sociologia vertigem

6
Uma Sociologia para aqueles que não padecem de vertigem ou do social para além das suas sobrecodificações neuróticas. Marcelo de Oliveira Essa proposta de trabalho nasceu de uma espécie de desdobramento tardio dos meus investimentos anteriores. Mesmo que não se coloque diretamente como uma continuidade estrita do meu trabalho anterior - parecendo muito mais um fruto maduro que cai da árvore para, em seguida, ensejando o seu apodrecimento mais legítimo, dar origem a um novo, inteiramente outro, processo vegetativo que ainda anseia pelo seu florescimento – é impossível negar a síntese disjuntiva que se mostra entre o que faço agora e o que fiz em outras paragens, notadamente na minha dissertação sobre a sociologia menor.

Upload: marcelo-de-oliveira

Post on 17-Nov-2015

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Uma Sociologia para aqueles que no padecem de vertigem ou do social para alm das suas sobrecodificaes neurticas.

Marcelo de Oliveira

Essa proposta de trabalho nasceu de uma espcie de desdobramento tardio dos meus investimentos anteriores. Mesmo que no se coloque diretamente como uma continuidade estrita do meu trabalho anterior - parecendo muito mais um fruto maduro que cai da rvore para, em seguida, ensejando o seu apodrecimento mais legtimo, dar origem a um novo, inteiramente outro, processo vegetativo que ainda anseia pelo seu florescimento impossvel negar a sntese disjuntiva que se mostra entre o que fao agora e o que fiz em outras paragens, notadamente na minha dissertao sobre a sociologia menor.Na ocasio, meu objetivo consistia, ento, em desenvolver uma sociologia menor entendendo por isso o esforo de tematizar o social para alm, ou aqum, das grandes representaes, repondo, contudo, o argumento sociolgico atravs de um investimento no tema da associao a partir de uma leitura um tanto hertica de Durkheim. Atravs desses investimentos acreditava ser possvel apresentar uma expresso, mais ou menos acabada, de uma velha angstia que me acompanhava desde os tempos de graduao. A saber, a conjugao, ou melhor, a articulao da teoria social nos termos da diferena. Em suma, acreditava haver desenvolvido as notas para uma sociologia menor, conectando a teoria sociolgica com a filosofia da diferena.A despeito do sucesso ou do fracasso do projeto sempre indecidveis, sobretudo, em tempos nos quais se tudo der certo estaremos todos perdidos penso que, de fato, ele tenha, em boa medida, conseguido avanar nos problemas que se prope. Ou seja, se o objetivo era desenvolver as diretrizes para uma sociologia da diferena ou sociologia menor, o que d no mesmo o projeto avanava em mais de uma frente. Conseguia apontar as vicissitudes de uma sociologia identificante; identificar os inimigos da sociologia menor; encontrar o a priori histrico a partir do qual a sociologia deveio sociologia maior e; fundamentalmente desenvolver um esboo de sociologia menor, a partir de um enfoque que compreende o social como uma cristalizao contingente, mais ou menos efmera, de segmentaridades que ora se conjugam, ora se conectam, para formar, numa dimenso meramente ntica, o fenmeno (?) da sociedade. Contudo, penso que essa frente ampla de diferenas j investidas pela dissertao no pode obliterar os pontos ainda cegos sobre os quais o projeto de efetuar uma sociologia realmente aberta e sensvel questo da diferena ainda precisa demorar-se um pouco mais. Adiantando o assunto, so, agora, justamente esses pontos cegos os escolhos a partir dos quais minha dissertao enseja devir tese. Para ser curto e direto, penso que os motivos pelos quais a minha dissertao recebe o ttulo justo de Por uma Sociologia menor, com toda nfase no Por - o qu, portanto, parece condenar a sociologia menor quele porvir incerto que os procrastinadores conhecem to bem - so basicamente dois. O primeiro deles, simples e prosaico, refere-se a limitao da abordagem. Ainda que o objetivo do trabalho no fosse o de uma histria da sociologia, todavia, a histria da disciplina ocupava ali, como ocupa no projeto de uma sociologia menor, uma dimenso instrumental importantssima. Nesse sentido, restringir os investimentos a uma leitura de Durkheim s poderia resultar na efetuao de um esboo, de um pequeno mapa, talvez. To interessante quanto possa ser esse esboo de sociologia menor, para que a sociologia possa vislumbrar o seu devir minoritrio, um tratamento mais rigoroso das possibilidades sociolgicas precisa ser efetuado ou contra-efetuado. No basta perfilar um conjunto de precedentes, preciso mostrar com rigor e com pacincia (no aquela do conceito, mas diante do conceito) o quanto a sociologia sempre suportou devires heterogneos e que, por mais que oficialmente, nas histrias que se contam ao seu respeito, atrele-se s identidades, s representaes, estabilidade e coerncia, no obstante, ela jamais foi capaz de esconjurar a abertura para o encontro e para o acontecimento essas duas dimenses fundamentais de uma filosofia da diferena capaz de injetar no corao do social as boas doses da variao e da contingncia. Para resolver esse problema to simples quanto trabalhoso pretendo desenvolver na tese efetivamente uma histria (subterrnea?) da sociologia visando, atravs de um cotejamento dos clssicos, neoclssicos e epgonos (sim, mas quais autores?), atualizar esses devires to heterogneos quanto minoritrios. No basta opor Tarde e Durkheim, preciso investir um Tarde que habita a corao da teoria durkheimiana, um Simmel atrs da orelha de Max Weber, assim por diante. J o segundo ponto relativamente cego da dissertao um pouco mais complexo e o seu desenvolvimento estrutura, por assim dizer, a mquina de leitura que pretendo instaurar para levantar a poeira do cnone sociolgico de modo que os velhos autores to velhos quanto o demnio da Cincia como Vocao possam tambm, em conjunto entre si e como outras foras, ser os fautores do novo. Digo relativamente cego porque, na verdade, esse tema aparece com maior ou menor clareza ao longo de todo o investimento da dissertao. Poderia dizer que o pano de fundo, poltico e ontolgico, ou melhor, poltico/ontolgico, onde as sociologias vem se confrontar. Contudo, ainda que esse pano de fundo permanecesse sempre ali, mostrando que no h sada diante da ontologia, raras foram as vezes em que ele pode deixar de ser fundo para devir figura. E se poucas foram as vezes em que se prestou a uma manifestao poderia dizer que em nenhum momento ele foi problematizado ou explicitamente refletido enquanto tal.Penso que isso deveu-se muito mais a maneira pela qual a questo foi angulada do que propriamente pelo teor da questo. Nesse sentido, o que pretendo desenvolver aqui e que no seu amadurecimento constar como projeto de qualificao e, com sorte, primeiro captulo da tese exatamente essa angulao que me permitir modelizar o problema da sociologia menor sem recair nos rodeios rocambolescos da representao. Explico: na dissertao, o mpeto identificante da sociologia era reportado, em grande medida, ao seu compromisso, tornado necessidade, com a temtica das representaes. Mais do que isso, comprometido com o projeto do primeiro Michel Foucault, isto , com o projeto da arqueologia, terminava por reconhecer que, dado o a priori histrico que constitua as matrizes discursivas a partir das quais a sociologia poderia liberar todo o seu volume a sua episteme -, ela, a sociologia, estaria enredada nas malhas do sempre mesmo. Todavia o objetivo da dissertao no fosse outro que no desconstruir essa arqueologia sondando e atualizando outras virtualidades matrizes discursivas, talvez ainda assim, restava a impresso de que ela se movia deliberadamente nesse elemento da episteme. Como se tudo fosse uma questo de episteme. Ao tencionar os investimentos nesse sentido o risco era justamente o de endossar uma espcie de iluso do discurso autnomo. Em suma, malgrado algumas passagens onde o pano de fundo ontolgico poltico se apresentava em todo o seu volume, eu acabava por recair nos mesmos deslizes da arqueologia foucaultiana. A saber:

poderamos suspeitar de que, apesar do seu compromisso com uma fenomenologia pura e duplamente parenttica, Foucault est consciente de que as prticas discursivas no so simplesmente regulares, mas tm, de fato, o poder de formar sujeitos e objetos. Alm disso, parece claro que as regularidades por ele descritas no so simplesmente ordenaes acidentais que podem ser percebidas na superfcie do discurso, mas que devem evidenciar alguma regulao sistemtica subjacente. Contudo, visto que nesse estgio ele est comprometido com a noo de que as prticas discursivas so autnomas e definem o seu prprio contexto, Foucault no pode procurar o poder o poder regulador que parece governar as prticas discursivas fora destas mesmas prticas. Assim, apesar dos fatores no discursivos apresentados sob a forma de prticas sociais, institucionais e pedaggicas e de modelos concretos introduzirem-se constantemente em sua anlise, Foucault deve localizar a produtividade do poder revelada pelas prticas discursivas na regularidade destas mesmas prticas. O resultado a estranha noo de regularidades que se auto-regulam, onde o arquelogo deve atribuir uma eficincia causal s prprias regras que descrevem a sistematicidade destas prticas. (Rabinow & Dreyfus, 1995, p. 95).