico. Meu Deus, eu estava sozinha! Que louca! Eu me despedi de Blanca dando-lhe um grande abraço.

— Você vai ficar bem. Esta terra acolhe as almas perdidas. Espero vê-la em Desa Seni.

Voltei a abraçá-la e meus olhos se encheram de lágrimas. Aquela mulher tinha sido meu primeiro anjo da viagem.

— Ficarei bem, com certeza. Obrigada pelos conselhos!

2 Pronta para a aventura em Bali.3 — Olá, senhora, quer um táxi? Posso levar sua bagagem?

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Quase sem conseguirmos nos despedir por causa da fila de homens e braços dispostos a conseguir clientes, Blanca desapareceu e eu me deixei levar pelo primeiro que se aproximou.

— How much to go to Villa Diana Bali?4

Olhei em meu livreto a região sobre a qual Blanca havia me falado.— It’s in Legian! In Jalan kresna.5

O homem, que não se deixou interromper nem por um momento, sorriu quando disse:

— Yes, yes, no problem, I know!6

Eu ia atrás dele, sem perceber que: levou minha mala, estou sozinha, não tenho ideia de nada e vou seguindo-o. Não! Nunca fui uma aventureira intrépi-da, e estar naquela situação, além de me desagradar, me deixava muito perdida.

— But, listen! How much to go?— Two hundred and thousand! 7

A princípio, pensei não ter entendido bem: duzentos mil? Impossível...— Sorry, how much?8

Quando repetiu o valor, eu me dei conta. Nossa! Não tinha nem uma rupia nem fazia ideia de quantas rupias eram um euro.

— Wait, wait, please! I need to find my friend! 9

Fui correndo procurar Blanca. O homem, com minha mala, me seguia, sem entender nada. Já estava achando que a tinha perdido quando a vi cami-nhando ao lado de outro carregador de malas. Expliquei a confusão, ela riu e trocou trinta euros em rupias e se despediu com mais um abraço.

— Não permita que as dificuldades a impeçam de ver o que veio apren-der aqui.

Estava no caminho. Recuperada do nervosismo do começo, eu me con-centrei na paisagem.

“Caramba, quantos carros! E andam de ré! Nas motos, vão três pessoas! Estão loucos! E sem capacete! Barracas de comida na rua! Ai! Não sei se vou conseguir comer ali. Que caos!”

4 — Quanto é para ir à Villa Diana Bali?5 — Fica em Legian! Em Jalan kresna.6 — Sim, sim, sem problema, eu conheço!7 — Mas ouça: quanto é? — Duzentos mil.8 — Desculpe, quanto?9 — Espere, espere, por favor! Preciso encontrar minha amiga!

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Muito asfalto. Não me pareceu em nada a ilha dos sonhos que Blanca havia descrito; era apenas um grande caos.

— Where are you from?— Spain.— Aahhh. Beautiful countrrry!— Yes, yes. How many minutes to arrive?— Twenty, twenty, paip.10

Percebi que no painel do carro havia uma cestinha com flores secas, balas e alguns cigarros. Imaginei que fosse uma cortesia, mas não perguntei. Não sentia muita vontade de me socializar, apesar de o homem me parecer muito simpático.

— What your name?— Álex... And yours?— Made, mi name is Made.— Nice to meet you, Made.11

Apesar de não querer falar, passei o trajeto todo conversando com Made. Tinha 34 anos e duas filhas pequenas. Falou sobre lugares que tinha que visitar: na verdade, não guardei o nome de nenhum. Perguntou se eu estava em Bali em... holidays!12 Eu não quis contar minha vida, então... disse que sim e pronto. Ele me pareceu um bom homem.

— How much do you want for around eight hours a day?13

Chegamos a um acordo e Made se transformou no motorista de minha viagem. Pelo menos, foi o que pensei.

Ele me deixou na frente do hotel Villa Diana Bali; eram sete e meia da noite. Precisava de uma ducha e de um quarto onde pudesse me acomodar durante uns dias e decidir onde passaria o resto de minhas férias. Entrei em uma espécie de cabana circular de parede de pedra e telhado de palha forte. Escadas de pedra, muito branco e madeira escura de móveis coloniais. Por fim,

10 — De onde você é? — Da Espanha. — Ah. Belo país! — Sim, sim. Quantos minutos para chegar? — Vinte, vinte, paip.11 — Como se chama? — Álex... E você? — Made, eu me chamo Made. — Prazer em conhecê-lo, Made.12 Férias!13 — Quanto quer por umas oito horas por dia?

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um balcão. Um jovem, vestido de branco e com sandálias, olhou para mim sorridente e fez um movimento de cabeça enquanto eu me aproximava dele com timidez. Retribuí o sorriso. Aqui todos sorriem!

— Do you have any room available?14

Eu me sentia inadequada falando inglês e totalmente enferrujada. Escutava todos eles falando e me parecia que falavam um dialeto. Que sorte! Havia quar-tos desocupados. Ele fez sinal para que eu o seguisse e entramos em um pequeno oásis com jardim, com uma piscina no meio cercada por espreguiçadeiras que me fez suspirar de prazer. Ao redor, uma estrutura de dois andares, com muitas por-tas organizadas por letras. Que silêncio! E o cheiro de terra molhada! Duas jovens surgiram de um dos quartos, estavam muito arrumadas e sairiam para aproveitar a noite. Paramos na frente do H. Hum... H? Não me ocorreram muitas palavras com essa letra: hambúrgueres, habilidade, heroína, hoje... Estava ansiosa para ver o quarto. Uma cama de casal com mosquiteiro, um armário de madeira branca, duas janelas. Uma mesa de escritório do mesmo tipo de madeira e um banheiro com chuveiro. Bem, não era exatamente luxuoso, mas parecia limpo e por 45 euros por noite era um verdadeiro achado. A primeira coisa que fiz foi me jogar na cama. Eu estava um pouco tonta. Eram duas da manhã, horário da Espanha, e começava a sentir o corpo pesado e a cabeça cheia. Fiquei em silêncio olhando para o mosquiteiro durante vários minutos.

“Caramba! Eu me esqueci de trazer repelente! Tenho que comprar, por-que com certeza há muitos insetos aqui.”

Depois de pensar isso, fiquei com a mente totalmente vazia por um bom tempo. Sentia minha respiração agitada, meu cérebro estava apagado. Eu me es-preguicei para sentir o corpo de novo e dei um bocejo enorme. Fazia pelo menos vinte anos que não viajava sozinha, e nunca sem preparação ou plano. Eu me dei conta, naquele momento, olhando para o mosquiteiro de um branco envelhecido (que, claro, tinha furos!), que tudo dependia de mim. Senti angústia, abri as mãos e acariciei o rosto e a cabeça até colocar o cabelo para trás. Vertigem! Estou tendo um momento de vertigem! Nó no estômago, corpo retorcido... 1, 2, 3... Choro desconsolado! Só um choro, sentido, profundo, causado pela minha mente! Uma lágrima atrás da outra, deixar que o corpo se esvazie sem julgar essa emoção e senti-la. Vinte minutos de choro, íntimo e doloroso. Depois, o vazio; a leveza.

Decidi o melhor: uma boa chuveirada, ficar linda (quando estou arrasa-da, o melhor que faço é me enfeitar e só parar quando me vir linda no espelho), sair para jantar e me preparar para o que viria.

14 — Tem quartos disponíveis?

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“No pain! 15 Nada de lamentações! Você é uma moça muito atraente e está ótima!”

Fui para a rua, não havia muita gente. O cheiro era forte, intenso. No solo, dezenas de caixinhas trançadas com folhas de palmeira com flores secas, arroz e balas. As oferendas. Para que tanta oferenda? Em toda porta, em toda esquina. Eram apenas nove da noite. Estava faminta, sem dinheiro e com von-tade de tomar um gim-tônica à saúde de todos que, por vontade própria ou pela minha própria vontade, tinham desaparecido da minha vida. Brindei a Gonzalo por ter me livrado dele. Fiz as três coisas na seguinte ordem e reparei em mais três coisas:

1. Para guardar dinheiro em Bali, precisaria de uma bolsa extragrande.2. Era possível comer superbem por vinte euros ou milhares de rupias

(ter tantas notas e falar em milhões me dava uma sensação estranha nada relaxante).

3. Havia rapazes lindos, fortes, sarados; o único inconveniente é que não passavam dos 30 anos!

Sentada diante do imenso oceano Índico, com roupas leves, descalça e com meu gim-tônica, senti-me mais relaxada pela primeira vez. O mar era de uma profundidade que eu nunca tinha visto, conseguia ver três redemoinhos, um sobre o outro e recomeçando. O barulho da água passava depressa pela orla para sussurrar segredos guardados e transformar-se em espuma para ser carre-gada. Que lugar lindo! Poucos pés descalços se deixando molhar, um casal dando beijos ao universo, corpos salgados e desconhecidos e eu: recém-chega-da, maquiada para a ocasião e entregue à exaustão.

Um jovem, de mais de um metro e noventa e pele morena, sorria para mim de uma das mesas. Fazia anos que um homem não olhava para mim fixa-mente, mostrando seu desejo. Ele tinha os cabelos desgrenhados, o olhar ansio-so e pouco mais de 25 anos. Um garotão que certamente era paquerado pelas mulheres mais maduras. A situação era muito divertida e excitante. Não retri-buí os olhares, não me prestaria a inaugurar a noite em Bali dando aulas de sexo a um adolescente.

— Hi! Are you alone?16

Que garotão esperto! Sem que eu percebesse, ele se aproximou como um raio e queria me convidar para tomar uma bebida. Quase recusei, mas, afinal,

15 — Sem problema!16 — Olá! Está sozinha?

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eu estava solteira, sozinha naquela ilha e a fim de me divertir. Talvez fosse um começo ótimo.

E fui. Estávamos bebendo gins-tônicas olhando para o mar. No fim do primeiro, eu já estava babando na frente dele: Hendrick, holandês, 26 anos, surfista desde sempre e recém-formado em telecomunicações. Com as pernas enroscadas e entregue à bebida, eu ria como uma adolescente e tinha todos os sintomas de embriaguez: olhos caídos e riso solto, tom de voz mais agudo, piscava sem parar e mordia o lábio inferior. Ele me contava de sua intenção de pegar ondas, ficar livre, leve e solto, contagiar-se com a energia da ilha e viver o máximo de experiências sexuais que conseguisse. Não tinha namorada e não pretendia se comprometer até encontrar a Mulher. “Que menino sonhador!” Na sua idade, sem ter vivido crises emocionais, continua acreditando no conto do sapo e da princesa. Com Hendrick e em Bali, decidi matar todos os prínci-pes e passar a outras espécies: aos ogros, duendes, demônios e monstros diver-sos que, sem muita expectativa, foram capazes de me fazer voar. Sentia uma espiral que percorria meu ventre até subir a meu peito; eu me senti viva com o desejo dele, com seus olhos presos em meu decote e as mãos desejosas tocando minha pele. Pagamos a bebida e caminhamos à beira do mar. Eu andava na ponta dos pés como se tivesse 15 anos e fugia dele com o pudor de uma ado-lescente; ele caminhava atrás de mim, rugindo como um leão afoito atrás da presa. Ele era alto! E lindo! E jovem! Que maravilha! Ele me segurou por trás e me rodou com as mãos enormes em minha cintura, e eu estremeci e gritei com vontade. Eu me virei e nós nos beijamos com a pressa da eternidade. Ele puxou o meu corpo para perto do dele e voltei a me agitar com a sensação boa na barriga, com ondas de desejo que me deixaram a ponto de explodir. Correu a mão por baixo de meu vestido e mordi seu lábio.

— Stop, Hendrick, not here.17

Apesar de estar no fim do mundo, não pensava em fazer nada na praia para não correr o risco de ser presa na primeira noite. Ele sorriu para mim com os lábios molhados, os cabelos revoltos e os olhos brilhantes. Afastou-se meio metro e pisou na água para se molhar. A camisa estava entreaberta, as pernas da bermuda estavam enroladas... Aproximou-se de novo tomado pelo desejo e voltou a me beijar. Senti o toque mágico que nos leva ao céu dos hormônios, o frenesi e o “sou toda sua, me pegue aqui e agora!”.

Pensei em levá-lo ao hotel, mas preferi conservar meu quarto como meu santuário. Concordamos que iríamos ao quarto dele. Pegamos um táxi e ele se

17 — Pare, Hendrick, aqui não.

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encarregou de tudo, porque eu não conseguia pensar. Não há nada de que eu mais goste do que beijar dentro dos táxis, talvez por saber que estou sendo observada pelo retrovisor. E naquele táxi, em Bali, eu me soltei totalmente e por pouco não transamos ali mesmo. Que delícia! Deixar-se levar pelo desejo sem impor limites a nada. Deixar a mente em um canto, fazendo palavras cru-zadas, enquanto eu desfrutava a intensidade do momento sem julgamento, sem moral que cause culpa.

Não lembro como foi, mas quando me dei conta estávamos na cama, aos beijos. Hendrick me mordia o corpo todo, levantava meu vestido, agarrava meus seios, tirava minha calcinha, abria minhas pernas e se aproximava com seu mem-bro grande. Ele era muito grande e muito forte, enérgico, impaciente, precipita-do... Eu me deixei levar por seus rugidos enérgicos, por sua força animal de quem precisava se saciar depressa. Naquela noite, eu me entreguei a um jovem desco-nhecido sedento de sexo, de mulheres e de vida. Ele me penetrou como um animal selvagem e gemi de prazer com cada sacudida. Meu corpo todo se excitou e suou. Fizemos sexo durante horas. Permiti que ele me lambesse, comesse e me penetrasse de todas as formas. Éramos uma fonte inesgotável de prazer, de atra-ção e de fantasias. Fiquei louca, porque não me lembrava de como era maravi-lhoso ser o objeto de desejo de alguém, de sua atenção, motivo de sua agitação, palpitação, suspiro e insônia. Eu me alimentei de Hendrick, de suas vontades inesgotáveis, de sua juventude insaciável. Eu me deixei levar até me perder em labirintos sensoriais que nunca tinha vivido. Até que a fera caiu rendida e se transformou quase em um menino, com o corpo nu, um peso morto prostrado na cama. Hendrick caiu inconsciente, como o guerreiro depois de uma árdua batalha, como o leão depois de arrancar e devorar as tripas de sua presa.

Que beleza mais grega! Michelangelo teria esculpido outro Davi se, como eu, estivesse naquela cama, contemplando o êxtase e o tormento. Eu me sentia tão rendida que aos poucos meu corpo decidiu se entregar ao repouso. Abri os olhos pela primeira vez e prestei atenção: roupa por todos os lados, latas de cerveja, sacos de batata, cinzeiros com guimbas e cadeiras forradas com tecido estampado. Tudo totalmente desarrumado, com cheiro do diverti-mento e do ócio, longe do equilíbrio da responsabilidade e do pensamento excessivo. Nada a ver comigo, distante de meu universo, mas naquela noite ganhei a vida. Eu continuava nua ao lado de Sansão adormecido, diante de seu corpo, relembrando o que havia acontecido. Loucura desejada! Experiência maravilhosa!

Hora de partir, momento de procurar as peças escondidas, jogadas pelo desejo mais fugaz pelo quarto todo. Não encontrava a calcinha. “Será possí-

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vel?” Ainda era difícil me manter de pé. Olhei por todos os lados, entre os lençóis, debaixo da cama, no chão, sobre a mesa... Nada! Será que ele a comeu, como um animal? Depois de haver me entregado a um jovem de 26 anos, re-cém-chegada a uma ilha mágica e com mais de trinta horas sem dormir, não me restava nenhum complexo em relação a andar pela rua sem calcinha.

Prestes a sair, eu me virei para observá-lo. Que lindo! Não consegui resis-tir à tentação de repetir a experiência. Peguei um papel e escrevi o necessário:

Thanks for the night... And for another sexy night...18

Hotel Villa Diana. Quarto H.Mobile (+34) 696 763 456 Álex

Fechei a porta com cuidado para não despertá-lo e fui embora sorrindo. Não fazia ideia de que horas eram e de onde estava. Meu corpo flutuava, minha mente continuava ausente. Havia pessoas na rua, caminhando à procura do sol; o grande astro estava forte, os carros buzinavam e as lojas estavam abertas e com os cartazes de desconto na porta. Eu me neguei a olhar para o relógio. Peguei o primeiro táxi, acredito que me enganou, e perdi a noção da realidade, ainda que meu corpo continuasse em movimento. Às vezes, acho que o tele-transporte existe. Não tenho nem ideia de como cheguei, mas entrei em meu quarto, cheirando a sexo e com a consciência a ponto de me abandonar em 3... 2... 1... sono profundo!

Abri um olho enquanto minha consciência ainda dormia. Senti um estranho prazer. Minhas pálpebras pesadas venceram e eu voltei a me desconectar. Pri-meiro tomei consciência da minha respiração e, depois, da minha realidade. Consegui, com esforço, mexer alguns músculos, esticá-los, estender as pernas, sentir os dedos, a cabeça, respirar, suspirar... e me dei conta: “Estou em Bali! Ontem, eu me entreguei a um garotão!”

Segurei a respiração, abri os olhos como se não quisesse abri-los, enruguei o nariz e rangi os dentes.

“Ontem transei com um quase adolescente!”, eu repetia. Muito álcool e informação para meu estado de ressaca existencial: sem planos nem expectativas.

18 Obrigada pela noite… e que venha mais uma noite sensual.

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Eu me levantei da cama, tive dificuldades para me livrar do mosquiteiro, como uma elefanta presa, e fui direto para o banho. Era imprescindível tirar aquele odor de animal e retomar o meu. Guardei o passaporte e o dinheiro no cofre, vesti um short e uma camiseta regata, peguei minha mochila, a câmera fotográfica, dinheiro e celular... e saí para viver Bali!

Depois de dez minutos de caminhada, comecei a me sentir sufocada pela umidade. Ganhei mais de dez cumprimentos com sorriso, folhetos de centros de massagens, tatuagens, salões de beleza, lojas de camisetas, pulseiras... Os carros paravam para perguntar se eu precisava de um táxi. Que trânsito! Não era uma paisagem bonita; mas, sim, bastante decadente: o cinza predominava, havia muitas motos e o cheiro era forte. Estava na região de Kuta. Hendrick ha-via me dito que a praia de Kuta era a melhor para aprender a surfar. Eu queria tomar um café e perguntar como chegar à praia. Caminhando por uma rua chamada Legian, que mais tarde descobriria se tratar de uma das principais para ir às compras, entrei em outra menor e descobri uma enorme loja de surfe. Parecia um sinal! Entrei sem qualquer pudor de pechinchar, observar e pergun-tar. O nome era DrifterSurf e eu quis entrar. Eu me sentia uma criança na loja de brinquedos. Era uma sala enorme repleta de cores, araras altas cheias de calças, maiôs e camisetas, grandes quadros de madeira com fotos em preto e branco de jovens no mar. No fundo, uma grande estante repleta de livros sobre Bali, surfe e aventuras na água. No teto e presas com quatro faixas metálicas grossas, seis pranchas de surfe com incríveis desenhos galáctico-espirituais. Eu já estava encantada com o fascínio daquele lugar mágico com alma de surfe. Minha surpresa foi descobrir que também era uma cafeteria. “Seria hora de começar a prestar mais atenção aos cartazes?” Comprei um guia de Bali, uma pulseira de corda com uma pequena prancha de surfe metálica cor-de-rosa e fui aproveitar o café e o lugar!

Sentada em um pátio coberto, em uma cadeira metálica de cor roxa, cercada por jovens de cabelos longos ruivos e com um copo nas mãos, vi o quadro que conseguiu tirar minhas dúvidas em relação à minha presença em Bali. Com letras coloridas de azul e rosa, maiúsculas e minúsculas, tive a sensação de que uma corrente elétrica passava por meu corpo ao ler as palavras:

SURFE: Acredite em si mesmo. Agarre-se à paixão pela vida. Encontre sua coragem. Escute mais do que fale, mas, quando tiver algo a ser dito, diga! Faça o que ama. Aprenda algo novo a cada dia. Inspire, seja amável e agradecido. Corra atrás de seus sonhos, mas mantenha os pés no chão.

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Dance com as ondas como se ninguém estivesse vendo. Sorria para os desconhecidos e para si mesmo. Viaje a lugares desconhecidos. Seja apai-xonado pelo que faz e se comunique com o mundo. Faça! Surfar é nosso presente. Entusiasme-se com a vida.

Assinado por um tal de Derek Doods. Nunca saberei o que esse Derek fez na vida, mas suas palavras começaram a mudar a minha.

Menos de um dia depois de chegar a Bali, decidi me abrir à vida. Afastar minhas prisões mentais e viver meu mês e meio com o verdadeiro espírito de surfista: livre!

“Espero que tenha chegado bem! Não faria mal mandar uma mensagem por WhatsApp para informar ao filho que sua mãe chegou sã e salva.”

Meu Deus! Gonzalo! Eu não havia pensado nem nele nem em Yago. Só tive tempo de chegar, transar com um surfista, encontrar uma loja de surfe e tomar um belo café com leite. “Não pensei!” Apesar de sentir culpa por não ter enviado a mensagem, controlei meus dedos e me neguei a dar corda à situação e apenas respondi a Gonzalo:

“Me desculpa! Estou bem, cheguei bem! Dê um beijo em Yago. Pretendo entrar no Skype à noite.”

Respirei profundamente até fazer passar a sensação ruim da retomada de contato com uma realidade que estava a milhares de quilômetros. Respirei profundamente. Voltei a Bali, ao café Drifter, e me concentrei em minhas aulas de surfe. Foi tudo simples: Mark, o ótimo sócio da loja, um rapaz australiano, me colocou em contato com Wayan, um amigo balinês que dava aulas particu-lares, de manhã e de tarde, na praia de Kuta. O material e todo o equipamento necessário me seriam oferecidos por ele. Só precisava me divertir e sonhar em vencer uma grande onda. Poderia começar naquela tarde.

— Thanks, Mark! See you!19

Saí dali andando nas nuvens e fui à praia. Não só via sorrisos; eu também sorria ao cumprimentar as pessoas. “Oi! Olá!...” Senti vontade de ligar para Pablo e dizer: “Obrigada por ter essas ideias tão loucas que tornam a vida tão especial!” Eu sentia que a vida me sorria pela primeira vez depois de muito tempo, que havia feito o certo, que estava colhendo os frutos de minha vida, sentindo-me livre de verdade para fazer o que queria a cada momento. Não podia imaginar que, em menos de cinco horas, passaria do êxtase ao tormento.

19 — Obrigada, Mark! Até mais!

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Kuta Beach não me impressionou pela beleza, e sim por sua imensidão. Para chegar à água tive de caminhar 200 metros, para que meu corpo pudesse ficar meio coberto. A graça não era essa, mas ver que passa a fazer parte de um enorme horizonte de água de três níveis de espuma branca que faz lembrar uma grande fonte zen. Uma barbaridade incrivelmente bela! Foi meu primeiro ba-nho, minha primeira exposição ao sol, cercada por vendedores ambulantes de alimentos, roupas, colares e pequenas peças de madeira. Vestidos com gorros e roupas coloridas, eles apareciam e desapareciam com a arte dos verdadeiros tuaregues do deserto. Duas crianças se aproximaram de minha espreguiçadeira para vender pulseiras e trazer à tona minha solidariedade. Só conseguiram uma foto e algumas palavras. Sou contra a exploração infantil em todos os seus as-pectos e, apesar de estar na praia e elas terem o rosto cheio de felicidade, não quis comprar nada. São crianças e não devem vender!

Não me sentia sozinha nem sufocada. Havia turistas, mas não aglomera-ções. O espaço vital era mais do que amplo, vasto. Muita gente jovem e poucas famílias. Se Mark, o sócio australiano, tivesse comentado que a praia de Kuta era uma das mais cheias, talvez tivesse ido às menos frequentadas, e meus pas-sos fizessem eco. Fiquei pensando enquanto esperava dar a hora da primeira aula de surfe.

Caminhei seguindo as instruções de Mark até encontrar a árvore a pou-cos metros da margem onde, sob sua copa e apoiada em uma estrutura de bambu, havia uma dúzia de pranchas de surfe de tamanhos diversos. Dois jo-vens da região tomavam conta, sentados em duas caixas de madeira, ao lado de uma antiga geladeira metálica de Coca-Cola.

— Hello! Is Wayan here? 20

Um dos dois se levantou e estendeu a mão na minha direção.— Hola! Álex? 21

Eu me sentei em uma das caixas de madeira presas na areia, disposta a ouvir os primeiros conselhos. Wayan me disse que era preciso ter muita pa-ciência e vontade para conseguir subir em uma onda. Mas prometia que, em três semanas, eu deixaria de remar sobre a prancha e passaria a gozar da liber-dade do surfista. Fechamos três aulas por semana a 15 euros por aula. Uma pechincha!

Antes de entrarmos na água, ele me pediu que escolhesse a prancha, a que seria minha companheira de viagem, com a qual eu descobriria a magia do

20 — Olá! O Wayan está?21 — Olá! Álex?

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chamamento perdido, aquele que, quando a pessoa encontra, não quer perder mais, não deixa mais de lado o mar nem o surfe. Ainda que tivesse certeza de que o surfe não se tornaria meu estilo de vida, eu descobria que aprender a surfar era muito mais do que isso, era uma filosofia com base nas leis do pró-prio mar.

Wayan não tinha mais do que 24 anos, media menos de um metro e se-tenta e não tinha um grama de gordura no corpo escultural. Ele me contou como nascem as ondas, os efeitos da maré, a importância do vento e a direção das ondas para surfar. Ele me avisou sobre os perigos das fortes correntes, sobre como identificar as áreas perigosas e lidar com elas.

Nós nos aproximamos da margem, cada um com sua prancha. Ele me ensinou a impulsionar a prancha, a me sentar nela. Digo que, por mais fácil que pareça, não consegui fazer isso no primeiro dia. Mas aprendi a me deitar nela, a colocar os pés e aprender a remar corretamente. Que delícia! Cumpri um objetivo. Eu estava no meio do oceano Índico, boiando em uma prancha e aprendendo a surfar aos 43 anos. Se conseguisse, tinha certeza de que pode-ria fazer o que quisesse. Terminei com os dedos enrugados, os lábios rachados e tomando uma Bintang (a cerveja balinesa da qual não largaria durante um mês e meio) com Wayan e seu amigo Ketuc, na praia, enquanto admirávamos o pôr do sol mais lindo que vi na vida. Um fenômeno da natureza que nos deixa sem fala, nos enche de novas energias e nos convida à vida. A fusão de cores, com o círculo central descendo como um pêndulo para se fundir com a água, me deixou imóvel, boquiaberta e com o olhar fixo no ponto de fuga descomunal. Naquele exato momento, senti o que mais de uma vez escrevi em meus livros de autoajuda sem acreditar em minhas palavras. Entendi Abraham Maslow e suas denominadas “experiências brilhantes”, os momen-tos mais sublimes da vida, quando passamos do mundano e, ainda que seja só por pouco tempo, chegamos à essência de nosso verdadeiro ser em calma e plenitude. Só a respiração tranquila nos faz sobreviver a esse estado de êxtase total. Depois do pôr do sol, eu me levantei como as outras pessoas e aplaudi, gritei e dancei. Tudo era perfeito e eu agradecia por estar vivendo aquela aven-tura. Wayan e Ketuc riam comigo. Tomei mais algumas Bintangs até cansar, sentindo muita felicidade.

Caminhava saltitando pelo asfalto das ruas de Kuta como se fosse a Do-rothy de O mágico de Oz. Eu seguia alegre para o hotel quando, sem conseguir evitar, pisei em um buraco e caí no chão. Senti um pequeno crac no tornozelo esquerdo, que ficou preso no buraco. O que percebi em seguida foi que não conseguia mexê-lo, que minha boca sangrava e eu estava num aperto.

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Vários homens se aproximaram para me ajudar. Minha perna doía muito. Só conseguia pensar que tinha acabado de arruinar minhas férias. “E agora? Onde encontro um hospital?” Enfiaram-me em um táxi, todos falando seu idio-ma ao mesmo tempo, um deles foi atrás comigo e fomos correndo ao hospital de Denpasar, a capital de Bali. O nome era Hospital Geral Sanglah e ficava atrás de uma grande rua. Ao entrar, quase perdi a razão ao ver um monte de pessoas, incluindo pacientes largados em macas pelos corredores. O motorista e o ho-mem que havia me levantado me levavam nas costas. Em seguida, aproximou-se um homem de camisa florida e uma flor branca na orelha esquerda. Disse que deveríamos ir a uma pequena sala na qual havia apenas uma cama pequena e poucas coisas mais. Eles me colocaram ali; olhavam para mim com extrema bondade e um sorriso leve que me dava serenidade. Só sabiam falar inglês. Nós nos entendemos por meio de sons guturais e pelo olhar. Havia um oratório dentro do qual se via uma oferenda aos deuses, com flores, arroz e doces. Come-cei a rezar àqueles deuses. “Por favor, que não seja nada grave, que não seja grave, por favor!”

Eu sentia muita dor. Pensei em Yago, em Gonzalo, no meu azar. Minha ca-beça reconstruía o momento da queda. O que eu havia feito para acabar no chão?

Em seguida, outro homem apareceu na sala, de corpo mais avantajado e de mais idade do que o da camisa florida. Supus que fosse o médico. Ele me cumprimentou com um meneio de cabeça, me observou e foi direto ao torno-zelo. Gritei! Quando me tocou de novo, gritei de novo.

— Don’t worry, miss! It’s not broken. You only need one week in calm and you’ll be ready again.22

“Uma semana? Em repouso, imóvel?” Comecei a chorar. Deixei-me ser dominada pelo choro, pela raiva e pela irritação. Não era possível que tivesse tanto azar. Mais uma vez, a vida se encarregava de aprontar comigo e de me arrancar do maldito conto de fadas no qual eu começava a acreditar. Chorei enquanto imobilizavam meu tornozelo; chorei quando me tiraram dali com esforço e voltaram a me colocar dentro do carro. Os dois pobres homens ti-nham o olhar triste, estavam preocupados com meu choro.

— No worry, miss, no worry23 — só diziam isso. Nada mais havia a dizer.Eles me levaram ao hotel e me ajudaram a abrir a porta. Colocaram-me

em cima da cama e se foram. Permaneci um bom tempo sem me mexer, olhan-

22 — Não se preocupe, senhorita! Só precisará de uma semana de descanso e ficará bem de novo.23 — Não se preocupe, senhorita, não se preocupe!

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do para o teto. As lágrimas rolavam em silêncio e não alteravam nem um pouco meu corpo petrificado, meu rosto inerte, incapaz de piscar. Estava, claramente, sofrendo um choque: o momento em que a mente paralisa porque não conse-gue digerir a realidade dos fatos. Prostrada naquela cama, com a perna esquer-da enfaixada até a metade e a direita marcada por um corte enorme, eu me senti muito azarada. Passei por todas as fases: me irritei com a vida, me xinguei, quis que tudo fosse um sonho, voltei a me xingar, voltei a me irritar com a vida, pensei que estava no meio de um pesadelo... permaneci bastante tempo naque-la situação inútil, mas necessária para me consolar. Eu me senti ridícula: pensei em tudo o que havia feito naquela maldita ilha e me pareceu uma atitude de adolescente. Eu havia me entupido de bebida, transado com um rapaz de vinte e poucos anos para sentir que ainda era desejada e havia também tentado sur-far. Estava tão perdida na vida que acreditava ter enlouquecido. Minha mente estava feliz porque eu havia aberto as portas para que me torturasse bastante. Não cheguei a nenhuma conclusão nem decidi qual seria meu plano diante da situação, não pensei, apenas me afundei, me fechei, até me fundir com a tris-teza, cair rendida e esperar que o sono fosse reparador.

Um som seco, violento, brusco e em sequência me despertou. Abri os olhos assustada. Mais uma vez o som sequencial e agressivo. Demorei alguns segun-dos para identificar de onde vinha. Alguém estava batendo forte na porta! Não fazia ideia de que horas eram nem de quanto tempo passei dormindo. Uma onda de pânico tomou meu corpo. Quis me levantar e vi o que tinha aconteci-do. Estava com a perna imobilizada! Eu me segurei na ponta da cama, apoiei o pé direito no chão e, de impulso, me levantei. Fui dando saltinhos até chegar à porta do quarto. Eu me apoiei na parede e respirei várias vezes para me acalmar.

“Certamente é um turista bêbado que está tentando entrar no quarto errado.”

Enquanto me detinha em meio a pensamentos para me tranquilizar, es-cutei uma voz seca, direta, forte.

— Police! Open the door, please! 24

Polícia? Ouvi a palavra “polícia”? Senti uma onda de medo que quase me fez perder o equilíbrio e cair. Não conhecia nada daquela maldita ilha, nem

24 — Polícia! Abra a porta, por favor!

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sabia como funcionava, nem que política seguiam, nem nada de nada. E a po-lícia estava batendo na porta. Minha perna tremia, eu comecei a suar.

— Open the door, please!— One moment, please!25

Pulei e passei para o outro lado da porta, para me apoiar na mesa e poder abri-la com comodidade.

Um homem vestido com calça verde, camisa marrom e cinto de fivela dourada, acompanhado de mais dois homens, um deles o rapaz da recepção, estavam a minha frente.

— Good morning, miss.26

Percebi, então, que a noite toda havia passado. Perguntei que horas eram e ele me disse que eram nove e dez da manhã. Pediu para entrar no quarto. Aos saltos, eu me sentei à beira da cama, sem deixar de olhar para os dois policiais, que caminharam com passos firmes e prestando atenção a todos os detalhes.

O mais alto e de olhar frio se apresentou. Acreditei entender que se cha-mava Mulyadi e era o investigador da Polisi Pariwasata, a divisão especial do departamento de polícia que se encarrega de prestar serviço aos turistas da ilha. Eu só havia torcido o tornozelo esquerdo, e, assim, não fazia a menor ideia de por que diabos aqueles homens estavam dentro do meu quarto, nem o que procuravam.

Ele pediu meu passaporte. Meu coração parou enquanto ele o examinava.

— Miss Alejandra Blanc Galdón?Sim, eu mesma. Ele olhou com atenção para a foto do passaporte e tam-

bém olhou para mim, que tentava fazer a mesma cara da foto. Devolveu o documento e consegui engolir a saliva. Quase caí da cama ou desmaiei quando Mulyadi pegou uma foto e me mostrou, enquanto me perguntava se eu conhe-cia a pessoa. Claro que sim! Tinha passado quase doze horas transando com ela. Era Hendrick, o surfista de vinte e poucos anos. O policial me contou que ele estava desaparecido havia mais de um dia e que no quarto do hotel tinham encontrado uma nota com meu nome e endereço. Ele me fez algumas pergun-tas na sequência e não consegui entender nenhuma. Mas... para que tudo isso?

Perguntou de onde eu o conhecia. Que relação tinha com ele. “Quando foi a última vez que o viu? Por que veio para Bali?”

25 — Abra a porta, por favor!25 — Um momento, por favor!26 — Bom dia, senhorita.

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Eu me senti em um interrogatório e como se tivesse cometido um crime, e a polícia tinha de amável o que eu tinha de tola. Fui respondendo, à medida que conseguia, às perguntas. Quanto mais explicações dava, mais pressionada me sentia. Eu não havia feito nada! O pobre rapaz deve ter bebido demais e está inconsciente em alguma praia.

“Você o convidou para jantar? Pagou as bebidas? Conheceu algum outro surfista?”

Mas, minha nossa... o que era aquilo? Eu queria dizer que, se continuasse daquele jeito, não responderia mais, mas me controlei porque não sabia como tudo aquilo podia terminar. Expliquei mais de vinte vezes que só o havia visto uma noite, que tinha acabado de chegar a Bali, que estava ali havia apenas dois dias e já havia acontecido de tudo. Que não conhecia Hendrick e nem havia deixado aquele bilhete porque nós havíamos nos relacionado e eu queria repe-tir o encontro. Não me lembrava de nada porque bebemos muito, e não fui eu que paguei as bebidas. Certamente, pela diferença de idade, me pareceu o mais correto. E não havia me relacionado com nenhum outro surfista!

Ele me disse que eles teriam de revistar o quarto. Fiquei tensa, na beirada da cama, vendo como aqueles homens, vestindo uniformes da polícia, mexiam em todas as minhas coisas. Entrei em estado de choque. Não sentia meu cor-po, meus olhos estavam arregalados, minhas mãos seguravam a beira da cama. Tiraram todas as coisas da mala, apalparam-na como se procurassem um fun-do falso, olharam dentro de todos os bolsos, bolsinhas, abriram meus livros. Desordenaram tudo e invadiram a minha intimidade até me reduzirem a nada. Um deles pediu o celular. Fiz um sinal com o dedo para a minha mochi-la e pedi que a pegassem. Sabia que, se me movesse, podia acabar caindo.

Olharam todas as fotos. Eu me senti violada e perdida. Fechei os olhos para evitar chorar e aguentar aquele momento. Era a primeira vez em minha vida que a polícia me revistava. Ao ver a atitude detalhista da busca, percebi que talvez tivesse acontecido algo grave a Hendrick. A polícia nunca conta a verdade sobre os fatos. Pelo menos, era isso o que eu tinha visto nos filmes e pude intuir pelas perguntas que o investigador havia feito. Depois de vasculhar o quarto todo, Mulyadi me deu um cartão com nome e telefone. Recomendou que eu não desaparecesse e, se mudasse de hotel, que avisasse. Claro, se Hen-drick fizesse contato comigo, eu tinha que telefonar imediatamente. Assenti com a cabeça sem poder pronunciar nenhuma palavra. Vi como os dois saíram, deixando a porta aberta e todas as minhas coisas espalhadas no chão. Aquela viagem havia se transformado em um pesadelo e eu queria ir embora. Sabia que por enquanto não poderia abandonar a ilha, o investigador havia feito uma

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anotação enquanto observava o passaporte. Certamente o número, meu nome e sobrenome. Estava fichada na polícia da Indonésia? Havia muitas informa-ções. Fechei a porta e deitei de novo na cama. Estava em choque, aterrorizada. Pensei em telefonar para Blanca a fim de pedir ajuda, para que me buscasse no hotel e cuidasse de mim. Voltei a dormir com o corpo encolhido em posição fetal.