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Universidade da Amazônia Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura SONIA MARIA DA SILVA SACRAMENTO O IMPACTO DAS TROCAS CULTURAIS NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS: DO TAMBOR À GUITARRA BELÉM 2013

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Universidade da Amazônia Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura

SONIA MARIA DA SILVA SACRAMENTO

O IMPACTO DAS TROCAS CULTURAIS NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS:

DO TAMBOR À GUITARRA

BELÉM

2013

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SONIA MARIA DA SILVA SACRAMENTO

O IMPACTO DAS TROCAS CULTURAIS NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS:

DO TAMBOR À GUITARRA

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, Linguagem e Cultura. Orientadora: Profª Drª Lucilinda Ribeiro Teixeira.

BELÉM

2013

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sílvia Helena Vale de Lima –CRB-2/819

306.6 S123i Sacramento, Sonia Maria da Silva. O impacto das trocas culturais nas comunidades quilombolas: do tambor a guitarra. / Sonia Maria da Silva Sacramento.– Belém, 2013. 107f. il.

Dissertação (Mestrado) -- Universidade da Amazônia, Programa de Mestrado “Stricto Sensu” em Comunicação, Linguagens e Cultura, 2013. Orientador: Profª. Drª. Lucilinda Ribeiro Teixeira. 1. Religiosidade cultural. 2. Cultura quilombola. 3.Trocas culturais. 4. Praticas religiosa. I. Teixeira, Lucilinda Ribeiro. II. T.

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SONIA MARIA DA SILVA SACRAMENTO

O IMPACTO DAS TROCAS CULTURAIS NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS –

DO TAMBOR À GUITARRA

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia - UNAMA, como exigência para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, Linguagem e Cultura.

Orientadora: Profª Drª Lucilinda Ribeiro Teixeira.

Banca Examinadora:

_______________________________________ Prof.ª Dr.ª Lucilinda Ribeiro Teixeira (Orientadora) ______________________________________ Prof.ª Dr.ª Ivone Xavier (Co-orientadora) ______________________________________ Prof. Dr. José Ribamar Ferreira Junior

BELÉM 2013

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Aos meus queridos pais: Maria Áurea Sacramento e Francisco Sacramento, por tudo que me deram e ensinaram, pelo amor dedicado a seus filhos. A meus queridos irmãos: Silvana, Silvia, Cilene, Sandro, Carlos, Claudia, Andréia. Aos meus sobrinhos tão amados: Lucas, Beatriz, Isa, Thathiana, e Felipe. Ao meu sempre e inesquecível amigo Ricardo Catete (in memorian). Ao amigo Márcio Brasil por ter me incentivado a começar essa caminhada. A você minha amiga e sempre tia Graça Silva, que permitiu dar mais esse passo em minha vida. A Goretti Tavares pela amizade de todas as horas. Minha tia Glaide (in memorian)

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AGRADECIMENTOS

A Deus por todos os momentos da sua presença em minha vida.

A minha família: A minha querida e amada mãe Maria Áurea da Silva Sacramento (in

memorian), ao meu pai Francisco Sacramento (in memorian), pelo amor e ensinamentos dedicados aos seus filhos e aos meus irmãos: Silvana Sacramento, Silvia Sacramento, Cilene da Silva Sacramento, Claudia da Silva Sacramento, Sandro da Silva Sacramento, Carlos Sacramento e Andreia Sacramento pela companhia de vida.

Aos meus queridos e amados sobrinhos, Lucas Sacramento, Beatriz Sacramento, Isa Sacramento, Thathiana Sacramento e Felipe Sacramento pela alegria do carinho.

Aos meus amados e queridos amigos pelo incentivo em buscar o mestrado: Márcio Brasil (meu carinho eterno), Celso Oliveira (pela força), Job Duarte (pelo incentivo e reconhecimento com meu trabalho profissional), ao amigo de coração (Augusto Oliveira por compartilhar seu conhecimento), ao amigo sempre Alci Jakson Soares por toda sua contribuição na produção desse trabalho.

A Gorett Tavares (pelo incentivo e os muitos livros emprestados), ao meu amigo de todas às horas Ricardo Catete (in memorian), ao meu amigo Murilo que como uma luz entrou em minha vida (pela companhia nessa jornada), a Mirna amiga e irmã do coração (para sempre te amar, pelas muitas vezes que seguraste a minhas mãos), ao amigo de turma pela maravilhosa companhia e amizade: Pastana, Hemerson, Yorrana, Tais, Joel, Pedro, Raimundo Tocantins, Rosa, Shirley Penafot, Eliane, Pedro, Karol...

A minha orientadora Lucilinda por ter compartilhado conhecimento e tempo de sua vida comigo (sempre vai estar em meu coração e orações).

A professora Ivone Xavier pela delicadeza com que ensina com total domínio de quem sabe e conhece e pelo aceite em compartilhar dessa caminhada;

A professora e coordenadora Ivânia Neves pelo incentivo e conhecimento compartilhado com muita dedicação;

Aos professores: Andrea Mello Pontes, Analaura Corradi, Amarilis Izabel Alves Tupiassu, Elizabeth Pessoa Gomes da Silva, Erasmo Borges de Souza Filho, José Guilherme de Oliveira Castro, Maria do Perpétuo do Socorro Cardoso Silva, Marisa de Oliveira Mokarzel, Neusa Gonzaga de Santana Pressler, Paulo Jorge Martins Nunes e Rosa Maria Assis.

O meu especial agradecimento ao meu amigo João Marques por ter me acompanhado nessa caminhada, meu carinho e amor a um anjo em minha vida.

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A doce e amada amiga Yorrana pela torcida e pela companhia sempre que precisei.

A amiga e gentil, para sempre vou lhe ser grata Rosângela Regis. Obrigada por me possibilitar chegar ao final dessa caminhada.

A minha tia Glairdes Nogueira (in memorian) por ter feito parte da minha vida. Nós sempre vamos te amar.

Aos amigos de sempre e todas as horas: Raimundo Barros por ter sido amigo amoroso, alegre. Vou levar sempre você em meu coração.

A Mary Cruz, que me ensinou que a amizade se faz com carinho, respeito e muito amor. Parte dessa conquista divido com você.

A minha amiga Cristina Moraes pela amizade e incentivo para a busca de uma qualificação e por trazer alegria as nossas vidas.

E meu especial agradecimento a minha tia amada Graça Silva, por ter me dado às mãos e carinho nessa caminhada, pois, sempre foi meu incentivo para ter uma vida acadêmica. E que se algum dia pensei em desistir como diz ela (É sempre bom ter alguém na retaguarda), obrigada pelo amor e receba na mesma medida o que sinto por você.

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Depestre

Valente cavaleiro do tambor É verdade que tu não mais confies na floresta natal Em nossas vozes roucas em nossos corações [enjoados] que nos remontam Amargos em nossos olhos de rum vermelhos em nossas noites incendiadas É possível que as chuvas do exílio tenham afrouxado a pele de tambor de tua voz Iremos nos quilombar Depestre iremos nos aquilombar?

Santos (1993)

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RESUMO

Trata-se de um estudo que tem como temática a imagem de um Quilombo evangélico no coração da Amazônia. Sendo esse intitulado de O Impacto das Trocas Culturais nas Comunidades Quilombolas – Do Tambor à Guitarra. Visa analisar o impacto das trocas culturais nas comunidades Quilombolas, principalmente em relação ao fato das que se evangelizaram. Tem como pressuposto que a religiosidade é um fenômeno que está presente em todas as sociedades, pois é tida como suporte para convivência. Orienta-se pela seguinte questão problema: qual o impacto das trocas culturais no cotidiano da Comunidade do Mel da Pedreira/AP a partir do processo de evangelização? Seu lócus empírico é a comunidade do Mel da Pedreira, cuja forma de vida, hábitos e costumes refletem uma identidade construída a partir dos princípios evangélicos. Está localizada no Estado do Amapá onde vivem aproximadamente 20 (vinte) famílias totalizando 70 (setenta pessoas). A escolha dessa comunidade quilombola deve-se ao fato da mesma se diferenciar dos demais por não trazer como parte de sua cultura os rituais afros e as festas de santos à medida que realiza cultos evangélicos. Esse processo implicou em série de mudanças no modo de vida dessa comunidade, principalmente em relação as suas práticas culturais e as formas de se manifestar. Fato esse que motivou a realização desta pesquisa. Metodologicamente, optou-se por uma pesquisa qualitativa com a realização de um estudo de caso, incorporando em grande parte procedimentos da Etnografia, que de acordo com Laplantine (2004) está vinculada ao estudo de uma cultura. A Etnologia abre essa estreiteza monocultural (Laplantine, 2003), tendo como técnica a história oral, focando as narrativas produzidas pelos sujeitos da pesquisa, através das quais foi possível identificar e examinar as questões culturais e/ou simbólicas a respeito da formação e evolução das identidades coletivas do grupo que vive neste Quilombo. Os resultados apontaram que a mudança no campo religioso trouxe um impacto considerável nos eventos culturais dessa comunidade. Simbolicamente destaca-se a troca do tambor pela guitarra. Sendo essa mudança fator de uma identidade que se hibridizou a partir das trocas culturais. O estudo revelou ainda, que a evangelização não só mudou os hábitos dos quilombolas, como também trouxe novos elementos: a bíblia, que substituiu a cruz, a troca dos rituais afros, pelos cultos evangélicos, a troca do tambor pela Guitarra. Assim, as práticas culturais se modificaram a partir da transposição de uma religião para outra, ou seja, do Catolicismo para o Protestantismo. Nesse sentido, a identidade que compõe um Quilombo evangélico é diferente a de um Quilombo tradicional, cuja tradição é toda pautada em valores e costumes de base africana. Já um Quilombo evangélico tem sua identidade toda centrada nos princípios do evangelho. Essa mudança não deixa de ser uma forma de resistência às outras formas de cultura. Por outro lado, não se pode deixar de aferir que a religiosidade determina a rotina da comunidade, assim como o jeito de ser, pensar e agir dos que nela habitam. Consideram-se felizes vivendo segundo eles sob os dogmas do evangelho. Palavras Chave: Quilombo. Mel da Pedreira/AP. Trocas Culturais. Religiosidade.

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ABSTRACT It is a study which has as its theme the image of a Quilombo Gospel in the heart of the Amazon. Aims to analyze the impact of cultural exchanges in the Quilombo communities, especially in relation to the fact that evangelized. Presupposes that religion is a phenomenon that is present in all societies, it is taken as support for coexistence. Guided by the following question what impact problem of cultural exchanges in everyday community of Honey Quarry / AP opposite change in the cultural field to become evangelicals? Its locus is the empirical community of Quarry Mel, whose way of life, habits and customs reflect an identity constructed from the evangelical principles. It is located in the state of Amapá where approximately twenty (20) families totaling seventy (70 people). The choice of this maroon community differentiates itself from others by not bringing their culture as part of the rituals afros and feasts of saints as performed evangelical cults. This process resulted in series of changes in the mode of life of this community, especially in relation to their cultural practices and ways of manifesting. A fact that motivated this research. Methodologically, we chose a qualitative research with the completion of a case study, incorporating largely procedures of ethnography. That according Laplatine (2004) this is linked to the study of a culture. Ethnology opens this narrow monocultural (Lapaltine, 2003), with the technical oral history, focusing on the narratives produced by the subjects, through which it was possible to identify and examine the cultural issues and / or symbolic means s regarding the formation and evolution collective identities of the group living in this maroon. The results showed that the change in the religious field brought a considerable impact on the cultural events of this community. Symbolically stands for the exchange drum guitar. As this shift factor identity that hybridized from cultural exchanges. The study also revealed that the evangelization not only changed the habits of the Maroons, but also brought new elements: bible, which replaced the cross, the exchange of rituals afros, the evangelical cults, exchanging drum for Guitar. Thus, cultural practices have changed from the transposition from one religion to another, or from Catholicism to Protestantism. Thus, the identity that makes up a maroon Gospel is different from a traditional maroon, whose whole tradition is grounded in values and customs of African base. Already a quilombo evangelical has its identity, all centered on the principles of the gospel. This change does not cease to be a form of resistance to other forms of culture. On the other hand, one can not judge the religion determines the routine of the community, as well as the way of being, thinking and acting that dwell therein. Consider themselves happy living according to them under the tenets of the gospel. Keywords: Quilombo. Mel Quarry / AP. Cultural Exchange. Religiosity.

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SUMÁRIO DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1 Distribuição das certificações da Fundação Cultural Palmares.

FIGURA 2 Entrada da Comunidade do Mel da Pedreira.

FIGURA 3 Comunidade do Mel/AP.

FIGURA 4 Paisagem da Comunidade do Mel/AP.

FIGURA 5 Práticas econômicas desenvolvidas na Comunidade do Mel da Pedreira (agricultura, criação de galinhas e criação de porcos).

FIGURA 6 Práticas econômicas desenvolvidas na Comunidade do Mel da

Pedreira (produção de mel, produção de farinha e criação de peixe)

FIGURA 7 Modo de vida da Comunidade do Mel/AP (moradia, brincadeira e

lazer). FIGURA 8 Ensaio da banda que canta nas missas dominicais.

FIGURA 9 Batuque do Curiaú.

FIGURA 10 Culto Evangélico realizado na comunidade Mel da Pedreira.

FIGURA11 Escola da Comunidade do Mel da Pedreira

FIGURA 12 Ensaio da Banda que toca nas missas dominicais.

FIGURA 13 Festa de Batuque.

FIGURA 14 Instrumentos utilizados nos cultos dos evangélicos na comunidade Mel da Pedreira

FIGURA 15 Culto Evangélico conduzido pelo pastor.

FIGURA 16 Culto evangélico conduzido pelos presbíteros.

FIGURA 17 Atividades realizadas na Comunidade do Mel da Pedreira (Culto Evangélico, Festa da Família, Uso da Guitarra).

FIGURA 18 Momento de louvor durante o culto evangélico.

FIGURA 19 Culto evangélico na comunidade quilombola Mel da Pedreira.

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FIGURA 20 Primeira missa realizada no Brasil.

FIGURA 21 Momento de confraternização realizado aos domingos antes do início do culto.

FIGURA 22 A Igreja de Evangelização a partir dos Estudos Bíblicos

FIGURA 23 Princípios a serem seguidos segundo o evangelho.

FIGURA 24 Culto Evangélico – momento de adoração e reverencia a Jesus.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO 1: QUILOMBOS: ESPAÇOS DE DIÁLOGOS E FRONTEIRAS – O

CASO DA COMUNIDADE DO MEL/AP 20

1.1 COMUNIDADE DO MEL DA PEDREIRA: UMA HISTÓRIA RETOMADA ENTRE A MEMÓRIA DO PRESENTE E A MEMÓRIA DO PASSADO/CAMINHOS DA PESQUISA 20

1.2 CARACTERIZAÇÃO DO CAMPO DA PESQUISA: COMUNIDADE DO MEL DA PEDREIRA/AP 33

1.3 IDENTIDADES E CULTURAS QUE DEMARCAM O TERRITÓRIO DA COMUNIDADE DO MEL DA PEDREIRA/AP 55

CAPÍTULO 2: AS PRÁTICAS RELIGIOSAS REALIZADAS NOS QUILOMBOS: OS

SÍMBOLOS QUE DEMARCAM O LUGAR DA FÉ 60

2.1OS RITUAIS: COMO LUGAR DE IDENTIDADES E MEMÓRIAS 60 2.2O TAMBOR E SUAS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS DA FÉ NOS QUILOMBOS TRADICIONAIS 62

2.3A BIBLIA E SEU LUGAR NA MEMÓRIA COLETIVA E INDIVÍDUAL DOS QUILOMBOS 63

CAPÍTULO 3: COMUNIDADE DO MEL DA PEDREIRA: UMA ARENA DE TROCAS

CULTURAIS-AS VOZES DE UM QUILOMBO EVANGÉLIC 69

3.1 AS TROCAS CULTURAIS NA COMUNIDADE DO MEL DA PEDREIRA

CONTADAS A PARTIR DAS NARRATIVAS ORAIS: ENTRE A TRADIÇÃO E A PÓS –

MODERNIDADE 69

3.2 OS CAMINHOS DA EVANGELIZAÇÃO DA COMUNIDADE DO MEL DA

PEDREIRA – ENTRE MEMÓRIAS E DISCURSOS 82

3.3 A IGREJA COMO ESPAÇO DE DIÁLOGO PARA A COMUNIDADE DO MEL DA

PEDREIRA 90

4 CONCLUSÕES 100

REFERÊNCIAS 103

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INTRODUÇÃO

O Impacto das Trocas Culturais nas Comunidades Quilombolas-Do Tambor

a Guitarra. Esse é o tema que norteou essa pesquisa, sendo esse motivado por

razões pessoais, acadêmicas e profissionais.

As motivações pessoais começaram desde quando entrei na Universidade

Federal do Pará, em 1988, quando ainda menina, tive que sair de minha cidade

(Macapá / Amapá) para estudar em Belém, uma vez que não havia Universidade,

apenas um núcleo da UFPA, o que consequentemente, impedia que todos tivessem

acesso ao ensino ofertado por essa instituição. Nesse ano, como muito outros

jovens amapaenses, cheguei a UFPA para cursar Letras. Escolha essa feita em

decorrência do gosto pela leitura, música, poesia e pela experiência acumulada de

ensinar português para crianças com dificuldade de aprendizagem (as chamadas

aulas particulares), desde os meus quinze anos.

Esse foi de fato o início de meu amor pelos estudos da língua e com o

entendimento de que por meio dela era possível entender a história da sociedade,

bem como de determinados grupos sociais. Ao cursar as disciplinas Linguística e

sociolinguística fiquei encantada, pois no seu decorrer foi possível estudar a língua

dos índios, dos ribeirinhos, das crianças que vivem na rua, entre outros grupos

sociais. A convivência com muitas leituras e pesquisas sobre o assunto, acabou

despertando meu interesse em fazer meu Trabalho de Conclusão de Curso sobre a

linguagem das crianças que reparavam carro na CEASA/PA. Foi um trabalho de

grande contribuição para minha formação. Até hoje, não esqueci Alice uma menina

de 10 anos extremamente agressiva, mas que quando ficava à frente de seus

clientes mudava completamente sua forma de agir: “A madame quer que eu repare

seu carro?” “Vosmicê aceita que eu cuide de seu carro?”, são frases que guardo na

memória.

Para entender esse fenômeno tive que conhecer a historia de vida de Alice.

Vinha de uma família totalmente desestruturada, a mãe foi embora, não sabia quem

era seu pai, sua família resumia na avó, mas que não tinha condições lhe oferecer

uma vida que lhe garantisse uma infância alegre e feliz. Então, talvez, a tentativa de

usar a linguagem padrão era uma forma de se sentir importante, de esquecer a vida

difícil que levava. Foi essa a primeira vez em que me interessei em estudar questões

relacionadas à linguagem numa perspectiva social e cultural.

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Em 1993, formei-me em Letras e logo, prestei concurso para professora do

Estado (Amapá). Fui aprovada para trabalhar com Língua Portuguesa numa escola

de formação de professores. Fizemos muitas pesquisas com os alunos: em feiras,

áreas quilombolas, com as populações ribeirinhas. Essas atividades trouxeram

grandes ganhos para minha vida profissional.

No período em que trabalhei com educação de jovens e adultos, me

dediquei a realizar um trabalho que pudesse devolver a esperança daqueles jovens,

senhores e senhoras. Para isso, era preciso realizar uma prática que tivesse como

base o seu cotidiano. Essa foi uma experiência profissional marcante, cujos registros

de memória daqueles sujeitos, ainda guardo até hoje, e com certeza contou na hora

de decidir pelo meu tema e construção do meu objeto de estudo. Dessa memória há

registros de suas histórias, de suas dúvidas, dificuldades e perspectivas frente à

vida, construídos de forma espontânea e na relação de confiança que existia entre

nós, a ponto deles se sentiram à vontade para falarem de suas vidas. Fiquei com

eles do 1º ao 3º ano do até então, chamado 2º grau. Para eles a educação era a

possibilidade de uma nova vida. Mais uma vez, me vi engajada com um grupo que

de certa forma não tinha visibilidade, considerando-se que todas as atenções eram

voltadas para as chamadas turmas regulares. Mas, penso que uma semente fora

plantada a partir desse processo. Pois, até hoje, onde me encontram fazem questão

de falar comigo e dizer o que estão fazendo, do seu trabalho. Essas experiências

dão conta que o processo de construção de conhecimento é um lugar que

proporciona a interação entre vários mundos culturais.

Seguindo essa trajetória, não poderia deixar de destacar o contato com o

projeto África Brasil desenvolvido pelos professores de História da Escola Estadual

Tiradentes em 2010. Por meio deste projeto tive a oportunidade de ter contato, de

forma mais sistemática, com a cultura negra: suas histórias, seus hábitos, costumes,

modo de vida. Foi tudo muito significativo, muito embora, não tenha participado do

referido projeto guardei esse tema em minha memória. O que mais tarde retomei

quando tive que definir meu objeto de estudo.

A opção por pesquisar a cultura quilombola foi influenciada de diversas

formas. Em princípio muitas questões vieram em meu pensamento: as formas

linguísticas utilizadas pelos quilombolas, os rituais, o modo de vida e, assim por

diante. Sendo que de início pensei na comunidade quilombola Curiaú (um quilombo

urbano, localizado em Macapá – Amapá). Fui amadurecendo essa ideia. Contudo,

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esse percurso foi modificado quando um dia falando sobre esse tema com o amigo

Augusto Oliveira, professor de História, quando me disse, mas existem muitos

trabalhos sobre essa comunidade, penso que você poderia realizar sua pesquisa lá

na Comunidade do Mel da Pedreira/AP, pois é um Quilombo que tem a

particularidade de ser evangélico. “Seria interessante você ir lá”, sugeriu o amigo.

Achei desafiador, pois conforme disse anteriormente, desde o início me interessei

por modos de vida diferentes, formas de comunicação que refletem identidades e

culturas. Foi assim, que pela 1º vez, ouvi falar na Comunidade do Mel da

Pedreira/AP. Ele me ensinou onde estava localizada. No entanto, foi difícil de

encontrar, pois perguntava as pessoas como chegar nesse local e elas não sabiam

ou não tinham ouvido falar.

Em março de 2010, visitei a comunidade do Mel da Pedreira/AP. Tive uma

boa receptividade. Mas, sentir no ar uma áurea diferente, pois ao contrário dos

Quilombos que já conhecia era muito diferente. Imperava um silêncio que dava para

ouvir o canto dos pássaros. Conversei informalmente com alguns moradores, cuja

principal fala residia em se denominar como um povo evangélico.

Nesse contexto, sai dessa visita com a certeza de que era esse fenômeno

que iria investigar, nascendo aí minha inspiração acadêmica que se juntou ao meu

desejo pessoal de enfrentar grandes desafios. O que se fortaleceu mais ainda,

quando ao falar com algumas pessoas da minha intenção de pesquisa sobre esse

Quilombo e ouvir delas: nossa! Tanto quilombo para estudar, você vai escolher justo

um que não é Quilombo, considerando-se que se tornaram evangélicos e não tem

nada da tradição afro. Essa posição me fez mergulhar nesse universo de um

Quilombo de tradição evangélica com a proposta de desmistificar as formas de se

pensar o que determina as formas de organização de um Quilombo.

Conforme fui conhecendo a comunidade Quilombola Mel da Pedreira/AP,

mais fui me interessando pelo seu modo de vida e, fui percebendo que havia muitas

particularidades em relação as suas práticas culturais. Sendo uma delas, a ausência

dos rituais afros, bastante comuns nos quilombos tradicionais de matriz africana, que

foram substituídos pelos rituais evangélicos e das festividades que já não se

realizavam mais. O programa das famílias é frequentar os cultos: não existem as

festas de santos, o tambor, tão difundido como símbolo do batuque de Quilombo e

ainda, a presença da guitarra, do baixo e de outros instrumentos, o que demonstrava

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que se efetivaram ali algumas trocas culturais no processo de transposição de

cultura católica para a de ordem evangélica.

Frente a esse contexto fui à busca da Literatura produzida a respeito dos

Quilombos existentes no Amapá. Encontrei duas produções nessa área: os estudos

de Rosa Acevedo (2010) em parceria com outros autores, sob o titulo: Nova

Cartografia Social: Territórios quilombolas e conflitos; Quilombolas do Curiaú:

Conflitos Socioambientais não Resolvidos com a Criação da Apa do Curiaú. Esse

estudo com certeza é de grande relevância sobre Quilombo e de magnífica

contribuição. Também não se pode deixar de citar a tese de Doutoramento de

Piedade Lino Videira: Batuques, Folias e Ladainhas: a cultura do Quilombo do

Cria-ú em Macapá e sua educação. Trabalho com valor inestimável para os estudos

sobre o Quilombo, pois, se tem assim, uma cartografia da cultura e identidade da

Comunidade Quilombola do Curiaú, mais precisamente em relação aos seus rituais.

Demarca-se nessa produção o território de uma cultura, cuja identidade é marcada

pela herança de matriz africana e de tradição católica.

Encontrei ainda, dois artigos com resultados de pesquisas sobre a

comunidade do Mel da Pedreira/AP: a primeira realizada por Ricardo Ângelo Pereira

de Lima (Doutor em Geografia, professor do Mestrado Integrado em

Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Amapá) e Liliane Rodrigues

Soares (Mestranda em Desenvolvimento Regional, professora substituta Colegiado

de Geografia da Universidade Federal do Amapá) sob o seguinte título: “A

Territorialidade Quilombola em Comunidades Rurais”: o quilombo do Mel da

Pedreira (Amapá). O texto traz informações de grande relevância em relação à

discussão da categoria Território, uma importante discussão a cerca do espaço, do

lugar que se denomina Quilombo. O segundo artigo encontrado de Autoria de Alci

Jakson Soares (2007) que versa sobre Os Negros no Amapá. Traça a trajetória da

chegada dos negros no território amapaense. Não posso deixar de destacar ser ele

um grande pesquisador da cultura negra. E do acervo inestimável que tem sobre o

assunto, pois grande parte das referencias aqui utilizada foram disponibilizadas por

ele.

Frente a esse cenário detectei que os estudos sobre os Quilombos que se

evangelizaram praticamente não existem no contexto do Estado do Amapá.

Particularmente no que diz respeito a uma produção mais sistemática a respeito de

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como estão se organizando esses quilombos, social e culturamente e que

identidades estão sendo construídas a partir desse processo. São essas condições

que justificam a realização dessa investigação.

Diante desse fato reconheci como relevante construir esse fenômeno como

objeto de estudo de minha pesquisa, por considerar de grande contribuição para a

academia, bem como para a sociedade em geral, pois assim, por meio da

sistematização dos seus resultados, é possível contribuir para dar visibilidade às

práticas socioculturais que dinamizam o cotidiano desse Quilombo, que vive às

margens do que tem se denominado movimento negro. Assim, a minha motivação

acadêmica está em dar visibilidade às práticas culturais engendradas no cotidiano

de um Quilombo evangélico, considerando-se que não existem na literatura vigente

muitas discussões em relação a esse tipo de Quilombo. Condição que justifica a

produção dessa pesquisa.

Quanto à motivação profissional penso que o fato de ser um gestor do

conhecimento exige de nós a realização de uma formação continuada, sendo a

pesquisa uma forma imperativa para o exercício de uma prática eficiente frente aos

objetivos propostos. Além do leque de saberes com os quais interagimos nesse

processo: linguagem, formas de comunicação, cultura, identidade, trocas culturais.

Passamos a repensar nossa prática enquanto gestores do conhecimento a partir do

momento que conhecemos outras culturas. Também não posso deixar de dizer ser o

título acadêmico um elemento motivador frente ao fato de que a profissão de

docente enfrenta uma séria crise quanto ao seu reconhecimento como uma

profissão com igual relevância a de um médico, engenheiro, advogado e muitos

outros.

Trata-se, portanto, de uma motivação pertinente para o meu crescimento

profissional no sentido de resgatar um valor preponderante no trabalho do professor:

o mérito de investir em sua qualificação e dizer que essa não é uma obrigação única

e exclusivamente nossa, mas do Estado e da sociedade como um todo. Isso

também me motivou enveredar por esse mundo da pesquisa. E enxerguei nesse

tema uma possibilidade de me tornar uma pesquisadora, iniciante é verdade, mas

com perspectivas de crescimento e de produzir outros estudos em relação a

fenômenos emblemáticos.

Tomando como base as motivações apresentadas defini como objetivo dessa

pesquisa: analisar o impacto das trocas culturais na comunidade Quilombola Mel da

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Pedreira, principalmente em relação ao fato dela ter se evangelizado. O meu

pressuposto é ser a religiosidade um fenômeno que está presente em todas as

sociedades, tida como suporte para convivência e também que através dela se

realizam trocas culturais, tendo em vista se tratar de uma mudança que afetou

diretamente no modo de vida da população do Mel da Pedreira/AP. Fenômeno esse

que se buscou entender a partir da seguinte situação problema: qual o impacto das

trocas culturais no cotidiano da Comunidade do Mel da Pedreira/AP frente à

mudança no campo da cultura ao se tornar evangélica?

Condição essa que mobilizou esforços para a realização de uma

investigação de cunho qualitativo, à medida que a consideramos apropriada para

estudar esse tipo de fenômeno centrado no cotidiano desse grupo social

denominado Quilombola e por nos favorecer contato com a autenticidade da

realidade vivida. Por meio desse tipo de pesquisa se tem a base para a análise das

práticas culturais desenvolvidas nos quilombos tradicionais, bem como uma

interpretação do pesquisador quanto do Quilombo e sua organização.

Partindo, desse princípio me filiei ao pensamento de Silverman (2009. p, 51)

quanto ao que se determina como uma pesquisa qualitativa: “o principal ponto forte

de uma pesquisa qualitativa é a capacidade para estudar fenômeno simplesmente

indisponível em qualquer lugar”. Mostra-se assim, que a opção a esse tipo de

pesquisa deu visibilidade para desvelar os impactos das trocas culturais que

ocorreram na comunidade Mel da Pedreira/AP ao se tornar evangélica.

Com base nessa perspectiva, definiu-se metodologicamente pela realização

de um estudo de caso, tendo em vista a oportunidade que se teve de observar as

particularidades de um Quilombo evangélico. Demonstram-se dessa forma as

diferenças existentes nele quando comparado a um Quilombo de matriz tradicional.

Foram sujeitos dessa pesquisa os moradores da Comunidade do Mel da

Pedreira/AP, dos quais num universo de 70 pessoas, 15 se predispuseram a contar

a história da comunidade, seus hábitos, seus costumes. Sendo a maioria os mais

antigos, pois eles trazem um maior inventário da memória em relação ao surgimento,

organização, momento em que se adotou a religião evangélica, os hábitos e

costumes da comunidade antes da evangelização.

Para tanto, há de se evidenciar que a técnica utilizada para chegar aos

resultados apresentados foi a História Oral, pois a princípio até pensei em fazer uma

análise documental, mas tive muita dificuldade em encontrar um acervo que

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pudesse subsidiar meu estudo. Fui a Biblioteca Pública, a Secretaria que trata das

questões referentes ao movimento negro, consultei alguns historiadores, mas não

obtive sucesso. Encontrei apenas dois artigos produzidos por dois professores da

Universidade Federal do Amapá-UNIFAP. Sendo os mesmos utilizados como fonte

de pesquisa.

Diante dessa dificuldade conclui que a única forma de reconstituir a história

deste Quilombo era através das narrativas orais, pois como muito bem colocou

Meihy (1991, p. 31) “a narrativa é um elemento comunicativo prenhe de sugestões.

Ela garante a legitimação das entrevistas, por parte dos depoentes”. Isso implica

dizer que trazem em seu bojo informações, cujos sentidos estão guardados na

memória e se expandem por meio da oralização, detalhes, modos de ver a vida,

culturas, identidades e organização, que vão se revelando nas teias da fala dos

sujeitos da pesquisa, bem como as tensões existentes na história de um Quilombo

evangélico foram se tornando mais visíveis.

Dessa forma, foram utilizados para produção de dados alguns

procedimentos da Etnografia como: a observação, a entrevistas produzidas com

base na verbalização dos sujeitos por meio das narrativas orais. Através da

Etnografia foi possível se fazer o deslocamento desse para outra região, para outra

cultura, mesmo que de forma minimamente, um deslocamento na forma de ver. Isto

porque, não se pode nessa perspectiva deixar de notar que uma peculiaridade

marca o olhar, ou seja, vê-se que a partir de um terminado ponto, que num

determinado contexto a ser mudado, permite outra visão. Essa é, portanto, que

justifica a escolha desse procedimento (LAPLANTINE, 2004).

No que diz respeito à estrutura do trabalho organizou-se em (3) Capítulos,

assim pontuados:

No Primeiro Capítulo – Quilombos: Espaços de Diálogos e Fronteiras –

Comunidade do Mel da Pedreira/AP discuto os sentidos construídos acerca do que é

Quilombo, desde aquele concebido pelo Conselho Ultramarino, que configurou como

um espaço que abriga negros refugiados, até o conceito contemporâneo, que atribui

uma concepção de campo negro, lugar de afrodescendentes. Sendo que ao longo

dessa discussão, esses conceitos foram ampliados a partir da Literatura de autores

como: Fiabani (2005), Gomes (2005 e 2006) e Nascimento (2009). Também nesse

Capítulo, descrevo a formação dos Quilombos, tendo como recorte de análise o

período Colonial até os tempos atuais, e como base a definição dada pelos

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habitantes do Mel da Pedreira/AP e na sequência apresenta-se uma caracterização

deste Quilombo, mais especificamente no que se trata do processo de

regulamentação das terras quilombolas. Apresento ainda, os tipos de rituais

presentes nas comunidades do Quilombo, com destaque para os rituais evangélicos.

No Segundo Capítulo – O Tambor e suas Representações Simbólicas da Fé

nos Quilombos Tradicionais -, apresento uma abordagem do que diz a Literatura a

respeito do significado do tambor para a cultura negra, mas especificamente quanto

a sua simbologia nesse universo, principalmente a sua utilização nos rituais, com

destaque para as festas de batuques. Discuto também o lugar desse instrumento

como símbolo de cultura. Na sequência faço uma discussão a respeito da Bíblia e

seu Lugar na Memória Coletiva e Individual dos quilombolas. A pretensão foi de

situar a presença da Bíblia historicamente no universo evangélico, considerando-se

ter ocupado o lugar do tambor no processo de evangelização de determinados

Quilombo, como é o caso da Comunidade do Mel da Pedreira/AP. Para tanto, três

questões foram pontuadas: o sentido da Bíblia, a Bíblia como lugar do sagrado e a

Bíblia e o evangelho.

No Terceiro Capítulo – intitulado de Comunidade do Mel da Pedreira - AP:

uma arena de trocas culturais – As Vozes de um Quilombo Evangélico. Nesse

Capítulo estão sistematizados e analisados os dados que foram produzidos no

trabalho de campo, a partir das narrativas orais, cuja estruturação dão conta dos

seguintes subitens: as trocas culturais na comunidade do Mel da Pedreira/AP

contadas a partir das narrativas orais: entre a tradição e a pós – modernidade (aqui

se apresentam as narrativas orais produzidas pelos sujeitos da pesquisa, com

destaque para aquelas que demonstram a existência de trocas culturais, bem como

os traços de cultura de um Quilombo evangélico), os caminhos da evangelização da

comunidade do Mel da Pedreira/AP– entre memórias e discursos (Descrevo nessa

passagem do trabalho a trajetória do processo de evangelização dos moradores

dessa comunidade, tendo como base as narrativas orais). E por fim, a discussão a

respeito da Igreja como espaço de diálogo para a comunidade do Mel da

Pedreira/AP (Faz-se uma cartografia a respeito do papel da igreja na constituição

cultural e identitária dessa comunidade, bem como a sacralização desse espaço a

partir da lógica evangélica).

Destarte, essa pesquisa apresenta-se como um referencial para a realização

de outros estudos, pois envereda pelo território de um Quilombo que numa trajetória

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de enfrentamentos: sociais, ideológicos, culturais, políticas e de identidade busca

superar os estranhamentos advindos do fato de terem se tornados evangélicos. As

trocas culturais nos dão a dimensão que tem a religiosidade como base para a

convivência. Assim, a pretensão não foi discutir religião, mas os fenômenos que se

instauram no campo da religiosidade. No caso da comunidade do Mel da

Pedreira/AP, cartografar suas práticas culturais e religiosas nos faz entender quão

importante é conhecer o universo do outro.

Dessa forma, sistematizo nesse trabalho o fruto de uma caminhada que não

se esgota nos dados e discussão aqui apresentados, mas na possibilidade de

realização de outros estudos, motivados pelo conhecimento contemporâneo das

mudanças ocorridas no interior dos Quilombos. Deixa-se aqui, a semente para que,

não só a Comunidade do Mel da Pedreira/AP se faça conhecer, mas muitas outras

comunidades que foram esquecidas e ignoradas quanto ao seu processo histórico e

existencial, pelo conhecimento científico abissal e pelas políticas públicas.

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CAPÍTULO 1 - QUILOMBOS: ESPAÇOS DE DIÁLOGOS E FRONTEIRAS – O

CASO DA COMUNIDADE DO MEL DA PEDREIRA/AMAPÁ

1.1 COMUNIDADE DO MEL DA PEDREIRA: UMA HISTÓRIA RETOMADA ENTRE A MEMÓRIA DO PRESENTE E A MEMÓRIA DO PASSADO/CAMINHOS DA PESQUISA

O Brasil é reconhecido por ser um país que apresenta uma grande

diversidade em todos os campos: social, econômico, político, cultural e religioso.

Condição essa que o torna um lugar consideravelmente hibridizado, tendo em vista

que sofreu influencia no seu processo de organização, principalmente em relação à

cultura dos colonizadores. Sendo os Quilombos, um dos principais referenciais da

herança cultural deixadas pelos mesmos, uma vez que foram eles que trouxeram os

negros do Continente Africano para servir de mão de obra nas terras conquistadas.

Assim, os negros se tornaram escravos e ficaram por muito tempo subjugado

a atender os interesses da oligarquia colonial. Até que um dia esses se rebelaram e

fugiram para lugares que pudessem tirá-los do foco de seus senhores. Foi assim,

que surgiram os Quilombos, cuja história vem sendo estudada a partir do

desenvolvimento de muitas pesquisas. O que faz com que exista uma vasta

Literatura a respeito do assunto quanto ao seu significado, formação, caracterização,

modo de vida, processo de regulamentação do território, identidade, cultura e

religiosidade. Aspectos esses importantes para compreender de forma plena o

fenômeno investigado: O Impacto das Trocas Culturais nas Comunidades

Quilombolas: do tambor à guitarra. Temática essa que norteou a pesquisa aqui

apresentada.

Do ponto de vista conceitual a respeito do que se pode definir o que é

Quilombo nos filiamos aos estudos de Fiabani (2005), Gomes (2005), Nascimento

(2009) e Gomes (2006).

O primeiro conceito postulado acerca do que é o Quilombo foi produzido

segundo Gomes (2005, p. 269) “em 1722, mais precisamente no Regimento dos

capitães do mato, significa povoado onde estejam acima de 4 negros, com ranchos,

pilões e modo de aí se conservarem”. Subentende-se então, como Quilombo lugar

que abriga negros refugiados do sistema escravista.

Um recorte importante a respeito do que se definiu como Quilombo também é

registrado por Carvalho (1995, apud Gomes, 2005, p. 282) ao apontar que:

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Na América esse fenômeno recebeu nomes diversos, sendo denominadas como as comunidades formadas pelos negros escravos, que fugiram do trabalho forçado e resistiram a recaptura... Receberam vários nomes nas diversas regiões do novo mundo: quilombo ou mocambos no Brasil; palenques na Colômbia e em Cuba; cumbes na Venezuela; marrons, no Haiti e nas demais ilhas do Caribe Francês; grupos ou comunidades de cimarrones, em diversas partes da América Espanhola; marrons na Jamaica, no Suriname e no Sul dos Estados Unidos.

Tomando como base essa premissa vale ressaltar que o sentido atribuído ao

Quilombo está vinculado a três elementos: fuga, escravo e resistência. O que denota

então ser o Quilombo um espaço que mobiliza para a ideia de uma organização

formada para abrigar aqueles que se sentiam oprimidos pelo regime da escravidão,

nesse caso, os negros, que eram mantidos em senzalas, quando não, como

serviçais na casa grande. Logo, se trata de um território utilizado para a busca da

autonomia, da liberdade, no sentido de se manter longe das atrocidades realizadas

pelos seus senhores. Contudo, não se pode deixar de dizer ainda que esse espaço

simboliza parte da memória histórica da organização política e administrativa do

Brasil Colônia.

De fato são muitas as definições que circundam em torno do que seja

Quilombo, o que levaria a uma extensa descrição. Por isso, a opção por algumas

delas, com destaque para a que se contrapõem as duas anteriores situadas por

Fiabani e Gomes a qual Nascimento (2009, p. 205) rebate aos aferir que:

Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa no progresso humano e sociopolítico em termos de igualitarismo econômico.

Diante desse pressuposto ressalta-se que a ideia de Quilombo está vinculada

a reunião de pessoas, mais precisamente dos negros escravizados. Diz respeito à

forma que esses interagem ao estabelecerem laços de convivência. O espaço não é

o que determina o Quilombo, mas as relações estabelecidas no interior desse lugar.

Lugar esse organizado socialmente, culturalmente e politicamente através de uma

identidade própria de quem busca o desenvolvimento, mas também a manutenção

de tradição de suas raízes. Além que, não se pode deixar de considerar que a

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concepção de Quilombo não está apenas ligada a questão de resistência, mas

também ao fato de que ao se estabelecerem esse tipo de organização

estabeleceram interação com os mundos da escravidão, pois ao empreenderem

fugas, protesto, resultado de experiências múltiplas de resistência em seu cotidiano

também reelaboraram, reorganizaram e transformaram, claro sempre que possível, o

universo em que viviam (GOMES, 2005).

Ressalta-se que a definição de Quilombo no campo da Historiografia é

bastante fértil, tendo em vista que existem muitos estudos nessa área.

Lugar de resistência, espaço de refugiados, território de membros da

resistência negra contra a escravidão, campo negro. Assim, vem sendo denominado

essa organização a qual se denominou Quilombo e que no contexto atual configura

como lugar e espaço de cultura e história de uma população que demarcou um lugar

para chamar de seu. Surgiu a partir da necessidade dos negros escravos se

libertarem das amarras dos seus senhores, como também resistir à força do poder

que a escravidão impôs.

Os Quilombos são organizações éticas, territoriais resultantes de uma

atitude radical de fugir do sistema escravista. Podem ser compreendido, portanto,

como espaço de pertencimento ao lugar, que abrigam as comunidades negras. São

espaços de identidades e culturas negras, com grande influencia da matriz africana.

Neles habitam negros refugiados das forças do sistema escravista. Mas, que

resistiram a um processo de dominação imposto pela oligarquia colonial.

Representam não só a descendência do povo brasileiro, mas a capacidade que um

povo tem de mudar sua história. Muito embora, sejamos sabedores que existem

muitos quilombos sendo tratados como símbolo da escravidão, sem que se

respeitem suas formas de ser e de pensar.

Para ampliar esse entendimento cabe destacar o pensamento de Malcher &

El Robrini (2008, p. 8) ao definir Quilombo como:

É entendido como resultante de elementos étnicos que se internalizam nas relações construídas com e no território. Trata-se da reinvenção de elementos étnico-culturais que conduzem a vida e dão sentido de pertencimento ao lugar. Dessa forma, a terra e o desenvolvimento coletivo. A especificidade do modo de vida demonstra existirem elementos comuns ao universo camponês brasileiro, e ao mesmo tempo, existem elementos que os diferenciam pela condição étnica e historicamente particular. Podemos dizer que a identidade quilombola se coloca diretamente no interior do campo

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étnico e ao mesmo tempo se define num campo de relações sociais e políticas.

Essa é uma posição bastante elucidativa à medida que o Quilombo não

pode ser pensado apenas sob uma perspectiva histórica, mas numa dimensão que

dê conta de explicar os aspectos que envolvem a sua origem, sua instituição

enquanto sujeitos que se inscrevem sócio-historicamente num plano marcado por:

culturas, etnias, políticas e porque não dizer, simbologias e acrescentaria ainda, o

plano religioso, à medida que novas relações se estabelecem e se instauram a partir

de contrato de convivência entre os membros da comunidade. O que implica em

aferir serem os Quilombos um território de muitas relações e tradições. Sendo que

algumas culturas vêm se transformando em detrimento de novas escolhas e porque

não dizer, ideologias que neles se instalam. No campo dessas mudanças estão

questões de cultura e identidades.

Particularizar questões dessa ordem dá conta que o Quilombo deve ser

concebido como um lugar de pertencimento, considerando-se o que preconiza

Soares (2008, p. 8):

Quanto à situação dos quilombos têm materializada sua história e cultura, vinculadas ao território. Sendo assim, o território apresenta-se como a prova histórica de sua identidade e territorialidade. Seu amparo está relacionado pela existência concreta da base territorial. Ao mesmo tempo, o território de quilombo é uma das expressões que se manifestam na diversidade social, econômica e cultural no meio rural brasileiro, além das manifestações que se concretizam inclusive no espaço urbano.

A partir de ideias como essas há de se considerar no bojo dessa discussão

que o lugar de Quilombo perpassa não só pela ocupação do território, mas pelas

representações que nele existe. Além que fica nesse caso, evidenciado ser esse

espaço onde as inocorrências de etnia, cor, costumes, valores e identidades se

perpetuam pelos laços da tradição, mas se refazem pelo atravessamento de muitas

outras formas de viver e pensar.

Essa definição comporta o pressuposto de Quilombo centrado na

ancestralidade e questões de território. O que evidencia ser o Quilombo um lugar

definido por um tempo e um espaço situado, mais num passado histórico, do que

propriamente nas funções que exerce. Pensa-se o Quilombo como uma nação

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homogênea, onde ainda se incute que diferenças de ordem étnicas e culturais fazem

parte de uma história e épocas consideradas distantes (TRINDADE, 2004, p. 3).

Em relação a essa proposição cabe destacar o sentido de Quilombo a partir

de outra perspectiva:

Quilombo é um movimento amplo e permanente que se caracteriza pelas seguintes dimensões: Vivência de povos africanos que se recusavam à submissão, à exploração, a violência do sistema colonial e do escravismo, formas associativas que se criavam em florestas de difícil acesso, com defesa e organização socioeconômica política própria; sustentação da continuidade africana através de genuínos grupos de resistência políticas e cultural (Nascimento, 1980, p. 32).

Esse sentido coloca o Quilombo como um lugar diaspórico, que perpassa

pelo sentido de ir e vir de um grupo, que transita entre o local e o global. Essa é

uma condição que decorre do deslocamento que se deu através do atlântico. Vindos

da África os negros fizeram uma viagem que se configura um movimento de trocas

de cultura e porque não dizer imposição de um sistema de dominação.

Fica assim, explícito que há um deslocamento de sentido do que vem a ser

Quilombo. Sai-se do estatus de memória e história para lugar de cultura e

identidade. Deixa, portanto, de ser um campo negro.

O inventário de sentidos utilizados sobre Quilombo transcende a esfera de

território à medida que o seu significado não se limita apenas ao espaço onde se

aglomera negros vindos da África e colocados/dominados a partir de um processo

de escravidão, mas uma arena social, isto é palco de lutas e solidariedade entre as

comunidades formadas pelos seguintes agentes sociais: fugitivos, cativos nas

plantações e até nas chamadas vizinhas, libertos lavradores, fazendeiros,

autoridades policiais, com destaque ainda para os sujeitos históricos que

vivenciaram os mundos da escravidão (GOMES, 1995).

Configura-se dessa forma o Quilombo a partir de um contexto que não é só

histórico, mas social, antropológico à medida que esse é analisado a partir das redes

de relações às quais é constituído.

Destaca-se no âmbito dessa discussão que o Quilombo pode ser

compreendido também mediante conjunção histórica a qual heuristicamente Gilroy

(2001, p. 35) mundo atlântico negro que assim ele define:

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As formas culturais estereofônicas, bilíngues ou bifocais originados pelos-mas não mais propriedades exclusiva dos - negros dispersos nas estruturas de sentimento, produção, comunicação e memória. Perpassa pensar as relações especiais entre raça, cultura, nacionalidade e etnia que possuem relevância nas historias e culturas políticas dos cidadãos negros.

Fica nesse sentido, evidenciado que a condição de negro tem transitado

nesse caso, por vários contextos e continentes. De forma, que o Quilombo parece

ser o resultado de uma viagem que ainda não acabou considerando-se a diáspora

africana pelo hemisfério ocidental (GILROY, 2001).

Essas definições acerca do que vem a ser um Quilombo estão balizadas em

pesquisas e estudos realizados no campo de várias ciências como: as sociais,

antropológica, histórica, geográficas. São as mesmas são de suma importância para

compreensão a respeito desse objeto denominado Quilombo. Contudo, não se pode

deixar de destacar, na concepção dos quilombolas, mais especificamente os da

comunidade do Mel da Pedreira/AP, sendo esse o universo pesquisado. Para eles

Quilombo:

É lugar de descendência de escravo... direito da raça negra descendência africana (Benedito Ramos, 2012); Quilombo é uma área demarcada, onde descendentes vivem pescando, extrativismo ...quilombola é uma pergunta que antes não tinha sido feita pra mim ...o que é ser quilombola... quilombola como eu, sou descendente e participo das atividades e estar em comunidade com os membros da comunidade (Elizeu Cirilo, 2012); Trazer no sangue essa descendência de negro vindo da África ... trazer as culturas, que nosso povo trouxe e outras que surgiram ser quilombola é história (Enoque Cyrillo, 2012); Lugar onde moram pessoas que compartilham a mesma cultura ...é estar integrado a essa cultura (Estefania de Souza, 2012).

As concepções dão conta do que se constitui na contemporaneidade como

Quilombo, bem como o que significa ser quilombola. Sendo esses sentidos

reconstituídos a partir da memória coletiva de seus moradores. Filiam-se a herança

histórica de seus antepassados, uma vez que consideram aspectos concernentes à

diáspora africana, a descendência, a cultura negra, a história dos negros. Enfim,

verifica-se que o sentido atribuído ao Quilombo perpassa por uma série de questões,

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conforme descrita, além de que todos esses elementos referenciam ser esse lugar

espaço de identidades.

Fica explícito nesse sentido, que a definição de Quilombo está associada às

formas de pensar e ser de um grupo legitimado por agregar identidade e modo de

vida a partir da vivência em um espaço criado para não só se esconder, mas viver

de forma livre, manter e criar culturas, sem perder de vista suas raízes.

Quanto à organização dos Quilombos, pode ser concebida de acordo com

Maestri (1984, apud Fiabani, 2005, p. 144), que afirmou:

Sobre a estrutura socioeconômica do quilombo ergueram-se em alguns casos, verdadeiras formações sociais que estabeleceram vínculos mercantis com a sociedade escravistas e entabularam negociações políticas com ela. Nas relações de troca, os quilombolas foram explorados pelos bodegueiros, regatões, taberneiros etc. Quanto às fugas, sabe-se que foram frequentes. As poucas avaliações existentes apontam uma importante porcentagem de cativos permanentemente fugidos.

Essa forma de organização é própria do sistema colonial, considerando-se

que aos escravos não era atribuído nem um tipo de remuneração. Daí ao se

rebelarem passaram a viver de forma clandestina, o que consequentemente, os

impediu de terem um sistema econômico próprio. Por isso, a dinâmica desenvolvida

foi a priori o sistema de troca. Isto porque, a capacidade produtiva dos quilombos na

verdade era limitada, tendo em vista os mesmos se apoiarem em meios de produção

considerada rústicos, além de a maioria viver em constante ameaça de serem

destruídos. Condição essa que dificultava uma maior divisão do trabalho no interior e

entre os Quilombos (Maestri, 1984, apud Fiabani, 2005).

Na reconstituição da organização dos Quilombos é importante elucidar ainda

como se formaram, tendo como base a descrição feita por Maestri (1984, apud

Fiabani, 2005) em relação à localização:

Comumente, os quilombos procuravam regiões de difícil acesso às forças reescravizadoras, mas não tão distantes que impossibilitasse o contato com a sociedade escravista. Dessa forma, entende-se que a confederação dos Palmares foi uma exceção à regra. O quilombo existiu nos lugares distantes, mas verificou-se significativa presença dele nos arredores das aglomerações urbanas.

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Por meio desse recorte verifica-se que como se deu a formação do Quilombo,

bem como a sua organização. Sendo nesse caso, Quilombo um espaço encontrado

a partir de um anseio de liberdade, mas ao mesmo tempo de medo, de opressão,

pois na sociedade escravista esses eram tratados como propriedade. Sob essa

condição acabaram por se refugiarem em ambientes fechados. Por isso, grande

parte dos Quilombos está situado em áreas rurais. Condição essa que tem se

perpetuado, uma vez que muitos Quilombos continuam vivendo em espaços

distantes das áreas urbanos e com muitas dificuldades para se desenvolverem

economicamente e até mesmo para difundir e preservar sua cultura.

Não se pode deixar de pontuar no que tange a organização dos Quilombos

que a origem do mesmo se deu a partir de um movimento de fuga. Por isso, pode

ser pensado como uma negação da sociedade oficial, que de todas as formas

oprimia os negros mantidos como escravos, eliminando as sua língua, a sua religião,

assim como seu estilo de vida. Dessa forma, o Quilombo nessa perspectiva, era uma

reafirmação da cultura e do estilo de vida dos africanos. Assim sendo, o tipo de

organização social adotada por essas comunidades estavam de certa forma

estruturadas aos moldes dominantes nos Estados africanos. Isto porque, os negros

por eles responsáveis eram em sua grande parte vindos da África, ou seja, não eram

negros crioulos, nascido em território brasileiro. Do ponto de vista da Etnologia deve

ser compreendido como um fenômeno contra-culturativo, mais precisamente de

rebeldia contra o sistema vigente, que impôs seus padrões de vida e também da

restauração dos valores antigos (GOMES, 2006).

Os Quilombos representam assim, um território que agrega parte da história

de colonização do Brasil, bem como a influência da cultura africana no modo de vida

da população quilombola desse país. São os quilombos resultados de um processo

histórico, social, cultural e político de um regime centrado numa administração, cujos

interesses eram de um estado soberano.

Barros (2009, p. 187) retrata de forma bastante sistemática a organização dos

quilombos ao postular que:

Ao bem da verdade, as formações coletivas oriundas de escravos fugitivos, e que são categorizadas de maneira mais geral sob a denominação de “quilombos”, foram de diversos tipos, seja com relação ao tipo de agrupamento que formavam, seja com relação aos objetivos do agrupamento seja como ao tipo de duração da formação aquilombada (temporária ou permanente). Quando se dizia que um

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grupo de escravo estava “aquilombado”, podia se tratar de uma situação temporária, e isto podia ocorrer até no interior de uma fazenda como forma de protesto contra certas condições de trabalho, de modo que depois de uma negociação, a partir da qual os escravos conquistavam o que almejavam, o aquilombamento se desfazia....Já o quilombo com formação com uma organização social permanente – era já uma rejeição do sistema escravocrata ...um claro enfrentamento da diferença escrava.

Esse cenário remete a ideia de que os Quilombos, no caso os do Brasil,

quanto a sua organização tem uma estrutura não tipicamente brasileira, mas

formada a partir de modelos presentes em outras culturas, com destaque para os

modelos de origem africana. Sendo, portanto, imperativo dizer que se trata de um

espaço com formas particularizadas e próprias.

De certa forma, configura-se a um espaço em que a cultura, a economia, a

religiosidade, o modo de vida eram comuns aos dos africanos. Explica-se assim, o

fato de muitos quilombos, viverem do sistema de troca, realizarem rituais religiosos

conforme matrizes africanas, viverem da cultura de subsistência. Sob essa premissa

está a particularidade de ser um lugar surgido a partir da resistência a uma cultura

escravocrata.

Então, essa organização dos Quilombos demarcam formas de ser e viver

singulares, mas com indícios de que a herança cultural da identidade africana não

pode deixar de ser pensada longe da cultura de onde vieram à maioria dos

habitantes dos territórios quilombolas. Existe uma tendência principalmente em

relação à economia, cultura, religiosidade de se seguir a tradição de origem.

Outro aspecto importante a se destacar a respeito dos Quilombos diz

respeito ao processo de regulamentação desse tipo de organização, tendo em vista,

que até ao momento que antecedeu a abolição da escravatura no Brasil, esses eram

tidos como lugar de fugitivos negros. Visão essa que só veio a ser pensada diferente

a partir da promulgação da Constituição de 1988, quando se passou a reconhecer a

identidade desse movimento, pois até então os mesmos eram ignorados enquanto

organização social, política e cultural. Realidade essa que só se modificou segundo

Lopes (2008, p. 73) a partir do seguinte contexto:

Espalhadas por muitos estados desde as a época da escravidão, somente em 1981, quando se começou a projetar o memorial Zumbi dos Palmares, erguido no sítio Histórico da Serra da Barriga, em Alagoas, é que a história dessas comunidades entrou na pauta dos

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movimentos negros. Daí a Constituição Federal, promulgada em 1988, ano do centenário da Abolição, trazer um de seus dispositivos o seguinte texto: “Aos remanescentes das comunidades de quilombo que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títulos respectivos”.

A regulamentação das terras de Quilombo foi o primeiro passo em busca de

se tirar da visibilidade essas comunidades, muito embora, saibamos que muito há de

ser feito ainda, tendo em vista que não é suficiente apenas reconhecer a tutela do

território, mas permitir que a população que nele vive possa manter sua cultura, sem

perder sua identidade. É preciso então que se legitimem as histórias e a memória

sob as quais essas vêm sendo constituída. Essa ressalva é importante, para que

também se respeita as possibilidades dessas culturas e identidades se modificarem.

Cabe elucidar que esse processo de regulamentação traz em seu bojo ainda

alguns problemas quanto algumas mudanças que vem ocorrendo em determinados

Quilombos. Fato esse que podemos ilustrar na fala do Sr Alexandre (2011), membro

da Comunidade Mel da Pedreira, localizada no Estado do Amapá, ao falar de como

se deu a regulamentação desse Quilombo e as dificuldades para terem sua

identidade de Quilombo evangélico aceita:

Dois Antropólogos, um de Brasília e outro daqui da Universidade, eles vieram pra fazer esse levantamento... Eu comecei a mostrar a historia, a comunidade... Na historia, lá diz que em 1968, recebemos a visita da igreja Presbiteriana do Brasil e aderimos pra nós à vida que escreve o evangelho... Eles quando chegaram nesse ponto, eles só riram um pro outro... ai eu pude observar que alguma coisa estava emperrando... ai, eu perguntei, há alguma objeção?... ai, eles disseram, sim... ai, eu disse, em que sentido?... ai, eles responderam, é porque vocês quando aderiram a vida cristã, evangélica, vocês perderam a indentidade das raízes africana... agente tava numa mesa em casa, sentados, conversando, ai eu pedi a graças pra Deus... meu Deus como é que pode uma coisa assim?... e Deus me deu graça, ai eu me lembrei da democracia, país democrático que agente é (né)... lembrei disso e fiz uso na lei... Vocês sabem mais do que eu, que sou leigo (né), vocês sabem mais do que eu, de lei, cumprimento de lei, que o nosso país é democrático e a democracia é direito de ir e vir, é liberdade de expressão, é livre arbítrio... Então tendo posse disso ai, eu não posso escolher a minha religião?... Até, porque o milagre da fé evangélica, ela se da no interior, ela não se da no exterior, a prova é a minha cor, continua a minha cor, não é?... Meu estraci nasal e labial tá do mesmo jeitinho, então não mudou nada, continuou sendo negro, eu provo por A mais B que eu sou afrodescendentes.

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Diante dessa fala fica explícito que o processo de regulamentação dos

Quilombos ainda está atrelado apenas à questão de território e a ideia de que as

culturas são estáticas e unicamente, resultado das heranças culturais. O que

obviamente traz uma ideia uniforme de Quilombo. Fato esse gerador de certa

incompreensão de que não é o lugar que determina essa identidade, mas as

relações que se travam no seu interior, isto é dos Quilombos.

Revela-se o Quilombo um lugar de identidades, algumas advindas da herança

cultural, mas também criada e recriadas e recriadas sob a ordem de seus sujeitos. É

preciso assim, que se tome esse espaço como lugar de uma cultura, perpetuada a

partir de uma dada identidade. Assim, o reconhecimento deve ser realizado frente a

cada tipo de Quilombo, sem que leve em conta as suas particularidade, como é o

caso da comunidade do Mel da Pedreira/AP, cuja grande dificuldade se encontra em

efetivar o título em decorrência do fato de serem evangélica. O que deixa claro, que

não é só uma questão de estabelecer leis, mas garantir os direitos as diferenças e

as culturas hibridizadas.

No tocante a esse processo o reconhecimento de um Quilombo não deve

agregar valores de ordem apenas da terra, mas do modo de vida que se

estabeleceram a partir de suas práticas, tendo em vista serem elas o elemento de

constituição de uma identidade, pois relatos dão conta que há uma série de

questões em jogo, entre as quais a forma como essas são vista nos mais diversos

contextos.

Em termos de comunidades que passaram por reconhecimento conforme

relatório do Programa Quilombola (2012, p. 20) essa é distribuição das famílias

quilombolas beneficiadas por titulação, por unidade da federação.

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Figura 1: Distribuição das certificações da Fundação Cultural Palmares

TOTAL Famílias: 11.991 Comunidades: 193

Com base nesses dados verifica-se que existe um número considerável de

comunidades quilombolas no Brasil. Por outro lado, é baixo o número de

comunidades tituladas, o que demonstra que há muito que se avançar em relação a

essa questão. E que ao se fazer esse reconhecimento se estabeleçam critérios que

leve em conta a realidade de cada comunidade, principalmente as questões de

cultura e identidade. Já que na contemporaneidade as forma de Quilombos não são

mais centradas apenas nas questões de descendência, mas também de

religiosidade, modo de vida, organização sócio econômico e política.

Essa é uma premissa que deve ser pensada considerando-se que como

muito bem coloca Canclini (2003, p. XXIII):

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Não é possível falar das identidades como se tratasse apenas de um conjunto de traços fixos, nem afirmá-las como a essência de uma etnia ou de uma nação. A história dos movimentos identitários revela uma série de operações de seleção de elementos de diferentes épocas articulados pelos grupos hegemônicos em um relato que lhes dá coerência, dramaticidade e eloquência.

No tocante a essa proposição é pertinente ressaltar que os Quilombos têm

que ser olhados a partir da identidade que construíram historicamente e a forma com

que vem reafirmando sua identidade. Não se trata apenas de um espaço, mas de

um lugar onde as relações se constroem a partir de uma memória individual e

coletiva. Portanto, ao se discutir sobre sua cultura, a forma de vida, organização,

identidade não se pode deixar de referenciar que os Quilombos representam parte

de um processo sócio histórico, que vem mostrar que são muito mais que um campo

negro, como os denominou Gomes. São lugares de identidade, memória e cultura,

constituídos historicamente. Ideia essa que Canclini coloca com muita propriedade.

Assim sendo, cabe a ideia de um movimento identitário, pois é na sua diversidade

que os mesmos se tornaram espaços que se movimento entre a história passada e a

história presente.

Tomando como base esse referencial a ideia da existência de um Quilombo

evangélico passa a ser aceita sem muita resistência, já que a cultura não é estática

e as identidades não são únicas, pelo contrário se diversificam conforme as

interações realizadas entre os agentes sociais e seus pares e o outro.

Essa concepção permite entender melhor alguns fenômenos que vem

ocorrendo no interior de algumas comunidades, como é caso da comunidade do Mel

da Pedreira/AP que se tornou evangélica modificando assim a estrutura existente de

Quilombo. Fato esse que motivou a realização dessa pesquisa, que apresenta como

proposta investigar qual o impacto cultural desse processo de evangelização no

cotidiano dos moradores dessa comunidade. Para tanto, torna-se necessário

caracterizar essa comunidade para entendermos e conhecermos como é esse

Quilombo cujas práticas religiosas se difere das realizadas nos Quilombos

tradicionais. Faz-se assim, a caracterização do campo de nossa pesquisa.

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1.2 CARACTERIZAÇÕES DO CAMPO DA PESQUISA: COMUNIDADE DO MEL DA PEDREIRA/AP

No caso da comunidade do Mel da Pedreira/AP essa particularidade quanto

a sua organização é definida mediante aos aspectos da etnia, cultura, economia e

religiosidade. Com destaque para as questões de ordem religiosa, já que se trata de

um Quilombo evangélico.

As Comunidades Quilombolas são hoje, foco de estudos, considerando-se

que expressam marco de um processo sócio-histórico. Sendo o Quilombo concebido

como um grupo de auto-identificação, tendo em vista que tem: “identidade como

elemento central para a reafirmação da condição de ser e viver um lugar, nesse

caso, um território” (ALMEIDA, 2002, p. 53).

Nessa perspectiva, interessa investigar o fenômeno da Cultura, da Fé e da

Identidade não só do ponto de vista da ancestralidade, mas como lugar de

pertencimento. Desmitifica-se aquela ideia preconizada pelo Conselho Ultramarino

de 1740, o qual se definiu Quilombo como “toda habitação de negros fugidos que

passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados

nem se enchem pilões neles”. Pois, na atualidade esse conceito se amplia a partir

de uma visão sócio-antropológica. Que tem como referência os estudos culturais

como base de análise.

Antes de se fazer a caracterização da comunidade do Mel da Pedreira/AP

vale ressalta que de acordo com a Coordenação Estadual das Comunidades

Quilombolas do Amapá – CONAQ – AP;

Somos 138 Comunidades quilombolas em todo Estado do Amapá, localizados em todas as regiões e circunvizinhas de 08 Municípios, atualmente contemos mais de 50 cinquenta Associações que congregam na Coordenação Estadual das Comunidades Negras Rurais e Quilombolas do Amapá, que tem por finalidade lutar pela emancipação dos direitos dos quilombolas e garantir lutar e preservação do direito a terras (http://quilombolasdoamapa.blogspot.com/).

Entre essas se destaca a comunidade do Mel da Pedreira/AP está entre as

comunidades que possuem titulação, está localizada na Rodovia 156, quilometro 30,

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onde vivem aproximadamente 20 famílias, correspondente a 70 pessoas segundo o

presidente da associação Sr. Alexandre Ramos (2011).

Essa comunidade existe desde 1954, sendo que 1968 tornou-se evangélica,

particularidade essa que marca a identidade desse Quilombo.

FIGURA 2: Entrada da Comunidade do Mel da Pedreira

Fonte: Lima & Soares, 2008.

A comunidade do Mel da Pedreira/AP está localizada na zona rural do

município de Macapá, distrito da Pedreira, mais precisamente no Estado do Amapá.

Sendo reconhecida institucionalmente a partir de 2007. Foi fundada por

descendentes de negros escravos. Nasceu há pouco mais de meio século (LIMA &

SOARES, 2008).

Tomando como base o pensamento de Gaspar (2011, p.) podemos aferir que

os Quilombos nessa perspectiva:

São grupos sociais cuja identidade étnica – ou seja, ancestralidade comum, formas de organização política e social, elementos linguísticos, religiosos e culturais – os distingue do restante da sociedade. A identidade étnica é um processo de auto-identificação que não se resume apenas a elementos materiais ou traços biológicos, como a cor da pele, por exemplo. São comunidades que desenvolveram processos de resistência para manter e reproduzir seu modo de vida característico em um determinado lugar.

Assim sendo, é a partir desse contexto que se pode de acordo com a

Literatura vigente determinar o que é um Quilombo. Com a ressalva que em relação

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ao aspecto religioso se privilegias as matrizes africanas. O que torna a Comunidade

do Mel da Pedreira/AP uma exceção dentro desse universo. Foi reconhecida como

um Quilombo de matriz evangélica.

FIGURA 3: Comunidade do Mel/AP

Fonte: Sonia Sacramento, 2010

De acordo com Lima e Soares (2008, p. 2) a partir de informações orais do

Sr. Alexandre Ramos:

A comunidade é pequena possuindo atualmente 64 habitantes, dentre as 12 famílias que a compõem (informação oral, 2008). Conta uma paisagem variante entre campos de várzea e cerrado ambos bastante conservados, margeados por um lago que forma o rio Pedreira. Situa-se em fronteira com as comunidades São Pedro dos Bois e Alegre, essas três localidades possuem na maioria pessoas idosas que aí nasceram e cresceram.

Verifica-se nesse contexto que a comunidade do Mel está localizada num

lugar estratégico, onde tem contato com outras comunidades. O que há de se tomar

como fato, que não é uma comunidade isolada. Tem seus campos preservados.

Demonstra-se ainda, ter esse espaço uma paisagem natural exuberante conforme

imagem.

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FIGURA 4: Paisagem da Comunidade do Mel/AP

Fonte: Sonia Mª da Silva Sacramento, 2010

Cabe ressaltar ainda em relação à organização da Comunidade do Mel da

Pedreira/AP segundo Lima e Soares (2008, p. 12): “as pessoas que vivem nos dias

atuais no Mel são bastante simples, suas casas, construídas próximo ao igarapé,

são feitas de madeira e cobertas com telhas de barro e algumas de amianto”.

Configuram os modelos próprios de habitação da Amazônia. Isto porque, a maioria

das casas são heranças dos primeiros habitantes que residiram nesse povoado.

Outro ponto importante a ser registrado quanto à comunidade Quilombola do

Mel da Pedreira/AP é que essa apresenta um diferencial quando comparada as

demais comunidades segundo Lima e Soares (2008, p.13):

A Vila conta também com uma Igreja Presbiteriana. Anteriormente a conversão Presbiteriana, as pessoas eram católicas e devotas de Santo Antônio, para o qual realizavam festa com tambor celebrando os rituais Marabaixo e Batuque. E hoje, especificamente, se dedicam ao culto religioso. É uma comunidade bastante receptiva, gente bastante humilde, sua maioria são adeptos da religião Evangélica, por isso não se comemora datas de santos católicos como em outras comunidades rurais negras. Os dias festivos ficam restritos a comemorações escolares. Outros, entretanto, se dirigem às comunidades vizinhas em busca de diversão. De modo geral, os habitantes da comunidade plantam, criam animais, procuram a capital em busca de diversão e repõem mantimentos.

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Uma das questões que tem servido como parâmetro para se reconhecer

uma comunidade como Quilombo por muito tempo foi à conservação das tradições.

Sendo que no Brasil as religiões foram transformadas, ritos e crenças de alguns

povos acabaram por se misturar com outros grupos, e com os portugueses.

Contudo, não se pode deixar de elucidar que nesse processo muitas características

africanas não deixaram de ser mantidas, com destaque para o Catolicismo, religião

essa adotados pelos afrodescendentes. Incorrência essa que não se efetiva na

Comunidade Quilombola do Mel da Pedreira/AP que se tornou evangélica.

O pensamento de Lopes (2008, p. 97) explica muito bem essa dinâmica

quando diz que:

Quaisquer que sejam suas denominações, as religiões de origem africana nas Américas são, há mais de 500 anos, em termos históricos e afetivos, a maior e mais sólida ponte entre a África e sua Diáspora e o continente-mãe; entre esses afrodescendentes e sua ancestralidade mais remota.

Dessa forma, os rituais, os batuques se realizam até os dias atuais na

maioria das comunidades Quilombolas existentes em Macapá, Estado do Amapá.

Sendo uma das que não adota mais essa tradição é a Comunidade Quilombola do

Mel da Pedreira/AP. O que demonstra a contraposição de que as comunidades não

são na sua totalidade católicos como foram seus descendentes. Nesse caso,

questões dessa ordem se tornam motivação para se discutir qual impacto das trocas

culturais nas comunidades quilombolas. Com destaque para a comunidade

Quilombola do Mel da Pedreira/AP, que trocou toda a tradição dos rituais pelo culto

evangélico. Sendo que essa ocorrência não foi aleatória.

Em relação a essa proposição um fato segundo Lima e Soares (2008, p. 13)

corroborou para que houvesse essa mudança e rompimento com a tradição,

principalmente no que diz respeito à forma hegemônica, com a qual foram tratadas

as comunidades Quilombolas por muito tempo: como se tivessem a mesma cultura,

os mesmos rituais e religiões adotadas por seus antepassados. Não se tem atentado

para o processo de hibridização por qual tem passado as sociedades.

Essa tem sido uma tendência que tem marcado o desenvolvimento de

algumas comunidades, pois, a concepção de Cultura mudou. Não está mais

centrada nas questões folclórica, mas na ideia de homem como ser social, com

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identidades próprias, construídas não mais sob o pilar do que ficou no passado, mas

também nas possibilidades que se constroem em relação ao presente e ao futuro.

Daí se aferir que na construção dessa identidade não há neutralidade, pois existe

toda uma ideologia que contribui para essa mudança de paradigmas. Além que,

muitos discursos são produzidos nesse processo de construção de identidades e de

modo de vida e porque não dizer de memória. Sendo a cultura o que movimenta a

constituição social de um determinado grupo.

Assim sendo, a definição de cultura preconizada por Laplantine (2003, p. 95)

nos dar a dimensão para o entendimento que:

A cultura por sua vez não é nada mais que o próprio social, mas considerado dessa vez sob o ângulo dos caracteres distintivos que apresentamos comportamentos individuais dos membros desse grupo, bem como suas produções originais (artesanais, artísticas, religiosas).

Fica evidenciado a partir desse pensamento que nenhuma sociedade pode

ser compreendida, que não seja a partir da sua cultura e das relações que se

estabelecem em seu interior. Há nesse sentido, razões práticas que determinam

suas formas de agir, de pensar, de se organizar, de se comunicar. Logo, a condição

dos Quilombos não é apenas a de lugar de negros, mas lugar de história, marcada

pelas mais diversas identidades, muito embora exista a presença de traços comuns,

quanto aos aspectos organizacionais.

A comunidade do Mel da Pedreira/AP do ponto de vista organizacional tem

uma economia centrada na produção agrícola (mandioca, abacaxi, milho), criação

(galinhas, porcos e peixe) e da produção de mel, conforme mostram as seguintes

imagens:

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FIGURA 5: práticas econômicas desenvolvidas na Comunidade do Mel da Pedreira/AP (agricultura, criação de galinhas e criação de porcos).

Fonte: Sonia Sacramento, 2010.

Em relação à base econômica da Comunidade do Mel da Pedreira/AP é ainda

a de subsistência, pois a produção é voltada para consumo apenas da população,

até por que o fato de ficar distante do centro urbano não tem como fazer o

escoamento do que se planta e cria. Além que, essa produção não se realiza em

grande escala.

Atualmente, a comunidade tem recebido incentivos para o desenvolvimento

de outras atividades, entre as quais estão: a produção de mel, a produção de farinha

e a criação de peixes. Resultado de parcerias entre o Governo Federal e Estadual.

É relevante destacar ainda, o transporte escolar que também passou a fazer

parte da realidade da maioria dos Quilombos e também o artesanato, muito embora

de forma tímida. Não se pode ainda deixar de dizer que em termos de

desenvolvimento essa comunidade enfrenta muitas barreiras, tendo em vista, não só

a sua localização, como também o fato de serem evangélicos, o que os leva a não

terem muito apoio, por conta dessa identidade.

Destarte, vale então destacar esse cenário econômico da Comunidade do Mel

da Pedreira/AP, conforme figura abaixo:

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FIGURA 6: práticas econômicas desenvolvidas na Comunidade do Mel da Pedreira/AP (produção de mel, produção de farinha e criação de peixe)

Fonte: Sonia Sacramento (2012 -2013)

Com o apoio da Embrapa se desenvolve a produção de mel, que ainda é

pouca, considerando-se que é um projeto piloto. Já a produção de farinha passou a

ser produzida de forma sistemática a partir de 2013, com incentivo de recursos do

governo federal e estadual. Ressalta-se que aos poucos os produtos vão sendo

colocados para a venda externa, com exceção dos peixes, pois os tanques não

foram concluídos e a comunidade não recebeu recursos para comprar a alimentação

dos peixes. E a farinha começa a ser produzida com escala mais frequente, através

do rodízio das famílias. São dessas atividades, portanto, que a população da

comunidade do Mel da Pedreira/AP se sustenta.

Outro ponto a se destacar no cerne dessa discussão em torno da

caracterização da comunidade do Mel da Pedreira/AP diz respeito à Cultura sob a

qual vive a população.

Em termos de atividades culturais é uma comunidade pacata, considerando-

se que são evangélicos. Sendo o cotidiano dos quilombolas bastante simples, a

começar por suas moradias, que são na sua maioria de madeira, muito embora

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algumas estejam sendo construídas em alvenaria, as crianças ainda brincam de

carrinho, os adultos pescam e em grande parte do dia frequentam os cultos. Não há

nenhuma atividade relacionada aos rituais afros, nem festas de santo, ou seja,

nenhuma programação que contrarie os dogmas de sua religião.

FIGURA 7: Modo de vida da comunidade do Mel da Pedreira/AP (moradia,

brincadeiras e lazer).

Fonte: Sonia Sacramento, 2010.

Na comunidade do Mel da Pedreira/AP existem elementos comuns aos

demais Quilombos, pois a maioria dos quilombos existentes no Estado do Amapá

possui essa estrutura no que concerne à moradia, lazer e proximidade com a

natureza. O que implica dizer, que são esses alguns dos elementos que

representam traços da cultura tradicional dos Quilombos e que permanecem numa

cultura evangélica. Condição essa que demarca ser esse um Quilombo hibridizado,

ou seja, transita entre uma cultura e outra. Com destaque para o fato de essa ter se

evangelizado.

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No caso da Comunidade do Mel da Pedreira/AP esse é um fenômeno em

que o fato de serem evangélico tem gerado muitas polêmicas junto às demais

comunidade, uma vez que todas as demais mantém os rituais africanos e o

Catolicismo como instrumento de tradição. O que demonstra a força do discurso

religioso no processo de mudanças dessa cultura, ou seja, da comunidade do Mel

da Pedreira/AP, que se converteu a religião evangélica como um lugar de

pertencimento, abandonando um dos principais traços da cultura afro-

descendentes: o Catolicismo. Fato esse que começa a ter visibilidade a partir de

algumas pesquisas sobre Quilombos.

FIGURA 8: Ensaio da banda que canta nas missas dominicais

Fonte: Sônia Sacramento, 2010.

Registra-se nesse caso, um novo fenômeno a troca do tambor pela guitarra.

O que evidencia um processo de trocas culturais. Através do qual uma nova

tendência se manifesta nesse contexto: a hibridização uma vez surge novos

comportamentos e manifestações que se fundem as culturas já existentes. Assim, os

Quilombos não podem ser pensados apenas a partir de um passado histórico, mas

num lugar de construção. O que se pode aferir que existem nesse cenário,

perspectivas de que os quilombolas, atualmente representam um grupo que avança

em territórios de vários fazeres e saberes e que nem sempre estão atrelados aos

costumes deixados por seus ancestrais.

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Para efeito de ilustração um Quilombo cuja tradição se mantém enraizada na

cultura e religiosidade de matriz africana, com destaque para a comunidade do

Curiaú e um Quilombo cuja cultura e tradição religiosa de origem africana fora

trocada pelos rituais evangélicos. Condição essa que tem mobilizado para um

estudo mais sistemático sobre a evangelização de alguns quilombos, como é o caso

da comunidade quilombola do Mel da Pedreira.

FIGURA 9: Batuque do Curiaú

Fonte: de Manoel do Vale – 2007

FIGURA 10: Culto Evangélico realizado na comunidade Mel da Pedreira/AP

Fonte: Sonia Sacramento, 2011

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Para se entender esse fenômeno, se optou em realizar uma pesquisa de

cunho Qualitativo, considerando-se o fato da mesma possibilitar segundo Minayo

(2005, p. 81): “ao pesquisador compreensão da ação social”. O que deixa

subtendido nesse caso que assim, é possível não só identificar o fenômeno, mas

entender os fatores que geram sua existência: razões sociais, políticas, geográficas,

ideológica, cultural e histórica.

Essa função da pesquisa Qualitativa é muito bem referenciada no

pensamento de Bauer, Gaskell, (2002, p.57):

O principal interesse dos pesquisadores qualitativos é na tipificação da variedade de representações das pessoas no seu mundo vivencial. As maneiras como as pessoas se relacionam com o objeto no seu mundo vivencional, sua relação sujeito objeto, é observada através de conceitos tais como opiniões, atitudes, sentimentos, explicações, estereótipos, crenças, ideologias, discursos, cosmovisões, hábitos e práticas [...] As representações são relações sujeito-objeto particulares, ligadas a um meio social. O pesquisador qualitativo quer entender diferentes ambientes sociais no espaço social, tipificando estratos sociais e funções, ou combinações deles juntamente com representações específicas.

Mediante essas colocações verifica-se que a pesquisa de cunho qualitativo

possibilita uma leitura mais crítica a respeito do fenômeno estudado, bem como da

conta ou pelo menos tenta cartografar o fenômeno na sua essência, considerando

todas as micro-relações existentes no universo investigado sem perder de vista as

condições em que as relações sociais, culturais, políticas, econômicas e porque não

inserir nesse contexto as práticas religiosas são realizadas. Funciona como um

caleidoscópio da vida das relações do homem com o meio em que vive.

Quanto à técnica utilizada nesse processo investigativo buscou-se na

Historicidade, mais precisamente na História Oral a técnica para coleta de dado que

foram levantados mediante entrevistas e narrativas orais, considerando-se que não

há uma Literatura específica acerca da comunidade do Mel da Pedreira quanto a

sua origem, sua cultura e sua identidade. Sendo, portanto, a História Oral uma forma

de obter registros para se compreender os percursos da História dessa comunidade.

A história da humanidade vem sendo contada ao longo do tempo mediante

diversas formas de registros. Sendo que de forma a ser tomada na sua maioria por

documentos escritos considerados oficiais. Condição essa que se perpetuou por

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muito tempo. Até que em 1930, mais precisamente nos EUA, se deram os primeiro

passos para a História Oral, que mais tarde se desenvolveu na Inglaterra, França,

Itália, Canadá, América Latina (MONTENEGRO, 2001).

Fazer esse recorte é de grande relevância para se conhecer o papel das

narrativas orais nesse processo de constituição das sociedades, considerando-se

que a História Oral surge como um espaço através do qual é possível obter dados

concernentes aos hábitos, crenças, costumes de um determinado grupo, bem como

as relações travadas no âmbito dessas relações e o lugar que os agentes que nele

vivem ocupam nessa dinâmica.

Destarte, lança-se mão do aporte teórico de alguns autores que se

debruçaram a estudar a História Oral quanto ao seu surgimento, objeto e método. A

História Oral de acordo com o pensamento de Santos (2007, p. 5):

No Brasil, especificamente, a metodologia foi introduzida na década de 1970, quando foi criado o Programa de História Oral do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea no Brasil – CPDOC. A partir dos anos 90, o movimento em torno da história oral cresceu muito. Em 1994, foi criada a Associação Brasileira de História Oral, que congrega membros de todas as regiões do país, reúne-se periodicamente em encontros regionais e nacionais, e edita uma revista e um boletim. Dois anos depois, em 1996, foi criada a Associação Internacional de História Oral, que realiza congressos bianuais e também edita uma revista e um boletim. Atualmente, no mundo inteiro é intensa a publicação de livros, revistas especializadas e artigos sobre história oral.

A partir desse recorte podemos aferir que a História Oral no que tange a esse

contexto se consolida enquanto recurso para o processo de investigação à medida

que nesse momento passa a ser reconhecidos como metodologia no levantamento

de acontecimentos, conjunturas, instituições, modo de vida ou outros aspectos da

história contemporânea (SANTOS, 2007).

Essa assertiva nos coloca frente ao que hoje, se concebe como História Oral

e o papel que a mesma desempenha frente a colocar em evidências fatos e

representações do cotidiano de determinados grupos, bem como dar voz aqueles

que de alguma forma foram silenciados em seu dizer, quanto a sua identidade e

modo de vida.

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Entre esses grupos estão os Quilombolas, pois o pouco que sabemos sobre

eles advém de acervos documentais. Enquanto, que muitas informações estão

guardadas na memória coletiva de seus moradores.

Nesse sentido, cabe ressaltar segundo Bosi (1987, p. 5) que:

A História Oral deve ser entendida como um método capaz de produzir interpretações sobre processos históricos referidos a um passado recente, o qual, muitas vezes, só é dado a conhecer por intermédio de pessoas que participaram ou testemunharam algum tipo de acontecimento. Quando uma pessoa passa a relatar suas lembranças, transmite emoções e vivências que podem e devem ser partilhadas, transformando-as em experiência, para fugirem do esquecimento. No momento em que uma entrevista é realizada, o entrevistado encontra um interlocutor com quem pode trocar impressões sobre a vida que transcorre ao seu redor; é um momento no qual lembranças são ordenadas com o intuito de conferir, com a ajuda da imaginação, ou da saudade, um sentido à vivência do sujeito que narra a sua história.

Verifica-se nesse sentido, que a História Oral constitui-se uma ferramenta

importante para se conhecer o espaço e o tempo em que viveram ou vivem

determinados grupos. É um procedimento que permite um olhar e um pensar sobre

a vida e as experiências dos mesmos, bem como registrar os fatos ou informações.

Sendo a memória o lugar sob a qual estão guardados esses inventários.

Entende-se assim, ser a memória uma fonte para a compreensão de como o

passado se caracteriza como uma referência para entender as relações que

perpassam no presente, principalmente no que diz respeito ao processo sócio-

histórico sob a qual se organizam e estruturam as sociedades.

Para explicar essa questão destacamos o conceito preconizado por

Thompson, Frisch, Hamilton (1996, p.77) o que significa memória nesse contexto:

A memória apresenta-se como uma fonte histórica peculiar, uma vez que em sua estreita relação com a história, tanto a memória coletiva quanto a individual se impregna de uma historicidade cuja dimensão é passível de se interpretada, sobretudo no diálogo entre passado e presente, que é extremamente significativo.

Fica evidenciado nesse contexto que a memória é um lugar de sentidos,

através da qual se estabelece uma rede de signos que se significam e resignificam

através das narrativas orais. Além que proporciona vez e voz aqueles que

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historicamente foram oprimidos, esquecidos em detrimento do poder das classes

dominantes, que instauraram modelos de vida, que até então privilegiaram seus

interesses. O que consequentemente, tem impedido muitos aspectos de vida de

algumas sociedades, entre as quais estão os quilombolas, os indígenas, os

seringueiros e muitos outros, de serem ditos, escritos dada a invisibilidade em que

foram colocadas. Assim, a memória surge como uma estratégia para se colocar em

circulação a história dessas sociedades.

De acordo com as fontes documentais essa é a história da Comunidade do

Mel da Pedreira/AP. No entanto, essa historia é resignificada a partir das narrativas

orais.

Com base no referencial teórico apresentado verifica-se que as narrativas

orais compreendem um espaço significativo para o desenvolvimento da História Oral

à medida que coloca em evidência a voz dos sujeitos frente ao seu contexto sócio

histórico, bem como favorece a interação, já que é parte de um processo dialógico.

Esse movimento que a narrativa oral faz entre passado e presente remete a

ideia que as mesmas configuram espaços de enunciações, cujas memórias dão

conta de desvendar as nuanças encobertas muitas vezes pelo silêncio e pelo

anonimato. Desta forma, a proposta aqui delineada foi demonstrar como a narrativa

oral ocupa essa função de memória e perfaz os caminhos da história oral. Sendo

para tanto, considerada um instrumento relevante no processo de escuta.

Vem daí a escolha pela história oral, por considerá-la apropriada como

técnica de pesquisa, pois juntamente com outros artefatos, tendo em vista os dados

e textos culturais. É considerada crucial para validar histórias, que por algum motivo

não estão na história convencional, e que muitas vezes deixam de ser contadas. Isto

porque, não se considera que a história se revela através da memória (FERREIRA e

AMADO, 1996).

Tem-se nessa técnica um aporte significativo para reconstituição de fatos

vividos, que muitas vezes são invisibilizadas, mas que podem se tornar públicas,

como foi o caso do trabalho de campo realizado por José Carlos Sebe Bom Meihy

(1991) junto aos índios de Dourados no Mato Grosso. Ao ler as narrativas

analisadas, mesmo não tendo nenhum contato com informações sobre a mesma, a

pesquisa revela o modo de vida, as crenças, os valores e os problemas enfrentados

pela comunidade, entre os quais estão os de suicídios entre os jovens, bem como as

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representações que os narradores fazem da morte. Elucida-se ainda, a carga

semântica que trazem as enunciações.

Ao se considerar esse contexto o interesse em investigar o impacto das

trocas culturais na comunidade do Mel da Pedreira deve-se ao fato que as

comunidades Quilombolas existente na sua maioria, mais especificamente as

localizadas no Estado do Amapá, das 138 existentes, uma apresenta uma

particularidade: o fato de ser evangélica. Sendo essa uma singularidade frente às

características dos Quilombos tradicionais, que na sua maioria cultivam as tradições

afrodescendentes.

A maioria desses quilombos tem sua base religiosa centrada no Catolicismo.

Diferente da Comunidade Mel da Pedreira/AP que não realiza mais os rituais

tradicionais e sim, os cultos religiosos evangélicos.

Essa é uma questão que viabiliza uma investigação centrada nos estudos

culturais para entender o impacto dessas trocas ocorridas de um Quilombo

tradicional para um Quilombo Evangélico. Pois, são tradições que se diferenciam

quando se compara um quilombo tradicional com um Quilombo Evangélico. Sendo a

história e a memória um dos aliados no campo da história oral, para que se

compreenda esse fenômeno, pois através dessa técnica é possível recuperar e se

apropriar do passado. Contudo, cabe ressaltar que não se trata compreender nesse

caso, a dimensão coletiva no âmbito da história, mas a ideia que essa possibilita,

não só lembrar o passado, mas entender sua relação com a vida, bem como com a

cultura contemporânea (FERREIRA e AMADO, 1996).

Ao se falar em História Oral é imprescindível que se demonstre o papel das

narrativas orais nesse processo, mais especificamente no que trata da importância

dos relatos orais, considerando-se que são uma rica fonte de conhecimento para

embasar a abordagem histórica da inserção social de determinados grupos

(BAPTISTA, 2002).

Do ponto de vista conceitual lançamos mão dos postulados de Cunha (1998,

p. 40) para discutir o que são as narrativas orais. Nesse contexto a base de sentido

é que:

A narração pode ser considerada como uma reconstituição do passado a partir do presente. As falas correspondem ao acesso da consciência da pessoa. Neste processo de reflexão, a narração como procedimento de pesquisa serve ao mesmo tempo como alternativa de formação, pois permite desvendar os mistérios do próprio sujeito

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que, muitas vezes não tinham sido estimulados a expressar organizadamente esses pensamentos.

Essa proposição remete aos sentidos que têm as narrativas como fonte de

memória. Trata-se de uma estratégia através da qual os sujeitos se colocam e se

inscrevem. Condição essa que cria uma relação de pertencimento entre o sujeito e

sua história. Logo, é imperativo dizer que as narrativas são lugares de significados à

medida que a partir dela as identidades, representações se marcam de forma a

situar esses sujeitos no tempo e no espaço, no momento que a memória individual

se torna coletiva, conforme muito bem pontuou Pollak (1992, p.2001) aos

demonstrar os elementos constitutivos desse processo.

Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada. [...] podem existir acontecimentos regionais que traumatizam tanto, marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação.

Esse é o aspecto que valida à importância das narrativas considerando-se

que são fontes de memória. O que permite aferir que ao se contar fatos ou

acontecimentos se faz uma cartografia dos saberes constitutivos do cenário, do

contexto, da cultura, da história vivida, bem como as experiências que transitam

entre o passado e o presente de uma determinada sociedade. Assim, a narração

corresponde ao lugar através da qual a memória se materializa em diversas formas

e usos. Corresponde a uma forma de enunciação que possibilita instaurar um

diálogo entre os sujeitos e seus pares, bem como interagir no processo sócio-

histórico tomando como base os movimentos sociais e históricos que situam seu

passado e presente.

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No tocante a essa função é pertinente o pensamento de Fentress; Wickham

(1992, apud Errante, 2000, p. 142) ao pontuarem o papel das narrativas orais como

recurso na produção da História Oral. Sendo a narrativa pensada como lugar de

memória:

A História Oral produz narrativas orais, que são narrativas de memória. Estas, por sua vez, são narrativas de identidade na medida em que o entrevistado não apenas mostra como ele vê a si mesmo e o mundo, mas, também, como ele é visto por outro sujeito ou por uma coletividade. Neste sentido, “a dependência da memória, em vez de outros textos, é o que define e diferencia a história oral em relação a outros ramos da História”.

Constata-se a partir desse enunciado que as narrativas orais dão conta de

colocar os agentes sociais frente a sua história, num lugar o qual ele seja bem mais

que apenas um membro do seu grupo, mas sujeito social portador de cultura, de

identidade e de sentimentos. É, portanto, através da oralidade que ele encontra

espaço para dizer da sua história, das suas necessidades e da sua cultura. Através

da oralidade se revelam também a formação discursiva desses sujeitos e o lugar de

onde falam. O que permite ao pesquisador compreender as redes de sentido que se

constitui a fala desses agentes sociais. Condição essa que se revela com muita

precisão quando tomamos como objeto relatos de pessoas que nos remetem a

mergulhar no universo da história de seu grupo, como é o caso das comunidades

Quilombolas. Parte de sua história não está nos livros, mas na memória de seus

moradores mais antigo que a partir de suas memórias individuais dão voz a memória

coletiva.

Existem questões que são muito mais reveladoras quando vem da fala dos

sujeitos dessa história. Essa fala de seu Alexandre (2010) reproduz a caminhada

dessa comunidade, bem como seus sentimentos quanto ao momento vivido. Situa

de forma precisa o fato da comunidade do Mel da Pedreira/AP não participar do

Encontro dos Tambores. Evento esse organizado pelo movimento negro (tem como

base reverenciar as tradições católicas e afrodescendentes). Logo, a fala de seu

Alexandre é uma explicação para o fato de serem excluído desse evento: “Eles

acham que agente perdeu (né), indentidade e que talvez agente vai levar um

costume diferente pras demais comunidades, isso tem sido a barreira”. A força

dessas palavras revela o sentimento dos narradores frente a sua condição de negro

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evangélico diante dos que não aceitam a sua opção religiosa. Demarcam-se nessa

narrativa os conflitos decorrentes dessa escolha.

Para ilustrar o campo teórico referendado apresenta-se um recorte da

narrativa de um dos moradores mais antigos da Comunidade do Mel da Pedreira

localizada no Estado do Amapá, realizada no ano de 2011.

Desses dados destaco a entrevista com seu Alexandre que narrou toda

história da Comunidade do Mel da Pedreira/AP. Dados esses que não consegui

obter em fontes escritas, pois essa comunidade, pelo fato de ser a única evangélica

oficialmente titulada, possui pouca visibilidade frente às demais que tem certa

produção científica quanto a sua origem, rituais, educação e outros campos. Assim,

se conta aqui a História dessa comunidade a partir da fala desse quilombola, que a

partir de várias lembranças retoma a memória da formação desse povoado.

Destaca-se que as narrativas orais apresentadas demarcam três aspectos

referentes à constituição dessa sociedade denominada Quilombola: a chegada ao

território Mel da Pedreira, a formação da população e a educação na comunidade.

Quanta a Chegada à comunidade do Mel da Pedreira seu Alexandre relatou:

Eu sou o quinto filho de Antônio Bráulio de Souza ...que hoje representa o nome da nossa escola, e de Alda Augusta, nossos patriarcas. Chegamos aqui para o Mel nos anos de 1954. Passamos de São Pedro dos Bois para cá. Finalidade única .. evoluir a agricultura e mexer com a criação de suíno. E daí então, a gente prosseguiu. Eram oito filhos. Nos anos 56 nós começamos uma escoação de produção com base na cultura da mandioca. Fizemos a primeira viagem, abrimos um ramal com machado e enxadas. Foi assim.

Do ponto de vista, da História Oral esse é um registro que facilita e coloca na

linha do tempo e do espaço o surgimento da Comunidade do Mel da Pedreira/AP.

Além que demarca a fronteira desse território quando destaca de onde essa

população se originou, a economia sob a qual essa população se sustentou

inicialmente. Aponta qual é à base da economia, até então centrada na agricultura

(produção da mandioca) e na suinocultura. Então, são dados importantes para

compreender a dinâmica do processo de formação dessa comunidade. O que

implica dizer:

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Trabalhar com História Oral é, sobretudo, não querer uma história totalizante a partir dos depoimentos; tão pouco provar uma verdade absoluta. É dar espaço aos sujeitos anônimos da História na produção e divulgação desta, procurando articular suas narrativas aos contextos e elementos do(s) objeto(s) em pesquisa. É estar preparado para compreender que nem sempre o ato de rememorar é uma ação saudável e positiva para o sujeito, pois pode trazer dores e sofrimentos. É escrever história sem sacramentar certezas, mas diminuindo o campo das dúvidas (SILVEIRA, 2007, p.5).

O que se pode aferir diante desse contexto, é que essa metodologia

concernente a História Oral implica em fazer um inventário da história dessa

comunidade mediante a voz daqueles que estão engajados nesse processo, que

são os agentes sociais, nesse caso, os Quilombolas. Então, esse conhecimento que

se mantinha guardado na memória de seu Alexandre revelam fatos da memória

coletiva dessa comunidade e pontuam informações que são trazidas pelas

lembranças do passado que se rememoram no presente.

Outro momento importante destacado por seu Alexandre (2011) foi

concernente à questão da formação dessa população da Comunidade do Mel da

Pedreira/AP, cujo relato foi:

A gente foi casando do mais velho até ao caçula. Quando nossos pais faleceram, a última que foi a minha mãe há três anos, a gente fez um levantamento, um diagnóstico, assim sobre a família. Dos oitos filhos depois que casados demos para nossos pais 85 netos. Esses 85 netos casaram e quando fizemos o levantamento esses netos já tinham dado para nossos pais 220 bisnetos e esses deram 30 tataranetos. Mas, sim a gente veio para cá para isso.

Por meio dessa narrativa encontramos dados que podem servir de subsídio

para a produção de documentos escritos a respeito dos números populacionais da

comunidade, uma vez que o diagnóstico realizado pela comunidade revela-se uma

fonte importante para a constituição de uma história que faz parte de um inventário

sócio-histórico que precisa ser considerado. Pois, a oralidade por muito tempo foi

recusada como fonte de informação. Condição essa que hoje já vem sendo refutada

conforme demonstra o pensamento de Decca (1998, p. 23):

A apreensão do real, ao invés de ser possível apenas por rigor matemático, pode ser realizada por efeito poético, como bem demonstra, ate hoje, a literatura, a poesia, e por que não, a história.

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Isto não comprometeria as bases científicas da história, aliás, poderia até renovar os ares de uma árida ciência que prevaleceu e fincou raízes.

Esse recorte demonstra que um processo investigativo pode ter como fonte

as narrativas orais, pois elas dão conta de ativar muitas informações, que podem

ampliar confirmar dados que vão situar o espaço e o tempo sob o qual se

constituíram essas comunidades. Sinaliza a autora que a história oral deve ser

pensada como um procedimento significativo para descrever o processo histórico,

sob o qual vivem determinadas comunidades.

Outro ponto a ser registrado no âmbito no que tange a narrativa de seu

Alexandre (2011) foi o que ele destacou em relação à Educação na Comunidade

Quilombola, assim retratado por ele:

Mas sim, a gente veio pra cá para isso, veio evoluindo de sorte que nossos filhos mais velhos já tinham crianças para estudar e não tínhamos escolas. Foi necessário meu irmão mais velho, a segunda e a terceira ir para a cidade levar os filhos. Porque, eu para aprender estudei de primeira (1ª) a (4ª) série, mas olha com muita dificuldade. Estudava na escola Teixeira de Freitas em São Pedro dos Bois atravessando esse lago andando mais cinco (5) quilômetros para chegar à escola, foi com muita luta...aconteceu assim, hoje vocês estão ouvindo nossos jovens cantando que é muita coisa diferente. A gente conseguiu escola nos anos 77, aí começou então a educação, mas funcionando ainda, de primeira (1ª) a (4ª) série, continuando a evasão na comunidade. Terminada a 4ª (quarta série) tinha que levar para a cidade. É muito sério, de maneira que ficou resumido. Eu cheguei a ficar um tempo sozinho, eu o 5º (quinto) filho, aqui na comunidade, assim eu prejudiquei um pouco os estudos dos meus filhos. Tive que segurar isso aqui.

Essa narrativa é reveladora da força da memória de seu Alexandre à medida

que consegue manter a cronologia do tempo. Situam-se os fatos de forma precisa.

Coloca elementos na sua fala que dinamizam o seu relato de forma a que possamos

conhecer com riquezas de detalhes a história do Quilombo do Mel da Pedreira/AP

quanto a Educação. Marcas discursivas denotam o processo de isolamento sob o

qual vive a comunidade, quando seu Alexandre diz que atravessava o rio para

estudar e o fato de não existir na comunidade uma escola. Também se registra que

o sistema educacional vigente não atende a demanda da comunidade. Entre o

passado e o presente pouca coisa mudou, considerando-se o destaque que o

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mesmo dar quando fala da evasão. Além que existe apenas uma escola na

comunidade e que atende apenas a uma modalidade de ensino: o fundamental.

Sendo esse fato apontado como um dos principais problemas enfrentado pela

comunidade, uma vez que muitos moradores desse Quilombo têm que ir para a

capital de Macapá para concluir seus estudos.

FIGURA 11: Escola da Comunidade do Mel da Pedreira/AP

Fonte: Sonia Sacramento, 2011.

Essa escola tem o nome do fundador da comunidade Quilombola do Mel da

Pedreira. Fica localizada logo na entrada da comunidade. Funciona com ensino de

1ª a 4ª série. É uma escola com uma estrutura pequena, mas que realiza um

trabalho ostensivo no campo da alfabetização das crianças. Portanto, é importante

destacar ser esse espaço, local de saberes, com a ressalva que não se desenvolve

na prática educativa estudos da tradição dos Quilombos, quando esse seguia a

tradição de matriz africana. Privilegia-se o estudo bíblico, que se efetiva no espaço

da igreja aos domingos.

Diante desse relato se efetiva a prática de que a Historia Oral realizada a

partir das narrativas orais representa uma ferramenta de real valor para a construção

de uma identidade histórica, pois através da fala o enunciador marca seu lugar e de

seus pares no processo social e cultural sobre o qual surge e vive.

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Partindo dessa assertiva, é preponderante o que diz Hall (1992, p. 157) a

respeito da importância da História Oral para os estudos Históricos:

Hoje em dia somos todos um pouco menos ingênuos, me parece, e reconhecemos que a história oral está longe de ser uma história espontânea, não é a experiência vivida em estado puro, [...] os relatos produzidos pela história oral devem estar sujeitos ao mesmo trabalho crítico das outras fontes que os historiadores costumam consultar.

É pertinente o que coloca Hall, tendo em vista que não se pode mais renegar

a oralidade como fonte para o conhecimento da história das sociedades, pois os

relatos produzidos através das narrativas orais, não são desprovidos de

legitimidade, uma vez que os sujeitos enunciativos, falam sempre de um lugar que

demarcam a sua história, memória e identidade. O que configura ser a História Oral

a arena onde fatos e acontecimentos se constroem e dão legitimidade seja para o

que é dito, seja para o que é escrito.

As narrativas permitiram verificar como as sociedades Quilombolas se

organizam, funcionam e como vivem. As narrativas dão conta de demarcar os muitos

territórios sob os quais as sociedades se formam. Pois, no relato de seu Alexandre

foi possível conhecer as faces históricas do Quilombo do Mel da Pedreira. Assim, a

História Oral é um suporte de grande valia para que possamos organizar e

sistematizar a história do lugar em que vivemos.

1.3 IDENTIDADES E CULTURAS QUE DEMARCAM O TERRITÓRIO DA COMUNIDADE DO MEL DA PEDREIRA/AP

É inevitável falar em Quilombo e não destacar as questões de identidade, fé

e cultura, tendo em vista que toda organização social possui uma tradição cultural,

que muitas vezes se revelam através da religiosidade como elemento de fé. Sendo a

identidade nessa perspectiva, um elemento que se constrói a partir da forma como

cada comunidade se organiza em relação aos seus hábitos e culturas.

Destarte, cabe destacar que contemporaneamente de acordo com Fiabani

(2005, p. 390):

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Contemporaneamente, “o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica”. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio.

Em relação a esse processo cabe salientar que tomando como base esse

sentido postulado por Fiabani os Quilombos buscam não só a manutenção de suas

raízes como criar novas formas de viver e de interação. Consideram o espaço onde

vivem um lugar onde se efetivam suas relações: étnicas e culturais. Evidenciam

através desse espaço, não só a identidade negra, mas o lugar que eles ocupam na

sociedade. É, portanto, palco de muitos eventos que se realizam mediante o campo

da fé, que em muitos Quilombos se efetivam através dos rituais ou através das

músicas de louvor, como é o caso, da Comunidade do Mel da Pedreira/AP.

Essa estrutura sob a qual vem se constituindo os Quilombos dá visibilidade a

uma nova forma de organização, que envolve questões de ordem material e

espiritual, conforme pontuam Reis e Gomes (1996, p. 9):

Além de movimentarem engenhos, fazendas, minas cidades, plantações, fábricas, cozinhas e salões, os escravos da África e seus descendentes imprimiram marcas próprias sobre vários outros aspectos da cultura material e espiritual deste país, sua agricultura, culinária, religião, língua, música, artes, arquitetura.

A esse respeito é pertinente destacar que a tradição é um ponto importante

no que tange a constituição da identidade quilombola, considerando-se que a cultura

material e espiritual são elementos para uma expressão cultural. Sendo, portanto,

pertinente ressaltar que essa necessidade é resultado da troca cultural emergente

no interior dessas comunidades denominadas de Quilombo.

Em consonância a essa proposição cabe destacar ainda, que os Quilombos

cristalizam a memória, a tradição, a cultura e a identidade negra. Isto porque, eles

vêm de uma descendência que demarcam o território das lutas e das resistências

contra a dominação branca. Com destaque ainda, para a religiosidade, cultivada e

referendada nos rituais de origem africana. Marcas essas que permanecem em

muitos outros Quilombos, e são atenuadas por outras, com destaque para os

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Quilombos que adotaram a religião evangélica, desaparecendo assim como um dos

traços historicamente considerados marca da identidade das comunidades

Quilombolas, os rituais. Situação essa que vive hoje, a Comunidade do Mel da

Pedreira/AP.

FIGURA 12: Ensaio da Banda que toca nas missas dominicais da comunidade Mel

da Pedreira/AP

Fonte: Sonia Sacramento, 2011

As questões pontuadas por Marconi e Pressotto (2001, p. 276) ilustram de

forma significativa toda essa dinâmica:

Apesar do longo e violento processo aculturativo, consequência do contato forçado entre as sociedades, à cultura africana não foi destruída, mas persistiu mesmo esfacelada. Pode-se notar isto pelo sincretismo, principalmente religioso, tão evidente quando se abordam os aspectos culturológicos da questão.

É pertinente nesse caso destacar que essas mudanças são parte das trocas

culturais que se efetivam no âmbito de cada Quilombo. Para tanto, entender esse

processo requer pensar que a formação dos Quilombos se deu mediante uma

estrutura: política, social e cultural descendente (africana), mas que se hibridizou a

partir do contato com outras culturas, como foi o caso da Comunidade do Mel da

Pedreira/AP, que segundo seu Alexandre em entrevista realizada em 2010 disse:

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“Quando chegamos aqui, ficamos muito tempo sem ter algum tipo de orientação, aí

apareceu um missionário que nos ensinou a rezar, fizemos uma igreja, onde hoje

realizamos todos os nossos eventos e reafirmamos nossa fé”. Assim, mudanças

ocorrem à medida que novas culturas passam a circular e outras identidades são

colocadas como forma de manter valores tradicionais e assumir outros.

De acordo com Bastide (1971, apud Augras, 2008) essa diversidade da

cultura Quilombola deve-se ao fato:

A África enviou ao Brasil criadores e agricultores, homens das florestas e da savana, portadores de civilizações totêmicas, matrilineares e outras patrilineares ,pretos conhecendo vastos reinados,outros não tendo mais que uma organização tribal, negors islamizados e outros ´animistas`, africanos possuidores de sistemas religiosos politeísta e outros, sobretudo, adoradores de ancestrais de linhagens.

Com base nesse contexto, pode-se dizer que os negros ao organizarem um

espaço, mesmo que em busca de um lugar para fugir da escravidão, criaram uma

cultura própria, enviezadas por outros valores e costumes, que são os Quilombos.

Logo, nesse espaço existe uma rede que se redefine a partir do presente que se

constrói sem perder de vista a história de suas origens. Explica-se essa condição

pelo fato que a construção da identidade se elabora nas relações sociais, ou seja, é

uma construção que se elabora em uma relação que opõe um grupo aos outros

grupos, mais especificamente com aqueles que se está em contato (CUCHE, 2002).

Percebe-se assim, a existência de uma cultura atávica, como denomina

Glisant (2005, p. 71): “Cultura atávica é aquela que parte do princípio de uma

filiação, com o objetivo de buscar uma legitimidade sobre uma terra que a partir

desse momento se torna território”. Essa tem sido uma forma hegemônica de pensar

o Quilombo, pois de certa forma se prende as questões de etnia. O que se pode

pensar nesse caso, é que os negros não devem ser tomados apenas pela

perspectiva da cor.

Nesse sentido, considero relevante destacar no cerne dessa discussão o

pensamento de Said, (2003, p. 47, apud Almeida, Diniz e Santos, 2009, p. 1):

“Nossa época, com a guerra moderna, o imperialismo e as ambições quase

teológica dos governantes totalitários, e, com efeito, a era do refugiado, da pessoa

deslocada, da migração em massa”.

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Tomando como base essa premissa não se pode ignorar as transformações

por quais passam os Quilombos. Pois, mantê-la sob os dogmas da tradição de

escravos é manter o foco no negro como sinônimo de remanescente, oprimido. Essa

visão é combatida por Bhabba (2003, p. 21):

O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a “tradição recebida”. Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta tanto possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinha as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso.

Fica nesse contexto subtendido, que a questão relativa à formação e

existência do Quilombo está atrelada a visão de cultura, de homem e de lugar, tendo

em vista que nesse processo muitas relações se realizam a partir de vários

discursos e percursos, alguns de ordem histórica, outros de ordem social e cultural.

Logo, se valida à ideia do autor de que as culturas se transformam e se realinham a

medida que as identidades se constituem.

Destarte, o lugar de cultura, fé e identidade nos Quilombos são as

representações que os sujeitos que nele vivem fazem a partir do contato com seus

pares e outras culturas. Reside no movimento da diáspora sob os quais tem vivido

as comunidades Quilombolas.

Percebe-se que em detrimento da evangelização houve um apagamento da

cultura de origem e uma nova identidade se consolidou a de matriz evangélica.

Sendo a cultura desenvolvida toda voltada para os princípios do que estabelece o

evangelho, o que pressupõe uma nova dinâmica nas formas de pensar e agir dessa

população, cuja cultura e identidade se firmam sob a lógica do evangelho e a busca

pela salvação. É, portanto, a comunidade do Mel da Pedreira/AP um Quilombo cuja

vivência se realiza sob as bases do evangelho. Prática essa diferenciada do que se

efetiva em um Quilombo tradicional. São duas realidades que se contrapõem a partir

da religiosidade.

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CAPÍTULO 2 - AS PRÁTICAS RELIGIOSAS REALIZADAS NOS QUILOMBOS: OS

SÍMBOLOS QUE DEMARCAM O LUGAR DA FÉ

2.1 A BÍBLIA E SEU LUGAR NA MEMÓRIA COLETIVA E INDIVIDUAL DOS QUILOMBOS

Não se poderia deixar de colocar como ponto de discussão que o território

quilombola tem como um dos seus principais pontos de referência de identidade,

não só as manifestações culturais, mas também as práticas religiosas: o candomblé,

as folias, marabaixo, as festas de santos. Essas práticas são diferenciadas.

Contudo, muitas mudam quanto ao ritual, mas se ancoram na tradição religiosa de

origem africana.

Isso tem uma explicação segundo Rodrigues (2011, p. 147 - 197) quando

pontua algumas questões para que isso ocorra:

Os sentimentos e as crenças religiosas fazem para os negros como para as outras raças as despesas das manifestações primitivas da cultura artística. Os deuses e o culto ainda são temas e motivos valiosos, as fontes de inspiração por excelência dos rudes artistas negros: aos de ordem religiosa seguem-se ou agregam-se motivos retirados das habituais ocupações nobres da guerra e da caça. As práticas religiosas do fetichismo das instituições africanas das que foram legadas na America pelos colonos negros ou transmitidas aos seus descendentes, foram as que melhor se conservaram no Brasil. Entretanto, não podemos admitir que mesmo entre os africanos as crenças religiosas dos negros aqui tomaram múltiplas formas de manifestação. Não é fácil dizer quais foram às práticas fetichistas e a religião dos africanos durante o tráfico, e quais foram os povos negros, pois frequentemente recebíamos quando o trafico foi suspenso.

Podemos prever que na influência que os diversos povos negros exerceram uns sobre os outros, acidentalmente reunidos na América pelo tráfico, a ação poderosa e absorvente das diversidades de culto mais generalizado sobre o culto mais restrito, que, nesses casos, manifesta-se como lei fundamental da difusão religiosa.

Entretanto, se apenas as práticas mais complexas do culto daqueles povos negros deveriam permanecer por aqui, as quais, durante o trafico, achavam-se mais avançados na evolução religiosa, essas práticas e cultos tinham obrigatoriamente de se impregnar da contribuição que todas as concepções religiosas mais acanhadas faziam a eles, as divindades ou fetiches individuais, as de tribos, clãs ou aldeias, dos negros não convertidos.

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Frente a todo esse aparato verifica-se que as tradições religiosas nos

Quilombos configuram como forma de reverenciar a força divina. Sendo as festas

religiosas as principais fontes dessa celebração. Todas as manifestações tem

propósito religioso e cultural. Mas, ao se considerar o quadro descrito por Rodrigues,

verifica-se que em nenhum momento se menciona a Bíblia como um instrumento

para essas manifestações, isso em relação aos Quilombos tradicionais, pois nos

Quilombos contemporâneos, mais precisamente os que mudaram de doutrina a

Bíblia tem valor estimado ao que tem ao tambor para as que se denominam de

tradição afro. Daí a importância de se discutir o lugar dessa na Comunidade do Mel

da Pedreira/AP.

Para ilustrar essa discussão destaca-se a narrativa de Elizeu Cirilo presidente

da comunidade do Mel da Pedreira (2012) a respeito da importância da Bíblia no

cotidiano dos moradores dessa comunidade:

Na realidade agente não se abate com isso, mas agente acha assim que, porque as outras religiões das outras denominações questionam muito o povo evangélico, por exemplo, as religiões de matriz africana... eles acham que o povo evangélicos no geral, são muito radical e não é a nossa realidade, porque a bíblia diz assim... que agente tem que pregar o evangelho, mas o direito de escolha é de cada um, cada um tem o direito de escolher o que é melhor pra si... O que a bíblia pede é que eu fale de Jesus pra pessoa, não forçar ninguém, entendeu?... E teve algumas situações em outras igrejas, de baterem de frente com o pessoal das religiões das matrizes africana e isso nós comunidade quilombola.

Essa fala demonstra que a Bíblia ocupa um lugar representativo na vida dos

moradores dessa comunidade. Observa-se assim, que essa corresponde à

materialização da palavra de Deus. Acreditam que nela está o que mais precioso há

para eles: a salvação, considerando-se a necessidade da redenção, pois precisavam

se distanciar dos pecados do mundo e viver apenas para servir a Deus. A Bíblia

passou a ser uma espécie de amuleto. Nela encontraram a possibilidade de dialogar

com o mundo espiritual. Sendo assim, ela é o elo de interação entre os fies e, como

bem disse o Sr Elizeu é ela que aponta o caminho para encontrar Jesus. Condição

essa que se instaurou a partir da tradição difundida pelo Protestantismo.

Encontramos explicações para esse fenômeno nas palavras de Massotti

(2007, p. 7):

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A única autoridade reconhecida pelos protestantes em matéria de fé e de costumes é a palavra de Deus, constante das Sagradas Escrituras. A palavra atua por seu contato pessoal mediante a ação do Espírito Santo, engendrando a fé, e com ela a salvação. Daí a importância dada pelas igrejas reformadas à pregação da palavra de Deus, à tradução da Bíblia para as línguas vernáculas, à interpretação pessoal ou ao livre exame dos textos bíblicos.

Fica subtendido então, que a Bíblia comporta uma finalidade de guiar o

comportamento humano para o que ele considera um novo tempo. Um tempo para

que esse se dispa do que não é permitido segundo os mandamentos de Deus. Além

de lhe mostrar o caminho a ser seguido a partir do momento que aceitaram Jesus.

Essa é uma prerrogativa que determina a identidade de um Quilombo evangélico.

Passa-se a desenvolver práticas religiosas focadas nos dogmas postulados por essa

doutrina.

Não há, portanto, traços de uma identidade com marcas de ancestralidade

como têm os Quilombos tradicionais à medida que o Catolicismo é a religião

reconhecida pela tradição brasileira. Provavelmente, venha daí o estranhamento que

tem provocado o fato de se ter um Quilombo evangélico. Por outro lado, mostra-se

assim, que o uso da Bíblia reflete a resistência dos quilombolas em relação à

tradição de origem, nesse caso a herança religiosa africana.

2.2 OS RITUAIS COMO LUGAR DE IDENTIDADES E MEMÓRIAS

Os quilombos são territórios que são demarcados a partir de seus traços

sociais, geográficos, culturais, políticos e religiosos. Nesse caso, considera-se

pertinente destacar a importância dos rituais, mais especificamente os realizados

nesse território, na construção da identidade. São através dessas manifestações que

os mesmos demarcam o lugar da fé.

Destarte, os rituais não são manifestações que agregam nessa perspectiva,

fatos de cultura, tendo em vista que como uma das variedades do sentimento

religioso constitui-se a medida de um povo, muito embora não se mostre menos em

relação aos usos e costumes (RODRIGUES, 2011).

A presença dos rituais nas comunidades quilombolas se efetiva através da

dança e da música, na sua maioria de influencia africana. O processo sob a qual o

mesmo se realiza segundo Rodrigues (2011, p. 141):

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A dança. A mímica e trejeitos das interpolações tornam mais suave e natural a transição da linguagem falada para a dança. A rigor, as danças de caça e de guerra primitivas não são mais que representação mímica, acompanhado de gestos da narração cantada dos grandes feitos de cada povo. Assim também é para os negros, que muito se amam a dança. Ao som dos tambores e das melopeias africanas, tão monótonas, eles passam noites inteiras e às vezes sem parar em trejeitos e esgares coreografados, em danças e saltos indescritíveis. A descrição de Palmares feita por Barleo instrui-nos como faziam quando a liberdade; “Dispostas previamente às sentinelas, prolongam as suas danças até o meio da noite, e com tanto estrépito batem no solo, que de longe pode ser ouvido; dão ao sono o resto da noite até e nove e dez horas do dia”. Via de regra, ao lado da rude orquestra os dançarinos ficam em círculo cantando e batendo as palmas, formando um coro de acompanhamento. No centro do círculo saem em blocos a dançar cada um dos presentes. E esse, ao terminar sua participação, com um simples aceno ou violento encontrão convida outro a substituí-lo. Algumas vezes, toda a roda participa da dança, uns atrás dos outros, a fio, acompanhando o compasso da musica em contorções e cadenciadas dos braços e corpos.

É dessa forma, que muitos rituais se realizam no interior das comunidades

Quilombolas. Seguem a tradição de seus ancestrais, pois trazem os traços de

africanidade. Aspectos esses que se perpetuam nos tempos atuais. Verifica-se

nesse contexto que há toda uma forma particular de representação da cultura de um

povo remanescente. Condição essas significativamente, de ocorrência nos

Quilombos do Amapá, simbolicamente representada através dos atos da dança e do

batuque. Mas, que se reproduz de forma diferenciada na comunidade do Mel da

Pedreira, onde os rituais não mais se realizam.

2.3 O TAMBOR E SUAS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS DA FÉ NOS QUILOMBOS TRADICIONAIS

Os Quilombos conforme pontuado anteriormente apresentam uma cultura

que se materializam de forma particular. Existem muitos Quilombos que em termos

de manifestações seguem as matrizes africanas. Daí o fato de muitas comunidades

quilombolas utilizarem em seus rituais o tambor, cuja simbologia é bem mais que a

de um mero instrumento.

Tomando como base essa premissa é importante destacar a utilização

desses instrumentos segundo Rodrigues (2011, p. 142):

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Dos nomes dos instrumentos, de finalidade sacra ou profana nas festas, as danças africanas têm entre o nós denominações diferentes, tiradas naturalmente de seu idioma: dança de tambor no Maranhão, maracatus em Alagoas e Pernambuco, Candomblés, atucagés, batuques na Bahia, etc. Mais tarde, com a diminuição dos africanos e a aquisição pelos crioulos de hábitos mais policiados, os batuques foram se modificando e é principalmente em um esforço manifestado para incorpora-se às nossas festas populares que ainda vivem hoje os das cidades.

O uso desses instrumentos é herança dos africanos tendo em vista que essa

cultura influenciou significativamente a produção sócia cultural dos Quilombos do

Brasil, pois as festas de batuques, as folias, as ladainhas são manifestações que

comportam a identidade de ancestralidade. Também é importante elucidar ser o

tambor o símbolo dessa tradição. Isto porque, se materializam através dele as raízes

e a força de uma etnia.

FIGURA 13: Festa de Batuque

Fonte: Grupo de Batuque da Comunidade Afrodescendente do Igarapé do Lago (Mun. De Santana) União dos Negros do Amapá - Semana da Consciência Negra (Alci Jackson – 2007).

O tambor nessa perspectiva compreende uma forma de através do seu

batuque manifestar seu amor às forças divinas (os santos aos quais referenciam).

Ressalta-se ainda, no bojo desse contexto que as manifestações culturais

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produzidas nas comunidades quilombolas de Macapá seguem na sua maioria os

rituais da tradição católica.

Essa ocorrência do uso do tambor já não acontece nas comunidades

quilombolas evangélicas. Pois, o tambor para as pessoas dessas comunidades tem

sentido profano. O que fica evidenciado na fala dos quilombolas do Mel da

Pedreira/AP, quando inquirido sobre o significado do Tambor no território dessa

comunidade.

De acordo com os membros dessa comunidade em suas narrativas (N)

colocaram que:

N1: O tambor era usado quando os negros ficavam presos nas senzalas;

N2: Fazer negócio da folia. Representa a cultura africana;

N3: Para as comunidades não mudaram representam a cultura. Mas, não adotamos

dificuldade por que não podemos participar dos encontros dos tambores.

N 4: Não usamos nada de origem africana, mas a gente toca guitarra, triângulo,

tabaca e pandeiro.

N 5: A história é uma coisa que estão se renovando, há tendência de se acrescentar

mais instrumento na música.

Diante desse cenário é pertinente destacar que a presença do tambor na

tradição quilombola do Amapá representa uma forma de manifestação de um ritual

de cunho católico. Daí o mesmo ter sido trocado por outros instrumentos, quando se

trata de uma comunidade evangélica. Esse é o caso da Comunidade do Mel da

Pedreira/AP. Não mantiveram a tradição de herança africana.

Essa herança segundo Rodrigues (2011, p.144) reproduzindo o pensamento

de Costa no que diz respeito aos rituais:

Celebravam os africanos as suas festas com danças e cantorias acompanhadas de instrumentos musicais, fabricados e exclusivamente usados por eles, além das castanholas, bater de palmas côncavas e de diferentes formas de assobios por eles inventados com muita variedade. Esses instrumentos eram o atabaque ou tambaque, espécie de tambor, porém, quadrado e muito estrepitoso; canzá, feito de cana com as extremidades fechadas pelos gomos da mesma cana e com orifícios; marimba, formada de dois arcos semicirculares e com coités em cujas bases colocavam uma espécie de tecla de madeira sobre a qual batiam com um pauzinho ao modo de vaqueta; o marimbau, que não sabemos se é um instrumento diferente desse ultimo; matungo, uma cuia com ponteiros de ferro harmoniosamente dispostos; e os pandeiros e berimbaus que adotaram.

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Como se pode observar o tambor configura-se numa espécie de amuleto para

a maioria das comunidades quilombolas, que até hoje mantém essa tradição como

forma de garantir a permanência de sua cultura de origem (Cultura Africana). Fato

esse que revela ser uma forma de preservar a identidade afrodescendente. Assim

sendo, o tambor tem o lugar de demarcar traços dessa identidade. O que deixa

explícito que as sociedades criam símbolos, não só para se representar, mas para

reafirmar sua cultura e identidade enquanto povo remanescente. Torna-se assim, o

tambor o catalisador da cultura negra, pois quando a ele se faz referencia se remete

a cultura negra, ou seja, demarca o território quilombola quanto as suas formas de

se manifestarem culturalmente.

Dessa forma, é pertinente a colocação feita por Rodrigues (2011, p. 145) a

respeito do significado do tambor frente à cultura quilombola:

São esses mais ou menos os instrumentos de musicas dos negros, usados no Brasil, mas o Dr. Pereira da Costa não faz ao tambor a parte que lhe é devida. Como na África, onde é um poderoso elemento tanto de guerra quanto de caça, no Brasil o tambor é o instrumento musical por excelência dos pretos. Variadíssimo de forma: é fundamentalmente constituído por um grosso cilindro oco, de madeira, tronco de árvore escavado internamente, em cuja extremidade superior se distende fortemente uma pele de animal, sobre a qual se bate com o punho fechado ou com vaquetas. Às vezes, complicam mais instrumento. Tambor-onça chamam no Maranhão aquele em que dentro prendem uma haste média da palma da palmeira buriti. Fazendo escorregar sobre a haste, com força, lenta e alternativamente, as mãos forradas de um pouco de algodão molhado, tiram um som muito forte, vibrante e rouco, e, tudo igual ao rugir da fera e capaz de ser ouvido a longas distâncias. Tocado por duas pessoas, combinam se a vibrações da pele com o ronco do buriti, de sorte a dar a impressão de um instrumento selvagem e feroz.

Essa assertiva traça um perfil da constituição do tambor e sua utilização pelos

quilombolas. Revela a sua forma e uso mais especificamente nos rituais que

acontecem dentro das comunidades, mais especificamente daquelas cuja tradição é

católica. Práticas essas mantidas através de rituais religiosos. Logo, há de se

considerar que as comunidades quilombolas ao fazer uso do tambor se filiam aos

princípios da cultura africana como herança de uma tradição que se revela através

de suas manifestações culturais. Por outro lado, é negado por outras, como é o caso

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das comunidades quilombolas evangélicas. Foi o que se constatou no

desenvolvimento dessa pesquisa, tendo em vista que a comunidade quilombola do

Mel da Pedreira /AP ficou muito tempo fora do evento realizado pelas comunidades

negras do Amapá denominado Encontro dos Tambores, de acordo com alguns

membros da comunidade por não utilizá-los em suas práticas religiosa.

O tambor é utilizado para acompanhar as músicas cantadas nas

manifestações culturais, que assim ocorria preconiza Rodrigues (2011, p. 139):

A dança e a música eram manifestações significativas maior da festa do rosário, sua batucada e cantos faziam acumular inúmeros africanos que socializavam alegria, conversas, paixão e dores. Mas o importante é frisar que essa manifestação popular permitia a participação de todos os cativos, fossem eles domésticos, públicos, da produção, vaqueiros e até mesmo os fugitivos, posto que não se tinha o controle dos trabalhadores escravos de todos os colonos mais distanciados da vila ou pertencentes aos senhores das outras localidades. Essa tradição religiosa reunia escravos de várias vizinhanças da vila Macapá.

O sentido do tambor está associado à música e a dança conforme referenciou

Rodrigues, mas também é elemento de representação da vivência religiosa, é tido

alegoricamente como uma forma de festejar o Divino Espírito Santo. Traz através de

seu batuque a manifestação espiritual. Significa, portanto, nesse lugar um

instrumento sacralizado e não profano, como assim, é considerado no Quilombo

evangélico.

Nesse sentido, vale elucidar que existem no Estado do Amapá, muitos

Quilombos que mantém a tradição do tambor como elemento de Cultura. Muitas

delas se encontram uma vez por ano, mais precisamente na semana em que se

comemora no Estado o dia da consciência negra, quando acontece o movimento

intitulado Encontro dos Tambores. Evento esse que não tem a participação do

Quilombo do Mel da Pedreira/AP, não porque não querem, mas segundo os

moradores pelo fato de não serem convidados.

Sobre o encontro dos tambores registra-se a notícia publicada por Silva

(2012, p. 1) no Blog OVERMUNDO:

Na Semana da Consciência Negra, onde tiveram diversos polos de discussão em torno da temática racial, no Amapá se comemorou essa semana com debate e celebração. Reunindo comunidades tradicionais de todo o Estado, com seus mestres e jovens, durante

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toda a semana aconteceu o Encontro dos Tambores, uma semana de festa, com vendas de comidas e bebidas típicas das comunidades negras do Amapá. O Encontro é uma das maiores festas do estado. Um verdadeiro momento de alegria, onde todos dançam, se divertem e proclamam seus santos protetores. É também um momento de intensa religiosidade, que conta com a presença de descendentes diretos de escravos e que ainda moram quilombos, como o Quilombo do Curiaú, o segundo quilombo mais antigo do Brasil.

Esse evento conforme descrição é um evento tipicamente voltado para

comunidade negra, pelo menos essa é a proposta. Visa popularizar a cultura negra,

bem como suas tradições: o batuque, o marabaixo, as comidas, o artesanato.

Reforçar a consciência da população amapaense no que diz respeito ao não

preconceito que historicamente tem acometido a população negra. Contudo, meu

olhar a todo esse processo leva a pensar que existe um equivoco ao não se

considerar a cultura dos Quilombos evangélicos. Eles não têm o tambor é verdade,

mas tem o título de Quilombo, a descendência e porque não dizer o reconhecimento

de uma herança cultural negra, que não se exclui com o não uso do tambor e da

realização dos rituais de tradição afro.

Questões dessa ordem ficam bastante evidenciadas na seguinte narrativa: “A

bíblia diz que precisamos louvar a Deus com harpa, som sonoro, instrumentos de

cordas, violão, guitarra e contrabaixo, e a voz do tamboril”. O quadro abaixo

reproduz uma realidade diferenciada do Quilombo Mel da Pedreira/AP.

FIGURA 14: Os instrumentos utilizados nos cultos evangélicos no Mel da Pedreira

Fonte: Sonia Sacramento, 2010

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CAPÍTULO 3 - COMUNIDADE DO MEL DA PEDREIRA/AP: UMA ARENA DE

TROCAS CULTURAIS – AS VOZES DE UM QUILOMBO EVANGÉLICO

3.1 AS TROCAS CULTURAIS NA COMUNIDADE DO MEL DA PEDREIRA/AP

CONTADAS A PARTIR DAS NARRATIVAS ORAIS: ENTRE A TRADIÇÃO E A PÓS

– MODERNIDADE

A comunidade do Mel da Pedreira/AP é um Quilombo cujo modo de vida se

particulariza a partir de sua base religiosa. Ao contrário dos Quilombos tradicionais

essa comunidade apresenta uma cultura diferenciada, resultado de algumas trocas

decorrentes de um processo sócio histórico. Sendo a maior mudança à centralização

das atividades diárias dedicadas aos momentos de evangelização. Uma das trocas a

se registrar é que os cultos são conduzidos por um pastor, que vem de outros

municípios e pelos presbíteros (moradores do quilombo que se dedicam ao

conhecimento bíblico).

FIGURA 15: Culto Evangélico na Igreja da Comunidade do Mel da Pedreira/AP

conduzida pelo pastor

Fonte: Sonia Sacramento, 2011.

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FIGURA 16: Culto evangélico conduzido pelos presbíteros

Fonte: Sonia Sacramento, 2011.

Diante desse contexto, é válido considerar que essa comunidade a partir da

evangelização passou a adotar novas posturas em relação às práticas sociais,

culturais e religiosas. Aspectos esses que foram analisados enquanto fenômeno.

Para conhecer a comunidade do Mel da Pedreira/AP e investigar o impacto

da evangelização no cotidiano dessa comunidade foram feitas várias visitas a

comunidade a partir do mês de março de 2010.

Nesse primeiro momento foi feito contato com o líder da comunidade Sr.

Alexandre Ramos, um dos moradores mais antigo desse Quilombo. Sendo esse

bastante receptivo. Logo, se identificou como líder, conhecedor da história, cultura e

religiosidade desse espaço. Pessoa simples, mas conhecedora de suas raízes e de

sua história e que tem buscado frente a outros segmentos da sociedade (outras

comunidades quilombolas, igreja, governo) a consolidação de um Quilombo

evangélico.

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Entender esse fenômeno é sem sombra de dúvida, um desafio, tendo em

vista que essa condição tem causado certos estranhamentos frente aos outros

Quilombos, cuja matriz religiosa é afro-brasileira.

A fala de seu Alexandre mostrou-se rica em detalhes, principalmente em

relação em que momento essa comunidade se tornou evangélica: “Na história, lá diz

que em 1968, recebemos a visita da Igreja Presbiteriana do Brasil e aderimos pra

nós à vida que escreve o evangelho”. Esse é o recorte que registra como o

Protestantismo chegou à comunidade do Mel da Pedreira/AP.

Aspecto esse que fez com que buscássemos na técnica da História Oral

aporte para a coleta das informações, muito embora esse seja um gênero pouco

considerado quando se trata de pesquisa. A história pública permite veicular o saber

em sua dimensão social mais ampla. A História Oral nesse caso constitui-se como

tributário da história pública. Através dela chega-se ao leitor comum à medida que

privilegia o social como alvo de conhecimento (MEIHY,1991).

Dessa forma, as narrativas orais são reveladoras da realidade social vivida

por determinados grupos, principalmente aqueles cuja voz tem sido silenciada, entre

as quais estão as comunidades quilombolas. Pois, muitas não têm visibilidade como

é o caso da comunidade do Mel da Pedreira/AP. Para tanto, legitimar as vozes dos

moradores desse Quilombo é relevante para a produção da história do tempo

presente, principalmente em relação às trocas culturais que nela ocorrem.

As narrativas orais nessa perspectiva são fontes das quais possibilitam

recuperar e recriar por intermédio da memória dos informantes a história de

determinadas sociedades (FERREIRA e AMADO, 1996).

Essa é uma das questões importantes para a categorização de elementos

como identidade e cultura. Isto porque, traços da oralidade identificam quais as

práticas sociais, culturais que se instauram no cotidiano dos sujeitos da pesquisa.

É fato ainda, considerar que as trocas culturais existentes em determinadas

comunidades, mas especificamente as dos quilombolas se materializam nas vozes

dos que nela vivem, quando esses se propõem a contar suas histórias. Essa

ocorrência se torna objeto de pesquisa à medida que muitos enunciados produzido

descrevem aspectos sociais, políticos, culturais e religiosos dessas comunidades.

Uma das questões emblemáticas relacionadas às comunidades quilombolas

diz respeito às mudanças por quais algumas delas vem passando quanto à cultura.

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A comunidade do Mel da Pedreira/AP de acordo com seus moradores

passou por grandes transformações ao se tornar evangélica, uma vez que deixaram

de realizar os rituais culturais e religiosos, afro-brasileiros, de fazer uso de bebidas

como a gengibirra tão comum nos Quilombos nas festividades tradicionais. As

missas de santos foram substituídas por cultos religiosos evangélicos.

Paulatinamente, as trocas foram realizadas. O tambor fora substituído por outros

como a bateria, a guitarra, o baixo. Tudo muito diferente do que se tem postulado

acerca dos Quilombos.

FIGURA 17: Atividades realizadas na Comunidade do Mel da Pedreira/AP (Culto Evangélico, Festa da Família, Uso da Guitarra).

Fonte: Sonia Sacramento, 2011-212.

A foto primeira demonstra uma das trocas culturais dos cultos afro pelo

evangélico. A segunda por sua vez, representa a festa da família realizada pela

primeira vez em 2012, no segundo domingo de agosto numa tentativa de resgatar a

parte cultural da comunidade, que deixou de ser desenvolvida quando se tornou

evangélica em 1968, pois até então, os rituais afros e católicos é que demarcavam

esse território. Por fim, a Guitarra que passou a ser utilizada e que tirou de cena o

tambor, considerado secular na cultura dos Quilombos do Brasil.

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Condição essa que se evidencia na seguinte narrativa do senhor Alexandre

Ramos (2010) ao falar do significado do tambor no território dos Quilombos

tradicionais bem como as implicações para quem substitui essa tradição por outra:

Olha eu não tenho relatos históricos mais sou observador... vejo pela televisão os negros que ficaram na senzala... tocavam para se libertar... o tambor implica é que os demais julgam que os africanos usavam... nós não usamos, mas somos negros... não mexeu na minha pele... as pessoas acham que a gente passa por isso somos vencedores”.

Observa-se nesse dizer quilombola que trocas culturais acontecem em

decorrência de escolhas dos agentes sociais que nele vivem. É resultado de um

processo histórico-cultural. Além que essas trocas acabam por demarcar os limites

das identidades que se formam a partir desse processo.

Ao se aferir quanto ao uso do tambor “nós não usamos mais somos negros”.

Fica subtendido nesse enunciado que a formação da identidade negra ainda é um

dos traços que orientam ser a ancestralidade aspecto determinante para a cultura

quilombola. Essa é uma questão que buscamos dialogar a partir do pensamento de

Laplatine (1989/1998 apud André, 2008, p.41), cuja teoria diz que quando se trata de

fenômenos sociais, do cotidiano é que se deve investigar o mais profundamente

possível para a compreendermos como as identidades e processos de subjetivação

são constituídos.

Fortalece-se a partir desse contexto o que tínhamos como hipótese as

culturas não são apenas resultados das heranças trazidas pela tradição, mas

também resultado de trocas que se realizam no interior de determinados espaços,

que consequentemente, estabelece novos hábitos e, por conseguinte, outras

identidades.

Nesse sentido, é válido considerar essa condição em relação à

descendência dos moradores da Comunidade do Mel da Pedreira/AP, cuja

identidade quilombola é assim descrita pelo Senhor José Cirílo (2010): “Rapaz! eu

me considero quilombola ....é minha origem ...os meus avós vieram de navio da

África”. Evidencia-se nesse contexto que os mesmos se reconhecem como sujeitos

do processo sócio histórico da formação do povo brasileiro. O que denota a

existência de uma identidade nacional. Instaura-se assim, a memória coletiva. Além

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de demonstrar a marca da subjetividade que os mesmos tomam para se

autodefinirem.

Destarte, as condições de vida dos Quilombos perpassam pela subjetividade

dos seus sujeitos. Condição essa que evidencia em suas práticas sociais, culturais e

de identidade. Muitas delas resultado do processo de hibridização por quais

passaram muitas sociedades conforme pontuaram Rowe e Schelling (1991, apud

Canclini, 2008, p. XXVIII):

Algo semelhante ocorre com a passagem das misturas religiosas a fusões mais complexas de crenças. Sem dúvida, é apropriado a falar de sincretismo para referir-se à combinação de práticas religiosas tradicionais. A intensificação das migrações, assim como a difusão transcontinental de crenças e rituais no século passado acentuaram essas hibridizações e, às vezes, aumentam a tolerância com relação a elas, a ponto de que em países como o Brasil, Cuba, Haiti e Estados Unidos tornaram-se frequente a dupla e a tripla pertença religiosa; por exemplo, ser católico e participar também de um culto afro-americano ou de uma cerimônia new age. Se considerarmos o sincretismo, em sentido mais amplo, como adesão simultânea a vários sistemas de crenças, não só religiosas, o fenômeno se expande notoriamente, sobretudo entre as multidões que recorrem, para aliviar certas enfermidades, a remédios indígenas ou orientais e, para outras, à medicina alopática, ou rituais católicos ou pentecostais.

Fica assim subtendido que a identidade é um elemento importante para se

entender a dinâmica que se desenvolve na comunidade do Mel da Pedreira/AP.

Pois, verifica-se que o caso das práticas religiosas terem se modificado, faz parte de

processo de hibridização. Sendo que, as mesmas ao se modificarem, modificam

também as culturas e as identidades de um determinado grupo.

Esse é um contexto que tem se propagado por conta do processo de

globalização por qual tem passado a sociedade. É nesse sentido, que as mudanças

se tornam necessária, uma vez que determinados grupos buscam viver suas vidas

sobre um determinado princípio, dogma, costumes que lhes favoreçam consolidar,

criar, modificar suas formas de cultura.

Evidencia-se assim, que a cultura nessa perspectiva, não trata apenas de

herança cultural, mas ao fato que cada sociedade cria seu modo de vida, claro que

muitos valores advêm de outros grupos, perpassam pelo poder simbólico que

algumas instituições detêm sobre outras, entre as quais estão as de ordem religiosa.

Isto por que:

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Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganha ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade (de classe) para uma política de diferença (HALL, 2006, p. 21).

As práticas culturais dos Quilombos não podem, portanto, serem pensadas

somente na perspectiva do passado, mas nas possibilidades do que exige o tempo

presente.

No caso da comunidade do Mel da Pedreira/AP essas trocas culturais dão

vazão às mudanças de comportamentos mais precisamente com a chegada da

Igreja Presbiteriana, diz Elizeu (Presidente da comunidade do Mel da Pedreira,

2011): “Mudou totalmente, da água para o vinho, não há brigas, o amor, o respeito,

sem bebida, mais união, apesar das diferenças”.

Essas mudanças dão conta que a evangelização afetou diretamente a forma

de viver dessa comunidade, principalmente quanto aos seus costumes e hábitos.

Esse processo revela que as trocas culturais se fizeram para atender aos

parâmetros resultantes de escolhas feitas pelos agentes sociais que residem nesse

Quilombo.

Retomando o pensamento de Laplatine a constituição da identidade e da

cultura de um grupo social é decorrente das relações que se travam no seu interior.

Assim, fica evidenciado que a comunidade do Mel da Pedreira/AP está no processo

de constituição de uma identidade diferenciada comparada aos Quilombos

tradicionais. Condição essa que se reafirma no sermão reproduzido de um dos

cultos evangélicos realizados nessa comunidade em 2011:

Pastor – Quero convidar, os irmãos a abrir a bíblia, salmo de número trinta e seis, salmo de número trinta e seis. Vamos estar juntos compartilhando com os irmãos, né! Quinta-feira teve a oportunidade de falar sobre esse salmo. Amém! Comunidade - Amém; Pastor - Há no coração do ímpio a voz da transgressão; não há temor de Deus diante de seus olhos; Comunidade - Porque a transgressão o lisonjeia a seus olhos e lhe diz que a sua iniquidade não há de ser descoberta, nem detestada. Pastor - As palavras de sua boca são malícia e dolo; abjurou o discernimento e a prática do bem.

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Comunidade - No seu leito maquina a perversidade, detém-se em caminho que não é bom, não se despega do mal. Pastor - A tua benignidade, senhor!, Chega até aos céus, até às nuvens, a tua fidelidade. Comunidade - A tua justiça é como as montanhas de Deus; os teus juízos, como um abismo profundo. Tu, SENHOR, preservas os homens e os animais. Pastor - Como é preciosa, ó Deus, a tua benignidade! Por isso, os filhos dos homens se acolhem à sombra das tuas asas. Comunidade - Fartam-se da abundância da tua casa, e na torrente das tuas delícias lhes dás de beber. Pastor - Pois em ti está o manancial da vida; na tua luz, vemos a luz. Comunidade - Continua a tua benignidade aos que te conhecem, e a tua justiça, aos retos de coração. Pastor - Não me calque o pé da insolência, nem me repila a mão dos ímpios. Comunidade - Tombaram os obreiros da iniquidade; estão derruídos e já não podem levantar-se.

Pastor - Senhor, louvamos o teu nome nesta manhã por mais essa vitória, por mais este privilégio. Estamos reunidos Senhor, nesse dia, que é dedicado ao dia do Senhor, mas também a gente pode rever os nossos irmãos, ó Pai, e passamos a semana toda sem nos ver, ó Deus, obrigado porque o Senhor deixou o momento para nós estarmos juntos e só tu, Senhor, conduzindo a nossa mente e coração, ó Pai, pra fazer a nossa vontade, em nome de Jesus.

Pastor - Toma toda primazia com louvor, adoração e ensino da tua palavra, a pregação da tua palavra da palavra, Senhor, capacita cada um dos teus servos, Senhor, que vão ministrar (levitas), Senhor, possam estar sendo usado, Senhor, segundo a tua vontade, em nome de Jesus, Pai. Os teus servos que vão ministrar, vão ter o privilégio, Senhor, de ministrar a tua palavra, de ensinar e também aprender, Senhor, junto com a igreja.

Pastor - Capacita cada um, Senhor, de nós, a compreender, ó Deus, a tua fala nesta manhã, em nome de Jesus, fica conosco nesta hora e nos ajuda, Pai, em nome de Jesus, Amém.

Comunidade - Amém.

Pastor – “Quando olho para esse salmo, vejo que o salmista, ele aposta e destaca o melhor lugar onde deve se viver e o melhor caminho. Ele começa a dizer se “há no coração do ímpio à voz da transgressão, e ele também entende que não há temor de Deus diante dos seus olhos”, porque os seus olhos é a beleza do seu corpo, do seu olhar, lisonjeia, né, a prática. Quando ele está dizendo isso, o salmista está nos levando a conhecer um pouco mais da vontade de Deus”.

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O sermão dar evasão aos princípios que norteiam a tradição evangélica. Situa

os fies quanto aos caminhos a serem tomados, sem que se tenha que transgredir as

normas segundo o evangelho. Propõe o desapego às formas de vida terrena,

principalmente aquelas que vão de encontro aos ensinamentos de Deus. O

importante é a dedicação a ser propagada em forma de louvor.

A evangelização se perpetua a partir dessas práticas religiosas que

demonstra a realização de uma troca cultural da celebração afro para os cultos

evangélicos, que por sua vez trazem novas formas de manifestações. Tudo em

nome do senhor. Sendo a música uma das formas de cultuar Deus. Foi assim, que a

tradição do tambor foi trocada pelo uso da guitarra, que por sua vez sacralizaram

outros:

Troca essa reproduzida nas narrativas dos moradores desse Quilombo:

Alcinéia (2011) - nós não usamos tambores, acredito que podemos usar mais não temos e por isso, usamos outros instrumentos.

Elizeu (2011) - Não realizamos manifestação de origem africana não, mas a gente toca guitarra, triângulo, tabaca e pandeiro.

Enoque Cirilo (2011) – o significado da guitarra representa pra nós uma extensão do instrumento que começou com o tambor que se expandiu para guitarra e outros.

Alexandre Ramos (2011) - A bíblia diz que precisamos louvar a Deus com harpa, som sonoro, instrumentos de cordas, violão, guitarra e contrabaixo, e a voz do tamboril.

Com base nesse relato podemos aferir que esse é resultado do impacto das

trocas culturais realizadas a partir da evangelização deste Quilombo. Claro que não

é só o instrumento em si, mas o que ele representa. Pois, se trata de um símbolo

que historicamente em outros contextos teve caráter revolucionário. Pois, seu

surgimento está vinculado a um período de renovação, de crítica aos ritmos de uma

determinada época. Com esse propósito surgiu o movimento Jovem Guarda, sendo

que através da guitarra conseguiu quebrar paradigmas musicais importantes, e

simbolizou uma atitude nova frente à cultura brasileira (KLASSEN, 2004).

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Fica dessa forma evidenciada que a troca realizada entre o tambor e a

guitarra revela bem mais que impetrar um novo ritmo, mas reafirmar a sua

evangelização e a sua redenção diante de outra cultura, nesse caso, a evangélica. A

guitarra caracteriza a força da fé, das crenças em Deus, que nos Quilombos

tradicionais é mostrada pelo som do tambor. Para tanto, é a guitarra símbolo de uma

troca cultural entre dois universos: o católico (de matriz africana) e o evangélico

(protestantismo).

É a busca por uma identidade que está não só vinculada a um plano cultural,

mas precisamente de ordem religiosa e porque não dizer, politicamente também,

uma vez que esse é um movimento que se dá engendrado por ideologias, tendo em

vista, que nenhuma forma de pensar, de agir e se fazer é neutra. Logo, é importante

elucidar que a comunidade do Mel da Pedreira/AP ao se tornar evangélica, fez uma

transposição para uma nova forma de Quilombo.

Outra mudança a se elucidar a partir da chegada da Igreja Presbiteriana,

considerando esse fato o marco para que algumas trocas acontecessem, ficam

explicitas na voz do quilombola Enóque Cyrillo (2010): “A parte religiosa mudou...

não tinha centro espírita... meu avô conheceu a religião evangélica”. As sociedades

evoluem, mudam seus hábitos e costumes. O que implica dizer que essas não são

estáticas, pelo contrário, são elas que mobilizam para que novas práticas se

realizem e novas sejam criadas. Pois, como muito bem colocou um dos moradores

do quilombo do Mel da Pereira seu Elizeu (2012): “ah” é gratificante, agente ser

reconhecido como quilombo... A história do nosso povo foi sofrida, mas hoje em dia,

já tem reconhecimento melhor pelas autoridades e agente ver que é... não é ruim ser

quilombola, é algo que é gratificante”. Fica subtendido assim, que as trocas culturais

ocorrem por conta da subjetividades de seus sujeitos, que estabelecem padrões de

comportamento e culturas próprias. E revelam que uma nova identidade foi criada, a

de um Quilombo evangélico.

Os cultos religiosos são resultados de trocas culturais que ocorreram no

Brasil a partir do processo de evangelização de sua população. Representa um tipo

de manifestação que guarda a identidade religiosa de seus adeptos. Através deles

se criam e se recriam formas de comportamentos e, porque não dizer de ideologia.

No que tange a esse processo cabe ressaltar que se agregam aos cultos

religiosos formas de ser e de pensar a partir de uma doutrina. Condição essa que

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demarca um território, cuja religiosidade influencia na cultura e na identidade de uma

dada sociedade.

Dessa forma, a figura a seguir demonstra que os gestos feitos são comuns

nas comunidades denominadas evangélicas.

FIGURA 18: momento de louvor durante o culto evangélico

Fonte: Sonia Sacramento, 2013.

Essa ocorrência representa uma troca cultural à medida que se instauram

novos valores e comportamentos. Sendo a identidade um dos focos principais de

uma cultura e que se revela através das práticas sociais e religiosas vivenciadas por

um determinado grupo. Isto porque ao se assumir normas de conduta se instituem

formas de cultura. O que demonstra ser a religião uma das propagadoras desse

processo:

A identidade é uma constituição social e histórica do “próprio” [do soi, do self] e do “outro”, entidades que, longe de serem congelados em uma permanência “essencial”, estão constante e reciprocamente engajadas e negociadas em relação de poder de troca ou de confrontação, mais ou menos disputáveis e disputadas, que variam no tempo e no espaço (Correa e Rosendah, 2004, p. 163).

É, portanto, nesse jogo que as trocas culturais ocorrem quando se busca

uma relação de pertencimento com o lugar, com o modo de vida. É a partir dessas

trocas que se constitui a identidade de uma determinada sociedade ou grupo social.

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No caso da comunidade do Mel da Pedreira/AP essas trocas culturais

refletem a opção dos agentes sociais que vivem nesse Quilombo sob outras formas

de cultura. O que obviamente, remete a constituição de novas identidades e ruptura

com determinadas tradições. Essa comunidade através da evangelização se

ancorou a um novo estilo de vida. O qual não tem mais espaços para a cultura dos

seus antepassados. Está se falando aqui do fato da substituição dos rituais afro-

brasileiros pelos rituais evangélicos. O que demarca um território hibridizado por

práticas culturais não marcadas pela tradição que deram origem aos Quilombos, isto

é a matriz africana. Logo, não é só uma troca de cultura, mas também de viver, de

pensar e dizer.

Constata-se nesse contexto que a comunidade do Mel da Pedreira/AP

passou por um processo de hibridização, o que se evidencia quando os quilombolas

trocam o uso do tambor pela guitarra, dos rituais afros pelos cultos evangélicos.

Segundo Elizeu Cirilo (entrevista realizada em 2011): “Agente usa a guitarra

para colocar as melodias das músicas que é toda modificada”. O uso desse

instrumento representa uma forma de resistência frente às práticas religiosas de

tradição africana. Sendo assim, o culto as divindades, a devoção aos santos não

mais fazem parte da cultura dessa comunidade. Tendência essa que demarca uma

história construída a partir de paradigmas não centrados nas heranças culturais e

sim, a proposta de uma nova vida. Assim, ao se filiarem aos dogmas evangélicos

novos hábitos e costumes passam a ser cultivados conforme se pontua a seguinte

narrativa: “Mudou muita coisa, pois antes não conhecíamos a palavra de Deus e

hoje adoramos somente ele” (Aldinéia de Souza Carvalho, 2011).

As práticas religiosas reproduzem nesse sentido, a dinâmica da construção

das identidades, que acabam por se fazer no interior dessa comunidade, cuja

memória do passado ficou no imaginário dos quilombolas apenas como fatos de

uma tradição que foi substituída por novos hábitos e costumes. Entende-se assim,

que a identidade religiosa está vinculada a duas questões: a temporalidade e

espacialidade. O que traz a tona o conceito de pertença que permite nessa

perspectiva o reconhecimento não necessariamente à condição institucional do que

diz respeito à opção religiosa. Por sua vez, o conceito de identidade do ponto de

vista institucional se faz necessário. É, portanto, através dela, isto é da identidade

que se demonstra a materialidade da religião, bem como pela qual o indivíduo se

identifica (ROSENDAHL E CORRÊA, 2001).

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Em consonância a esse processo vale elucidar que as trocas culturais se

dão justamente no cerne da construção dessas identidades, uma vez que ao se ter

contato com outras culturas ocorre à hibridização dos hábitos e costumes de um

determinado grupo. São questões dessa ordem que demarcam que a Comunidade

do Mel da Pedreira mediante ao processo de evangelização passou por esse

processo de trocas culturais. Condição essa revelada a partir da narrativa do senhor

Alexandre (2010): “Em termos religiosos mudou muita coisa... porque os católico têm

os padroeiros, o batuque e o marabaixo ... já nós não temo nada disso...não

aderimos ...somo devoto só de Jesus...ele é santo dos santos”. Para tanto, verifica-

se que esses rituais difundidos pelo Quilombo Mel da Pedreira/AP não se efetivam

no campo dos quilombos dos tradicionais.

A partir dessa evangelização novas práticas se instauraram, principalmente

em relação às questões de cultura e identidades, haja vista que hábitos e costumes

se modificaram, até porque essa é uma exigência decorrente desse processo de

trocas, que ocorrem diante de fatos historicamente e socialmente construídos ao

longo da trajetória dessa comunidade.

Essa é a cultura dos moradores do Quilombo do Mel da Pedreira/AP que

reverencia através dos cultos evangélicos Jesus Cristo, conforme se mostra na

seguinte figura:

FIGURA 19: culto evangélico na comunidade quilombola Mel da Pedreira/AP

Fonte: Sonia Sacramento, 2013.

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Tomando como base essa premissa verifica-se que a religiosidade é o fator

que estabelece culturas e que por sua vez, constituem as identidades. Sendo o

campo religioso fértil para essa ocorrência. Isto porque, como muito bem coloca

Sahr (2011, p. 57): “A religião é uma interpretação do mundo e representa uma

forma de conhecimento”. Logo, há de se considerar que os hábitos e costumes são

resultado desse conhecimento.

Nesse contexto, vale elucidar que como escravos, no campo, como não

tinham muita organização, os escravos viviam/seguiam modelo católico, os quais

foram assujeitado por muito tempo. Dançavam para os santos, entre os quais

estavam o São Benedito, ao ritmo do que se denominava de Oxumaré. O que os

impedia de cultuar outros deuses de forma mais aberta. Por isso, acabavam por

substituí-la por santos da Igreja (AUGRAS, 2008).

Diante desse contexto, é possível aferir que aos poucos a religião adotada

pelos negros foi se modificando, principalmente quanto as suas práticas, pois

quando conseguiram sair das senzalas e formaram os Quilombos passaram a

realizar seus rituais, muitos deles centrados nas raízes de seus ancestrais. Pois, não

há como negar que essas raízes estão entranhadas nesse caso, na história, na

cultura e por que não dizer na vivência dos afro-brasileiros (NASCIMENTO, 2009).

Assim, fica evidenciado que os Quilombos refletem essa vivência, essa

cultura e história através de suas práticas. Sendo a prática religiosa uma forma de

situar suas escolhas. O que implica dizer que essas mudanças quanto aos hábitos e

costumes se ritualizam a partir das crenças e estratégias utilizadas para se organizar

socialmente, historicamente, culturalmente, politicamente não exatamente Quilombo,

mas como sujeitos desses processos. Contudo, não se pode deixar de ressaltar

algumas formas de cultura são resultados de algumas imposições principalmente

quando se trata de cultura religiosa. Logo, as trocas culturais trazem a tona outras

identidades, culturas e vivências via evangelização.

3.2 OS CAMINHOS DA EVANGELIZAÇÃO DA COMUNIDADE DO MEL DA

PEDREIRA – ENTRE MEMÓRIAS E DISCURSOS

A comunidade quilombola do Mel da Pedreira/AP a partir de 1968 se

converteu a religião evangélica. O que os levou ao desenvolvimento de uma cultura

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toda voltado para o evangelho. Condição essa centrada não mais em rituais afro-

brasileiros e festejos aos santos, conforme preceitos dos colonizadores e absorvidos

pela maioria das populações negras, principalmente aquelas que viveram no período

escravista.

Para entendermos esse cenário faz-se necessário uma breve reconstituição

do processo de evangelização no Brasil, tendo como referência a chegada dos

colonizadores, já que o primeiro contato da população foi com a religião católica com

a chegada das missões, que tinham nos jesuítas as principais propagadoras da

chamada fé cristã.

Oliveira (2008, P. 9) pontua de forma precisa como se desencadeou esse

processo ao referenciar que:

O Brasil nasceu à sombra da “cruz”, esta afirmação dos historiadores Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio, tem um sentido acentuado, o Brasil enquanto colônia da metrópole portuguesa nasce sobre a proteção da santa cruz católica e ao mesmo tempo sob o domínio do vasto império ultramarino português. A religião dos descobridores foi trazida em suas caravelas para que as novas terras descobertas pudessem receber a benção de Deus e sua infinita proteção. Ao mesmo tempo, que esta proteção era invocada a Coroa Portuguesa utilizava a religião como um instrumento de suma importância para o projeto colonizador que veio a se desenvolver nas terras do novo mundo português.

Esse recorte situa que o Catolicismo foi à porta de entrada para uma

formação religiosa da população brasileira, muito embora saibamos que a priori isto

estava relacionado à conquista de novos territórios e propagação do Cristianismo,

que vinha perdendo espaço para o Protestantismo. Assim, a igreja torna-se

propagadora desse projeto sob a palavra santa do evangelho (OLIVEIRA, 2008).

Foi sob essa égide que começou o processo de evangelização no Brasil.

Contexto esse relevante para entendermos o processo de conversão de muitos

grupos a religião protestante (evangélica).

É pertinente que se elucide que a religiosidade compreendeu um dos

elementos importante para a formação da cultura brasileira, pois o contato com o

Catolicismo, Protestantismo, com as religiões de matriz africana possibilitou a

aquisição de novas formas de viver à medida que novos hábitos e costumes foram

sendo inseridos. No que tange as comunidades Quilombolas essas mudanças vem

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ao longo do tempo se realizando através do batuque, das festas de santos e dos

cultos evangélicos. Logo, a cultura se faz e se recria a partir do movimento de

interações trazidas pelas religiões.

A imagem abaixo reproduz o marco inicial da chegada do Catolicismo no

Brasil, cujo significado pressupõe o tempo de uma evangelização centrada nos

ensinamentos propagados pela igreja cristã.

FIGURA 20: primeira missa realizada no Brasil

Esse momento representa a primeira missa realizada em solo brasileiro por

sacerdotes e religiosos. Missa essa assistida pelos índios, que seguiram os rituais

dos portugueses. Sendo a cruz o símbolo desse território religioso sob o qual se

abriga o Catolicismo (Revista Arautos do Evangelho, 2004).

Observa-se que no âmbito desse processo buscam-se novos adeptos para

o Cristianismo, e que o Catolicismo passou a ser parte da cultura local, nesse caso

do Brasil. Logo, a tradição católica se constrói a partir de um elemento simbólico

que até hoje perdura, cujo sentido e papel se autodefinem a partir do pensamento

de Boxer (1969, p.227):

Nesse sentido, a presença da cruz é elemento indispensável à missão do povo português que, auto-afirmando-se como “alferes da

Fé” viii[viii][viii], tomavam-na como o principal objeto de devoção e vinculação com o sagrado. Além disso, a cruz que é um símbolo cuja

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presença é atestada em variados contextos desde a mais alta Antiguidades [ix][ix], assumira ao longo da História uma gama de mobilidades e significados específicos, sobressaindo em todos eles, à relação com o sentido de orientação. Seja este no aspecto espacial/temporal ou, ainda, no amplo sentido místico que fazia dela uma grande via de comunicação, o cordão umbilical jamais cortado entre o cosmo e o centro original x[x][x]. Assim, essa mobilidade em relação à cruz era constante e instaurou-se na nova terra através do ideal de “conquistar e libertar o gentio” presente já no primeiro documento oficial sobre o achamento do que viria ser o Brasil xi[xi][xi].

Subtende-se assim, que o processo de evangelização no Brasil é resultado de

toda uma dinâmica vivida pela maioria dos países colonizados pela Colônia

Portuguesa. É uma história que dialoga com muitos contextos advindos da vontade

de muitos países se tornarem ricos e soberanos. Dessa forma, a evangelização se

tornou uma ferramenta de grande valor para consolidar esse processo. Descobre-se

uma nova terra, que apresenta fortes indícios de que não conhecem seus criadores.

A descrição de Vainfas (1997, p. 26 apud Lenz, 2000, p. 14) traça um perfil do

processo que compreendeu a História da evangelização:

A História da evangelização do Brasil persegue dois notáveis desafios missionários, separados entre si por três séculos. O primeiro desafio é católico: encontra-se na carta de Pero Vaz de Caminha dirigida a Dom Manuel I, o Venturoso, rei de Portugal. O segundo desafio é protestante: encontra-se no precioso diário de Henry Martyn. Os dois desafios são sintomáticos: enquanto Caminha, em 1500, talvez com 50 anos, menciona a necessidade de vir de Portugal algum clérigo para batizar os índios, Martyn, em 1805, com 24 anos, menciona a necessidade de vir, de qualquer lugar, algum missionário para pregar “a doutrina da cruz”. Os missionários católicos esforçaram-se para batizar o maior número possível de indígenas, negros e crianças brasileiras, com ou sem catequese suficiente. Os missionários protestantes esforçaram-se para anunciar o sacrifício vicário de Jesus ao maior número possível de brasileiros.

Em relação a essa proposição se evidencia que o processo de evangelização

se realizou a através da igreja missionária católica. Demonstram-se os caminhos

percorridos para a colonização do território, bem como as práticas religiosas a serem

seguidas. Sem dúvida, a partir dessa dinâmica o Cristianismo torna-se a força

promotora para a instalação de uma nova cultura, a dos colonizadores. Nessa

perspectiva, vale ressaltar que esse movimento da propagação não fora de todo de

cunho apenas religioso, mas político também à medida que trouxe em seu bojo

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também o propósito de organizar politicamente a nova terra, além da agregação de

novos fies.

Muitas foram às estratégias para a difusão dessa doutrina religiosa, uma

delas correspondeu à ocorrência do batizado, mais especificamente dos traficados,

cujos nomes eram trocados (na sua maioria eram nomes de santos) para que os

mesmos a partir daquele momento seguissem os pressupostos da igreja católica,

principalmente no período da colonização (ANDRÉ, 2008).

Esse cenário situa que a evangelização primeira ocorrida no Brasil foi de base

católica, principalmente se considerarmos a chegada e o trabalho das missões

nesse país, cujo papel das mesmas compreendeu expandir o Cristianismo.

Seguindo a essa cronologia vale ressaltar que a religiosidade no Brasil foi

assim desenvolvida segundo Lenz (2000, p. 15):

Grosso modo, é possível dividir a história da evangelização do Brasil em três períodos distintos e naturais: nos séculos XVI, XVII e XVIII, os missionários católicos cristianizaram o país; no século XIX, os missionários protestantes evangelizaram o país; e, no século XX, os missionários pentecostais pentecostalizaram o país (com o auxílio dos carismáticos católicos). No início ocorreu a pré-evangelização, no século seguinte, a evangelização propriamente dita e no último século, a pós-evangelização.

Fica evidenciado no cerne dessa dinâmica que a Evangelização no Brasil foi

resultado da proposta de colonização. Contudo, cada seguimento religioso seguiu as

orientações preconizadas por cada doutrina. Logo, o Catolicismos, Protestantismo e

o Pentencontimos constituíram-se a base da formação religiosa do povo brasileiro.

Assim sendo, faz-se necessário então traçar também um perfil da trajetória

do Protestantismo, no sentido de verificar como essa influenciou na formação

religiosa da população brasileira, muito embora saibamos que quando essa foi

instaurada no Brasil já havia o predomínio da igreja católica, difundida através da

catequização dos índios, escravos e crianças.

Dessa forma, cabe aqui destacar que o Protestantismo pode ser situado a

partir de dois momentos:

O primeiro diz respeito à fase de estagnação do catolicismo, mas precisamente no período Pombalino, em decorrência da expulsão dos jesuítas, bem como o confisco dos bens dos mesmos. O que

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consequentemente, culminou com certa laicização do sistema vigente naquela época. Também corroboravam para que o catolicismo fosse trocado o fato do Brasil enfrentar sérios problemas no campo da educação com destaque para a falta de bibliotecas públicas, de universidade e ainda de um ensino primário eficiente. O segundo momento perpassa ao período após a independência do Brasil e a promulgação da Constituição de 1824. Foi nesse momento que se legitimou a liberdade religiosa. O que culminou com a chegada dos missionários protestantes, mais precisamente na segunda metade do século XIX. Passou assim, o protestantismo a ser conhecido como a religião da palavra, sendo a Bíblia a principal mediadora desse processo. Cabe ressaltar ainda o primeiro missionário metodista foi Daniel Parish Kidder, considerado esse o primeiro correspondente da chamada Sociedade Bíblica Americana no Brasil. Defendia ideia que essa, isto é, a Bíblia deveria ser usada como um manual de conduta (MASSOTI, Roseli. Disponível www.mackenzie.br/fileadmin/.../EST/.../G).

Essa contextualização toda é muito importante para que possamos

compreender o fenômeno que ocorre na comunidade do Mel da Pedreira/AP, tendo

em vista o fato de seus habitantes viverem sob a cultura da religião evangélica. O

que mobiliza para que se descreva de que forma, a evangelização ocorreu no

território amapaense, mais especificamente na comunidade do Mel da Pedreira,

tendo como fonte a fala de seus moradores.

Para realizar essa discussão reproduzimos a narrativa protagonizada pelo

senhor Alexandre (um dos moradores mais antigos da Comunidade Mel da Pedreira

em entrevista em 2011) cujo relato se constitui em informações guardadas pela

memória desse morador. Sendo essas importantes para entendermos a história do

presente. Demarca-se esse cenário a partir da seguinte narrativa: “em 1968 fomos

evangelizados pela Igreja Presbiteriana do Brasil e aceitamos mudar de

denominação religiosa, passamos a evangélicos, a partir de então... e foi o que

agente conseguiu construir até agora”.

Essa proposição pontua como a religião evangélica se instalou nessa

comunidade, o que evidencia que a conversão dessa comunidade é resultado

conforme fora descrito anteriormente do processo de colonização. No caso do

Protestantismo tomou força com o enfraquecimento do Cristianismo. Para tanto, há

de se aferir a esse respeito que essa foi uma tendência que levou muitas pessoas a

adotarem a religião evangélica como parâmetro para sua vivência.

Nota-se assim, que a evangelização dessa comunidade compreende a um

processo que envolve muitas questões, entre as quais está o reconhecimento das

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pessoas frente ao fato de que o caminho da salvação estava na evangelização. Não

houve, portanto, resistência por parte dos quilombolas quanto ao engajamento a

essa doutrina. Condição essa que fica bastante clara na fala de um dos membros

dessa comunidade, o senhor Elizeu Cirilo (2010) ao colocar que:

pra agente é a coisa mais importante que tem é o evangelho, que agente sabe através do evangelho nós conhecemos a bíblia, conhecemos Jesus, isso foi a melhor coisa que aconteceu na historia dessa comunidade, conhecer a Deus... Agente tem algumas dificuldades por esse motivo, de sermos evangélicos, acho que no Estado do Amapá é a única comunidade, que na totalidade é evangélico... os que não atuam na igreja, mas são desguiado, mas a religião mesmo que predomina é o evangelho e por esse motivo, agente sofre alguns preconceito como as outras religiões... Somos travados em algumas coisas, mas em outras agente consegue caminha bem... mas é muito importante pra nós, é a coisa mais importante pra nós é o evangelho.

Essa narrativa revela que a evangelização no Quilombo do Mel da Pedreira

teve segundo os moradores um impacto positivo, muito embora alguns entraves

tenham sido identificados quanto ao reconhecimento à legitimidade de ser Quilombo,

pois até então, a identidade de Quilombo não estava associada ao Protestantismo,

mas ao Catolicismo e a matriz religiosa que predominava nos Quilombos

tradicionais, na sua maioria de raiz africana.

A evangelização da Comunidade do Mel da Pedreira/AP foi feita segundo

senhor Alexandre Ramos (2010): “chegou um missionário aqui... era igreja

Presbiteriana...ele deu prá nos a bíblia e nos ensinou o verdadeiro sentido da

palavra do senhor. Foi a partir desse momento, que se manifestou o interesse pela

religião evangélica”.

Em relação a esse processo verifica-se que a religiosidade nesse caso se

constitui um aporte significativo no cerne das trocas culturais no que trata da

formação de uma determinada identidade. Pois, conforme relato se evidencia novos

modos de vidas ao se adotar uma determinada cultura, tendo em vista que o

ensinamento bíblico recebido ao ser transmitido difundiu novas formas de

comportamentos. Sendo essa não só o livro do evangelho, mas lugar de

determinação de comportamentos que geram novas formas de pensar agir e dizer.

Nesse contexto, destaca-se o pensamento de Laplantine (1999, p.120) que

nos dar a dimensão do sentido da cultura nesse processo ao defini-la como:

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O conjunto de comportamentos, saberes e saber-fazer característicos de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de aprendizagem e transmitidas ao conjunto de seus membros.

Essa é uma questão que demonstra ser a cultura resultado de um processo

de aprendizagem e de aquisição, tendo em vista o conceito postulado por

Laplantine, que ampliamos pelo que também se recria para atender as expectativas

de um determinado grupo, como ocorreu com a Comunidade do Mel da Pedreira/AP

ao estabelecer outras atividades de cultura, que não às dos rituais, do batuque, mas

as de louvor, que demonstram ser a razão maior da sua existência: Jesus. Sendo a

igreja o espaço de diálogo entre os quilombolas e a força Divina.

Assim, pode-se dizer que a igreja representa, não só espaço de louvor, mas

também de aprendizagem do evangelho. É nela que ocorre a leitura e o estudo da

Bíblia.

Tem, portanto, valor simbólico de lugar de encontro com Deus, com valores

que lhes trarão a salvação, pois segundo os quilombolas dessa comunidade, antes

viviam sob a cultura do homem, agora querem viver sob os princípios de Deus,

conforme relatou à senhora Maria Helena (2012) ao se referir ao processo que

culminou com a evangelização da comunidade do Mel da Pedreira/AP:

Eu era católica depois passei a ser evangélica... eu não tinha conhecimento sobre o evangelho, mas um dia Deus tocou a minha vida... aos 14 anos fui pra cidade estudar e lá meu pai teve uma enfermidade muito grande, também foi pra cidade morar e lá encontramos uma família... um dia agente estava em casa né!... num domingo e vem umas pessoa andando com a bíblia, com um livro preto de baixo do braço... meu tio pega e chama eles, ai disse: vocês são crente?... ai, eles respondeu: somos... ai, meu tio disse: eu desejo aprender a bíblia... eu quero aprender a bíblia... ai, eles disseram: se você quiser agora...agora mesmo podemos começar a ler a bíblia, instruir como é que se ler a bíblia... pra você aprender o sentido da palavra... ai, começamos a estudar a bíblia... depois conhecemos o pastor Áureo, que na época era o pastor lá da igreja central, primeira igreja pioneira presbiteriana... e o pastor Áureo, eles frequentavam essa igreja... e eles disseram: se você quiser, se vocês quiserem, nós vamos trazer o pastor aqui... ai, meu tio disse: pode trazer o pastor... convidaram o pastor e ai, o pastor foi lá com agente... ai, começaram esclarecer pra nós o que era o sentido do evangelho.

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Com base nessa assertiva vale destacar que o início da evangelização da

comunidade do Mel da Pedreira se deu a partir do contato com os missionários. Foi

assim, que o protestantismo chegou a muitas comunidades, através desses agentes,

considerados os responsáveis em difundir o evangelho. Para assim, conquistar

novos adeptos para a religião, ora denominada evangélica. Essa trajetória retrata o

percurso como essa comunidade adotou essa religião.

Assim, fica subtendido que essa trajetória é resultado de um processo maior,

que foi a expansão das religiões a partir de matrizes diferenciadas. Sendo o

Protestantismo uma das religiões que depois do Catolicismo foi a que mais se

propagou.

3.3 A IGREJA COMO ESPAÇO DE DIÁLOGO PARA A COMUNIDADE DO MEL DA

PEDREIRA

Ao se discutir o impacto das trocas culturais na comunidade do Mel da

Pedreira/AP verificou-se que um dos principais resultados desse processo diz

respeito às práticas religiosas, tendo em vista mais especificamente em relação à

realização dos rituais, muito embora, os quilombolas que nela vivem se intitulem

descendentes da matriz africana mediante ao contato com outras culturas mudaram

traços daquela matriz de origem, isto é a africana. Identidade essa reconhecida

pelos membros dessa comunidade, com destaque para a narrativa do senhor

Benedito Ramos (2012): “Trazemos no sangue essa descendência de negro vindo

da áfrica... é trazer as culturas do nosso povo... trouxe outras que surgiram... ser

quilombola é história”.

Essa narrativa revela haver uma relação de pertencimento étnico com a

matriz africana. Contudo, a pesquisa apontou que em relação à religiosidade a

comunidade do Mel da Pedreira/AP segue outros parâmetros. Isto porque, ao

contrário dos quilombos tradicionais é evangélico. Sendo a igreja o principal espaço

da difusão da cultura evangélica e não mais os rituais.

Diante desse contexto, é pertinente destacar para a compreensão dessa

prática o que preconiza consolação André (2008, p. 81):

As religiões africanas na América tem toda uma base comum, resultando do amálgama das várias matrizes culturais para cá trazidas pelo tráfico atlântico com práticas do catolicismo e de

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religiões ameríndias, de origem sudanesa e banta. Fenômenos e práticas como transmissão da força vital através de sacrifícios, o transe, danças dramáticas e cânticos ao som de tambores, bem como o uso de cores e adereços simbólicos etc. São características comuns a quase todas elas.

Essa prática inexiste nessa comunidade Mel da Pedreira. Sendo a igreja o

novo espaço de diálogo para interação é representação de suas crenças e

costumes. É no seu interior que são realizadas as manifestações pelas pessoas que

nela vivem. A igreja é tida como o espaço sagrado, o qual Rosendah (2011, p. 41) o

define como a raiz do que se denomina de fato religioso. É através dela que se

estabelece uma relação de poder, principalmente no campo religioso.

A partir dessa assertiva verifica-se que a igreja representa esse lugar

sagrado. É onde se realizam as práticas religiosas. Assim sendo, esse é um debate

que já há muito tempo se vem tendo, quanto ao que representa a igreja como

espaço religioso, conforme preconizou Durkheim (1968, p. 47, apud Rosendahl e

CORRÊA, 2001, p. 13):

A igreja representa o lugar de culto e recolhimento, sendo verdadeiramente o símbolo do sagrado e de sua permanência. O espaço religioso favorece as relações entre o sagrado e o profano. As coisas sagradas estão no centro de um sistema de interdição e tabus que são acessíveis unicamente aos padres e apresentam entre si as relações de coordenação e subordinação, que são veneradas pelos crentes reunidos numa comunidade moral chamada igreja.

Frente a esse conceito constata-se ser esse espaço um território mediador

das práticas religiosas, vista que nela se estabelece crenças e valores. É através

dela que se institucionaliza a religiosidade. Sendo uma de suas funções satisfazer o

sentimento religioso de seus filiados (ROSENDAHL e CORRÊA, 2011).

Tomando como base esse pressuposto é pertinente que se diga ainda,

segundo Rosendahl e Corrêa (2001) que no que trada do espaço religioso três

componentes devem ser considerados: Um é o sistema semiótico (tem caráter

simbólico) da crença, o que diz respeito ao comportamento dos adeptos e o contexto

institucional (são as chamadas organizações institucionais).

A igreja nesse contexto configura-se como espaço onde as práticas

religiosas se realizam e representam como lugar de fé e sentido. Simboliza o lugar

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da religiosidade em seu âmbito profético, bem como espaço de produção dos

sentidos que organizam e estruturam uma determinada religião.

A esse respeito Joachim Wach (1990, p. 32,38,41, apud Rosendahl e

Corrêa, 2001, p. 58) diferencia três categorias de religiosidade:

A expressão teórica apresenta a forma e o conteúdo do pensamento religioso, ou seja, as ideias e ideologias sobre como o mundo é construído e como deveria ser entendido. A expressão prática religiosa se refere às atividades religiosas dos adeptos, seja na forma do culto, seja na prática individual. A expressão sociológica define as relações de poder e as estruturas institucionais da religião.

Subtende-se a partir desse contexto que a religiosidade agrega uma série de

papéis e que esses se efetivam no espaço das igrejas através das práticas

religiosas.

No caso da Comunidade do Mel da Pedreira/AP a igreja estabelece

questões alusivas a de como o mundo foi constituído e como deve ser pensado a

partir da lógica evangélica. Sendo essas práticas realizadas de duas formas: através

de cultos e individuais conforme podemos identificar na narrativa do Sr. Elizeu Cirilo

(2012), que fez a seguinte alusão à igreja:

Acho que o Estado do Amapá é a única comunidade, que na totalidade é evangélico... os que não tá atuando na igreja, mas são desguiado, mas a religião mesmo que predomina é o evangelho e por esse motivo, agente sofre alguns preconceito como as outras religiões... Somos travados em algumas coisas, mas em outras agente consegue caminha bem... Mas é muito importante pra nós, é a coisa mais importante pra nós é o evangelho.

Essa posição denota que a identidade religiosa assumida por essa

comunidade provoca um embate entre a tradição e a modernidade, pois muitas

comunidades quilombolas se mantêm na tradição da qual foram originários, outros

por sua vez, ainda festejam os santos. Mas, não se pode deixar de elucidar o tipo de

práticas que realizam os Quilombos evangélicos, que não consideram a tradição

como elemento de cultura, mas o evangelho, como a máxima para a construção de

sua identidade, enquanto povo de Deus.

Ressalta-se que a manifestação religiosa na comunidade do Mel da

Pedreira/AP não ocorre só na igreja como diz Enóqueo (2010) quando a ele foi

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solicitado falar quanto ao espaço de manifestações da sua religiosidade: “é lá em

casa é um ministério de oração....Deus vivo verdadeiro...lá é a principal, as vezes

venho a igreja”

A narrativa remete ao pressuposto de que a igreja é que permite esse

diálogo de como deve ser a vida a partir do evangelho de Deus. O que torna assim a

igreja o território da soberania divina. Mas, que também não deixa de ser lugar de

ideologias e transmissora de condutas a serem seguidas.

De acordo com Olson (apud Garrido, 2006, p. 380) vale considerar que:

As igrejas protestantes apresentam seus dogmas, ou conjunto das doutrinas e filosofias tidas como imutáveis e imprescindíveis. Os dogmas protestantes englobam todas as suas ramificações, diferem da Igreja Católica, e têm princípios básicos como: sola gratia et fides

(a salvação pela graça mediante a fé), sola Scriptura (as Escrituras acima de todas as demais autoridades da fé e da prática cristã) e o sacerdócio de todos os crentes.

Revela-se assim, ser a igreja o espaço o qual se busca a salvação, mediante

o culto a Jesus, corresponde ao lugar onde se postula a fé. O sentimento de

adoração reafirma a crença dos fies frente à doutrina evangélica. É, portanto, a

igreja o símbolo, da religiosidade. Nela se efetivam as práticas religiosas, bem como

se reafirmam os dogmas que orientam cada religião. É considerada como lugar

sagrado.

Partindo-se desse princípio vale elucidar que a igreja na comunidade do Mel

da Pedreira é tida como lugar de encontro, de aprendizagem dos estudos bíblicos

(as crianças têm aulas sobre o evangelho, às reuniões de famílias, as

comemorações, as decisões do rumo da comunidade). É, portanto, essa instituição

um espaço que se faz e se refaz sob a lógica de uma cultura evangélica.

FIGURA 21: momento de confraternização realizado aos domingos antes do início

do culto.

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Fonte: Sonia Sacramento, 2012.

Esse é um momento de confraternização entre os membros da comunidade

do Mel da Pedreira/AP, que ocorre na área externa da igreja, nos momentos que

antecedem o culto. A igreja também funciona como lugar de encontro entre as

famílias. Esse momento tem como finalidade estreitar os laços entre os moradores

da comunidade. Sendo então, a igreja o templo que agrega o estabelecimento de

uma relação sócio afetiva, com a finalidade de consolidar os princípios para o qual

essa foi criada: a evangelização, que se cristaliza através dos cultos evangélicos.

Na igreja também se realizam estudo bíblicos em que participam as crianças

da comunidade. Nessas aulas se estuda o evangelho, para que as crianças desde

cedo aprendam a palavra de Deus. Por isso, a presença de um grande número de

crianças na igreja, conforme mostra a imagem abaixo.

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FIGURA 22: A Igreja de Evangelização a partir dos Estudos Bíblicos

Fonte: Sonia Sacramento

A pesquisa revelou que a igreja também é um espaço de aprendizagem, que

se efetiva através da prática do estudo do evangelho, sendo a Bíblia o livro que o

levará a evangelização. O que aponta para o fato que todas as atividades realizadas

no interior dessa comunidade estão voltadas para os objetivos da cultura evangélica.

O que implica dizer que esse processo impacta consideravelmente no modo de viver

dos moradores dessa comunidade. A Igreja sacraliza o que para os evangélicos do

Mel da Pedreira/AP é a razão de sua existência: Jesus. Essa é a principal filosofia

de um Quilombo evangélico, cujo Protestantismo influenciou significativamente.

Há nesse contexto de se considerar que o Protestantismo segundo Mendonça

(1984: 94): “constituí um ‘modo de vida’ e aceitá-lo nos seus princípios de crença

implicava em mudança de padrões de cultura”. Assim, a igreja se torna também

espaço que determinam não só valores e crenças, mas também comportamentos,

que se estabelecem através dos rituais evangélicos e do conhecimento bíblico. O

que demanda da igreja práticas religiosas que estabeleçam novos padrões culturais.

Foi assim, que a igreja se tornou um território não só religioso, mas também

de normatização de valores e crenças. À medida que é nela que as pessoas

recebem orientações de como devem viver a partir dos desígnios do evangelho.

A filosofia do protestantismo deve-se uma vida regrada, sem bebida, sem

contato com o mundo das festas ou qualquer outra forma de conduta que fira a lei do

evangelho. Ideia essa que se revela na entrada da igreja em que um cartaz diz:

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FIGURA 23: Princípios a serem seguidos segundo o evangelho

Fonte: Sonia Sacramento (2012).

É, portanto, papel da igreja pregar o evangelho como forma de estabelecer

condutas que de alguma forma influenciem no modo de viver da comunidade.

Determina ser a salvação possível a partir da redenção frente ao que determina a

palavra de Deus. Busca-se assim, levar os fies ao reino do senhor, sem as mazelas

dos pecados existentes no mundo terreno.

A igreja da comunidade do Mel da Pedreira/AP de fato se revela um espaço

diferenciado, pois as práticas religiosas nela realizada demonstra uma cultura

centrada não mais em valores da tradição, mas nos ensinamentos bíblicos. Fato

esse que exterioriza que a religiosidade também é lugar de cultura, considerando as

identidades que se formam a partir do que nela se legitima como se tornar homens e

mulheres de fé no sentido de ser abençoado com a salvação. Por isso, dedicam

grande parte de seu tempo a reverenciar aquele que os salvará: Jesus. O que faz da

igreja o lugar apropriado para manifestar sua fé. Faz parte da cultura local o culto

evangélico, sendo a igreja nesse caso, espaço de fortalecimento das crenças e

valores dogmatizados a luz do evangelho.

Esse propósito da igreja se evidencia na fala de Aldinéia Cirillo ao situar que:

“mudou muita coisa na comunidade com a chegada da igreja Presbiteriana .... antes

não conhecíamos a palavra de Deus e hoje ... adoramos somente Ele”. Revela-se

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nesse contexto, ser a igreja o espaço que permite esse diálogo dos fies com aquele

que consideram seu salvador, nesse caso, Jesus.

FIGURA 24: Culto Evangélico – momento de adoração e reverencia a Jesus

Fonte: Sonia Sacramento, 2012.

A igreja na comunidade do Mel da Pedreira/AP traz em seu bojo a lógica

propagada pelas matrizes religiosas protestantes, mas especificamente as

difundidas pelos presbiterianos, cuja base é a busca pela salvação através do que

determina o evangelho. Constatou-se a partir da pesquisa que a forma de ter a

plenitude de estar no reino do senhor é abdicando do modo de vida centrado nos

costumes tidos como “mundanos”. Propõem-se um novo modo de vida, centrado na

palavra de Deus, nos ensinamentos bíblicos. O que torna a igreja um lugar sagrado

destinado a cumprir o papel de salvaguardar a identidade de um homem temente a

Deus.

Assim, a igreja no Quilombo do Mel da Pedreira/AP faz essa transição da

cultura afro para a cultura evangélica. Mudança essa que se deu de acordo com o

Sr. Alexander Ramos (2012) com a chegada da igreja presbiteriana quando esse

referencia que: “mudou muito ... o papai baixava o espírito ... era macumbeiro. E aí

em 68, quando veio os evangélico... ouviu a verdade se converteu por que a bíblia

diz conhecei a verdade. Ele foi libertado dos encantadores”.

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Diante desse fato constata-se que a igreja é o lugar onde as trocas culturais

se efetivam através das mudanças de comportamentos, hábitos e crenças a partir da

evangelização. Deus passa a ser o centro de tudo.

Um dado importante a se elucidar ainda em relação à igreja presbiteriana, é

que nela não há imagem de nenhum santo. O que se explica através da fala de seu

Alexandre quando se perguntou se era devoto de algum santo e ele respondeu:

“não, por que a bíblia diz que só a Deus adora né...”. Essa é uma informação que

demonstra a existência de trocas culturais no que diz respeito ao processo de

evangelização, sob os dogmas do protestantismo como muito bem pontua Massotti

(2013, p. 6):

Os protestantes sempre recusaram qualquer pretexto de mediação da igreja, até mesmo por meio dos sacramentos. A única autoridade reconhecida pelos protestantes em matéria de fé e de costumes é a palavra de Deus, constante das Sagradas Escrituras. A palavra atua por seu contato pessoal mediante a ação do Espírito Santo, engendrando a fé, e com ela a salvação. Daí a importância dada pelas igrejas reformadas à pregação da palavra de Deus, à tradução da Bíblia para as línguas vernáculas, à interpretação pessoal ou ao livre exame dos textos bíblicos.

Essa é uma prerrogativa que justifica o fato dos quilombolas do Mel da

Pedreira/AP terem adotado um estilo de vida todo voltado para a adoração a Deus,

seguindo as diretrizes das doutrinas da religião protestante caracterizada como

aquela que levará ao encontro com Cristo. Volta-se para práticas que vislumbra a

salvação.

Denota-se uma oposição entre o mundo terreno e o espiritual. O que

demonstra ser a religiosidade uma das principais formas deles encontrarem uma

forma de vida centrada na crença de que seu destino está ligado à forma como vive

no plano terreno. Por isso, precisam ser tementes a essa nova ordem de que é

preciso ter um comportamento diferenciado daqueles vividos nos quilombos

tradicionais: a dança, os rituais de umbanda, o batuque, o marabaixo, as festas de

santos, a bebida, a contenção no modo de vestir. Só há uma forma de receber a

salvação adorando a Deus: dedicando-se exclusivamente ao exercício do

evangelho. Sendo a igreja o espaço que permite esse diálogo com Deus.

Em síntese, destacamos a palavra de um quilombola cuja fala nos dá a

dimensão do que é a vida num Quilombo evangélico ao falar do papel da igreja e o

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significado da evangelização na vida da população da comunidade do Mel da

Pedreira. Contudo, observa-se o desejo do mesmo não ter se identificado, por opção

em entrevista realizada em 2013, mas que não podemos deixar de citar como fonte

para essa discussão. Disse ele:

A importância à educação para uma vida melhor, tanto social quanto material né!... pra agente aprender administrar o que Deus deixou pra nós... se agente cultivar a terra, agente vai comer o melhor dela... então agente busca esse melhor... Nesse trabalho estamos adquirindo algo, que nós imaginaríamos um dia ter e outras não imaginaria, mas como melhor condição de trabalho... e o social quer nos levar é conhecer também as outras comunidades, conhecer os órgãos do governo também... isso tem sido de muita importância pra nós... agente vive uma outra vida agora.

Pontua-se nessa fala que o trabalho de evangelização realizado pela igreja é

de cunho educativo e ao mesmo tempo interativo, pois trouxe para essa comunidade

maior proximidade com o reino de Deus. Uma forma de vida mais centrada, maior

contato com outras instituições, maior valorização dos bens da natureza, ao mundo

do trabalho. É um universo de conquista e legitimação de uma cultura que sobrepõe

às realidades anteriores, ou seja, aquelas existentes nos Quilombos tradicionais.

Não é uma negação do que foram ou fizeram antes de se tornarem evangélico, mas

uma nova forma de interagir com o universo da religiosidade. Existe uma satisfação

dos quilombolas diante desse propósito de se firmarem como evangélicos.

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4 - CONCLUSÕES

Quero iniciar minhas considerações falando da minha satisfação pessoal,

acadêmica e profissional em ter realizado essa pesquisa. Primeiramente, por ter

conhecido uma realidade do meu Estado (Amapá), pois, até então a única referencia

de Quilombo era a do Curiaú.

A primeira delas foi que a partir desse estudo, sei que o Amapá tem hoje, 153

famílias quilombolas, sendo que muitas delas não estão tituladas e outras aguardam

processo de regularização. Segundo, foi relevante por ter me colocado em contato

com uma vasta Literatura sobre Quilombo produzida no campo da academia.

Terceiro, pela riqueza de informações a respeito de cultura e identidade, que sem

sombra de dúvida, vão me dar suporte para a minha vida profissional. Sendo essas

duas consideravelmente, importantes para o exercício de minha prática pedagógica,

pois não há como trabalhar a linguagem sem pensar no contexto em que essa se

produz. Pois, conforme revelaram os dados: o tambor, a Bíblia a Guitarra fora de seu

contexto, é apenas mais uma palavra, mais quando foram levadas para o universo

dos Quilombolas seus sentidos se expandiram de tal forma, que se formaram redes

de sentido capaz de constituir toda uma história e cultura de um grupo: os

Quilombos.

Com base nos dados coletados a partir da pesquisa e da questão problema

da qual partimos: qual o impacto das trocas culturais no cotidiano da Comunidade do

Mel da Pedreira/AP frente à mudança no campo da cultural ao se tornarem

evangélicos? Revelaram os dados que:

Os sentidos a respeito do que são Quilombos se expandiram. A forma de

organização se modificou, as práticas culturais, algumas passaram por processo de

hibridização, o que leva a produção de outras caracterizações de Quilombos. Não

sendo mais esses marcados apenas pelos traços de ancestralidade, mas também

de religiosidade, como é o caso da comunidade Mel da Pedreira/AP bem como

outras que se evangelizaram.

A concepção de Quilombo está engendrada nas questões de cultura,

identidade e religiosidade. Fato esse que demonstra não ser mais possível aferir que

os Quilombos são resultado de um processo homogêneo e único, filiados apenas às

características de seus ancestrais, na sua maioria as de ordem africana. Existem

outros elementos que particularizam determinados quilombos. Conforme

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demonstraram os dados na comunidade do Mel da Pedreira os hábitos são outros,

comparados a outros Quilombos existentes no Estado do Amapá: Curiaú, Lagoa dos

Índios, São Pedro dos Bois, tendo em vista as festas de batuque, as festas de

santos, os cultos religiosos, o uso de bebida.

Outra constatação revelada através da pesquisa é que o processo de

evangelização da Comunidade do Mel da Pedreira/ trouxe novos hábitos e valores à

medida que de 1954 a 1968 manteve-se a luz da tradição da herança cultural

recebida, nesse caso de seus ancestrais. Realizavam festas, tinham como

referência os santos como representantes da fé, tido como seu interlocutor para com

o mundo tradicional, não se sentiam pessoas pecadoras, nem mesmo tinham

qualquer restrição às festas de batuques, ao modo de vestir ou de rezar. Já a partir

de 1968, essa realidade mudou, até porque os valores trazidos pelo Protestantismo

defendem a ideia de uma vida regrada, sem a adoração a santos. Parte da premissa

que é Jesus o único Salvador. Condição essa que denota uma troca cultural quanto

ao processo de manifestação, mais especificamente quanto às práticas culturais,

quando se troca os rituais pelos cultos evangélicos. O que implica em dizer que

existe aí uma transposição de uma cultura em detrimento de outra.

Outro aspecto importante a se elucidar é que a troca do tambor pela guitarra

simboliza que a religiosidade tem a função de mudar não só crenças, mas também

comportamentos. Pois, por séculos o tambor marcou a tradição da cultura

quilombola. É ainda assim na maioria deles, isto é, dos Quilombos. Sendo o uso da

Guitarra um fenômeno particular ao Quilombo do Mel da Pedreira/AP. Constata-se

assim, que representa esse instrumento uma forma de enfrentamento dessa

comunidade contra a resistência encontrada pelo fato de terem mudado sua tradição

religiosa. Pois, existe certo preconceito em relação às populações evangélicas. A

guitarra é símbolo de um movimento revolucionário o Rock. Assim sendo, a

comunidade do Mel da Pedreira/AP assume a evangelização como um movimento

de evolução para uma nova vida.

Foi singular, portanto, identificar através dos resultados ser a Bíblia o

instrumento para difundir o ideal evangélico. É a porta de entrada para esse novo

mundo. O evangelho valida as novas práticas que se instauram no interior desse

Quilombo. Essa é mais uma troca realizada a partir da evangelização.

Constatou-se ainda, que frente a essas trocas culturais a comunidade do Mel

da Pedreir/AP passou a condicionar seu modo de vida ao que está sacralizado pelo

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evangelho. O que implica em dizer que esse foi um dos impactos gerados a partir

dessas trocas. Subtende-se assim, que essas trocas se estabelecem como forma de

se efetivar laços de pertencimento em relação ao território ocupado. Os quilombolas

passam nesse sentido a se colocar em território que transita entre o universo

espiritual e o terreno. Apega-se a palavra de Deus como meio de resistência.

Foi revelador também o fato da tensão que vivem os habitantes da

comunidade do Mel da Pedreira/AP quanto à condição de serem evangélico e ao

mesmo tempo terem que manter traços da tradição de Quilombo. Essa foi uma das

prerrogativas para que esse pudesse receber o título da terra. De fato as

circunstâncias. Esse é mais um dos impactos decorrentes das trocas culturais nele

ocorrido.Identificou-se ainda, a partir dos resultados que as trocas culturais ocorridas

nesse Quilombo perfazem um cenário diaspórico, pelo fato das culturas advindas do

universo do protestantista, da Guitarra que veio do contato de outras culturas.

Condição essa que influenciou significativamente na formação contemporânea da

Comunidade do Mel da Pedreira/AP, quanto as suas práticas culturais e religiosas.

Então, a resposta para a nossa questão problema é que as trocas culturais

resultante do processo de evangelização impactaram para o surgimento de uma

nova cultura, de outros tipos de rituais (transposição dos rituais afros para os cultos

evangélicos), as manifestações culturais deixaram de ser ritualísticas. A religiosidade

deixou de ser referenciada através das figuras dos santos. O tambor e a guitarra

demonstram a existência de dois universos: o primeiro da tradição afro e a segunda

a cultura de um quilombo hibridizado. A Bíblia personifica a existência de um novo

mundo a partir da contemplação e da oração.

Portanto, as trocas culturais se produziram para consolidar a escolha dos

habitantes dessa comunidade para pleitearem um lugar no reino do senhor, sem,

contudo, deixar de considerar a herança negra. Daí o fato de que essa comunidade

na verdade se identifica como um quilombo, mais se autointitula evangélica.

Portanto, as trocas culturais demandam não só mudanças comportamentais,

mas também políticas e organizacionais. Sendo a religiosidade nessa perspectiva

um canal para a realização desse processo à medida que hábitos e costumes

passam a ser não só uma questão de cultura e identidade, tendo em vista que

fatores como religiosidade, podem desencadear outras práticas, sociais e culturais.

São as trocas culturais lugares de construção e reconstrução de muitos saberes e

comportamentos.

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