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SOCIEDADE BAILANTE FLOR DO SUL A PESQUISA ORAL, COMO POSSIBILIDADE DE FAZER O INVISÍVEL, VISÍVEL Edianie E. Azevedo Bardoni Faculdade Porto-Alegrense-FAPA [email protected] Resumo: Entre os anos de 1950 à 1970, funcionou na cidade de Taquara, Vale do Paranhana no Estado Rio Grande do Sul, a Sociedade Recreativa e Bailante Flor do Sul, tendo como mentora a matriarca da família, Palmira de Souza. O salão proporcionava aos não brancos da cidade e região metropolitana, atividades culturais e recreativas, visto que, naquele período da história do nosso país, não era permitido aos negros realizarem atividades sociais nos salões dos brancos. Neste espaço, os freqüentadores encontravam-se com seus iguais, construindo uma identidade negra e fortalecendo a autoestima. A cidade teve sua origem na colonização européia, e o salão era uma maneira de dar visibilidade as ações dos afrodescendentes, que ocupavam, na maior parte do tempo, um lugar subalterno à margem da sociedade, mas que queriam mostrar que faziam parte da festa. Palavras-chave: negro-visibilidade-identidade Introdução “Este fato está no documento vivo, da boca de cada um” Alvina Sirlei de Souza julho 2009 O trabalho em questão é um “prólogo” do que será a monografia do curso de pós- graduação em História da África e Afro-Brasileira da Faculdade Porto Alegrense. Trata-se de um resgate às raízes da família Souza e sua importância na formação sócio- cultural dos negros da cidade de Taquara, nas décadas de 1950 à 1970, nas atividades desenvolvidas em um espaço sócio cultural chamado de Sociedade Recreativa Bailante Flor do Sul.

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SOCIEDADE BAILANTE FLOR DO SUL

A PESQUISA ORAL, COMO POSSIBILIDADE DE FAZER O INVISÍVEL,

VISÍVEL

Edianie E. Azevedo Bardoni

Faculdade Porto-Alegrense-FAPA

[email protected]

Resumo: Entre os anos de 1950 à 1970, funcionou na cidade de Taquara, Vale do

Paranhana no Estado Rio Grande do Sul, a Sociedade Recreativa e Bailante Flor do Sul,

tendo como mentora a matriarca da família, Palmira de Souza. O salão proporcionava

aos não brancos da cidade e região metropolitana, atividades culturais e recreativas,

visto que, naquele período da história do nosso país, não era permitido aos negros

realizarem atividades sociais nos salões dos brancos. Neste espaço, os freqüentadores

encontravam-se com seus iguais, construindo uma identidade negra e fortalecendo a

autoestima. A cidade teve sua origem na colonização européia, e o salão era uma

maneira de dar visibilidade as ações dos afrodescendentes, que ocupavam, na maior

parte do tempo, um lugar subalterno à margem da sociedade, mas que queriam mostrar

que faziam parte da festa.

Palavras-chave: negro-visibilidade-identidade

Introdução

“Este fato está no documento vivo, da boca de cada um”

Alvina Sirlei de Souza

julho 2009

O trabalho em questão é um “prólogo” do que será a monografia do curso de

pós- graduação em História da África e Afro-Brasileira da Faculdade Porto Alegrense.

Trata-se de um resgate às raízes da família Souza e sua importância na formação sócio-

cultural dos negros da cidade de Taquara, nas décadas de 1950 à 1970, nas atividades

desenvolvidas em um espaço sócio cultural chamado de Sociedade Recreativa Bailante

Flor do Sul.

A questão do negro e sua invisibilidade em uma sociedade branca, descendente

de europeus, principalmente o alemão, no vale do Paranhana-RS, traz como forma de

resistência, as alternativas para se fazer visível, em um período da história brasileira,

onde não era possibilitado, ao afrodescendente, entrar em clubes de brancos para

dançar ou participar de qualquer atividade que não fosse o papel estereotipado, do

excluído ou subalterno.

Para melhor compreensão dos fatos, está sendo realizada uma pesquisa, onde

estão sendo entrevistados os filhos de Palmira Antônia de Souza, matriarca da família e

mentora do salão de bailes Flor do Sul, e de freqüentadores fora do círculo familiar, de

forma a recuperar a história através da oralidade e leitura de imagens. Neste ensaio para

a monografia, será dada ênfase a uma amostragem, ficando este restrito ao depoimento

de duas das filhas, a mais jovem Sirlei de Souza e a com mais idade no momento das

filhas mulheres, Lurdes de Souza Azevedo, pelo fato de que a pesquisa, ainda não foi

concluída.

A invisibilidade do negro

Os brancos, europeus ou descendentes destes, que compõem a sociedade

brasileira do início do século XIX vêem os não brancos; indígenas, negros com

indiferença. A cultura do branco, é destacada, em todos os seus aspectos como a melhor,

a correta ou que deve ser valorizada.

Nesta realidade, acontece o que MUNANGA (1986, p.26), chama de “ tentativas

de assimilação dos valores culturais do branco”. Pois o negro, embora deixado de lado,

não se percebe indiferente, mas sim, sofre uma pressão psicológica muito grande e

muitos acabam por reconhecer-se como um arremedo branco. Já não falam mais a sua

língua, vestem-se como o dominador, sua cultura religiosa é proibida e quem a pratica

muitas vezes é perseguido.

Desta forma, muitos negros procuram, passar despercebidos. “Embranquece-se”

repetindo os padrões brancos para poder fazer parte desta sociedade excludente, ser

aceito. Negam suas origens, religiosidade e cultura. Outros, revoltam-se e procuram dar

o “troco” em uma espécie de vingança aos fatos do passado, rebelando-se.

Segundo RIBEIRO (1995, p. 210), “as classes ricas e as pobres separam-se umas

das outras por distâncias sociais e culturais, quase tão grandes quanto as que mediam

entre povos distintos”, isso vem reforçar o fato de que o negro no Rio Grande do Sul,

que está inserido em um estado miscigenado, com a cultura do alemão, italiano,

açoriano, polonês e tantas outras, precisa lutar para ocupar seu lugar no espaço, mostrar

que sua cultura tem valor, frente ao que historicamente tem sido dito a este respeito, no

sentido de desqualificar a cultura dos descendentes de escravos.

Tornar-se visível em uma sociedade predominante “branca”, onde o descendente

do africano, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE,

compõe a metade da população brasileira, não é uma tarefa fácil. Pois as seqüelas do

período de dominação ainda se fazem presentes no cotidiano e imaginário da população.

O governo tem discutido a questão e políticas públicas afirmativas estão sendo

colocadas em prática para ajudar a diminuir esta falácia, embora, muitos sejam contra.

Mas de nada adiantará se não for exaustivamente trabalhada a autoestima dos negros de

todo o país, incentivando o conhecimento da história da África e de nossos heróis

negros na construção deste país.

Família Souza descobre o seu caminho

A família Souza instala-se na cidade de Taquara-RS na década de 1940 e traz na

bagagem a alegria, festividades e a religiosidade. João Manuel de Souza e Palmira

Antônia de Souza, instalam-se na cidade por que, ele era ferroviário e foi transferido

para este município. Palmira era dona de casa e já tinha o hábito de organizar pequenas

reuniões na cidade em que morava.

O fato de possuírem nove filhos e viverem em uma sociedade que não abria

espaço para que estes pudessem distrair-se, realizarem atividades recreativas e culturais,

desencadeou na organização de reuniões dançantes para os amigos e vizinhos nas tardes

de domingo e festas de carnaval na casa do casal. Havia uma preocupação à

discriminação que os filhos poderiam sofrer, visto que eram negros e sua permanência

em espaços de brancos, não era permitida.

Mais tarde, Palmira, junto com outros grupos passam a desenvolver as festas em

um pequeno salão situado à Rua Rio Branco, deste município. A cidade crescia e os

bailes começavam a se tornar conhecidos na região pois o salão era um lugar muito

sério, a música era boa e os negros podiam freqüentar.

Na cidade naquela época, estavam em funcionamento, o Clube Comercial que

uniu-se ao Clube de Tênis e compunham o espaço da elite taquarense, o Clube 5 de

Maio fundado por descendentes de alemães com o objetivo de reproduzir a preservar a

cultura germânica e a Sociedade de Atiradores, para os praticantes de tiro ao alvo que

também teve na sua origem os descendentes de alemães (BARROSO, 2008, p.114 e

937). E surgia a Sociedade Flor do Sul, para os negros. Estes grupos, não se

misturavam. Principalmente, os negros não podiam entrar em nenhum destes espaços a

não ser na condição de subalternos, trabalhando na limpeza do local, polindo as mesas,

em algumas raras situações como músicos de grupos que vinham de fora da cidade.

Fig.1 Palmira Antônia de Souza

na comemoração dos 15 anos

do Salão.

Ela nasceu em 1903 e faleceu

em 1986 com 83 anos.

Palmira de Souza, (figura 1) também era conhecida na

cidade, por seu trabalho como benzedeira. Orava, recitando os

salmos da bíblia, confeccionava garrafadas de chás e unguentos

para aliviar as dores dos enfermos. Era representante de um

laboratório farmacêutico de São Paulo, do qual vendia

remédios. Não sabia ler e era assessorada pelas filhas, para que

memorizasse o conteúdo dos medicamentos e dos salmos para

cada caso. Era muito respeitada na cidade, sua casa era

freqüentada por todos os segmentos sociais independente da cor

de sua pele.

Localização e inauguração do salão

A Sociedade Recreativa Bailante Flor do Sul, foi criada para divertir os

afrodescendentes do Vale do Paranhana e região metropolitana na década de 1950 e

funcionou ativamente até os anos 70, na cidade de Taquara-RS. Este município situa-se

a 73 quilômetros da capital e teve na sua origem o imigrante europeu, inicialmente o

alemão e mais tarde o italiano e o português, visto que precisavam novos espaços para o

cultivo agrícola, pois as imediações da cidade São Leopoldo não comportavam novas

posses. (BARROSO, 2008, p.32).

Não se sabe ao certo o mês mas, foi no ano de 1956 que foi inaugurada a

Sociedade Recreativa Bailante Flor do Sul. A família Souza é a dona de um patrimônio

cultural que veio a fazer sucesso por décadas. Os frequentadores dos eventos eram os

moradores da cidade e região metropolitana. Havia, inclusive frequentadores que se

deslocavam da capital, assim como algumas bandas e orquestras que alegravam os

bailes.

O salão situava-se na Avenida Marechal Floriano, número 1974. Região que

hoje é considerada central na cidade. Era uma construção típica dos anos 50, de tijolo

armado com piso em parquet e janelas de madeira com veneziana. Seu interior era

ornamentado com espelhos, mesas e cadeiras que circundavam a pista de dança. O salão

possuía um saguão de entrada onde era realizada a “compra” de mesas e convites,

coreto para apresentação das bandas e orquestras, banheiros, copa onde eram vendidos:

aperitivos, lanches, jantares, bebidas e uma cozinha.

A regularidade dos bailes era variável e procurava basear-se em um calendário

temático. As festividades chegavam a acontecer todos os meses ou trimestrais, como o

Baile de Carnaval, Baile da Primavera, Festas das Neves (festividade que datava o

início do inverno), Festa das Vinte e Uma Estrelas (festa representativa a cada estado

brasileiro na época), Festas de Casamento, 15 anos, etc.

O salão contava com uma diretoria que controlava as finanças a organização e o

funcionamento das festas. Uma das filhas da Palmira era a responsável de vir a Porto

Alegre para saber das últimas novidades e comprar materiais para as festas. A decoração

era baseada em elementos da natureza, devido ao custo, como plantas, flores, galhos e

tecidos e variava com o tema de cada festividade.

Fig.2 Inauguração da Sociedade

Recreativa Bailante Flor do Sul, em

1956.

Compareceram na inauguração do salão o prefeito da

cidade na época, Sr. Henrique Vidal Kohlrausch,(figura 2)

que descerrou a fita de abertura, um vereador, um

radialista e vários integrantes da comunidade negra local.

O baile dos pretos do Vale do Paranhana, tinha a sua sede

oficial, a altura da que os brancos possuíam para realizar

suas atividades festivas.

O prefeito, foi convidado de honra para a inauguração do Salão Flor do Sul.

Segundo relato dos familiares, ele era amigo da família. Não era comum sua

participação nos bailes, por que eles sabiam que eram brancos, e nós éramos do salão

dos negros e naquele tempo era assim, era dividido. Ele entrava, comia, jantava,

tomava bebida e sentava lá com a família! (Depoimento de Lurdes de Souza Azevedo).

O que Lurdes, comenta, em seu depoimento, demonstra os fatos de uma época

que não está muito distante de nós. Os brancos e negros, cada um com seu espaço e

lugar. Este espaço que fora demarcado, por uma sociedade com resquícios

escravocratas, com objetivos bem definidos: a manutenção do seu status quo e ideais

imperialistas. A narrativa nos permite observar a articulação entre a história oral e a

história política e social do nosso país (ALBERTI, 2007, p.82). Metodologia que está

sendo utilizada nesta pesquisa.

Embora também percebamos com o depoimento, algum movimento que indique

um certo desconforto - com relação a esta situação - entre alguns integrantes da

sociedade e a procura por mediar, sutilmente esta falácia, através das atividades

culturais. Este encontro, com uma autoridade branca da cidade, de forma amistosa, que

alguns anos antes, não seria possível, ou melhor permitido, começava a ter lugar na

sociedade Flor do Sul. Evidentemente que não poderemos descartar os interesses

políticos, mas segundo depoimentos, independente destes o prefeito da cidade,

freqüentava a casa da Dona Palmira e era agradecido as muitas de suas atuações como

benzedeira.

A fotografia da inauguração também revela a presença de pessoas não negras na

festividade. Segundo relato dos entrevistados, a Dona Palmira permitia a entrada de

algumas pessoas brancas, eles podiam entrar, consumir bebidas e alimentos, mas não

podiam dançar.

Os bailes, a visibilidade do negro

Segundo depoimento das filhas e filhos de Palmira, os bailes eram momentos de

grande alegria e festejo. Era uma oportunidade dos negros da cidade de Taquara e

região sentirem-se valorizados e expressar sua cultura e beleza de acordo com seus

padrões. Revelam que as festas movimentavam todos os setores da cidade. As empresas

de transporte colocavam veículos extras para atender a demanda dos participantes dos

bailes, era maior o fluxo de passageiros nos trens e ônibus. Os hotéis e restaurantes da

cidade recebiam um grande número de pessoas, pois segundo os entrevistados, eram

considerados “negros de sociedade, não eram negros comuns”. Isso quer dizer, que

muitos deles gozavam de algum padrão social que permitia se deslocarem, usar boas

roupas e hospedar-se em hotéis.

Ressaltam que para participar dos bailes não era permitido o aceso de quem não

estivesse vestido a caráter, com terno de linho e gravata para os homens e vestido social

com luvas para as mulheres. A família oferecia ajuda para quem não estava em

consonância com as regras de etiqueta e vestuário. Uma espécie de treinamento era

realizado para quem não estava habituado a acompanhar a vida em sociedade. Para as

roupas, aqueles que não tinham condições financeira, recorriam a empréstimos destas

com parentes, amigos, ou briques.

Não há como não perceber que a aparência cuidada não tem apenas funções

positivas, pois ela deve, também, apagar o estigma da cor. Como não se trata

de mudar a cor, torna-se necessário gerar um efeito que desloque o foco do

olhar, ou da atenção, para outros aspectos aparentes. Aí talvez se encontre a

explicação para o superinvestimento na aparência, característica desse grupo:

além da função social normal, a aparência acumula aqui uma função de

neutralização do estigma. (GIACOMINI, 2006, p. 35)

O que Giacomini cita, é importante: a grande preocupação com uma imagem

positiva. Os frequentadores do salão estavam atentos a este detalhe pois, era uma forma

de ter destaque, mas não pela cor de sua pele. Sentir-se belo, ser visto e valorizado.

Estar naquele espaço também poderia representar uma visibilidade positiva entre seus

pares, ser notado(a) e conhecer pessoas que poderiam dar início a um relacionamento e

quem sabe um, casamento.

A conduta, dos que freqüentavam os bailes era outro destaque. Não era

permitido, nas dependências do salão, qualquer comportamento que não fosse

considerado de respeito, sendo o cidadão advertido e na reincidência, convidado a se

retirar. O que dava aos bailes, um ar familiar e de reconhecido respeito.

O sucesso dos bailes também se dava pelo fato de que as bandas que tocavam

para animar as festas, muitas vezes eram de Porto Alegre e em uma ocasião contaram

com uma orquestra de São Paulo.

Para os negros, integrar-se em uma sociedade de valores brancos, era difícil. O

desenvolvimento de atividades, como os bailes que aconteceram na década de 1950 a

1970, na Sociedade Flor do Sul, eram aceitos, pois não diferenciavam muito do que a

sociedade vigente realizava. Ainda mais, se os negros estivessem no seu espaço, não

competindo com o espaço do branco.

Sociedade recreativa

Ao lado do salão havia um campinho, onde aos domingos aconteciam partidas

de vôlei para as moças e futebol para os rapazes, com torneios realizados contra outras

equipes da cidade, organizados em equipes, devidamente uniformizados. Era um

momento em que acontecia alguma integração social e racial na cidade, muito apreciado

por todos.

A impossibilidade de participar, nos CTGs (Centro de Tradições Gaúchas) fez

com que Palmira de Souza cedesse o espaço físico do salão, para que uma das

frequentadoras, conhecida como Dona Perácia, criasse um grupo tradicionalista. Este

grupo se chamava: CTG Encostas da Serra. Através deste eram promovidas atividades

gauchescas com trajes típicos, danças, músicas e atividades ao ar livre, como

acampamentos, churrascos, etc.

Segundo CHAGAS,(1996, p.13), “o que é experimentado e sentido pelos seres

humanos em questão, o povo negro, só poderá ser expressado por eles mesmos.” Ou

seja, cada um deverá ter experiências diversas para afirmarem a sua negritude em uma

sociedade branca. Somente assim terão como identificar-se, comparar, conhecer as

diferenças e compreender os processos de sua socialização. Estes fatores são

importantes para a sua autoaceitação.

...o Clube era o ponto de partida desse variado leque de recreações, todos

tinham, por assim dizer, certa garantia de que encontrariam pessoas

iguais, isto é, da mesma cor, de mesmo nível, com os mesmo hábitos e

preferências, respeitadoras das mesmas regras de comportamento.

(GIACOMINI, 2006, p.33)

Giacomini refere-se a um clube da cidade do Rio de Janeiro, o Renascença.

Este, coincidentemente, ou não, surgiu no mesmo período em que o Flor do Sul

iniciava suas atividades, realizava eventos que procuravam acolher os não brancos e

possibilitar-lhes uma vida social que contribuísse com a dignidade de ser negro e a

liberdade de expressão, frente a proibição dos negros em participarem das atividades

sociais nos clubes dos brancos, ainda que estes tivessem condições financeiras para

faze-lo.

Uma maneira de entender o funcionamento do negro nos anos 1950 a 1970 no

Brasil, é ter um olhar para as suas relações grupais. Este é um caminho para

compreender as influências sofridas através de suas experiências. A fundação de um

salão de bailes para negros, em uma cidade de influência européia, traduz a necessidade

destes afro-brasileiros de encontrarem seu lugar na sociedade que lhe disse: negro aqui

não!, que os deixou a margem, fora do baile.

Memórias

A metodologia que está sendo utilizada neste trabalho é o do pesquisar através

da oralidade, visto que o Salão Flor do Sul não existe mais. A última atividade,

segundo os entrevistados, ocorreu no ano de 1978 e não estava mais sobre a “batuta” de

Palmira de Souza e sim de terceiros. Até o momento não foi encontrado nenhum

documento oficial do funcionamento do salão, mas uma série de fotografias em preto e

branco, que ilustram as festas, quem eram seus frequentadores e como era o espaço

utilizado por este segmento da sociedade naquele período.

Através dos depoimentos, é possível dar vida ao que as fotos mostram e

complementam o trabalho de resgate às memórias. Um espaço físico que teve seu

período de glórias entre as décadas de 1950 à 1970, nos anos de 1990 tornou-se uma

fábrica de calçados e terminou por ter seu prédio doado para a prefeitura no ano 2000.

Com a venda do terreno em 2001, o prédio foi destruído, pois encontrava-se em

precárias condições de conservação, ameaçando tombar.

A história oral é um patrimônio cultural que nos permite ver, observar, ampliar

nossos conhecimentos sobre o que aconteceu no passado, pois:

A metodologia da história oral tem essa característica especialmente

interessante: a de permitir o conhecimento de realidade sociais através da

narrativa de histórias que condensam determinados significados sobre o

passado. São momentos especiais de uma entrevista, breves narrativas

inseridas na grande narrativa de história de vida, que encerram uma riqueza

tal que se tornam especialmente “citáveis” para dar conta de determinadas

experiências. (ALBERTI, 2007, p 88)

Para dar voz ao salão de baile, destaco o depoimento de duas das filhas de

Palmira de Souza, com o objetivo de tornar suas histórias visíveis, de conhecimento

público. Nos depoimentos, procuro ser fiel as falas das entrevistadas, apenas faço uso de

alguns ajustes lingüísticos que pudessem facilitar a compreensão, mas que em nada

comprometem a fidelidade do que foi dito.

Na primeira entrevista, conheceremos um pouco da história de Lurdes, que é a

quarta filha do casal Palmira e João. Em seu depoimento, ainda em fase de transcrição,

ela comenta sua participação nas festividades carnavalescas, desde muito jovem. Sua

história passa pela sua criatividade e musicalidade. Considerada uma artista, compunha

músicas e marchas de carnaval, participou do coro da cidade e na capital.

No segundo depoimento, saberemos um pouco da vida de Sirlei que teve seu

nome alterado para Shirley, para ficar mais artístico, quando foi a representante do Flor

do Sul em uma escola de samba da capital após ter vencido o concurso de Miss Mulata

taquarense, no ano de 1960.

A musicalidade de Lurdes de Souza Azevedo

O salão utilizava-se de músicas ao vivo. Contratava orquestras de Porto Alegre,

região metropolitana e em uma ocasião, de São Paulo. Lurdes era considerada uma

artista e muitos iam aos bailes para ver seu talento. Cantou no coral, clubes da cidade,

rádio Taquara e na rádio Progresso de Novo Hamburgo.

Foi recomendada para cantar na rádio Gaúcha, em Porto Alegre, quando esta

ficava no Prédio do Edifício União, na Rua Sete de Setembro( em frente ao Paço

Municipal). Participava do coro, quando por aqui cantavam os artistas que vinham do

Rio de janeiro, no programa de Adroaldo Guerra. Ali, conheceu a nossa artista maior,

Elis Regina, ainda no início da carreira, quando esta cantava no Clube do Guri,

chegando a ganhar desta, uma foto, que guarda até hoje.

Cantava junto com as orquestras, em português e algumas músicas em espanhol.

Muitas das marchinhas de carnaval cantadas pelos blocos do salão, eram de sua autoria.

A opção pelo casamento e os filhos, a procura de uma situação mais estável,

para uma mulher negra e de origem humilde, nos anos no final dos anos 50, foi

determinante para desviar-se do caminho artístico.

Para melhor entendermos este momento do salão, apresento uma parte da

entrevista com Lurdes de Souza Azevedo, onde ela conta como surgiram algumas idéias

sobre o carnaval de rua na cidade de Taquara.

Todos cantavam as nossas músicas, todos cantavam junto. Eles faziam

blocos, foi em um tempo bem antigo... Fizemos os primeiros carnavais de

rua, ainda nem tinha no do Clube e no 5 de Maio. Isso, de sair na rua , foi

coisa da mãe, pois nós viemos lá de Monte Negro, e lá eles já faziam isso.

Era uma cidade mais avançada que Taquara, era muito bonito lá, na época.

Eu era bem pequena, e tinha medo daqueles blocos. Por que os blocos eram

de adultos, todos cantando, dançando, se balançando. A danada da mãe saia

na frente. Mandando e desmandando! E tinha os remelechos que vinham na

frente com aquelas fantasias de uma cor em uma perna e outra na outra; e

aqueles blusões de cetim, mangas bem franzidas... Saiam dançando pela

rua.... Mas era um espetáculo! (Depoimento: Lurdes em 27/07/2009)

Como podemos notar no depoimento de Lurdes, a Sociedade Bailante Flor do

Sul, proporcionou à cidade de Taquara o início de novas atividades culturais. O Salão,

foi o precursor das atividades de rua de carnaval, dando início a uma nova maneira de

ver a cultura e a imagem do negro em uma sociedade basicamente formada de brancos,

descendentes de europeus, acostumados a ver e ter, na maior parte do tempo, uma única

relação com os afrodescendentes.

Alvina Sirlei de Souza “ Miss Mulata Taquarense”

Alvina Sirlei de Souza (figura 3), ou simplesmente “Sila”, como é conhecida na

cidade, é uma das filhas mais jovens do casal Palmira Antônia e João de Souza.

Algumas das histórias contadas sobre o salão ela ouviu falar, mas viveu no

momento mais glorioso desta sociedade cultural, chegando a ser coroada Miss Mulata

da cidade. Segundo Sila, ela chegou a vir a Porto Alegre representando a Sociedade Flor

do Sul, devido ao título recebido. Foi entrevistada pela televisão e apresentou-se na

Escola de Samba Bambas da Orgia.

Fig.3 Alvina Sirlei

de Souza, Miss

Mulata taquarense

em 1960.

O concurso de Miss Mulata, do qual foi coroada, aconteceu

em 1960, e contou com uma comissão julgadora composta pela

sociedade taquarense, sendo esta composta por jurados negros e

brancos, incluindo o diretor do jornal “A notícia” .

Sua participação elevava o nome do Salão Flor do Sul frente

a outros municípios, pois como anunciou o jornal da cidade:

“Agora ela irá acontecer num baile na

Pérola das Colônias, onde será eleita a Miss Mulata

da referida cidade e em seguida irá a São Leopoldo

para colocar a faixa na Miss Mulata daquela cidade.”

(JORNAL A NOTÍCIA, 1960, P.3)

A participação de Sirlei neste evento, onde outras negras também desfilaram, foi

a oportunidade, de uma cidade predominantemente de colonização européia, observar a

beleza negra sob outro ponto de vista. Ali, o negro não estava na condição de

subalterno, mas sendo avaliado por uma comissão de julgadores - a maioria brancos -

que com seus padrões, tiveram que escolher a representante do município. O nome do

município estaria ligado, também a presença afro.

A emergência de novos padrões de beleza, culturais e sociais estava sendo ditado

pela família Souza, que se mostrava a frente de seu tempo, tendo a coragem de

participar de um evento desta proporção, constituindo novos olhares, demarcando

territórios para a cultura e beleza negra na cidade e região.

Podemos ver, a repercussão da participação de Sirlei, fora dos limites de

Taquara, representando a sociedade Flor do Sul, em um trecho de seu depoimento, que

ainda está em fase de transcrição. Ela comenta sua ida a Porto Alegre, na Escola de

Samba Bambas da Orgia, nos anos 60.

...nós saiamos daqui, eu ia desfilar lá em Porto Alegre, o meu nome esta lá

nos Bambas da Orgia! Esta lá nos Bambas da Orgia, pode ir lá que esta lá!

Está lá na fita, TV Piratini, canal 5. Aparece a minha pessoa lá, desfilando.

Lá no Sindicato dos Metalúrgicos.

Isso foi nos anos 60, 62... Lá no sindicato dos metalúrgicos, eu estava

desfilando! Isso foi logo depois daquele concurso, que eu participe. Está lá

nos Bambas da Orgia, e no Canal 5, lá no Sindicato o meu nome. O meu

nome está lá... Desfilei em nome da Sociedade Flor do Sul... Isso aí é um

documento!! No sindicato e nos Bambas da Orgia. Pode procurar o Senhor

que convidou, ele está lá!( Depoimento: Sirlei, realizado em 22/07/2009).

Percebe-se a alegria por ter representado o Salão Flor do Sul na capital do

Estado, em uma escola de samba, hoje ainda mais conceituada, tendo sua participação

registrada, inclusive pelas lentes da televisão. O evento aconteceu há 50 anos e imagina-

se a situação desta parcela da população brasileira em expor-se, participar de atividades

sociais, e ter, inclusive, um espaço próprio para desenvolver a sua cultura, divertir-se.

Hoje, o salão não existe mais! Mas sua história está viva na memória de cada um

que teve a oportunidade de viver este espaço, em fotos e fatos que marcaram época.

A família Souza, foi de grande importância para uma geração de negros e negras

que procuravam construir sua identidade. Eles encontravam, naquele espaço, a

possibilidade de ser negro, de ser aceito, se sentir gente, não um ser “coisificado” e sem

valor. De construir uma identidade como negro e sentir-se cidadão taquarense frente a

realidade social vigente.

Considerações finais

O trabalho de pesquisa sobre o Salão de Bailes Flor do Sul, tem sido de grande

importância para mim.

Hoje, o salão não existe mais! Mas sua história está viva na lembrança de cada

um que teve a oportunidade de viver este espaço.

Considero que as ações da família Souza, foram importantes para uma geração

de afrodescendentes que procuravam construir uma identidade negra. Eles encontravam,

naquele espaço, a possibilidade de estar com seus iguais, ser negro, sentir-se parte da

sociedade e valorizado.

Viso, a monografia do curso de especialização em História Africana e Afro-

brasileira na Faculdade Porto-Alegrense-FAPA, mas sem perder de vista a importância

de que este estará contribuindo para a valorização da minha própria história, pois sou

integrante desta família, mulher negra e cidadã afro-brasileira.

Vivi na mesma sociedade onde se passou toda esta história, alguns anos mais

tarde porém, e assim como tantos outros afrodescentes, procuro uma história para contar

de meu povo, que não fique restrita a triste realidade da escravidão. Mas que também

mostre as resistências e lutas sociais, as alegrias do negro em uma sociedade branca, pós

abolição, que de diversas formas mostrou - ainda mostra - sua face mais perversa,

através da exclusão e do preconceito racial e social.

A pesquisa monográfica, ainda está em uma fase intermediária, com entrevistas,

ligações telefonias, gravações e transcrições de fitas e MP4. Um registro que sai da

lembrança para fazer parte das páginas de minha monografia. Espero que esta realmente

venha contribuir com a reafirmação de minha autoestima e, pretensiosamente, com a de

tantos negros e negras que possam vir a lê-lo, assim como pessoas não negras para que

possam ver as algumas das tentativas do povo negro que tanto sofreu, tentando fazer

parte deste “grande baile”, na sociedade brasileira.

Bibliografia

ALBERTI, Verena e PEREIRA, Amilcar A. (Org.). Histórias do movimento negro no

Brasil: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas; CPDOC-FGV, 2007.

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Jornal

A Notícia. Miss Mulata Taquarense visita a nossa redação-reportagem Gaysita.

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Fonte consultada

www.ibge.gov.br

Entrevistas

SOUZA, Alvina Sirlei de. Realizada em Taquara no dia 22/07/2009, em fase de

transcrição.(Entrevista concedida à Edianie Bardoni)

AZEVEDO, Lurdes de Souza. Realizada em Porto Alegre no dia 27/07/2009 e em

14/08/2009, em fase de transcrição. (Entrevista concedida à Edianie Bardoni)