sócrates dáskalos_um testemunho para a história de angola

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  • PREMBULO ao livro de Scrates Dskalos:

    Um testemunho para a Histria de Angola Do Huambo ao Huambo

    por Adelino Torres

    Tal como a memria individual, tambm a memria colectiva possui uma estrutura narrativa: somos o que fizemos e nos aconteceu. Sendo assim, convir ento que se actualize a tradio dentro do molde narrativo no qual a recebemos, sob pena de, esquecendo o que fomos, perdermos a ideia de quem somos.

    M. Ftima Bonifcio, Apologia da Histria Poltica, Lisboa, 1999.

    O livro de Scrates Dskalos, mais do que um livro de memrias constitui o relato vivo de uma fatia da histria de Angola contada por um homem que esteve presente em muitos dos acontecimentos destes ltimos 70 anos, e que participou directa e activamente nalgumas das ocorrncias mais importantes dos anos 60 aos anos 90, nomeadamente do despertar do nacionalismo angolano invaso de Angola pelas foras militares do regime do apartheid sul africano.

    Scrates Dskalos, jovem estudante de engenharia no Instituto Superior Tcnico e um dos inspiradores da criao da Casa do Estudantes do Imprio, j nos anos 40 um oposicionista ao regime de Salazar.

    Mais tarde em Angola como professor do Liceu de Benguela, d expresso poltica resistncia anti-colonial. Conjuntamente com Fernando Falco, Lus Portocarrero, Carlos Costa, Manuel Brazo Farinha, Carlos Morais e outros, funda em

  • 1961 um movimento que ficar conhecido como Frente de Unidade Angolana (FUA), o que lhe valer a priso e em seguida a expulso de Angola com residncia fixa em Lisboa.

    A nica maneira de evitar a asfixia poltica, e at pessoal, foi a fuga para o estrangeiro com outros companheiros. Vive no exlio durante vrios anos, percorrendo sucessivamente a Frana, a Arglia, a China, a Costa do Marfim e a Guin-Conacry.

    De regresso a Angola em 1974, primeiro nomeado membro da Comisso de Descolonizao nas Naes Unidas1 e, algum tempo depois, toma posse do cargo de Governador da Provncia de Benguela onde viver momentos conturbados. Mais tarde assumir finalmente a direco dos estaleiros navais do Lobito e a termina a sua carreira profissional activa.

    So estas ltimas quatro dezenas de anos que, a meu ver, constituem a parte politicamente mais significativa do seu texto, redigido com rigorosa economia de meios, a arte de um estilo fluente e o sentido da expresso adequada.

    Contrariamente a certos escritos do mesmo gnero, o autor no cai na armadilha da auto-complacncia e menos ainda na auto-glorificao. O seu texto no desprovido desse distanciamento bem humorado que s a idade e a experincia frequentemente permitem.

    Alis o humor com que analisa certas situaes , por vezes, mais duro para consigo prprio do que para com terceiros, mesmo quando o comportamento destes mereceria talvez outra severidade. O livro tambm o primeiro testemunho publicado at hoje por um nacionalista branco, espcie que muitos julgam nunca ter existido, por ignorncia ou porque o pensamento politicamente correcto nunca admitiu essa ideia estranha s cartilhas deterministas.

    Demasiado lcido para acalentar iluses, Scrates Dskalos bateu-se sua maneira pela independncia de Angola, talvez menos como poltico stricto senso do que como poeta. F-lo sem ambies materiais ou sequer de carreira poltica pessoal, guiado sobretudo por um humanismo tolerante, um amor terra, s suas gentes e ao seu ritmo - seria redutor chamar a isso apenas nacionalismo - que lhe serviram de regra de conduta a que permaneceu fiel ao longo da vida.

    1 Jornal A Provncia de Angola (Luanda), 19 de Setembro de 1974

  • O texto tem importncia pelo que diz - e muito - mas tambm pelo que est implcito no relato, pelo que aconteceu e tambm pelo que poderia ter acontecido se, como explicarei mais adiante.

    Diga-se desde j que este se no se refere a uma hiptese gratuita nem a uma utopia irrealizvel. Um futuro promissor para Angola esteve em determinados momentos, entre 1961 e 1974, ao alcance da mo. Contudo os homens que tomavam as decises em Portugal em nome dos portugueses ou, no exlio, em representao dos angolanos, no o decidiram assim, talvez porque lhes faltassem os meios ou porque no tivessem tido a clarividncia que as circunstncias exigiam.

    justo reconhecer que uma transio faseada para a autonomia de Angola ou para a sua independncia, numa palavra: reformista, que conciliasse interesses convergentes e atenuasse divergncias mais gritantes, constitua uma tarefa enorme que o turbilho ideolgico vivido na Europa e no continente africano no facilitava.

    Nos anos 60 e 70 estvamos na era dos milenarismos e das dicotomias sem meio termo. Oscilava-se entre o bem e o mal, entre romantismo e descrena, entre exaltao e desnimos. Vivia-se sobretudo no znite de um historicismo quase mstico que Karl Popper condenou to vigorosamente na sua obra. Em todo o caso era fcil perder o sentido da medida.

    Por toda a frica ressoavam os tambores de guerra dos Damns de la Terre de Franz Fanon, os ecos custicos dos escritos de Jean-Paul Sartre, a retrica messinica vinda de leste envolta numa aurola de escritura sagrada leninista.

    Do oriente provinha a febre maoista, algo inesperada e irracional, que galvanizava sectores estudantis europeus, minoritrios mas aguerridos. Da Amrica chegavam, mais atenuados ou menos perceptveis, os sons estilhaados da retrica dos Black Power. Nascidos na prpria Europa, marxistas, neo-marxistas, catlicos progressistas, anarquistas, trotskistas, bordiguistas, socialistas, gaullistas e extremistas de todos os horizontes, travavam duelos inconclusivos e sem fim. Num canteiro mais ou menos perdido florescia a negritude do presidente Lopold Senghor, em contra-corrente das ideias revolucionrias na moda, filosoficamente robusta - ainda que complexada - mas tambm mais difcil e exigente. S hoje comea a ser pensada criticamente por novos filsofos africanos como A. Shutte, Kwasi Wiredu, Odera Oruka, K. Appiah, P. Bodunrin, etc.2

    2 Poder consultar-se, entre outros: BIDIMA (Jean-Godefroy), La philosophie ngro-africaine, Paris,

    PUF, 1995; MARTINIELLE (Marco), Lethnicit dans les sciences sociales contemporaines, Paris, PUF,

  • Nessa poca de apogeu e declnio do Pan-Africanismo inspirado por Kwame Nkrumah, apareciam j ento - muito distintos do projecto humanstico da negritude - os primeiros sinais de um afrocentrismo impregnado por essa mstica obscurantista recentemente denunciada por Stephen Howe3, que enviesa o pensamento afro-americano nos Estados Unidos e que em frica continua perigosamente num florescimento mtico, para desgraa dos africanos actuais e vindouros.

    A juventude dos anos 60 testemunhava igualmente, atravs de imagens dolorosas, do tratamento ignominioso infligido a um Patrice Lumunba humilhado e torturado. Tais desastres abalavam as conscincias e marcavam a ferro e fogo um tempo a que Eric Hobsbawm chamou com propriedade a era dos extremos4

    Creio que uma transio moderada para a independncia, apesar da atmosfera vivida e das dificuldades enormes que colocava, teria sido mesmo assim vivel. Os nacionalistas angolanos, e at certos meios portugueses em Angola - a oposio

    portuguesa da Metrpole, incluindo a que esteve no exlio, nunca compreendeu o problema colonial - chegaram a prop-la ao governo de Lisboa. Sem obterem resposta5.

    1995; SHUTTE (Augustine), Philosophy for Africa, Cape Town, University of Cape Town, 2 reimp. 1996; APPIAH (Kwame Anthony) In my Fathers House: Africa in the Philosophy of Culture (1992), trad. port. Na casa do meu pai: a frica na filosofia da cultura, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997; CHUKWUDI EZE (Emmanuel), Ed. by, Postcolonial African Philosophy, Oxford, Blackwell, 1997; COETZEE (P.H.) e ROUX (A.P.J.), Ed. by, The African Philosophy Reader, Londres, Routledge, 1998; MASOLO (D.A.), African philosophy: a historical overview, in DEUTSCH (Eliot) e BONTEKOE (Ron), Ed. by, A Companion to World Philosophies, Oxford, Blackwell, 1999, pp. 60-77; GBADEGESIN (Segun), Current trends and perspectives in African philosophy, ibidem, pp. 548-563. No que se refere aos pases de lngua oficial portuguesa, o escritor angolano Toms Ribas publicou em Luanda um magnfico artigo intitulado Negritude na literatura de lngua portuguesa. Cf. A Provncia de Angola (Luanda), 9 de Fevereiro de 1975 (?) (no posso garantir o ano de publicao, dado que um acidente danificou alguns dos meus dossiers e a referncia ficou parcialmente apagada). 3 HOWE (Stephen), Afrocentrism - Mythical Pasts and Imagined Homes, Londres, Verso, 1999

    4 HOBSBAWM (Eric), Age of Extremes - The Short Twentieth Century: 1914-1991, Londres, Ed.

    Michael Joseph, 1995. 5 Basta recordar a pouco feliz experincia colonial da Primeira Repblica, com excepo dos mandatos de

    Norton de Matos em Angola, nos anos 1912-15 e 1921-25, apesar das crticas justificadas que possvel fazer sua aco, nomeadamente as que foram excelentemente expressas por Ren Plissier em Origines du mouvement nationaliste moderniste en Angola, Revue Franaise dtudes Politiques Africaines, Paris, Junho de 1966: 14-47. Relativamente ao perodo do Estado Novo, Nuno M. Vaz, num livro importante, observa: Curiosamente, se excluirmos (os) grupos de extrema esquerda, no se encontra, at meados dos anos 60, uma oposio abertamente assumida contra a poltica ultramarina do governo. E acrescenta em nota de rodap: A reaco enrgica de Salazar e a contra-ofensiva das Foras Armadas puderam mesmo contar, em 1961, com o apoio, vocalmente expresso, de sectores da oposio republicana e socialista, para os quais a arquitectura pluricontinental de Portugal no fora obra de um regime poltico mas de uma Nao [Cf. VAZ (Nuno Mira), Opinies publicas durante as guerras de frica, Lisboa, Quetzal/Instituto de Defesa Nacional, 1997: 232]. A esse propsito conveniente relembrar - se quizermos transpor essa falta de dilogo Norte-Sul para os nossos dias - que a humilhao e o ressentimento decorrentes da antiga dominao colonial persistiro infelizmente sculo XXI adentro, influenciando estruturas mentais no Terceiro Mundo, sobretudo quando so aproveitadas por governos pouco escrupulosos. Podemos lament-lo, mas se o ignorarmos, arriscamo-nos a passar ao lado de um dos factores que determinam, ou alimentam, equvocos persistentes nas relaes econmicas e polticas entre

  • Anos mais tarde a frica do Sul, em condies pelo menos to difceis, mostrou que esse caminho era possvel. Infelizmente a lio j de nada serve a Portugal nem to pouco Angola dos nossos dias.

    A FUA foi neutralizada em Angola pela polcia poltica e os seus membros mais proeminentes foram presos ou exilados. A fuga de Scrates Dskalos e de outros para Frana fez reviver o movimento em Paris.

    Valer a pena voltar a falar hoje da FUA? De facto a sua actividade no estrangeiro foi curta: de meados de 1962 a meados de 1963, aps o que os seus ex-militantes se dispersaram em vrios pases. No total, ela existiu realmente dois anos: um no interior de Angola e um no exterior. S se voltou a ouvir falar nela em 1974, em Luanda. Demasiado tarde: apenas um lampejo equvoco sem durao6. O que significou pois a FUA?

    Para alguns, esse pequeno ncleo de angolanos maioritariamente brancos, no teve qualquer influncia nos acontecimentos posteriores a 1963.

    Para outros, mais preocupados com a verdade histrica, insuficiente equacionar o problema desse modo. Torna-se necessrio fazer o balano da actividade da FUA at Agosto de 1963, e sobretudo reflectir sobre o seu significado e objectivos,

    o Norte e o Sul Uma viso mais optimista relativamente frica pode ser encontrada em MERLIN (Pierre), Espoir pour lAfrique Noire, Paris, Prsence Africaine, 1996 (prefcio de Jacques Delors). Uma perspectiva pessimista (ou realista) expressa relativamente sia por DONNET (Pierre-Antoine): Le choc Europe/Asie, Paris, Seuil, 1998, pg. 215, por exemplo e relativamente frica num livro onde a problemtica da gesto da desordem e a anlise da questo da cultura so centrais: CHABAL (Patrick) e DALOZ (Jean-Pascal), LAfrique est partie! Du dsordre comme instrument politique, Paris, Economica, 1999. 6 Em 11 de Setembro de 1974 a imprensa angolana escrevia: Despedida do eng. Fernando Falco: a FUA

    um movimento progressista e emancipalista onde se anunciava o renascimento da FUA de 1961 reproduzindo declaraes de Fernando Falco cuja lucidez e inteligncia poltica foram notadas (A Provncia de Angola, Luanda, 11/9/1974). Uma semana depois a mesma imprensa reproduzia, em primeira pgina, as grandes linhas das orientaes da nova FUA: Em Angola cabem todos os angolanos - declarou o presidente da Frente de Unidade Angolana (Cf. A Provncia de Angola, Luanda, 19/9/1974). Dias mais tarde, um novo e extenso documento: Independncia de Angola: no poder contrariar o que est democraticamente aprovado pelo consenso portugus e angolano - afirma-se num comunicado da FUA. Assumindo um tom conciliatrio em relao aos restantes movimentos nacionalistas, a nova FUA parece no entanto mais prxima do MPLA a julgar pela reaco violenta da FNLA de Holden Roberto que, em Fevereiro de 1975, declarava publicamente que a (nova) FUA era uma das organizaes reaccionrias: a FUA, pelo menos a nvel estatal, morreu, acabou (). (Esta) organizao deixou de existir mas os organizadores existem, os instintos talvez - e at nos mostrem o contrrio - tm o mesmo conceito de reaco (sic). Cf. Encontro popular de esclarecimento da FNLA: preparar o povo para o momento actual rumo verdadeira Angola, in: A Provncia de Angola, Luanda, 8 de Fevereiro de 1975.

  • indagando ao mesmo tempo de que modo ele poderia ter servido a descolonizao se os lderes nacionalistas a tivessem acolhido. Quanto ao primeiro aspecto, necessrio recordar que, em Frana, entre Agosto e Dezembro de 1962, e na Arglia de Janeiro a Agosto de 1963, a FUA teve uma actividade intensa, que no deixava adivinhar nem a terrvel carncia dos seus recursos financeiros nem a escassez numrica de militantes de que dispunha.

    Efectivamente, a FUA publicou, em poucos meses, trs nmeros de um jornal, o Kovaso, clandestina e amplamente difundido em Angola, que no deixou de alarmar as autoridades portuguesas; dirigiu exposies aos chefes de Estado da OUA; enviou informaes e estudos diversos sobre a situao de Angola a dezenas de organismos na Europa, Africa e continente americano; efectuou ligaes com grupos de apoio franceses e belgas e contactou com pessoas ligadas a Angola, que viajaram expressamente para esses encontros vindas deste territrio, de Portugal e mesmo dos Estados Unidos.

    Toda a sua produo mais parecia emanar de um organismo solidamente estabelecido, do que alicerada na tenacidade de uma dezena de pessoas que viviam dificilmente e s beneficiavam de algumas ajudas (igrejas, associaes e partidos anticolonialistas) indispensveis a esse esforo editorial.

    Mais tarde em Argel, onde a maioria dos membros da FUA se instalou a partir de Janeiro de 1963 graas interveno generosa do moambicano Marcelino dos Santos junto das autoridades argelinas, um dos membros da FUA queixava-se ingenuamente senhora Didar Fawzy, personalidade profissionalmente ligada ao Ministro dos Negcios Estrangeiros Abdelaziz Bouteflika (hoje Presidente da Repblica Argelina), de a FUA ter sido abandonada pelo MPLA.

    Esta sorriu divertida: De que que estavam espera? Vocs so meia dzia de gatos pingados e num ano j fizeram mais trabalho do que os movimentos nacionalistas angolanos todos juntos em dois ou trs! S podem ser perigosos! Havia alguma verdade nisso, porm de somenos importncia face ao papel que a FUA poderia ter desempenhado nos acontecimentos posteriores se algum tivesse compreendido a sua utilidade. Infelizmente os tempos no se prestavam a uma reflexo em profundidade onde o pragmatismo e o distanciamento sereno servissem de diapaso s decises importantes.

  • a esse propsito que se coloca a questo do significado e potencialidades da FUA. Como poderia ela ter servido uma descolonizao diferente e melhor da que ocorreu depois de 1974?

    Tentar responder sem ambiguidades seria impossvel. No se pode prever o futuro nem reconstruir a histria dizendo o que aconteceria se os factos tivessem sido outros. Julgo, no obstante, aceitvel emitir hipteses com base em pressupostos com algum fundamento emprico. Um deles era o desejo do MPLA em ser tomado como um movimento progressista e anti-racista, se no mesmo multirracial, imagem que o MPLA gostava de apresentar ao mundo e que correspondia, em parte, s suas origens urbanas, a uma certa mestiagem dos seus quadros, e, no dizer de alguns investigadores (Mrio Antnio Fernandes de Oliveira e, mais recentemente, Francisco Soares7 ou Jos Carlos Venncio8), sua cultura crioula, temas que continuam a suscitar debates nos quais a obra de Alfredo Margarido tem um papel particularmente relevante9. Se recuarmos mais no tempo, encontraremos no sculo XIX vectores que enquadram e ajudam a explicar historicamente as trs ou quatro ltimas dcadas do sculo XX. Sobre o imprio portugus e a sua poltica colonial, assinala-se, entre outros, o estudo de Valentim Alexandre, Os sentidos do imprio10. Sobre Angola propriamente dita, duas obras recentes constituem j referncias indispensveis: a de Isabel Castro Henriques11 e a de Maria Emlia Madeira Santos12

    No meu propsito discutir estes problemas, mas to somente referir algumas pistas que, em meu entender e em traos gerais, serviam de pano de fundo ao pretendido modelo, que, no essencial, no correspondeu prtica efectivamente levada a cabo pelo MPLA, nos planos poltico e organizacional, durante os anos anteriores ao 25 de Abril de 1974.

    7 Ver SOARES (Francisco), A Autobiografia lrica de M. Antnio: Uma esttica e uma tica da

    crioulidade, vora, Pendor, 1996, 421 p. 8 Ver de VENNCIO (Jos Carlos) sobre essa e outras questes culturais: Uma perspectiva etnolgica da

    literatura angolana, Lisboa, Ulmeiro, 1993; Literatura versus Sociedade, Lisboa, Vega, 1993; Colonialismo, antropologia e lusofonias, Lisboa, Vega, 1996. 9 A questo cultural foi abordada por Alfredo Margarido em importantes ensaios. Ver por exemplo:

    MARGARIDO (Alfredo), Estudos sobre literaturas das naes africanas de lngua portuguesa, Lisboa, A Regra do Jogo, 1980. 10

    ALEXANDRE (Valentim), Os sentidos do imprio: questo nacional e questo colonial na crise do antigo regime portugus, Porto, Afrontamento, 1993. 11

    HENRIQUES (Isabel Castro), Percursos da modernidade em Angola- Dinmicas comerciais e transformaes sociais no sculo XIX, Lisboa, Instituto de Investigao Cientfica Tropical/Instituto da Cooperao Portuguesa, 1997 12

    SANTOS (Maria Emlia Madeira), Nos caminhos de frica: serventia e posse (Angola - Sculo XIX), Lisboa, Instituto de Investigao Cientfica Tropical, 1998.

  • Sendo a FUA maioritariamente composta por brancos que partilhavam a causa africana, e considerando que a generalidade dos seus membros frequentara as mesmas carteiras liceais de muitos dos dirigentes e militantes do MPLA, era natural que desejasse desenvolver uma aco convergente com aquele movimento nacionalista do qual se sentia prxima.

    A verdade que nunca, at 1974, os dirigentes do MPLA (para no falar sequer do FNLA) manifestaram interesse na participao de brancos no movimento nacionalista13.

    Uma ou outra excepo depois de 1968 sem relevncia para o problema. Os angolanos de origem portuguesa ouviram mais do que uma vez a frase

    sacramental: Camarada: as massas ainda no esto preparadas para ver brancos nas nossas fileiras (sic), falsa sentena14 que, para mais, ir contrastar cruelmente, a partir de 1974, com o febril, indiscriminado e oportunista recrutamento de afiliados brancos em que todos (MPLA, UNITA e FNLA), de regresso a Angola, se empenharam pressurosamente, quando verificaram que a realidade interna era assaz diferente dos clichs imaginados no exterior15. Todavia, preciso fazer, neste ponto, alguma justia ao MPLA.

    Se a boa f dos membros da FUA no pode ser posta em dvida, a verdade que este movimento, ainda em Paris, cometeu um grave erro: a publicao (contra a opinio de S. Dskalos) de um Programa e Estatutos que era um verdadeiro programa de governo para a Angola independente. A aco, produto de um voluntarismo

    13 A dar f em informaes que circulavam na poca entre emigrados, no impossvel que pelo menos

    durante os primeiros anos da dcada de 60 tivessem sido feitas tentativas para neutralizar a influncia de que a FUA poderia dispor. Quando a famosa coleco Marabout publicou a 1 edio do Dossier Afrique, que fazia o ponto da situao africana, na ficha respeitante a Angola lia-se: Os principais chefes nacionalistas so Agostinho Neto e Mrio Pinto de Andrade (MPLA) e Holden Roberto (UPA-Unio dos Povos de Angola). O seu problema principal conseguir coordenar esforos. Facto notvel, uma fraco de pequenos colonos de origem portuguesa mas instalados em Angola h geraes tomaram o partido da libertao de Angola e colocaram-se ao lado dos africanos, cf. J.J. Schellens e J. Mayer (Direco de), Le Dossier Afrique, Bruxelas, Ed. Grard/coleco Marabout, 1962, p. 289. A segunda edio da mesma obra, publicada alguns anos mais tarde, acrescenta uma meno UNITA mas suprime qualquer referncia FUA. Cf. J.J. Schellen e P. Vandooren (Direco de), Le nouveau Dossier Afrique, Bruxelas, Ed. Grard/col. Marabout, 1971, p. 350. 14

    Quando certa vez os brancos da FUA encontraram casualmente no caf Du Berry, se a memria no me falha, um soldado negro que recebia treino militar em Argel, esse representante das ditas massas, homem simples e provavelmente analfabeto, abraou-se a eles chorando emocionado por, pela primeira vez num longo tempo de solido, encontrar enfim angolanos 15

    A obra notvel de Jorge Eduardo da Costa Oliveira, Secretrio Provincial da Economia de Angola, conseguira transformar consideravelmente o panorama econmico de Angola de meados dos anos 60 ao incio dos anos 70. Os importantes resultados obtidos fizeram de J.E. Costa Oliveira, a seguir a Norton de Matos, o maior e mais decisivo agente da transformao da economia angolana deste sculo. Mas, apesar da imperiosa necessidade dessa mudana que os tempos impunham, a dinmica imprimida era tal que J.E. Costa Oliveira acabou por ter dissabores com o governo de Lisboa.

  • precipitado e de evidente imaturidade poltica, foi despropositada e suscitou uma justificada desconfiana nos movimentos nacionalistas angolanos. O espectro da Rodsia do Sul de Ian Smith que j despontava, dominava ento as preocupaes polticas dos responsveis nacionalistas, em especial de Angola e de Moambique.

    Se possvel, como creio, que esse erro poder ter turvado durante algum tempo o relacionamento entre a FUA e o MPLA, com culpas da primeira, improvvel que possamos encontrar a a causa das verdadeiras dificuldades na aceitao da FUA. H vrias razes para o afirmar, das quais destaco duas:

    Em primeiro lugar havia um conhecimento j relativamente antigo do MPLA sobre vrios membros da FUA, nomeadamente sobre Scrates Dskalos, ex-reitor do liceu de Benguela, figura conhecida no sul de Angola, com provas dadas de insuspeita angolanidade.

    O relacionamento pessoal consolidado em perodo anterior sada de Angola era tambm um factor que, em frica, geralmente mais importante do que noutros lugares. Parece-me pertinente o argumento de P. Chabal e J.P. Daloz, segundo o qual os sistemas polticos africanos s em aparncia se aproximam dos modelos ocidentais, sendo as formas infra-institucionais, no sentido de uma informalizao do poltico aquelas que essencialmente predominam em frica16. Em segundo lugar, um dos objectivos da FUA era justamente integrar-se no MPLA (o que reforava a inoportunidade do dito programa de governo). Havia mesmo membros da FUA que se consideravam, ainda que informalmente, militantes incondicionais do MPLA, zelo excessivo e evidentemente prematuro, por razes bvias, mas tambm inbil porque, mesmo considerando essa fuso eminentemente desejvel, ela deveria ser precedida de uma negociao como Scrates Dskalos o d a entender no seu texto e o defendeu ento.

    Esta era indispensvel no plano concreto da aco politica e ao nvel simblico. No plano poltico tal concertao justificava-se, quanto mais no fosse porque a

    FUA no representava apenas os seus membros no exterior, o que seria irrisrio: havia outras pessoas que ficaram em Angola e que ainda confiavam neste movimento. Era do interesse de ambas as partes - FUA e MPLA - que o assunto fosse discutido com profundidade de modo a conjugar esforos que cobrissem tanto o sector africano como

    16 CHABAL e DALOZ 1999, opus cit.

  • o europeu, combatendo mais eficazmente o perigo rodesiano que, na altura, era bem real e os racismos sempre possveis nos dois campos. No plano a que chamarei simblico a adeso ou no de uma dezena de pessoas de origem europeia ao MPLA era, em si, irrelevante, se esses indivduos apenas se representassem a si prprios.

    Mas no era exactamente assim.

    A integrao da FUA enquanto movimento (ou mesmo at, no limite, a entrada dos seus membros a ttulo individual no MPLA), no poderia deixar de ter consequncias, mesmo que s a longo prazo, sobre uma grande parte da populao branca de Angola. Se isso tivesse acontecido (que me seja agora permitido entrar no domnio de conjecturas assentes numa observao emprica limitada e numa lgica necessariamente circunstancial) no s no seria impossvel que tivessem sido atenuadas inconfessadas tenses raciais como, mais importante, este movimento teria aparecido mais tarde aos olhos da opinio pblica como um verdadeiro movimento agregativo e multirracial, juntando os actos s palavras.

    No deve ficar excluda a hiptese de que isso pudesse ter funcionado, a partir de 1974, como plo de atraco para os inmeros quadros tcnicos, maioritariamente brancos, reforo decisivo da reconstruo econmica, social e administrativa. Sabemos que foi exactamente o inverso que sucedeu. As dicotomias simplificadoras usuais - bons e maus, revolucionrios e reaccionrios, etc. - podem at comportar elementos explicativos de puzzles isolados de senso comum, mas esto longe de construir uma sistmica coerente e minimamente satisfatria num plano intelectualmente exigente

    A esse respeito seria til, por exemplo, rever o esteretipo do colono de Angola, tal como surge ainda no imaginrio da esquerda europeia e numa certa retrica africana. Ele no , bem entendido, inteiramente falso. Todavia, a sua generalizao abusiva distorce, at caricatura, um fenmeno de muito maior complexidade do que as anlises apressadas deixam antever. O colono das ltimas dcadas, estava longe de se resumir simplesmente image dpinal do alarve de capacete colonial e chicote na mo. Milhares de brancos nascidos no pas (mesmo se alguns extractos sociais se atolavam em preconceitos irredutveis de outras eras) estavam disponveis para aderir a uma causa e servi-la se a oportunidade lhes fosse oferecida. Para seu infortnio, e sobretudo para o do povo angolano, essa promessa nunca foi cumprida

  • A actividade da FUA enquanto movimento nacionalista terminou com o seu Congresso de Blida, uma vila perto de Argel, em 13 de Agosto de 1963. Esse acontecimento resultou, como explicarei a seguir, do choque entre duas tendncias, ambas favorveis aos MPLA embora de modo diferente. Na poca, esta distino era muito mais dramtica do que pode parecer primeira vista, razo pela qual seria injusto no reconhecer que, se a ruptura teve lugar de forma civilizada, foi graas moderao e tolerncia de Scrates Dskalos e inegvel rectido de Adolfo Rodrigues Maria. Este episdio pouco conhecido talvez merea ser contado. A interpretao da minha responsabilidade, mas penso que completa o relato de Scrates Dskalos, ou pelo menos no lhe infiel. A diviso da FUA comeou a ser assumida pouco depois da chegada a Argel em Janeiro de 1963. A primeira tendncia propunha uma negociao rigorosa com o MPLA e chamar-lhe-ei, esquematizando um pouco, tendncia dacondicionalidade (ou dos condicionais). A segunda tendncia afastava essa orientao, substituindo-a por uma fidelidade a priori, sem reserva nem exigncia de reciprocidade17 e ser referida como tendncia da incondicionalidade (ou dos incondicionais). As repercusses eram totalmente diferentes. Com efeito a condicionalidade apontava para uma plataforma negocial onde, com vista ao futuro, pudessem sem explicitados, sem ambiguidades, os direitos da populao de origem europeia a par dos da populao africana18, transmitindo para o interior de Angola uma mensagem de unidade nacional. Sem descurar solues prioritrias para a maioria da populao africana mais desfavorecida e deixando claro que no se buscavam privilgios especiais para os descendentes de colonos, a

    17 Segundo Rousseau, uma reciprocidade equilibrada atenua a dependncia e torna-a compatvel com a

    liberdade. Cf. TAYLOR (Charles), Multiculturalism and The Politics of Recognition, 1953. 18

    A reflexo sobre o tema do confronto entre igualdade e diferena de identidade num contexto de liberdade e justia, tal como analisado por Charles Taylor (opus cit.), estava pouco amadurecido e revestia-se mesmo de alguma ingenuidade no pensamento da FUA. O igualitarismo subentendido ignorava vectores essenciais dessa problemtica. Por exemplo, de que modo seriam reconhecidos como iguais, no domnio da vida poltica, cidados de identidade cultural diferente? Ou ainda, como conciliar as exigncias programticas das duas populaes de modo a obter um ponto de equilbrio entre as concepes individualizantes prprias do sistema socio-cultural europeu e as identidades colectivas peculiares da cosmogonia e do tecido social africano? (Ver por exemplo CHABAL e DALOZ 1999, opus cit.).

  • mensagem deveria confirmar, ao mesmo tempo, que estes ltimos seriam aceites sem complexos pelo nacionalismo africano. Por razes cujo desenvolvimento no cabe neste local, era bvio que esse reconhecimento implicava condies e cedncias, entre as quais a inevitvel pr-aceitao de recproca legitimidade19. Uma das suas consequncias seria a unidade no combate s tentaes previsveis de uma secesso rodesiana de que j se falava e que estava latente em Angola20. Essa negociao no implicava um confronto com o MPLA, mas, pelo contrrio,

    era do interesse de ambos e constitua mesmo um reforo do MPLA em termos nacionais (logo multirraciais), atraindo, num horizonte mais distante, o apoio das chamadas foras vivas, econmicas e sociais, que estivessem dispostas a jogar a carta da independncia. Estas existiam, mas a sua confiana nos movimentos africanos era compreensivelmente muito limitada. De facto, sobre este ponto o programa do MPLA - deixo de lado outros movimentos angolanos cuja estratgia poltica se resumia a pouco mais do que um populismo revanchista - limitava-se a repetir at exausto o leitmotiv de que a luta era contra o colonialismo e no contra o povo portugus, o que cobria tudo e no dizia nada. Por isso um acordo sobre a integrao da FUA no MPLA afigurava-se, para alguns, de grande importncia numa perspectiva nacional de longo prazo. Essa ideia parecia, no obstante, de algum modo bizarra nos meios anti-colonialistas europeus e africanos que tinham esquecido a lio de William James: Quando se encara os factos

    19 A temtica do reconhecimento mereceu uma anlise aprofundada de Hegel no seu Phnomnologie de

    lEsprit, Paris, Aubier, 1991. Mais recentemente, Charles Taylor demonstrou que a exigncia do reconhecimento uma das foras que sustentam os movimentos polticos nacionalistas e constitui um factor de identidade (C. Taylor, opus cit.). No caso de Angola, em termos da nao idealizada no incio dos anos sessenta, haveria necessidade de um mtuo reconhecimento entre as populaes africana e europeia como condio prvia da formao de uma nova identidade que conduzisse, para retomar a expresso de Gadamer, a uma mistura de horizontes. Essa identidade nacional intersubjectiva, mais complexa do que a simples sobreposio das identidades (monolgicas) em presena, passava impreterivelmente por uma aprendizagem que teria, nas sucessivas convergncias negociadas, um efeito dialgico, no sentido do termo dado por Taylor. Isso poderia incluir - e nada prova que as condies no existissem potencialmente - a participao directa de descendentes de colonos na prpria luta armada africana, tal como outros descendentes de colonos j o tinham feito no sculo XVIII quando declararam a independncia dos Estados Unidos da Amrica aps oito anos de luta durante os quais a Inglaterra sofreu pesadas baixas humanas e fortes perdas financeiras (Cf. G. B. TINDALL e D. E. Shi, America: A Narrative History, Nova Iorque, Norton, 4 ed. 1996: 238.) 20

    Em princpios de 1963 a Gr-Bretanha dissolvera a Federao das Rodsias e Niassalndia criando o Malawi, a Zmbia e a Rodsia. Em 1965 a Rodsia do Sul declarou unilateralmente a independncia e instalou um governo exclusivamente branco. Em Angola essa possibilidade, com raiz em meios da direita e extrema-direita, era igualmente bem real nos anos 60-70. Alis chegou a ter lugar uma conspirao que fracassou. Soube-se, mais tarde, que fora manipulada por So Jos Lopes, director da PIDE em Angola e, segundo parece, personagem com ambies polticas. O embaixador Lus Gonzaga Ribeiro confirmou-o recentemente ao jornal Expresso (Cf. Expresso, Lisboa, 7/08/1999)

  • olhos nos olhos, o mundo do diabo j no parece to vasto nem to profundo. Lamentavelmente, os que olhavam os factos no podiam encarar o que no viam. Talvez, nas palavras amargas do Rei Lear, porque tivessem olhos de vidro certo que o ingresso da FUA no MPLA constitua, de imediato, uma questo delicada e teria certamente custos. O MPLA sofreria indubitavelmente (como parece ter acontecido) presses externas e internas opostas a essa eventualidade. Em primeiro lugar, externamente, era claro que o reforo do movimento em quadros oriundos do prprio pas (no seriam nem mercenrios nem cooperantes), tecnicamente preparados e com motivao pessoal, desagradaria a foras externas que contassem (conscientemente ou no) com a fraqueza em recursos humanos dos africanos para melhor exercerem a sua influncia sobre o curso dos acontecimentos, o que alis se verificou. Como diria Ea, tudo a coberto do manto difano do pensamento correcto Ao mesmo tempo, os efeitos provavelmente moderadores, decorrentes da entrada em cena de nacionalistas brancos, perturbariam os postulados de certos idelogos europeus e americanos, cujo paternalismo gostava, como Moiss, de mostrar o caminho empunhando as tbuas da Lei Em segundo lugar, internamente, surgiriam sem dvida presses no seio do MPLA, exercidas por determinados grupos que, para alm de terem o pssimo hbito de confundirem a vontade do povo com a sua prpria (j vimos no exemplo dado na nota de rodap n 14 o quanto isso revelava de ignorncia acerca desse mesmo povo), esqueciam que se o colonialismo era, efectivamente, o adversrio do nacionalismo africano, tambm no deixava de o ser, em larga medida, de milhares de brancos que se consideravam angolanos (o epteto de portugueses de segunda era profundamente ressentido por uma maioria nascida em Angola, que, convm relembrar, pertencia no essencial s classes mdia e mdia-baixa, assalariada ou proprietria em regime de empresa individual21) mas que, por razes conjunturais ou de hibernao poltica, no possuam meios de se afirmar como tal.

    Sem ter a pretenso de colocar direitos de africanos e europeus no mesmo prato da balana dos injustiados (as carncias e desfavorecimento de uns no tinham

    21 Ver por exemplo: NEWITT (Malyn), Portugal in Africa: The Lats Hundred Years, Londres, 1981: 170.

  • comparao com as dos outros), em ltima anlise e apesar das ambiguidades de um processo intrincado, legtimo afirmar que o colonialismo do Estado Novo se opunha aos interesses mais vitais de ambos, mesmo se as aparncias escamoteavam essa questo fundamental. A esse propsito necessrio abrir um parnteses para tentar esclarecer alguns pontos.

    A resistncia propriamente dita ao colonialismo por parte do sector branco era sem dvida praticamente inexistente. Ela restringia-se a ncleos minoritrios de intelectuais cuja aco era bastante diluda devido censura e s severas restries s liberdades cvicas. Mesmo assim, a fraseologia unitria da propaganda colonialista disfarava mal uma grande desconfiana em relao populao branca22, sobre a qual exercia uma constante vigilncia, em particular no que se referia s suas elites.

    Eduardo Loureno, num virulento artigo comentando uma declarao de um ex-governador de Angola, coronel Viana Rebelo, que classifica de bufarinheiro em pnico, sublinha que tal declarao constitua, involuntariamente, nas suas linhas e entrelinhas uma machadada implacvel na beata mitologia colonial do nosso regime, nela se pondo, inclusivamente em causa a solidariedade integral da prpria massa branca angolana com os interesses da Metrpole, o que no de admirar, de resto23. Entre os intelectuais de origem europeia, sem falar do poeta Alexandre Dskalos (irmo de Scrates) prematuramente falecido em 24 de Fevereiro de 1961, bem como de nomes conhecidos24 como Castro Soromenho (nascido em Moambique), Luandino Vieira (nascido em Portugal), Antnio Jacinto, Henrique Abranches (nascido em Portugal), Antnio Cardoso e outros25, havia tambm quem se ocupasse, no plano cultural, de um trabalho que, embora no fosse directamente poltico stricto senso, enveredava por caminhos que, nas suas consequncias (e intencionalidade) iam, a longo prazo, no mesmo sentido: sublinhar a dignidade de valores africanos alheios cultura

    22 Contrariamente ao que se pensa, essa desconfiana da Metrpole tinha razes que remontam ao

    sculo XVI, como se poder verificar na Histria de Angola de Ralph Delgado. Sobre este assunto ver eventualmente: TORRES (Adelino), O Imprio Portugus entre o Real e o Imaginrio, Lisboa, Escher, 1991. 23

    Cf. Eduardo Loureno, Mitologia colonialista e realidade colonial, O Jornal, Lisboa, 9/3/1979 (sublinhado meu). 24

    Alfredo Margarido, Literatura Angolana: do protesto luta armada e independncia - A prosa, os elementos profticos e o combate, Dirio Popular, Lisboa, 26/02/1976. 25

    Ver Joo Maria Vilanova, Ruptura ou continuidade na poesia angolana?, Angola/Revista, Luanda, 27/9/1974

  • europeia e incentivar ou divulgar autores que os defendiam ou que com eles se identificavam. A Sociedade Cultural de Angola (SCA), de que o signatrio deste prembulo foi um dos ltimos secretrios-gerais, em 1961, desempenhou esse papel at ser fechada pela PIDE. No sendo, como disse, uma associao poltica, no deixou de constituir o maior bastio dessa resistncia cultural sob a presidncia do advogado e ensasta portugus Eugnio Ferreira, que ocupou depois altos cargos na j independente Repblica Popular de Angola. A SCA editou durante alguns anos, com irregularidade, a revista Cultura que teve grande influncia e participou empenhadamente nesse esforo de dar a palavra cultura africana e aos homens que a viviam26.

    Tambm de salientar a existncia de outros grupos - maioritariamente brancos - no polticos, onde tarefas semelhantes eram prosseguidas com dedicao e desinteressadamente. Por exemplo os conhecidos Cadernos Imbondeiro dirigidos por Leonel Cosme e Garibaldino de Andrade (portugueses radicados) que prestaram relevantes servios cultura em Angola, bem como a Coleco Bailundo editada por Incio Rebelo de Andrade e Ernesto Lara Filho, que tiveram uma actividade editorial mais efmera27. No mbito difcil do jornalismo (a vigilncia policial neste campo era ainda mais apertada), justo relembrar a actividade do quotidiano ABC de Luanda que, cercado (e, poder-se-ia dizer, constantemente trucidado) pela censura, sobrevivia em 1961 com quatro elementos: o director Machado Saldanha, um velho e honrado democrata; o chefe de redaco Accio Barradas, hoje no Dirio de Notcias de Lisboa; e dois redactores: Adolfo Rodrigues Maria e o signatrio. No sul de Angola, O Intransigente de Benguela, dirigido por Victor Silva Tavares, fazia jus ao seu nome e conhecia uma existncia precria.

    Este distanciamento em relao ao regime era eminentemente suspeito aos olhos da oficialidade, para quem os conceitos de democracia e sobretudo de angolanidade ou africanidade tomavam foros subversivos. Essa negao do Outro, que Alfredo

    26 Vd. referncia SCA e a Cultura in: Edmundo Rocha, Viriato da Cruz, o rosto poltico do grande

    poeta angolano, revista Afro-Letras, Lisboa, Ed. Casa de Angola, vol. 1, n 1, Maro 1999, pp. 21-27 (excerto da obra, do mesmo autor, A gnese do nacionalismo angolano, perodo entre 1950 e 1964, em vias de publicao) 27

    Incio Rebelo de Andrade, Saudades do Huambo (Para uma evocao do poeta Ernesto Lara Filho e da Coleco Bailundo), vora, Ed. NUM, 1999.

  • Margarido bem desmascarou num dos seus artigos28, tpica do colonialismo, tinha razes no Acto Colonial de 1930 que definia Portugal como uma entidade mtica estendendo-se do Minho a Timor guiada por um princpio de assimilao (terica), o qual implicava a rejeio (essa bem real) de qualquer particularismo Conceda-se, no entanto, que apesar da sua hipocrisia notria29, nunca o colonialismo salazarista emitiu Bilhetes de Identidade que mencionassem a raa Por ltimo, so igualmente conhecidas as tenses entre as Associaes Econmicas de Angola e o Governo de Lisboa a propsito do proteccionismo e do chamado espao econmico portugus. Nos anos setenta atingiram uma intensidade inquietante para os interesses metropolitanos, como se pode constatar na imprensa da poca (Dirio de Luanda e Provncia de Angola nomeadamente). Num outro plano, tambm era em boa parte falsa a amlgama que muitos nacionalistas africanos no exlio faziam entre populao africana e militares

    portugueses. Por motivos vrios - por vezes contraditrios entre si, verdade - houve inmeros exemplos significativos de hostilidade entre militares portugueses e populaes brancas nos territrios africanos30, o que desmentia, em todo o caso, ideias sumrias que indiferenciavam as duas partes e pouco tinham a ver com a realidade efectivamente vivida. Fechado este parnteses, voltemos FUA. Pode de certo modo considerar-se que os partidrios da negociao com o MPLA representavam uma vertente por assim dizer moderada, na medida em que o seu pragmatismo atendia aos condicionamentos da gnese da FUA em 1961 no interior de Angola, os quais determinavam os parmetros da sua actuao no exterior. Reconhecendo instintivamente que a margem de manobra da FUA era estreita, os moderados procuravam agir com realismo31. Em contrapartida, os incondicionais tinham uma perspectiva assaz distinta. A sua tese, de um optimismo imoderado que exclua dvidas, consistia, como j disse, numa adeso axiomtica ao MPLA, sem que a FUA colocasse condies ou salvaguardasse princpios que constituam a sua prpria razo de ser. Essa atitude

    28 Alfredo Margarido, Poesia angolana, A Provncia de Angola, Luanda, 29/01/1975,

    29 Ver um exemplo dessa hipocrisia no brilhante livro de Jos Gil, Salazar: a retrica da invisibilidade,

    Lisboa, Relgio dgua, 1995. 30

    Ver VAZ 1997, opus cit.: 327-328. 31

    Advogando, nomeadamente, um relacionamento cordato entre a FUA e quaisquer pessoas ou grupos africanos, independentemente da sua opo poltica, o que no acontecia com a tendncia incondicional cujo sectarismo era, como se costuma dizer, mais papista do que o Papa, atingindo por vezes o despropsito.

  • exorcista apenas obedecia ao critrio restritivo da solidariedade revolucionria, grandiloquente mas vazio de substncia. Com efeito, limitando-se a esperar uma hipottica (e, nesses condies, ainda mais improvvel) deciso do MPLA, no se alicerando em indcios palpveis de que o assunto viria sequer a ser considerado, essa tendncia assumia, ao fim e ao cabo, uma postura de crente. Os incondicionais professavam uma vulgata marxista-leninista - um desses conceitos que se carregou com mais peso do que ele podia suportar - profundamente contraditria, alis, com a base social da FUA. Essa particularidade iria ajudar a precipitar o seu isolamento em relao populao de origem europeia e afastou, entretanto, todos aqueles que visitaram o grupo quando este se encontrava em Paris32. Paradoxalmente, dificultava ainda mais uma aproximao ao MPLA, pois o dilogo dependia exclusivamente - o que eles no compreenderam - da capacidade de negociao da FUA, a qual resultava, por sua vez, da representatividade junto da populao branca. Um crculo vicioso que o monolitismo da ideologia ocultava33. possvel concluir (se fizermos abstraco de alguma elite angolana para quem a prevalncia de um afrocentrismo dbio34 satisfazia ambies pessoais) que o principal beneficirio da marginalizao ou desaparecimento da FUA era o prprio colonialismo salazarista, como o atesta a preocupao da PIDE em neutraliz-la35

    32 O ltimo, que se predispunha alis a integrar a FUA, foi Carlos Serrano (hoje professor de antropologia

    da Universidade de S. Paulo, Brasil) que chegou a Argel no ms de Agosto de 1963, ou seja no momento preciso em que, gorando as suas expectativas, a ruptura estava praticamente consumada no interior da FUA. Mais tarde, antes de partir definitivamente para o Brasil onde adquiriria a nacionalidade brasileira, Carlos Serrano instalou-se na Suia, encaminhando da (no sem alguns problemas pessoais com as autoridades helvticas) a mesada que Scrates Dskalos enviava da China com destino sua famlia em Portugal. 33

    Emprego aqui o conceito de ideologia no sentido de Legendre, para quem as ideologias so de facto substitutos secularizados da teologia poltica e do sistema de crenas (Cf. LEGENDRE (P.), Sur la question dogmatique en Occident, Paris, 1999: 59). Quanto abordagem dita marxista-leninista, verdade que ela foi, durante algum tempo, comum maioria dos membros da duas tendncias. Porm as contradies surgiram desde muito cedo e agravaram-se rapidamente. 34

    No sentido de que s eram africanos os negros de frica, como se podia deduzir da ideia ambgua de uma frica para os africanos reivindicada pela primeira vez na Conferncia de Acra em 1958 (Cf. VAZ 1997, opus cit.). Em 1999, o ditador lbio M. Khadafi reafirmava ao jornal francs Le Figaro que no h naes nem raas em frica (). H apenas uma raa africana negra, unida e constituda por vrias tribus. No difcil prever que, enquanto houver quem defenda pensamentos indigentes como este, a frica no ir a parte nenhuma. Cf. Le Figaro, Paris, 20/8/1999, citado por Mrio Matos e Lemos num artigo vigoroso: Os Estados Unidos da frica, Pblico, Lisboa, 28/8/1999. 35

    A PIDE prendeu muito gente por simples suspeita de pertenceram FUA. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o escritor Alfredo Margarido em 1962.

  • O afastamento voluntrio de Scrates Dskalos depois do Congresso da FUA em Agosto de 1963 (Blida), cortou os derradeiros laos entre o que poderia restar da FUA no interior e os seus elementos no exterior.

    Os moderados que estavam a seu lado no encontraram eco nem compreenso nos movimentos africanos. Apesar de, nesse congresso, os seus argumentos se terem sobreposto convincentemente retrica mecanista dos incondicionais, a ruptura era inevitvel e a reorganizao da FUA uma tarefa j impossvel. Privados igualmente de contactos directos com os meios anti-colonialistas europeus, que tinham sido curto-circuitados de maneira pouco clara pelo elemento mais influente da faco incondicional, como Scrates Dskalos refere no seu livro (a maioria dos membros da FUA era demasiado jovem e inexperiente para se ter apercebido a tempo), os moderados constataram que os dados estavam irremediavelmente viciados pela falcia de um sentido da Histria que tudo envolvia, imobilista e fechada ao questionamento. Salvo deslealdade aos compromissos morais assumidos, nada mais lhes restava do que deixar para trs projectos (ou iluses) j sem prstimo.

    Pouco depois do Congresso de Blida, aquele elemento mais responsvel dos incondicionais sumiu-se curiosamente para outras paragens. Com duas excepes tardias, houve quem continuasse a sobreviver na rbita do MPLA, sem resultados evidentes em termos de actuao poltica digna de registo. Mediocridade compreensvel, neste ltimo caso, se nos lembrarmos da assero de Michael Polanyi: as pessoas que no podem libertar-se do sentimento de que desempenham um papel tornam-se incapazes de convices36.

    No objectivo deste prembulo ser libelo acusatrio ou intentar processos que

    seriam vos.

    Pretendo to s projectar alguma luz sobre o que , a meu ver, o principal ensinamento do livro de Scrates Dskalos: a histria de uma oportunidade perdida. Questo de pormenor talvez, mas cujo conhecimento no ser porventura intil quando chegar a hora distante da reflexo ou do exame de conscincia. Histria como tantas outras feita de erros que devem ser recordados e de pequenas e grandes traies que

    36 Cf. POLANYI (Michael), The Logic of Liberty, 1951.

  • prefervel esquecer. John Dewey dizia, com razo, que os erros no so apenas uma infelicidade inevitvel a deplorar ou pecados que, no plano moral, se devem expiar e perdoar. So tambm lies que provam que se utilizou mal a inteligncia e indicaes para fazer melhor (Reconstruction in Philosophy, 1920).

    O 25 de Abril de 1974, deixando a descoberto a total impreparao dos intervenientes, portugueses e angolanos, mostrou que isso j no era possvel. Ao pr a claro a imensa responsabilidade poltica e moral dos governos salazaristas e caetanistas, tambm no ilibou os polticos angolanos.

    O general MacArthur afirmou certa vez que todas as guerras perdidas resumem-se em duas palavras: demasiado tarde. de facto demasiado tarde para reparar o que j no tem remdio. Mas, pensando nas jovens geraes, sempre tempo de cuidar da verdade das coisas e tirar ilaes construtivas dos actos dos homens. Acrescente-se tambm, parafraseando as belas palavras de M. Ftima Bonifcio no livro citado nas primeiras linhas deste prembulo, que se esquecermos o que fomos perdemos a ideia de quem somos Cerca de trinta e seis anos depois dos acontecimentos descritos, porventura infrutfero tentar igualmente conceber o que seria actualmente Angola se o MPLA tivesse sido capaz de utilizar o trunfo da FUA (nas suas consequncias moderadas) de maneira realista.

    No obstante, considerando os factos expostos e os argumentos que tentei demonstrar, que me seja permitida uma afirmao que no considero gratuita nem to pouco utpica: em 1974 Angola poderia ter alcanado um compromisso equivalente ao conquistado um pouco mais tarde na frica do Sul por Nelson Mandela e Frederic W. de Klerk. No creio que haja motivos para a considerar absurda, principalmente se nos lembrarmos que, at libertao de Nelson Mandela (1990), ningum imaginava possvel o que se passou posteriormente naquele pas.

    Hoje a vida quotidiana em Angola poderia at no ser mais exaltante do que noutros pases africanos, mas atrevo-me a pensar - de um ponto de vista exclusivamente analtico - que, fossem quais fossem os escolhos, teria sido mais difcil, se no mesmo improvvel, chegar tragdia actual, testemunhada pela voz angustiada de bispos angolanos como de verdadeiro extermnio de populaes (Pblico, Lisboa, 6/8/1999).

    Se pensarmos no caos em que Angola se encontra mergulhada, demasiado fcil atribui-lo s consequncias da guerra, como alguns nos querem fazer crer. A guerra

  • acabou por se tornar, certo, um parmetro central da crise angolana. Mas necessrio averiguar as suas origens, retrocedendo aos primeiros anos de independncia, ou revisitando outras memrias mais distantes.

    Quanto ao perodo do ps-independncia, de 1975 aos anos 90, Manuel Ennes Ferreira, numa investigao exemplar37 demonstra satisfatoriamente que a guerra menos a causa do que a consequncia de uma estratgia feita de impercia econmica e de uma discutvel orientao poltica.

    No se ignoram, claro, as contingncias internacionais do momento, as dificuldades estruturais prprias dos pases africanos nem as responsabilidades que incumbem ao antigo colonialismo38. O que pretendo dizer para alm disso que talvez o desastre angolano pudesse ter sido evitado ou grandemente atenuado se, uma dezena de anos antes da independncia, a histria tivesse tomado outro curso.

    O livro de Scrates Dskalos constitui um servio e um tributo a Angola, paixo da sua vida.

    Como humano, a sua vida e aces tm virtudes e defeitos com os quais podemos concordar ou no. Mas o testemunho que nos deixa , ao fim e ao cabo, uma lio subtil de coerncia e lealdade cidadania que escolheu. Qualidades que rareiam ou soobraram na Angola que (des)conhecemos

    Adelino Torres

    37 FERREIRA (Manuel Ennes), A indstria em tempo de guerra (Angola, 1975-91), Lisboa, Edies

    Cosmos/Instituto de Defesa Nacional, 1999. 38

    Como CHABAL e DALOZ (cf. op. cit.) observam oportunamente, mesmo que as responsabilidades do colonialismo tenham sido grandes e durveis, os polticos africanos seriam bem avisados em tomar conscincia, vinte ou trinta anos decorridos depois das independncias, que se fazem cada vez mais raros os europeus dispostos a expiar os pecados das velhas geraes dos bons velhos tempos coloniais. As geraes vindouras merecem o esforo de uma nova postura intelectual, mais virada para a descoberta do futuro do que para a digesto repetitiva de pratos requentados

  • P R E F C I O de Manuel Rui

    O que mais me fascina por amor e triste tristeza feliz o Scrates colocar nestas memrias aquilo que alguns pretendem que se olvide, se apague pelo falso ou imposto esquecimento, ou ainda, se transforme, de lgrima que o tempo ainda no secou, num aparente, contemplativo e negociado sorriso. Por divida a uma cabala a que se chama processo de paz. Para que o silncio cumplicitado fosse o nico testemunho de continuar a guerra. Da morte. Da fome. Do milionarismo de novos senhores - antigos camaradas. Da curva do vento artificial contra o voo das viuvinhas do nosso planalto ou da chuva mida primeira , que continua a perfumar a terra. A chuva anunciada pelo salal que, de alegria, se camicaza deixando cair suas asas para morrer feliz, por elogio s gotas de gua cadas do cu. Cu que d de sobra. Para todos e mais tantos. Disto, os vampiros, mesmo os nascidos no Huambo, no entendem. Coisas to simples, to antigas e infinitas. Coisas na natureza que os homens decidiram complicar. Estou a falar sobre estas memrias, sobre algo que no se pode apagar, esquecer, nem to pouco morrer ou deixar-se matar. Falo da nossa memria. Da memria de cada um e da memria de ns todos como entidade colectiva que nos permite, de uma vez por todas, afirmar que temos uma identidade construda a partir de todas as memrias nossas que se compactam numa s palavra: Angola. E as memrias do Scrates so uma componente dessa nossa memria. E destas gotas que se fazem tantos pequenos traos de gua lmpida que do o rio grande do nosso passado, presente e futuro. Um mais velho campons, quando me queria falar de um afluente do ria Kunene dizia um filho do rio Kunene. E o nosso rio s pode ser entendido em movimento e naveao, quando se entenderem todas as guas afluentes para a confluncia total dos seus filhos. Isto uma razo natural. To clara e lmpida como as folhas das vissapas ou os loengos maduros futurados num cheiro de esperana no nosso chorar hoje para evitar a cegueira.

    O governante portugus, maon, Norton de Matos, inventou a cidade de Nova Lisboa por decreto. Disso o Scrates fala. As cidades, pela regra clssica, so aglomerados populacionais que se transformam de exerccios campesinos para exerccios urbanos, da agricultura para ouras actividades, industriais, financeiras, de concentrao e domnio dos produtos do campo, para o exerccio metropolitano do domnio, principalmente da economia e do pensamento. E Norton precisava daquela cidade, inventada sobre o mapa, olhando a riqueza hdrica e o bom clima para os brancos.. A, colocando-se nessa pirmide do planalto, Norton poderia reduzir MUTU YA KEVELA e SAMACACA com uma arma de penetrao civilizacional. O Caminho de Ferro de Benguela, combio, o Kuricutela, por ironia do destino, nome tambm do Ferrovia de Nova-Lisboa, clube que quando campeo de Angola, foi o primeiro a mostrar no campo a bandeira do M.P.L...

    No me adianto em assuntos j adiantados pelo Scrates na introduo a este livro e no texto memorial. O que em importa a cidade. E o combio. Porque tambm sou um deserdado disso. A cidade e o combio, combio belga, mala, Kamacouve ou combio piolho. Esses todos, de barulho, falha, apeadeiro e estao, foram e ainda so as pequenas maravilhas antigas do nosso estar no mundo. Foi com esse combio e por esse

  • combio que ns aprendemos o interior do pas que confundiu e ainda se confunde com o interior de ns mesmos. Com a penetrao do combio aprendemos, tambm, a penetrao sob a nossa memria, de cada um, para a angolanidade.

    Nova-Lisboa foi criada por decreto e nesse intento. Porm, descendentes das famlias de brancos que vieram, em verdade poucos e mal-vistos no ficaram apenas filhos da cidade branca que era portuguesa, do imprio e colonial. Ousaram ficar filhos de Angola, o cho onde tinham nascido e, com ela e suas maiorias identificados em terra de oposio ao colonialismo portugus. Da o incipiente nacionalismo que se gerou tambm em Nova Lisboa. E tudo isto, toda esta memria, s pode ser recuperada pela memria dos relatos de agentes dessa memria como o Scrates.

    Da famlia Dskalos, minha me e meu pai, filho de um maon da Loja Kuribeca da Catumbela, sempre me falaram. Inclusive, imitando a fala do grego pai do Scrates e tecendo elogios ao Alexandre, o veterinrio e o poeta que, se bem me lembro, diziam que andava de boina e falava sozinho. Dos Bernardinos da padaria Confiana, ali pertinho do rio da granja, toda a cidade olhava a maneira de como o David Bernardino, orgulho de todos os brancos, porque ele era dos poucos que viajara para Portugal estudar medicina, orgulho da cidade, quase no conversava com ningum nas esplanadas, pastelarias e quejandos espaos de conversa urbana. O cujo metia-se numa bicicleta e andava pelos bairros dos pretos, com preferncia pelas Cacilhas onde, mais tarde, j mdico, gratuitamente e para os pobres e os humildes do subrbio, havia de fazer, depois da sua licenciatura e regresso definitivo, melhor que Lambarne...s que no recebeu o prmio Nobel da medicina, antes pelo contrrio, foi assassinado a mando de um criminoso que aqui no se nomeia para no manchar este texto, chefe de um fundamentalismo que, ainda hoje, vem merecendo o ttulo de partido poltico e, por um pouco e at ver, podia ou pode merecer um estatuto especial que nunca um angolano honrado mereceu. E como o David foram outros tantos, esvaziando-se a cidade da cincia, da tcnica e at dos prprios registos histricos.

    Quando eu fui para Coimbra estudar direito, instalei-me numa casa onde j estavam alguns angolanos chegados primeiro que eu. A maioria relativa era originria do Lobito. Tinham feito o quinto ano no Lobito e o stimo em S da Bandeira. Eu j levava aquisies, contactos e ponderaes sobre a necessidade da independncia de Angola a partir de Nova Lisboa. Mas, os meus colegas do Lobito falavam sempre e ainda hoje podem falar, na dvida para com o Scrates, o professor que libertava o Liceu, as aulas, implicitando uma libertao maior: a libertao de Angola e do seu povo j tanto sofrido pelo colonialismo. Mal sabamos ns que a independncia iria trazer tanta desgraa que nunca passou pela nossa imaginao E, como se no bastasse, mesmo de sabor a fel, Marcelo Caetano, o ltimo primeiro ministro da fascismo portugus, haveria de fazer a previso desta desgraa. Da nossa cidade, no falo mais porque o Scrates fala disso e isso so as suas memrias. Mais todas as viagens que ele fez para ser livre e agora viver no Lobito ainda sem o ser. Tudo depois das europas sempre em busca de ns, a identidade e da independncia. Foi sempre isso a vida do Scrates desde a adolescncia. Despis da Universidade em Portugal e as perseguies polticas. Depois a esperana e o exlio dividido em Frana ou na China. E depois...depois o regresso, a independncia e o mais que est neste livro. Uma vida inteira por Angola. Sem mcula. Sem abdicar dos seus ideais. Mas da minha memria nem da memria do Scrates, no se olvida que os fundamentalistas de um homem que aqui, mais uma vez, por pudor, no se designa,

  • repetidamente destruram a cidade e partiram a linha do combio, nunca tendo explicado porqu. Mas o Scrates, nestas memrias , acima de tudo, o cronista de vrias travessias favorveis s nossas mars, como a resistncia, luta no interior e no exterior para a libertao nacional, fim do fascismo em Portugal e fim do colonialismo. E quando as mars eram todas de feio, as travessias no vieram mais e sobraram s encalhes para a tragdia. Norton de Matos mandou pr o combio por viagem, falha e apito, interromper as comunicaes de MUTU TA KEVELA. Depois, um tirano fundamentalista partiu o combio, que j era nosso, para impedir a comunicao entre ns. Pior, matou tudo o que era inteligncia angolana na cidade que j era Huambo. Matou tambm a Universidade. E como se no bastasse, enquanto o tirano ia destruindo a cidade por desgaste sucessivo, o governo mandava governadores para desgovernarem a(s) cidade(s).

    As nespereiras eram muitas. As goiabeiras. As maarocas. E ningum nos proibia de as tirar. E ns s apanhvamos a fruta quando j estava madura. Havia pobres, sim senhor. Havia mendigos esmolando, sim senhor. Havia ricos exploradores, sim senhor. Os ricos andavam de carro e no asfalto. E os pobres andavam a p nos passeios e s nos passeios. Porque havia asfalto e havia passeios. Agora, h mais pobres. Que no andam nos passeios porque essa fronteira entre o asfalto e os passeios se diluiu. E os mais pobres enlouqueceram. Comem do lixo dos contentores. E os novos ricos so hoje mais ricos que os colonos ricos do antigamente, pelo menos em ostentao. Os colonos que pediram e exigiram metrpole uma Universidade para formar os seus filhos que viviam ou j tinham nascido aqui. Para no mandarem os filhos estudar em Portugal. Hoje, os ricos daqui, nem sequer se preocupam com a nossa Universidade. custa da nossa independncia, mandam calma e serenamente, os seus filhos estudar no estrangeiro.. Este o quadro da dignidade para alguns perdida e que o Scrates, nas suas memrias, pretende segurar como uma estrela que nunca mais vai cair do cu.

    Meu caro Scrates: Acabou o tempo em que a gente para lutar com um colega, na escola 33, havia regras. Primeiro era obrigatrio no bate caf. Depois havia rbitros e a malta assistia toda. J no temos cidade e j no somos do Huambo nem de Nova Lisboa. No que ns quisssemos a cidade de Nova Lisboa do antigamente colonial. Queramos a cidade para ns agora. A histria tem de ser escrita. Mesmo por cima de todos os acordos de paz ou de guerra. O que se passou foi que todos os urbanos foram mortos ou tiveram que abandonar a cidade., vrias vezes e a ela regressando outras vrias at ao cansao que faz desistir. E os camponeses, pela fora da metralha, tiveram que fugir do campo salvo poucos que mesmo assim enquinaram a demografia de Luanda e eles nunca tiveram a hiptese de apanhar avio para o estrangeiro. E no tiveram outro remdio que no fosse ocupar a cidade. O resto, na desgraa que estivemos com ela e ainda estamos, tudo isso est neste livro.

    Luanda, 10-10-98 Manuel Rui

  • Scrates Dskalos Um testemunho para a Histria de Angola Do Huambo ao Huambo Lisboa, Editora Vega, 2000

    O Engenheiro Scrates Dskalos nos anos 70

  • INTRODUO Quando no princpio deste sculo o soba Mutu Ya Kevela se rebelava em terras do Bailundo contra a presena portuguesa e punha Samacaca a comandar os seus guerrilheiros aliciados nos quimbos e sanzalas do Huambo, nas praias de Benguela, a norte da Baa das Vacas e perto do que hoje o museu de arqueologia, desembarcava um grupo heterogneo de homens, loiros e morenos consta, mas eu no confirmei, que tambm vinham negros do Ghana - comunicando entre si num Ingls mesclado de palavras de vrias origens.

    Era um grupo de tcnicos e operrios - ingleses, italianos, gregos e portugueses - que, depois da companhia inglesa Tanganika Concessions ter feito o indispensvel financiamento, desembarcava em Angola para dar incio construo de uma via frrea que iria atravessar o pas desde o Oceano Atlntico at aos pases vizinhos, a Rodsia do Norte e os Congos, Belga e Francs. A riqueza mineral destes territrios que se supunha continuar por Angola dentro (razo pela qual foi concedida a pesquisa e explorao mineira ao longo da via numa extenso de 120 quilmetros para cada lado da mesma) justificava plenamente o investimento para a sua construo.

    Robert Williams, o escocs a quem foi autorizada esta construo e era na altura o brao direito de Cecil Rodes, o ingls que deu o nome s Rodsias, do Norte e do Sul (hoje Zmbia e Zimbabwe) estava to interessado em construir e explorar a via frrea que se apressou a constituir a Companhia do Caminho de Ferro de Benguela (C.F.B.) com sede em Lisboa e iniciou os respectivos trabalhos em 1 de Maro de 1903. Estes comearam a toda a fora em Benguela em dois sentidos: um para a vizinha baa do Lobito e outro no sentido das terras do interior.

    Foi extremamente difcil vencer os obstculos que a natureza geolgica e topogrfica do terreno opunha realizao dos trabalhos. Com efeito, o terreno que da costa angolana conduz ao subplanalto era, e ainda , extremamente seco e duro e apresentava diferenas de nvel que chegavam a atingir centenas de metros em distncias muito pequenas; assim, das proximidades de Benguela at Portela, a cota passava de 10 metros para 902 metros numa distncia de 59 quilmetros (neste mesmo trajecto, ao quilmetro 54, a cota passava do Lengue a S. Pedro de 97 para 236 metros numa distncia de 2 quilmetros).

    A natureza do terreno aliada falta de gua e ao clima obrigaram a um esforo tcnico e humano que, apesar de minimizado com a ajuda de camelos expressamente importados, ficou gravado na memria dos que participaram nesses trabalhos. A tal ponto que, anos mais tarde e quando eu ainda era menino, ouvi os gregos que tinham restado dessa epopeia - o Peter Psaltis, o Gyrassimos Lichnos, o Papa Leonardos, o Angelus, o Cristo Statocopulos e irmo, o Constantino Roumeliotis, o meu pai Stamatis Dskalos e outros compatriotas seus - evocar os episdios, peripcias e canseiras desse tempo.

    Tambm me recordo que minha me contava que chegara a Angola em 1919, viva, com uma filha de tenra idade, a Manuela, e um moo ainda imberbe seu irmo, o tio Alberto. Embarcara no Lobito no trem de ferro para alcanar Silva Porto, no Bi, onde ficaria como professora primria. Porm, os governantes de Lisboa no sabiam que o comboio ainda no chegava capital biena; assim minha me teve que ficar no

  • Chinguar e, da recuar para o Huambo onde a esperava uma bela escola construda a telha, cal e cimento.

    Mais tarde vim a saber que a presena desta jovem em terras angolanas foi, em parte, consequncia de uma medida tomada pelo governador geral Norton de Matos que, preocupado com a exagerada proliferao de mestios que manchavam a sua poltica de desenvolvimento - Brancos de um lado e Negros do outro, moda inglesa incentivou a ida para Angola de jovens mulheres solteiras para casarem com os colonos que estavam em vias, como se dizia na poca, de se cafrealizarem ou seja viverem nos hbitos e costumes locais.

    Em 1920 a cidade do Huambo era uma criana com 8 anos de idade pois fora oficialmente inaugurada por Norton de Matos em 21 de Setembro de 1912. Nesta data eu ainda no era nascido; mas ouvi com tanta ateno e interesse os relatos de pessoas que assistiram ao acto solene que celebrou essa fundao que posso descrev-lo como se a ele tivesse assistido.

    Uma das pessoas de quem ouvi esse relato foi o prprio general Norton de Matos, em 1948, quando a Comisso de Escola da Faculdade de Cincias de Lisboa de apoio sua candidatura presidncia da repblica, a que eu pertencia, o foi visitar.

    Norton de Matos, que naquela data j ultrapassara os 80 anos, recebeu com satisfao aquele grupo de jovens e, sempre de p e durante duas horas, evocou com pormenor vrias passagens da sua vida entre as quais a criao e fundao da cidade do Huambo. Ouamo-lo:

    Quando, da primeira vez que fui nomeado para governar Angola, peguei no mapa da colnia para estudar a melhor maneira de assegurar a ocupao administrativa das terras do interior e incentivar o povoamento branco dessas terras, logo reparei que, quase no centro do territrio, havia uma regio planltica com numerosos cursos de gua cujo clima devia ser favorvel presena dos europeus. Alm disso esta regio deveria ser servida pelo caminho de ferro em construo. No hesitei e logo decretei a criao da cidade do Huambo. E quando ali cheguei em 21 de Setembro de 1912 para fazer a inaugurao oficial da criao da cidade, fiquei bastante desapontado pois, alm do barraco que servia como estao do caminho de ferro, poucas mais construes eram visveis.

    Foi com a Portaria nmero 1040 de 8 de agosto de 1912 que o governador geral, Jos Mendes Ribeiro Norton de Matos criou, no papel, a cidade do Huambo. Se data no havia infra-estruturas que justificassem o nome de cidade, j existia no entanto um grande acampamento no bairro da Plingue (Pauling) onde se instalara o grosso dos tcnicos e operrios do Caminho de Ferro de Benguela. Com a implementao deste a influncia inglesa alastrava a olhos vistos, do Lobito ao Huambo.

    Norton de Matos, que recebera uma educao de forte cunho britnico, era no entanto um figadal rival dos Ingleses e um nacionalista ferrenho. por esta razo que manda construir no Lobito o palcio para o governador geral, na Restinga, nas imediaes dos edifcios em madeira (bungalows) que os ingleses ali tinham construdo e tambm nas praias voltadas para o Atlntico. Quando chega ao Huambo e constata que os edifcios existentes eram, na sua maioria, obra da presena inglesa resultante da implementao do C.F.B., no hesita e assina ali mesmo as portarias que criam: a Delegao de Fazenda do Huambo e a primeira escola primria municipal. E no ano seguinte assina as portarias que criam uma escola agrcola experimental chamada Granja e um Posto Experimental de criao e tratamento de gado. A primeira rua que naquele tempo ligava a parte alta parte baixa da cidade tomou ento o nome de estrada da Granja; e o pequeno riacho que nascia entre a Alta e a Baixa, onde eu aprendi a nadar, passou a chamar-se rio da Granja.

  • O que para mim tem particular significado que a criao desta escola vai ter influncia decisiva na minha existncia, pois a jovem professora que teve que recuar do Chinguar acaba por ser quem vai ocupar o lugar do Huambo e vai habitar o edifcio novinho em folha, construdo como j disse em telha, cal e cimento, edifcio onde eu venho a nascer a 7 de Maro de 1921.

    Este prdio, se no foi destrudo pela guerra (estou redigindo estas linhas em Setembro de 1993), est situado no ngulo do cruzamento das estradas da Granja e da que passa em frente da ex-cmara municipal e segue para o Sacala. Este prdio foi construdo com cal, telha e cimento porque o governador geral tinha proibido as construes em adobe dentro do permetro da cidade.

    Esta INTRODUO tem como principal objectivo apresentar factos anteriores minha chegada a este mundo relacionados com a cidade do Huambo. Porm dadas as circunstncias que envolveram o meu nascimento, acho conveniente relat-las pois, alm de darem uma imagem da vida social daquele tempo, explicam alguns aspectos do meu comportamento futuro.

    Contaram-me que, quando nasci, escapei por um triz de ser lanado ao lixo. Naquele 7 de Maro de 1921 duas senhoras assistiram ao parto, uma foi a D.

    Palmira de Almeida e a outra foi a D. Emlia Delgado, mais conhecida por Emlia das Cabras. Nasceu primeiro uma rechonchuda menina e, quando se supunha j tudo resolvido, apareceu um saco....A D. Palmira pegou nele, apalpou-o e disse: estas coisas no se devem abrir...devem ir para o lixo. Mas a D. Emlia, mais experiente nestes assuntos, replicou dizendo: antes pelo contrrio, devem ser abertos e rapidamente... Depois de uma discusso entre o deve e o no deve abrir-se, a D. Emlia pegou numa tesoura e abriu o saco. Apareceu ento um ser bastante cabeudo e franzino, quase morto por asfixia...

    Por pouco esse ser cabeudo, que era eu, tinha ido parar ao lixo... Quando me contaram a histria do meu nascimento resolvi adoptar uma filosofia

    com ele relacionada e que pode ser resumida na atitude seguinte: quando no decorrer da vida e em dado momento estiver em apuros, fao de conta que no existo, que fui parar ao lixo, e deixo o tempo correr at tudo passar...Foram bastantes os momentos em que tive que recorrer a esta filosofia e, at agora, no me tenho dado mal.

    Eu era to franzino e a minha irm to gordinha e rosada que a nossa amiga D. Ana Campas Nunes comeou a chamar-lhe Baronesa.

    At hoje ela a Baronesa, mas eu nunca consegui chegar a baro!. Claro que os acontecimentos atrs descritos so memrias que me foram

    transmitidas por terceiros. Contudo, antes de comear a relatar as memrias que ficam registadas nas clulas cerebrais a partir de certa idade, quero relatar mais um episdio que no ficou registado nas clulas cerebrais mas ficou registado...numa chapa fotogrfica.

    Devia eu ter cerca de dois anos de idade quando o meu pai resolveu dar um passeio pela cidade para mostrar, vaidoso, os seus dois gmeos, o Scrates e a Athin. Meteu-se e meteu-nos, a mim e minha irm, numa tipia que dois possantes homens negros carregavam aos ombros e mandou tirar uma fotografia a este conjunto. Nesta foto, eu e a minha irm estamos ao colo de meu pai estendido numa tipia que dois possantes bailundos carregam aos ombros.

    S tive conhecimento desta fotografia em 1961, em Lisboa, quando deixei a cadeia do Aljube onde estivera hospedado a convite da polcia poltica portuguesa que achou conveniente dar-me alguns meses de retiro espiritual para ver se me convencia a acabar com as minhas manias de combater o colonialismo e a pr de lado as ideias desses comunistas que at comiam criancinhas ao jantar... Mas eu era teimoso e no

  • queria abdicar das minhas manias e tambm no queria que tal fotografia fosse apanhada por algum poltico de direita, ou mesmo de esquerda, que perante tal foto me acusasse de colonialista servindo-se para tanto do argumento do lobo da fbula de Fedro na qual o lobo disse ao cordeiro se no fostes tu que turvaste a gua, foi o teu pai e por isso guardei-a bem guardadinha mas pensava muito nela. Por exemplo, quando fui obrigado a fazer grandes viagens para conseguir levar avante os meus objectivos, passei pelo Camboja (hoje Campucheia) e por Hong Kong onde andei naqueles carrinhos puxados por um ofegante e esqueltico ser humano e, nesses momentos, pensava sempre, muito envergonhado, na tal fotografia.

    Depois estive em Pequim onde o Mao Ts Tung tinha acabado com os carrinhos puxados por homens famintos e, ento, nem queria que os camaradas chineses pensassem que eu tinha tal foto.

    Um dia, ainda na China, fui a Shangai numa das muitas viagens que o governo chins oferecia aos cooperantes estrangeiros. Quando visitvamos uma comuna, estando eu j bastante cansado, reparei numa pequena carroa de duas rodas e sentei-me nela. Os chineses que nos acompanhavam, por brincadeira, agarraram-se carroa e comearam a empurr-la. Nisto, um comunista italiano que dias antes se tinha purificado nadando nas guas do lago onde Mao Ts Tung tinha aprendido a nadar, tirou uma fotografia ao nosso conjunto brincalho.

    Quando o italiano me mostrou a sua obra fiquei radiante porque pensei que mais ningum poderia possuir uma fotografia com tal contedo: comunistas dos mais vermelhos e sanguinrios (estvamos em plena Revoluo Cultural e, no Ocidente, era assim que se pensava dos comunistas chineses) empurrando, alegres e descontrados uma carroa transportando um branco de nariz comprido (era assim que os chineses chamavam aos europeus).

    Na altura recordei-me que, com esta fotografia, poderia arranjar argumentos vlidos para mostrar sem receios a tal fotografia da tipia.

    Mas os anos foram passando e nunca tive ocasio para tal. E, na data em que escrevo estas linhas, Setembro de 1993, foram postos em causa e parecem definitivamente enterrados os ideais socialistas que marcaram o mundo na primeira metade deste sculo. Neste momento o tal capitalismo explorador e nauseabundo parece ser, afinal, a salvao da humanidade desde que esteja embrulhado no manto da democracia. Portanto no h razo para manter os receios do antigamente e escamotear um testemunho da opresso colonial.

    O contraste entre as duas fotografias, o simbolismo que delas se pode inferir - oprimidos carregando aos ombros opressores e comunistas dos mais ferozes empurrando, alegres e sorridentes, uma carroa em que um dos arrependidos se apresenta barbudo e convicto das suas boas intenes - aliado ao indito das duas situaes e pocas, julgo eu, justificam que estas imagens sejam publicamente reveladas nestas memrias, das quais elas so uma irrefutvel: prova do comeo e do quase final de uma vida nelas descritas.

    CAPTULO I

    Das brumas da meninice ao alvor da juventude O que a seguir relato deve ter acontecido quando eu tinha trs ou quatro anos,

    portanto h mais de 70 anos.

  • Naquele tempo no havia nenhuma construo volta da casa em que nasci e na qual funcionava a escola primria.

    Era uma bela e fresca manh de Domingo quando fui para a frente da escola, empertigado e vaidoso, para mostrar a quem passasse a bonita vestimenta que envergava: um fato casaco de cor creme, bordado com requinte, e sapatos pretos de verniz, muito brilhantes. Empertigado e vaidoso no s por causa da roupa bonita mas tambm porque me tinham dito que no era uma roupa qualquer: era uma roupa vinda de Paris, dos armazns Printemps (fiquei desde ento com Paris e Printemps gravados na memria a tal ponto que, quando em 1962, mergulhei clandestino na cidade das Luzes, logo que tive oportunidade, corri a visitar os grandes armazns parisienses).

    Frente escola aguardei pacientemente, que passasse algum e, quando j tencionava desistir, aparece-me uma viso de sonho: um avio pintado de amarelo passava minha frente...mas no cho...rebocado por uma camioneta! O inslito cortejo descia a rua da Granja, ia para a Baixa.

    Naquela poca, um avio no era coisa vulgar, e a reboque de uma camioneta, muito menos. Era mesmo um espectculo que ficaria gravado na memria de qualquer menino mesmo que estivesse muito preocupado em mostrar o seu fatinho importado de Paris.

    Tempos depois perguntei a um mais velho como que se explicava a existncia de um avio naquelas paragens. Respondeu-me que aquele avio tinha vindo do Puto para largar bombas sobre os Bailundos que se tinham revoltado.

    Avies, bombas, homens revoltados...mescla de ideias e imagens registadas no subconsciente do menino e nele vo provocar uma teimosa curiosidade que marcar profundamente o seu destino.

    Dos primeiros anos da meninice e daquela escola guardei outras imagens, umas mais ntidas do que outras.

    Lembro-me do Bento, rapazinho mestio que veio servir de ama seca de uma das minhas irms e que adormeceu, sentado naquelas altas escadas, com ela ao colo, e acordou espavorido quando a D. Leonor Tavares de Almeida lhe deu uma forte pancada na cabea com o guarda chuva; o Bento deu um grande berro e s no deixou cair a menina porque eu a segurei.

    Perto da escola havia um barraco bastante comprido que foi adaptado para servir de igreja, julgo que foi a primeira igreja catlica dentro da cidade; foi nesta igreja que a minha irm Manuela se casou com o Jos Bernardino, casamento que no precisou de cortejo automvel, pois foi feito a p.

    Lembro-me do padre Antnio Vieira, sempre suado dentro da sua negra sotaina e que vinha frequentes vezes escola acompanhado de meninos pretos.

    O padre Vieira era uma pessoa incansvel que estudou a lngua umbundo e publicou um dicionrio portugus-umbundo. Durante as suas prticas utilizava a lngua umbundo e quando se referia Virgem Maria chamava-lhe Cafeco Maria, o que era motivo de chacota por parte da rapaziada que frequentava os guardas nocturnos procura de cafecos, como eram assim chamadas as mulheres de vida fcil.

    Neste momento em que estou escrevendo estas memrias tambm me lembro da escola do Huambo porque, da praia em frente minha porta vm, proferidos por midos e grados, os piores palavres da lngua portuguesa, o que era rigorosamente proibido na escola de minha me. Quem dissesse um palavro - asneira, como ns dizamos - por mais ameno que fosse, tinha que engolir, sem tugir nem mugir, uma colher de pimenta bem cheia!.

    Eu tinha uma grande admirao pelos meninos, alguns j matules, que engoliam a pimenta sem qualquer sinal de revolta ou dor. A menina de cinco olhos, a

  • palmatria, tambm era utilizada frequentes vezes; dezenas de anos mais tarde encontrei antigos alunos de minha me que diziam abenoar as palmatoadas que tinham levado na escola.

    Na poca carnavalesca, grupos de mascarados paravam frente escola mostrando as suas barulhentas exibies na mira de obterem um mata bicho compensador. Eu escondia-me atrs da varanda com medo de to barulhentas movimentaes. Lembro-me disto por causa do calafrio que me percorreu a espinha quando, uma vez, um grande bailarino negro, dando apitadelas estridentes, saiu da massa compacta de danarinos e dirigiu-se, com acenos que me pareciam de Satans, varanda onde se encontrava a minha me e convidou-a para danar. Sorridente e bem disposta, minha me recusou sem ofender o bailarino e este dirigiu-me um alvo amplo sorriso que dissipou o medo que se apossara de mim.

    Numa lmpida manh de cu azul, ainda eu no conseguia ver para l da varanda sem me pr na ponta dos ps, fomos todos ao campo de aviao saudar os hericos aviadores portugueses que, numa esquadrilha de quatro ou cinco biplanos, aterraram no Huambo depois de terem atravessado a frica vindos de Lisboa, a capital do Imprio.

    Enfarruscados de leo dos ps cabea, com grandes culos escuros e com um gorro castanho com abas que apertavam debaixo do queixo, os aviadores no escondiam a sua grande alegria afagando os pequenos avies a pingar leo aqui e ali.

    A partir da vinda destes heris do ar cidade do Huambo comeou a expandir-se o interesse pela aviao a tal ponto que depois de Luanda a primeira escola de aviao civil nasceu na capital planltica sob o impulso do capito Baltazar que, se no me falha a memria era um dos heris da primeira esquadrilha que ali aterrou. O primeiro instrutor da escola de aviao do Huambo foi o Fernando Bossa que era um homem corpulento que tinha que ter particular cuidado quando entrava nas frgeis e pequenas avionetas de instruo do Aero Clube do Huambo. Foi na cidade do Huambo que nasceram algumas das primeiras e mais importantes iniciativas de carcter social e outras de carcter econmico, cultural e poltico. Alis um dos incentivos que me leva a escrever estas memrias o secreto e imparvel desejo de revelar essas iniciativas, algumas das quais cairo definitivamente no tmulo do esquecimento se eu no conseguir revel-las.

    Foi no Huambo que se ergueu a primeira barragem hidroelctrica do pas. Foi construda pelo Caminho de Ferro de Benguela, a cerca de vinte quilmetros da cidade do Huambo, no rio Cuando, perto da Misso Catlica onde fui baptizado. A ela tambm est ligada uma recordao da minha meninice:

    Num entardecer da vspera de um Natal da dcada de 30, um patrcio de meu pai que trabalhava na construo da barragem do Cuando, levou-nos a visitar as obras. L fomos, num Ford bem alto, num calas arregaadas, como vieram a chamar-se estes carros e, j no leito do rio, andmos saltando de pedra em pedra acompanhando os tcnicos que inspeccionavam as obras. Finda a visita regressmos cidade era j noite.

    Fatigados, mas radiantes com o passeio, preparmo-nos para comer, antes da ceia de Natal, uma canjinha de galinha. Servida esta, houve uma certa hesitao entre os comensais que fizeram uma grande careta quando provaram a apetecida canjinha. que a canja fumegante cheirava a coc (esta era a palavra que os meninos daquele tempo utilizavam para dizer merda).

    Face a tal cheirete, consultou-se a panela e o cozinheiro e constatou-se que este estava com uma piela de tal ordem que fizera a canja com a galinha recheada com as tripas e respectivo coc...

  • Por vezes eu acompanhava o meu pai Baixa onde ele tinha uma fbrica de cigarros; eu ficava todo contente quando apanhava um cigarro muito comprido que aparecia quando a mquina estava mal regulada. Foi desde ento que fixei a palavra monoplio pois, mais tarde a fbrica foi obrigada a parar por culpa, como afirmava o meu pai, dos monoplios de fabrico de cigarros sediados na capital, monoplios que ele insultava em grego e em ingls. Lembro-me que em ingls era assim: son of a bitch. E em grego s posso reproduzir tal como ouvia: napardiros camoti raa. (Devem ser uns palavres muito giros porque os gregos a quem pedi a traduo negaram-se a isso).

    O tabaco para esta fbrica de cigarros era cultivado numa plantao situada no Calulo, beira da estrada para o Laboratrio de Patologia Veterinria, a cerca de uma dezena de quilmetros da cidade.

    Salvo contestao vlida fica aqui assinalado que a primeira fbrica de cigarros do pas e respectiva plantao de tabaco nasceu no Huambo com a marca de cigarros S. Dskalos.

    Entretanto fiz o exame da Quarta classe e a minha me foi transferida para Silva Porto (hoje Kuito).

    Pouco tempo l ficmos e no regresso fomos morar numa casa nossa, na Baixa. Esta casa era um prdio extenso, comprido, ocupando toda uma transversal Av. Castro Soromenho; na frente principal que dava para a avenida existiam dois talhos, duas grandes lojas, uma peixaria e uma padaria.

    A padaria era de meu pai que me obrigava a dar uma ajuda diria que comeava quando o sol despontava e eu era acordado com uma grande vassourada de gua fria nas trombas e continuava com a contagem do po pelos tabuleiros dos vendedores; se um destes faltava, l ia eu fazer uma ronda de distribuio na cidade e, tudo isto, antes de ir para o colgio.

    Tratava-se do colgio Alexandre Herculano que nascera h pouco tempo; a directora era a D. Alda Felipe Barreto de Lara, a D. Alda, como ns a tratvamos, casada com o comerciante Abel Lara.

    A D. Alda era uma senhora muito culta, dada s artes e s letras que se preocupava mais com a sabedoria e cultura dos seus educandos do que com os lucros financeiros. Pelo contrrio, o marido era um feroz controlador dos gastos e ganhos e, por ser exigente em matria financeira, tinha uns detractores que lhe chamavam Lara Pio para no dizerem Larpio.

    A D. Alda, na sua nsia de ensinar e cultivar, alm das matrias obrigatrias promovia sesses de poesia, teatro, pintura e canto.

    O meu pai, que se tinha formado na experincia e com a prtica da vida vivida nas Universidades de Mximo Gorky, contrariava a teoria e defendia a tese de que a prtica da vida era a melhor escola; ao contrrio de minha me, que queria ver os seus filhos doutores seguindo uma tradio familiar de ascendentes destacados nas artes marciais, nas letras e nas cincias.

    Talvez a pedido de minha me o Abel Lara convenceu o meu pai a pr-me no colgio pagando a respectiva mensalidade no equivalente em po. Uma vez no colgio, como a minha vida familiar era muito diferente da dos outros alunos - pois tinha que trabalhar na padaria - interessei-me pelos livros e tornei-me um aluno considerado exemplar. Mas, de vez em quando, o meu pai resolvia que eu no precisava mais de teorias e tirava-me do colgio. Pacientemente, o Abel Lara convencia o meu pai e eu voltava para o colgio.

    Esta cena repetiu-se vrias vezes at que me apercebi que o meu velho tinha muito orgulho no filho, pois toda a gente me gabava como bom aluno e, desde ento,

  • comecei a no ligar quando meu pai comeava a resmungar murmurando no precisa mais teoria, a prtica da vida tudo, voc no precisa de ir mais ao colgio.

    Mas se no fora a pacincia da D. Alda e do Abel Lara, eu no teria terminado o curso dos liceus.

    Graas D. Alda eu pintava quadros a leo ou aguarela, decorava grandes jarres, fazia esculturas em barro, tudo a expensas do colgio...mas tambm inutilizava camisas e calas manchando-as com tintas que resistiam a todas as lavagens. E ento, quando de madrugada ia distribuir o po pela cidade, pedalando furioso para no chegar tarde s aulas, ia muito envergonhado porque, alm de pensar que ser padeiro era pouco dignificante tinha vergonha da roupa manchada de vrias cores.

    No colgio conheci toda uma pliade de professores que, apesar de no terem cursos de pedagogia, eram muito competentes, gostavam de ensinar e sabiam dar um safano a tempo como fazia o doutor Salazar aos polticos que no concordavam com ele.

    Lembro-me do lvaro Faria, do capito Barata, do padre Costa