soraya matos de freitas(2)
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO UERJ CENTRO DE EDUCAO E HUMANIDADES
FACULDADE DE FORMAO DE PROFESSORES DE SO GONALO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL DO TERRITRIO
CURSO DE MESTRADO ACADMICO
SORAYA MATOS DE FREITAS
Nas Entrelinhas da Revoluo:
O dito e o no dito nas pginas do Correio Braziliense e na Gazeta do Rio de Janeiro
sobre a Revoluo Haitiana (1808-1817).
So Gonalo
2010
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Soraya Matos de Freitas
Nas Entrelinhas da Revoluo:
o dito e no dito nas pginas do Correio Braziliense e na Gazeta do Rio de Janeiro, sobre a
Revoluo Haitiana (1808-1817).
.
Dissertao apresentada, como requisito parcial para a
obteno do titulo de mestre ao Programa de Ps graduao
em Histria Social do Territrio, da Faculdade de Formao
de Professores da Universidade do Estado do Rio e Janeiro.
Orientadora: Prof. Dr.Mrcia de Almeida Gonalves
So Gonalo
2010
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CATALOGAO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEH/D
F862 Freitas, Soraya Matos de.
Nas entrelinhas da revoluo: o dito e o no dito nas pginas do Correio
Braziliense e na Gazeta do Rio de Janeiro sobre a Revoluo Haitiana / Soraya
Matos de Freitas. 2010. 141 f.
Orientadora: Mrcia de Almeida Gonalves.
Dissertao (Mestrado em Histria Social) - Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Faculdade de Formao de Professores.
1. Haiti Histria - Revoluo - Teses. 2. Gazeta do Rio de Janeiro Teses. 3. Correio Braziliense - Teses I. Gonalves, Mrcia de Almeida z. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formao de
Professores.
CDU 972.94
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s minhas filhas, Sonayra e Tayn.
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AGRADECIMENTOS
Os agradecimentos no so confortveis. No que no goste de agradecer, ao
contrrio, acho de fundamental importncia esse ato. No entanto escrever os agradecimentos,
grav-los e mandar imprimir conferem certo medo de ter esquecido algum, e cometido,
assim, um enorme erro. Fica sempre a sensao de que esquecemos uma pessoa muito
importante daquelas que no poderamos deixar de agradecer. Assim, antes de agradecer peo
desculpas se, por alguma falha, esquecer de agradecer a todos os que comigo fizeram essa
caminhada.
Em primeiro lugar agradeo a todas as Nossas Senhoras, que so, para mim, a face
feminina de Deus. Em especial: Nossa Senhora do Perptuo Socorro, a protetora dos
haitianos; Nossa Senhora Aparecida, a protetora dos brasileiros; Nossa Senhora da Conceio,
que abenoa os mineiros; Nossa Senhora Desatadora dos Ns, que tem muito trabalho
comigo. Enfim, so todas lindas faces de Deus, a elas meu agradecimento primeiro e especial.
Aos meus pais que me trouxeram vida. A meu pai, in memoriam.
Agradeo s minhas filhas, Sonayra e Tayn, as duas pessoas mais importantes da
minha vida.
Ao meu genro Wellington, sempre to curioso sobre o processo que se desenvolvia no
mestrado e na escrita da dissertao.
s minhas irms e sobrinhos. Myra Morena, sobrinha que, por viver bem perto,
acompanhou parte desse caminho.
minha cunhada Arica, e minha sobrinha Natlia, que me abrigaram em seu lar
quando quase enlouqueci com a mini-bateria de meu pequeno vizinho - que quando no
estava tocando/ensaiando nesse barulhento instrumento, estava exercitando a pregao/orao
para seus fiis imaginrios (pois sim: crianas tm amiguinhos imaginrios, meu pequeno
vizinho tem fiis!). E tambm a Rodrigo que me emprestou seu apartamento nesse momento
de stress.
Aos professores do mestrado que proporcionaram bons cursos, com boas discusses.
Aos professores Marco Morel e Maria Elisa Mder por participarem da minha banca
de qualificao com contribuies preciosas. Agradeo mais uma vez por terem aceitado o
convite para novamente estarmos juntos no momento final, a defesa.
Agradeo ainda professora Mrcia de Almeida Gonalves, minha orientadora. Como
j dito por mim no passado, volto a repetir que uma professora que de forma encantadora
socializa com seus alunos seus conhecimentos. Conforme a definio de uma amiga da
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faculdade, Juliana Arruda, Mrcia uma mulher elegante de corpo e alma. Sempre aprendo
muito ao lado dessa especial professora, que me conduz desde os primeiros interesses pelo
Haiti, ainda na graduao. Foi minha orientadora na monografia, e aceitou trilhar comigo esse
caminho da dissertao. A voc, Mrcia, meu especial agradecimento.
No posso deixar de agradecer a Andria, secretaria da Ps-Graduao, sempre to
solcita e paciente comigo. Rejane, bibliotecria da FFP, que, to atenciosa, sempre fazia o
possvel para ajudar nos emprstimos de livros (que foram muitos!), nunca deixando de
perguntar como estava minha pesquisa.
Aos colegas do mestrado que dividiram comigo algumas angstias e ansiedades desses
momentos finais. Em especial Luciana, companheira de Anpuh, cigarros e cafezinhos
regados a dvidas, lamentos, alegrias e muitas expectativas.
A todos os meus amigos e amigas, a todos, que no so muitos, mas so especiais. No
preciso nomear cada um deles, pois todos sabem o quanto so especiais em minha vida.
E por ltimo meu obrigada sempre Susanna. Amiga das horas difceis de comeo da
escrita e, principalmente, de finalizao desta. No tenho palavras para agradecer tanta
dedicao e ajuda nas correes do portugus, nas sugestes de pargrafos, na reviso final.
Devo ter esquecido algum com certeza, mas fica aqui o agradecimento a todos os que
direta e indiretamente partilharam comigo as delcias e angstias de escrever uma dissertao.
Muito obrigada!
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A histria no escrita com o sangue fraco dos indecisos,
E sim com o vigoroso sangue daqueles que ousam e lutam.
La Fontaine
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RESUMO
Esta dissertao analisa as notcias e repercusses, em terras brasileiras, relativas s
sublevaes de escravos e s lutas de emancipao na colnia francesa de Saint Domingue
(Haiti). Nosso interesse investigar, por meio da anlise comparativa entre dois peridicos - a
Gazeta do Rio de Janeiro e o Correio Brasiliense - no s o que veio a ser noticiado, mas,
particularmente, a forma como tais notcias vieram a circular, buscando assim identificar o
maior ou menor silenciamento sobre a experincia em questo, bem como as comparaes
e/ou ilaes com o que ento ocorria no Reino do Brasil e em outros domnios ultramarinos
de Portugal, entre 1808 e 1817. Por meio dos discursos veiculados por esses dois peridicos,
interessa-nos entender como foram selecionadas e impressas as notcias sobre a ex-colnia
francesa em tempos de instabilidade e mudana quanto s relaes entre colnias americanas
e suas respectivas metrpoles.
Palavras-chave: Revoluo, silncio, imprensa, Gazeta do Rio de Janeiro, Correio Brasiliense,
Haiti.
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ABSTRACT
This study analyzes the news and repercussions, in brazilian ground, relative to the slaves'
rebellions and to the emancipation fights in the French colony of Saint Domingue (Haiti). Our
interest is to investigate, by means of the comparative analysis between two periodicals - the
Gazeta do Rio de Janeiro and Correio Braziliense - the form as such news came to circular,
seeking thus to identify the silence on the experience at issue, as well as the comparisons
and/or deductions with that then occurred in Brazil's Kingdom and in other Portugal's
overseas domains, between 1808 and 1817. We has interest, like specific focus in the scope of
this work, identify the revolution concept meanings in the way as that became used in the
allusions to Haiti. Through the speeches published by these two journals, we are interested in
understanding how the news about Saint Domingue were selected and printed, in times of
instability and change regarding the relations between the American colonies and their
metropolis.
Keywords: Revolution, silence, press, Gazeta do Rio de Janeiro, Correio Brasiliense, Haiti.
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SUMRIO
INTRODUO................................................................................................................... ..... 9
1 REVOLUO PALAVRA DA MODA, PALAVRA PROIBIDA?...................................20
2 A PRALA DA ANTILHAS SO DOMINGOS............................................................33
3 UMA VERSALHES TROPICAL, NA AMRICA PORTUGUESA..............................51
4 A GAZETA DO RIO DE JANEIRO....................................................................................64
5 O CORREIO BRAZILIENSE.............................................................................................101
6 CONSIDERAES FINAIS..............................................................................................131
FONTES E BIBLIOGRAFIA................................................................................................136
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INTRODUO
Durante a finalizao desse trabalho um trgico acontecimento tomou todos os canais
de comunicao, rdio, televiso, jornais e revistas impressos, e o mais virtual de todos, a
internet, que em tempo real apresentou-nos o horror de uma catstrofe natural que teve lugar
na capital haitiana, Port-au-Prince. Um terremoto devastador, destruindo muito, matando
milhares. As notcias, em uma velocidade incrvel, se multiplicaram e nos encheram de pavor
e lamento por todos os que ali estavam. Havia haitianos e estrangeiros que trabalhavam por
uma reconstruo, estudantes que se preparavam para essa tarefa, soldados de vrios pases
participavam desse momento haitiano, representantes de organizaes internacionais que ali
estavam empenhavam-se nesse re-erguimento, e principalmente haitianos pobres que j
tinham to pouco e que com nada ficaram depois de tamanho abalo.
No cabe aqui descrever ou reviver to deplorvel situao, no entanto ficaria difcil
ignorar to devastador acontecimento, que coincide, infelizmente, com a finalizao de um
trabalho que se dedica a pesquisar as primeiras notcias do Haiti impressas nos primeiros
peridicos brasileiros. E pensar na diferena de tempo e no espao que hoje o Haiti pode
ocupar na imprensa foi algo natural, no ignorando que isso foi motivado pela cobertura de
uma catstrofe classificada pela ONU como a pior de todos os tempos no mundo. O Haiti
ocupou todas as manchetes, lamentavelmente de uma forma trgica.
Ao acompanhar as vrias mdias, o que nos chamou a ateno foi o tom de
preconceito que por vezes incomodou, e ao me deparar com um blog de um professor e
alunos da Unicamp que estavam no Haiti no momento do terremoto, e depois dele, o
incomodo se tornou explicvel:
O que vemos hoje em Porto Prncipe, dois dias aps o terremoto um exemplo indescritvel
de civismo e ajuda. No h o caos, como parte dos jornalistas que nos procuram querem ouvir, as pessoas no esto em desespero e nem h sinal da barbrie imaginaria que molda o nosso preconceito sobre o Haiti. Os haitianos esto se virando como sempre fizeram aps
embargos e avanos econmicos internacionais que implodiram a produo local (como
conhecemos no caso do trigo norte-americano). You have to show destruction (Voc deve mostrar a destruio) foi o que ouvi de um jornalista norte-americano. E de fato h sim sinais de destruio e morte, que merecem ser retratados. Mas os haitianos encontraram meios
criativos e cheios de civismo para contornar essa situao, que nos cabe aqui relatar.1
Na quase totalidade dos textos lidos pelos reprteres, ou escritos por eles, a
preocupao central era mostrar o perigo de revoltas motivadas por falta de gua e comida. Os
saques foram mostrados insistentemente; quase no tivemos notcias de haitianos organizando
1 Disponvel em: http://lacitadelle.wordpress.com/page/2/. Acessado em 14/01/2010.
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ajuda aos seus. Era como se todos s estivessem esperando que os estrangeiros tomassem a
frente de tudo, como se no fossem capazes de organizar por eles mesmos o que chegava de
ajuda. Entendo que em um momento como esse toda ajuda valida, mas parece que enfatizar
o despreparo ou a incompetncia dos haitianos um modo de justificar o envio de tropas de
marines americanos, que mais do que preparados para ajudar humanitariamente, so
aparelhados para a guerra. Com o terremoto, a justificativa para o aumento de tropas de paz
da ONU e a tomada internacional de um pas, j to assolado por suas prprias catstrofes,
pareceu premente.
No nosso interesse fazer um discurso que beire a teoria da conspirao, nem
levantar bandeiras, mas se torna inevitvel pensar que a imagem historicamente colada ao
Haiti ainda hoje se faz presente: como se dissessem que a despeito de ter sido a primeira
nao latino-americana a fazer sua independncia e abolio da escravido, no se tornou um
pas possvel porque sempre envolto em suas prprias revoltas e impossibilidades. Algo como
ler nas entrelinhas das notcias, ou nas suas prprias linhas: Haiti: pas que nunca conheceu a
ordem2. Essa foi a manchete de uma breve histria sobre o Haiti publicada no site de notcias
Opinio e Notcias. Concordando com o feliz comentrio de minha orientadora, Mrcia
Gonalves, pontuo: por vezes o silncio mais respeitoso e oportuno. O silncio ouro!
Outro fato que tambm chamou a ateno foi a declarao de um representante do Haiti
no Brasil, o cnsul George Samuel Antoine, expondo as feridas antigas:
Desgraa de l t sendo boa pra gente aqui, fica conhecido.
Acho que de tanto mexer com macumba, no sei o que aquilo.
O africano em si tem maldio todo lugar que tem africano ta f..3. [sic.]
Divises internas sempre foram presentes na histria do Haiti, mas o que ficou claro nas
declaraes do cnsul que, vale salientar, no sabia que estava sendo gravado , foi a
intolerncia religiosa, e podemos dizer racista, para com os africanos e sua religiosidade to
presente no seu pas. O fato foi considerado por muitos como sendo preconceituoso e
desnecessrio em um momento em que o povo estava sofrendo e cantando seus cnticos
religiosos para seus mortos. Apontar os africanos e sua religiosidade como culpados pelo
terremoto foi a pior maneira de falar do que realmente importava nesse momento: a ajuda e
reconstruo do Haiti. Mas no ficaremos aqui a descrever e narrar fatos to chocantes; o
2 Disponvel em: http://opiniaoenoticia.com.br/internacional/america-latina/haiti-pais-que-nunca-conheceu-a-ordem/.
Acessado em: 16/a1/2010. 3 Disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=6sqRPVgo4l4. Acessado em 16/01/2010.
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Haiti no precisava dessa catstrofe para ficar conhecido. Certas histrias, se levadas para as
salas de aula, poderiam e podem dar conta disso sem tantos abalos e sofrimentos.
Voltemos, portanto, nosso olhar para o fim sculo XVIII e comeo do XIX, momento
em que o Haiti ganhava repercusso internacional, no por uma catstrofe, antes por um
conjunto de acontecimentos surpreendentes que colocavam em xeque alguns dos princpios
cultivados e admirados por muitos.
Nesse perodo algumas partes do mundo vivenciavam o que Eric Hobsbawn chamou
de Era das Revolues. Entender as significaes de conceitos como revoluo no perodo
em questo; compreender quais foram as mudanas que ocorreram nessas e em outras
palavras, buscando perceber essas nuances da linguagem, pode nos ajudar a analisar questes
como a publicao ou no de notcias sobre os acontecimentos que envolviam a ex-colnia
francesa nas Antilhas, o Haiti. Esse ser o primeiro aspecto a ser considerado, e estar
contemplado no Captulo 1.
Seguiremos tomando por base os apontamentos de Reinhardt Koselleck, autor que
analisou o conceito de revoluo e seu significado para a histria, ponderando que, entre
outros aspectos, a transformao que esse conceito passou aps a Revoluo Francesa, trouxe
para a histria a ruptura com o desenvolvimento do moderno conceito de histria. Seu
principal dilogo foi com a filsofa Hanna Arendt, que realizou estudo comparativo entre as
Revolues Francesa e Americana, e estabeleceu alguns parmetros para comparar o que
poderia ou no ser considerado revoluo. Esta autora e seu estudo nos auxiliaram tambm
na anlises realizadas no primeiro captulo.
Outro importante estudo a nos auxiliar nesse entendimento foi o da professora Eni
Puccinelli, em seu livro Formas do Silncio. Nesse texto a autora pontua que o silncio deve
ser pensado e analisado para alm de sua dimenso poltica: o silncio funda algo, o silncio
pode ser fundante, pode figurar como um elemento do discurso.
Outros autores nos auxiliaro, tambm, nesse aspecto analtico. A histria como
conhecimento cientfico relaciona-se, entre outros elementos, com lacunas4 e silncios. Cada
historiador faz suas escolhas dentro de certas perspectivas. Analisar o silncio a que foi
relegada a Revoluo Haitiana, e, conseqentemente sua condio lacunar, sero os aspectos
considerados nesta pesquisa, pois a histria da revoluo da colnia francesa das Antilhas, o
futuro Haiti, entre os brasileiros passou pelo silncio e tambm pela lacuna, afinal o medo
causado pelos horrores ocorridos no momento da revoluo podem ter sido os
5 VEYNE, Paul. Tudo histrico, portanto a Histria no existe. In: SILVA, Maria Beatriz N. da (Org.). Teoria da Histria. So Paulo: Cultrix,, 1986, p.45-55
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determinantes no emudecimento das notcias, fator que at hoje constatamos nos escritos
sobre este acontecimento.
O segundo captulo ter como eixo central o Haiti, sua revoluo, a histria que dela
se contou, e como foi entendido esse acontecimento que, a partir das ilhas Antilhanas, ecoou
pelo continente americano.
Os acontecimentos do Haiti, em finais do sculo XVIII, foi um dos primeiros
episdios de sublevao de escravos negros e mulatos que evidenciaram as incoerncias dos
valores empregados pelos revolucionrios franceses. Os princpios filosficos dos iluministas
que serviram de base s revolues burguesa, norte americana e francesa, no podiam ser
empregados em uma colnia onde a propriedade de homens era algo inquestionvel:
A Revoluo Haitiana inverteu os princpios sagrados dos Direitos do Homem e, desse modo, redefiniu o significado de liberdade. Enquanto a filosofia poltica das duas revolues
burguesas, americana e francesa, ligava axiomaticamente liberdade e os direitos de
propriedade, para os escravos de Santo Domingo a liberdade implicava a destruio dos
direitos propriedade, j que os escravos eram considerados como propriedade dos seus senhores. 5
Saint-Dominique foi a segunda colnia do continente americano a se tornar
independente. Uma independncia que custou a vida de muitos homens europeus, brancos,
alm dos mulatos e negros do lugar. Os escravos desta pequena e rica ilha das Antilhas
lutaram contra exrcitos franceses, espanhis e ingleses, derrotando, cada uma a seu tempo,
todas estas foras, o que levou alguns anos at que sua independncia fosse reconhecida pelos
pases vizinhos e tambm europeus6.
O Haiti um pequeno pas localizado no mar do Caribe. Em uma grande ilha dividida
em dois pases, a Republica Dominicana, colnia espanhola no sculo XVI at o XIX e o
Haiti7, colnia francesa do XVII at sua independncia, no comeo do XIX. Em princpio esta
grande ilha ficou conhecida como Hispaniola, nome dado pelos espanhis, os primeiros
europeus a explorar as novas terras da Amrica Caribenha. Os franceses chegaram a essa ilha
em 1629, e depois de alguns desentendimentos entre franceses e espanhis, a ilha foi dividida
entre essas duas potncias europias do sculo XVII, atravs do Tratado de Rijswijk, de 1697,
por meio do qual a Espanha cedeu o territrio Frana.
5 FICK, Carolyn. Para uma (re) definio de liberdade: a Revoluo no Haiti e os paradigmas da Liberdade e Igualdade. In Estudos Africanos, Ano 26, n. 2, 2004, pp.355-380. 6 JAMES, C. L. R.. Os jacobinos negros. Toussaint LOuverture e a revoluo de So Domingos. So Paulo: Boitempo editorial, 2000, p. 15. 7 Haiti foi um nome recebido depois da independncia em 1 de Janeiro de 1804, palavra de origem Aruaque, idioma nativo,
ahitii, que significa "terra alta ou montanhosa. Grande Enciclopdia Barsa. 3 ed. So Paulo: Barsa Planeta Internacional Ltda., 2004, Vol. 7, p.303.
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Pesquisar a repercusso da Revoluo Haitiana em terras da colnia portuguesa na
Amrica passa necessariamente por saber mais sobre esses acontecimentos. Nesse sentido ler
Os Jacobinos Negros, de C. L. R. James importante, visto que este , ainda hoje, o estudo de
referncia sobre essas experincias histricas. A despeito de ter sido escrito h setenta anos,
ainda se configura como um clssico sobre o assunto.
C. L. R. James inicia seu livro justificando o interesse por esse acontecimento que teve
repercusso nas colnias antilhanas e americanas como um todo, pois representou o
questionamento do antigo sistema colonial, movimento que ps fim escravido nas terras da
ento colnia francesa no Caribe. Tendo nascido em um pas caribenho, Trinidad e Tobago8, o
autor afirma que antes mesmo de deixar o Caribe, pois escreveu os Jacobinos entre Frana e
Inglaterra, tendo publicado nesse ultimo pas, j havia escrito sobre o assunto ainda em
Trinidad. Em suas palavras:
Convenci-me da necessidade de escrever um livro no qual assinalaria que os africanos ou os
seus descendentes, em vez de serem constantemente o objeto da explorao e da feridade de outros povos, estariam eles mesmos agindo em larga escala e moldando outras gentes de
acordo com as suas necessidades9.
Ao percorrer as pginas do livro de C.L.R. James, vamos entendendo um pouco sobre
a colnia francesa no final do sculo XVIII, e como esta se apresentava no perodo que
antecedeu a Revoluo francesa. A colnia era o maior mercado do trfico negreiro europeu,
e representava dois teros do mercado externo da Frana. Nessa poca foi chamada de Prola
das Antilhas.
No entanto, no apndice desse trabalho que podemos entender um pouco da
motivao de C. L. R. James ao construir to rica pesquisa sobre a Revoluo Haitiana.
Segundo o tradutor, Afonso Teixeira Filho, o apndice foi escrito em 1966. Sob o titulo De
Toussaint LOuverture a Fidel Castro. As duas revolues a Cubana e a Haitiana ,
lideradas por esses grandes homens; eventos distantes no tempo, uma no sculo XIX, outra no
8 Trinidad e Tobago um pas caribenho situado no largo da costa da Venezuela, entre o mar do Caribe e o
oceano Atlantico o pas com a segunda maior populao de lingua inglesa na regio, depois da Jamaica. Sua
capital, Port of Spain. Em 1498, Cristovo Colombo chegou a Trinidad e Tobago. Depois ocupada pelos
holandeses, logo foi tomada pelos espanhois em 1632. Em 1802, os ingleses conquistaram as ilhas, 12 anos
depois, em 1814 foi cedida ao Reino Unido. As ilhas de Tobago passaram a constituir uma colnia apenas em
1888. Em 1962 o pas tornou-se oficialmente independente. Transformando-se numa repblica parlamentarista e
multipartidarista. A populao de Trinidad e Tobago constituda, principalmente, de etnias africanas e
asiticas, estas ltimas consistindo principalmente de indianos e chineses. Na distribuio das nacionalidades, negros, mestios e brancos perfazem cerca de 61% da populao enquanto 39% so de origem asitica. Grande
Enciclopdia Barsa. 3 ed. So Paulo: Barsa Planeta Internacional Ltda., 2004, vol. 14, p.179/180. 9 JAMES. C. L. R. Op. cit. p. 11.
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XX, revolues caractersticas das ndias Ocidentais, produtos de uma origem peculiar e
de uma histria peculiar10.
Os habitantes das ilhas, nas revolues, tomaram conscincia de si como povo e
essas revolues marcaram o estdio ltimo do desafio dessas ilhas em direo busca de
uma identidade nacional11.
A plantao de cana-de-acar e a escravido nas Ilhas Ocidentais so os fatores
dominantes dessa histria peculiar. A sociedade aucareira impunha um padro que no
encontra paralelo: no africano, europeu, americano, tampouco nativo. Esse modelo
oriundo das Ilhas Ocidentais. C. L. R. James pontua que a plantao de cana-de-acar forjou
uma civilizao nessas ilhas. Quando os escravos l chegavam, entravam em um sistema de
produo em larga escala dos engenhos, um sistema moderno, que fez com que vivessem
juntos uma relao social, muito mais prximos um do outro do que em qualquer proletariado
da poca12. Para o autor, a rapidez da produo e a importao de comida e roupas para os
escravos so marcos de uma vida moderna. Uma histria que, segundo ele, nica.
No podemos afirmar que o padro de produo aucareira foi nico para as Ilhas
Ocidentais, visto que a cana-de-acar foi tambm um produto introduzido pelos
colonizadores portugueses em sua colnia americana, e dispunha dessa larga escala. Uma vida
ditada pelos engenhos, uma sociedade que vivia em torno do acar. Talvez seja essa uma
caracterstica das ilhas que pode ser encontrada na colnia portuguesa, o Brasil.
Outro atributo que o autor dos Jacobinos Negros pontua, de fato peculiar das ilhas:
Bem antes do nibus e do txi, a pequena extenso das ilhas fazia com que a comunicao
entre elas fosse rpida e fcil. Essa caracterstica tinha como conseqncia a rpida
comunicao entre os colonos e tambm entre os escravos fugidos. Tornava dinmica a vida
poltica do lugar.
O autor divide as ndias Ocidentais entre Fidel Castro e Toussaint LOuverture, e em
trs perodos: o sculo XIX; o entre guerras e o momento depois da segunda guerra mundial.
O sculo XIX, o sculo da independncia e abolio da escravido. Aqui C. L. R. James fala
novamente da importncia da independncia haitiana e como tiveram que lutar por ela, o
longo caminho percorrido pelos haitianos e a sociedade do acar ainda presente no novo
pas, alm da permanncia da cultura aucareira, atividade que ficou associada a escravido.
Aqui um ponto interessante: Por mais de cem anos depois da independncia, os haitianos
10 JAMES. C. L. R. Op. cit. p. 344 11 Idem. 12 Ibidem, p. 345.
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tentaram construir uma rplica da civilizao europia, isto , da civilizao francesa, nas
ndias Ocidentais. A fala de um embaixador do Haiti na Frana foi usada pelo autor para
ilustrar esta situao. Nela o embaixador enumerava o que era francs no Haiti: as
instituies, a legislao, a literatura, a universidade, as disciplinas escolares. E completava
dizendo que a Frana havia dado s Antilhas, na expanso colonial, o que podia dar de sua
essncia, moldando seu gnero nacional, e que mesmo aps a independncia continuava se
renovando13
.
C. L. R. James continua dizendo que geraes, os filhos da elite haitiana, foram
estudar na Frana, ou seja, o dio dos momentos revolucionrios havia passado. Porm a
civilizao haitiana, segundo ele, havia chegado a uma situao ridcula internacionalmente, e
os escritos estrangeiros que a agrediam foram somados em 1913 aos fuzileiros norte-
americanos. Justo nesse momento o Haiti teve que encontrar seu ponto de apoio nacional,
localizado em seu prprio quintal:
Descobriram aquilo que hoje conhecido como Negritude. a ideologia social predominante
entre os polticos e intelectuais em qualquer parte da frica. o assunto de calorosas disputas
e elaboraes toda vez que trata-se da frica ou dos africanos. Mas em sua origem e seu
desenvolvimento, o produto peculiar da histria tambm peculiar das ndias Ocidentais, e no poderia ser de outra parte que no das ndias Ocidentais14.
A identidade haitiana no sculo XX foi repensada aps os eventos descritos acima. Em
1913, aps a invaso dos fuzileiros norte-americanos, os haitianos se uniram para protestar e
uma greve aconteceu liderada por intelectuais, literatos que tinham descoberto o africanismo
de seus camponeses como uma via para a identidade nacional. Esses eventos mudaram os
haitianos: a imagem que o Haiti fazia de si mesmo tinha mudado. Adeus Marselhesa.
Essa expresso demonstrava que naquele momento no mais a Frana, mas a frica. Assim o
papel da frica na busca da identidade nacional foi sentido no pas que primeiro aboliu sua
escravido na Amrica, o segundo a se tornar independente, o nico a ter uma revoluo
escrava exitosa.
Deste modo ficamos sabendo qual foi a motivao maior de C. L. R. James ao
escrever seu livro: Todavia, como obvio por todo o livro, e particularmente nas ltimas
paginas, a frica e a emancipao africana que ele tem em mente15. Est presente um
13 JAMES. C. L. R. Op. cit. p. 352. 14 Ibidem, p. 347. 15 Ibidem. p. 355.
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pouco do movimento Pan-africanista16
, e alguns de seus lideres so apresentados por C. L. R.
James, que tambm foi um militante neste movimento, e trabalhou com George Padmore17
. O
autor chama, ainda, ateno para o fato de os dois maiores militantes do movimento terem
sido homens das Ilhas Ocidentais: Padmore, oriundo de Trinidad (assim como James), e
Marcus Garvey18
, da Jamaica.
E a despeito de todas essas marcas que o autor imprimiu a seu trabalho, o seu livro
essencial na compreenso da independncia e abolio da escravido no Haiti. Um livro com
um desenho marxista, verdade: as lutas de classes so analisadas como sendo um ponto de
entendimento desse acontecimento. Um estudo que buscou uma histria herica dos negros na
Amrica para talvez servir de exemplo e motivao ao movimento pan-africanista, onde C. L.
R. James militava.
O outro estudo que nos auxiliou na compreenso da independncia e abolio da
escravido em So Domingos foi o livro de Robin Blackburn, A queda do escravismo
Colonial. Tambm um estudo com vis marxista, que buscou no sistema colonial baseado no
16 O pan-africanismo foi uma ideologia que propunha a unio da frica como forma de potencializar a voz do continente no contexto internacional. Relativamente popular entre as elites africanas ao longo das lutas pela independncia da segunda
metade do sculo XX, em parte responsvel pelo surgimento da Organizao de Unidade Africana, o pan-africanismo foi
mais defendido fora de frica, entre os descendentes dos escravos africanos que foram levados para as Amricas at o
sculo XIX . Eles propunham a unidade poltica de toda a frica e o reagrupamento das diferentes etnias,divididas pelas imposies dos colonizadores.Valorizavam a realizao de cultos aos ancestrais e defendiam a ampliao do uso das lnguas
e dialetos africanos,proibidos ou limitados pelos europeus, Foi um movimento poltico, filosfico e social que pretendia
promover a defesa dos direitos do povo Africano e da unidade do continente africano no mbito de um nico Estado
soberano, para todos os africanos, tanto na frica como em dispora. A teoria panafricanista foi desenvolvida principalmente pelos africanos na dispora americana descendentes de africanos escravizados e pessoas nascidas na frica a partir de
meados do sculo XX como William Edward Burghardt Du Bois e Marcus Mosiah Garvey, George Padmore entre outros, e
posteriormente levados para a arena poltica por africanos como Kwame Nkrumah. 17 Malcolm Nurse (1903-1959) adotou o pseudnimo de George Padmore, em 1927. Ele era o neto de um escravo Africano, Afonso Norse, que nasceu em uma plantao na colnia de Barbados, nas ndias Ocidentais Britnicas. Norse aprendeu mais
tarde a trabalhar com alvenaria e migrou para a vizinha ilha de Trinidad. O pai de Padmore, James Norse foi um negro bem-
educado e de classe mdia renomado botnico Caribenho.
George Padmore nasceu em 1903 na vila rural de Arouca, mas a sua infncia e adolescncia foram gastos em um subrbio de classe mdia da capital de Trinidad, em Port-of-Spain. Ele participou do prestigiado St. Mary's College da Imaculada
Conceio em Port-of-Spain. Na idade de 19 anos, ele serviu brevemente como um reprter para o "Trinidad Guardian", um
jornal dirio. Devido freqente discusses com o editor do jornal, Padmore se demitiu e em 1924 partiu para os Estados
Unidos. E foi dos EUA que Padmore comeou sua militncia. Fez parte do Partido Comunista chegou a morar em Moscou de onde militava para os sindicatos de trabalhadores negros nos EUA,publicou vrios jornais e panfletos. Desiludido com o
comunismo e o rumo que tomou o movimento de trabalhadores negros, mudou-se para Londres e com C.L.R. James militou
nas causas anti-colonialistas e nas independncias de pases caribenhos e africanos, como Gana. Participou ativamente do
movimento Pan-africanista. Foi um incansvel militante e serviu de inspirao para muitos negros da dispora africana. 18
Marcus Mosiah Garvey (Saint Ann's Bay, Jamaica, 17 de agosto de 1887 Londres, 10 de junho de 1940) nascido em
Saint Ann's Bay, capital da parquia de Saint Ann, Jamaica, era o mais novo de 11 filhos, 9 dos quais morreram ainda na infncia. Garvey frequentou a escola infantil e elementar em Saint Ann's Bay, e era tido como aluno brilhante. Ele tambm
recebeu instruo particular de seu padrinho Alfred Burrowes, proprietrio de uma oficina grfica. considerado um dos
maiores ativistas da histria do movimento nacionalista negro. Garvey liderou o movimento mais amplo de descendentes
africanos at ento; lembrado por alguns como o principal idealista do movimento de "volta para a frica". Na realidade ele criou um movimento de profunda inspirao para que os negros tivessem a "redeno" da frica, e para que as potncias
coloniais europias desocupassem a frica. Em suas prprias palavras, "Eu no tenho nenhum desejo de levar todas as
pessoas negras de volta para a frica, h negros que no so bons elementos aqui e provavelmente no o sero l.". Marcus
Garvey tem, para o povo negro, como contribuio mais importante o resgate do orgulho e da dignidade em ser negro. Suas atitudes mostraram como o negro poderia escapar do complexo de inferioridade racial.
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trabalho escravo seu ponto de maior interesse, o modo de produo escravista. Em seu livro, a
escravido na Amrica foi analisada de forma sinttica. Dentro deste quadro americano, dois
captulos foram dedicados independncia e abolio da escravido em So Domingos, visto
que foi esse o momento em que a escravido foi posta em xeque, alm de ter tido grande
repercusso por toda a Amrica escravista. O autor pontua em seu estudo como foi a
influncia desse acontecimento sentida em colnias portuguesas e espanholas na Amrica.
Aps redigir o captulo sobre So Domingos, aportaremos na colnia portuguesa da
Amrica, que no comeo do sculo XIX vivenciou uma grande transformao com a chegada
da Corte portuguesa em suas terras. Esse o tema do nosso terceiro captulo. Nele
buscaremos a caracterizao, o contexto das transformaes e (re) significaes pelas quais as
terras da colnia lusa na Amrica passaram. As revolues e sentidos que estas carregaram
para os que viviam naquele momento nessas terras, no perodo final dessa colnia.
Pretendemos buscar o que se lia e o que se via nessa parte portuguesa que se transformou e
(re) significou no quadro metropolitano com a chegada de todo o aparato da Corte.
Ainda no terceiro captulo buscaremos a ambincia do perodo. Neste momento a
Corte Portuguesa chegava a sua colnia na Amrica, impulsionada pelos avanos
napolenicos na Pennsula Ibrica. Muitos espaos foram redefinidos. Tentaremos entender
como ficou o Rio de Janeiro, nosso territrio relacional. Visamos identificar como as relaes
sociais e as relaes de poder estavam sendo organizadas, alm de descobrir quem eram os
homens atuantes na administrao, que ademais, eram os potenciais leitores dos primeiros
jornais a circular de forma peridica na colnia. Essa a transformao que nos toca mais de
perto: a presena dos peridicos.
A imprensa na colnia, os gazeteiros, seus ofcios, suas posies na sociedade sero
pontos abordados ainda no terceiro captulo. Caracterizar a imprensa nesse comeo de sculo
XIX tambm uma questo de fundamental importncia nesse captulo. Descobrir qual o
papel da imprensa nesse momento, que lugar ocupava nesse perodo to cheio de
transformaes e mudanas. Esse meio de veicular informao que hoje to difundido entre
ns, e que s pode circular na Amrica portuguesa aps a chegada do aparato metropolitano,
no sem uma prvia censura que, no entanto, s alcanou a Gazeta do Rio de Janeiro, dado
que o Correio Braziliense era escrito e impresso em Londres e entrava de forma clandestina
nas terras da ento colnia portuguesa.
A Gazeta do Rio de Janeiro, o primeiro peridico a ser impresso no Brasil, o ponto
central do quarto captulo desta dissertao. Um pouco da sua histria, seu formato, sua
importncia analisados de forma sucinta. Contamos, para isso, com um dos mais novos
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estudos acadmicos sobre a Gazeta, a dissertao de mestrado de Juliana Gesuelli19, e com o
trabalho de Maria Beatriz Nizza, que fez um levantamento sobre a Gazeta20.
Nesse captulo analisaremos as notcias que figuraram nessa primeira Gazeta
referentes a So Domingos: como foram publicadas, quais eram os recortes privilegiados por
quem tinha como misso escolher, traduzir e imprimir o que chegava de notcias atravs dos
portos da Capital metropolitana, o Rio de Janeiro, lugar em que era ento impressa a Gazeta
do Rio de Janeiro. Como foram tratadas tais notcias e que lugar ocuparam nas pginas desse
peridico o ponto que mais procuraremos entender aqui.
O quinto captulo tem como centro o Correio Braziliense, peridico escrito por
Hiplito Jos da Costa. Exilado em Londres, tinha os olhos fixos em sua terra natal, e
identificou a vinda da Corte para esse lado do Atlntico como um momento singular. A forma
como encontrou de, mesmo distante, participar das transformaes que teriam lugar com essa
mudana, foi atravs das anlises feitas em seu peridico. Mais do que imprimir notcias,
fazia delas pontos de reflexo acerca do momento vivido e das conseqncias de certos fatos
para Portugal e para sua colnia americana. To extraordinrio personagem j foi tema de
muitos estudos. Aqui nos apoiamos em alguns dos textos mais recentes dedicados a ele que
esto publicados na edio fac-similar do Correio Braziliense. Autores como Isabel Lustosa,
Alberto Dinis e Marco Morel, escreveram sobre esse homem que hoje considerado o
patrono da Imprensa Brasileira, e seu peridico por muitos considerado o primeiro jornal do
Brasil, mesmo tendo sido escrito e impresso em Londres.
Nesse captulo faremos o exerccio de entender quais os pontos que Hiplito da Costa
entendeu como relevantes e importantes sobre So Domingos, e que mereciam no s um
espao no Jornal como tambm sua anlise, sempre to crtica, para o bem ou para o mal.
Tanto em um jornal como em outro, pudemos perceber que no eram todos os
acontecimentos em So Domingos que ganhariam suas pginas: alguns aspectos no
poderiam ser ignorados, enquanto outros entravam no rol dos que deveriam ser silenciados.
Desta forma, a leitura dos jornais nos possibilitou entender um pouco de como foram tratadas
as notcias que chegavam sobre So Domingos e como eram impressas, qual lugar ocupavam
na diagramao do jornal, como as questes econmicas foram privilegiadas e tambm como
questes foram silenciadas, mesmo que fosse apenas mudando uma palavra por outra ou
19 Dissertao de mestrado de Juliana Gesuelli MEIRELLES pode ser consultada on line no endereo:
http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000375875. Acessado em 2009-11-17, p. 127- 128. 20 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822) Cultura e Sociedade.Rio de Janeiro: EdUERJ. 2007.
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simplesmente, expressando, como Hiplito da Costa o fez textualmente: Temos, por obvias
razes, omitido falar das colnias francesas em S. Domingos21. A questo colonial e a
discusso sobre o fim desse sistema esteve em pauta nos dois peridicos, nesse sentido o fim
do perodo napolenico e os acordos assinados entre a Frana e alguns pases europeus aps a
derrota de Napoleo so significativos. Aps a restaurao da monarquia francesa, a Frana
estava disposta a reaver sua mais rica colnia, tal fato evidenciou a discusso sobre a questo
colonial. E esse ponto passou pelos dois jornais aqui pesquisados.
Por fim, algumas consideraes finais. O primeiro recorte cronolgico a que nos
propusemos pesquisar seria o compreendido entre os ltimos anos da Colnia portuguesa na
Amrica, indo de 1808 a 1822, momento em que a construo de uma histria para este novo
imprio estava em pauta. No entanto os anos que vo de 1814 a 1817 nos apresentaram
questes que, se no aprofundadas deixariam uma lacuna. Assim percorremos os peridicos
at esse ponto. Os acordos e tratados assinados entre a Frana e outros pases europeus nesse
momento expressam alguns aspectos que podem apontar para a crise do antigo sistema
colonial e tambm para a questo da abolio da escravido. A diferena e semelhana na
abordagem das notcias sobre So Domingos nos dois peridicos sero aqui contempladas.
O tempo das revolues foi um momento marcado por mudanas conceituais, como
nos apontaram os estudos de Hanna Arendt e Reinhardt Koselleck, e foi isso o que quisemos
pontuar. Esta pesquisa buscou dentro dos jornais os ecos, as entrelinhas, o que foi dito e o no
dito sobre o Haiti nos primeiros peridicos aqui a circular.
21
COSTA, Hiplito Jos da. Correio Braziliense ou Armazm Literrio. Braslia/So Paulo: Correio Braziliense/Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2001-2002. Edio fac-similar. Vol. XIV. P. 44.
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1. REVOLUO : PALAVRA DA MODA, PALAVRA PROIBIDA?
Wittgenstein disse: o que no se pode dizer deve-se calar.
Creio que se pode falar com igual justia: o que no se pode
dizer deve-se pesquisar. 22
Houve um tempo em que o ritmo acelerado de certas transformaes embaralhou os
sentidos de palavras e conceitos. Assim foi no curso da segunda metade do sculo XVIII , e no
alvorecer do sculo XIX. As vidas de algumas pessoas foram diretamente impactadas por
essas mudanas. Usemos um personagem como guia de nossas reflexes.
O filsofo Antoine Laurent de Lavoisier, considerado o pai da Qumica Moderna,
nasceu em Paris no dia 26 de Agosto de 1743, em famlia que pertencia nobreza da Frana.
Estudou nas melhores escolas francesas e graduou-se em direito, nunca exercendo a profisso,
pois as cincias naturais eram o seu interesse. Dedicou-se ento matemtica, astronomia,
fsica, botnica, geologia e qumica - e foi nessa ltima que se notabilizou. Como um
homem do seu tempo, era ecltico nos conhecimentos e aes. Foi membro da Academia de
Cincias, Inspetor Geral das Plvoras e Salitres, membro da Comisso de Agricultura.
Dentre todas as atividades que desempenhava, uma lhe rendeu boas divisas e tambm,
infelizmente, a condenao guilhotina. Ao comprar aes da Ferme Gnerale23
, tornou-se
coletor de impostos, atividade que lhe rendia alm de lucro, o dio do povo. Em 1789, foi
nomeado deputado suplente dos Estados Gerais, e alm dessa nomeao uma importante
contribuio a cincia teria tambm lugar em sua vida: lanava seu Tratado Elementar de
Qumica, um marco da cincia moderna. Ano emblemtico na vida de Antonie Lavoisier e
dos franceses. Ano que marcou o incio da Revoluo Francesa. No ano seguinte, fez parte da
Comisso que estabeleceu o sistema de pesos e medidas e, em 1791, como Secretrio do
Tesouro, defendeu um plano de recolhimento dos tributos. Dois anos depois, a Conveno
mandou fechar as Academias e decretou a priso dos coletores de impostos. Lavoisier foi
preso e acusado de conspirao contra o povo francs. Considerado culpado no seu
22 ELIAS, Norbert. Mozart. Sociologia de um gnio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p. 140. 23 Ferme Gnrale era uma sociedade privada que tinha o direito a cobrana e coleta de impostos. Seus membros ganhavam polpudas comisses, e o governo tambm se valia dela ocasionalmente para financiar emprstimos coroa. Pode-se imaginar
que se tratava de uma instituio extremamente antiptica entre a populao. Lavoisier, ao contrario, considerava a Ferme
Gnrale como uma entidade capaz de promover o bem-estar e o progresso do reino, estimulando o desenvolvimento tcnico e cientifico. Em seu caso particular, via a independncia financeira como um meio para poder dedicar-se totalmente
Qumica, sem qualquer tipo de restrio financeira. FIGUEIRAS, Carlos A. L.Lavoisier o estabelecimento da Quimica Moderna: nada se cria, nada se perde, tudo se pesa. 2 ed. So Paulo: Odysseus Editora, 2007. Coleo Imortais da Ciencia.
Coordenao Marcelo Gleiser. P.37/38.
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julgamento, recebeu como pena a execuo na guilhotina em 8 de maio de 1794. Morreu na
Praa da Revoluo, em Paris.
O comentrio que ecoou aps sua morte foi o do matemtico Joseph-Louis Lagrange:
"No necessitaram seno de um momento para fazer cair essa cabea e cem anos no sero
suficientes para reproduzir outra semelhante".24
Se em funo do processo revolucionrio francs, Lavoisier veio a ter sua vida
ceifada, no que se refere ao pensamento cientfico sua participao celebrizou-o como o
criador de uma teoria fundamental. A sua frase: Na natureza nada se perde, nada se cria tudo
se transforma25, enunciou a Lei da Conservao da Matria ou da Massa.
Lavoisier havia protagonizado duas revolues: uma poltica outra cientfica. Segundo
Reinhardt Koselleck, naquelas circunstncias, revoluo tornou-se uma palavra da moda.
Nas suas consideraes:
Tudo aquilo que se via e se descrevia era compreendido a partir da perspectiva da transformao, da comoo. A revoluo abarcava os costumes, o direito, a religio,
economia, naes, Estados e continentes, enfim todo o globo terrestre.26
O fato que o conceito que originalmente tinha um sentido astronmico e se referia a
um movimento circular em que as coisas voltavam ao seu ponto de partida, foi, ao longo do
sculo XVIII, ganhando outro significado. A partir dos acontecimentos franceses, o conceito
passou a ser encarado de outra forma. As mudanas polticas anteriores, como a
Independncia das Treze Colnias Inglesas, em certo sentido, j apontavam para uma reviso
nos usos do conceito. O que ocorreu na Frana, todavia, ao fim, veio a ser paulatinamente
considerado como aquilo que rompeu com o antigo para trazer o novo. No mais as
revolues, mas a revoluo. Uma transformao que, segundo Hanna Arendt, associava de
maneira indita a violncia, a ruptura, o exerccio da liberdade. Nas suas palavras:
S podemos falar de revoluo quando ocorre mudana no sentido de um novo comeo, onde
a violncia empregada para constituir uma forma de governo completamente diferente, para
conseguir a formao de um novo corpo poltico onde a libertao da opresso visa, pelo menos, a constituio da liberdade.27
Entende-se, nesse quadro, que a mxima de Lavoisier Na natureza nada se perde,
nada se cria, tudo se transforma -, sua maneira, dialogava com cenas, inditas, inesperadas,
24 FIGUEIRAS, Carlos A. L. Lavoisier o estabelecimento da Quimica Moderna: nada se cria, nada se perde, tudo se pesa. 2
ed. So Paulo: Odysseus Editora, 2007. Coleo Imortais da Ciencia. Coordenao Marcelo Gleiser. P.164. 25
Ibidem. p. 9. 26 KOSSELECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro. Editora:
Contraponto, 2006. p. 67 27 ARENDT, Hanna. Sobre a Revoluo. Relgio Dgua Editores, Lisboa. 2001. p. 40.
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surpreendentes, a cobrar dos homens pensamentos que explicassem o sentido de tantas
mudanas.
Mona Ozouf, a autora do verbete Revoluo, do Dicionrio Crtico da Revoluo
Francesa, comea suas indagaes afirmando que os homens que vivenciavam tantas
transformaes tentaram buscar no passado algo que esclarecesse o que estavam
presenciando.
Um dos sentidos dados a palavra revoluo, ainda em referncia astronomia, era a
restaurao, algo que trouxesse as coisas de volta a seu ponto de partida. Esse sentido passou
a concorrer com um uso que foi se banalizando e que os dicionrios, da poca, comearam a
registrar. Segundo Mona Ozouf,
As Revolues so as vicissitudes da existncia humana, as mudanas extraordinrias sobrevindas nos negcios pblicos, os reveses de sorte das naes. No se trata mais de um
retorno do mesmo ao mesmo, mas do aparecimento, brusco e violento, da novidade. O carter
imprevisvel sobrepuja o previsvel, a desordem a ordem, o extraordinrio o ordinrio.28
As anlises de Mona Ozouf ressaltam o valor e a referencialidade dos acontecimentos
ingleses, no sculo XVIII, e das lutas de emancipao das Treze Colnias.
Em seu verbete podemos entender que as revolues que serviam de referncia
naquele momento eram a Inglesa e a Americana. No caso ingls, o sentido poderia ser de
restaurao ou de induo desordem, j o caso americano era tido como uma Revoluo
Feliz pelo papel que reservou vontade humana. Mona Ozouf ento destaca que:
O exemplo , por isso mesmo, mais significativo, pois ele mostra, a despeito de tais
caractersticas, a confuso persistente dos sentidos da palavra revoluo. Os comentaristas
mais favorveis Revoluo Americana continuam a interpret-la como uma restaurao: foram as liberdades inglesas, experimentadas pelo povo americano, que o tornaram capaz de fazer uma revoluo, quer dizer, de querer retornar a direitos anteriores. Mas tal retorno a
ordem no preserva, no entanto, a Amrica das desordens de uma outra revoluo: receio, diz Mably, que a Amrica seja novamente impelida a uma dura Revoluo. Ao lado da feliz revoluo ordenada do retorno e do repouso, a revoluo desordenada da alterao e da agitao. H, portanto, sempre duas revolues.29
Como palavra da moda revoluo alastrou-se tendo seus usos e significados
condicionados por essa expanso pouco programada. No caso dos acontecimentos que
afetaram Saint Domingue, colnia francesa no Caribe, na esteira dos desdobramentos das
transformaes que afetaram a metrpole, muitas foram as surpresas, presentes, entre outros
registros, em peridicos.
28 OZOUF, Mona. Revoluo. In: FURET, Franois; OZOUF, Mona. Dicionrio Crtico da Revoluo Francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. pp. 841. 29
Ibidem, p. 841-842.
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No Correio Braziliense, nas transcries feitas por Hiplito da Costa dos debates
ocorridos nas sees das Cortes, que tiveram lugar em Portugal por ocasio do Movimento
Vintista, encontramos algumas passagens em que ao se referir aos acontecimentos
inesperados e surpreendentes da ilha antilhana, os deputados portugueses e brasileiros das
Cortes em Lisboa o denominavam de sublevao, insurreio de escravos. Revoluo no era
usada para este episdio. Portanto, o que se apresentava na ex-colnia francesa, no deveria
chegar aos possveis leitores como uma revoluo, afinal, a Revoluo Francesa foi admirada
por muitos e temida tambm, no entanto, os desdobramentos que ocorreram em suas colnias
no tinham lugar no sentido revolucionrio da metrpole.
Um pequeno exemplo disso pode ser lido nas transcries que Hiplito da Costa fez de
uma dessas sesses. Um projeto que propunha que dois Congressos tivessem lugar em cada
reino e que seria votado para a Constituio. Nas discusses sobre este ponto, o deputado
portugus Giro fez um pronunciamento no qual a independncia da colnia analisada como
vontade dos deputados brasileiros, uma vontade que foi expressa a partir da proposio dos
dois Congressos e que para este deputado era sim, um ponto que favorecia a independncia e
no a unio e, fazendo suas reflexes a respeito do que aconteceria com a colnia, no
momento Reino Unido, se esta se separasse de Portugal, elencou o que provavelmente, em sua
opinio, aconteceria:
Se o Brasil, iludido pelas faces, arvorar o estandarte estrelado, ele sentir bem depressa os males que lhe anuncio: ou a me ptria usar de seus direitos, ou naes ambiciosas iro
colonizar as provncias, que mais conta lhe fizerem, ou os escravos renovaro as cenas de S.
Domingos: mas to melanclicas idias no tm lugar algum, pois a maioria dos Brasileiros
no pensa como os facciosos, que rodeiam o Prncipe. 30
Na fala do deputado portugus no h a palavra Revoluo e sim as cenas de S.
Domingos. O que ocorreu na ilha caribenha talvez para esse portugus no se configurasse
como uma revoluo. Cenas remetem a representao teatral, quem sabe uma encenao de
uma epopia trgica, ou quem sabe uma cena de terror.
Na resposta do representante da poro americana do Reino Unido, feita pelo
deputado Ribeiro de Andrada, a ironia para com o deputado portugus foi a tnica. A
argumentao de Ribeiro de Andrada seguiu a linha de refutar o companheiro portugus nas
Cortes e, ao fim, usava a seguinte justificativa para afastar um dos males que o deputado
Giro apontou no caso da separao:
30 COSTA, Hiplito Jos da. Correio Braziliense ou Armazm Literrio. Braslia/So Paulo: Correio Braziliense/Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2001-2002. Edio fac-similar. Vol. XXIX. N 170. pp. 61-67. Grifos nossos.
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O ilustre preopinante, entre os males, que prognosticou ao Brasil, disse que um dos maiores
era o dos escravos: tambm nisto se enganou; os recenseamentos do numero de habitantes do
Brasil, so feitos todos antes da ida de S. M. para aquele Reino, e desde essa poca a sua povoao se aumentou consideravelmente, e por isso todas as relaes, que sobre tal objeto h
so inexatas: e a populao atual do Reino do Brasil superior aquela mencionada em todos
os cadastros. A Bahia por exemplo, tem um tero de escravos, e em varias provncias, s um
dcimo de seus habitantes o so, e o ilustre preopinante fez muita injustia ao seu prprio sangue, em acreditar, que trs quartos de habitantes Portugueses possam ter que recear de um
quarto de brbaros, vindo da costa dfrica, que se podem comparar com os Espartanos, a quem a vista do aoite era bastante para os afugentar; o exemplo de S. Domingos no pode
servir de regra; ali haviam 500.000 negros, entre uma populao de 50.000 brancos: no tema
portanto o ilustre preopinante aquela desgraa, que ns a no tememos, apesar de nos tocar mais de perto.31
O deputado Ribeiro de Andrada usa os nmeros do censo para afastar o que
denominou de exemplo de S. Domingos. Aqui tambm no havia referncia Revoluo,
exemplo foi o termo escolhido pelo deputado Andrada para falar de So Domingos. Um
exemplo que no deveria, por certo, ser seguido.
Hiplito da Costa ao comentar essa discusso na sesso chamada de Reflexes sobre
as novidades deste ms", fez suas anlises, com relao especificamente ao embate entre
Giro e Ribeiro de Andrade:
Diz o Deputado Giro, no meio de mil declaraes intempestivas, e irrelevantes, que se o
Brasil arvorar o estandarte estrelado; isto se declarar independente; ou a me ptria usar de seus direitos; ou naes ambiciosas iro colonizar as provncias, que mais conta lhe fizerem;
ou os escravos renovaro as cenas de S. Domingos32.
Continuou sua argumentao e volta questo da suposta insurreio de escravos que
estaria sendo articulada:
Giro insinua em termos to claros, como j o tinham feito alguns escritores de seu partido,
que se recorrer a fomentar uma insurreio dos escravos no Brasil; e at j corre o rumor, de que h planos mui adiantados, para provocar esse mal.33
Esta busca por significados e suas transformaes conceituais que a escrita da histria
nos possibilita entender e perseguir tem entre seus componentes o silenciamento. H uma
poltica inerente a essas transformaes e conformaes que os conceitos e suas mudanas de
sentido nos apontam, e seguir esse movimento pode nos auxiliar a entender como na Era das
Revolues34 o termo revoluo era usado e como e por quem poderia ser usado com o
31 COSTA, Hiplito Jos da. Op. cit. Vol. XXIX. N 170. pp. 61-67 . Grifos nossos. 32 Ibidem. Vol. XXIX. N 171, pp. 269, 270 272. 33 Idem. Grifos nossos. 34 HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revolues. 1789-1848. 19 Edio. So Paulo: Paz e Terra, 2005.
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sentido que a Revoluo Francesa trouxe para ele, o sentido de ruptura. Afinal, O novo no
est no que dito, mas no acontecimento de sua volta35.
Os acontecimentos que tiveram lugar na segunda metade do sculo XVIII e no
alvorecer do sculo XIX foram ao mesmo tempo, empolgantes e aterradores, surpreendentes e
assustadores, inesperados e inevitveis. Assim, mais do que dizer ou nome-los, tais fatos
causaram em quem os vivenciava a impresso de estar presenciando algo indiscutivelmente
novo, por vezes, causando a suspenso da palavra sob a forma do silncio.
Para pensar o silncio, seguiremos a autora Eni Puccinelli36, que afirma: as palavras
so mltiplas, mas os silncios tambm o so". Um dos temas que envolvem o silncio,
sobre o qual esta autora se debrua, e que nos particularmente interessante, diz respeito
poltica do silncio, o silenciamento:
A entra toda a questo do tomar a palavra, tirar a palavra, obrigar a dizer, fazer calar, silenciar etc. Em face dessa sua dimenso poltica, o silncio pode ser considerado tanto parte
da retrica da dominao (a da opresso) como de sua contrapartida, a retrica do oprimido (a da resistncia). E tem todo um campo frtil para ser observado: na relao entre ndios e
brancos, na fala sobre a reforma agrria, nos discursos sobre a mulher, s para citar alguns
terrenos j explorados por mim.37
A autora indica neste trecho alguns dos campos frteis que ela j explorou, aqui
indicamos mais um pelo qual nos interessa caminhar: a relao entre escravos e senhores, a
relao entre colonizadores e colonos. Como Eni Puccinelli bem argumenta, no suficiente
pensar o silenciamento, pois se faz necessrio pensar o silncio para alm de sua dimenso
poltica. Isto porque o silncio fundador. Quer dizer, o silncio a matria significante por
excelncia, um continuum significante. O real da significao o silncio (...) o silncio o
real do discurso. 38
O homem um ser que significa e suas aes e palavras, assim como ele, significam
algo no mundo. E aqui entendemos o silncio no apenas como ausncia da fala, pois o
silncio em si mesmo um sentido, o silncio . E pensando assim podemos entender o
silncio fundador.
O silncio que, para alm da palavra, significa, pode ser produzido pelo homem com a
inteno de minimizar sentidos, desviar atenes e ao fim redefinir significados: O silncio
no est disponvel visibilidade, no diretamente observvel. Ele passa pelas palavras e
35 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Rio de Janeiro. Editora Loyola, 1999. p. 26. 36 ORLANDI, Eni de Lourdes Puccinelli. As formas do Silncio. No movimento dos sentidos. So Paulo. Editora Unicamp,
1992. 37 Ibidem p. 29. 38 Idem.
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no dura. S possvel vislumbr-lo de modo fugaz. Ele escorre por entre a trama das
falas. 39
difcil buscar o silncio em perodo to recuado, nas linhas de peridicos que eram
escritos em diferentes situaes. Seguindo a autora que nos serve aqui de guia para entender o
silncio, e que expe o quo difcil estud-lo, observ-lo, organiz-lo, ela usa metforas para
ilustrar e ajudar a aprender o silncio: o mar e o eco. A idia do mar nos remete a imagem e a
do eco ao som. O mar e o eco nos trazem o movimento, montono para o primeiro e contnuo
para o segundo. Mas, ao fim, e para os dois o movimento: A significao um
movimento 40.
Assim, a despeito da dificuldade de estudar o silncio, possvel perceb-lo na escrita
atravs dos sentidos que a mudana de palavras como revoluo podem iluminar, pois quando
buscamos o silncio, ele pode estar em pistas ou em pequenos traos. O que foi dito e o que
no foi dito, o jogo que podemos perceber num esconde-esconde de palavras, onde buscamos
as pistas, os traos, os vestgios ou em um jogo de (re) significao de sentidos, um quebra-
cabea de palavras.
Necessrio aqui apresentar as diferentes formas de silncio que so estudadas por Eni
Puccinelli e que nos inspiraram a utiliz-las na histria da repercusso dos surpreendentes
acontecimentos que tiveram lugar na colnia francesa no Caribe,
, nas linhas dos dois primeiros peridicos, A Gazeta do Rio de Janeiro e o Correio
Braziliense, a circular na colnia portuguesa da Amrica:
O silncio fundador, aquele que existe nas palavras, que significa o no-dito e que d espao de recuo significante produzindo as condies para significar; a poltica do silncio, que se
subdivide em: a) silncio constitutivo, o que nos indica que para dizer preciso no dizer
(uma palavra apaga necessariamente as outras palavras) e b) o silncio local, que se refere a censura propriamente (aquilo que proibido dizer em uma certa conjuntura)41.
No silncio constitutivo, uma palavra substituda por outra. Entende-se assim que
falar de insurreio de escravos diferente de falar em revoluo feita por escravos. Fica
dessa forma estabelecido que para dizer que houve uma insurreio, independncia, abolio
em uma colnia, liderada por negros e mulatos, livres e escravos, seria necessrio, talvez, no
dizer ou dizer que houve uma sublevao e, por fim, isso remeteria censura, aquilo que seria
proibido dizer em certa conjuntura, e a conjuntura a qual este trabalho se refere a de um
tempo em que na colnia portuguesa da Amrica, onde os peridicos, nossas fontes
39 ORLANDI, Eni de Lourdes Puccinelli. Op. Cit. p. 32. 40 Ibidem, p. 33. 41 Ibidem, p. 24.
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documentais, circulavam, a despeito da grande maioria da populao ser analfabeta, existia a
possibilidade das idias alcanarem a populao que era em sua maioria, em determinadas
cidades e regies, formada por escravos negros e mulatos.
Desse ponto podemos aqui pensar com Puccinelli sobre o implcito, porque na
perspectiva em que a autora estuda o silncio, e com a qual concordamos; o implcito o
no-dito que se define em relao ao dizer. O silncio, ao contrario, no o no-dito que
sustenta o dizer, mas aquilo que apagado, colocado de lado excludo.42
Assim, o silncio e
o implcito no podem ser considerados a mesma coisa.
Com relao a ausncia, ou substituio da palavra revoluo, no entendemos sua
falta como um implcito e sim como um silncio. Ao se referir aos acontecimentos que
tiveram lugar na ilha caribenha, como se fosse possvel diminuir ou impedir a disseminao
do que resultou, ou seja, um novo pas, o segundo a se tornar independente na Amrica, que
se tornou independente pelas mos de um ex-escravo, Dessalines, e, diferentemente das ex-
colnias britnicas, os Estados Unidos, fizeram a independncia junto abolio da
escravido. Silenciar era uma forma de calar e de impedir que o discurso pudesse ser
entendido como possvel, em um perodo em que a colonizao e a escravido caminhavam
juntas. Como reitera Orlandi: O silncio no a ausncia de palavras. (...) As palavras vm
carregadas de silncio.43
A memria que foi construda sobre esses eventos seria influenciada tambm por esses
escritos que circulavam nos peridicos, e aqui, poderamos visualizar as duas metforas de
Eni Puccinelli para o silncio, a do mar e a do eco. A do mar que nos remete a imagem, a
imagem que seria construda colaria os eventos revolucionrios haitianos a cenas negativas e
o exemplo tambm negativo, o no-exemplo; e o eco que perpetuou o que aconteceu e
repercutiu entre os negros e mulatos, escravos ou livres no s da ento colnia portuguesa na
Amrica, mas por toda a Amrica: o eco da Marselhesa, que os negros e mulatos do Haiti
cantaram, o som que tentou se propagar por todo o continente americano.
Nesse ponto voltamos moda, e se ela no para todos como j dito acima, um bom
lugar para observar essa moda seria uma loja, e uma loja para observar a moda das palavras
seria ento uma livraria, lugar em que as palavras esto dispostas em um de seus ambientes, o
escrito. Para isso voltemos nosso olhar para a colnia lusa e tendo ainda como elemento a
palavra Revoluo podemos caminhar por entre os livros, seguindo o estudo do professor
42
ORLANDI, Eni de Lourdes Puccinelli. Op. Cit., p. 102. 43 Idem, p. 102.
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Marco Morel, sobre as Transformaes dos espaos pblicos44, que ser aqui nosso guia
nessa observao, em uma loja de livros na ento independente colnia lusa, no momento em
questo o Imprio do Brasil. Utilizamos um pequeno salto no perodo que baliza a pesquisa,
mas s para fazer essa incurso nesse lugar onde poderemos encontrar a moda da palavra em
terras brasileiras.
Passear por entre os livros na livraria de um francs, e parar frente de suas estantes,
percebendo como o ttulo revoluo estava na moda, nesse reformulado espao pblico que
era ento a capital do Imprio do Brasil, o Rio de Janeiro, o que nos proporciona esse estudo
hoje. E poderia possibilitar aos leitores que fizessem esse passeio pessoalmente naquele
perodo de tantas transformaes para a ento cidade capital, a compreenso, o conhecimento
acerca da revoluo, tendo em vista que essa era uma questo central no que se refere busca
de entendimento poltico, econmico, enfim social. Fosse para ser revolucionrio ou contra-
revolucionrio, a palavra revoluo estaria presente com o significado que mais sentido
fizesse para o lado em que tenderia, seja de ruptura ou de retorno.
Marco Morel d a seu primeiro captulo o interessante titulo: As Revolues nas
prateleiras da Rua do Ouvidor. Atravs da histria de um livreiro e editor francs Pierre
Plancher que veio para o Rio de Janeiro em 1824, o autor traou a mudana que ocorreu no
espao da capital imperial. Cultura e poltica, no ambiente das novas idias afetaram a
trajetria desse francs que passou por uma metamorfose ao atravessar o Atlntico: plebeu e
sans-cullote na Europa, tornaria-se fidalgo no Brasil. Isso porque, ao aportar no Imprio do
Brasil, o livreiro Plancher foi encontrar-se com o ento imperador D. Pedro I para solicitar sua
licena ou autorizao para fazer funcionar sua tipografia e livraria e, saiu desse encontro no
s com a autorizao mas, quem sabe tambm, com a simpatia do imperador, visto que o
francs era mais que um bonapartista, era um adepto do modelo imperial de governo e
sociedade, modelo adotado nas terras em que aportou para montar seu negcio, como bem
pontuou Morel.
Outro ponto que tambm, pode ter contribudo para ganhar a simpatia do imperador
era o fato dele ter editado o terico do liberalismo francs, Benjamin Constant, alm de outros
importantes liberais, pois era esse o ambiente intelectual que Plancher viveu na Frana e que
aqui buscaria tambm, como bem demonstrou Marco Morel. Tanto l quanto aqu, esse
personagem angariou desavenas por conta de suas posies polticas e de suas redes de
44 MOREL, Marco. As transformaes dos espaos pblicos: imprensa, atores polticos e sociabilidades na Cidade Imperial: 1820-1840. So Paulo: Hucitec. 2005.
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sociabilidades. Perodo de tantas mudanas quanto esse em que viveu, no era de se esperar
que um impressor que demonstrava suas simpatias no ganhasse a desconfiana de seus
contemporneos.
Porm o que nos encantou nesse captulo foi a possibilidade de encontrar a nossa
palavra Revoluo largamente usada nos ttulos vendidos por Plancher em sua loja de livros:
A livraria Plancher na Rua do Ouvidor 95 era uma das estrelas destacadas na constelao do
comrcio, sobretudo europeu (cultural ou no), que se instalara no centro do Rio de Janeiro,
no mago da cidade imperial brasileira. 45
Com essa descrio podemos entender que essa seria uma loja em que a moda
desfilava. E como Morel destacou no s a de livros, mas tambm ali vendia-se chapus,
roupes, rendas e bordados franceses e plumas. O que nos interessa aqui so os livros que
eram vendidos nessa loja e que no eram s os que Plancher editavam, mas outros ttulos que
constavam de outras casas editoriais, o francs tornou-se um representante comercial, alm de
editor. O autor fez o levantamento dos ttulos que figuravam nessa loja:
Os catlogos da Livraria Plancher ofertavam, em 1827, 317 ttulos. Um leitor que chegasse a
poderia passar horas a fio diante das prateleiras para dar conta de conhecer o que havia
venda, folheando ao acaso um e outro exemplar. 46
Alguns pontos so importantes. A maioria dos livros estava em francs, isso
demonstra o quanto a cultura francesa era importante nessa poca e como Plancher era,
tambm um agente divulgador dessa cultura; o perodo histrico contemporneo demonstrava
que 60% do que estava sendo impresso era ligado ao perodo da Restaurao; e os contedos
desses livros: 25% histria, 24% cincias e artes liberais, 19% poltica, 16% belas/artes, 12%
direito e 4% religio. E dentro desse contedo Morel comenta que:
Quem passasse mais tempo nesta livraria do centro da cidade imperial do Rio de Janeiro e
folheasse os livros com argcia poderia chegar constatao de que um tema ocupava a
maioria (59%) dos livros de Histria e Poltica: as Revolues, especialmente a Revoluo Francesa (72% das obras sobre Revolues). A preocupao de registrar, recuperar e sobretudo exorcizar a memria histrica ainda incandescente do perodo revolucionrio foi, como se sabe, uma caracterstica marcante da produo intelectual francesa durante a
Restaurao. Da encontrarmos as Revolues nas prateleiras da Rua do Ouvidor. 47
45 MOREL, Marco. Op. Cit., p. 30. 46 Ibidem, p.36. 47 Ibidem, p.40.
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No importa aqui qual a cor que a moda dita ou qual a tendncia que vai ser a
preferida, a palavra Revoluo estava l inscrita como que se infiltrando na moda ou na
tendncia. Combinando com ela tudo estaria na moda. Assim as vrias revolues estavam
presentes na loja de Plancher, com relao Revoluo francesa a tendncia na livraria seguia
a da restaurao, ou seja, os significados buscados seriam os de construo de uma memria
que no fosse s a dos jacobinos, segundo Morel: Os autores propriamente revolucionrios
anunciados no catlogo de Plancher so raros e em geral pertencem aos moderados ou
girondinos. Os radicais no figuravam na tendncia modista desta loja. Mas estavam l
mesmo no sendo o sucesso do momento. O abade Raynal e o prprio Mably. Mas nem s de
revoluo francesa vivia essa loja, a Revoluo Inglesa e as ibricas tambm poderiam ser
encontradas.
Enfim, aqui pudemos ver o quanto nos escritos do comeo do sculo XIX a palavra
revoluo esteve presente, nos escritos de quem a entendia como ruptura ou como
restaurao, independente do significado a que fosse atrelada, o que importa saber aqui que
um livreiro vindo da Europa para a Amrica trouxe consigo a tendncia que vigorava, ou seja,
a cultura poltica que se firmava naquele tempo passava por ler ou reler a Revoluo. Muito
do que se pensava passava por esse conceito, para o bem ou para o mal, l estava a
Revoluo.
Agora podemos tentar aqui pensar como uma palavra que estava na moda, poderia ao
mesmo tempo ser uma palavra proibida, no sentido em que Foucault entendeu essa questo,
no sentido da interdio. Assim como esse autor analisa o discurso em nossa sociedade
ocidental em que h o tabu onde no se pode falar qualquer coisa, ou onde alguns tm o
privilegio ou exclusividade da fala ou da palavra. Dentre os lugares na sociedade em que
Foucault analisa essa interdio, pontua que na regio da sexualidade e da poltica onde fica
mais explcito o interdito, o que nos interessa nesse trabalho, a poltica. E aponta para a
histria que para ele sempre ensina: o discurso no simplesmente aquilo que traduz as lutas
ou os sistemas de dominao, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar. 48
Quem tinha o privilegio da moda, quem tinha o privilgio da luta revolucionria, no
momento em que essa pesquisa se situa, no eram os negros escravos, assim podemos
entender que a palavra Revoluo era para eles uma palavra proibida e qualquer
insurreio, insubordinao, sublevao, rebeldia, cenas, que se relacionassem a
48 FOUCAULT, Michel. Op. cit,. p. 10.
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negros escravos, no levaria consigo a palavra que nesse momento estava colada a moda dos
que lutavam para ultrapassar o que chamaram de Antigo Regime. Segundo Foucault, um
dos sistemas de excluso que se relaciona ao discurso esse: a palavra proibida, que
exercido do exterior e que pem em jogo o poder e o desejo. Aqui o poder da palavra o que
buscamos; o poder de us-la, e o poder da imagem que essa palavra poderia trazer para as
cenas que se relacionavam a luta pela liberdade dos escravos. A palavra Revoluo poderia
trazer essa luta para o centro da tendncia vivenciada no perodo em que a moda era
revolucionar.
Ao final deste captulo, outro personagem nos ajudaria a pensar sobre a palavra, o
conceito, revoluo, Karl Marx. Nascido em 1818, pode-se dizer que nasceu envolto em uma
aura revolucionria que pairava no mundo, em todos os lugares e principalmente no ambiente
universitrio que freqentou rodeado de filsofos, que tinham em Hegel um mentor. Hegel
que visualizou em Napoleo o esprito da poca revolucionria francesa. Apesar de Marx no
ter vivido a Revoluo Francesa, nem ter ao menos citado os acontecimentos da colnia de
Saint Domingue em seus estudos, uma frase pode ser a imagem dessa Era das Revolues,
uma frase de um pensador que acreditava na Revoluo, uma frase que esta em seu manifesto,
o Manifesto Comunista, datado em 1848, ano emblemtico para essa era, perodo curioso em
que as transformaes vo se sucedendo e carregando os sentidos em seu movimento, suas
significaes, seus silenciamentos, perodo em que Tudo o que slido se desmancha no ar
nas palavras desse pensador que viu nas rupturas que a revoluo causava o motor da histria.
Nesse ponto a imagem que essa frase traz pode ser encaixada a de Lavoisier, pois ao
fim e ao cabo por mais que tudo pudesse se desmanchar, nada se criava, nada se perdia, tudo
se transformava. E essa transformao seguia os significados que as ondas do mar ou os ecos
lhe emprestavam. No havia no sentido da palavra revoluo algo de slido que no pudesse
ser transformado para significar ora a ruptura ora a restaurao, no havia um sentido fixo
para revoluo, mas, talvez, houvesse uma censura ou uma certa prudncia ou mesmo a
interdio ao empregar esse conceito para momentos e eventos que sassem fora do alcance, e
compreenso dos homens desse tempo. Eventos que fossem surpreendentes, inesperados,
inditos, completamente imprevisveis, e, por isso, a reflexo antes da nomeao de tais
acontecimentos se fizesse necessria, assim como certa censura, ao apresentar a descrio de
tais fatos.
A repercusso dos eventos que ocorreram em Saint Domingue passou pelo
silenciamento nos peridicos ora analisados. Uma forma de estudar esse silenciamento
buscar as palavras que eram usadas para descrever o que aconteceu na ilha antilhana.
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Sublevao, insurreio, so palavras que se buscarmos hoje no dicionrio tm um sentido
tambm de revoluo, mas no so palavras que desfilaram com esse sentido no palco da
moda que aqui buscamos entender. Uma moda que, como acima j dito, no era para todos,
assim substituir a palavra significava tambm, tirar do evento o carter de exemplo que
pudesse ser admirado e seguido, exemplo que pudesse se espalhar por quem no podia fazer
parte desta moda, por quem no poderia seguir essa tendncia.
No entanto o mar se move atravs de ondas e os ecos tambm se propagam atravs de
ondas e essas ondas chegaram porque ondas ou se transformam em espuma e ganham o ar ou
so facilmente propagadas pelo mesmo. E por isso podemos ento estudar o silncio buscando
essas ondas ora martimas ora sonoras.
Nos prximos captulos perseguiremos a palavra revoluo no contexto e no texto:
teremos em mente as palavras de Hanna Arendt a respeito da revoluo:
S podemos falar de revoluo quando esta caracterstica de novidade est presente e quando a novidade se liga idia de liberdade. evidente que isto significa que as revolues so
mais que insurreies bem sucedidas e que no temos o direito de chamar de revoluo a
qualquer golpe de estado ou at de vermos uma revoluo em cada guerra civil. Muitas vezes
o povo oprimido se rebelou e grande parte da antiga legislao s pode ser compreendida como salvaguarda contra a sempre temida, embora rara, sublevao da populao escrava. 49
No caso de So Domingos, uma sublevao que se transformou em uma Revoluo,
isto porque trouxe o novo, a abolio da escravido, dois governos foram tentados, ao sul a
Repblica, ao norte a monarquia. Tudo isso passou pelas pginas dos primeiros peridicos a
circular na ento cidade Imperial, o Rio de Janeiro e em todo o reino portugus. Veremos
como ento foram impressas tais notcias, que no so muitas, como seus redatores
escolheram as palavras para publicar. Mas comearemos por entender como uma pequena ilha
no mar do Caribe se transformou em uma colnia to lucrativa, e como os eventos
revolucionrios ocorridos na Frana mudariam sua histria.
Seguiremos aqui o conselho de Norbert Elias, pesquisando o que no podia ser dito,
mas que no poderia ser totalmente apagado. O silncio nos deixou pistas, as transformaes
e conformaes das palavras que traziam as notcias sero por certo nosso melhor documento
para pesquisar o que, talvez, no pudesse ser dito com todas as letras, e, no entanto, no
poderia ser desconsiderado por carregar em si algo que, indubitavelmente, causou tamanha
surpresa devido ao seu ineditismo.
49 ARENDT, Hanna. op. cit. p. 39.
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2. A PRALA DA ANTILHAS SO DOMINGOS
Londres, 17 de Dezembro. Na Corte do Palcio da Rainha aos
14 de Dezembro, 1808, presente a Excelentssima Majestade
dEl Rei, em conselho. S. M. por, e com o parecer de seu conselho privado, servido ordenar e declarar e por esta fica
ordenado, e declarado, que os portos e lugares da Ilha de So
Domingos, que no esto atualmente possudos por Frana, e
donde no excluda a bandeira Inglesa; sejam considerados, como se no estivessem em estado de hostilidade com S. M., e
que os sbditos de S. M. e outros esto em liberdade de
negociar livremente para ali, na mesma forma, que negociam
para os portos neutrais.50
Localizar este pequeno aviso sobre o comrcio ingls com a ilha de So Domingos, no
ano de 1808, chama a ateno na leitura do peridico de Hiplito da Costa, o Correio
Braziliense, e nos faz pensar sobre algumas questes: que importncia ainda havia na antiga
colnia francesa para que figurasse nas pginas dessa publicao, numa nota acerca do
comrcio com a Inglaterra, quatro anos aps a proclamao de sua independncia? O que
levou o editor deste jornal a reproduzir tal informao, em que a Inglaterra afirmava (ou
reafirmava) que iria comercializar com esta ilha caribenha? Em que estado encontrava-se So
Domingos nesse momento?
Antes de fazer uma anlise sobre essas questes, caberia aqui minimamente ponderar
que So Domingos, a antiga colnia francesa no mar do Caribe, teve sua independncia
proclamada por um liberto em 1804, tinha sim, em 1808, importncia econmica e poltica
para figurar nas pginas do peridico dedicado a Portugal e Brasil.
A despeito de j ter proclamado sua independncia, o reconhecimento como pas
independente s se daria em 1825, quando a Frana aceitou este fato mediante o pagamento
de uma indenizao por parte dos haitianos51
. Isso nos remete importncia do aviso que
inicia esta seo, visto que no momento de sua veiculao, 1808, a Inglaterra estava em luta
contra a Frana e Napoleo Bonaparte, seu Imperador.
Voltemos ento nosso olhar para os eventos que fizeram dessa pequena ilha caribenha
o farol52 para o qual estavam voltadas as atenes naquele comeo de sculo XIX.
Em 1791, quando eclodiram revoltas e rebelies na pequena So Domingos, europeus
e americanos voltaram suas atenes para ela. Colnia Francesa no mar caribenho, essa era
50 COSTA, Hiplito Jos da. Correio Braziliense, ou, Armazm Literrio. So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001. Vol.
I, N 7, p. 592. 51 BLACKBURN, Robin. A queda do escravismo colonial: 1776-1848. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 513. 52 MOREL, Marco. O abade Grgoire, o Haiti e o Brasil: repercusses no raiar do sculo XIX. Disponvel em: http://www.almanack.usp.br/PDFS/2/02_artigos_3.pdf . Acessado em 07 de Abril de 2009
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ento a mais rica entre as colnias antilhanas. Riqueza tal que era chamada a Prola das
Antilhas53.
Grande exportadora de acar, caf e outros produtos agrcolas e, dessa forma, um
importante porto no comrcio americano e europeu, inclusive desembarque de significativo
nmero de cativos africanos outro grande negcio dos franceses na sua colnia , foi com
essa importncia comercial que seus habitantes, considerados colonos franceses, buscaram
representao na convocao dos Estados Gerais em 1789, na ento revolucionria Frana,
sua metrpole.
A partir dessa pretenso, aguaram-se as lutas internas entre affranchis, proprietrios
de maioria mulata, livres ou libertos, os grands blancs tambm proprietrios, e/ou burocratas
diretamente ligados a metrpole, os petits blancs e os cultivateurs que eram profissionais
liberais, como advogados ou pequenos comerciantes, e nesse momento os escravos no eram
considerados ainda como passveis de representao, mas que ao fim levados a lutar uma luta
que no era a sua, acabaram por fazer dela sua principal batalha, a conquista da sua prpria
liberdade, uma liberdade que definitivamente no era a que pretendiam os affranchis e blancs.
Recuando no tempo e chegando a esta parte caribenha com os espanhis, vejamos como So
Domingos tornou-se essa to prspera colnia.
Hispaniola. Assim foi batizada a primeira ilha onde Cristvo Colombo aportou na
Amrica no final do sculo XV, em 1492. Colonizadores, a servio da Coroa de Espanha,
exploraram a ilha, que teve a extrao de ouro como primeira atividade, utilizando como mo-
de-obra os nativos da regio. Estes foram dizimados pelo excesso de trabalho e outras
condies advindas da chegada dos europeus.
Esta era uma ilha do mar do Caribe que seria disputada por holandeses, ingleses e
franceses. Estes ltimos chegaram parte ocidental da ilha em 1629, e conseguiram se impor
diante dos oponentes ingleses e holandeses e, depois da luta com os espanhis, a ilha foi
dividida entre esses dois pases europeus, Frana e Espanha. No final do sculo XVII, atravs
do Tratado de Rijswijk, de 1697, a Espanha cedeu o territrio ocidental da ilha Frana, parte
a que os franceses chamaram Saint Domingue (So Domingos).
A partir de ento o governo francs montou a mais produtiva de suas colnias na
Amrica. No momento em que os colonizadores franceses legalmente passaram a cuidar e
53 AGUIRRE, Carlos, Silncios y ecos: La historia y el legaso de la abolicin de la esclavitud em Haiti y Peru. Disponvel em: www.ncsu.edu/project/ acontracorriente/fall_05/Aguirre.pdf. Acessado em 13/03/06.
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trabalhar sua poro na ilha, os habitantes nativos j se encontravam em extino54. Faltava
mo-de-obra e os franceses, como outros europeus fizeram no Novo Mundo, trouxeram
africanos que junto aos engags55
, formavam a mo-de-obra da colnia. Os africanos
suportavam melhor o clima, que era duro, o sol mais forte e quente, a mida atmosfera se
configurava como insuportvel tanto para europeus quanto para africanos, a despeito de estes
resistirem melhor a tais condies. Desta forma, o comrcio negreiro tornava-se tambm um
lucrativo negcio colonial. Em pouco tempo, a mo-de-obra nas plantations se tornou
predominantemente africana, visto que os engags no se adaptaram tambm ao trabalho nas
plantaes.
O regime de trabalho era duro nas plantations aucareiras: a jornada era de 16 a 18
horas dirias; por vezes havia trabalho noturno no engenho, isso independente do clima, na
chuva ou no sol havia trabalho, que s seguia o ciclo do plantio e colheita. A alimentao era
pouca, o chicote era muito. Descanso? Apenas aos domingos. No entanto, clima e solo eram
favorveis ao cultivo de produtos muito valorizados como o acar e caf. Esta colnia
francesa foi trabalhada e transformou-se na mais lucrativa das colnias antilhanas: Governo,
colonos e mercadores haviam construdo as plantations escravistas mais diversifi