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Web-Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 5 Número 13 julho 2014 Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 353 SOCIOLINGUÍSTICA NA ESCOLA: VALORIZAÇÃO DE IDENTIDADES E TRANSFORMAÇÃO DE REALIDADES André Magri Ribeiro de Melo (UERN/ CAWSL/Açu) 1 [email protected] Lílian de Oliveira Rodrigues (UERN) [email protected] RESUMO: Neste trabalho nos propomos a uma pesquisa na área de Linguagens, Ensino e Sociedade, com enfoque no eixo temático da Sociolinguística aplicada ao contexto escolar. Essas reflexões nascem das discussões realizadas durante os encontros de formação pedagógica com professoras de língua portuguesa da rede municipal de ensino da cidade de Ipanguaçu/RN. Objetiva-se estudar o trato dado aos estudos da língua em variação e suas implicações na construção de uma educação em língua materna libertária. Procedeu-se metodologicamente a partir de estudos bibliográficos de nomes relevantes e muito recorrentes na discussão dos estudos sociolinguísticos, como Bortoni-Ricardo (2005) e Bagno (2007), além de Freire (1996) no que se refere à formação crítica do professor/aluno, bem como da observação de aulas de língua portuguesa no ensino fundamental e conversas com a professora responsável. Avaliou-se o material didático utilizado pela instituição e pela docente, apontando avanços e limitações no que concerne, principalmente, às abordagens do ensino de gramática e de suas implicações em relação à aprendizagem dos educandos. Estabeleceu-se um paralelo entre os princípios da educação libertária, no sentido marxista que Paulo Freire (1996) tanto difundiu, e da sociolinguística, a fim de construirmos apontamentos pedagógicos consistentes com relação ao ensino de práticas de linguagem em língua materna relevantes socialmente e que se pautem na valorização de identidades. PALAVRAS-CHAVE: sociolinguística; educação libertária; língua materna. ABSTRACT: In this work, we propose to research in the area of Languages, Education and Society, focusing on the theme of Sociolinguistics applied to the school context. These reflections arise from the discussions held during the meetings of teacher training with portuguese language teachers from basic schools in the city of Ipanguaçu / RN. Objective to study the treatment given to the study of language variation and its implications for the construction of a libertarian education in portuguese language. Your theorical development come from studies of relevant bibliographic names in the discussion of sociolinguistic studies, as Bortoni-Ricardo (2005), Bagno (2007), and Freire (1996) with regard to the critical performance of teachers and students as well as the observation of Portuguese language classes in elementary school and conversations with the teacher responsible. We evaluated the teaching materials used by the institution and faculty, pointing advances and limitations with regard mainly to approaches to teaching grammar and its implications on students' learning. Established a parallel between the principles of libertarian education, in the Marxist sense that Paulo Freire (1996) both diffused in 1940, and sociolinguistics in order to build consistent teaching notes regarding the teaching of language practices in mother tongue and socially relevant are guided in the valuation of identities. KEYWORDS: sociolinguistics; libertarian education; portuguese language. 1 O autor é acadêmico do Curso de Letras Vernáculas da UERN/CAWSL e atua em processos de formação de professoras de língua portuguesa na Secretaria de Educação de Ipanguaçu, onde coordena a diretoria de políticas públicas de leitura e ensino.

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SOCIOLINGUÍSTICA NA ESCOLA: VALORIZAÇÃO DE

IDENTIDADES E TRANSFORMAÇÃO DE REALIDADES

André Magri Ribeiro de Melo (UERN/ CAWSL/Açu)1

[email protected]

Lílian de Oliveira Rodrigues (UERN)

[email protected]

RESUMO: Neste trabalho nos propomos a uma pesquisa na área de Linguagens, Ensino e Sociedade,

com enfoque no eixo temático da Sociolinguística aplicada ao contexto escolar. Essas reflexões nascem

das discussões realizadas durante os encontros de formação pedagógica com professoras de língua

portuguesa da rede municipal de ensino da cidade de Ipanguaçu/RN. Objetiva-se estudar o trato dado aos

estudos da língua em variação e suas implicações na construção de uma educação em língua materna

libertária. Procedeu-se metodologicamente a partir de estudos bibliográficos de nomes relevantes e muito

recorrentes na discussão dos estudos sociolinguísticos, como Bortoni-Ricardo (2005) e Bagno (2007),

além de Freire (1996) no que se refere à formação crítica do professor/aluno, bem como da observação de

aulas de língua portuguesa no ensino fundamental e conversas com a professora responsável. Avaliou-se

o material didático utilizado pela instituição e pela docente, apontando avanços e limitações no que

concerne, principalmente, às abordagens do ensino de gramática e de suas implicações em relação à

aprendizagem dos educandos. Estabeleceu-se um paralelo entre os princípios da educação libertária, no

sentido marxista que Paulo Freire (1996) tanto difundiu, e da sociolinguística, a fim de construirmos

apontamentos pedagógicos consistentes com relação ao ensino de práticas de linguagem em língua

materna relevantes socialmente e que se pautem na valorização de identidades.

PALAVRAS-CHAVE: sociolinguística; educação libertária; língua materna.

ABSTRACT: In this work, we propose to research in the area of Languages, Education and Society,

focusing on the theme of Sociolinguistics applied to the school context. These reflections arise from the

discussions held during the meetings of teacher training with portuguese language teachers from basic

schools in the city of Ipanguaçu / RN. Objective to study the treatment given to the study of language

variation and its implications for the construction of a libertarian education in portuguese language. Your

theorical development come from studies of relevant bibliographic names in the discussion of

sociolinguistic studies, as Bortoni-Ricardo (2005), Bagno (2007), and Freire (1996) with regard to the

critical performance of teachers and students as well as the observation of Portuguese language classes in

elementary school and conversations with the teacher responsible. We evaluated the teaching materials

used by the institution and faculty, pointing advances and limitations with regard mainly to approaches to

teaching grammar and its implications on students' learning. Established a parallel between the principles

of libertarian education, in the Marxist sense that Paulo Freire (1996) both diffused in 1940, and

sociolinguistics in order to build consistent teaching notes regarding the teaching of language practices in

mother tongue and socially relevant are guided in the valuation of identities.

KEYWORDS: sociolinguistics; libertarian education; portuguese language.

1 O autor é acadêmico do Curso de Letras Vernáculas da UERN/CAWSL e atua em processos de

formação de professoras de língua portuguesa na Secretaria de Educação de Ipanguaçu, onde coordena a

diretoria de políticas públicas de leitura e ensino.

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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Linguagem e sociedade estão ligadas entre si de modo inquestionável. Mais do

que isso, podemos afirmar que essa relação é a base da constituição do ser humano. A

história da humanidade é a história de seres organizados em sociedades e detentores de

um sistema de comunicação oral, ou seja, de uma língua. Efetivamente, a relação entre

linguagem e sociedade não é posta em dúvida por ninguém, e não deveria estar ausente,

portanto, das reflexões sobre o fenômeno linguístico. Por que se fala, então, em

Sociolinguística? (ALKIMIM, 2001, p. 21)

A questão levantada por Alkimim (2001) pode aparentemente parecer óbvia, já

que fica clara na citação acima que a linguagem e a sociedade mantêm, sim, intrínsecos

laços de relação e interdependência. Todavia, a recíproca não é totalmente verdadeira. A

indagação anterior não se acaba nela mesma, aspecto que dá margem para uma série de

estudos, análises e reflexões acerca desses enlaces entre linguagem e sociedade. É nesse

cenário discursivo que surge a Sociolinguística – seu objeto é o estudo da língua falada,

observada, descrita e analisada em seu contexto social, ou seja, em situações reais de

uso.

Esta pesquisa foi desenvolvida a partir de análises bibliográficas dos principais

teóricos sociolinguísticos e das suas respectivas linhas de pensamento. A

fundamentação científica amparou-nos no tocante ao objetivo central desse estudo, o

qual é analisar o tratamento que é dado à Sociolinguística na escola, na sala de aula. O

objeto de observação aqui são as aulas de língua portuguesa ministradas em turmas das

séries finais do ensino fundamental em uma escola pública municipal, bem como alguns

diálogos estabelecidos entre nós, pesquisadores, e a professora responsável pelas aulas

acerca das suas concepções no que tange à língua materna, ao seu ensino no segmento

educacional investigado e ao trato atribuído às mudanças linguísticas e variações

dialetais no contexto escolar.

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Atrelada à discussão sociolinguística, que fora instaurada a partir do

questionamento de Alkimim (2001), será apresentada uma concepção de educação

pautada nos ideais libertários, anarquistas e progressistas, fortemente defendidos por

Gallo (1995) e Freire (1996). Esse debate interliga as noções de linguagem, sociedade e

ensino, a fim de construir um projeto de educação em língua materna libertário e

reflexivo.

2. A IMPORTÂNCIA DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA O ENSINO DE LÍNGUA

MATERNA

“Por que tratar da variação linguística?” pode nos parecer uma das obviedades

que deixam a vida sem tanta atratividade, ao passo que também pode parecer um

grandioso abismo, um percalço na vida de muitos educadores, uma pedra no caminho

do ensino... Então, esclareçamos: por mais incrível que possa parecer, não se pode dizer

que o questionamento que inaugura essa seção é desnecessário. O desconhecimento e a

ignorância com relação ao trato das mudanças linguísticas e variedades dialetais ainda é

significativo e requer um intenso trabalho de formação e (re)educação junto aos

envolvidos no processo de educação em língua materna.

É essencial que se tenha conhecimento de que é necessária uma mudança na

concepção de ensino de cada sujeito que está ligado ao processo de ensino de língua

materna na escola, pois essas mudanças são necessárias a um plano de transformação

maior e mais ambicioso – uma educação que transborde a sistemática e eduque o povo.

Para tanto, em 1997 o Ministério da Educação publicou uma coleção de documentos

intitulados “Parâmetros Curriculares Nacionais”. Nesta coleção, reuniam-se propostas

pedagógicas para a renovação do ensino nas escolas brasileiras, onde todas as

disciplinas foram contempladas, inclusive a de língua portuguesa. Nos PCN (sigla que

representa a coleção documental) de língua portuguesa dedicados às series iniciais do

ensino fundamental (1º ao 5º ano), encontramos, na p. 26, o seguinte trecho:

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“A Língua Portuguesa, no Brasil, possui muitas variedades dialetais.

Identificam-se geográfica e socialmente as pessoas pela forma como falam.

Mas há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é

atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum considerar as

variedades linguísticas de menos prestígio como inferiores ou erradas. O

problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas

dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional

mais amplo de educação para o respeito à diferença. Para isso, e também para

poder ensinar Língua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o

de que existe uma única forma “certa” de falar – a que se parece com a

escrita – e o de que a escrita é o espelho da fala – e, sendo assim, seria

preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas

duas crenças produziram uma prática de mutilação cultural que, além de

desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando sua comunidade como se

fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de que a escrita de

uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos, por

mais prestígio que um deles tenha em um dado momento histórico.

(PCN/BRASIL, p.26).”

Esse parágrafo já é suficiente para que a nós identifiquemos nesse documento

oficial uma importante mudança na concepção de ensino de língua nas escolas

brasileiras. Embora trazendo a data de 1997, esse texto na verdade revela o impacto

produzido, na política educacional, por uma ampla discussão que já vinha sendo

empreendida nas universidades brasileiras, desde pelo menos vinte anos antes da

publicação dos PCN – como resultado de todo o processo evolutivo da Sociolinguística

desde o final do século XIX, passando por todo o século XX.

São muitos os aspectos positivos que cerceam os PCN, no que concerne ao trato

da Sociolinguística em sala de aula e na escola como um todo. Contudo, não se pode

deixar de perceber que a inserção desses novos conceitos – como o de “variedades

dialetais” – na prática pedagógica e na concepção do educador em língua materna pode

ser conflitante e até destoante no contexto escolar. Vejamos o que Bagno (2007) afirma

como consequências dessa transformação na concepção de ensino de língua materna:

“O impacto dessa nova concepção de ensino é, sem dúvida, muito positivo.

No entanto, como tudo o que é novo, ela precisa vencer pelo menos dois

grandes obstáculos: (1) a resistência das pessoas muito apegadas às

concepções antigas e às práticas convencionais de ensino, e (2) a falta de

formação adequada das professoras para lidar com todo um conjunto de

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teorias e práticas que até então jamais tinham aparecido como objetos e

objetivos do ensino de português.” (BAGNO, 2007, p. 28)

Compreendemos que para o autor são duas as grandes geradoras de possíveis

atritos na implementação de uma política de educação em língua materna

sociolinguística em nossas escolas: o tradicionalismo arraigado pautado na ideia de

língua padrão; e a falta de formação (ou má formação) dos docentes de língua

portuguesa.

O aspecto da formação do professor de língua materna, de maneira que este

possa tornar-se um educador em língua materna, é importantíssima, tendo em vista que

“nos documentos do Ministério da Educação, nas diretrizes curriculares dos estados e

dos municípios, nos materiais destinados à formação continuada de professoras e

professore, e em muitos outros textos, começaram a surgir termos e expressões que

definiam essa mudança: letramento, tipo textual, gênero discursivo, condições de

produção, coesão e coerência, epilinguagem, variação linguística, intertextualidade,

pragmática, multimodalidade, intersemiose, atos de fala, etc.” (BAGNO, 2007, p. 28-

29)

Todos esses novos conceitos têm sido apresentados e discutidos em muitos

trabalhos importantes publicados nos últimos anos. O campo da variação linguística tem

merecido esforços de gente muito comprometida e especializada nos estudos

sociolinguísticos. Entretanto, quando comparada à teoria dos gêneros textuais, aos

elementos de enunciação, ao texto e ao letramento, a bibliografia sociolinguística ainda

aparece tímida nesse cenário. Esse aspecto deve ser levado em conta, pois tende a omitir

uma área de pesquisa e ensino muito relevante, e que acaba ficando em segundo plano

(ou em plano nenhum) na prática pedagógica do professor. Isso é crucial para que o

ensino de língua portuguesa seja relegado à imposição de um padrão linguístico e social

pela instituição escolar. Ou seja, precisa ser combatido.

Portanto, é vital que se compreenda o fato de que aplicar a Sociolinguística ao

ensino de língua materna significa ampliar o conhecimento do aluno sobre o fenômeno

linguístico, preenchendo determinadas lacunas resultantes da “imposição” de uma

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língua padronizada em oposição à diversidade sociocultural e geográfica. Essa é uma

forma de se trabalhar a variação, não como uma pobreza linguística que

preconceituosamente se estereotipa, e sim como um recurso de menor esforço, como

uma linguagem ligada à idade, sexo, profissão, etc., como uma tradição histórica e

cultural, dentre outras manifestações. A comunicação oral é algo relevante, pois não

significa que o enunciador desconheça a normatividade da língua, mas que torna o falar

numa forma espontânea, simples e bem mais prática de comunicar-se. Essa

característica das línguas é natural.

Deve-se passar uma linha divisória entre língua escrita e língua falada,

mostrando-se respeito de uma para com a outra, enaltecendo a importância de ambas

para o processo comunicativo, isso sem prejudicar o aprendizado e sem provocar

negligência do aluno quanto à língua padrão. O professor identificando o uso de regras

não-padrão, não precisa intervir automaticamente, podendo apresentar, logo em seguida,

o modelo correto segundo as normas da língua escrita. Obviamente, sem que essa

“apresentação” não acabe tornando uma “correção” estigmatizante e opressora, em

relação ao aluno.

Ainda com o avanço dos estudos sociolinguísticos, é possível deparar-se com

professores que alimentam o desrespeito e as desigualdades linguísticas, tratando as

variedades da língua como supérfluas ações de desleixo e ignorância, às vezes sem se

darem conta que mantêm atitudes de preconceito linguístico para com os alunos e,

consequentemente, para com a sociedade.

2.1 UM DEBATE SOBRE A EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA

A escola é um espaço de formação e transformação fortemente amplo e

abrangente quando olhado da forma adequada. O poder da educação, e

consequentemente da escola, mora dentro de cada um que a constrói. A essência da

escola são as pessoas, são as gentes do mundo. Da mesma forma, que a o néctar que

nutre a existência das línguas é o uso, a prática – também feitos por essas pessoas e

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pelas outras também. “O respeito à diversidade dos indivíduos que constroem as escolas

é, assim, essencial, já que não se pode discutir nem pensar em desenvolvimento ou

transformação do mundo, sem que reflitamos a priori nossa realidade e os sujeitos que a

constituem em toda sua complexidade.” (FREIRE, 1996).

Escola, então, é coisa séria. Mas também é brincadeira. É lugar de sorrir, de

divagar, de expandir o pensamento, de ensaiar para a felicidade. O educador Jean Piaget

nos remete à reflexão de que a principal meta da educação é criar homens que sejam

capazes de fazer coisas novas, e não simplesmente repetir o que outras gerações já

fizeram. Homens que sejam criadores, inventores, descobridores. E a segunda meta

seria formar mentes que estejam em condições de criticar, verificar e não aceitar tudo a

que elas se propõe. Essas, então, seriam as duas grandes aspirações das nossas escolas,

da nossa educação como um construto único e íntegro em suas capacidades.

Nessa dialética, de que nos serviria uma Educação Anarquista numa sociedade

ainda capitalista? Poderíamos simplificar e reduzir a duas respostas. Uma delas diria

que muito pouco, a outra é sua antítese. No primeiro caso se considera que a dificuldade

de se colocar a pedagogia libertária em prática seria tanta, e tantas seriam as pressões,

dentro de uma sociedade capitalista que as forças que a desejassem se retrairiam e se

daria continuidade ao processo comum de educação. Isto é, um processo autogestionário

parcial não conseguiria sobreviver às forças culturais que carrega o homem, acostumado

ao cotidiano infestado de autoritarismo. Como frisa Sílvio Gallo (1995):

"De antemão, concordamos com o filósofo e educador espanhol Carlos Díaz,

quando afirma que a autogestão, no contexto do capitalismo, é impossível.

Como gerir diretamente uma escola, um condomínio, uma fábrica, quando a

própria essência da sociedade é a heterogestão? Como afirmávamos

anteriormente que a democratização do ensino público encontra limites muito

estreitos quando realmente começa a fazer frente ao poder do Estado,

podemos também afirmar que a autogestão no capitalismo encontra limites

extremamente rígidos, que impedem a sua verdadeira realização".

É uma discussão antiga dentro dos debates entre anarquistas. Em todas as áreas

de atuação dos libertários. Havia aqueles que se negavam a participar dos sindicatos

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temendo que ali dentro os próprios trabalhadores se transformassem em defensores do

capitalismo, ou se não defensores, passivos perante ele, e isso se tornou uma realidade.

E então, esperar por uma Revolução Social? Para, assim, por em prática as ideias de

Bakunin, Robin, Mella, etc?

Trata-se de dissolver o poder, de pulverizá-lo por toda a sociedade; quando o

poder estiver totalmente diluído, quando cada indivíduo detiver a mesma parcela de

poder que qualquer um dos outros indivíduos, o poder deixará de existir, pois é um

conceito que só adquire sentido na desigualdade, quando está concentrado em alguns

poucos que, através dele, dominam outros tantos. A construção da liberdade significa,

pois, a completa dissolução do poder, e seu consequente desaparecimento.

E o poder e a doutrinação ideológica estão, também, no cotidiano. E é este

cotidiano que precisamos analisar. E modificar a partir do momento em que se percebe

o que está errado. O que está errado no cotidiano da relação entre professores e

educandos?

Que vemos? Rostos com expressões endurecidas; olhares que se impõem do alto

e não escondem a impaciência com o riso e a aversão a tudo que é lúdico; mãos ávidas

em pôr em evidência o erro sobre o traço vermelho, rabiscado não sem forte dose de

irritação; corpos enrijecidos, de postura quase militar, (a dar exemplo de ordem e

disciplina), falas lacônicas, em tonalidade severa, a anunciar a autoridade e a esconder a

pessoa do professor. Tudo em nome do rigor das formas, do respeito aos prazos, da

obediência aos passos e pré-requisitos!

É a este tipo de comportamento, principalmente por parte dos educadores, que

precisamos transformar. Se pensando ou não numa futura Revolução Social, é problema

de cada um. Quando nos juntarmos com outros para tentarmos mudar este estado de

coisa na educação, nem todos devem estar pensando em uma possível Revolução futura.

E devemos ser transparentes nisso, uns com os outros. Todos devem conhecer pelo que

o outro está lutando.

É obvio que nós, anarquistas, desejamos a mudança de toda a sociedade, e por

isto acreditamos que a pedagogia libertária trabalha para isso. Mesmo não sendo

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anarquistas, muitos dos educadores estão aceitando os caminhos da liberdade e da

solidariedade. E é com estes que devemos contar. Afinal de contas o que todos

queremos é um final feliz, se não for possível para toda a humanidade, para nós e os que

estão mais próximos a nós. Os que podem nos dar e recebem nosso respeito: nossos

alunos, educandos...

"Não fiquem pensando no amanhã, se não sabem se ainda estarão vivos nesse

dia. Tenho horror dessas educações que preparam para a vida. O preparar para a vida

parece profetizar que ela só vai começar daqui a dez ou vinte anos quando terminar a

faculdade. A vida é hoje. Hoje é o momento de alegria. A felicidade tem de ser hoje. Se

a escola não for um lugar de alegria e felicidade, ela merece ser destruída, porque a

coisa mais importante, a única que vale a pena nesta vida é a felicidade. A educação,

portanto, deve ser também voltada para ela".

3. CARACTERIZAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O presente artigo é resultado de uma pesquisa de caráter qualitativo. A

metodologia de pesquisa qualitativa é aquela na qual o pesquisador busca obter

resultados aprofundados através da averiguação bibliográfica e/ou com certo número de

pessoas. Por se tratar de uma pesquisa exploratória (que busca definir como é um

cenário) ela é recomendada para quem deseja fazer uma pesquisa mais geral e depois

definir pontos mais específicos. Ou seja, o público que vai responder a pesquisa

qualitativa é que vai ajudar a definir como é o cenário para determinado tema.

Diferentemente do modelo de metodologia quantitativo, a pesquisa qualitativa busca

se aprofundar nas questões e não em resultados estatísticos. Por isso, a metodologia de

pesquisa qualitativa é mais complexa.

A instituição de ensino investigada é pertencente à rede de ensino municipal de

Ipanguaçu/RN, e está localizada aproximadamente 15 km do centro urbano, na zona

rural da cidade. A comunidade onde está lotada, Sítio Língua de Vaca, é relativamente

carente e possui um quantitativo mínimo de famílias em situação de vulnerabilidade

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social. Residem na comunidade cerca de 200 famílias. O público discente é oriundo de

outras duas localidades vizinhas à sede da escola – Capivara (1,5 km) e Angélica (1

km). Conta com uma demanda de 130 alunos regularmente matriculados nos segmentos

da Educação Infantil e Ensino Fundamental dos Anos Iniciais e Finais. O turno

vespertino comporta um quantitativo de 56 alunos ao todo – coeficiente referente às

séries finais do ensino fundamental. O quadro docente é composto por profissionais

que, em sua maioria, compõem o quadro efetivo de pessoal da Secretaria Municipal de

Educação, com apenas uma exceção.

Foram observadas três aulas de língua portuguesa, realizadas respectivamente

nas turmas de 7º, 8º e 9º anos do Ensino Fundamental. As aulas eram ministradas com

dificuldade, tendo em vista a falta o hiperativismo das crianças e adolescentes que

compunham as classes e a inabilidade da docente em lidar com a situação. Mesmo

diante desse quadro, a regente aplicava um único método aos alunos que apresentavam

claramente necessidades de aprendizagem diversas, já que eles próprios eram diferentes:

cada um com sua personalidade, essência, nível de conhecimento, entre outros aspectos.

Em todas as salas, foi copiado no quadro um determinando tema. Todas as informações

foram retiradas do livro didático, explicitamente.

Observou-se que nas três situações, o tema geral e predominante eram as regras

de convenção gramaticais da norma padrão da língua portuguesa. Não havia

contextualização, tendo em vista que o assunto era posto aos alunos por única e

exclusiva decisão do livro didático e da professora. Os mecanismos de reconhecimento

do predicado verbal e do predicado nominal, tratados no 7º ano, por exemplo, eram

relegados às noções de verbo e substantivo. Os estudantes copiavam a regra. Ao

concluírem, a professora explicava oralmente a mesma regra e da mesma forma que o

texto do livro didático, copiado no quadro, trazia. Os alunos não esboçavam qualquer

interesse nas explanações. Alguns ouviam, outros conversavam e outros simplesmente

ignoravam.

A professora, ao fim das explicações – que foram ministradas tendo como

suporte frases soltas, e não construtos textuais relevantes socialmente –, começou a

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escrever novamente no quadro uma lista de frases. O comando da atividade era que os

alunos elencassem nas sentenças a ocorrência do predicado verbal ou do nominal,

sublindo os seus núcleos – verbo ou substantivo. Percebemos que dentre as 20 frases

dadas aos alunos, 05 apresentavam predicado verbo-nominal, uma noção que não foi

tratada com os alunos naquele momento.

A situação foi semelhante no 8º ano, quando o foco foi nas conjunções

coordenativas. Cópia do livro no quadro, explicação idêntica, desatenção dos alunos e

avaliação dos conhecimentos do aluno pautada na simples listagem de frases e marcação

e classificação das conjunções foram os procedimentos metodológicos observados em

sala. Novamente, a ausência de gêneros textuais no trabalho de sala de aula.

O 9º ano, por sua vez, fugiu à regra. Para a turma, a professora entregou poemas

de Patativa do Assaré. A turma bem pequenina, apenas com 03 alunos, reuniu-se à

frente da docente. Ela solicitou que eles lessem os poemas e observassem os “erros de

ortografia e sintaxe” que neles apareciam. Bem atentos, os alunos leram e começaram a

marcar palavras e expressões “erradas” dentro dos poemas. Ao final dessa etapa da aula,

a professora explicou que “muitas vezes, nós não temos atenção à escrita e acabamos

produzindo textos ruins e pobres de estilo, que nos levam a ter uma imagem ruim diante

da sociedade”. Ao concluir sua fala, uma aluna questionou “mas, então, esse poeta está

errado, professora?”. A professora explicita que “de forma alguma, pois ele é poeta e

pode errar na hora de falar, diferente de nós que não podemos cometer esse tipo de

deslize”.

Concluímos que ainda há muito que discutir, pesquisar, refletir e divulgar no que

tange às inovações no campo do estudos da linguagem. A professora observada reflete o

cenário de vários outros docentes de língua portuguesa despreparados para a função que

ora exercem. Suas concepções de ensino, de língua e principalmente de educação em

língua materna são alarmantemente retrógradas e implicam em seriíssimos riscos à

formação das crianças e adolescentes nas séries finais do ensino fundamental que são

subjulgados a esse sistema de ensino e regência de classe, que desconhece os

pressupostos mais elementares de liberdade e educação transformadora.

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4. LIVRO DIDÁTICO DE LP: AVANÇOS E LIMITAÇÕES

“Em termos de ensino, assumir uma concepção formalista significa considerar a

linguagem uma entidade capaz de encerrar e veicular sentidos por si mesma, de

expressar o pensamento. De modo geral, a vertente dos chamados “estudos

tradicionais”, incluídos aí os gramaticais, situam-se nessa perspectiva. A perspectiva

formalista trata, assim, de uma concepção antiga e de forte prestígio, que concorreu e

muito concorre ainda na formação dos docentes de letras.” (MARTELOTTA, p. 236,

2008)

Os novos métodos de entender, ensinar e aprender, do ponto de vista linguístico,

transcendem as abordagens da gramática normativa em sala de aula e também

contemplam as linhas de leitura e produção textual. Dessa forma, compreendemos que

os manuais didáticos de ensino da Língua Portuguesa apresentam e trabalham, em geral,

o idioma de forma dicotômica, propondo uma série de restrições e divisões para o

ensino da língua materna. O que se tem buscado hoje é atribuir mais “propriedade” ao

conhecimento linguístico. Para tanto, a perspectiva sociointeracionista da língua deve

ser privilegiada, pois é ela a detentora de maior uniformidade no discurso voltado ao

ensino de LM, já que leva em conta não só os conhecimentos gramaticais, mas também

o contexto social e comunicativo dos enunciadores.

A obra escolhida para análise foi o livro didático de Língua Portuguesa do 9º ano

– Ensino Fundamental dos Anos Finais – da Coleção “Diálogo”, editado pela FTD e

distribuído pelo Ministério da Educação (MEC), tendo como autoras a professora Eliana

Santos Beltrão e a psicóloga Tereza Gordilho. O material é usado pela professora

observada durante o processo de pesquisa. O livro é organizado em sete módulos

temáticos, que abordam principalmente o estudo da gramática normativa da Língua

Portuguesa, tratam de forma implícita e pouco explicativa o conceito, a produção e a

aplicação de gêneros textuais escritos e orais, além de possuírem uma proposta de

trabalho com leitura e interpretação textual pouco atrativa.

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Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (5ª a 8ª série) nos

lembram que ao ingressarem na escola, os alunos já possuem competência discursiva e

linguística para interagirem em situações sociais de comunicação do seu dia-a-dia,

normalmente. Acreditando que o aprendizado da oralidade se dá no espaço doméstico

ou extraclasse, muitos manuais de ensino descrevem somente a língua escrita e

desprivilegiam a falada; ou, como em alguns casos, confundem os dois códigos. No

caso do livro de LP do 9º ano analisado, dentre os sete módulos que o constituem, há

apenas dois que tratam da produção de gêneros textuais orais – o caso da exposição oral

(seminário) e do debate.

Em relação ao primeiro módulo, que trata do gênero seminário, percebemos uma

descrição clara com relação à estrutura de apresentação/organização do gênero,

elucidando os passos mais relevantes dessa produção oral. Porém, não há nenhuma

menção mais direta ao tipo de linguagem que se deve utilizar dentro de uma exposição

oral, com exceção de uma oração no texto-apresentação do tema, que diz: “lembre-se

que esta é uma situação de comunicação formal e que, por isso, necessita de

planejamento!”. Está claro que o gênero deve ser executado formalmente, mas em que

grau, mais especificamente? É importante ressaltar aqui, que a “variedade formal” não

diz respeito ao uso de palavras rebuscadas ou um vocabulário muito elevado e de

linguagem tecnicista, apenas, mas ao uso coerente das estruturas gramaticais e textuais

durante a nossa fala/escrita. Sendo assim, concluímos que há uma variedade em relação

ao grau de formalidade a ser empregado e que isso deve ser levado ao conhecimento dos

alunos.

Os módulos 1 e 2 da obra analisada, propõem o estudo das orações subordinadas

dentro de suas dez subdivisões pautadas nas classificações adverbiais. Um dos aspectos

a serem discutidos nesse sentido é o fato de que o livro é iniciado com o trato das

orações de sentido subordinado, sem resgatar ou fazer qualquer alusão às orações de

sentido coordenado e suas (sub) divisões. Há nesse caso, uma quebra da linearidade na

construção do sentido, pois como podemos exigir do educando a compreensão de um

determinado tema dos estudos gramaticais, se negligenciamos e não

apresentamos/recapitulamos uma parte extremamente ligada e relevante a ele, como é a

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situação das orações coordenativas? Não esqueçamos também a situação em que o

manual trata da subordinação nas orações: sem qualquer alusão ao “sentido” dessa

subordinação na produção de textos relevantes socialmente, bem como restringindo o

recurso linguístico da subordinação ao uso de conjunções classificatórias e

desconsiderando este como relevante e eficaz mecanismo de coesão textual.

Ainda tratando das orações subordinativas, percebemos que as autoras tratam o

assunto à base de definições, quadros classificativos e explicações/questões movidas

apenas pelo raciocínio lógico-semântico. Não há uma preocupação, por parte das

autoras, em estabelecer uma relação entre as conjunções e locuções conjuntivas que

marcam as relações de subordinação entre os sintagmas dentro de um período e dois

elementos básicos e importantíssimos no processo de produção textual escrito/oral: a

coerência e a coesão. O estudo das conjunções e locuções torna-se bem mais útil ao

público discente quando há uma relação entre o referencial teórico e as situações

cotidianas de sua vida, como é o caso da relação entre as conjunções subordinativas e as

cartas, bilhetes, relatórios e artigos que os alunos produzem no contexto escolar,

profissional ou doméstico, por exemplo.

Segundo Marcuschi (2001), é impossível investigar oralidade e letramento – e

seus contrapontos formais, fala e escrita – sem considerar seus usos na vida cotidiana.

Os manuais de ensino de Língua Portuguesa deveriam direcionar uma atenção especial

às questões em torno das variedades e variações linguísticas, das suas implicações nas

relações sociais e no fenômeno negativo do preconceito linguístico, que ainda hoje é

presente e assíduo na realidade brasileira, principalmente, por parte dos gramáticos e

jornalistas das mídias formais.

Infelizmente, ainda são poucos os manuais didáticos de LP no Ensino

Fundamental dos Anos Finais que se adéquam a esse contexto linguístico e,

consequentemente, continuam a ensinar e tratar com demasiada atenção as

classificações e estruturas da gramática normativa do nosso idioma e esquecem-se de

enfocar pontos bem mais relevantes de uma língua, como as relações de poder e

preconceito social que estão por trás do discurso daqueles que entendem a língua como

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uma questão de “certo” ou “errado”; daqueles que aplaudem a construção “Eles vão

lavar-se naquele pia” e negligenciam a construção “Eles vão se lavar na pia”.

O livro didático da Coleção Diálogo é, infelizmente, mais um dos mencionados.

Em seus 7 módulos de conteúdos de Língua Portuguesa (leia-se “gramática”),

distribuídos em mais de 300 páginas, as referências à importância do estudo das

variações da língua é inferior a 1% e se assumirmos uma postura mais exigente em

relação ao assunto, podemos dizer que a obra não trata das relações reais e mais

importantes entre língua e sociedade. O texto da Constituição da República Federativa

do Brasil de 1988 é objetivo quando trata da educação “como um direito de todos e para

todos”. Sendo assim, quando um aluno de zona rural é corrigido ao usar construções da

linha “A gente vamos”, “Pra mim beber”, “Os livro” ou “Adonde”, sob o argumento de

que isso é incorreto, é errado, então que educação ele deverá receber, levando em conta

que essas construções são compreendidas por todos os seus amigos, colegas e, inclusive,

por quem o corrigiu? As noções de contínuo ou descontínuo linguísticos são sequer

consideradas, dessa forma.

Portanto, compreendemos que a obra analisada, apesar de ter sido editada

recentemente (2009), ainda é muito sintética em relação às abordagens mais

contemporâneas dos estudos da linguagem, tendo em vista que privilegia em grande

parte o trato das questões gramaticais e deixa a desejar em pontos elementares para um

bom conhecedor da língua que faz uso, como a produção de gêneros textuais orais e

escritos e sua relação com as situações do dia-a-dia dos alunos. É necessário, assim, que

as autoras revejam sua visão tradicionalista de tratar a língua e seu processo de ensino e

aprendizagem, e passem a valer-se futuramente do vasto aparato científico disponível

atualmente no que diz respeito à linguística e seus subcampos temáticos. Dessa forma, o

ensino de língua materna a partir da obra poderá ser mais eficaz e realizar um dos

principais objetivos de livros dessa linha: utilizar a linguagem na escuta e produção de

textos orais e na leitura e produção de textos escritos de modo a atender a múltiplas

demandas sociais, responder a diferentes propósitos comunicativos e expressivos, e

considerar as diferentes condições de produção do discurso.

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5. A SOCIOLINGUÍSTICA NA SALA DE AULA

O modo como a língua é ensinada na escola pratica tradicionalmente o modelo

da deficiência. O principal pressuposto da tradição normativa é que cabe à escola o

papel de compensar supostas carências socioculturais. Decorre desse pressuposto que a

principal tarefa do ensino é substituir a variedade não-padrão pela padrão. A esse modo

de existência, a Sociolinguística propôs uma alternativa fundamental, segundo a qual

variações de linguagem não devem passar por um crivo valorativo, já que não são mais

que formas alternativas que o sistema linguístico põe à disposição do falante. Nesse

caso, é outra a tarefa fundamental da pedagogia da língua materna: cumpre-lhe

despertar a consciência do aluno para a adequação das formas às circunstâncias do

processo de comunicação. (CAMACHO, 2001, p.69)

As atitudes do professor em sala de aula, no tratamento dado aos fenômenos de

variação linguística, podem exercer uma grande influência no comportamento de seus

alunos. Como expusemos nesse trabalho, a variação linguística está intimamente ligada

a aspectos de natureza social, cultural, política – humana, enfim. Por isso, devemos

prestar toda a atenção possível ao que está acontecendo no espaço pedagógico em

termos de discriminação, desrespeito, humilhação e exclusão por meio da linguagem. “É

inadmissível, nos dias de hoje, que o modo de falar de uma pessoa continue sendo usado

como justificativa para atitudes preconceituosas e humilhantes”. (BAGNO, 2007, p.

207)

Retomando a discussão instaurada durante todo o trabalho, é importante que

possamos refletir sobre o trato que se dá (ou não) à Sociolinguística em sala de aula. A

discussão e apresentação dessas questões aos alunos vai além de uma mera necessidade

cognitiva. É uma questão de quebra de princípios, de padrões, de grades que aprisionam

a verdadeira essência da educação. É uma questão de liberdade, respeito à diversidade e

de construção de uma educação que realmente torne seus sujeitos capazes de

transformar positivamente a realidade.

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Sem sombra de dúvida, uma das principais tarefas da reeducação

sociolinguística que estamos propondo aqui é elevar a autoestima linguística das

pessoas, mostrar a elas que “nada na língua é por acaso e que todas as maneiras de falar

são lógicas, corretas e bonitas.” (BAGNO, 2007, p. 207) Para desempenhar essa tarefa,

cada um de nós, educadores, tem que se munir de um instrumental adequado, onde o

principal componente é, sem dúvida, a sensibilidade.

REFERÊNCIAS:

AUROUX, Sylvain. Filosofia da Linguagem. São Paulo: Parábola, 2009.

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso. 1ª Ed. São Paulo: Parábola, 2007.

BELTRÃO, Eliana Santos; GORDILHO, Tereza. Diálogo – 9º ano. 1ª Ed. São Paulo:

FTD, 2009.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora?

Sociolinguística e Interação. 1ª Ed. São Paulo: Parábola, 2005.

________________________________. Educação em língua materna: a

sociolinguística na sala de aula. 6ª Ed. São Paulo: Parábola, 2004.

BRASIL. MEC/Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares

Nacionais – Ensino Fundamental II (5ª a 8ª série) – Língua Portuguesa. Brasília:

MEC/SEF, 1998.

_______________________________. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino

Fundamental II (1ª a 4ª série) – Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1997.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 42ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra,

1996.

GALLO, Sílvio. Educação Anarquista. São Paulo: UNIMEP, 1995.

_____________. Pedagogia do Risco. São Paulo: Papirus, 1995.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da Fala para a Escrita: atividades de retextualização.

8ª edição. São Paulo: Cortez, 2001.

MARTELLOTA, Mário Eduardo. Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008.

MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à Linguística:

domínios e fronteiras – vol. 1. 9ª edição. São Paulo: Cortez, 2009.

Recebido Para Publicação em 17 de junho de 2014.

Aprovado Para Publicação em 20 de julho de 2014.