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Solve et Coagula - arte alquímica, corpo e luz Alan Victor Pimenta 1 Resumo: Propomos imagens e palavras que desenvolvam formas alegóricas da Alquimia: uma imensidão represada em si, o corpo e sua existência manejada pelos desejos do Tempo. Este é um trabalho de criação que procura, no sentido histórico, o que o olhar deste método do passado pode nos revelar no presente sem-tempo da memória. Neste sentido, pensamentos, fotografias e versos são o centro de um atravessamento espiralado do ser e das tensões que cobrem seu corpo. Palavras-chave: Alquimia, fotografia, imaginação, subjetividade. Sob a luz, a face instante de mito e fração de sentido vir-a-ser todo o corpo Nada em movimento Assim o mundo é criado1 Amador da História, da Fotografia e do Cinema. Doutor em Educação e pesquisador do Laboratório de Estudos Audiovisuais OLHO FE/Unicamp. Docente no Departamento de Educação da UFSCar: [email protected] 100 ALEGRAR nº18 - Dez/2016 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

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Solve et Coagula - arte alquímica, corpo e luz

Alan Victor Pimenta1

Resumo: Propomos imagens e palavras que desenvolvam formas alegóricas da Alquimia:

uma imensidão represada em si, o corpo e sua existência manejada pelos desejos do

Tempo. Este é um trabalho de criação que procura, no sentido histórico, o que o olhar

deste método do passado pode nos revelar no presente sem-tempo da memória. Neste

sentido, pensamentos, fotografias e versos são o centro de um atravessamento

espiralado do ser e das tensões que cobrem seu corpo.

Palavras-chave: Alquimia, fotografia, imaginação, subjetividade.

Sob a luz, a face

instante de mito e fração de sentido

vir-a-ser

todo o corpo Nada em movimento

“Assim o mundo é criado”

1 Amador da História, da Fotografia e do Cinema. Doutor em Educação e pesquisador do Laboratório de

Estudos Audiovisuais OLHO – FE/Unicamp. Docente no Departamento de Educação da UFSCar:

[email protected]

100

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Solutio

desejam atirar-me à sorte

(os portões se fecham sob o selo do Senhor

sentinelas o guardam com flâmulas de Sede e Ira)

quando o oculto dos ocultos revela sua Chispa

máscaras forjam outras faces

e por mim não mais

por estes olhos não mais

nada mais há de ser

a forma retorta do Paraíso;

não serei mais Eva ou Adão

“A criação tem um primeiro dia”

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, não há Revelação

não há palavra, sentimento ou medida

“– Seja aquela em quem está e para quem ela se manifesta!”

sou imagem anterior à palavra, porque em mim ela existe: Volição

Separatio

nasce o Todo, Único e Completo

contemple a face

Vida e Vontade

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a assembleia dos justos força separar

Mercúrio de Enxofre

a ciência da moral a discernir,

rasgam a carne em dois corpos;

permanece uno o Verbo cíclico da unidade em opostos.

Na dor, faz-se o Reino, conhece-se a escuridão –

“com Ciência nasce o terceiro dia”

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Dexisio

De minha voz zombam os Juízes –

a Terra forma-me o corpo – imagem e palavra ressoam

o Verbo separa o sutil do espesso, céus de profundezas –

encarno a força das coisas superiores e inferiores.

O negrume cobre esta nova terra

por quatro raios de pureza a Beleza se revela,

toda a obscuridade desaparece enfim.

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Putrefactio - Nigredo

Os senhores da religião banirão meu nome

porque em mim a inteligência é corpo e forma

a peste varrerá minha tenda

e se estenderá sobre meus semelhantes

filho que fui de maravilhosa Queda

pelas três dimensões do tempo

“ – Haja Luz!”

(o quádruplo perfeito é ‘aquele que é’)

A criação vacila e cai pela segunda vez

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Albedo

da infinidade encarnada aspiro o sagrado e o maldito

Tochas e foices me perseguem.

sou a luz astral do mundo, fatal expansão da Vontade

Sentinelas me castigam e os cubro de Silêncios

(com um beijo me entregam à morte)

“No sexto dia conheço a discórdia”.

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Citredo

Todos os que me veem zombeteiam

rodeia-me uma malta de cães

deles não desvio minha carne

“ – Cumpra seus votos na presença dos que vos temem.”

retiram e repartem entre si minhas vestes

esculpem uma cruz

(árvore primeira de minha Queda)

“Assim tem início o sétimo dia.”

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Rubedo

Fluem pela boca rios vermelhos

poemas de desejo me formam o sexo

um terceiro raio iluminará Saturno:

“ – Devore o Tempo no lugar de seus filhos!”

Com Titãs batalho até que amanheça,

buscam o legítimo de meu ser,

aqui só há renegados.

Guardo esperança sobre os aflitos,

e me erguem coroado de estrelas,

maldito seja,

nesta maravilhosa Obra.

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O Fora

Se o Espectador pudesse entrar dentro destas Imagens com o auxílio de sua

Imaginação, aproximando-se no Carro de Fogo do seu Pensamento

Contemplativo (...), então levantar-se-ia do Túmulo, iria ao encontro do

Senhor dos ares e seria feliz. (BLAKE, William: 1810)

Blake se refere a Los, o profeta da imaginação, como inventor artífice de todas as

coisas. É ele o fogo misterioso que, na natureza íntima, transforma o espírito em

matéria.

A imaginação, diante das imagens, é imersão no eterno presente de um tempo

cíclico e em espiral: retorna-se ao tempo presente sempre mais adiante e em mutação.

Tempo cíclico e em mutação é o tempo da Alquimia.

A Alquimia desenvolveu-se em ciência e hoje, pela elisão do sujeito e a

atribuição de objetividade ao objeto, é somente uma ciência do interior da

matéria e não mais conhecimento simultâneo do sujeito-operador enquanto

transforma o objeto-matéria em operação. A supressão traumática do sujeito

e a consequente transferência de potência ao objeto são a transferência

política dos poderes do homem para a natureza e para aqueles que a

exploram, e aí também percebemos a utilização política da cronologia como

visão única do Real. A visão alquímica, hoje, permite ver sujeito e objeto, não

como dualidades, mas como concomitâncias num processo que – ao mesmo

tempo – possibilita que o sujeito e objeto se conheçam enquanto se

transformam e revela uma visão do interior do homem e sua relação com o

conhecimento e consequentemente com a política desse conhecimento.

(ALMEIDA, Milton J.: 2004, p.53)

Historicamente a Alquimia revestiu-se da Imitação de Cristo, operá-la significava

percorrer a via crucis. Sua concepção cíclica relacionava-se a uma visão dinâmica de

ativas possibilidades de ser. Um ser concebido como demiurgo.

Tratava-se de um método redentor. A matéria informe seria curada pela

transformação em ouro e luz, a pedra filosofal: transformação do informe na forma, em

direção ao Belo e ao Ideal.

A Alquimia é um sistema simbólico que nos leva a lidar com a matéria como

substância plástica que, ao ser operada pelo homem, entra em contato com o desejo

deste homem. A matéria, tocada pelos desejos de conhecimento, também projeta sobre o

operador sua substância e o transforma. “Sujeito (alquimista) e objeto (matéria) não

estão separados, mas formam com o método e os instrumentos, uma unidade de partes

tensivas em articulação contínua.” (ALMEIDA: 2004, p. 58).

As formulações da Obra são numerosas ao infinito. Diria que existem em

quantidade equivalente ao número de operadores que a empreendem. Por meio de

imagens da escrita e da fotografia, pretendemos sinalizar o processo de transmutação e

encarnação da consciência: existindo, em princípio, a estabilidade, logo será rompida

pelo encontro com os agentes do movimento.

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Na Obra não há um final em si. Cada sublimação é cadinho de maiores

profundidades. As imagens operadas desejam profundidades e profundidades em

continuidade às imagens interiores do observador que, nesta ruptura como presente,

engloba o passado: significados, sentidos, sentimentos.

A Obra

Fecundado pelas intempéries a forma principal do corpo-pensamento, enquanto

descoberta íntima, reage e dá forma às naturezas modificadas do mundo. A matéria

primeira dos estudos alquímicos sempre pareceu caótica à compreensão, por

permanecer inteira de possibilidades ou capacidades de desenvolvimento, ou

subjacência, ou outras coisas.

Na terra, as jazidas dos metais também são vistas como um útero, no lugar desta

forma alegórica os filósofos utilizaram um vazo largo, também chamado ovo, o vaso da

transmutação. A Obra alquímica refaz em laboratório o drama da criação, a gênese da

matéria.

No corpo, o vale do ventre refaz os dramas internos, no centro de equilíbrio da

matéria física.

A Obra é iniciada com a morte da matéria, estado de confusão denegrida

(Nigredo), processo que envolve quatro partes nas quais o Ser e o Não-Ser se

confrontam. O Ente corresponde ao princípio incondicional que no primeiro momento é

posto em solução (Solutio). O enxofre e o mercúrio filosóficos, masculino e feminino,

devem ser libertados, através do fogo, da matéria que os contém (Separatio). Dada a

consciência das duas substâncias, estão purificadas e serão recombinadas, resultando

daí um fluido homogêneo (Dexisio). O mercúrio filosofal (purificado) é composto por

elementos mercuriais líquidos (Azoth) e por componentes sulfurosos sólidos (Latona).

A fase da decomposição (Putrefactio) separa os elementos e a alma emerge do corpo. A

decomposição é depurada através do Azoth, o espírito vivificante, que é extraído do

mercúrio.

A Putrefactio é a porta para a fusão e para a concepção, é a chave da transmutação.

Neste momento a matéria está contida em si, e sofrerá a interferência dos quatro

elementos para expandir suas propriedades e dar forma ao corpo. O momento que se

segue é de repouso e aspiração. A matéria adquire uma coloração branca (Albedo).

Alquimicamente é o fim do processo de Solvência, o período tormentoso da dissolução,

e começa a fase da União. Por efeito do calor os elementos começam a reagrupar-se de

uma maneira diferente. Esta fase de sublimação do Lapis Philosophorum é representada

por um Pelicano que, segundo se diz, é capaz de fazer renascer as jovens crias (os metais

comuns) dando de beber do próprio sangue.

A fixação definitiva é representada pela Fênix. Os elementos, assim unificados,

finalizam a Obra. O mundo é refeito e o corpo tem consistência material.

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No interior do Ovo alquímico sucedem-se novas sublimações. Ele (o Lapis) é

fecundado como mercúrio filosofal (a serpente) até a serpente devorar a própria cauda e

o Lapis ser liberado. Este é o ciclo do Uroboro, o espírito cósmico universal que encarna a

circulação repetida da destilação e condensação.

O Citredo é uma fase intermediária, de cor amarelada. É um momento perigoso e

definitivo, se houver resistência, pode ainda perder-se, bloquear ou retroceder. A

dissolução do Lapis e as repetidas destilações ou sublimações e a umidificação final

fazem com que ele seja solidificado novamente. O Azoth é novamente vertido e a

intensidade do fogo aumenta porque a alma deve ser exsudada. Quantas vezes mais a

pedra for destilada, tanto maior o seu poder de penetração e de coloração (tintura).

Sujeita durante dias inteiros ao tormento infligido pelo fogo, a pedra atinge seu

aperfeiçoamento e ressurreição. O espírito e a alma penetram já por completo o corpo, o

Pai e o Filho estão unidos, a transitoriedade e a morte perderam todo o seu poder.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Milton José de; “As Idades, o Tempo”; In: Pro-Posições, v. 15, n. 1 (43) – jan./abr. 2004.

BLAKE, William. The poetry and prose of William Blake. David V. Erdman (editor) e Harold Bloom (commentary). New York: Doubleday & Company, 1965, p.550.

The William Blake Archive (www.blakearchive.org) The Blake Society (www.blakesociety.org) JUNG, C. G.; O Livro Vermelho – Liber Novus; td. Edgar Orth; Petrópolis, RJ: Ed. Vozes,

2010. ______________; Psicologia e Alquimia; Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1990.

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