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*20 junho/julho 2011 Realização: este valor, descontados os impostos, é 100% doado para os projetos do

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Reportagem de Capa sobre a importancia do dialogo Sorria *20 junho/julho 2011 CONVERSAR É... USAR A INTUIÇÃO, A SINCERIDADE E A PACIÊNCIA PARA OUVIR OS OUTROS E FALAR O QUE É PRECISO. Sorria é uma revista bimestral sobre felicidade, vendida a R$ 2,50 nas lojas Droga Raia de todo o Brasil. O valor, descontados os impostos, é 100% doado ao GRAAC (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer). A Editora MOL criou o modelo de negócio e responde pela produção editorial.

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Na volta pra casa, o companheiro de viagem fi cou mudo. O radinho sem bateria liberou meus ouvidos, e foi então que comecei a descobrir outros sons no vagão do trem. “É chego, não chegado!”, disse o fi lho. “Claro que não, é chegado”, retrucou a mãe. “O que eu queria mesmo era uma mulher que me deixasse fi car com a mão engordurada”, zangou o homem com a namorada. “Mas ele não é casado?”, desconfi ou uma moça. “É, mas quando a gente não conhece a esposa, não conta”, esclareceu a amiga. “Eu não acredito nisso de lagarta virar borboleta”, revelou o menino para o irmão. Que retrucou, malvado: “Então, espera até saber como se faz um ovo de galinha!”.

Capturadas aos pedaços, fora do contexto, elas soam absurdas. Mas ouvir conversas alheias, mais do que hábito de gente metida, é um exercício antropológico: ensina-nos sobre a natureza humana, estimula a imaginação, rende risadas e refl exões. Às vezes, é uma palavra dita de outro jeito, como a mulher que citou o medo de um tal “ET de

Vargínia”, ou o senhor que confi denciou: “Quando bebo, sinto dor no fi go”. Adoro também um mistério repentino. “Você ouviu a última declaração do Cachaça?”, pesquei outro dia, e lá fui eu criar uma história imensa na cabeça sobre a fi gura. Bom mesmo é quando o improvável toma a gente no meio da rua. “O cara não tem certeza, mas dá pra saber que aquela Capitu é uma safada só pelo olhar!”, escutei de um adolescente revoltado. Que belo resumo de Machado de Assis! E, mesmo na falta de conversa, sempre se pode tentar a leitura labial, ou até a livre interpretação de uma língua desconhecida. Vendo um casal de surdos-mudos conversar outro dia, os gestos me deram a impressão de um papo assim. Ele: “Sim, separou. Não tá sabendo?”. Ela: “É, e foi com uma faca bem afi ada”.

E pensar que essa arte de ouvir anda ameaçada pelos fones de ouvido e celulares. Pois, quando a bateria acaba, a gente descobre que é destapando as orelhas que ouve o que interessa: a vida dos outros encontrando a nossa.

Conversa afiadatexto K a r i n a S é r g i o G o m e s foto F r a n k i e F r e i t a s

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Na volta pra casa, o companheiro de viagem fi cou mudo. O radinho sem bateria liberou meus ouvidos, e foi então que comecei a descobrir outros sons no vagão do trem. “É chego, não chegado!”, disse o fi lho. “Claro que não, é chegado”, retrucou a mãe. “O que eu queria mesmo era uma mulher que me deixasse fi car com a mão engordurada”, zangou o homem com a namorada. “Mas ele não é casado?”, desconfi ou uma moça. “É, mas quando a gente não conhece a esposa, não conta”, esclareceu a amiga. “Eu não acredito nisso de lagarta virar borboleta”, revelou o menino para o irmão. Que retrucou, malvado: “Então, espera até saber como se faz um ovo de galinha!”.

Capturadas aos pedaços, fora do contexto, elas soam absurdas. Mas ouvir conversas alheias, mais do que hábito de gente metida, é um exercício antropológico: ensina-nos sobre a natureza humana, estimula a imaginação, rende risadas e refl exões. Às vezes, é uma palavra dita de outro jeito, como a mulher que citou o medo de um tal “ET de

Vargínia”, ou o senhor que confi denciou: “Quando bebo, sinto dor no fi go”. Adoro também um mistério repentino. “Você ouviu a última declaração do Cachaça?”, pesquei outro dia, e lá fui eu criar uma história imensa na cabeça sobre a fi gura. Bom mesmo é quando o improvável toma a gente no meio da rua. “O cara não tem certeza, mas dá pra saber que aquela Capitu é uma safada só pelo olhar!”, escutei de um adolescente revoltado. Que belo resumo de Machado de Assis! E, mesmo na falta de conversa, sempre se pode tentar a leitura labial, ou até a livre interpretação de uma língua desconhecida. Vendo um casal de surdos-mudos conversar outro dia, os gestos me deram a impressão de um papo assim. Ele: “Sim, separou. Não tá sabendo?”. Ela: “É, e foi com uma faca bem afi ada”.

E pensar que essa arte de ouvir anda ameaçada pelos fones de ouvido e celulares. Pois, quando a bateria acaba, a gente descobre que é destapando as orelhas que ouve o que interessa: a vida dos outros encontrando a nossa.

Conversa afiadatexto K a r i n a S é r g i o G o m e s foto F r a n k i e F r e i t a s

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CONVERSAR É... USAR A INTUIÇÃO,

A SINCERIDADE E A PACIÊNCIA PARA

OUVIR OS OUTROS E FALAR O QUE É

PRECISO, COMO FAZ A SÍNDICA REJANE

(À DIREITA) COM SEUS VIZINHOS

valores que mudam a vida

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duto que você está passando no aparta-mento logo pela manhã.

– Mas, Rejane, eu não passo nenhum produto... Só passo perfume, em mim, quando saio para o trabalho.

– Ah, desculpa. Mas, então, será que você pode passar só um pouquinho antes de sair? Aí você não incomoda ninguém.

Caso esclarecido, Rejane volta a ba-ter na porta da vizinha queixosa:

– O que você está sentindo é o perfu-me que ela passa para ir trabalhar, mas já conversamos e fi cou tudo bem.

Depois disso, a reclamação chegou ao fi m. Simples assim. Uma não sabia que aborrecia a outra e, não fosse pela conversa, o problema poderia terminar em confusão. “Gosto de tentar solucio-nar as questões na base do diálogo. Para isso, não precisamos mais do que o ins-tinto e um pouco de paciência”, diz a sín-dica, que desde que assumiu o cargo vem sendo reeleita a cada dois anos. “Ouvir os lados e tentar negociar é o segredo. Às ve-zes, a coisa vira um tumulto por simples falta de comunicação”, atesta.

Com suas palavras, a síndica já resol-veu o sumiço misterioso de capachos de um andar, regulou o som das festas e do namoro de casais empolgados, resolveu fofocas e má vontade entre vizinhos. Para que todos convivam em harmonia, ela

– O VIZINHO está fazendo barulho!– O capacho da minha porta sumiu!– O cheiro que vem da casa da vizi-

nha me dá dor de cabeça!Manhã, tarde, noite. Não tem hora

para os problemas surgirem. Mas a síndi-ca Rejane Albuquerque, 54 anos, conse-gue fazer com que os moradores dos 164 apartamentos de um edifício na Zona Norte de São Paulo vivam em paz. Como? “Conversando”, diz a ex-tenente da Aero-náutica, gestora do prédio há 18 anos.

E ela é tão boa de papo que, em todo esse tempo e com toda essa gente, só três casos chegaram ao extremo: receberam uma única multa e os problemas acaba-ram. É que, ali, o diálogo começa logo na chegada dos novos moradores. Rejane os recebe com um sorriso e faz uma “reu-nião de integração”. Apresenta as nor-mas, os procedimentos e os valores que os vizinhos respeitam e responde a dúvi-das. Depois das boas-vindas, coloca-se à disposição para as difi culdades eventuais. Normalmente, trabalha como mediadora das questões entre os corredores:

– Rejane, a vizinha da frente está pas-sando algum produto na porta e o perfu-me me dá dor de cabeça – reclama uma senhora. E lá vai a síndica gentilmente bater na porta da suspeita:

– Reclamaram do cheiro de um pro-

vai aparando arestas, mostrando o pon-to de vista das outras pessoas e pedindo a compreensão dos envolvidos. Com o di-álogo, faz com que os moradores ao seu redor enxerguem que estão juntos e pre-cisam se entender. Para ela, a vitória vai ser seus serviços se tornarem obsoletos. “Se as pessoas usassem o diálogo para re-solver seus pequenos confl itos, talvez não precisassem de um síndico.”

De ouvidos bem abertos E, com conversa, provavelmente suas re-lações sociais também seriam mais for-tes. Afi nal, ninguém vive sozinho – e o di-álogo é o que cria o vínculo entre as pes-soas. “Da conversação surgem todas as nossas relações sociais, da família às de-cisões políticas, passando pela amizade e pelo amor”, afi rma a fi lósofa Márcia Tibu-ri. Falar com os outros é uma das maiores e mais importantes dimensões da vida, a cola que nos liga aos outros, cimentan-do os laços e nos fazendo crescer. Conver-sando, fundamos a sociedade, criamos a cultura, elegemos representantes. É esse ato que faz com que, além de pensar sozi-nhos, possamos pensar juntos.

O embate entre pontos de vista é um dos fundamentos do saber. Quando o pensamento de um encontra o pensa-mento do outro, nasce o conhecimento

Ultrapassar a barreira do silêncio e trocar palavras com outras

pessoas faz surgir relações, famílias, a política, o amor e a paz.

Para chegar lá, é necessário conjugar um único verbo: conversar

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– e a fi losofi a. Em longos diálogos, o fi -lósofo grego Sócrates (469-399 a.C.) fa-lava a seus alunos sobre virtudes, políti-ca, amor. Com um método de pergun-tas e respostas, eles chegavam, juntos, às conclusões. A premissa, válida ain-da hoje, era simples: ideias prontas são mais pobres. Compartilhar o que pensa-mos e ouvir o outro nos coloca em dúvi-da, propõe questões nas quais não havía-mos pensado e até muda nosso ponto de vista. Nesse processo, nossas teorias, so-luções, ideias e valores vão fi cando mais ricos, mais completos, mais complexos.

Mas, para estar atento a tanta novi-dade, os ouvidos devem estar bem aber-tos. Fechar-se ao que o outro tem a dizer costuma acabar em catástrofe. “É a fal-ta de diálogo que nos leva às guerras e ao autoritarismo”, diz Márcia. Conversar é tão bom e poderoso que ditaduras sem-pre estabelecem o silêncio como norma. Nos campos de concentração da Alema-nha nazista, por exemplo, prisioneiros que falavam a mesma língua eram sepa-rados: o Exército sabia que, pelo fi o da palavra, as pessoas se aproximam e têm força para fazer emergir algo novo. Mas não é preciso ir tão longe nem ser tão drástico. A falta de diálogo leva não só a batalhas mundiais: é ela que está por trás de muitos pequenos confl itos que impe-dem a vida em harmonia.

Questão de valores– Qual é a sua opinião sobre mim? – per-guntou Vítor, 32 anos.

– Eu acho você um arrogante – res-pondeu Wagner, 51 anos.

Não começou nada bem a conver-sa profi ssional mais complicada da vida do gerente de produção Vítor Takenaka. E ela só aconteceu porque a empresa em que ele trabalhava veio com um ultimato: ou ele se acertava com Wagner Amado, mais velho e de uma área subordinada a sua, ou seu emprego estaria em apuros.

Vítor começou a trabalhar com loca-ção de impressoras como estagiário, aos 18 anos. Em menos de cinco anos, ga-nhou um cargo de chefi a, gerenciando os novos projetos que vinham da área em

CONVERSAR É... BAIXAR A GUARDA, TER HUMILDADE PARA RECONHECER A IMPORTÂNCIA DO OUTRO E MUDAR DE IDEIA QUANDO FOR PRECISO, COMO FIZERAM OS EX-RIVAIS VÍTOR E WAGNER

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– e a fi losofi a. Em longos diálogos, o fi -lósofo grego Sócrates (469-399 a.C.) fa-lava a seus alunos sobre virtudes, políti-ca, amor. Com um método de pergun-tas e respostas, eles chegavam, juntos, às conclusões. A premissa, válida ain-da hoje, era simples: ideias prontas são mais pobres. Compartilhar o que pensa-mos e ouvir o outro nos coloca em dúvi-da, propõe questões nas quais não havía-mos pensado e até muda nosso ponto de vista. Nesse processo, nossas teorias, so-luções, ideias e valores vão fi cando mais ricos, mais completos, mais complexos.

Mas, para estar atento a tanta novi-dade, os ouvidos devem estar bem aber-tos. Fechar-se ao que o outro tem a dizer costuma acabar em catástrofe. “É a fal-ta de diálogo que nos leva às guerras e ao autoritarismo”, diz Márcia. Conversar é tão bom e poderoso que ditaduras sem-pre estabelecem o silêncio como norma. Nos campos de concentração da Alema-nha nazista, por exemplo, prisioneiros que falavam a mesma língua eram sepa-rados: o Exército sabia que, pelo fi o da palavra, as pessoas se aproximam e têm força para fazer emergir algo novo. Mas não é preciso ir tão longe nem ser tão drástico. A falta de diálogo leva não só a batalhas mundiais: é ela que está por trás de muitos pequenos confl itos que impe-dem a vida em harmonia.

Questão de valores– Qual é a sua opinião sobre mim? – per-guntou Vítor, 32 anos.

– Eu acho você um arrogante – res-pondeu Wagner, 51 anos.

Não começou nada bem a conver-sa profi ssional mais complicada da vida do gerente de produção Vítor Takenaka. E ela só aconteceu porque a empresa em que ele trabalhava veio com um ultimato: ou ele se acertava com Wagner Amado, mais velho e de uma área subordinada a sua, ou seu emprego estaria em apuros.

Vítor começou a trabalhar com loca-ção de impressoras como estagiário, aos 18 anos. Em menos de cinco anos, ga-nhou um cargo de chefi a, gerenciando os novos projetos que vinham da área em

CONVERSAR É... BAIXAR A GUARDA, TER HUMILDADE PARA RECONHECER A IMPORTÂNCIA DO OUTRO E MUDAR DE IDEIA QUANDO FOR PRECISO, COMO FIZERAM OS EX-RIVAIS VÍTOR E WAGNER

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que o vendedor Wagner trabalhava. Os mais velhos, de idade e de empresa, tor-ciam o nariz ao ver Vítor em um cargo tão alto. E, para conseguir respeito, o ga-roto fazia linha dura. Toda vez que Wag-ner mandava um projeto para aprovação, bastava uma vírgula fora do lugar para que Vítor o vetasse – e deixasse o colega fulo da vida, impedido de trabalhar.

“Para mim, ele tinha de se inteirar das novas tecnologias, saber direitinho para que cada equipamento servia”, con-ta Vítor. “Mas não me preocupava em en-siná-lo. Simplesmente dizia não”, admi-te. Para complicar, Wagner não queria sa-ber de se submeter a um chefe que tinha, de vida, o tempo que ele próprio acumu-lava de experiência na área. “Eu me sen-tia rebaixado obedecendo a alguém com idade para ser meu fi lho”, diz Wagner. E aí, é claro, os dois não se falavam.

Quando fi nalmente foram obrigados pela empresa a trocar palavras, elas co-meçaram com rispidez. Mas terminaram com a conclusão de que ambos precisa-vam baixar a guarda – até porque os dois estavam no mesmo barco, e seriam de-mitidos se não se acertassem. No mesmo dia, o jovem procurou a mãe para saber o que ela achava disso tudo. Para seu es-panto, ela concordou com o rival.

“Percebi que precisava ser mais hu-milde. Eu não podia exigir conhecimen-tos que as pessoas não tinham. Então, passei a dar treinamentos sobre as má-quinas, e todo mundo aprendeu”, con-ta Vítor, que com isso melhorou sua rela-ção com a equipe inteira. Wagner, por sua vez, notou que o chefe tinha razão, e ele precisava se reciclar para se sair melhor. “Não bastava a minha experiência para exercer o trabalho. Precisava me inte-ressar, por exemplo, pelas novidades de cada equipamento que vendo”, diz.

A arte da pazVítor e Wagner mantiveram o empre-go. Hoje almoçam juntos, aprendem um

com o outro e se consideram amigos. Mas talvez o maior benefício tenha sido descobrir que podem ser fl exíveis e que não perdem nada em conhecer as pes-soas com quem dividem sua jornada. Ao contrário, a conversa torna-os mais ge-nerosos e compreensivos. “Quando con-versamos, tomamos consciência dos sen-timentos que provocamos nas outras pessoas e descobrimos como nosso com-portamento interfere em outras vidas”, diz Cecília Andrade, psicóloga e professo-ra da Fundação Instituto de Administra-ção da Universidade de São Paulo.

Para que as pessoas se entendam de fato, entretanto, é importante existir em-patia. Essa característica profundamente humana nos torna capazes de reconhe-cer e compreender o estado de espírito do outro e de sua situação, colocando-nos no lugar dele. É uma experiência re-veladora, que possibilita enxergar o mun-do de um prisma menos egoísta e facilita qualquer negociação. “Falar melhora as relações porque permite que um conhe-ça o outro e se estabeleça a confi ança. Só assim achamos caminhos para enfrentar os problemas”, diz Cecília.

Quando isso é mais difícil que o ima-ginado, uma terceira pessoa pode entrar no jogo e guiar a rota. “O mediador ten-ta facilitar a conversa. E o processo vira um ‘ganha-ganha’”, diz Helena Mandel-baum, advogada e autora do livro Me-diação no Judiciário. A ideia, adotada em muitos tribunais, é simples: enquanto o confl ito existir e as pessoas fi ncarem o pé em sua posição, ambos os lados estão perdendo. Ao resolver a história – ainda que para isso seja necessário chegar a um meio-termo –, as duas partes ganham.

Tem funcionado. Nos fóruns em que há um Tribunal de Mediação, os proces-sos civis mais simples, como separações, brigas de vizinhos e problemas trabalhis-tas, podem ser resolvidos com a ajuda de um mediador. Em média, três encontros bastam para que as duas partes cheguem

Para que as pessoas se entendam de fato, tem de existir empatia. É ela que nos torna capazes de reconhecer o estado de espírito do outro e nos colocar no lugar dele

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a um acordo, evitando o desgaste, a bu-rocracia, os custos e a vagareza dos pro-cessos tradicionais. Na presença de uma terceira pessoa, imparcial, para orientar a conversa, os antagonistas se desarmam, discutem posturas, decidem como convi-ver. E o bate-papo diplomático ensina aos dois lados o valor da tolerância.

Lição de casa– Meu fi lho, você não gosta de mulher? – perguntou a mãe.

– Não, não gosto. Foi assim, sem rodeios, que a escrito-

ra Edith Modesto, 72 anos, descobriu que o caçula, Marcello, 41 anos, era homos-sexual. Marcello, na época com 20 anos, já planejava contar à mãe sua condição sexual, mas não sabia como. O que ele não esperava era ser pego de supetão en-quanto saía de casa numa manhã.

Edith estranhava o fato de o fi lho nunca ter apresentado uma namorada à família. Mãe de sete fi lhos, uma menina no meio de seis garotos, ela fazia planos para que Marcello se casasse e lhe desse netos. Fez a pergunta na brincadeira, mas fi cou chocada com a resposta a sério. Quando voltou para casa, o garoto tentou engatar uma conversa: “Mãe, existem vá-rios tipos de cisnes, os negros e os bran-cos...”. A metáfora deixou Edith irritadís-sima. Ficaram dias sem se falar.

Na cabeça da mãe, várias ideias co-meçaram a se misturar. Achou que pode-ria ser uma confusão do fi lho, um proble-ma psicológico, um erro seu. E começou a se culpar. A convivência familiar trans-formou-se em uma batalha diária. Mar-cello, tão apavorado quanto a mãe, quis fazer terapia para saber se poderia ser he-terossexual. Dois meses depois, já não aguentando manter o segredo, Edith con-tou ao marido o que havia descoberto. Es-pantado, mas bem mais calmo, ele ten-tou contemporizar: “É nosso fi lho, deve-mos aceitá-lo como ele é”.

Edith tentou seguir o conselho, o que lhe custou meses de briga íntima. Mãe e fi lho levaram dois anos de muito diálogo para voltar a ser amigos. Enquanto isso, ela decidiu buscar ajuda na internet. Era

o início dos anos 1990 e, de sua casa em São Paulo, a escritora encontrou um fó-rum on-line de jovens gays, onde eles di-vidiam dúvidas e experiências. Por dois meses, Edith fi cou só lendo a troca de mensagens, até decidir escrever um co-mentário pedindo ajuda. “Disse que tinha um fi lho como eles e não sabia como li-dar com a situação”, conta.

Por meses, Edith e os jovens no fó-rum trocaram mensagens. Até que, um dia, encontraram-se pessoalmente, e de-pois foi a vez de conhecer as mães de três deles. Os papos trouxeram tanto alen-to que a escritora passou a receber es-sas mães em casa uma ou duas vezes por semana, para desabafar e se ajudar. Em 1997, as reuniões viraram o Grupo de Pais de Homossexuais, uma associa-ção que ajuda famílias a entender me-lhor a orientação sexual dos seus fi lhos e hoje atende cerca de 500 pessoas. “Nes-sas horas, temos a impressão de que esta-mos sozinhos no mundo. Mas todos têm medo do desconhecido”, diz Edith.

Foi esse temor que levou Suerda Re-der, de 42 anos, a procurar o grupo de Edith. Com um fi lho de 16 anos na épo-ca, Vítor, que havia feito a revelação, sua vida familiar estava em frangalhos: o ma-rido internou-se com uma crise de diabe-tes provocada pelo estresse da novidade, o fi lho mais velho tentou agredir o namo-rado do mais novo, e a mãe tentava en-tender o porquê de tudo aquilo. “Eu ti-nha medo de perder o meu fi lho, porque a convivência estava cada vez menor”, diz. Com a ajuda das conversas com ou-tros pais, as coisas se acalmaram. Hoje, a convivência, temperada pela diferença, ganhou novos contornos.

Além de formar a associação, a lon-ga caminhada de Edith para compreen-der o fi lho virou estudo. Em 2006, ela lan-çou o livro Vidas em Arco-Íris (Record), es-crito com base em 89 depoimentos de pessoas que gostam de outras do mesmo sexo. É sua tentativa de dialogar com o que aconteceu em sua vida e estender a conversa a quem quiser entrar. “É muito difícil ser diferente, e só dialogando con-seguimos entender”, explica.

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Abertos para o novoAfi nal, é dialogando que os limites, as opi-niões e as crenças aparecem claramente. E é só assim, com a alma nua e humil-dade sufi ciente para enxergar a postura alheia – e lhe dar valor –, que a negocia-ção se torna possível. Prestar atenção ao que sentimos e aos sentimentos do outro é transformador. “Ao ouvir, você também se percebe, e isso pode gerar uma mu-dança de consciência. Você integra, em si, uma nova visão”, diz Lamara Bassolli, psicóloga da Escola do Diálogo, institui-ção paulistana que oferece cursos e ofi ci-nas que favorecem a troca de ideias.

E essas somas e mudanças são óti-mas. Se todos pensassem da mesma for-ma, não existiriam confl itos – nem criati-vidade, inventividade nem nenhum tipo de aprendizado. Com a diferença, o ser humano cresce e abre as portas para o novo. Tendo contato com novas ideias e outros modos de viver, as próprias opini-ões são avaliadas e os valores, questiona-dos e repensados. “O diálogo nos ensina a compartilhar experiências e ajuda a sa-ber até onde podemos ir”, afi rma Lama-ra. “Ampliamos nossa percepção e nos dispomos a resolver impasses. Dividindo, encontramos outro ponto de vista e per-cebemos o que não está muito claro.”

É com a ajuda das palavras que va-mos moldando os sentimentos e desco-brindo encruzilhadas sombrias e pon-tos obscuros em nosso próprio pensa-mento. Com o outro, descobrimos qual o momento de dar o braço a torcer e vol-tar atrás. Ou de ir um passo à frente e ar-gumentar para defender uma ideia que julgamos correta. “Dialogando, cresce-mos e podemos aumentar a possibilida-de do consentimento”, refl ete Lamara. O que não quer dizer que todo mundo vá concordar com tudo. O consenso não é a igualdade de preferências, mas o respei-to à diversidade que compõe cada ser hu-mano que cruza o nosso caminho. Quan-do falta esse diálogo aberto, é como se houvesse um muro entre nós. E é só pela conversa franca que os sólidos tijolos da incompreensão desabam e as pessoas fi -nalmente se encontram.

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CONVERSAR É... ACEITAR QUE TALVEZ A GENTE NUNCA CONCORDE. MAS PODE ENTENDER E RESPEITAR. COMO FIZERAM VÍTOR E SUERDA, SEGUINDO O EXEMPLO DE EDITH E MARCELLO (DA ESQ. PARA DIR.)

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a um acordo, evitando o desgaste, a bu-rocracia, os custos e a vagareza dos pro-cessos tradicionais. Na presença de uma terceira pessoa, imparcial, para orientar a conversa, os antagonistas se desarmam, discutem posturas, decidem como convi-ver. E o bate-papo diplomático ensina aos dois lados o valor da tolerância.

Lição de casa– Meu fi lho, você não gosta de mulher? – perguntou a mãe.

– Não, não gosto. Foi assim, sem rodeios, que a escrito-

ra Edith Modesto, 72 anos, descobriu que o caçula, Marcello, 41 anos, era homos-sexual. Marcello, na época com 20 anos, já planejava contar à mãe sua condição sexual, mas não sabia como. O que ele não esperava era ser pego de supetão en-quanto saía de casa numa manhã.

Edith estranhava o fato de o fi lho nunca ter apresentado uma namorada à família. Mãe de sete fi lhos, uma menina no meio de seis garotos, ela fazia planos para que Marcello se casasse e lhe desse netos. Fez a pergunta na brincadeira, mas fi cou chocada com a resposta a sério. Quando voltou para casa, o garoto tentou engatar uma conversa: “Mãe, existem vá-rios tipos de cisnes, os negros e os bran-cos...”. A metáfora deixou Edith irritadís-sima. Ficaram dias sem se falar.

Na cabeça da mãe, várias ideias co-meçaram a se misturar. Achou que pode-ria ser uma confusão do fi lho, um proble-ma psicológico, um erro seu. E começou a se culpar. A convivência familiar trans-formou-se em uma batalha diária. Mar-cello, tão apavorado quanto a mãe, quis fazer terapia para saber se poderia ser he-terossexual. Dois meses depois, já não aguentando manter o segredo, Edith con-tou ao marido o que havia descoberto. Es-pantado, mas bem mais calmo, ele ten-tou contemporizar: “É nosso fi lho, deve-mos aceitá-lo como ele é”.

Edith tentou seguir o conselho, o que lhe custou meses de briga íntima. Mãe e fi lho levaram dois anos de muito diálogo para voltar a ser amigos. Enquanto isso, ela decidiu buscar ajuda na internet. Era

o início dos anos 1990 e, de sua casa em São Paulo, a escritora encontrou um fó-rum on-line de jovens gays, onde eles di-vidiam dúvidas e experiências. Por dois meses, Edith fi cou só lendo a troca de mensagens, até decidir escrever um co-mentário pedindo ajuda. “Disse que tinha um fi lho como eles e não sabia como li-dar com a situação”, conta.

Por meses, Edith e os jovens no fó-rum trocaram mensagens. Até que, um dia, encontraram-se pessoalmente, e de-pois foi a vez de conhecer as mães de três deles. Os papos trouxeram tanto alen-to que a escritora passou a receber es-sas mães em casa uma ou duas vezes por semana, para desabafar e se ajudar. Em 1997, as reuniões viraram o Grupo de Pais de Homossexuais, uma associa-ção que ajuda famílias a entender me-lhor a orientação sexual dos seus fi lhos e hoje atende cerca de 500 pessoas. “Nes-sas horas, temos a impressão de que esta-mos sozinhos no mundo. Mas todos têm medo do desconhecido”, diz Edith.

Foi esse temor que levou Suerda Re-der, de 42 anos, a procurar o grupo de Edith. Com um fi lho de 16 anos na épo-ca, Vítor, que havia feito a revelação, sua vida familiar estava em frangalhos: o ma-rido internou-se com uma crise de diabe-tes provocada pelo estresse da novidade, o fi lho mais velho tentou agredir o namo-rado do mais novo, e a mãe tentava en-tender o porquê de tudo aquilo. “Eu ti-nha medo de perder o meu fi lho, porque a convivência estava cada vez menor”, diz. Com a ajuda das conversas com ou-tros pais, as coisas se acalmaram. Hoje, a convivência, temperada pela diferença, ganhou novos contornos.

Além de formar a associação, a lon-ga caminhada de Edith para compreen-der o fi lho virou estudo. Em 2006, ela lan-çou o livro Vidas em Arco-Íris (Record), es-crito com base em 89 depoimentos de pessoas que gostam de outras do mesmo sexo. É sua tentativa de dialogar com o que aconteceu em sua vida e estender a conversa a quem quiser entrar. “É muito difícil ser diferente, e só dialogando con-seguimos entender”, explica.

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Abertos para o novoAfi nal, é dialogando que os limites, as opi-niões e as crenças aparecem claramente. E é só assim, com a alma nua e humil-dade sufi ciente para enxergar a postura alheia – e lhe dar valor –, que a negocia-ção se torna possível. Prestar atenção ao que sentimos e aos sentimentos do outro é transformador. “Ao ouvir, você também se percebe, e isso pode gerar uma mu-dança de consciência. Você integra, em si, uma nova visão”, diz Lamara Bassolli, psicóloga da Escola do Diálogo, institui-ção paulistana que oferece cursos e ofi ci-nas que favorecem a troca de ideias.

E essas somas e mudanças são óti-mas. Se todos pensassem da mesma for-ma, não existiriam confl itos – nem criati-vidade, inventividade nem nenhum tipo de aprendizado. Com a diferença, o ser humano cresce e abre as portas para o novo. Tendo contato com novas ideias e outros modos de viver, as próprias opini-ões são avaliadas e os valores, questiona-dos e repensados. “O diálogo nos ensina a compartilhar experiências e ajuda a sa-ber até onde podemos ir”, afi rma Lama-ra. “Ampliamos nossa percepção e nos dispomos a resolver impasses. Dividindo, encontramos outro ponto de vista e per-cebemos o que não está muito claro.”

É com a ajuda das palavras que va-mos moldando os sentimentos e desco-brindo encruzilhadas sombrias e pon-tos obscuros em nosso próprio pensa-mento. Com o outro, descobrimos qual o momento de dar o braço a torcer e vol-tar atrás. Ou de ir um passo à frente e ar-gumentar para defender uma ideia que julgamos correta. “Dialogando, cresce-mos e podemos aumentar a possibilida-de do consentimento”, refl ete Lamara. O que não quer dizer que todo mundo vá concordar com tudo. O consenso não é a igualdade de preferências, mas o respei-to à diversidade que compõe cada ser hu-mano que cruza o nosso caminho. Quan-do falta esse diálogo aberto, é como se houvesse um muro entre nós. E é só pela conversa franca que os sólidos tijolos da incompreensão desabam e as pessoas fi -nalmente se encontram.

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CONVERSAR É... ACEITAR QUE TALVEZ A GENTE NUNCA CONCORDE. MAS PODE ENTENDER E RESPEITAR. COMO FIZERAM VÍTOR E SUERDA, SEGUINDO O EXEMPLO DE EDITH E MARCELLO (DA ESQ. PARA DIR.)

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