sociomuseologia7_1996

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    ... a busca das identidadesculturais, em vrios pases do mundo, acabamotivando e dinamizando as prticas e polticasde conservao. Desde ento, conservar no querdizer preservar ou salvaguardar, masprimeiramente restituir, reabilitar ou reapropriar-se. A prpria vida social e efetiva parece ser cadavez mais o objeto da conservao.

    A poltica de preservao de pedra e cal(monumentos arquitetnicos), adotada no Brasil ao longo detodos esses anos, tem concorrido para a adoo de uma visodistorcida do que seja o nosso patrimnio, contribuindo paraque deixemos de reconhecer como bem cultural toda umagama de bens produzidos pelas camadas populares.

    Alm dessa viso distorcida, que tem influenciado naseleo dos acervos, a preservao tem sido realizada de formasaudosista, romntica e extica. algo que est relacionado aum passado distante e no nossa realidade prxima. Emgeral, todo esse acervo preservado - monumentos, stiosarqueolgicos e histricos, colees expostas nos museus etc. - apresentado como a produo de um passado remoto, que

    no diz respeito vida no momento presente. A utilizao doreferencial do passado, como embasamento para uma reflexocrtica e entendimento do presente, explorando todo o seupotencial com o objetivo de provocar as mudanas necessrias,no tem sido uma prtica utilizada.

    A poltica cultural brasileira no s tem incorporadocomo reproduzido um conjunto amplo de processos polticos e

    culturais, refletindo seus antagonismos. Mesmo quandosurgem frentes de renovao cultural, estas esto sujeitas s

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    frentes de renovao poltica. Mota (1990, p. 285), destacaque:

    ... a um momento de mobilizaoda cultura popular que apontava para um processode socializao correspondeu a montagem de umaparato de alto poder repressivo que, adaptandoas tcnicas da experincia frustrada criou uma

    rede ampla de comunicao em que o potencialcrtico da cultura popular foi neutralizado emobilizado para os quadros da massificao -realizada agora, em escala massiva, sombra daideologia da cultura brasileira.

    Observa-se que, recentemente, a incorporao de

    objetivos que visam participao comunitria nas instituieseducativas e culturais tem sido constante. Entretanto, naprtica, essas iniciativas no tm passado de mais uma formade controlar, apesar do Estado estar sempre se colocando comoelemento neutro. Segundo Ortiz (1985b, p.125):

    ... a direo para a qual aponta o

    desenvolvimento do capitalismo brasileiro nosleva a pensar que ao estatal e privadacaminhariam no sentido da instaurao de umahegemonia cultural. As telenovelas, assim como oconsumo de produtos distribudos e financiadospelo Estado, contribuem para que as relaes depoder se reproduzam no interior da prpria

    cultura.

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    Da seleo inadequada e imposta e do uso inadequadodos acervos preservados, assistimos agora expanso dopoderio econmico dos meios de comunicao, que tmreduzido a cultura popular em manifestaes para turistaver. Comentando sobre a expanso e a penetrao dos meiosde comunicao nas classes populares, Bosi (1987, p.126)destaca que:

    A cultura de massa entra na casa docaboclo e do trabalhador da periferia ocupando-lhe as horas de lazer em que poderia desenvolveruma forma criativa de auto-expresso: eis o seuprimeiro tento. Em outro plano, a cultura demassa aproveita-se dos aspectos diferenciados davida popular e os explora sob a categoria de

    reportagem popularesca e de turismo. Ovampirismo assim duplo e crescente: destri-sepor dentro o tempo prprio da cultura popular eexibe-se para consumo do telespectador o querestou desse tempo, no artesanato, nas festas, nosritos.

    Assim como a preservao no tem sido efetivada como objetivo de transformar a realidade, a partir das reflexes dosdados do passado, a educao, em geral, tambm tem sidoconduzida para o conformismo, para a conduo de currculosimpostos de cima para baixo, com contedos dissociados darealidade em que as escolas esto inseridas, praticando-se aerudio em aulas expositivas, nas quais o professor

    deposita o seu conhecimento, valorizando muito mais amemria do que a inteligncia.

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    A burocratizao, cada vez mais praticada e impostaaos educadores, faz com que os mesmos fiquem distante daescolha dos contedos que devero ser ministrados, daavaliao da prtica pedaggica por eles exercida e da anlisedo papel que a escola exerce na sociedade. A relao entre aburocratizao da escola e a estruturao dos conhecimentosfoi bem explicitada por Wake (1988, p.16), quando registraque:

    As maiores exigncias colocadassobre as estruturas do conhecimento pela escolaburocratizada so: que o conhecimento sejadividido em componentes ou em componentesrelativamente limitados; que as unidades deconhecimento sejam ordenadas em seqncia;

    que o conhecimento seja transmissvel de umapessoa a outra por meios convencionais decomunicao; que o sucesso na aquisio departe, se no de todo conhecimento, seja passvelde registro em uma forma quantificvel; que oconhecimento seja objetivado no sentido de teruma existncia independente de suas origens

    humanas; que o conhecimento seja estratificadoem vrios nveis de status ou prestgio; que oconhecimento baseado na experincia concretaseja tratado como de menor status, mas que oconhecimento expresso em princpios abstratos egeneralizados seja, considerado como tendo altostatus.

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    A escola burocratizada tem ignorado os problemasrelacionados com as especificidades culturais, a anlise dosprofessores e a histria de vida dos seus alunos. Da a grandedificuldade de se tentar, na prtica, uma ao que no estejarelacionada com o modelo estabelecido.

    A anlise da realidade educativo-cultural no Brasildeve-nos conduzir a uma ao transformadora da realidade,pois, conforme destaca Severino (1986, p.62):

    O acesso ao saber, aos bensculturais em geral, de fundamental importnciapara as classes subalternas. Ele lhes darinstrumentos e recursos de luta contra adominao. Por isso, a escola pblica, aberta eigualitria, uma necessidade para essas classes,

    mesmo enquanto estiverem organizadas eorientadas pelas classes dominanteshegemnicas.

    Estas reflexes tm-nos levado a acreditar, cada vezmais, que a relao entre museu e educao intrnseca, umavez que a instituio museu no tem como fim ltimo apenas o

    armazenamento e a conservao, mas, sobretudo, oentendimento e o uso do acervo preservado pela sociedadepara que, atravs da memria preservada, seja entendida emodificada a realidade do presente. Nesse sentido, a prpriaconcepo do museu educativa, pois o seu objetivo maiorser contribuir para o exerccio da cidadania, colaborando paraque o cidado possa apropriar-se do seu patrimnio e preserv-

    lo, assim ele dever ser a base para toda a transformao que

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    vir no processo de construo e reconstruo da sociedade,sem a qual esse novo fazer ser construdo de forma alienante.

    necessrio, entretanto, chamar a ateno para o fatode que, no Brasil, so poucas as experincias no campomuseolgico voltadas para o registro do fazer cultural deforma mais abrangente, envolvendo os diversos segmentos dasociedade, preocupando-se em assinalar as mudanas e ascontradies. Ainda no conseguimos soltar as amarras que

    nos mantm atados ao colecionismo, aceitao passiva esubmissa de formas e coisas de um passado que no relacionado com a vida no presente.

    A transformao desejada, a nosso ver, passa peloquestionamento do modelo de sociedade que possumos,entendendo que a anlise das relaes entre determinantessociais e a atuao dos museus no nos devem conduzir ao

    imobilismo, mas devem-nos incentivar a superar asdeficincias. Neste sentido, importante considerar que, nansia de buscar uma prtica mais participativa, comprometidacom o desenvolvimento social e com a transformao, preciso evitar o perigo de usar a comunidade como cobaia parasimples coleta de informao e para a pesquisa que se esgotaem si mesma.

    A conscincia de que devemos buscar esse novo fazermuseolgico deve-nos motivar a sair do imobilismo, aconstruir a nossa prtica e a registr-la de forma sistemtica,para que possamos democratizar as informaes e fornecerdados coletados em nossa realidade, pois a bibliografiaexistente escassa e contempla o modelo de museutradicional.

    Torna-se necessrio, portanto, que muselogos eeducadores continuem planejando e executando aes

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    integradas, visando a utilizao dos bens culturais comoinstrumento para o entendimento da vida no passado e nomomento presente, destacando que indispensvel a aoarticulada com as demais prticas sociais globais, dandoprioridade participao conjunta. Acreditamos que oscaminhos sero apontados na medida que nos distanciarmosmais dos nossos gabinetes e nos aproximarmos mais da vidacotidiana fora do museu e do espao da Universidade. Este

    tem sido um fato constatado nos programas de ao culturalpor ns desenvolvidos, nos quais o crescimento tem se dadoatravs do dilogo e da integrao com os diversos gruposcom que temos trabalhado, o que justifica continuar atuandonesta linha.

    Temos dirigido as nossas aes no Curso deMuseologia da Universidade Federal da Bahia para uma

    prtica efetiva, em que professores e estudantes de 1o, 2oe 3ograus tm atuado de forma integrada, tornando vivel a prticado ensino e da aprendizagem, por meio da observao e daanlise de aspectos importantes do nosso patrimnio cultural,relacionando-o com a vida no presente e entendendo-o comoproduto do homem, sujeito da Histria e, portanto, comoresultado das relaes sociais e polticas.

    Aps termos atuado durante dois anos e meio noColgio Estadual Azevedo Fernandes, situado no CentroHistrico da Cidade do Salvador, fomos convidados peloInstituto Ansio Teixeira a desenvolver projeto semelhante noColgio Euricles de Matos, situado no Bairro do RioVermelho, na Cidade do Salvador. O projeto sofreuadaptaes para atender realidade dos alunos, dos

    professores e da comunidade local.

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    Entretanto, as aes desenvolvidas entre os museus eas escolas, bem como os projetos por ns desenvolvidos, namaioria das vezes, no passvam de eventos espordicos, emque professores e alunos participam de forma poucocomprometida e, no raro, como meros observadores.

    No momento presente, com base na experincia vividana execuo dos diversos projetos acima referidos,constatamos que era de fundamental importncia trabalhar a

    formao do professor para que este viesse a ser um agenteativo, no sentido de usar a memria preservada, testemunhoda Histria, entendida como forma de existncia social nosseus diversos aspectos - econmico, poltico e cultural -, bemcomo o seu processo de transformao, contribuindo, destemodo, para a formao dos cidados. Por outro lado, eranecessrio continuar repensando os contedos programticos

    das diversas disciplinas oferecidas no ensino bsico,procurando resgatar o acervo cultural dos estudantes e dascomunidades onde as escolas esto inseridas, proporcionandoa oportunidade para que o jovem, desde a sua formao,perceba o sentido da preservao e da identidade cultural.Como esperar que a comunidade seja responsvel pelo seupatrimnio se desconhece o seu contedo, o seu valor e a

    relao desse patrimnio com a sua histria de vida nopassado e no presente?

    Em relao ao Curso de Museologia da UFBA, eranecessrio realizar uma prtica efetiva, capaz de proporcionaraos alunos e professores a oportunidade de vivenciar aconstruo de um novo fazer museolgico, com base naapropriao do patrimnio cultural, contribuindo, assim, para

    que a identidade seja vivida na pluralidade e na dinmica doprocesso social entendendo-se que o patrimnio cultural no

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    deve ser uma aquisio por parte de um organismo, mas simuma apropriao social. Essa nova postura iria permitirtambm a execuo de atividades com temas e acervos atento pouco trabalhados, exercitando novos mtodos eassimilando novos conceitos. Infelizmente, a Museologia quevem sendo aplicada na maioria das instituies museais doPas, como na Cidade do Salvador, no tem permitido avanosneste sentido, o que dificulta o entendimento por parte dos

    alunos, por no existirem exemplos concretos que possamservir de parmetros, no momento em que so colocadas, emsala de aula, as reflexes tericas que embasam a necessidadede evoluo do processo museolgico.

    Compreendendo que no podemos dissociar a atuaodo professor universitrio de uma prtica efetiva nacomunidade e acreditando que essa prtica s se concretiza no

    momento em que professor, aluno e grupos comunitriospassam a atuar de forma integrada e participativa,questionando, construindo e analisando conjuntamente,buscamos realizar uma tese de doutorado, que permitisse arealizao de uma atuao integrada entre o Curso deMuseologia, Doutorado em Educao da UFBA, Secretaria deEducao-Instituto Ansio Teixeira, 10 Grau e Curso de

    Magistrio do Colgio Estadual Governador Lomanto Jnior edos moradores do Bairro de Itapu, pretendendo alcanar osseguintes objetivos:

    a) integrar a Universidade Federal da Bahia - Curso deMuseologia e Doutorado em Educao - comunidadena qual est inserida, tornando-a centro de ao-

    reflexo, contribuindo efetivamente para a produo doconhecimento e, conseqentemente, para o

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    enriquecimento do processo museolgico e para umanova prxis pedaggica;

    b) repensar os contedos programticos, o materialdidtico utilizado e as atividades pedaggicas, tomandocomo referencial o acervo cultural dos estudantes,professores e funcionrios do Colgio EstadualGovernador Lomanto Jnior e dos membros da

    comunidade do Bairro de Itapu envolvidos no projeto,buscando o entendimento e a reflexo sobre opatrimnio cultural, dentro da dinmica do processosocial;

    c) tornar possvel a utilizao dos bens culturais e damemria social local para a compreenso do processo

    de surgimento dos acontecimentos, no como evento,mas incorporada prtica pedaggica e ao fazercotidiano da escola;

    d) proporcionar ao estudante de Museologia aoportunidade de vivenciar uma nova prticamuseolgica, trabalhando a memria social, seu

    registro, a interpretao e a utilizao consciente porparte daqueles que a produzem, por meio de uma aointegrada entre os tcnicos e os sujeitos envolvidos noprocesso;

    e) implantar um museu didtico-comunitrio no ColgioEstadual Governador Lomanto Jnior, desenvolvendo

    uma ao conjunta com professores, alunos,funcionrios e membros da comunidade envolvidos no

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    processo e de estagirios e professores do Curso deMuseologia e demais grupos interdisciplinares queviessem a compor a equipe executora do projeto.

    A presente publicao apresenta todo o processoconstrudo ao longo do nosso caminhar, no Doutorado emEducao, resultado das constantes reflexes realizadas, apartir da relao teoria-prtica. Nos captulos 2 e 3

    apresentamos uma anlise sobre a poltica cultural e a atuaodos museus no Brasil, e uma abordagem sobre a construodoconhecimento na museologia, situando-a em uma anlise deprocesso; portanto, em constante transformao.

    Essas reflexes forneceram a base necessria para odesenvolvimento do processo metodolgico, explicitado nocaptulo 4 e para a realizao da ao com a participao dos

    demais membros atuantes no processo, por mim consideradoscomo co-autores na construo do Museu Didtico-Comunitrio de Itapu, cujo desenvolvimento narrado nocaptulo 5.

    Por fim, no captulo 6, destacamos os resultados dasreflexes realizadas ao longo do caminhar e que consideramospossam contribuir para a construo do conhecimento nas

    reas da museologia e da educao, podendo auxiliar, tambm,na estruturao e reestruturao de Cursos de Museologia e dePedagogia, na atuao dos museus e das escolas, melhorando,consequentemente, os processos de ensino e da aprendizagem,nos diversos nveis de ensino.

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    CAPTULO 2

    POLTICA CULTURAL E MUSEUS NO BRASIL:tentando desvelar e entender para estabelecer um novo ponto

    de partida.

    A reelaborao da memria se d nopresente e para responder a solicitao dopresente. do presente, sim, que arememorao recebe incentivo, tantoquanto as condies para se efetivar.

    Ulpiano Meneses (1992, p. 3)

    2.1 Apresentao

    No presente tpico, enfocaremos o tema polticacultural com o objetivo de ampliar a discusso em torno darelao MUSEU X ESTADO, tentando apontar alguns

    indicadores que caracterizam a poltica cultural no Brasil.Nesse contexto, os museus se inserem como suportessignificativos na tentativa de construo de uma identidadenacional.

    Assim, para o desenvolvimento do tema, optamos porapresentar, inicialmente, uma abordagem contextual, situando-o no interior de uma concepo monista, de uma razo

    absolutizadora e no surgimento do Estado Nacional Moderno.Em seguida, procuramos pontuar algumas aes levadas a

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    efeito no bojo da poltica cultural adotada, no Pas, emvrios momentos, aes estas pautadas em uma concepo decultura de carter unitrioe globalizadorque apontam para abusca de uma identidade nacional. Finalmente, tentamos situaros museus no contexto da poltica oficial de cultura do Pas,destacando algumas aes documentadas em atos oficiais, bemcomo registros de profissionais da rea, no intuito de buscarindicadores que possam identificar prticas e propostas

    museolgicas reveladoras de aes que se baseiam em umaconcepo de memria e de tradio, como um corpoconsolidado de crenas, normas e valores definidos no passadoe que funcionam, para o Estado, como um suporte necessriopara sua afirmao.

    Com esta abordagem ampla, no pretendemos falar emnome do todo social. Como afirma Morais (1989, p.13), no

    h discurso demirgico sobre a realidade; tudo bem humanoe relativizvel. O que pretendemos com a anlise aquirealizada alcanar melhor compreenso da realidaderelacionada com nosso campo de atuao e, situando-a nocontexto das demais prticas sociais globais, tornar as nossasaes mais claras - compreender, para estabelecer um novoponto de partida, pois acreditamos que na rea da poltica

    oficial de cultura no Brasil, h espaos para reproduo eproduo.

    2.2 Uma Abordagem Contextual

    A anlise sobre a Poltica Oficial de Cultura no Brasile seus espaos de reproduo e produo, talvez no seja

    possvel de ser efetuada sem uma abordagem mais ampla que asitue no interior de uma concepo monista - de uma razo

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    absolutizadora, que visa a substituio da multiplicidade dadoxapela unidade da cincia da episteme- e no surgimento doEstado Nacional Moderno- associado idia representativade estado do bem comum, neutro em relao s classes,mediador dos conflitos e civilizador dos instintos agressivose gananciosos dos homens.

    Descobrir a unidade por trs da multiplicidadefenomnica; dissolver a pluralidade inerente ao sensvel e s

    opinies numa soberana Unidade, estabelecida pela visocerteira e integradora da razo; o logos filosfico seria, ento,fundamentalmente ligador, unificador - objetivo doracionalismo clssico, perseguido por Descartes e descrito porPessanha (1987, p.61):

    Como conhecimentoabsolutamente verdadeiro, indubitvel e

    universal, a respeito de tudo que pudesse serperfeitamente enquadrado pela tica de uma razofatalmente absolutizadora, posto que RazoAbsoluta, razo do Absoluto, viso coincidentecom o Olhar Eterno (de Deus).

    Fora desse territrio de necessrio consenso entre

    todos os espritos aclarados pela cincia nica, ficaria osombrio reino das impresses instveis e inconsistentes, dasidias falsas e obscuras, da no-verdade.

    Tentando elucidar a postura da histria da filosofiaocidental que, freqentemente, tem como base a colocao deverdades absolutas, Perelman (citado por Pessanha, 1987,p.70) destaca o papel desempenhado pelo monotesmo

    judaico-cristo na formao da conscincia ocidental,encorajando o monismo axiolgico no que concerne aos

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    valores, notadamente no campo da tica, enfatizando, tambm,a sua adoo nos campos metodolgico e sociolgico. Nocampo metodolgico, destaca a existncia de um nico mtodoa ser seguido para se atingir a verdade - o mtododemonstrativo dos matemticos, que deveria fornecer, emtodas as reas do conhecimento, o mesmo tipo de certeza quenos proporcionado pelo conhecimento matemtico. Emrelao sua adoo no campo sociolgico, ressalta o

    monismo sociolgicoque encara as relaes entre indivduose sociedade semelhana de suas relaes com um Deusnico, como em Durkheim, e destaca:

    ... essas vrias faces do monismo ontolgico, axiolgico, metodolgico,sociolgico apresentam-se em grande fora no

    campo das idias filosficas, no apenas pelorespaldo teolgico do monotesmo, mas tambmpela vantagem que indiscutivelmente oferecem: Avantagem do monismo fornecer, em cadacampo, uma concepo sistematizada eracionalizada do universo, sob todos os aspectos,permitindo encontrar uma soluo nica e

    verdadeira para todos os conflitos de opinies etodas as divergncias.

    necessrio ressaltar os inconvenientes destacadospor Perelman no que concerne adoo do monismo,sobretudo porque so bastante esclarecedores em relao aotema que estamos discutindo neste captulo, ou seja: Poltica

    Cultural e Museus no Brasil.

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    O inconveniente das ideologiasmonistas de favorecer um reducionismo porvezes dificilmente tolervel. Quando no chegama fazer prevalecer seu ponto de vista, podemjustificar - em nome de Deus, da razo, daverdade, do interesse do Estado ou do partido - orecurso coao, ao uso da fora em relao aosrecalcitrantes. Aqueles que resistem deveriam ser

    reeducados e, se no se deixam convencer,devero ser punidos por sua obstinao ou porsua m vontade.

    Deve-se relacionar o monismo ao do Estado paracompreender a sua atuao nos mbitos da cultura e daeducao no Brasil, entretanto, necessrio se faz que o Estado

    Brasileiroseja enfocado a partir de alguns vetores que foramfundamentais para a sua constituio, entendendo-o noapenas como um conceito, mas como fenmeno histrico,resultado de situaes especficas e mutveis.

    Neves (1987, p.22) destaca que o absolutismocorrespondeu montagem e ao entrosamento das engrenagensque caracterizam o Estado contemporneo. Salienta que as

    idias mercantilistas passaram a intervir na produo, com oobjetivo de reforar o prprio poder. Adotando uma legislaocomplexa, e s vezes catica, procurou-se ordenar a sociedadede acordo com certos princpios e valores. O poder deixou deser encarado como o guardio de uma ordem imutvel,estabelecida transcendentemente, para ser considerado odemiurgo de um mundo novo, medida e semelhana de um

    homem, a quem cumpria dar luz. O referido autor salientaque:

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    ... esse recuo da tradio face liberdade depensamento, gerava uma pulverizao de valorese comportamentos, que comprometia aspretenses do Estado em erigir-se como rbitro dasociedade (Neves, 1987, p.22).

    Citando Fuest e Ozonf, Neves destaca que a lei deveser inculcada, apreendida, interiorizada para tornar-se efetiva.

    Esclarece que o absolutismo ilustrado, no sc. XVIII, trouxe,como grande novidade, o aproveitamento dos mecanismos decatequizao da Igreja em seu prprio proveito. Nesse perodo,a preocupao com a

    ... escola e com a cultura escritasignificou o reconhecimento do papel que ambas

    poderiam desempenhar, no sentido de uniformizarcontingentes de indivduos, dotando-os de umconjunto de valores e normas afinados com osinteresses dominantes na condio do Estado, soba forma de um pensamento secular sobre oHomem e a Sociedade; sob a forma de umaideologia, que gradualmente integrasse aqueles

    setores sociais, cuja posio e atitudes houvessemlibertado da liturgia de uma tradiotranscendente, ao novo mundo imanente das leishumanas (Neves, 1987, p.22).

    A Revoluo Francesa traz uma concepo laicizada

    do poder. O que caracterizava o povo-nao era o fato de queele representava o interesse comum contra os privilgios do

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    Antigo Regime. Assim, o significado mais freqente e maisforte desta concepo equiparava o povo ao Estado e atribua nao a caracterstica de um ente uno e indivisvel, por serconstituda pelo corpo de cidados que tinham no Estado suaexpresso poltica (Cunha, 1992, p.32).

    Comentando sobre a ao da representao modernade Estado, Chau (1990, p.6) diz que, se fizermos um pequenoretorno histria, verificaremos que no houve uma laicizao

    da poltica, mas apenas um deslocamento do lugar ocupadopela imagem de Deus como poder uno e transcendente:

    Deus baixou do cu terra,abandonou conventos e plpitos e foi alojar-senuma imagem nova, isto , no Estado. No querocom isso referir-me ao direito divino dos reis.

    Refiro-me representao moderna do Estadocomo poder uno, separado, homogneo e dotadode fora para unificar, pelo menos de direito, umasociedade cuja natureza prpria a diviso declasses. a esta figura do Estado que designocomo nova morada de Deus.

    Abordando as dificuldades encontradas pelo Estadomoderno em conciliar em uma mesma e nica ideologiavalores capazes de reger o comportamento de uma populaoque, alm de suas individualidades, se encontrava dividida portradies locais diversas, por situaes sociais diferenciadas,por interesses distintos, seno antagnicos, como era o casodos Estados Ocidentais, Neves (1987, p.23) destaca que a

    soluo encontrada mantm algumas semelhanas com asprticas desenvolvidas pelos Jesutas em seus colgios para

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    formar as elites do Antigo Regime. Citando G. Snyders,enfatiza que as doses macias de cultura clssica a ministradasdestinavam-se a transportar o aluno, j previamente isolado darealidade pelo prprio colgio, para o mundo de umaantiguidade idealizada, cujos discursos falavam precisamente alngua dos valores e normas que os inacianos pretendiamtransmitir. O autor destaca que, no sc. XIX, foi a nao queocupou o lugar da Antiguidade dos Jesutas, e d nfase ao

    papel, obra dos historiadores que, ao revelarem os gestos dosantepassados, dotavam o passado de um sentido capaz deforjar aquelas solidariedades que se mostravam impossveis nopresente. E atribui esse papel ao historiador, por duas razes:

    de um lado, os feitos memorveis do passado no podiamser vividos, mas apenas imaginados e, por conseguinte,

    reconstitudos semelhana da viso de mundo do prpriohistoriador;

    de outro, a Histria, agora plenamente secularizada,dispunha, a partir dos philosophes, de reconhecimentosocial e, a partir de Ranke, de um mtodo com apossibilidade de equipar-la, em presumida segurana dos

    resultados, ao novo modelo vigente de conhecimento, ouseja, s cincias fsicas.

    Comentando sobre a eficcia das formas nacionais deorganizao das sociedades humanas, Cunha (1992, p.34)destaca dois aspectos fundamentais: o primeiro diz respeitoaos mecanismos da economia, existncia de Estados com

    finanas pblicas e monoplio da moeda - portanto, atividadespolticas e fsicas. Salienta que

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    ... era mais que um dado darealidade, uma contingncia inevitvel e desejada.A existncia de naes autnomas era umfenmeno essencialmente econmico: o Estadogarantia, afinal de contas, a segurana dapropriedade e dos negcios. nao implicouuma economia nacional e sua sistemtica

    promoo pelo Estado, alavanca da acumulaode capitais e condio de sua defesa.

    Outro aspecto significativo, relacionado ao tema queestamos discutindo, enfatizado por Cunha, quando destacaque argumentos como a etnicidade, a lngua ou a Histriaforam utilizados para fundamentar as ideologias nacionais, eque era necessrio convencer disso homens e mulheres que

    constituam esse povo. Hobsbawm (citado por Cunha, 1992,p.34) intitula esse processo de a inveno das tradies e odescreve como um processo de formalizao e ritualizao,caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenaspela imposio da repetio.

    Nesse contexto, com o objetivo de construir umaidentidade e uma coeso nacional, foi realizado um grande

    investimento simblico, procurando-se construir uma idia denao acima das diferenas e das diversidades. Os smboloscomo bandeiras, hinos, monumentos de carter oficial ouextra-oficial, so exemplos desse esforo. Cunha (1992, p.34)destaca que:

    A construo de uma memria do Estado e de

    uma historiografia centrada na idia denacionalidade engendram uma viso do passado

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    calcada em grandes vultos e acontecimentosencadeados de forma a fazer da histria umabiografia nacional em seus temas, em suasnfases, em seus recortes. As naes que sevestem com a roupagem da modernidade e doprogresso necessitam - aparente paradoxo - delegitimar-se atravs de um passado no qualencontrariam suas razes e sua justificao.

    Inculcam padres e valores, justificam aautoridade e o poder atravs destas prticassimblicas que adquirem carter decompulsoriedade: a histria aprendida desde osbancos escolares, as cerimnias pblicas e oscostumes cvicos so algo de que dificilmente sepode escapar.

    Podemos, assim, inferir que a questo nacionalenvolve a cultura sob vrios aspectos e, em suas caractersticasprincipais, diz respeito revoluo burguesa. Segundo Ianni(1983, p.43), nessa poca, as diversas formas de organizaoda produo, as culturas, lnguas, raas e religies articulam-seno mbito de uma sociedade nacional, ou seja: o espao de um

    povo. A acumulao primitiva desenvolve-se com as forasprodutivas e as relaes capitalistas de produo. Apesar dasdiversidades e antagonismos culturais, regionais e raciais,formam-se o povo, a nao, a sociedade nacional, um EstadoSoberano. A ideologia do Estado moderno conduz, assim, aoocultamento, dissimulao do real. Segundo Chau (1990,p.3), a ideologia um corpo sistemtico de representaes e de

    normas que nos ensinam a conhecer e a agir. O discursoideolgico aquele que pretende coincidir com as coisas,

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    anular a diferena entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte,engendrar uma lgica que unifique pensamento, linguagem erealidade para, atravs dessa lgica, obter a identificao detodos os sujeitos sociais com uma imagem particularuniversalizada, isto , a imagem da classe dominante.

    A negao da alteridade , ento, institucionalizada,uma vez que o alter passa a ser um desafio ameaante, poisno habita o interior do Estado - que tomado pela

    insegurana perante o competidor que, mesmo no-intencionalmente, parece propor a desestruturao das suasverdades. Para o centro do poder se voltam tudo e todos os quedesejam significar, mais uma vez, que o marco central, no casoo Estado, tido como doador de sentido.

    Comentando sobre o etnocentrismo e a negao daalteridade, Morais (1989, p.23) destaca que:

    ... a condio excntrica do outro o situa emzonas obscuras compreenso de um dado ego,sendo que da desdobra-se todo um processo desinais e mensagens que transmitem do centro(ego) periferia (alter) e vice-versa, um processoexploratrio de aproximaes e distanciamentos

    sutis que pode at conduzir a entrosamentosculturais.

    Entretanto, o autor chama a ateno para o fato de queesse movimento humano complicado, visto que, em algumasvezes, o centro reconhecido por sua concentrao de poderpoltico. Os que se situam ou so situados politicamente na

    periferia so, para si mesmos, centros axiolgicos. Segundo oreferido autor, essa concepo de centro, que embasa os

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    etnocentrismos, racionalizada e levada aos extremoshistoricamente conhecidos pela inaugurao da filosofiamoderna, do egocentrismo epistemolgico do Cogito, tal comoDescartes o props, como fundamento evidente da edificaofilosfica. Cogito, ergo, sum. O a priorique tudo alicera o cogito, sendo este, portanto, o ncleo de todas as afirmaesposteriores.

    Nesta abordagem de diferentes formas de monismos, a

    tradio - ou seja, a memria exteriorizada como modelo -refere-se a um corpo consolidado de crenas, normas e valoresdefinidos na sua origem passada. A memria concebida comuma funo de almoxarifado desse passado. Vale-se dafetichizao, quer para transformar a memria em mercadoria,quer para utiliz-la como instrumento de legitimaopotencializada pelo valor cultural.

    A memria nacional, que no o somatrio dasdiferentes memrias coletivas de uma nao, apresenta-secomo unificada e integradora, procurando a harmonia eescamoteando ou sublimando o conflito: da ordem daideologia. Por isso mesmo, o Estado e as camadas dominantes,como interessados na reproduo da ordem social (a que elesinduzem e que simbolicamente realizam), so, em certos

    momentos, os principais responsveis pela sua constituio ecirculao (Meneses, s.d., p.3).

    Podemos fazer uma aproximao dessa concepo dememria com o conceito de cultura, situando-a na sociedadede classes, como cita Bosi:

    ... como uma mercadoria, como algo que se podeobter, ou ento, se recuarmos um pouco at uma

    sociedade pr-capitalista, ou capitalista atrasada,

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    podemos dizer que a cultura uma coisa que seherda, uma herana (Bosi, 1987, p.35).

    Comentando sobre a concepo de cultura como umbem que se aproxima dos bens de luxo e suprfluos, AlfredoBosi (1987, p.85) salienta que s

    ... os grupos de poder aquisitivo

    que dispem de lazer podem fruir desse bem, qued pessoa um halo, uma aurola de diferena.Ela diferente, alguma coisa como, na sociedadedo Antigo Regime, era a aristocracia.

    Segundo o referido autor, a cultura - ou umadeterminada concepo de cultura - acabou substituindo a

    idia de aristocracia na sociedade capitalista, spotencialmente democrtica. Enfatiza que, s vezes, issoparece uma fatalidade, como ser ou no ser nobre, algumacoisa que vem, um bem de raiz, um bem de famlia. Aessa viso de cultura, o autor denomina de reificada, uma vezque considera a cultura como um conjunto de coisas.

    Essa abordagem contextual objetivou apresentar

    alguns posicionamentos de estudiosos e, apoiando-nos emalgumas de suas produes, procuramos enfocar, sobretudo, omonismo que vai servir de lastro s aes da nao, do Estado,destacando a presena de uma ideologia unificadora, que irtentar conduzir as aes denominadas de poltica cultural,que iremos focalizar a seguir.

    Como registramos na introduo deste trabalho, temos

    conscincia que essa ao unificadora do Estado no podeser entendida de forma mecanicista. Somente analisando as

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    esferas econmica, poltica e cultural/ideolgica, bem como assuas intersees, as formas como cada uma delas se sustenta econtradiz a outra, que poderemos realizar uma anlise quefocalize as contradies, os conflitos e as mediaes e,principalmente, as resistncias tanto quanto a reproduo.Entendemos, pois, os campos de atuao da educao e dacultura no Brasil como um espao de produo ereproduo.

    2.3 Buscando Uma Identidade Nacional: a organizao emsistemas.

    Tentaremos, neste item, pontuar algumas aeslevadas a efeito no bojo da poltica cultural adotada emvrios momentos no Pas, enfocando aspectos que apontam

    para a busca de uma identidade nacional, pautada em umaconcepo de cultura de carter unitrio e globalizador,compreendendo que a formulao de uma poltica cultural porparte do Estado reveladora do tipo de relacionamento entre oEstado e a sociedade. As diretrizes estabelecidas, asprioridades e solues apontadas sero compreendidas como aorientao poltico-filosfica vinculada noo de

    continuidade no processo cultural, entendendo-a como: oconjunto de princpios filosficos, polticos, doutrinrios queorientam a ao cultural (execuo da poltica nos seusdiversos nveis) (Lopes, s.d., p.26). A expresso concepooficial de cultura ser ento usada, inicialmente, de mododescritivo, buscando-se explicitar, posteriormente, algumasconsideraes crticas.

    Na formao da nao brasileira, a cidadania, mesmoenquanto idia, no foi uma fora poltica capaz de forjar uma

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    identidade. Dificilmente se poderia apelar para tradiesancestrais do povo ou para sua homogeneidade tnica oulingstica. Cunha (1992, p.34), salienta que, na ocasio daindependncia poltica, a construo da identidade nacional foium problema para as elites:

    ... uma nao sem povo, com amaior parte de seus habitantes totalmente

    excludos da participao e direitos polticos,vistos com desconfiana e superioridade pelaaristocracia branca. Seria, assim, a luta contra ametrpole o eixo capaz de conferir uma idia deunidade a esta nao formada de diferenas toprofundas.

    No Imprio, a simbologia da nao apelou para aexuberncia dos trpicos; as cores da bandeira lembravam oouro e as florestas, e o ndio - a despeito do seu sistemticoextermnio, alm de ser entendido como um elemento danatureza e no do gnero humano - foi eleito como umaespcie de emblema desta nova nao que, ao sul do Equador,copiava as alegorias das naes civilizadas e adentrava na

    era do progresso. Uma historiografia oficial foi se constituindopara criar a memria desta nao que surgia: entre outros, trsheris (um branco, um negro e um ndio que haviam lutadopela expulso dos holandeses de Pernambuco) foramentronizados no interior de uma verso que atribua adiferentes episdios do perodo colonial o carter demovimentos nativistas (Cunha, 1992, p.35).

    Como as tradies inventadas - como, por exemplo,bandeiras, hinos, rituais cvicos e monumentos - foram

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    incapazes de moldar a imagem de um povo homogneo, nofinal do sculo XIX e incio deste sculo, forja-se a idia deque a miscigenao era, a um s tempo, problema e virtude, enela residia a alma do povo brasileiro. Romero (citado porOrtiz, 1985a, p.22) relaciona teorias que teriam contribudopara a superao do pensamento romntico. Dentre elas, trstiveram um impacto real junto inteligentsia brasileira e,segundo Renato Ortiz (1985a, p.14), de uma certa forma,

    delinearam os limites no interior dos quais toda a produoterica da poca se constitui: o positivismo de Comte, odarwinismo social e o evolucionismo de Spencer. Elaboradasna Europa, em meados do sc. XIX, essas teorias, distintasentre si, podem ser consideradas sob um nico aspecto: o daevoluo histrica dos povos. Segundo Renato Ortiz (1985a,p.14):

    ... do ponto de vista poltico, tem-se que o evolucionismo vai possibilitar eliteeuropia uma tomada de conscincia de seupoderio que se consolida com a expanso mundialdo capitalismo.

    Para o referido autor, que salienta no querer reduzi-lo

    a uma dimenso exclusiva, o evolucionismo, em parte,legitima ideologicamente a posio hegemnica do mundoocidental.

    A importao dessa teoria vai colocar algunsproblemas para os intelectuais brasileiros, pois aceitar asteorias evolucionistas implicava analisar a evoluo brasileira luz das interpretaes de uma histria natural da

    humanidade; o estgio civilizatrio do Brasil era inferior emrelao etapa alcanada pelos pases europeus. O dilema dos

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    intelectuais dessa poca era compreender a defasagem entreteoria e realidade, o que se consubstancia na construo deuma identidade nacional. A especificidade nacional,entendida como o hiato entre teoria e sociedade, s sercompreendida quando combinada a outros conceitos quepossibilitem entender o atraso do Pas. A compreenso maisampla das sociedades humanas, possibilitada peloevolucionismo, foi completada com outros argumentos que

    permitem o entendimento da especificidade social. Osintelectuais brasileiros vo encontrar tais argumentos nasnoes de meioe raa.

    Percebe-se bem a idia de miscigenao no registro deSilvio Romero (citado por Cunha, 1992, p.36)

    ... o europeu aliou-se aqui a outras

    raas, e desta unio saiu o genuno brasileiro,aquele que no se confunde mais com oportugus e sobre quem repousa o nosso futuro.

    Cunha (1992) comenta ainda que Silvio Romeroatribua positividade miscigenao e estabelecia uma espciede hierarquia sobre estas raas aliadas na definio do perfil

    genuinamente brasileiro. Prosseguindo no seu comentrio, aautora coloca que:

    Para alm do sangue, o portugusnos legara a cultura, o ndio, suas terras e algo desuas tradies e o negro, seu trabalho e sua fora.O mestio para os intelectuais brasileiros do

    sc. XIX mais do que uma realidade concreta, elerepresenta uma categoria atravs da qual exprime

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    uma necessidade social - a elaborao de umaidentidade nacional (Cunha, 1992, p.36).

    necessrio salientar que problemas como a abolio,o aproveitamento do escravo como proletrio, a colonizaoestrangeira e a consolidao da Repblica preocupavam a eliteintelectual brasileira da poca, que concebia um EstadoNacional, pensando os problemas nacionais. Entretanto, a

    abolio no coincide com a implantao do trabalho livre eno apaga a tradio escravocrata da sociedade brasileira.Alm disso, a nao enfrenta o problema da imigraoestrangeira, tentando resolver a questo da formao de umaeconomia capitalista. A raa, ento, a linguagem atravs daqual se aprende a realidade social e reflete o impasse daconstruo de um Estado Nacional que ainda no se

    consolidou. Segundo Ortiz (1985a, p.21), nesse sentido, asteorias importadas tm uma funo legitimadora ecognoscvel da realidade; por um lado, elas justificam ascondies reais de uma Repblica que se implanta como novaforma de organizao poltico-econmica, e, por outro,possibilitam o conhecimento nacional, projetando para ofuturo a construo de um Estado Brasileiro. Registra ainda o

    autor que, alm do significado econmico, a poltica deimigrao possui uma dimenso ideolgica que obranqueamento da populao brasileira.

    Assim, as cincias sociais da poca reproduzem, nodiscurso, as contradies reais da sociedade como um todo. Ainferioridade racial explica o porqu do atraso brasileiro, masa noo de mestiagem indica a formao de uma possvel

    unidade nacional.

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    As mudanas ocorridas no Brasil nas primeirasdcadas do sc.XX podem ser identificadas atravs doaceleramento da urbanizao e da industrializao, dodesenvolvimento de uma classe mdia, do surgimento de umproletariado urbano. A Revoluo de 30 faz com que essasmudanas sejam orientadas politicamente; o Estado buscaconsolidar o desenvolvimento social. As teorias raciolgicastornam-se obsoletas, era necessrio super-las, pois a realidade

    social impunha um outro tipo de interpretao do Brasil(Ortiz, 1985a, p.14). Para o autor, o trabalho de GilbertoFreyre vem atender a esta demanda social. O autor consideraque a obra de Gilberto Freyre representa continuidade,permanncia de uma tradio e salienta que no poracaso que ele vai produzir seus trabalhos fora dessainstituio moderna que a Universidade, trabalhando em

    uma instituio que segue o modelo dos antigos institutoshistricos e geogrficos. Entende que no h ruptura entreSilvio Romero e Gilberto Freyre, mas reinterpretaes damesma problemtica proposta pelos intelectuais do final dosculo. Ele reedita a temtica racial para constitu-la, como sefazia no passado, em objeto privilegiado de estudo: em chavepara a compreenso do Brasil. O autor salienta que Freyre no

    mais a considera em termos raciais, como faziam Euclides daCunha ou Nina Rodrigues; registra que, na poca em queGilberto Freyre escreve, outras teorias antropolgicasdesfrutam do estatuto cientfico e por isso o autor se voltapara o culturalismo de Boas. Ento, a passagem do conceito deraa para o de cultura elimina vrias dificuldades, postasanteriormente, a respeito da herana atvica do mestio;

    permite, tambm, um maior distanciamento entre o biolgico eo social, possibilitando uma anlise mais rica da sociedade.

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    Mota (1990), comentando sobre o grande relevo dadoao regionalismo, salienta que ele deve ser enfocado, levando-se em considerao o contexto de transio existente no Pas,onde o poderio das diversas oligarquias regionais estava sendocontestado pelos revolucionrios de 1930.

    O autor chama a ateno para o fato de que obrascomo Casa Grande e Senzala, escrita por um filho daRepblica Velha, demonstrou os esforos de compreenso da

    realidade brasileira, realizados por uma elite aristocratizanteque vinha perdendo poder.

    A perda da fora social e polticacorresponde uma reviso, busca do tempoperdido, uma volta s razes. E, posto que, ocontexto de crise, resulta o desnudamento da

    vida ntima da famlia patriarcal, a despeito dotom valorativo, em geral positivo, emprestado ao do senhorizato colonizador, ao que seprolonga, no eixo do tempo, da Colnia at o sc.XX, na figura de seus sucessores, representantesdas oligarquias (Mota, 1990, p.58).

    ainda Carlos Guilherme Mota que ressalta:

    Obras como essa, de altainterpretao do Brasil, produzidas pela vertenteensastica, em verdade encobrem, sob frmulasregionalistas e/ou universalistas, o problemareal que o das relaes de dominao no Brasil.

    ... O que est em pauta, antes detudo, saber at que ponto frmulas regionalistas

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    encobrem a histria das relaes de dominao,em que mitos, como o da democracia racial e doluso-tropicalismo, servem ao fortalecimento deum sistema ideolgico no qual se perpetua anoo de cultura brasileira (Mota, 1990, p.58).

    Consideramos importante essa anlise da atuao dainteligentsia brasileira, pois a obra dos denominados

    precursores das cincias sociais no Brasil vai influir nas aeslevadas a efeito na esfera do Estado, na rea da cultura, queabordaremos a partir desse momento, entendendo que essasaes buscavam oficializar a concepo de cultura brasileira,identificada, desde os primeiros instantes de projeoautnoma do perfil nacional, como um sistema de relaocoeso, harmonioso, unitrio1.

    Durante mais de 150 anos, as constituies brasileirasrefletiram preocupaes permanentes dos representantes dopovo, quanto aos elementos caracterizadores da suanacionalidade. A preocupao com a proteo das belezasnaturais e do patrimnio histrico e artstico antecede emmuito a Constituio de 1934. A lei de 9 de setembro de 1826dispe sobre os casos de bem comum para efeitos de

    desapropriao, prevista na Constituio do Imprio, e destacaa sua necessidade para as casas de instruo de mocidade e

    1Descrio apresentada no documento elaborado pelo Conselho Federal deCultura - Aspectos da Poltica Federal de Cultura - publicado em 1976, eno qual nos embasaremos, em alguns momentos, para registrar a legislao eos objetivos da poltica oficial do Brasil, at a dcada de 70. O grifo nosso

    e queremos, com isso, destacar o propsito de construo de uma CulturaBrasileira, de uma Identidade Nacional.

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    casas de decorao pblica. Segundo o Conselho Federalde Cultura (1976, p.13):

    ... velha frmula esta - consagrada no CdigoCivil vigente (art. 590, 2, III) - a mais significa-tiva das obras do Poder Legislativo da chamadaRepblica Velha (1889 - 1930), e que procuravaatender e resguardar o valor artstico, histrico e

    paisagstico das construes urbanas.

    margem do processo apropriatrio, em defesa dopatrimnio paisagstico, histrico e artstico, foi criado outromecanismo de limitao propriedade. Segundo o documentodo Conselho Federal de Cultura:

    ... a legislao fragmentria e casustica

    procurava resguardar o acervo histrico do Pas.No Imprio, um aviso de 1855 renovou, para casoespecial, idntica preocupao (CFC, 1976, p.13).

    No regime republicano, o desenvolvimento urbanoprovocou a volta da discusso do assunto, sobretudo no

    Congresso Nacional. Assim, em 1923, tentou-se, atravs deum projeto de lei, a criao da Inspetoria de MonumentosHistricos. Quatro anos depois, outra iniciativa parlamentarcuidou, sem sucesso, de proibir a sada de arte antiga do pas.O mesmo objetivo foi tentado por uma comisso nomeadapelo Estado de Minas Gerais, sem conseguir alcanar, noentanto, o intento pretendido. Devido s dificuldades

    encontradas para a elaborao de um corpo de leis dehierarquia federal, os estados da Bahia e de Pernambuco, por

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    via legislativa, implantaram o aparelhamento prprio pararesguardar seu rico acervo histrico e artstico, em 1927 e1928, respectivamente (CFC, 1976, p. 14).

    Em 13 de abril de 1936, o Poder Executivo cria oServio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, que tevepor base o trabalho parlamentar, pois tinha como objetivo aregulamentao do artigo 10, inciso III, da Constituio de1934. O Decreto-lei n 25, de 30 de novembro de 1937,

    representa o aperfeioamento daquela proposioconstitucional, cristalizando os estudos e as aspiraes doslegisladores federais e estaduais da Repblica Velha(Conselho Federal de Cultura, 1976, p.55).

    Os anos 30 so a poca do traado da polticainstitucional, trazendo como novidade o fato do EstadoNacional chamar intelectuais de todos os matizes, combinando

    projetos, propostas e idias mescladas da utopia dos anos 20.O discurso do governo vai ao encontro dos discursos dosintelectuais. Comentando sobre a atuao do Estado nesseperodo e sua relao com a elite intelectual da poca,Boemy (1991, p.9) registra que:

    ... aos projetos esparsos, empricos, distintos, oEstado abre a porta para o estabelecimento da

    grande poltica nacional, do projeto dereconstruo do patrimnio como prtica socialintegradora.

    Comenta que, naquele momento,

    ... a ousadia consistia na institucionalizao das

    paixes incontidas e medidas; da cultura com acivilizao; do popular com o erudito; do barroco

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    com o clssico; da pluralidade com a unidade; dahistria com a sociologia; da etnografia com asociologia. Era o momento de realizao histricade uma idia: do grande sistema cultural(Boemy, 1991, p.9).

    Assim como os escolanovistas foram chamados para aeducao, os modernistas foram chamados para atuar na rea

    da cultura. Mrio de Andrade foi convidado, em 1936, pocaem que se encontrava frente do Departamento Municipal deCultura de So Paulo, para atuar no Servio do PatrimnioHistrico e Artstico Nacional, rgo que foi dirigido porRodrigo de Melo Franco de Andrade at 1967. O anteprojetode Mrio seria a base para a criao desse rgo. SegundoBoemy (1991, p.8):

    ... quando Mrio de Andrade respondeafirmativamente ao convite para formulao dapoltica do patrimnio est dando concretude auma certeza de fundo de que era hora de umaconceituao nova, era a vez da cincia em lugardo amadorismo, da sntese em lugar das

    disperses e descontinuidades.

    Continuando, a autora afirma que:

    Mrio de Andrade, como os pioneiros da

    educao, tambm sonhou com a organizao em

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    sistema do que era plural, contingente disperso efragmentar.

    Os tempos de Capanema seriam aconsagrao desse projeto de formulao de umaidentidade nacional, que passava pela cultura[o grifo nosso] (Boemy, 1991, p.8).

    Os bens culturais que comporiam o conjunto artstico

    e histrico deveriam refletir os objetivos propostos comoessenciais para a caracterizao do Brasil, enquanto nao.Com esse objetivo, foram realizadas as vrias viagens dosmodernistas, na dcada de 20, e dos tcnicos do SPHAN, umadcada depois, denominadas redescobertas do Brasil, com osseguintes objetivos:

    Demarcar o elemento nacional; selecionar e valorizar as caractersticas nacionais;

    abolir os antagonismos entre o presente e o passado;

    compor o colonial e o moderno;

    resgatar o erudito e o popular.

    Assim, os intelectuais e os tcnicos do SPHAN

    privilegiam os elementos que vo caracterizar abrasilidade, onde as distncias temporais eespaciais venham a ser abolidas para a eleio deum perfil do Brasil, que pela afirmao de suasingularidade pudesse fazer parte do concretointernacional das naes (Guedes, 1991, p.23).

    Enfocando os discursos de Rodrigo de Melo Franco deAndrade e Alosio Magalhes, que tiveram uma atuao

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    marcante no referido rgo, Gonalves (1991, p.63), sugere ainterpretao de que os discursos de ambos podem ser lidoscomo narrativas onde um personagem principal - a naobrasileira - tem a sua identidade e a sua memria definidas apartir de uma perda - a perda da tradio, no caso de Rodrigo,e no caso de Alosio, a perda da diversidade cultural. SalientaGonalves (1991) que, na perspectiva desses autores, oprocesso de perda ao qual se referem interpretado como um

    dado histrico objetivo; ao tempo em que narram umapresente e progressiva situao de perda, justificam o trabalhode defesa, resgate, apropriao, coleo, preservao erestaurao de um determinado patrimnio cultural. O autorsalienta que, em assim agindo, criaram aquela situao deperda mediante narrativas, por meio do processo dedescontextualizao e de reapropriao dos objetos que viro a

    compor o chamado patrimnio nacional. Assim procedendo,eles produzem, no mesmo movimento, os valores que estosupostamente destrudos pelo processo histrico. Esses valoresso concebidos como fragmentos que apontam para umatotalidade imaginria, original, distante. Os intelectuaisdenominados de intelectuais do patrimnio, vo contribuindopara a elaborao dos suportes materiais capazes de evocar a

    idia de nao.Nos anos 50, o conceito de cultura remodelado. Os

    intelectuais do ISEB vo analisar a questo cultural dentro deum quadro filosfico e sociolgico, recusando a perspectivaantropolgica, que toma o culturalismo americano comoreferncia. Categorias como aculturao so, aos poucos,substitudas por outras como transplantao cultural,

    cultura alienada etc. Apoiados na sociologia e na filosofiaalem, principalmente em Manheim e Hegel, os intelectuais do

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    ISEB definiro a cultura como a objetivao do espritohumano e insistiro no fato de que a cultura significa um vir aser. Neste sentido, eles privilegiaro a histria que est por serfeita, a ao social, e no os estudos histricos. Ao concebero domnio da cultura como instrumento de transformaoeconmica, os intelectuais do ISEB se distanciam do passadointelectual brasileiro e abrem perspectivas para se pensar aproblemtica da cultura brasileira em novos termos (Ortiz,

    1985a, p.46).Ampliando seu comentrio sobre a atuao dos

    profissionais do ISEB, Renato Ortiz salienta:

    ... o que atual no pensamento doISEB justamente que ele no se constitui emfbrica de ideologia do governo Kubitscheck se

    de fato o Estado desenvolvimentista procurouuma legitimao ideolgica junto a umdeterminado grupo de intelectuais, no menosverdade que os avatares desta ideologiacaminharam em um sentido oposto ao do EstadoBrasileiro (Ortiz, 1985a, p.46).

    Destaca que o golpe de 64 castrou qualquer pretensode oficialidade das teorias do ISEB mas, curiosamente, estaideologia foi popularizada nos setores progressistas e deesquerda. No seu entender,

    ... esta a atualidade de umpensamento datado, produzido por um grupo de

    intelectuais, mas que se popularizou, isto ,tornou-se senso comum e se transformou em

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    religiosidade popular nas discusses sobrecultura brasileira (Ortiz 1985 , p. 16).

    A partir de 64, assiste-se reorganizao da economiabrasileira que busca cada vez mais se inserir no

    ... processo de internacionalizao do capital; oEstado autoritrio permite consolidar no Brasil o

    capitalismo tardio. Em termos culturais essareorientao econmica traz conseqnciasimediatas, pois, paralelamente ao crescimento doparque industrial e do mercado interno de bensculturais, fortalece-se o parque industrial deproduo da cultura e o mercado de bensculturais (Ortiz, 1985b, p.114).

    A expanso das atividades culturais vai ocorrerassociada a um controle estrito das manifestaes que secontrapem ao pensamento autoritrio. O mercado de bensculturais envolve uma dimenso simblica que aponta paraproblemas ideolgicos, expressam uma aspirao, umelemento poltico embutido no prprio produto veiculado.

    Portanto, o Estado vai dar um tratamento especial a esta rea,pois a cultura poderia expressar valores e disposiescontrrias vontade poltica dos que esto no poder. Acensura, neste contexto, possui duas faces:

    ... uma repressiva, outradisciplinadora. A primeira diz no, puramente

    negativa; a outra mais complexa, afirma e

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    incentiva um determinado tipo de orientao(Ortiz, 1985b, p.114).

    Para garantir o domnio, a represso lanada e, aomesmo tempo, busca-se racionalizar os recursos existentes;lanar as bases (Embratel etc.) e montar um poderoso aparatopersuasivo, alicerado nos meios de comunicao de massa eem recursos tecnolgicos. Nos anos 30, as produes culturais

    eram restritas e atingiam um nmero pequeno de pessoas. Oque vai caracterizar o mercado cultural ps 64 o seu volumee a sua dimenso, atingindo um grande pblico consumidor,conferindo-lhe uma dimenso nacional que no possuaanteriormente.

    A noo de integrao que trabalhada pelopensamento autoritrio vai servir de premissa a toda uma

    poltica que tenta coordenar as diferenas, submetendo-as aosdenominados objetivos nacionais. Segundo Srgio Miceli:

    ... no Estado de SeguranaNacional, no apenas o poder conferido pelacultura no reprimido, mas desenvolvido e

    plenamente utilizado. A nica condio queesse poder seja submisso ao Poder Nacional, comvistas segurana nacional (Miceli citado porOrtiz, 1985b, p.83).

    Decorre da a constante busca pela concretizao deum sistema nacional de cultura. O Estado procura integrar as

    partes a partir de um centro de deciso e dentro desse quadro acultura pode e deve ser estimulada. Ortiz (1985b, p.83) chama

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    a ateno para o fato de que nem sempre o controle do Estado absoluto, pois existe um hiato entre o pensamento autoritrioe a realidade.

    Sentindo a necessidade de uma poltica cultural para oBrasil, o governo Castelo Branco institui uma comisso com oobjetivo de apresentar sugestes para a reformulao culturaldo Pas. Essa comisso recomenda a criao do ConselhoFederal de Cultura, simtrico ao Conselho Federal de

    Educao. Aps estudo da matria, o Ministro da Educao eCultura apresentou ao presidente o anteprojeto de um decreto-lei, que foi aprovado imediatamente, pois era seu interesse

    ... dotar o Pas de um colegiadoque levando em conta as diversas regies sociaise culturais do Brasil, reunisse vinte e quatro

    figuras representativas dessas culturas, paraassessorar o Governo Federal (CFC, 1976, p.20).

    interessante, para nossa anlise, registrar um trechoda fala proferida pelo Presidente Castelo Branco durante acerimnia de instalao do Conselho Federal de Cultura:

    ... assim, para suprir a gravelacuna existente, julgou o governo que, a exemplodo Conselho Federal de Educao, to forte noseu esprito federativo, tambm um ConselhoFederal de Cultura deveria atender speculiaridades regionais, sem prejuzo de serrgo governamental destinado a defender,

    estimular e coordenar, nas suas linhas mestras,a um plano nacional (CFC, 1976, p.20).

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    A ideologia do Brasil mestio retomada pelosintelectuais que vo atuar no Conselho Federal de Cultura que,segundo Ortiz (1985b, p.91), so, na verdade, membros de umgrupo de produtores de conhecimento, que pode sercaracterizado como de intelectuais tradicionais, recrutados nosinstitutos histricos e geogrficos e nas academias de letras. Aviso da cultura brasileira legitimada atravs de uma

    continuidade, pois o Estado, ideologicamente, assim coloca omovimento de 64, concretizando uma associao com asorigens do pensamento sobre cultura brasileira.

    A transcrio de parte do documento do ConselhoFederal de Cultura, no tpico Formao e Projeto daCultura Brasileira, que apresentamos a seguir, grifado porns, bem elucidativa no que concerne ao retorno das idias

    de Silvio Romero e Gilberto Freyre:

    A Cultura Brasileira, no que elatem de mais caracteristicamente mltipla ecriadora - formas de vida, trabalho, lazer,conhecimento, literatura, arte, esporte, asmanifestaes mais diversificadas da cultura

    popular - o resultado desse processo sincrticoda mistura desses trs gruposinstauradores, quej no sculo indefinido do descobrimentodesenharam uma rota, indicaram um caminho.E este caminho, da soma, da miscigenao, daconvivncia, amplia-se substancialmente com achegada, no sc. XIX e ainda no sc. XX, de

    contingentes alemes, italianos, poloneses,franceses, libaneses, srios, japoneses, holandeses.

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    Todos contribuindo para uma configuraocultural sempre mais peculiar e ntida (CFC,1976, p. 8).

    A miscigenao cultural repercute, naturalmente, nasnovas imagens fsicas, nos tipos decorrentes, uma policromianica e inconfundvel. Mas no permanece a a vocaoirreversvel do pluralismo ou da multiplicidade: a extenso

    geogrfica acentua igualmente a diversificao cultural.Pas constitudo de regies diferenciadas, cada uma

    dessa regies reflete o grau de presena maior ou menordaqueles elementos fundadores, ou modalidades prprias deaculturao, assimilao e sobretudo, porque maisverticalmente, de criao. Nas representaes mesmas dacultura popular - o bumba-meu-boi, o boi nordestino, a

    capoeira baiana, o frevo pernambucano, o vissungo mineiroetc. (...) e nas manifestaes mais acabadas da criao erudita -a poesia de Gregrio de Matos, a msica de Padre JosMaurcio, a escultura do Aleijadinho etc. (...) predomina ese impe a fora de uma cultura autnoma. Autnoma pormreceptiva, aberta, confluente. Do mesmo modo que regional,local at, mas amplamente universal e universalizante (CFC,

    1976, p.8).O conceito de raa aqui retomado com o mesmo

    enfoque dos intelectuais que atuaram no final do sculo XIXperdurou at os anos 30 - ou seja, a compreenso do Brasil apartir da fuso das trs raas que o povoaram - e acrescenta osegundo significado do preconceito de mestiagem, levando-nos noo de heterogeneidade.

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    Quando os membros do Conselho Federal deEducao afirmam que a cultura Brasileira plural e variada, isto , que o Brasil constitui umcontinente arquiplago o que se procura sublimar o aspecto da diversidade (Ortiz, 1985b,p.92).

    O discurso do Conselho Federal de Cultura retoma o

    regionalismo como filosofia social, moda de Gilberto Freyre,enfocando a regio como uma das diversidades que definem aunidade nacional. O elemento da mestiagem contmjustamente os textos que naturalmente definem a identidadebrasileira: unidade na diversidade. A idia de pluralidade,encontrada em quase todos os textos do CFC, vai encobrir umaideologia de harmonia, que caracterstica do modelo de

    pensamento da obra de Gilberto Freyre.Na dcada de 70, mesmo com o descontentamento

    crescente, inclusive de certas fraes das classes dominantes, apoltica econmica de 64 foi mantida e, da mesma forma,devido s exigncias da prpria poltica econmica, a polticacultural foi conservada. O Estado foi colocado no centro daproduo cultural do pas.

    Praticamente todas as condies de produo,comunicao e debate das produes artsticas,culturais e cientficas passaram a ser, senocontroladas, diretamente influenciadas pelosministrios, conselhos, comisses, institutos eoutros rgos (So Paulo, 1992, p.52).

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    Cohn (1984, p.7) salienta que o sentido da polticanacional de cultura, nessa fase, era o de processar umequacionamento da cultura, de modo a adequ-la ao regimepoltico que se procurava consolidar. Assim, classifica as duasmetas da dcada, do ponto de vista das formulaes culturais:

    A primeira, caracterizada pela elaborao de propostasprogramticas abrangentes, mas com escassos efeitos;

    a segunda, diversificando e redefinindo os temas sob umatica cada vez mais operacional e mais poltica, aliados auma extensa renovao institucional.

    Contrapondo-se s idias de Cohn, Ianni e Miceli,Mrio Machado (citado por Schasberg, 1989, p.64) destaca

    que, no Brasil, h poucos estudos empricos sobre polticaspblicas em geral e aponta este fato como um indicador deinadequao para se falar em poltica cultural nesse perodo.Considera mais razovel se falar em polticas pblicasimplementadas por rgos os mais variados, guardando poucarelao entre si. Salienta que existe no Pas, nesse perodo,uma poltica de mercado: a indstria cultural, em projeto

    implementado por empresas privadas, consentido pelo Estadoe pleno de conflitos entre produtores e censura.

    Todavia, Benny Schasberg (1989, p.67) chama aateno para o fato de que

    ... a tentativa mais destacada - da mesmamaneira observada por Miceli, Ianni e Cohn -, no

    sentido de definio de uma poltica cultural, a

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    que ambicionou formul-la centrada na questopatrimonial, procurando conservar o passado.

    No meado da dcada de 70, nas gestes de JarbasPassarinho e Ney Braga frente do MEC, adota-se umaconcepo oficial de cultura como somatria das criaes dohomem, como herana e patrimnio, acrescentando-se aconcepo de que essa somatria se d no processo de criao

    do prprio homem, introduzindo-se assim um componentehumanista, ainda abstrato, que constituir um dos temasbsicos a serem reelaborados ao longo do perodo (Cohn,1987, p.7).

    As dimenses de consumo e de distribuio passam aser valorizadas. O discurso do Conselho Federal de Culturadeixava de lado estes aspectos, pois assumia uma concepo

    de cultura associada qualidade, e atribua a quantidade aoreino do tecnicismo. Anteriormente, como j vimos, osintelectuais tradicionais colocavam a nfase na preservao dopatrimnio. Agora, a preservao do patrimnio vai deixar deser o eixo central. Ela continua sendo considerada, porm,diretrizes de rgos como o DAC, a SEAC, a FUNARTE,apontam para trs aspectos: o incentivo produo, a

    dinamizao dos circuitos de distribuio e o consumo dosbens culturais. A participao vai significar o acesso aos bensde consumo. O consumo transforma-se em ndice de avaliaoda prpria cultura brasileira. So vrios os documentos oficiaisque registram a necessidade de se vincular o sistema de ensinoao desenvolvimento cultural.

    A escola vista como um espao importante na

    formao de hbitos e de expectativas culturais, o quepossibilita uma extenso do consumo. Ao se afirmar, por

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    exemplo, que o homem brasileiro precisa se habituar aconsumir a cultura em sua vida diria, o Estado se prope arealizar uma potencialidade cultural do mercado consumidor epor outro lado, assegura uma ideologia de democratizaoque concebe a distribuio cultural como ncleo de umapoltica governamental (Schasberg, 1989, p.67).

    Ortiz (1985b, p.118) cita a fala do secretrio do MECaos militares da Escola Superior de Guerra, quando este diz:

    Acredito que o estabelecimento de uma polticacultural conduzir a um equilbrio entre valoreconmico e valor social atravs do eixo cultural.Cultura no luxo, logo no pode ser classificadacomo utilitria e no rentvel.

    Comenta que, na verdade, essa fala demonstra asconvices pessoais do secretrio de que uma poltica culturalbem orientada poderia se transformar, a curto ou a mdioprazo, num real investimento de capital. Salienta que, mesmonas atividades de carter patrimonial - a exemplo da FundaoPr-Memria - essa dimenso mercadolgica se manifesta ecita uma fala de Alosio Magalhes, ao se referir aos bens do

    patrimnio histrico:

    Um dos objetivos da Fundao ser o detransformar os bens da Unio em bens rentveis,logicamente quando isso for possvel e nooferecendo riscos ao imvel. Assim faremos olevantamento para saber quais os imveis que

    podero ser transformados em albergues tursticose entregues, por contrato, s companhias

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    hoteleiras para explorao comercial e quedevero ser conservados (Ortiz, 1985b, p.118).

    Analisando as tendncias mais gerais nas redefiniesda concepo oficial de cultura, do final da dcada de 70 at agesto de Celso Furtado no Ministrio da Cultura, Cohn(1984, p.7) destaca as seguintes concepes:

    Gesto Eduardo Portela - cultura como modo de ser, como

    vivncia de determinadas parcelas da sociedade;

    gesto Alusio Pimenta - a cultura passa a ser concebida emseu papel de resistncia dominao hegemnica;

    gesto Celso Furtado - reala-se a sua condio de fontede criatividade.

    O autor enfatiza que essas concepes s ganhamsentido quando na formulao de diretrizes prticas nasinstncias oficiais, vale dizer, em polticas culturais. Destacauma mesma linha de raciocnio existente nessas concepes: oseu mpeto antielitista, que conduz preocupao com ademocratizao da cultura, constante em vrios documentosoficiais, independentemente dos contextos polticos da sua

    formao. Chama a ateno para o fato de que a diferenabsica nesse aspecto consiste no sentido que atribudo a essademocratizao. Enquanto nos meados dos anos 70, comovimos anteriormente, se tentava promover a integraonacional, atravs da difuso cultural - vista como unitriaentre uma populao que deveria ser colocada altura dereceb-la, mediante a educao - posteriormente, a

    preocupao principal ser com a diversidade das formas eexperincias culturais numa sociedade marcadamente

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    estratificada e excludente. Essa proposta ntida na gesto deEduardo Portela, quando se enfatiza a necessidade de seinverter o caminho at ento percorrido da oferta a partir docentro para a periferia e vai ganhar uma expresso maisacabada no programa de trabalho da gesto Alusio Pimenta,no qual o estmulo diversidade cultural e o combate degradao da cultura pela massificao e pelas imposiesdo mercado so elementos de realce. A palavra de ordem ,

    ento, a descolonizao da cultura, com a possibilidade daformulao de polticas culturais plurais.

    No final dos anos 80, o termo chave da concepooficial da cultura moderno. A cultura vai ser concebidacomo fonte de criatividade simblica e como rea aberta aoinvestimento econmico capitalista, com a conseqenteeliminao das figuras tradicionais do patronato pblico e do

    mecenato privado (Cohn, 1984, p. 9). A Lei Sarney bastanteclara nesse sentido: ...cria mecanismos que permitem otratamento dos investimentos na rea da cultura como umaquesto de aplicao capitalista de recursos e no como meromecenato. Percebe-se assim uma tendncia

    ... politizao e sociabilizao

    da concepo de cultura que vai sendo superadapor uma frmula que busca reaproximar a lgicados fins cultural da lgica dos meios, daracionalidade econmica voltada para aacumulao, e que a Lei Sarney umacomponente de almejada sntese de ambas(Cohn, 1984, p.9).

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    O tema modernizao capitalista ento assimiladopela concepo oficial de cultura, imprimindo no processocultural o timbre do mercado e recolocando a questo de secompreender o conjunto dos produtos culturais como clientela,dessa feita, no mais passiva, mas convidada a organizar-seem moldes capitalistas modernos.

    Concluindo este bloco, retornamos a Renato Ortiz,quando salienta que essa memria possibilita ao Estado

    estabelecer uma ponte entre o passado e o presente,legitimando a Histria de um Brasil sem rupturas e violnciase que, por outro lado, ela se impe como memria coletiva -como um mito unificador do ser e da sociedade brasileira: asociedade mudou, mas sua essncia seria idntica suaprpria raiz. Citando Halbwaschs, Ortiz salienta que

    a memria sempre vivida pelopresente, o que significa dizer que o discurso dapreservao da identidade se d no interior daconcretude de desenvolvimento capitalista(Ortiz, 1985b, p.124).

    No foi nosso objetivo apresentar uma histria linear

    da cultura brasileira, buscando sucesses de influncias, dopassado at o presente, como um passado acumulado.Pretendemos, atravs da presente anlise, mostrar que, apesardo Estado, em vrios documentos relacionados com aelaborao de diretrizes para a rea da cultura, apresentar-secomo espao de neutralidade, assumindo um discursodemocrtico, o que ocorre, na realidade, a sua atuao como

    uma ideologia que tenta, em vrios momentos, tornar-sehegemnica. Entendemos que esse objetivo nem sempre foi

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    alcanado; houve momentos de resistncia e de tentativa deruptura, o que nos leva a inferir que, na rea da polticaoficial de cultura, h espao para reproduoe produo.

    Por outro lado, necessrio questionar a eficciaabsoluta desta identidade produzida. Cunha (1992, p.35) noschama a ateno para o fato de que:

    At que ponto devemos supor que para a maioriadas pessoas a identidade nacional, se que

    efetivamente existe, exclui ou superior sdemais identidades que constituem as sociedadeshumanas? E como, particularmente, esta perguntase desdobra em dimenses polticas capazes dedesvendar alguns significados de um Pas como oBrasil, com sua trajetria de excluses, deprivao de direitos, de ausncia de cidadania

    para uma maioria que nunca se perguntou sobreesta dura experincia de ser parte da nao?

    2.4 O Papel dos Museus na Construo de uma IdentidadeNacional

    Procuraremos, a partir deste momento, situar os

    museus no contexto da poltica oficial de cultura do Pas,pontuando algumas aes registradas em alguns documentosoficiais, bem como registros de profissionais da rea. Dessamaneira, buscaremos indicadores que possam identificarprticas e propostas museolgicas reveladoras da tentativa deuma identidade nacional - caracterizada atravs de aes quetm por base uma concepo de memria, de tradio, como

    um corpo consolidado de crenas, normas e valores definidos

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    no passado e que so usadas pelo Estado, como um suportenecessrio para sua afirmao.

    O Estado Brasileiro tem sido, ao longo dos anos, oprincipal mentor e feitor das instituies museais, o que,naturalmente, nos leva a analis-las atravs do conjunto deprincpios filosficos, polticos e doutrinrios que tmorientado a poltica oficial do governo. Entendemos, porm,que a relao Estado e Museu - Estado e Cultura, como

    destacamos anteriormente, no to simples como parece,pois uma relao essencialmente dual e no pode sercompreendida sem os pontos de vista, esperanas,necessidades e interesses das pessoas que esto,constantemente, submetidas ao intenso bombardeio simblico.Por outro lado, necessrio entender, desvelar os objetivos eos meios utilizados, no s para nos ilustrarmos, mas para

    estabelecer um novo ponto de partida, assumindo que h umespao para produo. Como Apple (1989, p.43), entendemosque a hegemonia no um fato social j acabado, mas umprocesso no qual os grupos e classes dominantes buscamobter o consenso ativo daqueles sobre os quais exercem odomnio.

    Enfocaremos alguns aspectos relacionados poltica

    oficial para a rea dos museus, compreendendo-a como umaspecto da poltica cultural mais ampla. Assim, necessriositu-la na abordagem contextual, j enfocada no item 2deste trabalho, relacionando-a com o item 3 - Buscando umaIdentidade Nacional: a organizao em sistemas.

    Os museus nacionais tiveram a sua origem no finaldo sc. XVIII, na Frana, portanto, no contexto de formao

    do Estado moderno. As grandes colees reais, burguesas e

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    eclesisticas, de carter cientfico, histrico e artstico foram,ento, colocadas disposio do pblico.

    Sua principal finalidade era depreservar e celebrar esse patrimnio paraconservar o passado nacional e manter umamitologia das relquias culturais tradicionais aserem veneradas a fim de valorizar a nao e o

    status do homem atravs de sua identidadecultural (Novaes, s.d., p.1).

    Com base nesse discurso, o modelo de museu nacionalespalha-se por toda a Europa e exportado, no sc. XIX e atincio do sc. XX, para outros pases, principalmente os pasesdo 3 mundo. Por iniciativa de D. Joo VI, so criados, no Rio

    de Janeiro, os museus da Escola Nacional de Belas-Artes doRio de Janeiro, que foi iniciado com a Escola Real deCincias, Artes o Ofcios, em 1815, e o Museu Nacional, em1818.

    Esses museus foram instalados, para compor umquadro, como parte das bases lanadas para uma renovaocultural que culminou, de certa forma, na introduo de

    hbitos, de pensamento e ao que vigoravam na Europa dosc. XIX e compuseram a ideologia da burguesia brasileira emascenso, no final do sculo XIX.

    Percebe-se que os museus, nesse contexto, j faziamparte de uma simbologia da nao, com colees quecelebravam a exuberncia dos trpicos, como o caso dacoleo de histria natural, situada na denominada Casa

    dos Pssaros.

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    No incio deste sculo, no centro do debate em tornoda questo nacional que vai se dar, em maior escala, acriao de museus, inclusive com a participao do PoderLegislativo. Assim que, por sua iniciativa e colaborao, soestruturados os museus brasileiros, em mbito federal e local,a exemplo do Museu Histrico Nacional, situado na cidade doRio de Janeiro - Decreto n 15.596, de 2 de agosto de 1922;Museu Histrico da Cidade do Rio de Janeiro, que teve origem

    na proposio formulada na Cmara Municipal, em 22 de abrilde 1891 e foi instalado em 1934; Museu do Diamante, nacidade de Diamantina, Minas Gerais - Lei n 200, de 12 deabril de 1954; Museu Nacional de Imigrao e Colonizao,com sede em Joinville, Santa Catarina - Lei n 3.188, de 2 dejulho de 1957; e Museu da Abolio, sediado em Recife - Lein 3.357, de 22 de dezembro de 1957.

    Consideramos os museus como um dos suportes,utilizados pelos chamados intelectuais do patrimnio,capazes de evocar a idia de nao unificadora. Talvez oexemplo mais marcante da utilizao dessas instituies, coma finalidade de alcanar este objetivo, seja a atuao deGustavo Barroso, que apontado como um exemplar maisbem acabado de intelectual orgnico vinculado ao processo

    de edificao nacional (Abreu, 1991, p.93).Gustavo Barroso atuou como jornalista, chamando a

    ateno atravs da imprensa, para a desenfreada perda dereferncias estticas, culturais e histricas que se verificavano Brasil, nos primeiros anos do sc. XX. Lutou no sentido decriar uma mentalidade preservacionista. Atuou na AcademiaBrasileira de Letras e buscou delimitar as influncias das

    culturas regionais na formao da cultura nacional (Abreu,1991, p.94).

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    Em seu livro Terra do Sol, por exemplo, escrito em1911, Barroso descreveu alguns traos culturais encontradosno Nordeste, visando destacar o que ele designava por tipoexato do brasileiro do Norte. Dirigiu o Museu HistricoNacional, de 1922 a 1959, interrompendo a sua administrao,no perodo de 1930 a 1932.

    A atuao de Gustavo Barroso um marco para aMuseologia brasileira, pois ele foi o fundador do Primeiro

    Curso de Museologia do Pas, instalado no Museu HistricoNacional, funcionando ali at 1979. Esse curso adotou, por umlongo perodo, as concepes, os objetivos, enfim, as linhasmestras da atuao de Barroso. Sendo o primeiro plo deformao de profissionais da rea da Museologia, as suasidias foram sendo disseminadas por todo o Brasil e foramformando a cara da Museologia brasileira, no passado e na

    atualidade. Para Gustavo Barroso (citado por Abreu, 1991, p.94), o ato de conservar ou a idia de preservar estavaintimamente relacionados a uma funo prtica: fazer amar aptria. Assim, a responsabilidade do museu era fazer brotarnos indivduos um sentimento nacional. Atravs dosensinamentos dessa instituio, o brasileiro deveria aprender aamar e respeitar a sua ptria. A autora comenta que esse

    pressuposto orienta a seleo dos objetos a serem preservadose a formulao de uma extensa e sofisticada teoria sobremuseus. Enfatiza que o objetivo principal do museu deBarroso consistia em resgatar uma tradio nacional eforjar um sentimento cvico(o grifo nosso).

    Atravs dos objetos, que, por si s, podiam transmitire afirmar valores, ensinava-se o povo a amar o passado.

    Comentando sobre os valores do passado, veiculados pelo

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    Museu de Gustavo Barroso, Regina Abreu destaca osseguintes:

    Relao de continuidade do Brasil, enquanto nao, com oEstado portugus (o nascimento da nao brasileira datavada chegada da Coroa Portuguesa, em 1808);

    a independncia poltica, em 1822, no significava umrompimento com a coroa portuguesa, mas era anunciadacomo um marco de iniciao de entrada do Pas na vida

    adulta. Como sucessores da independncia polticaemergiram o Imprio e a Repblica (Abreu, 1991, p. 95).

    O Estado Imperial que teria forjado a naobrasileira, unificando os brasileiros e demarcando asprincipais fronteiras. As tradies de cultura que deveriam serpreservadas eram as do Imprio. Gustavo Barroso no

    escondia a sua inteno de tornar o museu uma instituiodas elites, pois a elas era atribudo o papel de fundadoras danao brasileira e, nesse sentido, a citao abaixo bastanteelucidativa:

    O Museu Histrico Nacional deveria representaratravs de seus objetos - mudos companheiros

    de nossos guerreiros e de nossos heris - a aodas elites na edificao nacional. A acepo dacategoria elite na concepo barrosiana indicavao escol, a nata, aqueles que comandam,inauguram. Numa outra instncia, em sua visoholstica de sociedade, estaria o povo, folk,aqueles que seguem... Barroso atribua um valor

    conservao de objetos destinados ao cultivo deuma memria do povo. Contudo, um museu que

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    guardasse e conservasse as coisas do povodeveria ser de um outro tipo: folclrico,ergolgico. Neste museu, no haveria tanto apreocupao em determinar uma origem para anao. Mas sim, em fixar alguns traos quepoderiam ser qualificados como singulares dopovo brasileiro (Abreu, 1991, p.96).

    A divulgao do pensamento de Barroso vai sendoconcretizada atravs da atuao do SPHAN, que, em 1967,segundo o documento do Conselho Federal de Cultura,possua 13 museus j instalados, 9 em fase de instalao e 6recebendo a colaborao de seus tcnicos. Por outro lado, oRio de Janeiro, com os chamados museus nacionais, semprefoi um centro de referncia para os demais museus do Pas,

    principalmente aps a instalao do Curso de Museologiacitado anteriormente. Os museus estaduais e municipais votomar esse centro do poder e da cultura no Brasil como ummodelo que vai sendo transplantado, sem nenhuma reflexo.

    Em texto por ns publicado, intitulado A escola e omuseu no Brasil: uma histria de confirmao dos interessesda classe dominante (Santos, 1990, p.41), tivemos a

    oportunidade de comentar, e arrolar, uma srie de prticaspedaggicas inadequadas, utilizadas nas escolas ereproduzidas pelos museus. Fazendo parte de um rolsignificativo, esto algumas que destacamos agora e que,talvez sejam representativas do pensamento barrosiano,interiorizado, em nossos museus, ao longo dos anos:

    Coleta de acervo privilegiando determinados segmentos dasociedade - padres de cultura importados;

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    abordagem puramente factual nas exposies,principalmente nos museus histricos;

    culto personalidade, exposio de objetos de uso pessoal,sem anlise crtica da atuao do indivduo na sociedade;

    utilizao, nas exposies, de textos com contedosdogmticos, incontestveis;

    exposio sem contextualizao. Percepo difusa quantoaos fenmenos culturais, econmicos e polticos. Apresentao social, sem reflexo crtica.

    So, portanto, marcas de uma Museologia que primapor atuar como um fator dissolvente das contradies reais,que apresenta uma memria nacional unificadora eintegradora, que procura a harmonia e escamoteia ou sublimaos conflitos, muito condizente com os objetivos do Estado

    Unificador.Alm da atuao de Gustavo Barroso, necessrio

    analisar a concepo bsica do SPHAN, sob a orientao deRodrigo de Melo Franco de Andrade, para instalao dosmuseus vinculados a este rgo. A Lei n 378/37, que criou oSPHAN dentre outras determinaes, estabelecia que o MuseuHistrico Nacional e o Museu Nacional de Belas Artes, bem

    como outros museus que viessem a ser criados, deveriamcooperar com o SPHAN, e os seus diretores deveriam comporo Conselho Consultivo do rgo.

    Atravs do Decreto-lei n 25/37, artigo 24, queapresentamos a seguir, podemos observar a amplitude deatuao do SPHAN em relao aos museus brasileiros:

    A Unio manter, para conservao de obrashistricas e artsticas de sua propriedade, alm do

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    MHN e do MNBA tantos outros museus quantosse tornarem necessrios, devendo outrossimprovidenciar no sentido de oferecer assistncia instituio de museus estaduais e municipais, comfinalidades similares.

    Com o objetivo de dar uma utilidade aos monumentospblicos restaurados, vrios museus foram instalados em casas

    de valor histrico, aps a deciso de Rodrigo de MeloFranco em restaurar as runas das misses de So Miguel e alifazer funcionar um museu; idia sugerida por Lcio Costa,que, por sua