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 49 “CONVERSAS DE COZINHA”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOCIABILIDADE FEMININA NUM CONJUNTO HABITACIONAL DA ZONA SUL DO RIO DE JANEIRO SORAYA SILVEIRA SIMÕES 1 1 INTRODUÇÃO 2 Uma emoção é sempre uma “aventura coletiva”. Esse entendimento, funda- mentalmente pragmático, é a base do argumento deste capítulo. Não há emoção capaz de mobilizar pessoas, seja em ações individuais ou coletivas, senão aquelas ressonantes. Do contrário, diz-se logo tratar-se de louco, profeta ou visionário aque- le que sente, lembra e se mobiliza sozinho, desimpedido de qualquer comoção. A emoção deve, assim, ser formada, esclarecida, definida, canalizada, situada para ser compartilhada, compreendida. Para isso, há procedimentos. E o próprio conceito de “sociedade” pode e deve, aqui, ser interpretado como sendo o seu conjunto. Além de um repertório de procedimentos de formação e socialização, uma sociedade também se revela a partir de um acervo de lembranças, de uma memória coletiva que se cultua e cultiva através da arte narrativa. Esta, por sua vez, exige um público que saiba ouvir para captar os seus mais variados tempos e movimentos. E é precisamente este público, com o seu saber e as circunstâncias de sua formação, o objeto de nossa atenção. Pois quem conta uma história o faz para um ouvinte quali- ficado do qual se espera entender as razões do narrador. Histórias, afinal, mobilizam as pessoas, lembra o jurista Wilhelm Schapp em seu estudo sobre as narrativas. “E uma história bem contada, isto é, que te nha captu-

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Soraya Silveira Simões - Conversas de Cozinha. Considerações sobre a Sociabilidade Feminina num Conjunto Habitacional da Zona Sul do Rio de Janeiro

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  • 49

    CONVERSAS DE COZINHA:CONSIDERAES SOBRE A SOCIABILIDADE FEMININA

    NUM CONJUNTO HABITACIONAL DA ZONA SUL DO

    RIO DE JANEIRO

    SORAYA SILVEIRA SIMES1

    1 INTRODUO2

    Uma emoo sempre uma aventura coletiva. Esse entendimento, funda-

    mentalmente pragmtico, a base do argumento deste captulo. No h emoo

    capaz de mobilizar pessoas, seja em aes individuais ou coletivas, seno aquelas

    ressonantes. Do contrrio, diz-se logo tratar-se de louco, profeta ou visionrio aque-

    le que sente, lembra e se mobiliza sozinho, desimpedido de qualquer comoo.

    A emoo deve, assim, ser formada, esclarecida, definida, canalizada, situada

    para ser compartilhada, compreendida. Para isso, h procedimentos. E o prprio

    conceito de sociedade pode e deve, aqui, ser interpretado como sendo o seu

    conjunto.

    Alm de um repertrio de procedimentos de formao e socializao, uma

    sociedade tambm se revela a partir de um acervo de lembranas, de uma memria

    coletiva que se cultua e cultiva atravs da arte narrativa. Esta, por sua vez, exige um

    pblico que saiba ouvir para captar os seus mais variados tempos e movimentos. E

    precisamente este pblico, com o seu saber e as circunstncias de sua formao, o

    objeto de nossa ateno. Pois quem conta uma histria o faz para um ouvinte quali-

    ficado do qual se espera entender as razes do narrador.

    Histrias, afinal, mobilizam as pessoas, lembra o jurista Wilhelm Schapp em

    seu estudo sobre as narrativas. E uma histria bem contada, isto , que tenha captu-

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    CONVERSAS DE COZINHA

    rado a ateno imaginativa dos seus ouvintes, faz de cada um deles candidato a

    recont-la, complementam Mello e Vogel (2000), autores que reconheceram a

    importncia do legado sobre as narrativas deixado por Schapp.

    Neste processo de se contar e ouvir histrias ganha forma um tipo especfico

    de organizao social da experincia da qual decorre o postulado segundo o qual

    no h nem pode haver narrativa desinteressada (ibid.). A narrativa, portanto, tem

    sempre um destinatrio que ajudar o narrador, por sua vez, a dar certos contornos,

    certos modos de dizer uma histria para que esta, suscitando a empatia, torne

    comunicvel a experincia complexa (ibid.). Para que as histrias, entretanto, al-

    cancem esse estado timo de comunicao, preciso, ainda, que saibamos o lugar e

    o momento mais adequado para que elas sejam contadas de maneira apropriada para

    a boa compreenso da audincia.

    Antes do que e por que nos lembramos, importa, aqui, como nos lembramos.

    Com esta abordagem original, proposta por Halbwachs, em 1925, situamos a possi-

    bilidade da anamnese e, portanto, da memria e dos sentimentos em um quadro

    social, deslocando o foco de um indivduo em particular e da sua subjetividade em

    direo a um sujeito que lembra e sente a partir de um dado contexto onde encontra

    as condies necessrias para o enquadramento do vivido. Ao perguntar como nos

    lembramos, restitumos memria e histria individual ou coletiva, tanto faz

    sua mais notvel potncia: a j citada organizao social da experincia. Aqui, lem-

    branas, histrias e, por conseguinte, emoes dependem de seus respectivos qua-

    dros como condies incontornveis para a produo de um passado, mas tambm,

    e sobretudo, de modos de sentir que se manifestam e se perpetuam no presente.

    As narradoras e as ouvintes das histrias que vamos agora conhecer so parte

    de um contexto urbano onde seus casos ganham vida e sentido especial. Flexiono

    aqui o gnero as narradoras e as ouvintes , pois estas histrias, do modo como so

    contadas e interpretadas, revelam alguns dramas constitutivos do universo feminino

    e, mais precisamente, dessas habitantes da cidade que tm em comum no somente

    papis sociais so mes biolgicas e adotivas, esposas, mulheres, trabalhado-

    ras etc. , mas tambm o endereo o conjunto habitacional Cruzada So Sebasti-

    o do Leblon e as experincias que ali encontram lugar.

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    SORAYA SILVEIRA SIMES

    2 O LUGAR

    A Cruzada, nome como hoje chamam o Bairro So Sebastio do Leblon,

    foi construda nos anos 1950, s margens da lagoa Rodrigo de Freitas, pela associa-

    o catlica Cruzada So Sebastio, fundada por Dom Hlder Cmara. Com o apoio

    dos governos municipal e federal, a iniciativa pretendia urbanizar todas as favelas da

    ento capital federal em um prazo de dez anos e com isso fazer face poltica de

    remoo de favelas que j se anunciava (Simes, 2008; Slob, 2002).

    A favela da Praia do Pinto, extinta nos anos 1960 por obra de um incndio, foi

    a primeira beneficiria das obras de urbanizao da Cruzada. Hoje, cinquenta anos

    depois de deixarem os barracos para residirem nos apartamentos dos dez prdios,

    erguidos pela Cruzada entre a lagoa e a praia do Leblon, os moradores se veem

    ainda hoje constrangidos, em diversas situaes cotidianas, por terem seu endereo

    associado favela. Por conta disso, lhes negam empregos ou lhes reservam lugares

    subalternos. A caridade da Igreja, a responsabilidade social das empresas ou a re-

    presso policial atualizam, a todo instante, os limites que renem esses moradores

    em uma populao.3 Os jornais de grande circulao reforam os esteretipos

    veiculando notcias que tm na Cruzada um nico cenrio: o de batidas policiais e

    reduto de bandidos (Cf. O Globo, 2004). Como se no bastasse, as dvidas de

    IPTU, tambm noticiadas nas manchetes dos jornais (Ver O Globo, 2007 e Simes,

    2008),4 de tempos em tempos reacendem o fantasma da remoo que, entre os

    anos 1960 e 1970, impulsionou a maior dispora compulsria de moradores da cida-

    de, removidos das favelas, sobretudo daquelas situadas na Zona Sul do Rio, para

    conjuntos habitacionais situados nas periferias da cidade.

    Portanto, o nivelamento condicionado pela perspectiva da pobreza ainda

    hoje associada ideia de favela e, por conseguinte, da dvida torna indistinta,

    muitas vezes, a heterogeneidade existente entre os moradores da Cruzada e as

    relaes estabelecidas entre esses e os demais moradores do bairro. Instala-se o

    sentimento de usurpao de suas caractersticas singulares e de todo o esforo inves-

    tido cotidianamente na conduo de suas vidas pessoais. Os esteretipos que pulu-

    lam no imaginrio urbano carioca restituem, entre os moradores da Cruzada, a

    ambiguidade da falsa homogeneidade, situando o complexo de relaes entre vizi-

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    CONVERSAS DE COZINHA

    nhos, condminos, parentes e amigos naquele sistema mais amplo, representado

    pelo bairro do Leblon, ou, ainda, pela Zona Sul do Rio de Janeiro.

    De acordo com uma pesquisa realizada pela Companhia Estadual de Habita-

    o (CEHAB), em 2000, 39,35% das famlias que se mudaram da favela para os

    apartamentos permanecem na Cruzada; 32,26% compraram o imvel regularizado

    de terceiros. Do total de 71,61% de proprietrios, 63,87% residem h mais de 25

    anos no local. Os imveis em situao de aluguel somam 9,03% e 15,49% o

    universo das ocupaes consideradas irregulares e tambm nestas duas ltimas ca-

    tegorias encontram-se pessoas que viveram ou tm parentes que vieram da Praia do

    Pinto.

    Muitas so as associaes existentes no conjunto e o levantamento feito pela

    CEHAB mostra que 17,42% dos moradores exercem atividades no seu condomnio

    e/ou na Associao de Moradores; 50,70% participam de grupos religiosos, 33,80%

    de grupos esportivos, 5,63% de grupos recreativos e 5,63% de grupos culturais.5 Nos

    apartamentos tambm so oferecidos servios dos mais variados tipos, em sua mai-

    oria prestados por mulheres e voltados para o pblico feminino. Depiladoras, mani-

    cures, cabeleireiras especializadas em penteados afro, vendedoras de cosmticos,

    roupas, doceiras, rezadeiras e explicadoras vendem seus servios anunciando-os em

    cartazes afixados nas paredes e entradas dos prdios. As penses tambm esto

    espalhadas em quase todos os blocos, especialmente nos primeiros,6 e atendem,

    para almoo e jantar, os trabalhadores da regio. Tambm elas so administradas, em

    sua maioria, por mulheres que so auxiliadas, no atendimento e na cozinha, por

    parentes.

    A intensidade com que as pessoas participam da vida umas das outras, seja

    cedendo panelas, emprestando alimentos, vendendo produtos ou prestando servi-

    os, acolhendo em suas casas filhos, netos ou sobrinhos de parentes e vizinhos, , por

    isso, significativa. Alm disso, o exguo espao de cada unidade propicia a extenso

    da casa para alm de suas fronteiras, fagocitando corredores e reas adjacentes.

    Plantas, bicicletas, roupas, papagaios, crianas com seus brinquedos so presenas

    constantes nos corredores. Portas e grades nos corredores marcam as delimitaes

    estabelecidas pelo constante uso privado de reas comuns. Nos peitoris, tapetes

    estendidos e, vez por outra, um colcho para secar ao sol. As portas e janelas frequen-

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    SORAYA SILVEIRA SIMES

    temente abertas dos apartamentos permitem que o olhar vagueie das escadas e

    corredores dos prdios vizinhos e invada o ambiente domstico.

    Para a intensificao desse arranjo e para a configurao da ideia de vizinhan-

    a, outros dados tambm colaboram. Nas genealogias abaixo podemos ver o cresci-

    mento e a permanncia das famlias nos prdios da Cruzada. Embora a estatstica

    mostre que apenas 39,35% destas que vieram da favela tenham permanecido no

    conjunto, importante ainda considerar as configuraes que uma famlia nuclear

    assume, seja na sua forma estendida, seja atravs das adoes de filhos de vizinhos

    ou mesmo de senhoras de idade.7 Essas redes de parentesco nos permitem no s

    acompanhar e remontar ponto a ponto os laos de reciprocidade que envolvem todo

    o circuito das trocas no local, mas tambm considerar com mais vagar e refletir sobre

    as comodidades viabilizadas pelos bens (donativos materiais e simblicos) que cir-

    culam entre seus componentes, alm de verificar como e at que ponto uma face

    dos conflitos da comunidade se articula com uma suposta transposio da

    moralidade privada para o gerenciamento do pblico.

    No primeiro diagrama, vemos a concentrao da famlia de Ego numa mes-

    ma unidade da Cruzada. Essa convivncia em um conjugado de exguos 18m os

    obriga a criar estratgias para o uso do espao e do tempo de permanncia no apar-

    tamento, tal como sistemas de rodzio para o descanso e o banho, por exemplo, alm

    de uma separao bastante singular dos esquemas de privacidade conjugal ou mes-

    mo celibatria.

    GENEALOGIA 1

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    CONVERSAS DE COZINHA

    O segundo diagrama tambm apresenta grande concentrao de parentes de

    Ego nos prdios do conjunto, alm destes estenderem-se para as favelas prximas e

    encontrarem-se ainda na Zona Oeste da cidade, para onde foram transferidos outros

    tantos moradores da favela Praia do Pinto.

    GENEALOGIA 2

    A1 av (mora na Cidade Alta, em Cordovil)

    A2 av (Bloco 7)

    B1 irmo (falecido)

    Ego (Bloco 7)

    B2 irm (Bloco 7)

    B3 cunhado (falecido)

    B4 irm (Bloco 7)

    B5 cunhada (mora no exterior)

    B6 irmo (falecido)

    B7 (Bloco 1, madrinha de D1 junto com Ego)

    B8 (Bloco 4, madrinha de C4)8

    C1 sobrinha (Bloco 7)

    C2 marido de sobrinha (Bloco 7)

    C3 sobrinha (Bloco 7)

    C4 sobrinho (Bloco 7)

    C5 sobrinho (Bloco 7)

    C6 sobrinho (Bloco 7)

    C7 sobrinha (Bloco 7)

    C8 sobrinha (Bloco 7)

    D1 sobrinha neta (Bloco 7)

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    SORAYA SILVEIRA SIMES

    A localizao dos membros citados na segunda genealogia mostra ainda que

    todos moram em casas pertencentes ou geridas por mulheres, quando no moram

    ss. Netos e filhos residem com as avs. O pai de Ego, assim como os quatro filhos

    do seu segundo casamento, embora more na Rocinha, vive na Cruzada, domnio

    de sua ascendncia materna. O mais importante em todo esse esquema de relacio-

    namento a separao entre o grupo familiar materno e o paterno. No grau dos avs,

    sejam pais da me ou do pai, Ego apresenta seus cognatos a partir da ascendncia e

    descendncia das avs, talvez porque a partir desta gerao com a qual ainda se

    convive tenham sido elas as provedoras das geraes posteriores. Isto, no entanto,

    apenas uma conjectura, ainda que plausvel.9

    MATERNO

    A1 Tatarav

    A2 Tatarav (ficou em Minas Gerais)

    B1 bisav

    B2 Bisav

    C3 tia-av

    C5 av (mora no bloco 7)

    D5 Me (falecida)

    D7 Tia (nasceu na Cruzada)

    D9 Tio (mora na Cruzada)

    D13 Tio (mora no bloco 7 com C5)

    Ego (mora sozinha no bloco 2/410)

    E9 irm (mora no centro da cidade)

    E10 irmo (mora na Cidade de Deus)

    E11 primo

    E12 prima

    E13 prima

    E14 primo

    E15 primo

    E16 primo (mora no bloco 9 com a av materna)

    E17 prima (mora no bloco 7)

    PATERNO

    C1 Av

    C2 Av (mora no bloco 1)

    D4 Pai (mora na Rocinha)

    D2 Tia (mora no bloco 1 com as

    filhas E2 e E3 e o neto F1)

    E1 marido da prima (mora na

    Cruzada)

    E2 prima (mora no bloco 1)

    F1 filho da prima (mora no bloco

    1)

    E3 prima (mora no bloco 1)

    E4 filho do pai (mora na Rocinha)

    E5 filho do pai (Rocinha)

    E6 filho do pai (Rocinha)

    E7 filho do pai (Rocinha)

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    CONVERSAS DE COZINHA

    A partir dessa breve exposio do parentesco, dos laos de compadrio e do

    acolhimento de pessoas (jovens ou idosas, nascidas e criadas no conjunto ou

    imigrantes recm-chegados) nos apartamentos da Cruzada, que ali, do mesmo

    modo como em Tikopia, ningum fica sem parente.10 Ser afianado moralmente,

    seja atravs do acolhimento espordico ou constante, por pessoas (sobretudo mu-

    lheres, chefes de famlia) reconhecidas pela comunidade de vizinhos, pode ser

    muitas vezes determinante para a vida pblica do novo morador.

    Entre os moradores da Cruzada, possvel notar a significncia dessa espcie

    de matrilinearidade. O fenmeno sensvel em muitas outras localidades ditas de

    baixa renda, mas enveredar por essa pista significa esvaziar o seu contedo local,

    pois, conforme dizia Firth e, depois dele, Clifford Geertz, como sempre, o contex-

    to suficiente para dar o sentido (idem: 356) que de fato interessa, especialmente

    ao etngrafo.

    3 SOCIABILIDADE FEMININA

    Sociabilidade, conforme a definio de Simmel, a forma ldica da sociao,

    que, por sua vez, a forma pela qual os indivduos se agrupam em unidades que

    satisfazem seus interesses. A importncia das interaes que ganham a forma

    sociativa reside no fato de que elas conduzem o homem a viver com outros homens,

    agir por eles, com eles, contra eles, organizando, deste modo, de maneira recproca,

    as condies necessrias para que ele influencie os outros e seja por eles tambm

    influenciado (Simmel, 1983).

    importante, ainda, esclarecer que ldico, na lngua portuguesa, algo que

    se faz por gosto, sem outro objetivo que o prprio prazer de faz-lo. O antepositivo

    lud(i)-, possui como acepes possveis a noo de jogo, divertimento, re-

    creao, recreio, folga; mas tambm joguete, insulto, zombaria, ultra-

    je. Supe divertir-se, gracejar, fazer festa; ou, em outro sentido, jogar

    com, fazer conluio, ludibriar. Todas essas acepes so contempladas pelo

    ingls to play: representar, brincar, jogar.

    Sociabilidade, como figura em dicionrios da lngua portuguesa, , por sua

    vez, uma caracterstica do que socivel, um prazer de levar a vida em comum,

    uma inclinao a viver em companhia de outros, uma aptido para viver em

    sociedade, uma socialidade. O antepositivo soci-, presente em todos esses

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    SORAYA SILVEIRA SIMES

    termos, significa que acompanha, possuindo tambm, como acepo, as ideias de

    aliado e de companheiro.

    O que importa para os nossos propsitos, entretanto, ressaltar o carter

    fundamental e estratgico dos vnculos, constantes ou efmeros, do estar juntos para

    este conjunto de mulheres que tm em comum alguns papis sociais, a condio de

    serem migrantes (que um dia chegaram ao Rio de Janeiro, indo morar na favela da

    Praia do Pinto) ou filhas de migrantes e o endereo.11

    Portanto, chamo de sociabilidade feminina o tipo de sociao, de interao

    cotidiana, que tem lugar nos apartamentos sobretudo nas cozinhas, ou seja, no

    domnio da casa, da domesticidade, do foyer proeminentemente regido pelas mu-

    lheres e atravs da qual se transmite e se adquire uma srie de medidas fundamen-

    tais para a exposio adequada de si no mundo exterior a partir da perspectiva das

    mulheres. Ressalto, desde j, que o tpico que permeia e amalgama esta sociabili-

    dade , contudo, a convivncia. Para fins estatsticos, convm ainda dizer que oito

    dos dez prdios do conjunto so administrados por sndicas e que a Associao de

    Moradores foi, at incio de 2009, presidida por uma mulher, apoiada pela chapa

    Mulheres em Ao. Alm disso, 59,35% das famlias residentes na Cruzada So

    Sebastio so chefiadas pelas mulheres, enquanto 40,65% o so pelos homens.12 Ou

    seja, um nmero considervel de conflitos coletivos e domsticos administrado

    por mulheres.

    O acesso, entretanto, a esse tipo de sociabilidade que qualifico de feminina

    franqueado pela cozinha, esse lugar, por excelncia, do fazer. Mas, de um fazer

    repetitivo, banal, como assinala Sefarty-Garzon (2003). So estas qualidades de um

    fazer constante, justamente, as que fazem da cozinha uma oficina que em nada deve

    quela do alquimista. Ambas so da ordem da transformao. Do cru e do cozido, do

    estranho e do hspede, do prescrito e do interdito, do sujo e do limpo, da pedra

    filosofal para se converter algo ordinrio em objeto de grande valor. A cozinha,

    recinto de entrada cotidiana das casas ocidentais, ope o estado de natureza ao

    estado de cultura. E, se nela se elabora o alimento, elaboram-se, tambm, nesse

    local marcado pela oralidade, as solues para os problemas da vida e da alma. Na

    lngua portuguesa, o prprio verbo comer advm da ideia de comensalidade (com +

    edre), que, por sua vez, implica o hbito de frequentar a casa de e comer junto com

    aqueles que nela habitam.

  • 58

    CONVERSAS DE COZINHA

    Comer junto, conversar. A cozinha o lugar desse duplo prazer, lugar dessa

    oralidade que toma inmeras formas e se exprime de maneira irredutvel atravs

    dos mltiplos e minsculos imperativos do gosto pessoal, do estilo prprio de fazer

    a cozinha, de comer e de falar (ibid.: 171). O bal de gestos, encenado por quem se

    ocupa da preparao do alimento na cozinha, levanta odores e sabores. Ao seu redor,

    uma melopeia convidativa se precipita diante do recm-chegado, envolvendo-o de

    modo sutil nessa hospitalidade to significativa de uma casa, composta de dimen-

    ses sensveis ao olfato, ao paladar e ao tato, todos esses sentidos frequentemente

    eclipsados pelo imprio da viso.

    Como que desprovido de uma face visvel, pblica, o tipo de trabalho que se

    exerce na cozinha para a manuteno dos corpos da famlia parece cair fora do

    campo de uma produtividade visvel, valorizvel (Giard, 1980).

    Mas as mulheres para cujas casas se dirigem outras mulheres tm ou j tive-

    ram a oportunidade de mostrar, publicamente, algumas de suas qualidades, especi-

    almente as morais. So sndicas, barraqueiras,13 atuam em frentes coletivas, diri-

    gindo a Associao de Moradores da Cruzada, o Conselho de Sndicos, o Clube das

    Mes; criaram a creche e outras associaes polticas, esportivas ou sociais no con-

    junto; ocupam-se com o prximo e com o bem comum14 e so chamadas pelos

    demais moradores de fundadoras, categoria local para a ideia de velha guarda.

    Aqui, porm, trata-se de uma categoria flexionada no gnero feminino. So mulhe-

    res; mes, sobretudo, que vieram removidas da favela da Praia do Pinto para os

    apartamentos da Cruzada So Sebastio conjunto que, ao contrrio do que ocorre

    com as favelas, tem uma data precisa de fundao e que, hoje, so uma espcie de

    relicrio dessa experincia nica e original que a Cruzada So Sebastio proporcio-

    nou aos favelados da ex-capital federal. So, enfim, pessoas que guardam uma me-

    mria coletiva e que estabeleceram localmente uma identidade pblica da qual

    emana o seu poder e autoridade.

    Soninha barraqueira e mora no primeiro bloco da Cruzada So Sebastio,

    onde ficam os apartamentos menores, conjugados. Ali, o nico cmodo congrega

    inmeras atividades femininas em um mesmo momento. Nesse gineceu vesperti-

    no, suas parentes, amigas e vizinhas se renem para a realizao das tarefas. Se

    Soninha precisa aplicar a henna nos cabelos, sua irm, que mora no bloco 3, quem

    vem lhe aplicar o produto. Munida de luvas e pincel, forra o cho com jornal de

  • 59

    SORAYA SILVEIRA SIMES

    modo a preservar o piso claro dos respingos negros. A amiga Daisy, moradora do

    bloco 2, nesse momento, prepara-lhe a comida e, entre um tempo e outro de coco,

    vai at o trreo levar ou trazer contas para pagar. A irm sai para o trabalho e uma

    vizinha chega para substitu-la, trazendo consigo outro produto para finalizar o trata-

    mento dos cabelos de Soninha.

    Nesse intervalo, ela pega o celular e telefona para o filho. Quer saber se ele

    est com todos os seus documentos. Na ocasio, explica que sempre lhe faz a mes-

    ma pergunta, pois tem conscincia de que na cidade em alerta, como anda o Rio de

    Janeiro, a cor um problema. A discriminao que podem vir a sofrer encontra-se

    intrinsecamente associada ao contexto urbano especfico em que vivem.

    Em outra vez, quando no carecia de cuidados com a esttica, as amigas

    presentes em sua casa apenas apreciavam a conversa e a cerveja gelada. Passamos a

    tarde na prosa, sem outro servio que pudesse ausentar uma das convivas, ainda que

    por alguns instantes. As idades variavam entre 18 e 56 anos. Mas a tpica afirmada e

    reafirmada concernia ao universo feminino. Ou melhor, ao universo do cuidado

    feminino: era a famlia, filhos, maridos, namorados, afetos, convivncias possveis,

    impossveis, problemticas. Tudo sempre entremeado por palavras de estmulo,

    esperana, as coisas ho de se resolver.

    Na casa de Dona Teresa, moradora e ex-sndica do bloco 9, soube que sua

    nora havia perdido a me. O desconsolo era ainda maior, pois a nora no morava

    mais na Cruzada. H pouco tempo mudara-se com o marido, filho de Teresa, para a

    Zona Oeste da cidade, lugar distante e que ainda hoje sofre com a restrio de

    horrios dos transportes. Quem que vai cuidar dela? No tem ningum por perto

    nem para lhe fazer um mingau! Ela precisa de algum que cuide dela nessa hora, ela

    no pode deixar de comer. Tem que comer!

    Especialmente durante um momento de fragilidade, alimentar algum

    persuadir esse algum. ter um olho no padre e outro na missa, um no sacristo,

    outro na sacristia, como diz Dona Teresa. Ou seja, transport-lo, por meio das

    palavras, a um momento futuro e luminoso, faz-lo perceber que um momento

    diferente do outro, tudo acaba, tudo se transforma, enfim, entret-lo e seduzi-lo com

    a esperana enquanto se mantm os olhos atentos ao ato daquele que necessita de

    cuidados. H momentos como este, em especial, em que comer depende pratica-

    mente da conversa. Pressupe, portanto, um que fale para um outro que escute.

  • 60

    CONVERSAS DE COZINHA

    Em seu apartamento no bloco 6, Danusa, senhora muito ativa, vendedora de

    cosmticos, recebe a jovem desiludida. Descobriu recentemente uma amante do

    marido. A cada novo dia ela traz novidades sobre o sentimento perturbado que a

    move ultimamente. Conta o que fez, o que procurou, o quanto se exps, o que ainda

    vai fazer se.... A cozinha da senhora vendedora de cosmticos transforma-se ora

    em uma espcie de confessionrio a moa lhe conta atitudes que ela mesma

    condena, e se arrepende , ora em consultrio psicanaltico em sua narrativa, ela

    tenta elaborar o que se passou e mobilizar a ouvinte na tentativa de, juntas, encon-

    trarem uma soluo. Nesse depsito de palavras expurgadas a dona da casa, enfim,

    cumpre a funo de acompanhar, atravs do relato, cada passo dado pela jovem

    martirizada pela dor da traio.

    As mulheres mais jovens ou que tm a vida sexual ativa so as que alimen-

    tam essa sociabilidade com suas narrativas. Seus dramas so material de trabalho

    e sero interpretados durante o preparo da comida ou do caf. A anfitri, em torno da

    qual essas rodas se formam, portadora da palavra central e mestre na arte do

    contraponto. As idosas da audincia, vizinhas e comadres vez por outra presentes,

    em geral, aquietadas pelo tempo de vida, ouvem e manifestam o que pensam a

    respeito, esboando-o pelo movimento da face. Sobrancelhas sobem e descem, os

    olhos arregalam, procuram outros olhos cmplices, a boca se estica ou se comprime.

    Dependendo da narrativa do dia e da variedade etria das que acompanharo a

    histria, uma cozinha se transforma em um manancial de sensibilidade histrinica.

    o momento ideal para se adquirir conhecimento sobre a moral, a crtica, a tica, o

    clmax e outros parmetros da gramtica dos sentimentos, e tambm sobre as

    fisionomias que constituem modos de enunciao das inmeras gradaes entre o

    acordo e o desacordo a respeito do que se conta.

    Viria dessa forma de socializao na vida moral o sentido profundo da voz

    passiva ser nascido e criado, expresso com que, comumente, moradores do con-

    junto se apresentam quando pretendem realar certas qualidades morais?

    A hospitalidade que encontramos nessa sociabilidade feminina equivale,

    em uma dada proporo, quela caracterizada pelo trabalho dos terapeutas da

    Alexandria multicultural de Flon. Contemporneo de Cristo, esse judeu hermeneuta

    das Escrituras, junto com o seu grupo, trabalhava pela sade do corpo e da alma e,

    assim, pela salvao e cura do Ser.

  • 61

    SORAYA SILVEIRA SIMES

    Soteria, palavra grega que exprime tanto sade quanto salvao, se faz poss-

    vel, segundo os terapeutas, atravs do dom da escuta e do domnio da palavra. Ela,

    a palavra, a chave para a interpretao da condio humana.

    Flon, enraizado na tradio judaica, mas inteiramente aberto contribuio

    esttica e filosfica dos gregos, entendia que o homem est condenado a interpre-

    tar (Leloup, 2004). E nisso, exatamente, que reside a sua liberdade. Interpretar

    o jogo levado a srio pelos hermeneutas; o exerccio necessrio para conduzir a vida

    da melhor ou pior maneira possvel.

    O terapeuta no cura. Ele cuida. na figura do cozinheiro e do tecelo que,

    em Grgias, Plato qualifica o therapeutes somatos, aquele que cuida do corpo.

    Therapeutes possui, de fato, dois sentidos fundamentais: servir, cuidar, render cul-

    to e tratar, sarar (ibid.: 24). O corpo cuidado quando a alma, divindade que o

    habita, bem cuidada, quer dizer, cercada de um culto sincero que a mantenha

    protegida das imagens e das palavras (logoi) que possam lhe fazer adoecer. O

    terapeuta quem cuida da tica, isto , quem zela pela direo do desejo a fim de

    ajust-lo para um fim adequado ao ser que se encontra desorientado em suas paixes

    e apegado a uma ideia (Flon apud Leloup, 2004: 36).

    As mulheres em torno das quais se organiza a sociabilidade feminina na

    Cruzada So Sebastio cumprem um papel semelhante. So hermeneutas da convi-

    vncia nesse justo sentido: ao escutarem os pequenos dramas cotidianos das que as

    visitam e colocarem em circulao, na oralidade praticada em suas cozinhas, suas

    medidas a propsito de cada tema, elas as conduzem apreciao de um novo

    quadro diferente daquele presente, motivo de suas angstias e inquietaes.

    Como ensina Plato, a quem Flon apreciava, o terapeuta no cura ele

    cuida. Saber ouvir cuidar da palavra. E sobre isso importante lembrar a observa-

    o feira por Rebeca, senhora romena, que h alguns anos mora na Cruzada e

    vizinha de Dona Teresa: Minha vida aqui dentro mudou muito quando aprendi a

    ouvir o que Teresa me dizia.

    4 MIGRAO E ADAPTAO: DUAS TPICAS INCONTORNVEIS PARA UMAETNOPSIQUIATRIA

    Em um estudo publicado em 1996, Ferreira (1996, apud Prado, 1998) consta-

    tou que no Rio de Janeiro grande parte das internaes psiquitricas se davam com

  • 62

    CONVERSAS DE COZINHA

    pacientes migrantes, que sofriam a perda de seus referenciais culturais e quepassavam por um processo particularmente adverso e agressivo de aculturao,levando-os muitas vezes a descompensaes psicticas. Ento, corriam o risco dese verem psiquiatrizados, j que sua situao existencial carecia de compreensoe eram desconsiderados seus valores culturais em choque com a cultura na qualestavam inseridos e que tendia a desqualific-los e denegri-los, fazendo com que aperda de referenciais identificatrios valorizados se acentuasse ainda mais.

    Em 1979, na Frana, o Servio de Psicopatologia do Hospital Avicenne de

    Bobigny passou a oferecer uma terapia nova, chamada, ento, de etnopsiquiatria.15

    Seus pacientes eram, em sua grande maioria, originrios do Magrebe, da frica e das

    Antilhas, e sofriam as dificuldades de adaptao sem responderem positivamente

    ao tratamento teraputico tradicional.

    Esta nova abordagem teraputica, segundo Prado, passou a ressaltar o valor

    dos recursos teraputicos das sociedades ditas tradicionais (Prado, 1998: 121), con-

    siderando, como um de seus enunciados tericos fundamentais, que a psicoterapia,

    em senso estrito, no existe (ibid.: 122). Seguindo o mesmo pressuposto dos

    terapeutas contemporneos de Flon, habitantes da Alexandria multicultural da era

    crist, o que existe so, pois, autoterapias suscetveis de serem deslanchadas por

    indutores ou operadores (ibidem), o que, enfim, traz luz a importncia da

    interao teraputica e, com ela, modificaes tcnicas considerveis no modo de

    acolhimento dos pacientes.

    O atendimento etnopsiquitrico feito em grupo de diferentes origens

    culturais, como sublinha Prado, mas todos profissionais: mdicos, psiquiatras, psi-

    clogos, antroplogos, assistentes sociais e/ou outros profissionais que por alguma

    razo estejam envolvidos com o caso (ibid.: 123). No entanto, a autora assinala que

    deste grupo devem participar pessoas que partilham do mesmo grupo tnico do

    paciente ou que conheam o seu contexto de vida cotidiana, ou seja, as grandes

    expectativas, as rupturas e os confrontos de valores prprios da experincia de mi-

    grao e, por conseguinte, de adaptao (ibid.: 126).

    Prado observou ainda, em sua experincia em etnopsiquiatria no contexto

    urbano carioca, que o atendimento funcionava at o momento de se propor uma

    prescrio. A partir da os pacientes abandonavam a consulta. Isso a levou a conside-

    rar que as prescries no se mostravam convincentes, pois condensariam no ime-

    diato de sua representatividade a ambiguidade do processo transferencial (ibid.:

    127). A narrativa do paciente e seu modo de interagir com o terapeuta seriam, por

  • 63

    SORAYA SILVEIRA SIMES

    assim dizer, interrompidos por uma prescrio. Esta antecipao, partindo do

    terapeuta, jogaria por terra a eficcia teraputica, que , fundamentalmente, a ca-

    pacidade de contatar e de dar sentido s vivncias, psquicas e culturais, deslanchando

    a possibilidade de elaborao (ibid.: 129) do vivido pelo prprio paciente, atravs

    de suas narrativas.

    Quando Dona Teresa veio para o Rio de Janeiro, com apenas 14 anos, em

    1952, os sintomas que sentiu to logo veio morar na favela da Praia do Pinto foram

    diagnosticados por um mdico como depresso. At hoje, quando discorre sobre sua

    chegada ao Rio de Janeiro, vindo de Guaraciaba, interior do Cear, Dona Teresa

    contrape a lama que encontrou na favela da Praia do Pinto com o terreiro bem

    varrido e arejado sombra de rvores frutferas de sua casa cearense.

    A romena Rebeca, por sua vez, no partilha de um passado vivido na favela

    da Praia do Pinto, lugar de onde vieram a maior parte dos moradores dos prdios da

    Cruzada So Sebastio do Leblon. Mas, como muitos de seus vizinhos, encontrou

    em um ncleo residencial dito de baixa renda a possibilidade de morar na cidade,

    sobretudo em um bairro bem equipado e, portanto, valorizado, aps empreender

    uma viagem migratria igualmente provida de muitas vicissitudes e adversidades.

    Rebeca hoje est com 61 anos e chama algumas senhoras da Cruzada pelo apelido

    carinhoso de mezinha. Estas senhoras, segundo conta, a ajudaram a adaptar-se no

    conjunto, inclusive dando conselhos. Antes de ir morar na Cruzada, Rebeca mo-

    rou em um conjunto residencial vizinho o Conjunto dos Jornalistas , mas,

    embora contemporneo daquele construdo pela Igreja, o Jornalistas, como hoje

    chamado, foi erguido com os fundos de um dos Institutos de Aposentadoria e Pen-

    ses (IAPs)16 que beneficiavam categorias profissionais. A mudana do Jornalistas

    para a Cruzada transformou a sua vida de maneira incomensurvel. Muitas de suas

    clientes Rebeca esteticista e cabeleireira recusaram-se a entrar em seu novo

    local de moradia. Na Cruzada, muitas suspeitas recaram sobre a mulher que des-

    ceu do Jornalistas para a Cruzada. A estrangeira se viu ainda mais s, sem os filhos,

    sem o marido e, por fim, sem as clientes. Por isso o termo mezinha, j que com

    essas protetoras aprendeu a observar mais do que se expor em conversas na rua.

  • 64

    CONVERSAS DE COZINHA

    5 CONSIDERAES FINAIS

    Essa vai ser difcil consertar. Com tal observao Dona Teresa sur-

    preendeu a etngrafa, que j vinha elaborando o presente texto, durante uma con-

    versa certa tarde em sua cozinha, a respeito da moa, proveniente de Goinia, h

    meses acolhida em sua casa. A moa trabalhava como empregada domstica em um

    dos prdios do entorno e, por indicao de outras mulheres, voltou a procurar Dona

    Teresa, pedindo-lhe acolhimento. Estava com srios problemas relacionados a be-

    bida, e h pouco havia sido dispensada do servio pela namorada do seu patro.

    O acolhimento de mulheres, feito por outras mulheres em torno das quais e

    em cujas cozinhas esse tipo de sociabilidade se constitui, aparecia mais uma vez

    como um procedimento bastante difundido entre as populaes urbanas de baixa

    renda.17 E isso por diversas razes que so comumente atribudas (e reduzidas) a

    uma mera necessidade de ajuda mtua na prestao de servios domsticos. A pes-

    quisa emprica, no entanto, nos mostra que este tipo de acolhimento feminino, que,

    conforme vimos, ocorre sobretudo nas cozinhas desse conjunto habitacional, possui

    a dimenso de uma propedutica, de uma instruo, de uma preparao para a plena

    compreenso, neste caso, dos meandros da vida social local.

    Assim, este acolhimento, seja por momentos breves de conversa, seja por

    uma frequncia de coabitao no mesmo espao domstico por dias ou at mesmo

    meses, revela-se plenamente na sociabilidade da cozinha. Esta , ela mesma, uma

    tcnica, um mtodo, um modo de proceder que define, atravs desse contar e ouvir

    histrias privadas em ambiente privado, quais so os problemas, os papis e os

    comportamentos observados pelas mulheres e, com eles, os sintomas que podem

    anunciar os desdobramentos positivos ou negativos de cada caso narrado.

    Talvez seja importante tambm considerarmos o significado mesmo da pala-

    vra acolher, aludindo a refgio, proteo e conforto fsico e moral (Cf.

    Houaiss). Alm disso, seu antepositivo, cuja origem est no verbo latino lego, pos-

    sui como derivados collgo, de onde provm o verbo acolher, mas tambm o verbo

    escolher e o substantivo cole(c)tivo; e dilgo, que significa amar com escolha,

    considerar, honrar, gostar; enfim, dileo, diligncia. Todas essas noes

    sustentam uma identificao entre essas pessoas que exercem funes semelhantes

    no mbito da vida domstica, mas tambm no espao social e moral da vida comu-

  • 65

    SORAYA SILVEIRA SIMES

    nitria que partilham enquanto habitantes do mesmo conjunto habitacional, ou da

    mesma vizinhana.

    Outro fator relevante que todas essas mulheres que conhecemos, e que

    acolhem outras em suas casas, so devotas de alguma f e frequentam igrejas

    majoritariamente a catlica. O vis atravs do qual se interpretam as narrativas

    veiculadas nas cozinhas, com isso, no isento da lgica regida pelos credos. Da a

    ideia de cura, ou de restabelecimento, ou restaurao de um fluxo de vida inter-

    rompido ou impedido pelos problemas identificados ou redefinidos pela prtica

    narrativa em curso nesses encontros privados.

    Ao recorrerem s casas dessas mulheres, cuja capacidade interpretativa se

    legitima de vrias maneiras, especialmente pelos papis que tm a oportunidade de

    desempenhar publicamente no mbito da comunidade, aquelas que a elas recorrem

    afligidas por problemas financeiros, afetivos, instabilidade na famlia e, nesse as-

    pecto, pelas hesitaes experimentadas na educao dos filhos, acreditam na efic-

    cia teraputica da conversa, mas de um tipo de conversa cujo interlocutor pessoa

    em quem se confia. E se, como dissemos, a f elemento presente, sugerimos que

    nos casos que pudemos observar ela um dos fatores determinantes mais proemi-

    nentes, para essas hermeneutas da convivncia, na prescrio de medidas a serem

    tomadas.

    Emoes so antes experincias do que objetos prprios e delimitados, como

    William James props compreend-las. So fluxos que nos arrebatam e nos unem

    em um mundo social no qual existimos. O tratamento dos anseios femininos, defini-

    dos em um contexto social e urbano preciso, atravs de uma sociabilidade levada a

    termo em mbito privado e domstico , em ltima anlise, um modo de adminis-

    trar problemas coletivos, at mesmo pblicos, de uma perspectiva particularssima

    preservada nos exguos quatro ou cinco metros quadrados das cozinhas dos aparta-

    mentos de um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    NOTAS1 Doutora em Antropologia e pesquisadora associada ao LeMetro/IFCS-UFRJ e ao CLERS/Universit de Lille 1.2 Uma primeira verso desse captulo foi tambm publicado na Revista Comum n. 31, 2008-2009.3 Segundo dados do censo demogrfico do IBGE, obtidos pelo Sistema Morei, do InstitutoPereira Passos, em 2000 a populao do Leblon era de 46.670 habitantes distribudos em18.004 unidades residenciais, das quais 50% eram ocupadas por at duas pessoas e quase 60% deseus responsveis ganhava mais de 15 salrios mnimos. Alm disso, cerca de 75% dos responsveispossuam curso superior e apenas 967 pessoas no eram alfabetizadas, sendo que 468 tinhamentre cinco e nove anos. O apartamento, como j podemos supor, a unidade residencial quepredomina no bairro e em toda a Zona Sul da cidade. No Leblon so 17.447 unidades destetipo, e, do total de domiclios, 12.320 so propriedade de seus residentes. A maior parte dosresponsveis por cada unidade domiciliar tem entre 40 e 69 anos, e o nmero daqueles commais de 70 anos superior aos que esto entre os 20 e 39 anos. Neste universo, os 2.957

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    CONVERSAS DE COZINHA

    moradores da Cruzada So Sebastio representam uma populao de baixa renda e de baixaescolaridade, constituda majoritariamente por jovens e negros, exercendo servios de baixaqualificao e apresentando ndices de at 60% de desemprego. Esses dados so apresentadosem um artigo eletrnico por Ribeiro, Cruz e Maberla que se referem ainda categoriadesocupao, sem oferecerem, no entanto, maiores esclarecimentos sobre essa utilizao. Ja amostragem feita pela CEHAB-RJ em 155 apartamentos (16% do total) indica que 39,56%dos moradores tm situao empregatcia com vnculos; 26,45% so aposentados e 11,61%intitulam-se donas de casa. As demais situaes encontram-se dispersas. Ver Ribeiro et alli eMascarenhas (2005).4 Ver especialmente O Globo do domingo, dia 13 de fevereiro de 2007, cuja manchete,supostamente comemorativa dos 50 anos do conjunto Cruzada So Sebastio, noticiava: Umailha que destoa na Zona Sul: Cruzada So Sebastio faz 50 anos com um problema: a dvida doIPTU pode levar 676 imveis a leilo. Uma anlise etnogrfica do impacto dessas notcias estem Simes, 2008, sobretudo na terceira parte da tese.5 A pesquisa no define a distino entre os grupos recreativos e culturais, mas, em umaconversa com o ex-presidente da Associao de Moradores, foram enumeradas as seguintesassociaes locais (esportivas, religiosas e sociais): o Clube da Malha; o Liverpool e o Grmio,os dois times de futebol; o Grupo Evanglico da Cruzada; a ONG Vivendo em Graa; o Grupode Senhoras e os extintos Clube das Mes e Bloco Carnavalesco Baba do Quiabo, alm doConselho de Sndicos e, claro, a Associao de Moradores.6 Nos blocos 1, 2 e 3 da Cruzada ficam os apartamentos conjugados, de 18m. Em relao aosoutros sete blocos, constitudos por apartamentos de sala, um ou dois quartos, banheiro ecozinha, os trs primeiros apresentam um grande nmero de locatrios, e as penses tambmfuncionam majoritariamente em apartamentos alugados.7 A circulao de pessoas, sejam jovens ou idosas, na forma de adoo, prtica bastantedifundida entre famlias vizinhas, residentes no conjunto. A trajetria residencial, da favelapara os apartamentos, e a experincia partilhada durante o perodo de remoo de favelas asrene, em parte, em torno de um mesmo acervo biogrfico. Essa memria, e o acolhimentodeste acervo na forma, tambm, das adoes de pessoas idosas, parte da pesquisa dedoutorado da autora. Ver Simes, 2008.8 Todos os moradores citados que habitam o bloco 7 residem no mesmo apartamento.9 Para uma anlise mais completa dessas e de outras genealogias de moradores do conjunto, verSimes, 2008.10 Firth, em sua monumental etnografia Ns, os tikopia, trata das categorias locais utilizadaspara a incorporao de homens e mulheres dentro da nomenclatura de consanguinidade econsidera que esse tipo de mecanismo terminolgico, que no permite que o parentesco fiquevago, mas o mantm ntido e preciso, expressa, sobretudo, que as pessoas no so apenasparentes umas das outras, no importa quo distantes sejam; so sempre uma espcie definidade parente, pronto a assumir as funes recprocas apropriadas com os outros, em respeito a seuparente comum (1998: 354). Tamana, por exemplo, referia-se no s ao pai e a seus irmosmasculinos, mas tambm ao marido da irm do pai. Tinana, por sua vez, destinava-se a contemplaro parentesco com a esposa do irmo da me, ou seja, a mulher do tio paterno, e com a me e asirms dela.11 O emblemtico conjunto habitacional Cruzada So Sebastio, construdo nos anos 1950 paraabrigar moradores da favela, bode expiatrio dos bairros chics da Zona Sul do Rio de Janeiro. Odrama social engendrado pelos processos de urbanizao e a sociabilidade cultivada entremulheres residentes nessas localidades visadas pela especulao imobiliria e pelo planejamentourbano so tambm elementos que o leitor encontra no artigo de Tornquist e Franzoni (2009,neste volume).12 Do mesmo modo, grande parte dos barraqueiros (ou seja, das pessoas que vendem comidae bebida na rua do conjunto ou nos halls de entrada dos prdios) so mulheres, e igualmente o

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    SORAYA SILVEIRA SIMES

    nmero de olhos que se voltam das janelas para a rua e para os corredores tambm so femininos.13 Ver nota 12.14 No livro Les Sens du Public, M. Lecrerc-Olive faz a distino entre o bem comum, queseria uma propriedade partilhada por grupos determinados e exclusivos, e o bem pblico,que seriam bens inapropriveis, inalienveis e imprescritveis. (ver Cefai & Pasquier, 2003:31).15 George Devereux foi quem desenvolveu os fundamentos desta abordagem teraputica.Sobre isso, ver Nathan, 1998.16 Institutos esses criados por Getlio Vargas. Sobre os IAPs, ver especialmente Augusto, 1996,e Bonduki, 1998.17 O importante estudo Aspectos Humanos da Favela Carioca, realizado pela equipe deSAGMACS e publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 10 e 13 de abril de 1960, foi oprimeiro estudo a considerar esse tipo de filiao domstica nas favelas cariocas como umfenmeno sociolgico. Antes dele, somente as fichas preenchidas pelas assistentes sociaisligadas s instituies catlicas, como a Fundao Leo XIII, prestadoras de servios aosmoradores de favelas, sobretudo a partir dos anos 1940 at final dos anos 1950, apresentamdados detalhados a respeito desse tipo de acolhimento, porm tratando-os pelo vis de umadesorganizao social. Cf. a respeito, sobretudo Simes, 2008 e Slob, 2002.