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SOBREDEVIR, OU O REINO DA DIFERENÇA EXCEDENTE Carlos Henrique Machado SOBREDEVIR, OU O REINO DA DIFERENÇA EXCEDENTE . ÍNDICE Prefácio, Introdução Unidade 1. Geografia do lugar nenhum Unidade 2. O discursos dos fluxos Unidade 3. O poder, a ordem e o sentido do Ser Unidade 4. Ver os toques antes que eles se estendam às peles Unidade 5. Solilóquio da diferença Unidade 6. Dromologia , a fratura morfológica do virtual Unidade 7. Tempo, Duração, Mudança, Singularidade e Intensidade Unidade 8. A emergência de uma nova ordem Unidade 9. Caminhos para uma nova significação 1

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SOBREDEVIR, OU O REINO DA DIFERENÇA EXCEDENTE

Carlos Henrique Machado

SOBREDEVIR, OU O REINO DA DIFERENÇA EXCEDENTE

.

ÍNDICE

Prefácio,IntroduçãoUnidade 1. Geografia do lugar nenhumUnidade 2. O discursos dos fluxosUnidade 3. O poder, a ordem e o sentido do SerUnidade 4. Ver os toques antes que eles se estendam às pelesUnidade 5. Solilóquio da diferençaUnidade 6. Dromologia , a fratura morfológica do virtualUnidade 7. Tempo, Duração, Mudança, Singularidade e IntensidadeUnidade 8. A emergência de uma nova ordemUnidade 9. Caminhos para uma nova significação

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PREFÁCIO

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INTRODUÇÃO

Nos últimos anos me acostumei a ir quase todos os dias, a um mesmo bar. Em uma de suas paredes está um grande quadro que exibe uma fotografia com a figura de quatro homens, todos a olhar pela janela, fitando um prédio do outro lado da rua e tendo entre eles uma luneta. Todos estão vestidos com ternos de cor escura, pois a foto é em branco e preto. Toda as vezes faço a mesma pergunta. O que será que estão olhando? Não tenho certeza de onde ou quando a fotografia foi tirada. Poderia ter sido em Nova Iorque, ou não, em um tempo qualquer entre as décadas de 1930 e 1950. O mais curioso é a ideia de que aquele encontro espaço-temporal ocorreu em algum ponto do tempo que se contrai até mim. Supondo que a foto refletisse um período em que a técnicas de captura e impressão estavam vinculadas aos princípios básicos da ótica clássica, onde as imagens se formavam e eram impressas no anteparo da "chapa" fotográfica, tal curiosidade se manteria, mas de uma forma mais simples. A partir do momento que ousamos imaginar que o quadro pudesse ter sido produzido a partir das técnicas digitais de organização dos pixels, , o assunto ganharia um curiosidade maior e quase insólita. Então, pergunto se seria menos ou mais curioso se o tal quadro tivesse saído do pincel de algum artista da figuração que tentasse reproduzir os limites de um olhar acostumado a recortar as formas no clássico esquema: intensidades, percepção sensível, memoria e significado. A essa altura, uma multidão de linhas de fugas vem se embaralhar à questão inicial. Intensidades invadindo os prismas, obturadores ou os órgãos da percepção sensível, se amalgamam aos suportes da tela, da chapa, ou da retina, junto com a interface do programa que destrói todos suportes e organiza os pixels em pontos luminosos. Assim, eliminando-se os anteparos sobram apenas, em todos os casos, a intensidade da luz sintetizada nas formas apreendidas pelo olhar.

A eliminação dos anteparos onde se reproduzem as imagens das sínteses operadas pela reflexão dificulta a tarefa de se tentar descrever o que permanece diante dos olhos a cada novo instante. A possibilidade de que em cada aparição, as partes ou as qualidades constitutivas do que se abre a percepção sensível sejam reorganizadas através dos programas que criam novas e ilimitadas imagens, compromete a eficácia do ato de determinar o “Ser” daquilo que aparece. Como ficaria então uma ontologia que pretendesse dar conta dessa disrrupção.?

Uma ontologia é a “ciência do ser”: um estudo filosófico sobre as categorias básicas da existência ou da realidade – a exemplo da identidade e da diferença,

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do sujeito e do objeto, essência e aparência, necessidade e acidente, substância, qualidade e quantidade, espaço e tempo e todas as relações dessas categorias entre si. Ao longo de sua história as ontologias assumiram a prioridade de descrever e identificar “aquilo que permanece” diante do sujeito do conhecimento em meio a avalanche da transitoriedade das coisas que surgem e desaparecem. Todo o seu esforço para expugnar a transitoriedade e em última instância o “devir” dos estados de coisas, visava resguardar o Ser dessa ameaça de dissolução. Sem poder reter os dias que escorrem como gotas de luz e apontam, ininterruptamente um céu de novas cores, ou a força das trevas que se lançam impiedosamente quando o dia vai dando lugar a escuridão da noite, o pensamento assume a estratégia de buscar reter tudo aquilo que pode retornar como o mesmo e seja reconhecido pelas propriedades que permanecem semelhantes em cada aparição, constituindo, assim, sua identidade. Desse modo a ciência do “Ser” tornou-se a ciência da identidade. Fundada nos elementos que permitem reconhecer aquilo que aparce, vai e que volta como o mesmo diante do sujeito que ve, abstrai e diz, a identidade garante o reconhecimento daquilo que se repete, permitindo esse reconhecimento pelo sujeito que fita, organiza e denomina a realidade ao seu redor.

Isto é; aquilo é; eles são; nós somos. A combinação das imagens em uma cadeia de associações pelo sujeito que indica o que permanece em cada aparição, tornou possível reconhecer e dizer o “Ser” das coisas, fundamento de todas as aparições nos limites do espaço e do tempo. Conforme se vai estabelecendo essa cadeia de correlações entre as ideias que se desprendem das coisas que aparecem ao sujeito, estabelece-se os limites entre as aparições e os significados, criando-se um espaço onde é possível se designar um estado de coisas pela repetição periódica do que se pode reter em cada aparição da realidade apreendida pelos sentidos, prolongada pela abstração e descrita pela linguagem. O conhecimento da realidade do mundo apresenta-se, insistentemente, como um desafio que tem figurado nas diversas etapas da organização histórica da existência humana, bem como da história do pensamento. Como se poderia ter acesso a esso mundo e mitigar o sentimento provocado pela instabilidade do fluxo de um devir que atravessa essa realidade? Até que o homem pudesse dizer o “Ser” das coisas ele seguia contemplando o curso no mundo no qual fora lançado e que prosseguia independente de sua existência, obrigando-o a buscar, sob o risco de sua sucumbência, uma integração a este movimento. Como, porém, buscar a estabilidade numa realidade marcada por um ritmo de frequentes e múltiplas transformações, das quais a sua própria vida participa?

Se correspondermos a existência ao salto no mundo da vida orgânica e da quebra da quietude do estado inorgânico, diríamos que a excitação e o movimento das primeiras moléculas nas células dos seres ditos vivos representaram a expressão da vida. A vida se expressa a partir da preservação de unidades cada vez maiores (zigoto, embrião, feto, etc.) e dessa forma, desde a  primeira divisão mitótica do zigoto e da fusão dos corpos celulares, o caminho da substância viva aponta para o inevitável destino de se expressar através de unidades cada vez maiores de vida até o limite que faz a vida retornar à quietude, ao silêncio, à dissolução das unidades e à morte. O caminho da substância viva é o caminho da morte e a capacidade de enxergar esse caminho foi uma das coisas que passou a

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diferenciar o ser que começou a se dizer humano, dos outros seres que faziam parte desse irresistível movimento de vida e de morte. Esse aparente paradoxo levou os seres ditos, por si mesmo, humanos, a enxergar na realidade do devir a ameaça da dissolução de sua vida e a fugir dela a partir do esforço para construir uma realidade estaticamente imóvel e una, que fosse capaz de expugnar toda e qualquer mobilidade, devir ou multiplicidade, uma vez que esses elementos estariam na base da dissolução de sua vida. Contudo, esta realidade somente poderia ser elaborada a partir  de uma representação colocada também paradoxalmente às originais impressões provenientes de um primeiro confronto, na tentativa de deter essa transitoriedade, aparentemente inerente a todos os seres vivos.

Quer partamos das primitivas práticas mágicas, das diversas concepções religiosas, das formações hierarquizadas de Estado, das inúmeras correntes do pensamento filosófico ou dos construtos teórico-científicos, esbarramos no esforço desse ente, que insite em dizer a si e todos os outros, fazendo disso aquilo que o diferencia dos demais entes, de se tentar minimizar as incertezas e insignificações da avalanche de uma imprevisível novidade que insiste em escapar dos espaços de significação que ele construiu como refúgio. Todo esse esforço se concentrou na busca por uma unidade essencial, seja na esperança de extrair um arcabouço para o mundo, seja na tentativa de obter segurança a partir da sua organização e controle. Da necessidade de garantir sua sobrevivência, o homem, diferente dos outros animais, se estabelece como uma ultrapassagem da natureza, fazendo dessa dissociação a pré-condição de sua autopreservação e de seu autodesenvolvimento. O jogo dessa ultrapassagem controle se processa através de diversos mecanismos que se sucedem no fluxo das civilizações, sob a égide da imaginação, inscritos nos códigos que passaram a sustentar todas as formas de vida.

Fugidas do caos da insignificação, brotam as construções, representações e significados que vão preenchendo um escopo para a realidade. Contudo, a ameaça da dissolução e do aturdimento do caos se apresenta de uma forma insistente, exigindo representações que se afirmem como esferas estabilizantes fora da temível avalanche da descontinuidade do mundo apreendido pelos sentidos. A a tendência inevitável é o seu transporte para um “mundo” além da percepção sensível onde o “Ser” ficasse resguardado de toda multiplicidade aparente e a civilização da ameaça do devir. Porém, a marcha do mundo da transitoriedade sugere sua superioridade sobre as construções estabilizadoras, que precisam ser constantemente reelaboradas através de novos dispositivos e instituições e inscritas em novos espaços de significação. Sociedades primitivas segmentárias são apropriadas e incorporadas pela soberania dos Estados. Cai a verdade absolutizada, resguardada no universo do mito e surge a razão como elemento capaz de harmonizar a verdade ameaçada pelas contradições estabelecidas. Frente ao paradoxo da dúvida, o pensamento desenvolve critérios absolutos para o resgate da unívoca verdade do Ser, que se desloca desde a ascensão ao mundo das ideias eternas, passando pelas realidades essenciais, portadoras da ordem em si mesmas, pela eficácia do conhecimento de um espírito absoluto e pelo desenvolvimento de uma racionalidade científico-tecnológica. Todas essas tentativas visam a apreensão da verdade do “Ser” como

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ponto de equilíbrio de uma realidade desorganizada, e se reproduzem, historicamente, através de específicas organizações no âmbito das civilizações, estabelecendo simultâneas ou sucessivas configurações. As configurações históricas se expressam através de organizações na esfera da ordem social, nas quais são harmonizadas as forças que agem no seu interior, como pré-condição à subsistência da ordem em si mesma. Cada organização se estabelece à medida que consegue realizar o equilíbrio dos poderes individuais e sociais, e entra em declínio justamente quando perde esta capacidade de coesão.

A composição destes poderes é marcada pela interrelação de movimentos individuais e coletivos e pelo processo de interação da realidade indivíduo-mundo, tanto no que se refere à sua natureza biológica quanto social, determinando um equilíbrio temporário e viabilizando a específica configuração constitutiva de uma ordem ou o seu sentido. Como todo tempo traz o seu espaço de significação específico, dede que se passou a catalogar as intensidades apreendidas pela percepção através de registros fonéticos traduzidos por palavras, as significações assumiram formas diversas e puseram os sentidos a dançar ao som da música composta pelo espírito de cada era. Espíritos das matas, dos mares, das cavernas, dos ares e do mais íntimo recôndito apto a guardar sensações e a partir delas representar a avalanche do mundo que nunca parou de cair com o peso de quem cobrava sempre um novo abrigo para o sentido que sendo dissolvido a cada volta do mundo.

Na era das velozes imagens que trafegam na grande rede como ícones de um tempo que se tornou “real”, e a falta de mediações entre os sujeitos e objetos comprimiram o passado o presente e o futuro, ao ponto de desorientarem os postulados clássicos responsáveis em delimitar a diferença entre o “Ser” e sua representação, embaralhando-os em uma geografia que não carece mais do espaço como suporte de qualquer aparição. As imagens aparecem e se dissolvem como um fractal, na dança de um ritornelo que gira com um spin em orbitais que se diluem em vários mundos dispostos em única dimensão. Lançadas em um abismo sem fundo, superfície ou margem as imagens do mundo dançam acompanhadas por um ruído de fundo comprimido no menor espaço e tempo pensável, revelando a música dos novos tempos a vibrar nas cordas do universo como uma sinfonia sempre nova e tocada “ao vivo”.

Toda vez que se tenta reproduzir esse ruído silencioso, as representações vão amplificando as frequências que vibram das cordas do universo, reduzindo a diferença e a indeterminação de cada nova vibração a trajetórias definidas e dispostas no tempo e no espaço a partir das relações ressonantes passam a organizar a realidade que aparece para quem a representa. Compreender de que forma cada representação encerra em um conjunto de regularidades e reduz a indeterminação das aparições através do ato de projetar o conteúdo apreendido pelos sentidos nos anteparos produzidos pelo pensamento, tornou-se o desafio para o conjunto de descrições de diversas disciplinas e saberes desde o final do século XIX, liberando paradoxos que eram contornados pelos modelos fundados na identidade e no determinismo de leis extraídas da natureza, e postas como a essência da realidade objetiva dos entes. O resultado desse novo clamor estendeu-se por todo o século XX , quando se seguiu questionando os

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pressupostos dos modelos clássicos do conhecimento da realidade em torno do sujeito da razão que tinha se estabelecido como o centro de medida de todas as coisas, lançando-o para fora das dimensões estruturadas do espaço onde tinha se habituado a trafegar em sua objetividade como agente da observação, explodindo este espaço em N dimensões, onde a falta de um suporte onde se pudesse imprimir as imagens do mundo, liberou um potencial que lançou o “Ser” para além de suas representações, liberando toda a potência de um “Devir” que tinha sido mantido aprisionado nos subterrâneos da identidade.

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UNIDADE 1. Geografia do Lugar Nenhum

“O devir não é mais o negativo do ser, torna-se uma dimensão do ser, correspondente a uma capacidade que o ser tem de se defasar em relação a si mesmo, de se resolver defasando-se”. (Gilles Deleuze)

Como considerar um objeto qualquer a partir da perspectiva de um processo de ilimitada mudança? A identificação das coisas se dá através da capacidade de se gerar um quadro geral que limite e reparta em fases tudo aquilo que permanece e a partir daí se possa traçar um princípio de identidade. As fases seriam os estados de coisas de um Ser no qual se realiza uma individuação e onde uma resolução qualquer aparece pela repartição dos traços comuns. Uma vez que se tenha a capacidade de fixar os traços que permanecem em uma repetição do mesmo arranjo, estabelece-se uma relação indentitária entre grupamentos que se identificam por semelhança ou dessemelhança. Daí ser possível reconhecer os objetos e dizer o que deles permanece como sua identidade. Se passarmos à analisar o processo de reconhecimento daquilo que permanece como traço fundamental, por um sujeito que relaciona as repartições e as identifica, encontramos uma interioridade no sujeito cognoscente que reflete e organiza os elementos como imagens dessa delimitação e onde cada imagem recupera aquilo que permanece dentro dos limites de uma identidade qualquer. Porém, a simples constatação de que o processo de recognição envolve um mundo em movimento, faz com que toda observação se constitua como um processo de relacionar aquilo que se repete, colocando em evidência a permanência de determinados arranjos cujos limites estabelecem a condição de identifica-los ao longo de uma cadeia de transformações no tempo e no espaço.

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A história do pensamento se constituiu como uma tentativa de se delimitar as identidades e encontrar nas repartições em fases o ser das coisas. As fases são os estados no qual se identifica um arranjo qualquer de combinações que pode ser redescoberto a qualquer momento pelo ato da recognição. O ovo; o embrião; o feto; a noite; o dia; o tempo; o ar; a chuva; a terra. Fases repartidas que organizam o estado de coisas e que carregam em si a identidade que permite, entre um piscar de olhos, reconhece-las uma vez mais, já que elas passam a estar catalogadas em imagens interiores do sujeito cognoscente. A próxima tarefa é dizê-las. E aí surge a linguagem como o instrumento que possibilita a expressão das identidades, através de um esforço de organizar um mundo onde coabitam as coisas, suas imagens e o sujeito que as percebe, as organiza e as diz, sendo capaz relacionar, imediatamente, as palavras, às imagens e as coisas. Assim, esse dizer deve evitar, ao máximo, a equivocidade que coloque em risco a identificação entre tais arranjos, sob pena de um aturdimento que comprometa todo esse processo. Sendo assim, não é difícil entender fato do devir ter sempre representado ao longo dessa história uma ameaça a dissolução do mundo organizado pelas identidades, uma vez que nele não se é possível capturar traços distintivos do ser e a capacidade que o ser tem de nele se defasar em relação a si mesmo, abrindo uma diferença absoluta na qual já não existem fases semelhantes ou diferentes, mas apenas uma multiplicidade onde o múltiplo não é mais um adjetivo subordinado ao um que se divide ou ao ser que o engloba, mas tornou-se substantivo, uma multiplicidade, que habita continuamente cada coisa.

Diferente da identidade do ser a multiplicidade do devir abre linhas de fuga por onde passam todas as mudanças e onde não se é capaz de dizer, se não, os processos ao infinitivo. Neles não se procura a adequação entre os significantes e os significados referentes quando se diz, pois não se diz mais o que a coisa é mas no que ela constantemente está se tornando. Para compreender esse movimento no infinitivo, onde não se destaca mais o verde, a árvore, o dia ou a noite, mas o verdejar, o arborescer, o amanhecer e o anoitecer, vai-se em busca do acontecimento; uma multiplicidade de agenciamentos de termos heterogêneos que estabelece ligações e relações entre eles ao longo de ilimitados movimentos de contágio. Ao invés de se definir através da catalogação de características comum que representam um gênero , espécie ou função, persegue-se os agenciamentos nos quais cada termo entra e sai no seu processo de vir-a-ser. Não há de se falar mais em estados do ser mas das relações disjuntivas que defasam as formas, através de um acontecimento que se estende e se contrai no devir do infinitivo movimento de um diferente amanhecer a cada dia, dando sempre um novo céu, onde sua estrutura ilimitada e ausência de fronteiras contrasta com um espaço ocupado pela extensão de todas as partes que limitam lugres qualitativamente diferenciados através da experiência sensível. Cores e formas estendidas acima de nossas cabeças são apenas limitadas pela linha do horizonte que, aparentemente, fixa-se ao redor de um espaço ocupado pelos objetos sobrepostos. Como uma dobra que distingue o volume de dados fixados pela nossa visão, o horizonte aparece como o último limite da percepção sensível. Além desta linha, temos apenas o caos de possibilidades dependentes da abstração que cria um plano para projetar as formas do nosso pensamento. Nossas sensações não são capazes de adquirir

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cada forma, a menos que a abstração organize o mundo apreendido pela percepção, criando um apoio para o pensamento e para cada coisa representada por ele. Se a abstração fornece o apoio ao pensamento é a linguagem que suporta as formas abstraídas do pensamento.

O mundo adquirido pela experiência sensível, representado pela abstração e descrito pela linguagem vem até nós e temos que nos tornar capazes de separar o que é observado do ponto de observação onde se encontra o sujeito e onde cada possibilidade observada poderia ser a “virada de chave” para o mundo das formas. Esse é o plano onde o ato de conhecer tende a coincidir com o ato que gera a realidade, e podemos chamá-lo sítio da visão ou espaço de significação. Um espaço onde são constituídos os limites ou fronteiras em que o sujeito confronta o caos de todas as possibilidades como uma pluralidade de mundos que emerge de um estado contínuo de fluxo. Esse é o plano de onde as diferenças entre o conteúdos aparecem e permitem ao sujeito dizer o objeto. As diferenças surgem quando o sujeito, em si, superou o conteúdo no qual está misturado e a excitação gerada por este movimento é conectada em uma cadeia de sínteses que viabiliza o processo do conhecimento. Se temos a intenção de atingir a potência que subjaz em cada conteúdo, ao longo do processo de recognição, faz-se necessário que compreendamos de que maneira a abstração funciona como primeiro suporte para a o processo de reconhecimento e definição do estado de coisas que saltam a existência no momento que cada conteúdo aparece para o sujeito do conhecimento - tudo que percebemos, sentimos e pensamos. A partir desse ponto, vem a distinção entre dentro e fora, sujeito e mundo. A abstração cria medidas para ver e para descrever, numa sequência de eventos que produz o tempo e o espaço, regulamentando essa sequência e abordando as coisas na forma em que cada conteúdo está relacionado a outro. Se queremos chegar a duração pura dos eventos fora do limite das formas, temos que recusar a usar a abstração como essa ferramenta do pensamento. Como poderíamos, porém, ser capazes de superar a abstração? A resposta nos faria passar para além do limite de cada imagem do pensamento, onde encontram-se os dinamismos que se recusam admitir a determinação das formas relacionadas e onde os conteúdos escapam das categorias tradicionais do pensamento abstrato e de uma língua ordinária como o apoio à abstração.

O problema deve conduzir-nos a uma linguagem que seja capaz de operar a viagem para os (não) lugares dos dinamismos puros onde o pensamento é gerado, sem fixar formas da abstração, onde o ser se constitui no silêncio, nas ausências e lacunas, como sentido de um contato direto com o virtual. Seria melhor que já pudéssemos definir, nesse momento, o conceito de virtual, pois se não o fizermos corremos o risco de não conseguirmos empurrar as frases muito longe e a frente dos limites da linguagem da abstração, recuperando o potencial deitado sob as palavras, fora do campo de atualização e livre de toda e qualquer medida. Por se consistir num movimento ilimitado e sem suportes referenciais o virtual localiza-se numa dimensão pré-individual, a partir do qual as potências se reduzem e produzem as diferenças que adquirem as formas a partir das quais se permite dizer o mundo apreendido pela percepção. Nesse ponto se requer uma operação que não implica em qualquer ponto de partida ou de chegada porque nesse espaço estamos impedidos de fixar as diferenças e repetições pelo

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princípio da identidade. Lá onde o tempo deve ser tomado como um todo a saltar sobre a ruptura de presentes repetitivos, abrindo um espaço sem extensão, apenas povoado por multiplicidades intensivas. Entrar nesse universo requer um cuidado especial se não se tem a intenção de cair em um completo aturdimento, tendo em conta que começar a velejar nesse campo é adentrar em um rio de líquidos misturados sem nunca poder parar de correr, como originalmente descrito por Heráclito. Se superarmos a abstração como o limite último da realidade, nos deparamos com uma dimensão que poderia ser considerada impensável e indescritível, à primeira vista, a menos que se admita submergir em um rio sem margem, superfície ou fundo, a vasar nos "não-lugares" onde o pensamento foge, a linguagem escapa e a abstração perde seu sentido, com fôlego suficiente para essa viagem insólita.

Marquemos então este caminho ao virtual no campo de articulação do pensamento descrevendo sua a potência e denunciando as tentativas de submetê-lo as artimanhas de um espírito ordenador e suas tentativas de expugná-lo, pondo-o a margem do processo de “ser-no-mundo”, como um “não-ser”, destituído de sentido e reduzido à um inexprimível silêncio. Chegar a potência requer que a encontremos as forças em seu estado livre, liberando-as das relações que constituem as formas fixas do tempo e do espaço. A priori há se assinalar o sentido em que o conceito de força é assumido para que consigamos efetuar uma separação fundamental que nos permitirá seguir adiante. Força aqui não diz respeito as formas de manifestação de uma potência enquanto vibração. Ao contrário, força é a potência em si, que vibra e aparece nessa ou naquela forma. Se é através de uma forma que a força se manifesta - como no caso de uma onda sonora ( força em forma de som), sem de assumir uma forma qualquer a potência/força é uma frequência cuja intensidade é a tensão de sua vibração. O conjunto de vibrações antes de se relacionarem nas formas específicas, supõe um movimento perpétuo e ilimitado que se individualiza numa relação entre frequências determinadas no exato ponto de cada ressonância. As ressonâncias compõe os conteúdos visíveis e invisíveis das formas de ser do mundo e da vida. Ressonâncias seriam relações entre frequências e as frequências, forças enquanto potências. A força é o elemento essencial da natureza de cada coisa que nos aparece como formas, visíveis ou não. Ao decompormos as formas que constituem as coisas chegamos no elemento essencial que é a força. Força, não relacionada e portanto livre. Força que não se converte em nada além de si mesmo; não conserva ou reage, pois se constitui como uma pura tensão, vibração ou frequência.

Cada coisa que aparece ao sujeito que esta presente como um ser-no-mundo ao lado dos outros, chega até ele através dos processos de subjetivação e objetivação Se o campo de articulação desse sujeito for tomado como o lugar das relações entre as formas fixas no tempo e no espaço, para pensar essas relações, dividir a parte que cabe ao sujeito em faculdades facilitaria o reconhecimento de processos com diferentes efeitos relacionados a esse campo, livrando-nos de confusões comuns quando a eles (efeitos) nos referimos. Percepção, abstração, linguagem podem ser tomados como faculdades do sujeito quando se manifesta sua presença no mundo. A invocação dessa “presença” , de saída é proposital. Ela nos livra da ideia do sujeito como uma unidade fundamental de onde tudo

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partiria, fazendo desse “ser-no-mundo” um emaranhado de dobras onde misturam-se o eu e o outro, local de encontros; visíveis, invisíveis, audíveis, inaudíveis, enunciados ou silenciosos. Esses encontros produzem efeitos do ser-no-mundo, cujo resultado é a constituição de um conjunto de faculdades que passam a dar conta do modo como é afetado o conteúdo subjetivo dessa mistura; animais, vegetais, microrganismos, partículas, toda uma galáxia em seu “apetite” e “esforço” pelo qual cada coisa persevera no seu ser, insiste e subsiste. Se a percepção dá conta da vibração luminosa, sonora ou táctil em seu encontro com os anteparos sensíveis e produzem a visão, a audição e o toque, a abstração fixa o ponto exato desse encontro e o projeta em dimensões espaço-temporais é a linguagem que irá reproduzi-los através das impressões gravadas da memória estabelecendo a relação que ligará aos significados as sensações ali retidas. Comecemos por distinguir esses processos, apoiando-nos na descrição deles por Gilles Deleuze, em três sínteses que segundo ele são operadas pelas faculdades do sujeito. A primeira dela, que poderia ser descrita como "síntese do eu contraente", se processa de forma passiva, através das sensações do sujeito e imprime em sua alma as excitações provenientes do seu confronto com as forças da natureza, o mundo que entra pelas sensações, num esquema de ação e reação. A luz que entra pelos olhos, dilata as pupilas e forma as imagens na retina é um bom exemplo para entendermos esta primeira síntese. A segunda síntese chamaremos de "síntese  ativa da memória", sendo o processo de fixação que retêm a experiência em registros de blocos de sensações, criando a dimensão espaço-temporal do presente, passado e futuro. A terceira daremos o nome de "síntese do juízo", por intermédio da qual o pensamento elabora os critérios de diferenciação entre o sujeito e o objeto, entre o indivíduo e o mundo, entre a natureza interna e externa. Seguindo o exemplo do olho e da luminosidade, diríamos que através das sensações o olho contrai a realidade da luz, fixa as dimensões temporais através da memória que retêm essa sensação e cria, através do juízo uma separação que coloca o olho do lado do sujeito e a luz do lado do objeto.

Aqui, gostaríamos de voltar a Nietzsche, destacando a importância de sua crítica da história, na sua denúncia da memória como ferramenta que corrige o presente e cria um campo onde o tempo é arquivado como solução de continuidade do pensar; organizando o passado e futuro que fogem do presente, transformando o movimento da vida em um bloco de extensão linear. Apelando ao “esquecimento” como um instrumento de libertação dessa cadeia de significados temporais ele descreve esse sentimento a partir da visão dos rebanhos que pastam sem saber sobre o ontem ou amanhã na primavera ao redor. Comem, descansam, digerem, saltam novamente e assim, de manhã até à noite e de um dia até outro dia, com seus gostos e desgostos intimamente ligados a instantaneidade do momento, sem melancolia ou cansaço. Ao mesmo tempo, voltamo-nos para a definição de liberdade em Spinoza, onde uma coisa é dita livre, quando existe pela necessidade de sua natureza e em si mesma está determinada a agir. Essa determinação, no entanto, não está ligada a vontade autônoma de um sujeito qualquer, mas a potência desumana para a vida. Nem categórica nem hipotética, mas impulso imperativo como natural. Tudo é natural se considerarmos a natureza como um conjunto de forças em relacionamento

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constante. Nietzsche chama essas forças de "quantum”. Forças que dão forma e sustentam tudo o que existe. Forças que não se limitam porque mudam a todo tempo tentando encontrar um espaço de expressão. Forças gerando formas, a matéria densa e visível e a matéria invisível aos olhos; matéria orgânica e inorgânica, os corpos, os instintos, as paixões; energia que mantem as coisas agindo o seu ser. Segundo Nietzsche, "quando algo acontece dessa ou daquela forma e não de outra forma, não é a consequência de um princípio de uma lei ou ordem, mas do trabalho em si das forças, exercendo sua potência sobre outras forças (...) Um quantum de força é definido pela ação que ela produz e pelo efeito que a resiste ".

Tudo o que existe pode ser resumido como processo interativo de forças. Chamamos essas forças de forças relacionadas, ou formas da natureza, uma vez que consideramos a natureza como a essência de todas as coisas que existem, e só através de sua natureza existem, nesta ou naquela forma e não em outra. Cada coisa traz uma forma de existir e uma maneira específica, continuando a liberar sua potência, mesmo quando enfrenta a potência de qualquer outra forma que intervém e evita que ela siga seu curso. A forma da chuva que cai e que para de cair quando a terra aparece como a forma que a faz correr no leito do rio, até que a forma do sol comece a evapora-la, quando então ela encontra a forma do frio e se condensando se faz nuvem . A forma de excitação sexual de um corpo com outro corpo que segue animando mudanças até que essa excitação, pela explosão de uma forma orgasmo faça com que o forma derramamento de sêmen corra para encontrar a forma de um ovo que o impede de continuar funcionando como sêmen através fertilização que libera a forma óvulo e a potência das formas de um processo meiótico, multiplicando os embrião em unidades cada vez maiores de vida. A realidade produzida pela percepção sensível após a invasão das intensidades circulantes consistiria, então, em forças relacionadas nas formas, num mundo que se torna relação ressonante entre elas. A capacidade de observar e descrever esse processo é um estado dos entes de linguagem chamados, por si mesmo, de animais racionais, na apreensão das formas do mundo e na organização do espaço e do tempo, onde essas formas assumem particular importância na cadeia da significação de sua relação no mundo. A incapacidade de se atingir pelas categorias da razão clássica as intensidades puras, como forças livres e coexistentes, a partir da síntese de um eu que contrai a realidade que aparece para a percepção sensível, cria as fronteiras entre as dimensões do interior, exterior, altura, largura e profundidade, separando as frequências no tempo e no espaço, relacionando-as, catalogando-as e gravando-as como formas na memória. Isso torna o animal racional capaz de reproduzir a realidade pelos nomes que definem as formas. Em seguida, os seres da memória constroem um mundo particular através da linguagem e esse mundo é composto de objetos vivos e inanimados que, através da taxonomia dos formas relacionadas passa a erigir torres de observação, como uma espécie de habitat privilegiado dos entes da imaginação.

Através de sínteses produzidas pela percepção sensível, pela memória e pela linguagem este ente vai criando as diferenças fundamentais que o permite torna-se um ser-no-mundo. Por intermédio de um incansável esforço passa, então, a distinguir as diversas formas da natureza, para ajudá-lo a discorrer sobre elas.

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Como o fluxo da natureza é impermanente, considerando a ação dos diversos quantum de forças que produzem as formas que resistem reciprocamente nas intermináveis mudanças processadas na realidade do mundo, o homem tenta destacar as formas que não mudam em sua própria essência, fazendo-as prevalecer sobre as demais, e dessa maneira tenta estabelecer um limite entre o mutável e o imutável, o impermanente e permanente, já que o mundo parece não protegê-lo da avalanche de transitoriedade que ameaça devolvê-lo ao estado indiferenciado, do qual nasceu para se estabelecer como observador através da capacidade de reter o momento presente em sua memória e transforma-lo em história. Fora desta história através da qual o ente é dito, por ele mesmo humano, multiplicam-se misturas de forças singulares. Mesmo fora dos limites pelos quais se pode descrever esse processo, os significados da linguagem tendem a fixar as causas e efeitos dessa humanidade e sempre esbarra nesses limites, pois fora deles continuaria subindo ao mais alto dos céus sobre sua cabeça ou indo ao mais profundo do abismo sob seus pés. Estes limites foram estabelecidos por diversas representações ao longo da história humana, sempre no intuito de proteger os entes da linguagem da ameaça da vertigem que quer dissolve-lo de volta na natureza como potência juntamente com outras, sem memória, história, ou consciência do processo de estar no mundo.

No entanto, se temos a intenção de atingir o lugar do campo de forças em sua relação intensiva, fora do sentido ordinário da matéria densa ocupando uma dimensão extensa, precisamos lidar com “lugares” que não podem ser confundidos com o espaço da extensão onde as formas encontram lugar, mas um espaço de multiplicidade de intensidades em vibrações e frequências ilimitadas. Neste plano, o pensamento carece desfazer as formas da matéria densa até que se faça esbarrar na multiplicidade de singularidades e nas linhas de variações perpétuas. Multiplicidade, aqui, seria então um movimento ilimitado de potências em um caos de convivência, onde sua existência é uma frequência como vibração de intensidades múltiplas. O mundo do espaço extenso aparece quando as potências tendem a se despedir do caos, abandoná-lo em favor da regularidade e previsibilidade dos fenômenos, através da cristalização que traça vetores entre o caos e a ordem. Para encontrar o caos em estado puro e sem limites, como multiplicidade de potências em um movimento ilimitado, temos que atravessar o limite das formas através de um pensamento que seja capaz de entrar na variabilidade absoluta, movendo-se nas velocidades diversas das caóticas forças. A matéria densa ocupando o espaço das medidas surge do caos como uma relação diferencial das forças. Se o caos consiste em um campo de modulação incessante das diferenças, o processo de atualização da matéria densa consiste em relações que se constituem através da aceleração e as paradas dessas forças, distribuindo as intensidades e reduzindo a diferença à identidade. A atualização move fluxos de proliferação de diferenças até que uma redução processa a equalização da diferença. Diferença, aqui, é o absolutamente diferente; as forças indeterminadas de um fluxo descontínuo, que tem a diferença em si como sua condição, num movimento de coexistência de diferentes ritmos como potência geradora. Seus ritmos diferentes podem ser descritos como energia potencial e elemento fundamental de um estado integrado, onde a instabilidade deste fluxo está diretamente relacionada as forças e à sua atividade. Quanto mais um estado é integrado, maior é a energia

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potencial ou a energia livre em seu fluxo. Energia livre é um movimento descontínuo de forças em um estado de diferença absoluta. O estado integrado também pode ser descrito como uma repetição dessa diferença absoluta num jorro imprevisível de novidade. O estado integrado é a dimensão do virtual como um movimento de forças ou tendências em seu processo absoluto de diferença. O virtual é a diferença pura, o novo, diferença absoluta que se repete como novidade, fazendo-se cada vez como a primeira de uma série sempre capaz de diferir de si mesma. Podemos aproximar esse estado ao que Nietzsche chamava de "eterno retorno". Não o retorno do mesmo, mas do novo e do absolutamente diferente. A matéria como forma de conteúdo aparece quando essa série de forças divergentes resultam na formulação como produto da diferença, correlacionando frequências com apetite de novidade e lançando-as num campo de atualização.

Nessa perspectiva o virtual deve ser pensado como um fluxo que não pode ser descrito em termos de uma trajetória geométrica espacial, linear e causal, mas apenas em um campo de frequências sem interação. Frequência é o modo como as forças estão tensionadas, podendo ser expressa em termos de vibrações. Existem dois tipos de relação de frequências. Um produz sistemas integrados, onde não existe uma interação das frequências e um outro que produz um sistema não integrado, onde a interação das frequências é dada por ressonâncias. A correlação de frequências prossegue minimizando as variações e tendendo a limitar a ação das forças, em ciclos cada vez mais estreitos, resultando na codificação do fluxo da matéria-movimento, em um processo de sedimentação nas matérias-formas, que leva a uma diferença de graus de sistemas não integrados . Neste ponto, poderíamos definir o mundo da matéria densa como um processo de estratificação que resultam nos sistemas não integrados. No final do século XIX, Henri Poincaré demonstrou a diferença fundamental entre sistemas integrados e não integrados. Ele concluiu que a maioria dos sistemas dinâmicos não eram integrados. Um sistema dinâmico integrado é dito como um sistema onde as variáveis podem ser definidas pela distribuição de um conjunto de forças livres que levam esse sistema a se comportar isomorficamente. Ele demonstrou que apenas uma reduzida classe de sistemas dinâmicos eram integrados e que essa integração é ameaçada pela existência de ressonâncias entre os graus de liberdade em um sistema. A ressonância pode ser tida como uma relação de interação entre as frequências e é produzida quando uma das frequências é equivalente a um múltiplo inteiro da outra. Os sistemas integrados poderiam ser representados como sendo constituído por forças sem a interação, em um campo onde o quantum de cada frequência é a pura qualitatividade das diferenças. A dimensão de tensões e vibrações que expandem-se como um movimento ilimitado de uma diferença pura é o que chamamos de a dimensão do virtual. Por outro lado, sistemas não integrados representam um campo onde a colisão de forças faz uma linear distribuição de diferentes velocidades e cria a correlação das forças em um fluxo que reduz a diferença pura, ou a diferença de espécie, a diferença de graus entre as forças . A luz emitida e absorvida, o acoplamento de sons e quantum de energia, são resultados de diferenças entre os níveis de força como o limite da expansão e duração pura do virtual. O ponto mínimo dessa interação aprece também como uma frequência onde a forma indica o modo como as diferenças de intensidades são comunicados em um

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espaço de extensão. Assim, a matéria densa é um espaço de contração de vibrações em um ponto de interação de forças que determina o campo de individuação dos eventos atualizados. Até este ponto a diferença pura não solicita qualquer outro elemento que não a multiplicidade das forças que assumem o espectro de um monismo isomórfico ou de um movimento sem interação onde as vibrações das forças são ilimitadas, fora do espaço e do tempo, sendo, portanto, impossível determinar sua origem ou prever o seu fim. O movimento no campo da integração é um eterno retorno da expansão das forças como uma diferença absoluta de uma duração. No entanto, a questão principal é dada no mesmo ponto. Como as ressonâncias ocorrem no processo do virtual para o campo atual de sistemas não integrados?

Voltando aos pensadores pré-socráticos encontramos um elemento introduzido, como responsável pela passagem do virtual para a dimensão atual: o "clinamen". De acordo com Lucrécio ele é a guinada imprevisível que ocorre "em nenhum lugar fixo ou tempo”. Os primeiros atomistas concebiam o processo de formação do mundo material como uma queda dos átomos que se moveriam para baixo através do vazio, pelo seu próprio peso, até começarem a se desviar um pouco em um espaço e num tempo bastante incertos, apenas o suficiente para que pudéssemos dizer que seu movimento mudou. Mas se eles não tinham o hábito de desviar-se, todos eles cairiam para baixo através das profundezas do vazio, como gotas de chuva, e nenhuma colisão ocorreria, nem qualquer choque seria produzido entre os átomos. Nesse caso, a natureza nunca teria produzido nada. De acordo com os atomistas, em primeiro lugar a natureza global é formada pelo conjunto de átomos em um isomorfia estática e entrópica que pode ser comparada com um estado de morte. As coisas seriam estáticas em um fluxo perpétuo. Assim, os átomos seriam imortais e estariam em queda livre, sem se tocar entre si, num e fluxo paralelo equivalente ao princípio da inércia. O "clinamen" seria a inclinação na cadeia atômica inerte como uma força motriz ou o ângulo mínimo que produz choques e reviravoltas no tempo e no espaço da dinâmica. Nesta perspectiva, o estado original das coisas descritas pelos atomistas está mais perto de representar o sistema integrado de Poincaré e o "clinamen" seria responsável pelas ressonâncias entre as forças dando origem as formas do mundo. Portanto, o isomorfismo do sistema integrado é o estado de coexistência de uma multiplicidade quântica de forças em um movimento estático, no campo virtual de um eterno e silencioso movimento dos espaços infinitos. Quando o silêncio é quebrado, o campo atual das forças correlacionadas aparece e reúne o mundo e a vida. O mundo, objetos, corpos e até mesmo a alma seriam parte de um declínio de um sistema integrado. A natureza se recusou a morrer exatamente quando ela nasceu, mas continua a cair de volta à morte que é o estado isomórfico de forças que não interagem entre si neste estado imortal; imortal só porque não nasceu ainda. O processo de formação do mundo e dos estados de coisas é uma relação de forças em suas ressonâncias, descendo em um processo de existência, nos choques e nas interações das formas.

A pergunta agora é: O que faz uma força insistir, persistir em sua potência ou vis viva, mesmo quando outra força a ela se opõem? Diríamos que a persistência é a natureza da força que faz com que ele tenda a algo sem ser capaz de se liberar dessa ação particular, assim como no conceito de liberdade em Spinoza. Se

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considerarmos que toda forma é uma relação de forças e que todo corpo é o último limite da unidade de formas, como unidade mínima, diríamos que certos corpos tendem a insistir por conta de sua própria natureza, e nenhum outro conjunto de forças relacionadas é capaz de detê-lo, mas apenas extermina-lo. Parece algo facilmente observável que a natureza das coisas carrega, em si, a potência de continuidade, mas a relação entre essas potências encontra poderes que irão impedir que as forças continuem a subsistir enquanto potência relacionada nas formas. Porém, enquanto não pudermos visualizar como é processada a passagem entre essas duas dimensões onde atuam as forças interagem as potências, permaneceremos no nível dos efeitos e no campo das forcas relacionadas. Com as coisas se tornam o que elas são? Como vislumbrar o produtor dessa passagem? Uma força que ninguém sabe? Como evitar, de saída, a ideia de um primeiro produtor como motor ou causa eficiente? Como parar a fonte de vazamento infinito das forças? Como entrar nesse movimento de passagem sem evitar um primeiro motor transcendente, fora do mundo da natureza como elemento separado. E se por acaso conseguirmos nos colocar nessa passagem, enxergando-a, como dizê-la?

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UNIDADE 2 – O discursos dos fluxos

"É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle" (Gilles Deleuze).

“Compor e recompor, de tanto modo diverso, mas como alcançar o verso que iguale a uma flor? Suportamos a estranha pretensão da artimanha: ai, talvez um anjo, breve, sopre o arranjo de leve” (Rainer Maria Rilk).

Dizer as potências em sua variação infinita é dizer o devir, mantendo o campo da fala como um campo integrado onde se constituem as diferenças puras, seguindo essas diferenças no jorro imprevisível de sua novidade. Como poderemos dizer tais diferenças através de uma linguagem que é o fundamento de uma abstração que organiza o mundo através do esquadrinhamento de um espaço fechado, onde os significantes inequívocos reproduzem as regularidades como forma de controle absoluto e, portanto, como determinação exata e sem hesitação da ordem da causas e dos efeitos. Precisaríamos, de saída, afirmar a errância de um mundo múltiplo e semovente, pelo qual intensidades sempre heterogêneas, sempre diferentes entre si, se movimentam permanentemente. Esse mundo jamais poderia ser encerrado em um recinto de um sistema fechado, uma vez que ele é o lugar da desordem, do não linear, não causal, do imprevisível, do incerto e do informe. Através de um desvio da fala, eis a única solução, e através desse desvio chegar aos vacúolos de solidão e de silêncio, ali onde se algo pudesse ser dito, o seria, então, quando do atingimento do lugar enigmático onde o devir passa; onde alguma coisa passa entre os bordos; estouram acontecimentos e fulguram fenômenos. Mundo da multiplicidade de elementos, sem designação nem significação, mas que se apontam e se determinam reciprocamente a partir de relações diferenciais que pertencem ao campo do virtual. Contrariamente e de forma ordinária, a linguagem ordenadora dos significados fixos pertence ao campo da atualidade. A "atualização, diferenciação ou gênese converte as relações diferenciais em espécies  distintas e

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as singularidades nas partes e figuras extensas relativas a cada espécie. A diferenciação é especificação e organização, é qualificação e composição, é qualitativa e quantitativa. Ela desdobra as virtualidades em seus produtos empíricos, mas sem jamais esgotá-las, mesmo porque elas perduram segundo as linhas divergentes atuais" (Gilles Deleuze).

Neste ponto há de se invocar um termo, que seria responsável pela passagem entre essas duas dimensões, como campo que põe em relação as multiplicidades virtuais como as forças do fora, o que, por sua vez, vai desatar o processo de atualização. Deleuze o chama de "precursor sombrio". Uma intensidade individuante que age como um misterioso portal que garante o mundo em sua discordância, marcha da criação e da novidade. Um elemento de sustentação das ressonâncias entre potências em suas diferenças absolutas, que como partículas em movimento num vazio, seguem em sua infinita marcha sem se tocarem, até que uma inclinação mínima as combinam e as fazem aparecer como um raio que fulgura as formas do mundo.

Essa inclinação de passagem, não figura no espaço da extensão e no tempo da sucessão dos instantes, pois estes já dizem respeito ao mundo apreendido pelas sensações, que por sua vez habita a mesma dimensão atual. Não pode ser abstraída, pois o movimento de abstração esquadrinha a realidade a partir da um recorte que se apoia nos limites da reprodução de uma identidade já individuada que faz com que as formas se encaixem nas linhas através de pontos determinados no espaço da representação. Se partirmos de uma perspectiva que nos coloque frente a frente com o abismo referencial da falta de suportes para apreendermos o mundo que nos chega pela percepção sensível, temos que aprovisionar um sentido provisório que nos permita referir as coisas a partir de uma abertura que nos remeta, continuamente, a transitoriedade das intensidades que surgem diante da percepção sensível e desaparecem imediatamente após, sem que se possa fixar um significado. Como, porem, dizer esse mundo, quando o que fica são apenas intensidades que nos tocam como raios que desaparecem logo apos manifestar seu brilho. A solução, talvez, pareça estar ligada muito mais ao ato de dizer as coisas e o mundo, uma vez que ao utilizar os signos para designar os objetos que se abrem a percepção criamos, imediatamente, uma relação indentitária que nos rouba a riqueza da multiplicidade que está diante de nós nesse encontro. Daí, a necessidade de um desvio na fala, para que ao dizer nos coloquemos no espaço dos imperativos que emanam do mundo como um jorro ininterrupto de novidade; na exata dimensão do precursor sombrio, no inverso da inclinação mínima, onde as potência encontram-se integradas em um campo intensivo no qual o que persiste são apenas os dinamismos que sustentarão tanto a matéria quanta a formas que esta assume. Lugar dos vacúolos de solidão e de silêncio. Como, porém, fazer cessar as vozes carregadas de significados fixos e ainda assim manter o discurso como algo consistente, mas ao mesmo tempo capaz de liberar as intensidades, os brilhos e as cores que invadem a percepção? Assim, o desafio de seguir o brilho evanescente da transitoriedade dos elementos pré-individuais só pode está ligado a capacidade de virtualizarmos o mundo.

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Uma possibilidade de pensarmos a virtualização seria pensá-la como processo de acolhimento da alteridade, onde as fronteiras nítidas dão lugar a uma fractarização das repartições e dos limites das formas e da extensão da matéria. Falamos aqui de um virtual que é a potência de desterritorialização dos limites que engendram espaços ordenados e fixados por seus significados indenitários. Virtualizar, então, seria a capacidade de frequentar um campo não designável, habitado pelas potências da entidade considerada e que se abre como um complexo problemático, onde as soluções ainda não foram dadas. Justamente ali, no nó das tendências ou das forças que entrarão em ressonância, no infinitesimal instante das ressonâncias criadoras do mundo. Na inclinação mínima de um vazio máximo onde o caos desagregador escapole para o tempo e o espaço. Esse desvio sempre se dará de forma aleatória e para alcança-lo há de se abrir mão dos suportes tradicionalmente construídos ao longo da história do pensamento humano já localizados do espaço das formas fixas e ordenadas, responsáveis por garantir a perenidade do mundo habitado pelos entes da linguagem. Porém o desvio, rigorosamente, é o princípio da vida. Existir, antes de ser algo que assinala a estabilidade, a permanência ou a fixação, é um desvio; se há coisas, se há um mundo é porque eles são divergentes em relação a um estado metaestável e integrado. O balé da vida se dá em giros de declinações sobre um eixo móvel, em um movimento que produz todas as coisas, num ato que precipita o movente para fora de um turbilhão aleatoriamente constituído. Contudo, descrever este movimento requisitou, por muito tempo, as leis de uma dinâmica onde os atratores fixos desempenhavam um papel fundamental na descrição de cada passagem de um ponto inercial a outro. Por isso, se quisermos avançar para além desses suportes descritivos temos que apelar para um principio do movimento que não se apoie em um ponto no espaço geometricamente ordenado mas num atrator definitivamente “estranho” ao princípios dinâmicos tradicionais.

Voltemos ao precursor sombrio, esta potência entre o equilíbrio e o desequilíbrio, ou limiar da passagem, estado estranho de mudança de fase, que vibra entre o devir e o ser. De saída podemos relacioná-lo ao conceito de "clinamen" ou a declinação mínima que efetua a passagem entre essas duas fases, agindo como operador mínimo da transformação em geral e da diferença de fases. Deste modo, diríamos que se a existência do mundo é o deslocamento de um estado integrado, pois quando esse desvio é nulo, não há nascimento. Entretanto, se ele é mínimo, a voluta se inicia e o objeto se constrói, foge para frente, desenvolve-se e desdobra-se, onde nascer, existir e morrer são apenas variações dessa dinâmica fundamental da interação das frequências através das ressonâncias. A partir daí nasce o tempo e a extensão da matéria; a vida dos homens, trabalhos, batalhas, rivalidades, honras, trevas, seus movimentos e sua curta história. Esse processo de individuação, passagem para o mundo das fases, só é possível de ser pensado a partir de um elemento metaestável e pré-individual como operador dessa passagem e potência de disparação, onde a diferença existente entre as singularidades dos sistemas integrados age como energia potencial, diferença de potencial que desencadeia as ressonâncias  como um motor em si mesmo como potência do puro, de onde se desfiam traços diagramáticos por onde trafegarão as repartições de potenciais que são singularidades discretas, ainda não individuadas, mas tidas como puras tendências, que serão combinadas e comunicadas como informações de um sistema que passa a se bifurcar nos

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diversos níveis do mundo, da matéria e da vida. Diferente do equilíbrio absoluto, o equilíbrio metaestável se caracteriza por um estado de homeostase onde as energias potenciais assumem um valor máximo mas mesmo assim o sistema heterogêneo está em equilíbrio estável dado o movimento de rotação muito rápido das forças de tensão. Essas forças não agem nem sofrem ação recíproca, mas se movimentam livremente carregadas de toda sua potência até que pela supersaturação desse estado heterogêneo, provocada pelo excesso de velocidade desse movimento, acontece a precipitação das forças para os estados individuados das ressonâncias onde todas as partes do sistema passam a sofrer a ação de todas as outras partes, não havendo mais forças livres, mas apenas as forças relacionadas nas formas da matéria e da vida. O nascimento do mundo seria então o milagre do desvio de um equilíbrio homeostático pré-individual para um sistema onde as diversas formas que as energias em circulação assumem, relacionam-se nos ciclos homoeróticos da matéria e da vida. O caos original, ao invés de se constituir por choques  e encontros aleatórios no espaço vazio e infinito, se apresenta como a coexistência de forças livres em uma velocidade absoluta de circulação onde as potências não se relacionam, se chocam ou se encontram, até que por saturação ocorre o diferencial e a mudança de sentido, diferença infinitesimal que gera o sentido a partir de um feixe de paralelas em um campo uniforme, dando origem aos vetores no campo espacial da extensão e aos espaços das fases, das partes e das especificações.

Como dizer um conteúdo, quer ele seja o resultado de uma repartição em fases do ser, ou resguardando a dimensão pré-individual que devêm de sua diferença absoluta e defasada, um vez que qualquer descrição carece do suporte da linguagem, que procede através da representação dos conteúdos por elementos de fixação apoiados no princípio de identidade entre as palavras e os significados definidos para as coisas ditas? Essa clausura da representação só poderia ser rompida caso se fosse capaz de apontar para uma língua que em si não fosse o resultado de uma operação contaminada pelos elementos responsáveis por fixar os limites do “fora” e do “dentro”, reivindicando uma defasagem em relação as resoluções dos processos de atualização de uma linguagem ordenadora dos sentidos do ser. Uma língua capaz de dizer os sentidos através de murmúrios de glossolalia. Um gemido mesmo pode perder a capacidade de dizer as intensidades, quando se relaciona como o significado que o traduz. Porém, se esse gemido, ou som qualquer produzido como significante se isenta de referir a qualquer dos significados catalogados pelos receptores da interlocução, ficará ele a mercê das intensidades que o provocaram. Do mesmo modo que o canto dos pássaros é capaz de produzir reações específicas nas espécies que o reproduz, avisando o perigo ou servindo a intenção orgânica do acasalamento, as palavras de ordem de uma linguagem codificada pela lógica, servem a intensão original de dissipar a equivocidade de uma língua qualquer, produzindo significantes a serviço da espécie, que vão constituindo um discurso ao longo da sua história.

A produção de discursos, muitas vezes, pode colocar as proposições a serviço da simplificação das estruturas que amalgamaram os sedimentos produzidos ao longo da história, carecendo de uma cartografia que localize esses sedimentos no processo de sua formação geológica. Todo mapa é a representação de um espaço determinado, onde os conteúdos se destacam a partir da sua localização relativa

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à ação que se propõe mapeá-los. Pode-se mapear superfícies planas, relevos, depressões; quer estas se ocupem das formas inanimadas dos corpos ou mesmos dos enunciados. Manuel De Landa se propõe, em “A Thousand Years of Nonlinear History”, a realizar uma cartografia que vê cruzar as formas de conteúdos (corpos, suas ações e paixões) e as formas de expressões (enunciados, sentenças e códigos da língua) nos fluxos do material que se distribui através de várias gerações, em um mundo povoado por estruturas – complexas mistura de construções geológicas, biológicas, sociais e linguísticas. A partir dessa proposição seria impossível desenhar um mapa qualquer, a não ser que se consiga interagir, numa variedade linhas e desvios sob os sedimentos que nos cercam e nos quais estamos misturados, a partir de disjunções que determine a passagem de cada sedimento por todos os elementos possíveis, abrindo cada coisa ao ilimitado dos predicados pelos quais se passa. Essa também é a proposta inicial de Foucault, em “As Palavras e as Coisas”, quando da aproximação dos enunciados amalgamados e cristalizados em qualquer discurso organizador das figuras do saber que, na superfície do pensamento, “se entrecruzam, se imbricam, se reforçam ou se limitam”. Ele as vai encontrar (as figuras) nas vizinhanças, nos ecos, nos encadeamentos e nas aproximações, no processo do contato entre as proximidades, na redução das distâncias, na distribuição das semelhanças e das aproximações. Estas estruturas figuram cercadas por um enorme ruído de fundo, invisível e inaudível a percepção do cartógrafo. Ele (o ruído) consiste nas imperceptíveis somas em devir presentes no fluxo dos eventos dispostos no tempo e no espaço. Traçar um mapa que localize essas somas requer que silenciemos as vozes dos discursos cristalizados pelas sentenças produzidas por um pensamento habituado a reproduzir palavras de ordem que reduzem as complexas misturas amalgamadas pela história, à proposições simplificadoras desse processo, abafando o ruído de fundo produzido pelo movimento contínuo da acomodação de sua crosta e formação de seu relevo. Não há de se conquistar esse silêncio, a não ser através de um ato radical.

Os atos se diferenciam a partir daquilo que visam em sua constituição. O ato pode ser tido como radical, assumindo o sentido mais simples da origem da palavra (radical/raiz/fundamento), a medida que é produzido pela necessidade que o força a problematizar o fluxo do devir intransitivo do caos de todas as possibilidades que coexistem como multiplicidades singulares. Forças pré-individuais que sustentam todas as formas. Podemos dizer, de algum modo, que a radicalidade do ato consiste em suscitar problemas, criando os termos nos quais eles se colocarão. A radicalidade do ato, então, compreende seu potencial virtual. Nesse sentido, poderíamos concluir que a própria vida se determina pelo ato radical de uma pressão de um movimento forçado dos dinamismos que liberam o impulso vital. Lançado no mundo por um ato radical os entes seguem num esforço que se fundamenta na constituição de problemas que expandirão os limites de cada plano onde suas atividades se dão. Contudo essa radicalidade ameaça dissolver a vida no aturdimento das intensidades que sustentam o movimento da existência. Assim, o ato radical dá lugar a um tipo de ato que assume o caráter de busca por um limite que resguarde o indivíduo através da identidade. O próprio processo de civilização como construção de um acordo que viabilize a coexistência de diversas potências relacionadas nas formações

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sociais, pode ser tomado como o principal exemplo de um ato esvaziado de sua radicalidade, quando projeta um limite a partir do qual afirmar-se sobre as forças que ele relaciona. Sem a radicalidade, tais atos operam através da rarefação do espaço onde circulam as potências relacionadas na forma que elas constituem. Os atos nesse sentido revelam os traços de uma função minorativa dos movimentos das forças enquanto potências que agem e resistem reciprocamente em uma relação. Nele as forças se limitam em sua potência de agir e resistir e assumem a forma específica que as restringem na exata dimensão do que podem ou não podem ser, daquela forma ou de outra. O ato, então, assume aqui o caráter do poder limitador das forças relacionadas nas formas, transformando-se em “atos de poder”. Quando se diz que algo existe em ato e não mais em potência, aponta-se para o limite específico do poder que impede que a potência se efetue em sua ilimitada completude. Desse modo, tal ato está ligado ao poder. Poder que não se confunde com potência, pois é justamente o ato que limita as potências e as impedem de se efetivar ilimitadamente. O poder se constitui, então, como ato limitador das potências relacionadas. E o que dizer do ato como dispositivos de poder das forças relacionadas nas formas? Um dispositivo de poder se faz pela minoração dos elementos constitutivos das ressonâncias como do ato limitador das forças relacionadas nas formas, visando fundamentar uma dimensão qualquer como campo específico que afirme uma forma determinada sobre as demais. Essa especificação dos dispositivos como elemento que assenta os atos a partir do estreitamento do espaço da ação e resistência das forças, confere ao poder uma função minorativa. Todo ato esta, portanto relacionado ao poder, quer ele se constitua como atualização das forças livres ou aniquilamento das formas individuadas nas ressonâncias.

Nesse instante encontramos as linhas de fuga traçadas pelo pensamento spinozista que descreve os “encontros” e imediatamente as integramos as linhas de fuga traças pelo pensamento nietzschiano que descreve a “vontade de potência”. Segundo Spinoza os encontros entre os corpos irão determinar o sentido que estes são afetados, a partir do modo como esses encontro os afetam e modificam de tal maneira que que destrói ou ameaça destruir a relação de movimento e repouso que o caracteriza. Se a partir desse encontro a relação modifica as forças relacionadas a partir de uma combinação que aumenta a potência a de agir das forças, ele poderia ser tido como um “bom encontro”. Se contudo, o encontro produz um relação que compromete, diminuindo ou destruindo a potência de agir, dirá que ocorreu um “mau encontro”. Ultrapassando a distinção entre o modo como se dão esses encontros, presente no conceito spinozista de “afecção” e a partir conceito de “vontade de potência” forjado por Nietzsche, como o devir, ou aquilo que sustenta o movimento de “forças irredutíveis” em luta, chegaremos numa distinção que visa resguardar o devir enquanto elemento afirmativo que subjaz não só aos encontros mas às forças propriamente ditas: a distinção entre vontade e força. Ela nos permitirá seguir a linha de fuga que nos levará aos termos do ato como dispositivo de poder como função minorativa e a radicalidade do ato como vontade de potência que virtualiza e libera os afetos, as forças e as intensidades que sustentam as formas.

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Se os afetos dizem respeito ao modo como as forças se relacionam, a vontade se diz como o “querer interno” da força ou o apetite insaciável de manifestar a potência; aquilo que faz com que as forças insistam, subsistam e resistam, ou seja, sua intensidade. Os encontros entre as forças, então, estabelecem relações onde a intensidade das forças assume o grau de potência que determina sua ação a despeito do que a relação faz de cada força. Se assumirmos a distinção spinozista entre os modos que definem a multiplicação ou a redução da potência do agir, teríamos que assumir um sentido de negatividade do querer interno de cada força, como dispositivo redutor da capacidade afirmativa das potências ou agente reativo das forças, tendo que assumir uma distinção que repousa não apenas na forma, que são as forças já em relação, mas na própria força, levando-nos a distinção das próprias forças como ativas e reativas. Se contudo mantivermos o conceito do devir como a intensidade ou querer interno da força de manifestar a sua potência, veremos que as relações entre as forças apenas definem o quanto delas se afirma e a qualidade deste quanto como ação ou resistência. Em ambos os movimentos (ação ou resistência) o que determina a qualidade do movimento e o resultado final da relação onde o “quantum” maior é tido como ação e o menor como resistência, na medida que esta diferença esta ligada ao princípio de ressonância, exprimindo condições que devem ser satisfeitas pelas frequências, são as próprias forças em movimento. Apelando para a distinção entre os “sistemas dinâmicos integráveis” e os “sistemas dinâmicos não-integráveis”, a partir do trabalho do Henri Poincaré, chegamos a um sentido que caracteriza todo sistema dinâmico, a partir de uma energia cinética que depende da velocidade dos corpos que o compõem e de sua interação, e por uma energia potencial, que é a energia acumulada que está sempre pronta a realizar trabalho. Todo sistema dinâmico integrável pode ser representado como se fosse constituído de corpos desprovidos de interação e portanto no máximo de sua energia potencial, uma vez que as partículas se encontram livres e sem iteração num estado de isomorfismo e numa velocidade absoluta. Um sistema não-integrável, entretanto, se caracterizaria pela existência de ressonâncias entre os graus de liberdade do sistema, onde a noção de ressonância caracteriza uma relação entre frequências, sua posição relativa e determinam sua energia cinética. A ressonância, então, pode ser descrita em termos numéricos como o acoplamento entre duas frequências, onde a frequência de uma das forças é igual a um múltiplo inteiro da outra. Assim, ação e resistência podem ser vistas como a qualidade das forças relacionadas nas formas, determinadas pelo valor numérico de cada frequência, que é o número de vezes que determinada força oscila, como ação ou resistência.

Portanto não há de se falar em qualidades ativas ou reativas, mas sim numa diferença numérica entre as forças em relação, que afirmam o apetite insaciável de manifestar sua potência, quer no sentido da ação ou da resistência, que só pode ser obliterado a partir do estreitamento do espaço da ação e resistência das forças. A partir dessa proposição poderíamos dizer que o caráter reativo não se encontra nas forças mas sim numa uma função minorativa que reduz os espaços de sua afirmação. Chamamos, então essa função de poder. Assim, todo poder possui dispositivos de uma função minorativa e procede através da diminuição dos espaços de circulação das forças, destruindo ou ameaçando destruir a relação de movimento e repouso que as caracterizam, quer em seu estado livre

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ou na relações das ressonâncias. Segundo Spinoza, diz-se “livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que por si só é determinada a agir”, enquanto diz-se “necessária ou “coagida, aquela coisa que é determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e determinada” (Livro I da Ética). Vimos que os sistemas integrados caracterizam-se pela presença de forças livres sem interação ou ressonância, onde cada força age pelo apetite insaciável de manifestar sua potência. Já num sistema não integrado, as ressonâncias determinam as formas e suas qualidades a partir do quantum e ação de cada relação de força relacionada. Haveria então de se entender o efeito de rareação do espaço de circulação que aniquila a capacidade das forças efetuarem sua potência de ação ou coação. A aniquilação de uma potência não poderia se dar pela relação entre as forças, pois nesta as potências relacionadas determinam as qualidades das formas, que são, em última instância, o resultado do quantum de ação ou resistência em sua efetivação que sempre preserva o seu ser de agir ou resistir, exprimindo de uma maneira definida e determinada a potência por meio da qual ela existe. Do mesmo modo, a relação entre as formas não são capazes de aniquilar as forças relacionadas, uma vez que esse encontro produz uma nova disposição de forças relacionadas e portanto uma nova forma. De que maneira, então, uma potência é aniquilada no seu apetite insaciável de se manifestar?

Tal aniquilação não poderá advir da autoafirmação de cada força a partir da efetuação de sua potência, ou melhor, da sua vontade de potência, nem da relação entre as forças e de seu encontro, como supunha Spinoza, uma vez que todas as forças se afirmam, quer no modo de sua ação ou resistência, pois ambas se movem através da seu sentido de ser, tanto pelo potencial da força que age, quanto da que resiste. Se, contudo, conferirmos ao rareamento do espaço a função minorativa do poder, entenderemos como a multiplicação indeterminada da autoafirmação do ser funciona tanto no salto dos estados integrados, forçando a inclinação infinitesimal a partir da supersaturação das forças livres, quanto na aniquilação através dos dispositivos de poder como esgotamento do espaço por onde as forças relacionadas se movem. Através do insaciável apetite por manifestar sua potência, as forças dobram os espaços integrados bem como esgotam o limite de sua circulação como resultado do seu movimento de autoafirmação. Quer seja na dobra que cria as formas de sua relação no tempo e no espaço ou no limite que aniquila as forças circulantes, os atos consistem em funções exponenciais das potências, que vem se tocar num movimento de vida e de morte; nascimento e aniquilação. Assim, não é a partir da insaciável vontade de manifestar sua potência que as forças se restringem mutuamente, mas pela sua multiplicação ilimitada, uma vez que os espaços da sua atualização não são suficiente para comporta-la nesse movimento. Da mesma maneira que os sistemas integrados não conseguem reter a insaciável vontade das forças livres que dobram o espaço de sua circulação, saltando pelo desvio mínimo que as relacionam, e estabelecendo ressonâncias, os espaços da sua atualização se esgotam e as restringe até aniquilá-las no limite da autoafirmação. As forças seriam, desse forma, conteúdos puramente afirmativos, quer no seu estado integrado ou no campo das ressonâncias onde se estabelecem suas relações. Ação, resistência e aniquilação, portanto, são o resultado de um movimento ilimitado das forças. Enquanto as ressonâncias relacionariam o quantum das potências, determinando sua frequência, ou posição no espaço de sua circulação,

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e a sua carga, a aniquilação das forças se dá no esgotamento como limite último de sua afirmação.

Segundo as ideias da mecânica clássica, não existe sistema que esteja subtraído a toda e qualquer ação externa; todas as partes do universo sofrem, com maior ou menor intensidade, a ação de todas as outras partes. Assim, não existiria força livre ou fora do alcance das ressonâncias, uma vez que os sistemas dinâmicos se constituiriam como um conjunto de forças relacionadas. Contudo, se imaginamos um fluxo em alta velocidade onde o escoamento do devir é composto por uma pluralidade de foças irredutíveis e livres, não poderíamos localiza-los no espaço das ressonâncias onde já se processou a individuação da matéria e da forma, mas sim num campo intensivo no qual são produzidas as ressonâncias, fora do qual elas não se produziriam. Quando pensamos o espaço e o tempo, nas determinações clássica da mecânica sempre esbarramos na presença de intensidades já desenvolvidas em extensos e já recobertas de qualidades. Assim haveria de se perguntar pelo lugar das intensidades puras, inextenso onde fulguram as potências puras, não quantificadas como frequências relacionadas mas como meio de individuação sobre o qual operam as especificações (qualidades) e as partições (quantidades) do espaço extenso e do tempo linear onde as intensidades se comunicam e as séries se acoplam.

A essa altura já podemos apelar para o processo de virtualização que teve lugar na sobremodernidade, o qual é a chave para a compreensão que nos lança em um discurso capaz de se fundar na potência do precursor sombrio. No seu rastro chegamos a noção da diferença pura dos dinamismos como agitações de espaço, buracos de tempo, puras sínteses de velocidades, de direções e ritmos. Se é através da supersaturação provocada pela velocidade das forças livres que é gerado o desvio mínimo que lança as forças no espaço das ressonâncias, a multiplicação das ressonâncias através de um fluxo em alta velocidade do tráfego nas redes informacionais da sobremodernidade num campo inextenso e em um tempo infinitesimal, a partir do aumento da velocidade das trocas e a redução dos espaços e do tempo, criam-se diferenças de intensidade através da multiplicação da potência de uma força cuja a ação instantânea a libera para uma nova ação, transformando-a em força não relacionada, livre e, portanto, excedente. Este excedente é redistribuído sem que entre em uma nova relação de forças, mas assumindo a função de potência criadora que reconstitui os recursos, as reservas energéticas e os dispositivos geradores de atos. Desta forma as forças liberam-se das relações com outras forças e votam-se para si mesma, atuando sobre si mesma, afetando-se a si mesma, e afirmando sua potência de não serem mais limitadas pelo poder das ressonâncias, abrindo-se ao movimento de ilimitada variação e criatividade variável de um excedente virtual resultante  do aumento da velocidade das trocas entre os conteúdos. O processo de virtualização sobremoderno se passa através da capacidade de fazer trafegar, numa velocidade absoluta, em fluxos turbilhonares das chegadas sem partidas, onde o movimento se dá na dimensão do “tempo real” e instantâneo e em espaços inextensos. O resultado desse tráfego é a liberação de forças não relacionadas que escapam da ressonância originária de suas ações recíprocas e

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se apresentam com forças livres, como uma diferença potencial excedente, especulada, que escapa da relação do exato múltiplo que as combinam. Liberadas das cadeias das ressonâncias esse excedente virtual retorna a dimensão das diferenças puras não combinadas e encerradas em si mesmas na sua metaestabilidade e como temporalidades múltiplas no espaço de um finito ilimitado.

Quando pensamos a sobremodernidade como a era da virtualização das formas da matéria e da vida, esbarramos no mote que que acompanha o existir dos seres da linguagem, atônitos pela transitoriedade do movimento do mundo que invade a percepção, cuja sua vida é o principal exemplo. O esforço sobremoderno embora se assemelhe as demais tentativas de restituir a ordem e o equilíbrio a uma realidade marcada pelo fluxo das constantes transformações do devir, vem diferir delas na medida em que é o excesso de multiplicidade e de devir que levará esta tarefa adiante. Na perspectiva dessa multiplicidade, os elementos de criação e equilíbrio da ordem sobremoderna trabalham através do escoamento do devir  em uma distribuição fragmentária. A partir da criação de diversos mundos possíveis que se intercomunicam através de conexões cada vez mais velozes e significações cada vez mais voláteis, o princípio da mobilidade desse fluxo se distribui através de ressonâncias múltiplas, consistindo na possibilidade de multiplicação da diferença de maneira ilimitada., onde as forças, então, escapariam do controle da definição das formas que visa adequar os objetos da percepção a um conjunto limitado de significados. Elas estarão livres para exercerem sua potência múltipla, num ritornelo, onde a linguagem deverá transformar-se em uma glossolalia, onde o falante se torna incapaz de repetir os enunciados já pronunciados no seu gaguejar de palavras frouxas. O jogo entre o significante e o significado passa a encarar a lacuna resignante como um silêncio onde sobram apenas murmúrios, deixando a equivocidade levar o falante alhures, sem que se precise identificar as intensidades que chegam ao sujeito da percepção ou adequá-las a um significado determinado. (Des)cobrir o múltiplo em cada abertura, novas possibilidades em cada relação de forças, que se desmancha antes que se consiga defini-las, escorrendo entre os códigos dos enunciados.

Os códigos rizomáticos da sobremodernidade são justamente esse emaranhado circulante onde não se pode mais definir partidas ou chegadas, mas onde cada desfiar de sua trama traz consigo um nó de tendências. "Quais seriam as forças em jogo, com as quais as forças do homem entraria em relação? Não seria mais a elevação ao infinito, nem a finitude, mas um finito-ilimitado, se dermos esse nome a toda situação de força em que o número finito de componentes produz uma diversidade ilimitada de combinações" (Gilles Deleuze). Esse é o discurso da sobremodernidade. Os vacúolos de não-comunicação sobremodernos põe o falante diante dos signos vazios, ou melhor, dos imperativos que emanam das intensidades, como um complexo de tendências, para além daquilo que eles designam (os signos) em cada objeto que aparece como fenômeno. Na sensação desses encontros e no nó de tendências que está além das designações dos significados e onde a impossibilidade de aprisionar aquilo que emana das intensidades, inviabilizando a identidade entre o observador e o objeto e

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liberando, assim, potências impossíveis de serem descritas pelos estoques unificadores da memória. Diria, que os vacúolos de não-comunicação liberta o falante do signo e o leva ao esquecimento. Nesta galeria neutra e mista, o passante ou passador, subitamente tornado neutro, misturará em si as naturezas, as línguas, os gestos, até neles se dissolver e perder. Se a sua vida o fez errar em muitos braços de mar, o seu corpo e o seu espírito terão aprendido e misturado tanta diversidade ao ponto de alcançar, em si e sobre si, a brancura imaculada do próprio lugar de onde se possa dizer. Discutiu-se muito a aparente apatia da geração pós-ideologias e hoje se começa a ter noção que a aparente apatia, ou neutralidade é justamente a maior potência da atual geração. A falta de identidade e a assunção de uma multiplicidade transitiva, a todo instante, é o movimento que tem conduzido essa geração para um novo modo de lidar com o devir, justamente pelo excesso de devir. A entrada dos dados que alimentam as máquinas de processamento, não permite mais a previsão do resultado, pois a saída pode se comportar imprevisivelmente, oscilando uma série de vezes, uma vez que não encontram-se totalmente ligados numa relação mutua fixa, onde cada ação possa determinar uma reação linear específica.

Se através do precursor sombrio, da inclinação mínima ou da supersaturação do movimento, as potências declinam minimamente até tocarem-se em um espaço e tempo infinitesimal e produzirem as formas do mundo, através dos movimentos acelerados dos conteúdos circulantes decompõe-se as formas em potências não relacionadas lançando-as de volta ao estado metaestável, onde a unidade dos conteúdos conectados em rede, assume o caráter de pura multiplicidade e indeterminação de forças não relacionadas, isoladas uma das outras pela fragmentação rizomática do espaço da rede. Neste não-lugar, o multipertencimento dos conteúdos alterados instantaneamente pela ação contínua dos enunciados das formas de expressão, estabelece um jogo, cujo dinamismo conta com a ação das potências infinitamente multiplicadas. Essas frequências se distribuem a partir de um espaçamento, no qual a velocidade das partículas infinitesimais que constituem os conteúdos e suas relações constituem um espaço unidimensional metaestável. A fala perde, então, o suporte em pontos fixos do espaço da representação e ao invés de remeter os sujeitos a objetos em um campo delimitado de significados fixos, oscila como frequência livre de uma absoluta diferença, isolada na teia da rede, conectada a todos os conteúdos mas reivindicando sua singularidade, uma vez que o funcionamento de uma rede não dispõe os conteúdos de uma forma linear sistêmica e, portanto, atravessa a distinção usual entre palavras e coisas,  lançando os conteúdos e as expressões num movimento fractal cada vez mais rápido no ciberespaço. Assim a diferença surge pelo excesso, pelo sobredevir de conteúdos circulantes, liberando um potencial excedente que se desloca continuamente e criando, exponencialmente, ilimitadas possibilidades, diluindo as formas do mundo em rastros de passagem dos conteúdos, onde sobram apenas o seu eco; intensidade que vibra e que se afirma como tonalidade de um silêncio eterno, ou ruído de fundo ecoando nos vacúolos de solidão. O contágio participativo dos novos conteúdos da língua desata os nós das instituições sedimentares da linguagem, abrindo linha de fugas por onde os conteúdos se dissipam, assumindo um grau extremo de mobilidade e através do qual os discursos se afirmam pela capacidade de exercitar o dizer de uma nova era. Volátil, a-centrada e a-significante. Jorro ininterrupto de novidade

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de um tempo real que sincroniza as expressões de multiplicidade, sem os suportes tradicionais de uma linguagem dominante. Feira livre onde o passante se serve a vontade. O passar em si, libera potências circulantes. Como uma repetição que não mas carece de sínteses de identidade, pela quais se tracem linhas de adequação entre sujeitos, objetos e significados. O passar infinitivo viabiliza brechas por onde brotam as diferenças. Daí a necessidade de achar uma linguagem para dizer essa passagem, sem aprisionar as intensidades em esquemas significantes que caibam nos catálogos de significados dominantes. Os ecos de um dizer desterritorializado e nômade, revela um jogo, não mais de palavras e coisas, mas de intensidades. Multidões de intensidades simultâneas em velocidades discordantes, se cruzam nos nós de tendências, antes que as resoluções sejam possíveis. As tendências então, já não podem ser seguidas mas empurram as intensidades, que só podem ser navegadas, nesse ziguezague que as faz se dissipar a cada salto, defasagem e desatualização, no anonimato de vacúolos de solidão. Frequências que insistem em dissolver as ressonâncias e as formas que as relacionam. Movimentos que não se permitem identificar como trajetória, pois já não existem partidas ou chegadas, mas apenas velozes passagens que vão deixando rastros, como o brilho que fica após o raio. Fulgurações cintilantes de partículas que saltam de um orbital a outro, nas quais já na adianta se servir de uma mapa para orienta-las, pois surgem e desaparecem, na descontinuidade de momentos singulares, agindo na instantaneidade de sua aparição e dissolução.

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UNIDADE 3 – O poder a ordem e o sentido do ser

O sentido pode ser entendido, etimologicamente, como o esforço para tornar-nos aptos a não nos desviarmos de uma alvo desejável. Embora significado etimológico da palavra sentido pareça apontar para um conjunto de orientações para manter uma direção, passarei a usar o substantivo, a partir daqui, numa dimensão ontológica.

Segundo Spinoza, “diz-se livre uma coisa que por si só existe pela necessidade de sua natureza e que por si só é determinada a agir”, por outro diz-se coagida aquela coisa que é determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e determinada (Spinoza - Ética). Considerando que esta “coisa” comporta todo ente em seu processo de atualização no mundo, poderíamos afirmar que o sentido do ser conduz  o ente da ação na afirmação de sua natureza, a despeito das ameaças que, vez por outra, insistem em colocar em cheque o exercício de sua liberdade. As ameaças multiplicam-se por todos os lados e apresentam-se como risco de limitar a ação das coisas. Considerando apenas a necessidade em si do ser ele estaria sempre apto a assumir o sentido de não se desviar do objeto último de sua conduta, simplesmente pela afirmação plena de suas potências. Logo de saída, devemos nos libertar a errônea interpretação de sentido como uma imposição externa de um agente ou conjunto de agentes que a requer a ação como algo desejável. Na verdade, o sentido pode ser entendido como um esforço de auto realização, na medida em que  garante o sucesso da ação de um ente qualquer. Quando partimos em busca da definição de um espaço onde o ente da ação é lançado e o ritmo impresso em seu processo de atualização, perceberemos como esse ritmo define os traços distintivos de cada um dos elementos constitutivos de uma ação qualquer que se estrutura as ações, a saber: ordem, sentido e poder.

Sem querer aprofundar, por enquanto, a análise geneológica desses espaços e dos processos que os levaram aos atuais estágios de suas configurações, fiquemos como as marcas que os caracterizam sob o prisma da nossa abordagem, onde a ordem surgiria então: como o conjunto de limites que se fixam entre e ao redor das conexões caóticas de um fluxo que se expande numa variação contínua, enquanto o sentido: seria a força de atualização do fluxo das ações, que por si só é determinada a agir. Vejamos, então, como funciona o conceito de ordem, como o conjunto de práticas que define um estatuto para o

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estado das coisas e para os conteúdos relacionando nos acontecimentos de forma a organizá-los em uma configuração específica.

Uma ordem pode significar um estado de mistura de corpos ou conjunto de relações – sejam elas materiais ou subjetivas, que unem, em determinado momento, as matérias heterogêneas, o meio onde elas se relacionam e o código de enunciados historicamente determinados. Apelando para os sentidos do ser no mundo, situaremos a abordagem por entre os códigos de conduta dos indivíduos humanos nas diversas etapas históricas, através da ação recíproca entre poder, sentido e ordem, nos movimentos de "territorialização e desterritorialização" das estruturas biológicas, geológicas e sociais, a fim de encontrar os princípios ontológicos de diferenciação constitutivos do processo de emergência dos entes, bem como da constituição e atualização da vida e do mundo. Lembrando que para isso precisamos trabalhar com a categoria de diferenciação entre o conceito de virtual e atual, onde por virtualidade entendemos o conjunto de todas as relações diferenciais e distribuição de singularidades que coexistem simultaneamente na dimensão pré-individual e metaestável e por atualidade o processo de individuação que se dá na dimensão das sínteses que constituem a dimensão da realidade onde as forças da natureza interna e externa dos sujeito se relacionam no campo espaço-temporal, produzindo as relações necessárias entre os objetos através de "máquinas produtoras de significados" e por intermédio da ação recíproca das formas de conteúdo e das formas de expressão.

Para entendermos a dimensão ontológica da diferença entre os conceitos de poder, sentido e ordem, não basta que os relacionemos aos processos de atualização na ordem social, onde os agenciamentos individuais e coletivos se processam na dimensão do embate das forças que irão constituir as formas do mundo dos homens e onde as conexões manifestam a soma de diferenças de potencial. Teremos, contudo, que busca-la (a dimensão ontológica da diferença) nos processos virtuais dos fluxos imateriais, pré-individuais e metaestáveis do antes-de-ser, fora da dimensão do espaço extenso e do tempo como sucessão e para além da estabilização das contínuas variações do conjunto de possibilidades que coexistem diferencialmente até que os processos se atualizem através dos acontecimentos que fixarão os princípios em cada uma de suas dimensões individuadas. Este conjunto de possibilidades coexistentes referem-se a capacidade de transformações criativas como um movimento que assume a condição da renovação contínua de mudanças qualitativas, onde cada elemento se transforma sem que mude sua natureza, a partir de um movimento que independe de qualquer outro fator que determine o seu agir, a não ser do seu elemento natural constitutivo, que podemos chamar de sentido do  ser. Tal dimensão  compreenderia todas as singularidades, mônadas ou mundos incompossíveis que existem por si e para si, sustentando intensivas multiplicidades no ilimitado movimento que se refere a um latente e não atualizado estado de coisas.  Já na atualização, processa-se a diferenciação que acaba lançando as multiplicidades no domínio da individuação,  através da diferença de velocidade dos fluxos que marcam o ponto de passagem onde a inflexão de cada combinação potencial abre-se como energia atualizada que se constitui em  objetos da experiência , quer seja uma visão, uma lembrança, uma

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palavra,  uma proposição geométrica, ou tudo aquilo, dentro ou fora do sujeito que é por ela (atualização) limitada, a partir da disposição das relações de forças ou dos dispositivos de poder. Poder, como impossibilidade da afirmação das potências, quer como forças ativas ou reativas, no jogo onde cada força limita a outra que a ela se relaciona; dispositivos que impedem as forças de se constituírem ilimitadamente, ativa ou reativamente. Enquanto a sentido do ser é o elemento natural constitutivo do agir enquanto potência em sua dimensão virtual, o poder é o limite constitutivo que evita que a potência se mova enquanto intensiva multiplicidade e a fixa através da identidade de um estado atual.

A questão aqui é: para encontrarmos a dimensão ontológica a que nos propomos precisamos colocar em suspenso, mesmo que de forma temporária, algumas das noções que, naturalmente tomamos como axiomas ou pontos de partida para a construção do pensamento lógico, tarefa tão cara ao espírito, como por exemplo a noção de espaço extenso, lugar onde se mensura a posição relativa de corpos rígidos, extensos ou materiais, assumindo a premissa de que matéria significaria qualquer coisa que possua massa, sendo considerado, portanto um corpo rígido que ocupa lugar nesse espaço mensurável geometricamente, ao qual chamamos extensão. Desta forma, os eventos materiais seriam toda a descrição do lugar (ou posição) onde ocorreu um evento ou onde se encontra um objeto a partir da indicação do ponto de um corpo rígido com o qual aquele evento coincide. Adicionalmente, pode-se substituir os lugares pontuados sob os corpos rígidos através do emprego de sistemas de coordenadas, através de símbolos que indicam as medidas de posição. Todo esse sistema de abstração tem como o objetivo viabilizar a descrição dos fenômenos materiais aos quais a percepção tem acesso, através das sínteses do processo de subjetivação.

Porém, quando passamos às singularidades pré-individuais e inextensas,  na dimensão da virtualidade, precisamos aproximar-nos delas a partir do conceito de intensidades, referindo-as a partir de sua indiferenciação, no ilimitado conjunto de forças coexistentes, sem que se consiga distinguir os conteúdos circulantes a partir superposição de cada estado de coisas, mas apenas através sua discreta diferença, que nos permite sair do campo da completa indeterminação. Como pensar tal estado de coisas, uma vez que o pensamento encontra-se no reino da atualização, através da síntese do juízo? Um caminho a seguir, surge com a apropriação deleuzeana do conceito de intuição de Bergson, como um método que nos permite alcançar as diferenças discretas da duração das intensidades no campo do virtual. A intuição surge, então, como uma faculdade que se contraporia a abstração, uma vez que esta já estaria por demais comprometida como os elementos vinculados aos processos atuais e numa tentativa de apelar para um instrumento que de conta do reino das intensidades antes dele saltar para a dimensão dos fenômenos atualizados no tempo e no espaço. Teremos que chegar as forças que sustentam as formas, antes que essas sejam capturadas pela sensação, numa zona de indiscernibilidade onde as forças escapam o tempo todo e já não é possível fixa-las através dos pontos de ressonância que dão suporte à abstração. Sem a mediação das estruturas cognitivas do pensamento que iniciam-se a partir da sensação, as singularidades pré-individuais comporiam o campo da duração pura como condição de toda a experiência atual apresentando-se como uma multiplicidade virtual e contínua,

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irredutível ao processo cognitivo que captura as formas através da abstração. A duração não se confunde com o tempo da sucessão, onde os pontos estabelecem as métricas que delimitam presente, passado e futuro. Ao contrário, a duração é o tempo como um sistema integrado e indivisível onde as singularidades coexistem como rimos heterogêneos que não podem ser unificados sob as formas da abstração, uma vez que a ação das forças se dá como um jorro ininterrupto de novidade de uma passagem sem marcas no tempo e no espaço. Nesse fluxo livre das medidas fabricadas pela abstração, coexistem intensidades puras não individuadas que não podem ser alcançadas pela percepção, pois não existem os contornos associativos destacando as intensidades a partir da sua adequação a um arquivo de memória onde estão catalogados os significados para cada impressão sensível. No campo do virtual os materiais não se associam com as formas mas são uma composição de forças que duram na sua intensidade, sendo assim puras matérias-forças no lugar de serem matérias-formas. Assim cada duração só pode ser pensada através da invocação da intuição como salto pelo qual nos instalamos no virtual como uma “passado em geral”, que não é o passado particular de tal ou qual presente, “mas um passado eterno e desde sempre, condição para a passagem de todo presente particular”. 1 A intuição nesse sentido corresponderia a uma memória integral que “responde a invocação de um estado presente por meio de dois movimentos simultâneos: um de translação, pelo qual ela se põe inteira diante da experiência e, assim, se contrai mais ou menos, sem dividir-se, em vista da ação; outro, de rotação sobre si mesma, pelo qual ela se orienta em direção à situação do momento para apresentar-lhe a face mais útil”. 2

Se apelarmos para os princípios que conduziram as revoluções processadas no final nos últimos dois séculos, em saberes que vão da arte a ciência, verificamos que elas (as revoluções) inauguraram uma era onde a fuga de um ponto, espaço qualquer determinado pela extensão; a fuga de uma nota, local da vibração determinada pelo tom; a fuga de uma partícula subatômica, vibração de um quantum de energia, leva os conteúdos intensivos alhures e augures. Onde não subsiste a diferenciação, já que não se pode falar em termos de qualquer atualização espaço temporal. Sobram apenas as diferenças intensivas que nos remetem ao caldeirão de uma duração (in)extensa, (a)temporal e (a)significante, sem momento ou lugar, na pura duração do finito ilimitado. Daí ser a intuição o instrumento de acesso a esta dimensão de forças (não)ressonantes, potência virtual não mais localizável ou mensurável nos termos e categorias da clássicas noções de espaço e de tempo. É através da intuição que o nosso entendimento nos lança no campo intensivo das estruturas dissipativas, onde as oscilações de frações de segundos virtualiza o campo de ação dos conteúdos, não mais localizável do espaço extenso e não mais mensurável no tempo da sucessão. Essa realidade, pode ser tida, na perspectiva bergsoniana, , como “duração pura”. Dimensão que não se deixa apreender pelas fórmulas numéricas, fragmentárias ou quantitativas da abstração. O acesso a esta realidade não se dá a não ser pela intuição, como o ingresso em uma dimensão do silêncio e dos vacúolos de solidão, como uma música que está além dos limites dos instrumentos que capturam os sons em suas intensidades múltiplas e silenciosas, inaudíveis e

1 Gilles Deleuze – Bergsionismo.2 Henri Bergson – Matéria e memória

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imperceptíveis, onde a solução se dá pela superação desses limites, por uma ato radical através do qual as forças sonoras são liberadas do material empregado pelo músico para torna-las audíveis e perceptíveis, na execução do instrumento de forma a superar os limites da matéria, da pauta e do tom.

A desmaterialização dos fluxos circulantes em uma rede global coloca os conteúdos numa constante fuga. A instantaneidade do processamento das trocas lança a dimensão do atual num turbilhão de múltiplas possibilidades, onde cada singularidade se diferencia a partir da diferença de intensidade das forças ressonantes que compõe as várias formas.  O sujeito da ação passa a "dançar" uma música que nunca termina, pois na verdade ela sempre esteve ali. Mergulhado na dimensão  de todas as possibilidades o ente da ação,  quer orgânico ou não, em todas as instâncias do dinamismo que sustenta seu movimento, assume um sentido de ser volátil que o transforma em um arquivo que contrai o espaço e o tempo. Tal dinâmica não está mais a mercê das categorias da física clássica, ou das formas de expressão que fixam os limites das figuras espaciais, uma vez que suprimiram-se os pontos de suporte das partidas e chegadas e os encontros passam a se dar nos não-lugares das linhas de comando dos programas. Este mergulho no caos processa-se pela aceleração dos fluxos, que trafegam numa velocidade vertiginosa, onde os olhos não são mais capazes de reter as imagens da paisagem ao redor, transformada em borrões que não diferenciam os limites das figuras. Sem sustentação no espaço e no tempo o ser assume, definitivamente, o seu elemento constitutivo que determina sua ação, por si só, não necessitando da coerção de nenhuma outra coisa, estando totalmente vinculado de seu sentido de ser como um ato radical. "Onde quer que você esteja, em Marte ou Eldorado, abra a janela e veja, o pulsar quase mudo, abraço de anos-luz, que nenhum sol aquece e o oco escuro esquece" (Augusto de Campos).

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Os atos têm acompanhado a tarefa de construção das sociedades através de diferentes momentos ao longo de sua história, dando aos entes da linguagem um mundo estável, conhecido e seguro, garantido a ordem necessária ao grupo ou a conservação da espécie, e ao mesmo tempo devolvendo a instabilidade às ordens, por revoluções sucessivas provocadas pelos dinamismos que insistem em dissolver as formas fixas das ordens que se sucedem. Em busca da ordenação dos processos naturais, os atos constitutivos da ordem acabam, sempre, por estabelecer melhores práticas destinadas a garantir a sobrevivência da espécie, em códigos que visam regular a conduta, fixando princípios éticos e legais que definem o comportamento aceitável e os submetem às exigências morais e legais que regem cada grupo. Ao mesmo tempo, a vontade de potência, a força para existir como sentido natural do ser, é regulada em cada ordem por dispositivos de poder institucionalizados nas diversas esferas do grupo social, domando os instintos e sujeitando a potência natural e desumana ao propósito utilitarista da conservação da espécie. Superar a soberania dessa relação utilitarista careceria de uma dinâmica interna dos atos radicais que subvertesse o estrato onde se afirmam os dispositivos de poder. Às vezes, nessas tentativas supostamente como atos radicais, corre-se o risco de se entrar num “círculo vicioso” do hábito de construir novos espaços que mantem a mesma topologia de orientação, apenas substituindo um estrato por um outro, criando um novo abrigo privilegiado para a soberania da ordem. A tentativa de alcançar um céu aberto para além do horizonte da ordem e dos dispositivos do poder deve levar-nos ao plano em que os limites são removidos, os espaços desintegrados, as bordas suavizadas e as ressonâncias desfeitas, reconstituindo, assim, o plano do campo virtual integrado. Nesse plano os corpos são virtualizado, liberando linhas de escape de um tempo descontínuo e de um espaço não extensível, onde a realidade não deve ser pensada em termos dos planos geométricos de sucessão, mas na duração do movimento de forças não relacionadas. Se o plano virtual é uma duração pura da diferença, bem como a duração pura é um campo integrado onde as forças duram ilimitadamente, é nele que temos a possibilidade de atingir as forças fora do domínio das ressonâncias de múltiplos inteiros; em uma zona de indistinção de um horizonte de fuga, onde as ressonâncias desaparecem na abolição das distâncias geográficas e revela-nos o vazio de uma atemporalidade a céu aberto. Assim, esse mundo deve compreender, necessariamente, um máximo de relações e singularidades.

Operar no campo de um horizonte aberto, sem limites, suportes ou marcadores fixos, em geral gera um desconforto, dado que a ação das forças reivindica uma potência máxima e visto que os esquemas de reprodução das potências através do estabelecimento de uma trama que as mantenham em equilíbrio, dificilmente prescinde dos dispositivos de poder como último limite, que faz cessar a insistência de não abrir mão de se afirmar. Tomando a figura nietzscheana da reatividade como estratégia de poder e não de uma ação de um quantum inferior em intensidade, que só encontra saída através da aniquilação do quantum mais intenso, podemos compreender como as formas fixas representadas pelo clássico esquema: percepção/memória/linguagem, no mote da escalada do mundo dos

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homens da razão, operam no ressentimento e na “má consciência através dos dispositivos de poder. A “sina reativa” carrega uma função utilitarista que tem servido ao pensamento e à civilização que inventamos.

Liberar as potências que subjazem, circulam, atravessam as formas fixas e desarticulam os dispositivos de poder é uma tarefa que, de fato, requer um esforço considerável. Não é algo que se abra facilmente, como os significados da língua, a exemplo de quando ouvimos uma sentença do tipo: "amanhã irá chover" ou “ontem fez um lindo dia de sol. Além disso, a falta de pontos de suporte quando ingressamos nessa realidade, traz uma certa "tontura", como a da imagem do Zaratustra, do "equilibrista" que a qualquer instante pode despencar no vazio. O sentido das intensidades puras não é inequívoco como o significado das palavras de uma língua qualquer. Liberar tais potências na maioria das vezes coloca em risco as formas de uma ordem que quer dar conta da instável transitoriedade do fluxo de um devir que atravessa o mundo dos “homens” ditos, por si mesmo, humanos. Desse modo, transcender o mundo das formas fixas deverá requisitar as intensidade de uma inumanidade a ser conquistada, não sem violência. Se considerarmos que a ordem das coisas fixas trabalha com as forças em seus estados de ressonâncias, poderíamos assumir que a dirrurpção de uma ordem reivindicaria o sentido das forças livres, em sua diferença absoluta, pré-individual e metaestável. Ao tentar recuperar essa diferença na ordem da vida, expressa-se o paradoxo de um salto para a morte como única forma de vida, no sentido inverso do salto orgânico para vida como uma descida para morte. Assim, dissolução das ressonâncias traria a morte como o encontro das forças inumanas, pré-individuais, no campo das forças livres. Nesse ponto recuperamos o potencial subversivo capaz de lidar com os dispositivos de poder que destroem a possibilidade de uma força atualizar sua potência, quando a subversão é exatamente a virtualização desse potencial, liberando o nó de tendência das potências relacionadas na ordem das ressonâncias. Se as forças não se relacionam e, portanto, encontram-se livres, não há de se falar de forças ativas e reativas, nem se é capaz de operar a negatividade como ato de aniquilamento. No reino das diferenças excedentes, o puro estado das forças livres cria um diagrama de forças seguido pela absoluta positividade, deslocando assim o movimento de qualquer polarização ou síntese dialética que opere através da negação - máxima da negação da negação. Operação que só pode se dar no campo das forças relacionadas em seus polos ativos e reativos, do ente individuado e atualizado do tempo e no espaço. Se quisermos recuperar o potencial das forças livres através do movimento de virtualização no campo da diferença excedente, há de se voltar, como fez Simondon, para um campo metaestável onde as forças estão carregadas de indeterminação. Resgatar nos seres individuados a carga de indeterminado, isto é, de realidade pré-individual, que passou através da operação de individuação sem ser efetivamente individuada. Como chamar esta carga de indeterminado? Talvez possamos aproxima-la ao “isto” que Deleuze e Guattari perseguem nas ligações e conexões das máquinas desejantes do capitalismo e da esquizofrenia. “Isto funciona por toda a parte: umas vezes sem parar, outras descontinuamente. Isto respira, isto aquece, isto come. Isto caga, isto fode”. (Deleuze e Guattari – O Anti-Édipo). Dai o processo de aproximação entre esta carga de indeterminação com o fluxo capitalista e esquizofrênico, cujo sentido é a abolição dos polos individuantes,

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onde “eu e não-eu, exterior e interior, já nada querem dizer”. O produzir aqui deve ser tomado como o fluxo de um devir integrado que atravessa todas as tentativas de estabelecimento de uma ordem individuada. É o produzir das forças livres, absolutamente diferentes, fora do espaço das ressonâncias. O produzir do corpo pleno sem órgãos, estéreo e improdutivo no sentido da ação e reação; a recuperação da carga de indeterminação pelo sujeito individuado, através do excesso errático do movimento acelerado das forças em circulação. Esse movimento acelerado incorpora as forças livres em sua totalidade, não obstante decliná-las segundo modalidades diferenciadas e contingentes, dando uma configuração singular onde não é a amplitude do que nele (movimento) se exclui o que chega a caracterizá-lo, mas a intensidade do que converge ilimitadamente. E não se trata de uma positividade acidental mas essencial.

Pensar essa positividade face aos movimentos (devir) que nos chegam (a) nesse início de século - digo movimento, o fora dos gonzos de um número numerado; onde mover-se é entrar numa diferença absoluta e pura, sem referenciais do mesmo ou da permanência que nos permite dizer inequivocamente as formas fixas do mundo, é traçar uma "integral" cuja inflexão está sempre por se formar, nas ilimitadas composições com as forças. Ali onde o indivíduo se forma, na composição das suas faculdades e das forças que o atravessa, estabelece-se uma combinação ilimitada. A velocidade das forças circulantes, contudo, não permite que se fixe um espaço delimitado pelos pontos de contato desse encontro, pois este se tornou conexões; interconexões, que se multiplicam ilimitadamente, assumindo uma trajetória errática onde as combinações são feitas e desfeitas instantaneamente. Encontrar o indivíduo nessa dimensão de afrouxamento dos vínculos que mantem as identidades das formas fixas e nos permite dizer o mesmo que se mantêm, aparentemente supõe uma ação paradoxal. Querer reter o que permanece ao longo de um trajeto onde os elementos se alternam, se transfiguram, se modificam insistentemente, e mesmo assim sé é possível dizer o “um” que se mantêm intacto no curso da circulação, mas ao mesmo tempo indeterminado. Sem poder apelar para uma síntese, mesmo que provisória, uma vez que abdicamos aqui de toda a negatividade que ressalta o “outro” que permite recortar o que se afirma como seu oposto e, portanto, como um diferente do qual já se tem a identidade diante de si, como resultado dessa dialética dos contrários, sobra-nos a indeterminação como única via de afirmação. Um campo aberto, em cujas combinações estão sempre em vias de se desfazer antes mesmo que se possa dizer a identidade de uma composição. Se há uma identidade, ela permanece em segredo e impossível de ser lida, ouvida ou dita, pois caso fosse possível individua-la explicitamente, instantaneamente ela assumiria o espectro totalitário de um sujeito nos seus limites que o permite dizer-se a si mesmo e em contrapartida revelar um “outro”. Mas se ao invés de se procurar o “sujeito individual revelado” por sua carga determinada, aceitarmos o que de indeterminado o mantem indivíduo, sua identidade só poderá ser perseguida através de um processo de desconstrução que o traga para fora dos limites que permitem que se o diga “um” ou “outro”. Porém para fora dos limites das formas fixas dos sujeitos individuados só existe o silêncio da indeterminação; o som inaudível, invisível e impronunciável.

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Arriscar qualquer palavra para além dos limites das formas individuadas lança-nos, de imediato, num campo movediço de onde a falta de suportes é a absoluta ausência de qualquer proteção que impeça as intensidades de embaralhem o sujeito (des)individuado num turbilhão a-significante de sons desconexos de um ruído de fundo, onde não se tem, nem mesmo, contornos esboçados ao redor, como tentativas de separar aquele que diz, da multidão de vozes indistinguíveis que não param de ressoar e ameaçam ocupar a clausura do silêncio, lugar onde se resguarda a voz do “eu” que insiste em se repetir, até que consiga diferenciar-se de todo o resto, entrelaçando raízes, dobrando-as até fazê-las enraizarem-se em raízes e passarem de novo pelos mesmos pontos, “redobrarem antigas aderências, circularem entre suas diferenças, enrolarem-se sobre si mesmas ou volverem-se reciprocamente”.

Romper os limites das formas individuadas do sujeito que ouve, vê e fala é lança-lo de volta na metaestabilidade da diferença pura dos sons, das cores, dos brilhos; de volta as intensidades. (não) Lugar onde já não se pode dispor dos órgãos da percepção sensível, pois eles ainda não se formaram, uma vez que ainda não há organismo. Uma ruptura dos limites estabelecidos nas formas que retêm elementos em uma estrutura a partir da qual são compostas a relações do organismo, relações vitais, significaria, então, morrer e nascer de novo. Morrer, neste sentido, seria retornar aos elementos fora da estruturas da vida, onde o silêncio é um marulhar de um ruído indiscernível, sem qualquer centro capaz recortar em torno de si formas fixas que reduzem as intensidades a um grau específico que passa a traduzi-las em distinções limitativas de intensidades. Reproduzir essas intensidades em unidades cada vez maiores é o sentido original da vida, capaz de codificar e traduzir os códigos das relações de forças dentro de um campo onde se efetuam as ressonâncias; esquema tradutor e reprodutor da ação e da reação de forças. Quando uma força vibra e encontra uma outra força que a ela reage e essa reação produz códigos de frequência capazes de serem reproduzidos, aí a vida se instala. Para que haja vida é necessário um organismo capaz de codificar e reproduzir as intensidades do universo, limitadas em unidades cada vez maiores. Somente a partir dessa unidade fundamental, que preserva os códigos que reproduzem as intensidades em limites que fixam um ritmo para a relação entre frequências, é possível que a vida se instale e se prolongue. O prolongamento da vida, assim, depende da capacidade de reproduzir esse limite codificado. Poderíamos dizer, aqui, que os códigos da vida carregam uma longa memória dos limites que recortam o universo das multiplicidades circulantes em sua diferença pura. Memória aqui, tomada como o órgão através do qual são arquivados os códigos da vida; vida tomada como o limite das intensidades em sua diferença pura . Um ser vivo é um ser dotado da capacidade codificar as ressonâncias e prolonga-las num esquema de ação, reação e reprodução. Ao nascer de novo ele constitui uma nova natureza fora dos limites do organismo, fora dos limites em torno de um centro vital, a partir de agenciamentos que liberam as intensidades não mas relacionadas nos esquemas reprodutivos e suas codificações estabilizadoras de poder. Intensidades nômades, acentradas, assignificantes , atonais e anorgânicas.

Os organismos são corpos que constituem os limites da ordem de um composto orgânico qualquer e seu funcionamento traz a reprodução de códigos que

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viabilizam o estabelecimento de um padrão serializado de arranjos que diferem na sua forma mas que se aproximam no sentido de preservação. Desnudados de suas histórias particulares os corpos orgânicos denunciam uma similitude que repousa no sempre retorno de sua repetitiva trajetória. Pensar como essa repetição pretende se diferir, ao longo do processo de constituição dos limites orgânicos, por sinais vocálicos ordenados em palavras que expressam significados é concluir que a matéria da qual é feita o conjunto de arranjos denuncia a repetição de um padrão mantido quando se tenta descrever tais arranjos. As palavras de uma linguagem inequívoca na função de relacionar significantes e significados, reproduz a ação que processa as imagens, repetindo o movimento reflexivo da luz nos corpos opacos, criando um padrão sensório-motor. Porém, entre a percepção que recebe os acontecimentos do exterior do organismo pela estrutura sensória, e a reação a eles pela estrutura motora, há um pequeno intervalo que se constitui como centro vital do processo. Esse pequeno intervalo será responsável pelo funcionamento da estrutura e uma disfunção aí, acarreta o rompimento da ordem e compromete a retroalimentação pelo equilíbrio entre as funções de cada uma das partes do organismo. Chamemos esse intervalo, mesmo que provisoriamente, de consciência ou centro transcendente. A ausência desse centro ou seu mal funcionamento, abre múltiplas passagens por onde jorraram uma multidão de intensidades indeterminadas, sem que se seja capaz de estabelecer o padrão sensório-motor de ação e reação. A manutenção da ordem de um corpo orgânico pode ser preservada, mesmo quando da aniquilação de uma parte qualquer que é compensada pela assunção das funções por ela desempenhadas por uma outra. Contudo, seu “bom funcionamento não se sustenta na ausência de um centro vital”.

O centro vital da vida orgânica deve ser capaz de traduzir o encontro de forças ressonantes em códigos que possam ser lidos quando do estabelecimento da relação de ação e reação como um padrão que conservará os arranjos dos compostos atravessados por um fluxo ininterrupto de acontecimentos. Ao reduzir e reproduzir esses acontecimentos em séries codificadas, o centro vital do organismo produz uma cartografia que escreve no corpo as reações para cada ação e constitui, assim, os seus circuitos. Para fora deles só encontramos um fluxo atemporal e simultâneo de forças que ganham contornos e limites e recebem uma ordem: a ordem do corpo orgânico. A constituição do organismo não pode se dissociada, portanto, de sua função. Cada conjunto de arranjos carrega um código que há de garantir a reprodução dos limites de cada corpo orgânico. Quando confrontado pelos fluxos a-centrados, não sujeitados a codificação do seu centro vital, o corpo já não consegue produzir as significações que o perpetua no ato de reproduzir os seus limites. Assim, a única maneira de livrar-se do vazio a-significante é a aniquilação de toda força que ameasse a ordem do seu equilíbrio, através da limitação da afirmação dessas potências dirruptivas que se apresentam como uma ameaça de morte. Ferido mortalmente só resta ao corpo os artifícios de uma consciência a produzir dispositivos limitadores, dispositivos rareadores do espaço do fluxo das intensidades através da secreção de dispositivos de poder. As construções da vida orgânica representam-se a si mesmo através das cadeias de significados do organismo. Representam a vida como o conjunto de funções a serviço da reprodução do

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esquema sensório-motor por intermédio de ressonâncias. Contudo as ressonâncias do organismo não se dão sem a mediação da consciência com seu centro vital. É nesse pequeno intervalo que as forças serão relacionadas e moduladas de acordo com os dispositivos produzidos pela consciência, dentre eles, os dispositivos de poder; poder de modular as forças através da regulação do espaço de sua circulação.

Considerando que os dispositivos da consciência habitam o campo da atualidade do indivíduo orgânico. ele é necessariamente fruto de agenciamentos entre os compostos que se constituem no atual, presentes no tempo e no espaço; tempo preso aos gonzos que numeram a passagem dos corpos num espaço tornado extensão e traçam as coordenadas espaço-temporais por onde passarão os “pontos-orgânicos” que compõe a ordenação dos códigos da vida a relacionar-se com os demais compostos; representações das coisas em geral, com suas características de ordem e classe. Os compostos se misturam num campo ou num meio individuado. Eles podem ser de natureza orgânica ou inorgânica, material ou imaterial, ser o resultado de agenciamentos de corpos ou de agenciamentos de enunciados, assumirem uma forma de conteúdo ou uma forma de expressão. Sob a ordem dos compostos individuados encontram-se os dinamismos espaço temporais – e aqui utilizando uma expressão deleuzeana, dizemos desses dinamismos, “as agitações de espaço, buracos de tempo, puras sínteses de velocidades, de direções e de ritmos”, produzidos num campo intensivo onde se relacionam as forças; campo de ressonância. Nesse campo a consciência assume suas funções visando dar conta dos dinamismos que a pressionam por todos os lados. Para suportar a pressão desse movimento absoluto há de se refreá-lo, desacelerá-lo, reduzi-lo. Assim a consciência age na produção dos dispositivos que assumem a função minorativa ou o poder de limitar as frequências puras das indeterminações que vazam e transbordam o reino do indivíduo.

Nesse ponto, apelamos, mais uma vez para Deleuze e para o rompimento que ele produz na regra de proporcionalidade do claro e do distinto, para darmos conta dos processos da consciência. Faz-se necessário, de saída, compreendermos os movimentos que se dão no plano de consistência dos sujeito consciente no mundo. Enquanto um corpo orgânico, com seu centro vital a produzir os códigos que irão reproduzir o organismo, os compostos vivos se assemelham pelos limites que estabelecem e pelas funções que assumem. Quando porém nos referimos ao sujeito consciente, ao lado de outros compostos, precisamos entender como o centro vital assume a natureza de uma consciência. Não cabe aqui explorar a distinção entre os modos de consciência, mas sim compreender como a consciência exerce suas funções a partir do “drama” da existência consciente.

Considerando os dinamismos espaço-temporais como puras sínteses de velocidades, direções e de ritmos, pode-se compreender como o drama da existência consciente consiste em um “estranho” teatro onde as determinações puras dos dinamismos agitam o espaço e o tempo, agindo diretamente no centro vital do sujeito, cuja função é dirigir sua especificação e divisão a partir da representação e reprodução dos códigos da vida. Porém o teatro da vida para uma existência consciente implica a determinação de um sistema onde se seja

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capaz de referir às linhas abstratas traçadas sobre os dinamismos puros. Nela, cada ponto relaciona o material sob toda a representação com o conceito que o expressa, encarnando ideias “distintas e obscuras”. Aqui caberia uma colocação: o distinto se relaciona ao estado da ideia plenamente diferenciada, que não se confunde com o claro que se relaciona ao estado da ideia atualizada, isto é diferençada. Ao separar a ideia em dois estados, Deleuze esta afirmando dois reinos, um virtual e outro atual. O virtual é o reino das diferenças puras, sem imagens ou semelhanças, enquanto o atual é o reino das diferençações , espaço das qualidades e extensos, espécies e partes, sujeito e objeto. Afirmar que a ideia é distinta e obscura significa assumir o sentido de que a ideia é “dionisíaca, nessa zona de distinção obscura que ela conserva em si, nessa indiferençação que não deixa de ser perfeitamente determinada: sua embriaguez”. 3

O reino do virtual seria o reino cuja realidade é constituída por relações diferenciais e distribuições de singularidade, reino da diferença em si, reino do absolutamente diferente. Portanto seus “estados de experiências” seriam “reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos”, considerando que a parte não atualizada na ideia habita o reino do virtual e que a abstração é uma operação do sujeito atual individuado, representação do composto sob as “categorias da identidade do representante e da semelhança do representado”. 4 Assim o drama da existência consciente consiste na coexistência de um “outro” que aparece uma vez no estado virtual da ideia e outra vez, de modo totalmente diferente, no processo de atualização da ideia. Estes dois reinos formam um “contínuo” que se define pela coexistência de todas as variações de relações diferenciais e distribuições de forças que lhes correspondem. Forças livres e forças relacionadas, multiplicidades virtuais e relações expressas em qualidades e extensos, natureza individuada e pré-individual, num rio sem margem, superfície ou fundo.

Podemos “trocar” a Ideia de Deleuze pelo conceito de “Ser”, para continuar a seguir o percurso dos compostos de forças atualizados nas formas individuadas bem como a dinâmica das forças livres em sua dimensão virtual pré-individual e metaestável, através de uma ontologia que de conta dessa “passagem” entre o reino do virtual e do atual. Se tomarmos o conceito de Ideia a partir do sentido deleuzeano de um fundo pré-individual que comporta singularidades que caracterizam multiplicidades virtuais, podemos aproximá-lo ao conceito de Ser-fora-do mundo das formas, uma vez que ainda não há de se falar de relações entre forças nesse contínuo ideal que é o reino onde coexistem as forças livres, em todas as suas variações de relações diferenciais e distribuição de singularidades que lhes correspondem. É pelo processo de individuação que o Ser se encarna nas qualidades e nos extensos que preenchem como ser-no-mundo, nos campos intensivos de individuação. A atualização do ser nas formas das ressonâncias seria a encarnação que coloca as forças em seu estado de atividade, relações de ação e reação que se constituem em torno de singularidades incompossíveis. 5 Chamaríamos, portanto, essa relação da relação

3 Gilles Deleuze – A ilha deserta (O método de dramatização)4 ibdem5 aqui o que define a compossibilidade de um mundo das ressonâncias é a convergência das séries constituídas na vizinhança de uma singularidade até a

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do ser-no-mundo, onde se processa o “drama da existência”. A passagem entre esses dois reinos se dá através de um precursor que é um ângulo mínimo onde operam os dinamismos espaço-temporais, pré-qualitativos, pré-extensivos que tem “lugar” em sistemas intensivos onde se repartem diferenças; ponto de inflexão por onde escoam as forças que insistem, subsistem e martelam, atualizando e diferençando o Ser em qualidades e partes. Esse querer, essa vontade, potência que faz com que as forças se afirmem a todo o tempo é o sentido do Ser que sustenta todas as formas. A ordem são as coordenadas espaço-temporais onde o ser se individua e o poder, a função minorativa que constitui e aniquila as formas ressonantes.

Considerando o lugar da ordem como o plano onde atualizam-se as qualidades e os extensos, não podemos partir dessa dimensão para procurar os dinamismos pré-qualitativos e pré-extensivos, pois na ordem espaço-temporal os sistemas intensivos já aparecem individuados nos compostos de forças relacionadas. Se a essa altura perguntarmos pelo sujeito, o encontraremos já formado, qualificado e composto na unidade de um eu já estabelecido em sua base substancial unitária que garante sua identidade e sua diferençação de todo o resto, como representação que o permite dizer a si e o mundo. Tudo que se pode ser dito a partir dessa identidade que repousa sobre uma unidade última que não pode ser dissolvida, sob o risco da dissolução do eu. Quer essa unidade resida no cógito, em Deus ou na Ideia abastra, o dizer que surge daí não dá conta da profundidade original ontológica que se abre como um abismo abaixo de todo fundo. Devemos então procurá-la fora da dimensão das quantidades extensivas e das qualidades físicas, no domínio das intensidades puras. Muito nos auxiliará em nossa tarefa de encontrarmos os dinamismos que agitam o espaço e o tempo, dois conceitos forjados por Nietzsche: vontade de potência e eterno retorno.

vizinhança de uma outra singularidade. Já a imcompossibilidade seria o lugar onde as séries de forças livres divergiriam absolutamente. ,

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Unidade 4 - Ver os toques antes que eles se estendam às peles

“Esses múltiplos eus, então não pertencem ao sujeito em sua expressão orgânica. Esses múltiplos eus são intensidades da síntese passiva, da imagem direta do tempo e do corpo sem órgãos” (Cláudio Ulpiano).

Partamos em busca do sujeito, contudo um sujeito que não conte com a garantia de identidade em uma base substancial unitária, mas que dissolvido, abra-se a todos os outros eus, cuja série deve ser percorrida como uma potência de metamorfose que se aprofunda num abismo abaixo de todo fundo. Sujeito embrionário ou larvar, cujo corpo não carrega o peso da unidade de órgãos que se diferenciam e se complementam na função específica que exercem. Como um esboço embrionário, ainda não qualificado nem composto, ele seria o único capaz de receber as pressões dos dinamismos e a agitação das determinações puras. Ao invés de fixar os limites de um composto que se reparte em partes e qualidades, esse corpo sem órgãos afirma o movimento do eterno retorno de uma imprevisível novidade, através de uma dança onde os movimentos nunca se repetem. Flutuações intensas onde o eu não pode querer a si como mesmo sem querer também todos os outros eus, devindo inumeráveis outros e fazendo de si um momento fortuito conectado a série inteira que devem.  Poderíamos ir atrás desse sujeito como um eu onde a potência afirmativa das forças não se confunde com uma relação de ação e reação nos compostos  ressonantes, mas afirmam a vontade de potência. Quando  asssitimos o jogo das forças ativas e reativas podemos demarcar a distinção entre o que a potência reivindica nas relações de combate entre as forças e a potência que pergunta pelo "quem quer" na vontade. Não há de se fazer essa distinção sem colocarmos cena a distinção entre o virtual e o atual. A atualização das intensidades puras se dá pelo processo de diferençação das singularidades disjuntivas, reais sem serem atuais e ideais sem serem abstratas. Os aspectos dessa idealidade virtual concentram-se nas relações diferenciais que constituem e determinam o dinamismo que trabalha sob as formas e as extensões qualificadas da representação, saindo da profundidade inextensa e informal para atualizar-se nas coisas. O processo de diferençação, processa-se por dois aspectos: especificação e partição, qualificação de uma espécie e organização de um extenso. O conjunto de relações diferenciais  entre elementos destituídos de forma e função só são determináveis numa rede de relações diferenciais de determinações recíprocas que correspondem as distribuição de singularidades distintas e obscuras. Distintas pois são determinadas, obscuras pois ainda não diferençadas em qualidades e extensos. O salto para a dimensão atual é um ato de encarnação que estabelece a diferença num jogo que se desdobra no

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prolongamento das especificações das qualidades e na composição das partes extensivas dos compostos de forças. Porém, ao procurarmos determinar as intensidades puras, operando uma divisão e uma subdivisão da partes extensivas e a distinção de suas qualidades específicas até “estruturas fundamentais” esbarramos no seguinte problema: Como falar de tais estruturas sem incorrer na tentação de utilizar os códigos de uma linguagem ordenadora, falando de "baixo para o alto" e tendendo a encontrar as semelhanças ao longo de uma rede de signos que recobre cada coisa com seu significado? Falar de uma realidade que ainda não se formalizou requer uma linguagem que podemos chamar de “linguagem da palavra muda” que embora seja apta a distinguir é obscura, ou seja, não opera por semelhanças ou diferenças mas por pura determinação, sendo a única capaz de dizer a profundidade inextensa das relações disjuntivas entre as singularidades pré-individuais indo em busca dos sujeitos larvares.  Seguindo as tentativas de se descrever as forças em um campo intensivo onde estas encontram-se livres, não relacionadas e portanto assumindo o máximo de seu potencial, esbarramos em discrições que se apoiam em partidas já localizadas em um ponto qualquer, suporte ou centro. Daí se desdobram a ontologia de um ser aprioristicamente representado em sua unidade fundamental, sempre representando o retorno do Uno do qual as partes apenas compõe como axioma. Perguntar pelo Ser, pelo sujeito que o diz ou pelo mundo que este representa, não passaria, então, de um desdobramento dessa unidade fundamental. Mesmo a  ciência moderna e suas tentativas de se aproximar das relações disjuntivas, por não ter conseguido se livrar dessa unidade fundamental, partiu em busca das singularidades mas esbarrou nas “menores partículas”, nos “quanta de energia”. A partir da teoria corpuscular da matéria e da eleição da termodinâmica como princípio fundamental do movimento das partículas, formaram-se os teoremas que atribuíram as mesmas características, tanto a extensão e qualidades dos compostos de forças relacionadas quanto ao “campo de forças” não localizado na matéria extensa. Porém, a distinção de partículas cuja medição apela para as menores unidades possíveis, assume na ciência moderna uma relevância que se manifesta a partir possibilidade de se mensurar a velocidade com que se deslocam as partículas fundamentais e pela exatidão da captura dos instantes desse movimento, ainda que não se possa determinar sua trajetória. Contudo, quando falamos de captura, subentendemos um espaço e um tempo qualquer. Tempo da absorção de um corpo extenso nas paradas da partícula que se desloca e que constitui o instante. O olhar que se lança sobre esse processo esta carregado de categorias espaço-temporais onde as imagens se revelam como produto da síntese ativa da memória, criadora da unidade do espaço e do tempo.  Façamos, então, como Nietzsche, apelando para o “esquecimento” como única forma de conseguir nos livrar das sínteses produtoras do plano espaço-temporal, esquecimento capaz de nos trazer vistas vazias, sem semelhança ou lugar comum, palavras mudas, sem significados ou determinações representativas, operadas por um pensamento cego, único capaz de ver os toques antes que eles se estendam as peles. Pensar os dinamismos espaço-temporais como o lugar de forças livres é pensar as forças como pura afirmação e em um eterno retorno, pois uma vez que nada as restringem, elas se afirmam absolutamente fora de

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qualquer ressonância, apenas pela sua vontade de potência.  O sujeito aí, já não mais se constitui como o sujeito do cogito cartesiano, ele só pode surgir após a perda de sua unidade fundamental. “E a vontade de potência decorre disso, como princípio dessas flutuações ou dessas intensidades que retornam e repassam através de todas as modificações. O mundo do eterno retorno é um mundo em intensidade, um mundo de diferenças que não supõe nem o Uno nem o Mesmo, mas que se constrói sobre o túmulo do Deus único como sobre as ruínas do Eu idêntico”. E onde nos levará esse esquecimento? Diria que para fora do esquema reprodutivo composto pela percepção-memória-linguagem.  Encontrar o Ser no fundamento que permite identificar e dizer a natureza das coisas é aprisiona-lo nos instantes que representam as paradas impostas artificialmente sobre uma duração que é puro movimento e portanto não se compõe de pontos do espaço. Estes seriam evocações de certas frequências nas diferenças de graus apreendidas ao longo de um movimento que é pura duração, através de categorias práticas que funcionam por semelhança ou por oposição, uma vez que a duração não se confunde com o conjunto de diferença de graus ou de quantidades. A duração é a série disjuntiva de forças singulares que só se diferem de si, alterando sua natureza e colocando o Ser ou a essência como o que devem, sempre do lado da diferença e nunca por semelhança ou oposição. As diferenças de natureza determinam as articulações do real como nó de tendências que mudam de natureza diferindo-se de si.  A diferença de natureza não está nos produtos das ressonâncias mas entre um único nó de tendências que atravessa as forças. Assim o que é puro nunca é a foça mas sim as tendências ou as potências que a atravessam. Bergson já apontava essa diferenciação como o modo do que se atualiza, quando afirmava que “a essência de uma tendência é desenvolver-se em forma de feixe, criando, tão-só pelo fato do seu crescimento, direções divergentes”. 6 Assim a atualização de uma potência em um composto de forças relacionadas será a própria duração à medida que se diferencia e passa ao ato. Dessa forma a diferenciação não se manifesta através de uma resistência de uma força reagente, mas de uma força da qual a duração é em si mesma portadora, força precursora e sombria, distinta e obscura, vontade de potência. A partir daí o movimento não se determina como uma relação entre termos atuais mas como atualização de um nó de tendências virtual. Se no  movimento puro, portanto, a diferenciação é o modo original e irredutível pelo qual uma virtualidade se atualiza, e se a força relacionada é a duração já diferenciada de si, a duração, então, habita o reino da virtualidade, o reino das diferenças puras. Como colocar o sujeito que apreende o mundo das forças relacionadas e o diz, nessa passagem que faz coexistir o virtual e o atual nos compostos das ressonâncias? Ele pode ser tido como o sujeito que já é produto da individuação e portanto se afirma como uma unidade que representa esse mundo, congelando-o em instantes, a partir de seu esquema percepção-memória-linguagem, fundado em uma base substancial unitária, ou como um sujeito esboço (larvar),  através de um aspecto que dê conta da duração como contínua mudança de natureza nos nós de tendências de um virtual, que não para de se atualizar nos compostos de forças relacionadas. Aí entramos em uma compreensão fundamental para nos aproximarmos do conceito de duração como

6 Henri Bergson – Evolução Criadora

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movimento puro, fora das coordenadas espaço-temporais que nos dão os instantes como pontos de paradas, estabelecendo uma distinção artificial desse movimento através de marcos que criam o sentido de uma sucessão. Se tomarmos o movimento puro como a coexistência das diferenças em si, nos aparecerá, imediatamente, um único bloco de tempo, onde o que dura é seccionado por instantes que criam o sentido de uma sucessão temporal. Voltemos a Bergson, aqui, na sua tese sobre o tempo, onde a duração é posta como a “sobrevivência de um passado em si” e para as duas figuras por ele apresentadas para a memória. Colocando uma distinção entre o que ele chama de “memória-lembrança” e “memória-contração”, ele estabelece a duração em si como memória. Porém não como uma “memória-lembrança”, que é uma operação do sujeito, através do seu esquema percepção-memória-linguagem, que se coloca “de súbito” no passado para representar alguma coisa que “foi”.  Para Bergson o passado o é como um “passado geral” que não “deixa  de ser” e não se constitui depois de ter “sido presente”, mas "coexiste consigo" como presente. A duração, assim, seria a coexistência do passado consigo mesmo do qual o “presente” é somente o seu grau mas contraído que interpõe o passado entre dois presentes: o presente que ele foi e o atual presente em relação ao qual ele é agora passado. Deleuze nos apresenta o conceito do ”passado em geral” de Bergson, destacando a metáfora do “cone”, onde a cada nível do cone, há todo o nosso passado, mas em graus diferentes: o precedente é somente o grau mais contraído do passado, repetido um número indefinido de vezes, em camadas sucessivas da memória, tudo se passando como se nossas lembranças fossem repetidas um número indefinidos de vezes nessas milhares de reduções possíveis de nossa vida passada, onde tudo seria mudança de tensão e nada mais. “A cada grau há tudo, mas tudo coexiste com tudo, ou seja, com os outros graus.(...) finalmente o que é virtual são os próprios graus coexistentes e como tais. Logo o passado e o presente devem ser pensados como dois graus extremos coexistindo na duração, graus que se distinguem, um pelo seu estado de distensão, o outro por seu estado de contração”. 7

 A memória, a partir dessa distinção bergsoniana, assumiria assim dois papéis. Um deles como memória-lembrança, no esquema reprodutivo do sujeito que o coloca de súbito no “passado em geral”, recortando o tempo como lembrança e o outro como memória-contração que carrega o passado como  contínua mudança de natureza do Ser que devem. O esquecimento ao qual Nietzsche se refere, portanto, é o esquecimento referido a memória-lembrança, que se constitui em consciência e sempre como má consciência, pois está sempre posta em relação aos compostos onde se supõe sempre que tudo esteja dado. O esquecimento, então, seria um canto de louvor ao indeterminado, canto de uma duração onde tudo não está ainda, mas supõe um movimento que o inventa ou cria, como um jorro ininterrupto de novidade que se define como aquilo que sempre muda de natureza, o sempre novo e imponderável na dimensão do intempestivo que alimenta todas as utopias. Utopias que apontam para um mundo que não cansa de se fabricar, para além das formas fixas de qualquer ordem e onde ele (o esquecimento) é fundamental para afastar as lembranças que insistem em assombrar toda novidade e vaticinar sobre o seu fatídico fracasso a partir da crença de que tudo já está dado e desta concepção se deve partir, pois o dado

7 Gilles Deleuze – A ilha deserta - Bergson

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existe, sempre existiu e sempre existirá. O esquecimento ao qual Nietzsche apela é um força ativa sempre a procura da mudança. Força que é pura tendência, ainda não formalizada nas relações ressonantes de ação e reação, que metamorfoseia ininterruptamente o mundo dos homens e suas ordens. Força livre e absoluta em sua potência de fazer inclinar, antes mesmo que se possa estabelecer um ponto qualquer. Força a-centrada como inflexão contínua que devem todas a realidades que coexistem na duração. Ao falarmos de inflexão temos que retornar, obrigatoriamente, a formação do sujeito na modernidade, ao longo da qual foram lançadas as bases de sua unidade substancial, contra a qual Nietzsche se levanta.

A unidade do Eu da vontade de verdade, constitui-se na modernidade a partir da localização de sua unidade fundamental mínima. Ao pensarmos essa unidade em temos da extensão e de seu processo de partição, nos deparamos com um série de produto notáveis de expressões que se diferenciam em linhas divergentes, cujos polos carregam sinais opostos que estendem os termos ao infinito. Cada termo representa pontos espaciais que se estendem ao longo do espaço e podem ser localizados a partir de cada uma das identidades que combinam a variação dos termos até o limite de sua diferença potencial de variar de um a outro ponto. Assim quando se parte em busca da variação, a despeito dela ser expressa em um número inteiro ou de um número irracional, mantendo-se uma unidade substancial, as variações não ameaçam essa unidade uma vez que o limite da identidade garante sua representação em toda a série. Haveria, contudo de se perguntar como a unidade em cada um dos pontos de uma série se comporta frente a inflexão que se estende entre um ponto e o outro, ou todos os outros da série. As séries podem ser tomadas nas perspectiva de um desdobramento que atravessa a unidade do sujeito, presente na torção efetuada pelo pensamento barroco no século XVII, em linha com a novidade introduzida pelo perspectivismo de Leibniz. A partir da leitura que Deleuze faz do pensamento do filósofo barroco, considera-se que a questão fundamental da unidade do sujeito poderia ser colocada a partir da bifurcação de duas séries estendidas ao infinito em dois planos, material e imaterial, a identidade tem que dar conta dos processos da matéria, orgânica e inorgânica, bem como das suas representações subjetivas. Desde já constitui-se um limite que separa mundo que invade o sujeito pela percepção sensível e que é se transformado em imagens para o sujeito que o representa. Os limites entre as partes extensas, dentro e fora, podem ser pensados, então como dobras. Cada dobra é , também, o limite de um processo em uma série que determina uma direção. Ao se dobrar o limite pode apontar para baixo, ao se desdobrar, ele garante a série para cima. Ao se dobrar o limite determina o processo de involução, ao se desdobrar ele garante que a série siga o sentido de uma evolução. A dobra então passa ser o limite cujo elemento genético seria a inflexão.

Considerando que a unidade em um processo de partição pode ser representada pelo número e a série marcada por pontos no espaço, a inflexão se exprimiria como um curvatura em um ponto que poderia ser representado por um número irracional, uma vez que o intervalo dessa inflexão é um série infinita, diferentemente de uma série onde os intervalos entre os pontos são os limites de uma reta, podendo ser representados por números que a fraccionam. A partir daí

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poderíamos propor que a inflexão se exprime por uma curvatura que lança a variação em uma série infinita. Contudo, falar de uma inflexão ou de um ponto de inflexão como a variação de uma série infinita, considerando o sujeito em sua unidade fundamental, exige um limite que dobre a variação para dentro do sujeito, como uma inclusão que que não para de se dobrar, ao mesmo tempo que a desdobra ao infinito, sempre na dimensão de um limite que está incluso em um ponto, a partir do qual pode-se percorrer todas as séries, como se num sítio de sua variação, a partir de um centro que transforma-se em ponto de vista para o sujeito. Como poderemos, então, na perspectiva nietzscheana, nos livrarmos do ponto de vista do sujeito como centro de sua unidade essencial? Como percorrer as séries infinitas a partir da inflexão em si como ponto a-centrado?

O desafio da experiência Barroca, em certo sentido, tenta responder a essa ausência de centro. Ao substituir o movimento retilíneo por onde estendem-se os pontos, pela curvatura flexionada das dobras, seu espaço torna-se turbilhonar e fluido, diferente do espaço rígido e contínuo limitado pelos pontos fixos por onde cruzam-se as retas cartesianas. A dobra barroca traz um ponto de inflexão nunca tocado pela tangente, pois está sempre a se dobrar e desdobrar. Nesse universo de curvas, o sujeito barroco é incluído em um compartimento onde se comunicam os turbilhões da matéria que fazem passar para um compartimento de cima. Blindados pelo infinito, suas massas e agregados elásticos, não param de ser comprimidos por uma força que é o motor desse movimento de dobrar os turbilhões nas suas partes, bem como desdobrá-los em uma série infinita, segundo uma curva sem tangente no limite. Essa mobilidade pode ser tida como o reflexo e o combustível de um processo de abertura da unidade substancial de um sujeito que representa a inflexão, não mas pontos fixados ao longo de uma reta, mas pontos sobre o qual se exerce a pressão dos circunvizinhos como partes inseparáveis que determinarão a sua coesão em uma simples extremidade da linha de reviravoltas. Ponto volátil e ininterruptamente torcido em um relativo que é seu ponto de vista. Aproximando-se da sepultura a vontade de verdade “tomou a atitude de alguém que estivesse a meditar profundamente na irremissível precariedade da existência, na vacuidade de todos os sonhos e de todas as esperanças, na fragilidade absoluta das glórias mundanas e divinas[...]então foi retirar o número que correspondia à mulher desconhecida e colocou-o na sepultura nova. Depois, o número desta foi ocupar o lugar do outro. A troca estava feita, a verdade tinha-se tornado mentira”. 8 O sujeito assim se instala no ponto de vista de onde passa a apreender a variação.

A reformulação do sujeito barroco não designa uma “variação da verdade de acordo com um sujeito, mas da condição sobre a qual a verdade de uma variação aparece ao sujeito (...) o ponto de vista sobre uma variação vem substituir o centro de uma figura ou de uma configuração”. 9 Podemos relacionar essa reformulação as “metamorfoses do espírito” no Zaratustra, quando ao abdicar da vontade de verdade o espírito chega a relatividade de um sujeito que não mas aceita a verdade estabelecida a partir de sua unidade substancial, mas num movimento que libera a vontade para o estatuto de um objeto que só “existe

8 José Saramago - Todos os nomes

9 Gilles Deleuze – A dobra – Leibniz e o Barroco

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agora através das suas metamorfoses ou da declinação de seus perfis”. 10 Instalado no ponto de vista ele libera o indeterminado de um mundo inteiro como uma virtualidade de uma inflexão que se inclui em um sujeito o elemento de uma verdade transformada em ilusão e pura arbitrariedade. “Como o mais santo, amou em seu tempo o tu deves e agora tem que ver a ilusão e a arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa do seu amor. É preciso um leão para esse feito”. 11 Contudo, nas três transformações do espírito segundo o Zaratustra, o leão ainda não está apto para criar um novo valor, embora já conquista a liberdade de um ponto de vista, pois o espírito só atingiria este estágio a partir da sua última transformação, tornando-se como um criança. “A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação. Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo”. 12

O perspectivismo barroco, com a virtualização do mundo que passaria a se atualizar na inflexão que o dobra e inclui no sujeito do ponto de vista, carecerá então de um eixo móvel para livrar o sujeito do peso dessa relatividade subjetiva de um mundo fora de um eu que o vê, sente, percebe e o representa. Essa mobilidade do eixo consistiria, então, a libertação da exatidão do ponto cartesiano como extremidade convencional da linha. Perdendo sua exatidão ao assumir o estatuto de posição, sítio, foco ou lugar de conjugação dos vetores de curvatura das dobras do mundo, o ponto de vista do sujeito torna-se o “lugar de todos os lugares”, comunicando todas as coisas que existiam separadas pelo espaço extenso e pela sequência temporal. Ao se liberar de sua unidade fundamental de onde o mundo emergiria em sua universalidade, as inflexões do mundo se incluem no sujeito que as tornam singulares em uma infinidade de pontos de vista que as constituem. A torção do ponto de vista, “faz com que o mundo só exista atualmente nos sujeitos, mas que faz também com que todos os sujeitos sejam reportados a esse mundo como a virtualidade que eles atualizam”, 13 sempre pronta a criar uma nova realidade. Se os sentidos da percepção flexionam o mundo para dentro do sujeito e abrem a perspectiva de um sítio que é o seu campo de atualização do virtual, a objetividade do mundo sofre também uma torção a medida que a constantes metamorfoses que o constituem como virtualidade, implicam a potência de sua inflexão. Essa torção, deste modo, representa um golpe definitivo no centro do sujeito e do mundo. O mundo que passa a invadir o ponto de vista é o mundo da projeção dos perfis dos objetos no ilimitado movimento de sua mudança. O mundo torna-se então o acontecimento no sítio sujeito, em seus infinitos pontos de vista que o inclui como inflexão. O valor do esquecimento nessa passagem aponta para a perda de um centro essencial explodido na multiplicidade que atinge tanto o sujeito como o objeto, num eterno retorno desse mundo fragmentado e na sua perspectiva como

10 ibdem11 Nietzsche – Assim falava Zaratustra – Os discursos de Zaratustra das três transformações12 ibdem

13 Gilles Deleuze - A dobra – Leibniz e o Barroco

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acontecimento ou como seu vir-a-ser. Face a um mundo de inflexões, onde as contínuas mudanças não se permite dizer as formas fixas, o ponto de vista do sujeito converte-se na possibilidade de um crivo que ordena o caos de todas as transformações, viabilizando tanto a passagem de um mundo ilimitadamente informe ao espaço da forma, quanto as passagens de uma forma a outra, no sítio de sua inflexão. Caos aqui pode ser definido pela velocidade infinita com a qual se dissipa toda forma que se esboça. Um virtual contendo todas as forças possíveis; velocidade infinita de nascimento e esvanecimento. O ponto de vista não constitui a relatividade do verdadeiro mas sim a verdade do relativo. A região de um estado de coisas apreendido, percebido e experimentado por um olhar que pode ser tido como força que age ao perceber e experimentar como que numa dobra de inclusão de um eu contraente que extrai dos elementos múltiplos um mundo.

Se partirmos no pressuposto do qual o ponto de vista passa a ser a inflexão de uma campo de visão que se dobra a partir de todos os pontos dispostos no espaço de uma geometria que se estende a partir de círculos concêntricos que compreendem toda as áreas de alcance da visão, conferimos a ele uma potência que não se confunde com os limites de uma dimensão objetiva ou factual das formas relacionadas, devolvendo à luta de forças ao seu espaço pré-individual e metaestável em um jogo autorreferencial que se move sobre essa posição. Nesse campo a verdade já não é nada mais que uma abertura para o inesperado de um mundo que se afirma a despeito do sujeito, mais que só o é para seu olhar que o legitima enquanto tal em sua multiplicidade virtual. Tantos são os mundos que atravessam os olhares quantos são as vistas que os trazem a existência, num jogo de forças que relaciona as potências que as habitam e que tendem ilimitadamente a medida que é impossível detê-las, a não ser que as aniquilem. Voltamos então a redução dos espaços de circulação das forças, como o poder de lança-las para fora de sua metaestabilidade bem como única ação capaz de limita-las em sua capacidade de agir pela completa aniquilação, num eterno retorno desse jorro ininterrupto.

Pensarmos na estruturação do poder através de seus dispositivos, como função minorativa do espaço de circulação das forças, não deve levar-nos a confundir esse processo com afirmação do ponto de vista de um sujeito qualquer ou de um conjunto de sujeitos que convergem o olhar em qualquer ponto. Ao contrário, enquanto o ponto de vista como inflexão do campo de visão procede por uma abertura por onde se estende ilimitadamente as relações de forças ressonantes a função minorativa do poder retira das forças sua potência, que é precisamente aquilo que as fazem se afirmar ativa ou reativamente em um relação cujo quantum nunca chega ao equilíbrio na neutralidade absoluta mas carrega sempre sua tendência. O neutro então, seria a única possibilidade das forças serem anuladas na sua capacidade de afirmar suas tendências ao longo de um sistema não integrado de ressonâncias. Um silêncio absoluto ou a ausência completa de um espaço por onde as intensidades se façam ouvidas quer sejam através dos códigos que as traduzem em cores, toques e sons, ou mesmo no ruído de fundo desse marulhar. Auxiliar-nos-ia na tarefa de entender o cerne dessa função minorativa dos espaços de circulação das forças relacionadas nas formas, ilustrarmos este processo a partir dos dispositivos de poder das

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sociedades ocidentais descritas por Foucault. A redução operada pelo encerramento em espaços particulares como o asilo e a prisão de formas de conteúdos específicas. Para tanto há de se apelar para noção da relação recíproca entre formas de conteúdo e formas de expressão. Se ação e reação entre formas de naturezas distintas (conteúdo e expressão) provocam transformações instantâneas nas relações entre as forças formalizadas sem, contudo, aniquilar as potências que as animam, o encerramento pela redução de seu espaço de circulação aniquila a capacidade das forças se atualizarem como ativas ou reativas, por limitarem o jogo múltiplo que as alimentam, fazendo com que elas se voltem a um campo neutro, num estado integrado de catatonia que culmina na sua completa desarticulação. Se é um enunciado jurídico, através de uma sentença que declara um acusado “culpado”, a forma de expressão que transforma a forma de conteúdo prisioneiro, imediatamente, no alvo de um pena qualquer destinados aos sentenciados por sua culpa, é a forma de conteúdo “prisão”, como espaço que o encerra no isolamento, a função minorativa do jogo múltiplo que o constitui como conteúdo individual, retirando-o do campo de atualização social onde se processam as relações das forças que constituíram seu ser social, aniquilando a capacidade de que este ente siga em suas articulações, uma vez que isso representaria uma ameaça para o resto da sociedade que continua a “céu aberto”. O asilo da mesma forma recolhe os sentenciados pelos enunciados psiquiátricos, em um espaço de reclusão que desarticula as relações dos “doentes mentais”, neutralizando o jogo múltiplo que processa e articula as forças a “céu aberto”. Aos indivíduos reclusos é negado a livre circulação e a livre ação e reação das forças relacionadas nas formas prisioneiro e doente até que as “más ações” e as “más reações”, sejam neutralizadas e eles estejam aptos a voltarem a circular e efetuar a atualização de suas potências em liberdade, desde que ela não ameace a desintegração da ordem para onde serão devolvidos. Assim, nas sociedades descritas por Foucault como sociedades de controle, o ponto de vista perde seu potencial uma vez que é substituído pelo “panóptico” que já engloba toda a visão de uma vez, já que a função minorativa do poder restringe o espaço onde se deita o olhar encerrado na clausura.

Já o ponto de vista como sítio da visão que se ausenta do seu centro orgânico onde se formam as imagens das intensidades que invadem os sentidos, sem neutralizar a potência que as animam, é o desafio de uma articulação geográfica do sujeito que vê, sem que ele já esteja presente como o indivíduo da visão. Esse sítio só será possível a partir de uma geografia sem os traços que demarcam a diferença entre os objetos e delimitam a distância entre estes o olho que os observa. Eis a utopia do puro olhar dessubstancializado. Como nos livrar do sujeito e da identidade como condição do olhar que observa o mundo? Como ver os toques antes que eles se estendam às peles? Se temos acesso ao mundo não é por outra porta que não a percepção sensível. Se conseguimos nos separar dele como sujeitos não é por outra faculdade que não a abstração. Se podemos falar desse mundo não é por conta de outra construção que não a linguagem. Abdicarmos dos códigos que nos conferem a humanidade tão reivindicada em nossa relação com a realidade que nos cerca seria a senha para nos lançarmos de volta na impermanência de um fluxo caótico de onde se é impossível fixar qualquer diferença mínima para que se possa se afirmar um “eu” qualquer, distinto de todos os outros conteúdos que se misturam na massa amorfa e

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integrada de um caos original, de onde o “criador” fez a separação entre a “luz” e as “trevas”, chamando a luz de dia e as trevas de noite, fazendo da ”tarde” e da “manhã” condição de continuidade do tempo e do espaço. Como tornar, então, invisível a escuridão que nos cerca e fazer dela a única possibilidade de qualquer expressão que observe a ausência do sujeito que vê e diz, sem que o sujeito já esteja presente na cena de sua ausência? O mundo sem nós, mundo da fantasia em seu aspecto mais puro, onde se pode ver a própria Terra mantendo seu estado de inocência pré-castrado, antes que nós, seres humanos, a saqueássemos com nosso húbris” 14 e a reduzíssemos a neutralidade dos dispositivos de poder.

O caminho do olhar dessubstancializado carece da suspensão do ponto fixo que sustenta as imagens refletidas dos encontros entre a percepção sensível e as intensidades que a atravessam nesta relação de ressonância entre as forças. Força da luz que se propaga e força do olho que a captura; força sonora que se expande em ondas e força do ouvido que à modula; força das massas das partículas aceleradas e força das peles que as tocam. Esses encontros se dão nos pontos fixos de coordenadas que constituem a natureza das formas materiais e orgânicas que agem e reagem reciprocamente nos encontros das forças formalizadas. Ponto fixo onde se estruturam as preensões das formas orgânicas e os códigos da vida. As imagens desses encontros vão sendo tecidas silenciosamente, numa “meada” que estende o “fio” condutor das ressonâncias, sem o qual se é incapaz de criar as identidades entre os termos de qualquer série codificada. Assim a pretensão de identidade entre os termos das séries formalizadas dependem de uma unidade que aparece no centro sensível como imagem desse encontro e sem o qual é impossível estabelecer os limites do idêntico. Avançando no processo de recepção das intensidades pelas forças centradas nos limites da percepção, abstração e linguagem, chegamos as imagens que se compõe como “núcleo duro” de um encontro sempre aberto à multiplicidade dos conteúdos em um estado integrado, onde as forças diferem absolutamente. Daí o salto dessa realidade pré-individual ser confundida com a formatação desse núcleo onde se formam as imagens que passaram a conduzir as operações do “espírito”, fio condutor da identidade individuada das formas do Ser.

Suspender as operações do espírito é abdicar do ponto que estrutura as operações das faculdades ordenadoras da realidade do indivíduo organicamente codificado, no qual cada força já se encontra relacionada com todas as outras, através das coordenadas espaço- temporais. Código que combina as forças vitais em unidades cada vez maiores de vida. Forças de frequências variadas, relacionadas em cadeias de ação e reação uma vez que já foram reduzidas pelos dispositivos da função minorativa de um precursor sombrio. Reivindicar a diferença pura das forças não relacionadas de um estado integrado é reverter a potência do sombrio precursor que encerra as forças nos estados ressonantes da realidade atualizada no tempo e no espaço.

14 Slavoj Zizek – Vivendo no fim dos temos

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UNIDADE 5. Solilóquio da diferença

"Quem aparece diante da questão: que é esta realidade: o homem. O homem com suas categorias, com seus afetos, com suas ações e paixões, com suas regras. Este mesmo, que no alvorecer do século XI convivia com perturbações no fogo, no céu, nas profundezas da terra – e se submetia às anomalias das crônicas monásticas, este mesmo que se deixava envolver pela angústia devido à aproximação do ano 1000, que assinalava os mil anos da morte de Deus. E que tornava o céu uma turbulência, um desregramento colérico. Um preparativo para o fim do mundo. Este mesmo, que se aproxima do ano 2000, convivendo com a física quântica, penetrando no silêncio em movimento das proteínas e dos ácidos nucleicos; das viagens e das crônicas marcianas; que repensa o campo social em termos de ondas de repetição que se propagam nas diferenças do inconsciente produtivo; que faz da obra literária um convívio tenso com os cristais do tempo, com as formas virtuais; que comanda o som, a luz, e que viaja com as imagens, que implanta no mundo uma ótica espetacular e um sonoro múltiplo. Este mesmo homem, submetido à fragilidade de seu corpo, de seu organismo tecido pelas combinatórias das moléculas carboníferas. Em perplexidade com a morte, conjugado com a esperança que deserta dele, em desespero com a cisão imperativa do tempo, atormentado pela dor que contamina seu corpo frágil, contaminado pela perturbação de sua alma. Perseguido por fantasmas: por simulacros que atravessam seu sistema nervoso, que arrefecem sua coragem, que o entregam ao desespero e à loucura.

Este homem, entre o divino, e que alça os ares; e os pés presos, que serpenteia na terra. De um lado, fantasmático, inocente, foragido das cavernas; de outro, potente, guerreiro para lá do bronze – no silício: fabricando, maquinando, combinando, micro-computando – depara-se com o fora absoluto, com o impensado, com o século XXI, além de seus saberes e de seus poderes, mas já entendendo que a informação é o seu princípio, o que o individua, pela operação de troca energética, atualizando suas potências, criando disponibilidade e comunicação, que o envolve e o amplifica. Ser estranho e magnífico, sucessão e ressonância no tempo, que se duplica, que se desdobra na tecnologia, está em permanente crescimento de tensão e prolongamento”(Claudio Ulpiano).

Chegamos ao ponto de onde teremos que recolher as pistas deixadas pelo processo de individuação que relacionou as frequências num estado de coisas não integrado, onde as relações se estabelecem a partir da ressonância entre as forças, em uma cadeia que se estende em partes relacionadas que vão se multiplicando através codificações ramificadas,. Numa dessas ramificações foram estruturadas as formas de vida, em cadeias ode o carbono formatou os filamentos que engendraram o organismo vivo e a linguagem passou a codificar os singnificados. Se pensamos a individuação como o salto para fora de um

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estado metaestável, porem sem recorrer aos fundamentos de uma relação que já reivindica a identidade entre os termos, que liga todos os efeitos a uma causa determinada, podemos trata-lo como um efeito sem causa. A partir daí o percursor sombrio, aqui já referido em outras oportunidades, assume o estatuto não causal de função minorativa do ponto de vista, através do qual todo o mundo se ordena e se é capaz de seguir em uma série infinita onde a diferença pura assume a dimensão de uma potência cuja base relaciona as forças a expoentes diversos. O salto é o salto no sítio e na inflexão das forças ressonantes. O percursos sombrio seria então o vértice do ponto de vista. Inflexão que articula as forças nas formas do real. Ressonância que subsiste da função minorativa a reunir as forças e os significados em um crivo, como espaço circunscrito no sítio onde se movimenta o sujeito e o mundo a ele relacionado. Não existe realidade fora do crivo que reúne as forças em formas relacionadas na ilimitada anamorfose que faz as forças saltarem do seu estado caótico e de pura diferenciação, e os significados assumirem sua capacidade de relacionar o sujeito e o estado de coisas, dando início as séries do mundo. Não existe luz sem o olho que grava os reflexos dos corpos opacos na retina. Não existe imagens na retina sem a luz que invade as formas e produzem a visão. Não existe vida objetiva sem o mundo e o mundo sem a vida existe simplesmente como uma mera quimera, onde da geometria fractal da multiplicidade da matéria que preenche a realidade é subtraído o componente virtual que anima cada nó de tendências atualizadas no espaço e no tempo, tornando o mundo objetivo um quadro estático e inerte que alimentou os “ideais positivistas” de algumas gerações, mas não possui mas a mesma eficácia para gerações posteriores, onde a objetividade já não consegue se abrir assim tão facilmente aos sujeitos da significação a não ser que já traga seu próprio significado ou suas linhas de enunciado. 15

O século XVI foi definitivo na transformação do olhar que se lançava sobre a realidade do mundo e do sujeito que o habitava. Se em um determinado momento procurava-se os segredos que penetravam as coisas ditas o dizer assume um estatuto ao lado das coisas e passa a construir o mundo junto com elas. Longe do que se imagina ser uma subjetivação do estado de coisas, o pensamento moderno se constitui a partir da possibilidade de se estabelecer o conhecimento das coisas de onde passam a brotar os significados que conferiram as probabilidades e as certezas dos acontecimentos. “Ainda que a natureza das coisas continuem recheadas de imprecisões, os laços que começam a ser estabelecidos no interior do processo de conhecer o estado de coisas instauram no espírito uma relação de significação”.16

O trabalho da razão passa a ser tornar as operações de conhecimentos possíveis numa rede de significação que traz com ela um estado de coisas. “E por isso mesmo, o saber do século XVI deixa a lembrança deformada de um conhecimento misturado e sem regra, onde todas as coisas do mundo se podiam aproximar ao acaso das experiências, das tradições ou das credulidades. Doravante as belas figuras rigorosas e constringentes da similitude serão esquecidas. E se tomarão os signos que as marcavam por devaneios e encantos de uma saber que ainda

15 Para a discusão sobre os enunciados o sentido que esse conceito assume em Focucault, ver Gilles Deleuze – Foucault – Um novo arquivista16 Michel Foucault – As palavras e as coisas.

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não se tornara razoável. (...) e, enquanto a natureza é plena de exceções e de diferenças, por toda a parte o espírito vê harmonia, acordo e similitude. (...) A eles se juntam – efeitos e por vezes causas. (...) Só a prudência do espírito pode dissipá-los (ídolos e confusões da linguagem), desde que renuncie a sua pressa e ligeireza natural para tornar-se penetrante, e perceber enfim as diferenças próprias à natureza. (...) é o pensamento clássico excluindo a semelhança como experiência fundamental e forma primeira do saber, denunciando nela um misto confuso que cumpre analisar em termos de identidade e de diferenças, de medida e de ordem”17.

Falar do pensamento do século é retomar a sua trajetória a partir de um novo “ponto de vista”. Essa foi a estratégia de Deleuze ao resgatar determinados enunciados e efetuar alianças que permitissem retomar a potência de cada um deles em uma ausência que pudesse fazer germinar fora do seu solo original. Extirpando algumas “cepas” ele foi capaz de restituir a potência em um novo estado de coisas a partir de um estatuto que fabricava uma série de novos “germes”. Quando Deleuze retorna ao Barroco e monta o “esquema” por onde passará a constituir novas relações, extraindo do espaço de significação original, após extirpar determinadas “cepas”, elementos novos que passarão a se combinar com linhas de significação de um pensamento que buscava localizar a razão ao lado das demais coisas em um estado natural. Como uma parte entre todas as outras onde termos combinados e os elementos do mundo perderam seu encantamento uma vez que a operação do espírito não mais seria condição de dizer cada unidade que se abria a percepção, sem excluir a diferença intrínseca presente em todo o processo. A legibilidade do mundo não mais poderia ser separada da sua visibilidade, expondo o que vê, o visto, e o que lê e o lido, combinado a partir de uma mesma topologia, mas afirmando tipos diferentes em cada série combinada. Enuncia-lo, então, demandaria enfrentar, definitivamente a aporia da diferença. A partir daí, o conhecimento do mundo passa a ser obtido pela comparação de duas ou várias coisas entre si, e não carece mais da expugnação da falta de semelhança entre os termos. Como encarar essa diferença, passa ser a questão fundamental. “(..) doravante, toda semelhança será submetida à prova da comparação, isto é, só será admitida quando for encontrada, pela medida a unidade comum, ou mais radicalmente, pela ordem, a identidade e a série das diferenças (...) A atividade do espírito não mais consistirá , pois, em aproximar as coisas entre si, em partir em busca de tudo o que nelas possa revelar como que um parentesco, uma atração ou uma natureza secretamente partilhada, mas ao contrário, em discernir: isto é, um estabelecer as identidades, depois a necessidade da passagem a todos os graus que dela se afastam (...) obter pela intuição uma representação distinta das coisas e apreender claramente a passagem necessária de um elemento da série àquele que se lhe sucede imediatamente”. 18

Assim o conhecimento passará a se comportar como uma inflexão que inclui o acontecimento em uma linha ou um ponto qualquer e esse ponto passará a se comportar como “ponto de vista”: “acontecimento da coisa ao predicado da noção, ou como do “ver” ao “ler”: o que se vê sobre a coisa ou que se lê em seu

17 Ibdem18 Ibdem

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conceito ou sua noção. “O conceito é como uma assinatura, uma clausura (...) é a inclusão, isto é, a identidade do acontecimento e do predicado”. 19 Se tentarmos sair dessa clausura da razão expomos o estado de coisas a uma série infinita e solipsista que tenderá a explorar, sempre, uma sensação original a partir da qual se constrói toda a rede de semelhanças e de diferenças. A superação desse solipsismo só poderá ser efetuada a partir da idéia de que cada forma, independente de suas relações, possam ser pensadas como “absolutos” ou “primeiros possíveis”, cada uma incluindo a si própria e só incluindo a si, não sendo um todo e não tendo partes, não tendo estritamente qualquer relação com outra. “São puros disparates, absolutos diversos que não podem contradizer um ao outro, pois não há elemento que um possa afirmar e outro negar. Eles estão em não-relação, diria Blanchot”.20 A partir daí a relação entre eles passa a se dar no processo do conhecimento e da produção de conceitos a partir de um síntese que quantifica e qualifica uma série diferenciando os conteúdos por um esquema de repetição, mas que encontra um espaço original onde se entrecruzam sistemas heterogêneos, que são os diversos lugares que representam pontos singulares, como um “Lado de Fora” onde se dá a pura emissão de singularidades como pontos de indeterminação de um “jorro ininterrupto de novidade”. Lugar onde há apenas “multiplicidades raras, com pontos singulares, lugares vagos para aqueles que vêm, por um instante, ocupar a função de sujeitos, regularidades acumuláveis, repetíveis e que se conservam em si”. 21

A unidade do mundo passa a ser então unidade formal, uma vez que cada parte absoluta é incapaz de contradizer a outra, mas entra em relação com esta a despeito de sua absoluta diferença. Naturezas absolutamente distintas, não semelhante e nem contraditórias, apenas diferentes que se definem sob uma relação entre coisas e sujeitos que as percebem. E como se inscreveriam as palavras e seus significados nessa relação de naturezas distintas?

Palavras e coisas, pensemos cada uma delas como membros de duas classes. Uma a classe de conteúdos relacionados a um sujeito qualquer que os produz quando as pronuncia, escreve ou lê. A outra como uma classe de conteúdos percebidos por esse mesmo sujeito mas que independem deste quanto a sua produção. Seguindo na tentativa de distinguir tais conteúdos, somos forçados, de início, a imaginar que no que se refere as palavras, existe uma diferença entre aquelas que são pronunciadas ou escritas e aquelas que são lidas, uma vez que para pronunciar ou escrever palavras o sujeito deve apelar para um conjunto de códigos localizados no interior de um espaço de significação que o permita fazer surgir as letras grafadas no papel ou produzir os sons dessas letras através do seu aparelho fonético. Já as palavras lidas podem ser tomadas em silêncio sem que o aparelho fonético participe do ato de sua captura, bem como independem de códigos interiores ao espaço de significação, caso o sujeito que percebe ou produz os significantes não tenha familiaridade com as letras dispostas e que sejam por ele percebidas, e dessa forma elas imediatamente se tornaram parte da classe daqueles conteúdos percebidos pelo sujeito mas independentes dele no que tange a sua produção. Se chamarmos cada um desses conteúdos

19 Gilles Deleuze – A dobra – Leibniz e o barroco.20 ibidem21 Gilles Deleuze - Foucault.

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independentes do sujeito quanto a sua produção, de significantes, e de significado, a relação de dependência da produção desse mesmo sujeito, podemos inferir, nesse caso, que o significante seria qualquer coisa que independe do sujeito no que diz respeito a sua produção, e que o significado, somente as coisas que dependem do sujeito para serem produzidas.

Seguindo na tentativa de classificar tais conteúdos diferentemente, poderíamos pensar que o traço distintivo que demarca sua diferença entre palavras e coisas nos permite dizer que uma coisa é tudo que pode ser capturado pela percepção sensível de um sujeito qualquer, mas uma palavra só aparece quando uma coisa qualquer percebida pelo sujeito pode ser lida através dos códigos localizados no interior do espaço de significação onde essas são capturadas. Assim, concluímos que existem duas classes de conteúdos: os visíveis e os legíveis. O visível seria qualquer coisa que pode ser apreendida pela percepção sensível de um sujeito qualquer e o legível qualquer coisa que possua um significado para o sujeito que a percebe. Significante seria, então, tudo aquilo que pode ser percebido pelo sujeito. Já o significado seria tudo aquilo que pode ser lido pelo sujeito de acordo com o os códigos de significação. A partir daí poderíamos afirmar que os significantes independem do sujeito para serem produzidos, já os significados são dependentes do sujeito para sua produção. Se chamarmos de palavra tudo aquilo que possua significado, podemos inferir que não existe palavra sem significado. Assim uma coisa só pode ser tida como palavra se possuir um significado para o sujeito que a percebe. Como essa distinção está centrada no espaço de significação, podemos afirmar que algumas coisas podem figurar, simultaneamente como palavras e como coisas, pois certas coisas só são palavras caso possuam um significado relacionado aos códigos de significação de um sujeito qualquer e assim, pode ser que aconteça que determinados sujeito os possuam e outros não, e para estes que não possuam tais códigos as palavras figuraram como um coisa qualquer. Tal simultaneidade designa uma diferença de natureza entre os significantes e os significados

Cada palavra pode ser, simultaneamente, palavra e coisa qualquer, já uma coisa qualquer não possui essa capacidade de simultaneidade, pois a partir do momento que nela é lido um significado ela se torna palavra. O significado só aparece, então, quando a coisa se repete como um significante ao sujeito que a percebe e forma, a partir daí, uma relação que permitirá identifica-la a partir da incidência de uma atenção que a destaca do conjunto de impressões globais, fazendo com que possa ser reconhecida em qualquer tempo quando ela venha a se manifestar novamente. Portanto, o processo de significação, ou seja, o ato de produzir significados a partir das coisas que aparecem, ou de transformar coisas em palavras, sempre será dependente da relação que se estabelece entre os significantes, o sujeito que os percebe e os codifica e o significado produzido através de palavras. Dito de outra forma, no processo de produção de significados destacam-se o sujeito da percepção, a coisa percebida, a forma como esse sujeito a significa e o espaço combinatório onde se manifestam as formas possíveis dessa combinação entre os termos do processo. O mundo inteiro, ou dito de outra forma, o estado de coisas geral só ganha sentido no interior desse processo e através da relação que se estabelece no seu interior. Fora dele o estado de coisas não passa de uma multiplicidade caótica e indistinguível do

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conjunto de todas as percepções possíveis. A extensão do espaço combinatório determina, então, a existência dos conteúdos do mundo e do sujeito, e fora desse espaço não existem coisas, sujeitos ou significados. Não há como prescindir de nenhum dos termos da combinação e a sua coexistência é a condição para qualquer estado de coisas, formando assim a nervura interna que dá lugar ao sentido, presa a uma rede e tecida em sua própria trama, onde se pode obter uma imagem distinta das coisas e apreender claramente a passagem necessária de um conteúdo da série a um outro qualquer.

Se aproximarmos a ideia de um conjunto de conteúdos de naturezas absolutamente diferentes, cada uma incluindo a si própria e só incluindo a si, a ideia de um sistema integrado, onde as forças existentes são forças livres e não relacionadas, e ao mesmo tempo pensarmos a extensão do espaço combinatório onde coexistem os conteúdos dos estados de coisas, como um sistema não-integrado de forças relacionadas e ressonantes, chegamos a uma convergência entre a tentativa de descrever o processo de individuação e a descrição da extensão do espaço combinatório que determina a existência do estado de coisas. É nesse espaço de ressonância que os conteúdos são associados. Fora dele, eles se encontram inteiramente separados e somente quando combinados em um espaço extensivo a partir de suas inflexões passam a fazer parte de uma série onde são estabelecidas as repetições que permitem distinguir as coisas por uma operação que resguarda as semelhanças que permanecem numa cadeia de coisas que se repetem para o sujeito do conhecimento a elas relacionadas.

Nesse ponto voltamos ao sujeito e ao ponto de vista que inclui o mundo e a si mesmo num sítio de visão onde se combinam as coisas e as palavras e onde vai sendo registrado as imagens deste processo para que se possa estabelecer as semelhanças, através da comparação das imagens, a partir das quais as coisas podem ser lidas e ditas nos seus significados. Cada significado está associado a uma visão presente do sujeito que fixa as imagens que se afirmam por sua vivacidade, destacando-as das demais durante o processo de sua repetição ao longo do sítio da visão. Assim, a gênese do estado de coisas individuadas converte as relações diferenciais em espécies  distintas e as singularidades nas partes e figuras extensas relativas a cada espécie, diferenciando cada uma delas e as fazendo ressoar em toda a cadeia de coisas que se repetem. Nessa coleção de percepções distintas se constitui o sujeito que ultrapassa a experiência perceptiva a partir de uma síntese que Kant denominava de “síntese transcendental pura”, quando afirmara: “Na verdade, é uma lei meramente empírica aquela em virtude da qual representações que frequentemente se seguem ou se acompanham acabam por associar-se entre si e por formar, assim, uma ligação tal que, mesmo sem a presença do objeto, uma delas faz passar o ânimo a uma outra, segundo uma regra constante. Mas essa lei da reprodução supõe que os próprios fenômenos estejam realmente submetidos a uma regra desse gênero e que, no diverso das suas representações, ocorra um acompanhamento ou sequência em conformidade com certas regras; pois, de outro modo, nossa força imaginativa empírica nada mais teria a fazer que fosse conforme ao seu poder, e por, conseguinte, permaneceria afundada no interior do ânimo como um poder morto e desconhecido de nós mesmos. Se o cinabre fosse ora vermelho, ora preto, ora leve ora pesado (...), minha força imaginativa

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empírica não teria ocasião de receber no pensamento o pesado cinabre com a representação da cor vermelha; ou se uma certa palavra fosse atribuída ora a uma coisa e ora a outra, ou ainda se a mesma coisa fosse chamada ora de um nome ora de outro, sem que houvesse alguma regra a qual os fenômenos já estivessem submetidos por si mesmos, nenhuma síntese empírica da reprodução poderia ter ocorrido. É preciso, portanto, que haja algo que possibilite essa reprodução dos fenômenos, e que seja o fundamento a priori de uma unidade sintética necessária (...) Se agora pudéssemos mostrar que mesmo as nossas mais puras intuições a priori não nos fornecessem conhecimento algum, a não ser que contenham tal ligação do multíplice – ligação que nos possibilita uma síntese completa da reprodução, de modo que essa síntese da imaginação está também ela, e anteriormente a toda experiência, fundada sobre princípios a priori -, temos de admitir uma síntese transcendental pura da mesma, que fundamenta a possibilidade de toda a experiência (a qual pressupõe necessariamente a reprodutibilidade dos fenômenos).” 22

A novidade da crítica de Kant serve para expor um espaço transcendental onde se dão as sínteses puras. Espaço a priori em relação ao mundo e ao sujeito que o significa. Espaço dos lugares vagos para aqueles que vêm, por um instante, ocupar a função de sujeitos, regularidades acumuláveis, repetíveis e que se conservam em si. Esse topos onde se processam as sínteses é o “sem fundo” de um abismo indiferenciado que nos livra tanto de um subjetivismo quanto de um objetivismo a partir do qual se pretenda reivindicar qualquer prioridade entre os conteúdos que ali se relacionam de forma dispersa. Se seguimos de perto a formulação desse espaço onde se relacionam as forças e se constituem as formas, que são tidas como forças relacionadas, chegamos ao espaço da relação entre formas distintas, uma delas relacionada ao conjunto de coisas, ainda sem seu significado e a outra relacionada ao conjunto de coisas que já possuem um significado qualquer. Como parte de um método que pretende nos levar a um diagrama dessas forças relacionadas nas formas, resgatando a potência da diferença como a potência de absolutos diversos em não-relação e em um estado integrado, devemos situá-lo nos limites das transformações operadas nesse início do século XXI, século da disrupção das formas ou das forças relacionadas, capaz de integra-a em um espaço rarefeito de não relação, onde os velozes movimentos dos conteúdos virtuais conectados em uma grande rede efetua transportes inusitados de forma lacunar e retalhada, num espaço de dispersão.

Se o século XVI representou uma torção da perspectiva por intermédio da transformação do olhar que se lançava sobre a realidade do mundo pelo sujeito que o habitava, seria no século XIX que esse sujeito viria a realizar a torção do espaço e do tempo representados como a priori da realidade do estado de coisas e de sua formulação, liberando a potência que anima as forças em cada uma de suas relações não-integradas; o absoluto puro de uma não-relação ou de uma diferença absoluta.

Para facilitar nossa tarefa, chamaremos o conjunto de coisas sem significado, de conteúdos: misturas de corpos, ações e paixões, e ao conjunto de coisas com

22 Kant – Crítica da razão pura.

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significados, de expressões: conjunto de enunciados discursivos. A combinação e formalização dessas forças chamaremos de formas de conteúdo e de formas de expressão. Assim, as formas de conteúdo seriam o conjunto das modificações corpóreas, enquanto as formas de expressão poderiam ser entendidas como o conjunto de transformações incorpóreas. As formas de conteúdo seriam constituídas pelas ações e paixões dos conteúdos e dos corpos, enquanto as formas de expressão pelos atos incorpóreos, ou seja, os expressos do enunciados23. A formas de expressão seriam constituídas, então pelo encadeamento dos expressos, enquanto as formas de conteúdo pela trama dos corpos. Entenda-se aqui conteúdo, como uma mistura de corpos e de paixões que afetam esses corpos, um fenômeno múltiplo, composto de uma pluralidade de forças irredutíveis em lutas nos corpos, numa “unidade real mínima” que mantem os corpos juntos, limite ou interstício dessa relação.

Quando traçamos a diferença entre a natureza dos significantes e dos significados abrimos com essa diferenciação o espaço fundamental onde se processaram as intervenções recíprocas entre as formas de conteúdo e as formas de expressões, que seguem os significantes e os significados na diferença intrínseca de suas naturezas. A diferença aqui vem se relacionar a uma diferença topológica na formação do território ou lugar de sua relação, no sentido de uma intervenção recíproca onde pontos de inscrição são determinados pelos “graus de desterritorialização que quantificariam as formas respectivas e segundo os quais os conteúdos e as expressões se conjugam, se alternam, se precipitam uns sobre os outros ou, ao contrário, se estabilizam, operando uma reterritorialização”. 24 Os processo de desterritorialização e reterritorialização se dão em um espaço de emissão de singularidades que se distribuem de forma dispersa e heterogênea e a partir de linhas de variação das forças que se relacionam nas formas. Contudo esta relação se estabelece como uma pura emissão de singularidades como pontos de indeterminação no “lado de fora” de cada uma das forças. Lugares vagos que serão ocupados, por um instante, pelas forças se insinuam umas nas outras, num espaço de disseminação onde cada força se manifesta em sua exterioridade de afetar e ser afetada. Chamaremos aqui a potência de ser afetada de “matéria da força” e de “função da força”, a potência de afetar. A função das forças devem ser tomadas independentemente das formas concretas em que elas se encarnam, bem como sua matéria, ou seja, a potência de ser afetada, deve ser tomada como pura matéria, não-formada, independentemente das substâncias formadas, dos seres ou dos objetos qualificados nos quais elas entrarão. “(...) física da matéria-prima ou nua”. 25

Este espaço ou (não) lugar onde se estabelecem as relações entre as forças, não se confunde com as forças nem com as formas que as efetuam ou atualizam suas relações, pois é o “lado de fora” das forças onde estas não se relacionam ainda, consistindo nas suas respectivas maneiras de fixar tais relações, localizando e globalizando difusões e regularizando pontos singulares. Portanto, o interstício dessa relação não implica ainda nenhuma forma comum, nem mesmo uma correspondência, mas apenas o elemento informe que faz as forças gozarem de

23 Carlos Henrique Machado – Introdução a discursos sobremodernos 24 ibidem.25 Gilles Deleuze - Foucault

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uma espontaneidade e de uma receptividade que lhe são próprias, embora não-formais, obscuras e mudas. Deste modo poderíamos afirmar que a potência da força de afetar e ser afetada seria um “índice” de sua multiplicidade ou o “ser múltiplo” da força, elemento informe e não relacionado que constitui o “lado de fora” da relação entre as forças, sendo um espaço móvel, evanescente e difuso. Uma vez que as forças estão em um “perpétuo” devir, nas relações formais que se estabelecem em um sistema não-integrado de ressonâncias ela estará sempre em relação com outra força e assim carecem de um “lado de fora” irredutível, que não tem forma, feito de distâncias indecomponíveis através das quais uma força age sobre outra ou recebe a ação de outra. Assim, esse devir das forças não se confunde com as suas formas, já que opera em outra dimensão, longínqua e sombria. “Um lado de fora mais longínquo que todo o mundo exterior e mesmo que toda forma de exterioridade, portanto infinitamente mais próximo (...) espaço do Lado de Fora, precisamente onde a relação é uma não relação, o lugar um não-lugar, a história um devir”. 26

Entendendo o processo histórico como um devir que relaciona as forças em um movimento de desterritorialização e de reterritorialização, que se dá fora do espaço de ressonância onde as forças já se encontram relacionadas nas formas fixas do estado de coisas, as passagens, viradas, curvas, saltos ou rupturas se dão numa dimensão da inflexão que une pontos singulares dispersos, recolhendo-o em um crivo que reagrupará uma nova relação de forças, recolhendo-as como a ação de uma membrana que escava e atrai uma interioridade de um estado de pura dispersão. Dizendo de um outro modo, toda formação histórica representa uma relação de forças nas formas fixas de um estado de coisas, com forças do Lado de Fora, dispersas como puros pontos notáveis, singularidades nômades, dobrando-as para dentro e fazendo uma diferenciação formal dos lados, mas traçando um espaço do lado de dentro coextensivo a toda linha do lado de fora. As forças limitadas no lado de dentro pelas formas entram em relação com as forças do lado de fora. “É todo o lado de dentro que se encontra ativamente presente no lado de fora sobre o limite dos estratos. O dentro condensa o passado (longo período), em modos que são de forma alguma contínuos, mas o confrontam com um futuro que vem de fora, trocam-no e recriam-no”. 27

Assim, no processo histórico a atualização das formas ressonantes no tempo e no espaço, a partir de todo o nó de tendências que figura como o potencial virtual de cada estado de coisas em seu estado integrado, relacionam-se as formas de conteúdo e as formas de expressão, como visibilidades e enunciados que interagem com forças que vem sempre de fora, de um forma mais longínqua que toda forma de exterioridade. “Atualizar-se é, ao mesmo tempo, integrar-se e diferenciar-se. As relações de forças informes (não-relacionadas, simples ou puras) se diferenciam criando duas formas heterogêneas, a das curvas que passam na vizinhança das singularidades (enunciados) e a dos quadros que as repartem em figuras de luz (visibilidades). E as relações de forças se integram ao mesmo tempo precisamente nas relações formais entre ambas (formas de conteúdo e formas de expressão), de um lado a outro da diferenciação”. 28

26 ibidem27 ibidem28 ibidem.

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Seguindo essa relação colocada por Deleuze chegamos a uma combinação da forma-Homem, nos limites que as mantem relacionadas, com as forças do lado de fora, combinação esta que nos dará um extrato específico, ou um território de significados.

Fora da inclinação mínima onde as forças livres vem se tocar e produzir as formas do mundo e da história da vida, só existe as potências não relacionadas ou os índices das forças na metaestabilidade de sua espontaneidade. Diferença absoluta, pura multiplicidade e indeterminação de frequências não-relacionadas, informais e infinitamente multiplicadas. Assim, para entendermos como cada forma aparece e se desempenha é preciso verificar como as forças relacionadas em cada forma entram em relação com as força de fora. Voltando-nos para as formas históricas e aos estratos das forças relacionadas a forma-Homem, “trata-se de saber com quais outras forças as forças no homem entram em relação, numa ou noutra formação histórica, e que forma resulta desse composto de forças”. 29

Deleuze aponta três tipos de relação entre as forças no homem e as forças do fora, cada um apontando para uma determinada formação histórica e seu território correspondente. Das relações das forças no homem com o infinito, surgiria a forma-Deus, que vem dar conta do infinito que atravessa toda a história do pensamento clássico que viria desembocar no século XVII. No século XIX, ao desfazer a forma-Deus o pensamento passa a relacionar as forças no homem com as forças da finitude, representadas por novas formas de organizar a vida o trabalho e a linguagem, que irão desembocar em novas ciências como a biologia, a economia política e a linguística, dando a finitude um status constituinte, algo incompreensível para antiguidade clássica que se acostumou em elevar as foças e suas relações formais ao infinito. Desse encontro de forças surgiria a forma-Homem, quando as forças no homem passam “a enfrentar e se agarrar as forças da finitude enquanto forças do fora: é fora de si que ela (a força no homem) dever se chocar com a finitude. Em seguida, e só em seguida, num segundo tempo, ele (homem) passa a vê-las como sua própria finitude, ele toma necessariamente consciência delas como de sua própria finitude”. 30 Já no final do século XIX a forma-Homem começa a ser abalada por uma tendência de apontar que a substituição da forma-Deus pela forma-Homem não passa de um estágio precário que careceria de um “fiador” para a identidade na ausência de Deus. As forças de finitude fizeram com que o homem só pudesse existir através da disseminação dos planos de organização da vida, o que limitaria a potência da força de viver. A pergunta que se segue na argumentação de Deleuze indaga acerca de qual nova forma poderia então surgir que não fosse mais nem Deus nem o Homem, e com que foças do fora elas se relacionariam. Seguindo o pensamento de Nietzsche ele aponta o super-homem como uma problematização capaz de liberar a potência de vida dentro do próprio homem, que ele mesmo aprisionou, em proveito de uma nova forma. “Quais seriam as forças em jogo, com as quais as forças no homem entrariam em relação? Não seria mais a elevação ao infinito, nem a finitude, mas um finito-ilimitado (...) toda situação de força em que um número finito de componentes produz uma diversidade

29 Ibidem.30 Gilles Deleuze – Focault.

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praticamente ilimitada de combinações. (...) das cadeias do código genético, nas potencialidades do silício nas máquinas de terceira geração, assim como nos contornos das frase na literatura moderna (...) que escava uma língua estranha em sua língua através de um número ilimitado de construções gramaticais superpostas, (que) tende a uma expressão atípica, agramatical, como que visando ao fim da linguagem”. 31

O percurso da humanidade no tempo e no espaço, onde as forças livres passam a ser relacionadas nas ressonâncias das formas do mundo, pode ser tido em dois momentos: vida e história. Se admitirmos que todo processo histórico vem relacionar formas ressonantes há de se perguntar pela relação primitiva que relacionou as forças na matéria inorgânica; forças livres, em sua diferença absoluta, bem como a relação de formas já relacionadas no mundo e no estado de coisas com as forças do carbono na aparição da forma-Vida. Se cada elemento no seu estado de força livre pode ser tido como uma diferença pura e absoluta de uma essência que só repete a si mesma, para supormos o encadeamento dos sistemas ressonantes, prescindiríamos de um precursor que operasse a desintegração desse estado estacionário. Se não pretendermos ceder a tentação de imaginar um primeiro motor, fora dessa dimensão integrada, precisaremos situar a origem da relação das forças livres na própria dimensão integrada e metaestável capaz, por si só, de produzir as dobras que passaram a limitar a função das forças constituindo sua matéria, sem apelarmos para uma hipótese ad hoc. Basta que para isso pensamos a individuação sem recorrermos aos fundamentos de uma relação que já reivindica a identidade entre os termos, que liga todos os efeitos a uma causa determinada, o que conferiria a ela um status de podemos efeito sem causa. O Precursor sombrio figuraria então, apenas como a tradução do estatuto não causal de função minorativa do ponto de vista, através do qual todo o mundo se ordena e se é capaz de seguir em uma série infinita onde a diferença pura assume a dimensão de uma potência cuja base relaciona as forças a expoentes diversos, salto no sítio e na inflexão, onde não mas existe forças que não sejam relacionadas.

Uma vez que as forças não relacionadas de um sistema metaestável estariam em um estado de absoluta diferença, tais forças só poderiam figurar a partir da sua função como uma força sem matéria, onde subsistiria apenas a capacidade de afetar e não de ser afetada. Ao decompormos as ações das forças em função e matéria, respectivamente a potência de afetar e de ser afetada, situamos as forças livres como forças sem matéria e apenas com função, uma vez que estas subsistem em sua absoluta diferença e defasagem. As formas do mundo e dos sistemas não-integrados aparecem a partir da ruptura da metaestabilidade de um sistema integrado de forças quando estas passam a serem agitadas pela função que as fazem inclinar minimamente até se tocarem nas relações formais do espaço extenso e do tempo da sucessão, operando uma redução da absoluta diferença, na equalização que rompe a metaestabilidade e introduz as inflexões dos pontos de vistas das formas ressonantes no mundo. Diríamos que as formas do mundo aparecem a partir das ressonâncias entre forças livres, numa relação formal de afetar e ser afetado onde a potência de uma força livre composta apenas de função se converte em uma matéria de ressonância. Forças

31 Ibdem.

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coexistentes em uma dimensão integrada passam então a entrar em uma relação que inaugura uma variação constituinte das fases do seu ser absolutamente diferente e defasado. A esse estado integrado e metaestável do ser absolutamente defasado, chamamos de caos ou lugar do lado de fora das formas, onde coexistem forças sem interações, caracterizando um estado aberto a todas as possibilidades e portanto podendo ser referido como o estado dos incompossíveis, onde cada força é incompossível na medida em que elas “se impedem mutuamente de existir” 32 enquanto matéria, ou seja, enquanto capacidade se serem afetadas. Se apelamos a um sentido psicológico, poderíamos nos referir ao caos como um estado de completo aturdimento.

O dinamismo das forças do caos que pode ser tido como “agitações de espaço, buracos de tempo, puras sínteses de velocidades, de direções e ritmos” 33 de um campo intensivo onde a “intensidade é tão-só a potência da diferença” 34. A supersaturação desse espaço sem extensão gera uma inclinação mínima do movimento onde as potências declinam minimamente até tocarem-se em um espaço e tempo infinitesimal e produzirem através de sua matéria a inflexão das formas do mundo, as espécies e suas partes. Os novos paradigmas da ciência do século XIX, a partir do desenvolvimento da física de não-equilíbrio e da dinâmica dos sistemas instáveis associados a ideia de caos, abriram caminho para pensarmos esses processos de auto-organização a partir das estruturas dissipativas sem que a hipótese do precursor sombrio se transforme em um elemento transcendente para garantir a coerência da descrição do processo de formalização dos estados de coisas do mundo. Se pensarmos um sistema integrado, fora do alcance das ressonâncias onde as forças coexistem como forças livres e sem interação, como um estado estacionário de não-equilíbrio, onde apenas subsiste a capacidade e afetar como potência ou frequência da força, somos capazes de admitir um estado sem interação entre as forças livres, mas em um absoluto movimento de expansão. Ao tratarmos esse estado estacionário considerando a já existência da produção de entropia transferimos o problema de termos que assumir uma premissa ad hoc, responsável pela passagem de um estado sem interação para um sistema não integrado onde as forças interagem entre si, para a tarefa de compreendermos como é possível a produção de entropia em um estado de forças não relacionados. Se pudermos supor a possibilidade da matéria da força adquirir a propriedade de ser afetada, deixando de “ser cega” e começando “a ver”, tornando-se sensível a si mesma e as demais forças, podemos descrever o sistema integrado como um estado estacionário onde as forças desprovidas de interação passam a adquirir a propriedade de serem afetadas num regime de etapas catalíticas, caracterizando as estruturas dissipativas que determinarão os diferentes regimes de atividade da matéria das forças a partir da dinâmica das correlações entrópicas.

Não basta tomarmos a matéria da força na perspectiva da ideia empirista da divisão da qualidade dos corpos materiais em qualidades primárias (solidez, a extensão, formato, movimento e repouso, número, tamanho, situação, textura e movimento) e secundárias (cores, os sons, os gostos, os aromas, o calor e o frio),

32 Edgar Marques – A origem da incompossibilidade em Leibniz.33 Gilles Deleuze – A ilha deserta – O método de dramatização34 ibidem.

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precisaríamos decompor essas qualidades a partir da divisão entre função e matéria das forças, chegando a distinção entre dois estados. Um deles se caracterizaria como um estado estacionário onde as forças subsistem sem sua matéria qualitativa e onde apenas a potência ou a afeção figuraria como propriedade ou função não-relacionada de uma diferença absolutamente defasada, sem a possibilidade de se localizar qualquer fase como identidade ou unidade formal, mesmo que na forma de uma qualidade primária. O outro estado poderia ser descrito como um estado não-integrado onde as forças já se encontrariam relacionadas em suas inteirações a produzirem as formas individuadas que se desdobrarão nas qualidades. Sem a possibilidade de trabalharmos com a extensão onde se pudesse enumerar o modo como como o lugar é ocupado na interação de cada relação entre as forças, tal estado só poderia ser pensado como um campo intensivo que retêm as frequências absolutamente diferentes, uma vez que é a partir da ressonância que as interações dessas frequências intensivas relacionam as forças nas unidades de um múltiplo qualquer. Já que não existe matéria, não há de se falar em qualidade mas apenas de propriedades múltiplas, infinitamente diferentes, que surgem e desvanecem a todo instante sem deixar qualquer rastro, como se um estado de coisas nascesse e morresse a cada infinitesimal instante, sem a integração de um sistema dinâmico. Tal estado pode ser descrito como um fluxo de dissipações constituídas como um conjunto de virtualidades que existem, insistem e subsistem sem serem atualizadas ou integradas em qualquer forma.

Porém, uma vez reconhecida a distinção entre estados integrados e não integrados, a questão aqui passa a ser a do rompimento desse dualismo, com a recuperação das potências virtuais deste estado de integração a partir do processo dinâmico das forças relacionadas e do aumento da velocidade de sua circulação.

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Unidade 6 - A fratura morfológica do virtual ou o limiar do eterno

“Na Terra, o amor e a vida só parecem individuais porque tudo se rompeu lá com as vibrações de amplitude diversas. Não há no entanto, vibrações não conjugadas com um movimento circular contínuo (...) um escoamento perdido de luzes num espaço negro, que ela não seria mais do que essa irremediável perda de nós que um rio é (...) um rastro silencioso de uma natureza totalmente diferente (...) brilho de luz, precipitando-se ao encontro do mundo e do vazio (...) Através da perda os homens podem recuperar o movimento livre do universo, podem dançar e rodopia com uma embriaguez tão libertadora como a do grandes enxames de estrelas, mas com o violento dispêndio que assim fazem de si mesmos, forçam-se a reparar que respiram no poder da morte (...) fazer em si o vazio onde só subsistem forças". 35

“Esse tempo linear, irreversível, mensurável e previsível está sendo fragmentado na sociedade em rede, em um movimento de extraordinária importância histórica. No entanto, não estamos apenas testemunhando uma relativização do tempo de acordo com os contextos sociais ou, de forma alternativa, o retorno à reversibilidade temporal, como se a realidade pudesse ser inteiramente captada em mitos cíclicos, mas aleatório, não recursivo, mas incursor: tempo intemporal, utilizando a tecnologia para fugir dos contextos de sua existência e para apropriar, de maneira seletiva qualquer valor que cada contexto possa oferecer ao presente eterno. (...) a aceleração de praticamente tudo nas nossas sociedades, num empenho incansável de comprimir o tempo em todos os domínios das atividades humanas. Comprimir o tempo até o limite equivale a fazer com que a sequência temporal, e, por conseguinte, o tempo, desapareça”. 36

Iniciemos esse novo capítulo a partir de uma seguinte indagação: o espaço e o tempo precedem a existência ou são apenas ilusões? Tal questão não pareceria problemática a partir da simples observação da existência do estados de coisas no universo que nos rodeia como uma mudança de fase espaço-temporal, que significaria um nascimento em relação a um meta-universo no qual o espaço e o tempo seriam eternos. Essa passagem já suporia a existência dessa unidade em um sentido que denotaria um a priori a esse evento chamado de existência. Porém quando avançamos na tentativa de descrever esse meta-universo como

35 Georges Bataille - O ânus solar36 Manuel Castells – A sociedade em rede.

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um estado diverso ao das configurações das coisas a partir da sua existência, a suposição da presença de um espaço e de um tempo que a antecederiam mereceria, no mínimo, uma reformulação dos postulados espaço-temporais, caso pretendamos formular a hipótese de que o espaço e o tempo teriam um “ponto de partida”. Assim a questão se resumiria em verificar se o espaço e o tempo teriam uma origem definida ou seriam eles eternos na perspectiva de conter um pré-estado de coisas estacionário que se perturbado pudesse dar origem ao conjunto que denominamos hoje de universo. Se tomarmos o espaço e o tempo não como um a priori comum a todos os observadores mas sim como elementos que seriam partes da ação das forças quando da sua interação ressonante abrirmos a perspectiva de subordiná-los as formas individuadas. Assim, os processos, hoje, chamados pela ciência de processos irreversíveis, onde a flecha do tempo surge como a concretude do tempo e como um elemento que impede que determinados estados de coisas possam voltar ao um determinado estágio anterior, a partir da afirmação da existência dos processos irreversíveis associados às instabilidades dinâmicas, permiti-nos supor o nascimento do universo, tal qual hoje é conhecido o atual estado de coisas, propondo que tal universo teria uma idade mas que o espaço e o tempo, por seu lado, não teriam começo nem fim, pois estariam sempre subordinados às relações formais ou qualquer outra que se constitua a partir da dinâmica das forças.

A quantização das forças em um campo intensivo, ou seja, o processo de atribuição de valores discretos para um sinal cuja amplitude varia entre infinitos valores, abre caminho para a teorização da física contemporânea que atribui a um campo intensivo as propriedades de um intervalo eletromagnético cuja a variação infinita de uma força é referida como um acúmulo exponencial de energia negativa que pode assumir valores negativos tão grandes quanto se quiser. Este campo foi denominado como um "campo conforme",  do qual seria extraída a energia correspondente a criação da matéria, cujo campo massivo se caracterizaria pela energia positiva das partículas massivas e sujeitas as forças da gravidade. Não esqueçamos que a  matéria das forças, portanto, seria a capacidade virtual das forças de serem afetadas, já os incompossíveis de um campo intensivo onde apenas subsistiria a função da força que é a capacidade dessa afetar, estão livres do espaço e do tempo. Desdobrando essa descrição poderia se atribuir um sinal negativo a função da força e um sinal positivo a matéria da força. Se preferirmos as descrições da física das partículas diríamos que o  campo gravitacional, definido pelo "valor conforme", pode desempenhar o papel de um reservatório de energia negativa do qual seria extraída a energia correspondente a criação da matéria da força, através de um processo que transforma a gravitação em matéria e faça do nascimento do universo uma explosão de entropia.

Contudo, se pensarmos um sistema integrado, fora do alcance das ressonâncias onde as forças coexistiriam como forças livres e sem interação, como um "campo intensivo" em um estado estacionário de não-equilíbrio, onde apenas subsistiria a capacidade de afetar como potência ou frequência da força, somos capazes de admitir um estado sem interação entre as forças livres, mas em um absoluto movimento de expansão, que não careceria de sinais para marcação de sua

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frequência, face a sua integração. Toda a avaliação ontológica do rompimento desse estado metaestável com a constituição das formas individuadas pode incorrer em erros teóricos, cada vez que se tentar pensar a individuação de um estado metaestável a partir de um princípio reportado a um indivíduo já pronto, já constituído. “Pergunta-se apenas o que constitui a individualidade de um tal ser, isto é. o que caracteriza um ser já individuado. E porque se mete o indivíduo após a individuação, mete-se no mesmo lance o princípio de individuação antes da operação de individuar, acima da própria individuação”. 37 Como poderíamos tratar, então, um estado pré-individual, absolutamente defasado e seu elemento genético em relação ao atual estado de coisas, sem cairmos na tentação de referi-lo a partir das categorias de um ser individuado e já composto de fases? Como se daria o rompimento desse estado metaestável e caótico, onde as forças coexistiriam sem ainda se relacionarem, sendo portanto um sistema de não-equilíbrio integrado em um campo intensivo onde apenas a função da força subsiste como a capacidade da força em afetar?

Esse processo foi descrito como processo de individuação, guardando relação com o conceito da atualização das formas materiais no espaço e no tempo, onde as forças passariam a se relacionar nas ressonâncias. Essa ideia se apoia nas teses de Gilbert Simondon e é trabalhada por Deleuze ao longo de toda a sua obra, mesmo que através de terminologias distintas, como um movimento que levaria a passagem do pré-individual ao indivíduo, quando as diferenças de potenciais que se elevam ao infinito são repartidas nas formas individuais. Antes de se individuar essas diferenças aparecem como singularidades discretas que se “imbricam sem se comunicar”. É a partir da individuação que se estabeleceria uma comunicação interativa entre as ordens díspares, atualizando as energias potencias no ser fasado da matéria .

O primeiro passo para entendermos esse processo é a recusa de analisá-lo a partir do indivíduo formalmente já individuado, buscando sua gênese no princípio de individuação. Trata-se então de encontrar a ontogênese do ser nas forças, não enquanto formas materiais, mas naquilo que devêm enquanto diferença pura. Sendo livre e absolutamente diferente o devir das forças pré-individuais não se caracterizaria por nenhum fase, uma vez que a função da força é a potência de se defasar infinitamente como seu grau de liberdade. A metaestabilidade do estado pré-individual não se caracteriza por um estado de equilíbrio, uma vez que as forças não relacionadas possuem um grau de liberdade absoluto e, portanto, uma energia potencial absoluta, caracterizando assim um estado de não-equilíbrio. É através do processo de individuação que essa energia potencial se atualiza numa matéria que se ordena e reparte, constituindo assim suas espécies e partes no tempo e no espaço, a partir da capacidade de uma força ser afetada e se relacionar a si e a outras nas formas ressonantes dos sistemas não-integrados. A individuação seria, desse modo, a desintegração do estado de forças livres em sua metaestabilidade com a respectiva criação de uma matéria formal que se repartirá em qualidades e extensos. Uma vez atualizadas em sua matéria, a forças constituem as cadeias de interação das formas individuadas físicas e vitais, dependendo do tipo de relação

37 Ibdem.

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que se estabelece nesse retorno de formas descontínuas aptas a prolongarem-se em ciclos parciais.

Nesse ponto, há de se perguntar, entretanto, por um retorno que não seja o das formas individuais, mas sim das forças na sua eterna e absoluta diferença, vibração de amplitudes diversas não conjugadas que se repetem sem nunca repetir o mesmo. Nascimento e esvanecimento ilimitado. " A repetição do eterno retorno nunca significa a continuação, a perpetuação, o prolongamento, nem mesmo o retorno descontínuo de alguma coisa que seria pelo menos apta a prolongar-se num ciclo parcial (uma identidade, um EU,), mas, ao contrário, a retomada de sínteses pré-individuais, que supõe, primeiramente, para que possam ser apreendidas como repetição, a dissolução de todas as identidades prévias". 38 Essa "irremediável perda" como um rastro silencioso de uma natureza sempre diferente, traduz-se numa duração qualitativa não divisível, pois ao se dividir ela sempre muda de natureza, não parando de se dividir ao mudar de natureza. Potência diferencial de um mundo sem identidade, sem semelhança e sem igualdade, que retorna a partir de uma diferença que "repousa sobre disparidades, diferenças de diferenças que se repercutem indefinidamente (...) num spatium, teatro de toda metamorfose". 39 Sair do indivíduo e das formas relacionadas da vida para saltar no campo intensivo de forças livres, seria pensar o oposto do processo de "individuação", com vistas a atingir a liberdade da força que retêm apenas a sua função, na sua afecção, em uma nova relação que devolva a potência toda a sua virtualidade na perspectiva de um finito-ilimitado no espaço dos fluxos.

 Se é pela supersaturação de um movimento onde as forças livres, carregadas de sua máxima energia potencial, atualizam a capacidade de serem afetadas e de individuam  nas formas relacionadas das ressonâncias, é através da ideia de fluxo, um movimento operado  pela velocidade de circulação que volatiza as formas fazendo com que as forças ressonantes se dissolvam em forças livres, virtualização que devolve a força sua função de pura potência, por intermédio de uma  diferença que é sempre diferença excedente. Se a energia potencial da diferença engendrou as formas relacionadas, a velocidade acelerada dos fluxos libera um potencial excedente de energia que passa operar como força livre, exatamente no rastro de sua passagem ou no “eco que reverbera seu grito”. A impermanência que caracteriza esse rastro precipita a perda dos suportes e seus elementos de convenção que possam registrar o instante exato da passagem ou a posição absoluta desse acontecimento. O espaço onde se localiza o deslocamento desse rastro virtual, cujo movimento não mais depende de qualquer matéria que exerça sua atração sobre o movente, caracteriza-se por "nós flutuantes de acontecimentos que se interfaceiam" 40. O deslocamento, aqui, não é visto mais através de um linha que objetive uniformizar os limites do tempo e do espaço de sua duração, mas, sim, como uma função que se alimenta da especulação como capacidade de afetar. Quando Pierre Lévy afirma que: "virtualizar uma entidade

38 Gilles Deleuze – Diferença e repetição39 Gilles Deleuze – A ilha deserta – Gilbert Simondon, o indivíduo e sua gênese físico-biológica..40 Pierre Lévy - O que é o virtual

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qualquer consiste em descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mudar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade da partida como resposta a uma questão particular" 41, fica ressaltada a capacidade da virtualização de evocar a dimensão do problema como um desprendimento do espaço ordinário e do tempo sucessivo, restituindo o "spatium" não determinado ou não designável, espaço da ubiquidade,  da simultaneidade, tempo e lugar especulado.

Se entendermos a especulação como uma ação que afeta um conteúdo qualquer sem ter a capacidade de ser afetada por nenhum outro, conferimos a esses acontecimentos interfaceados uma unidade de simulacro que não se deixa mais compreender em uma posição simples no espaço e no tempo, mas que é habitada pelas forças sem lhes opor resistência, desorganizando-as, sem jamais constituir um terceiro termo, mas apenas nós de tendências que conferirá uma automotividade aos conteúdos. Essa ausência de resistência se insinua como uma "brancura" que se constitui atração, conferindo, no vazio de um movimento sem fim e sem causa, uma potência condutora de um movimento apenas de "chegadas generalizadas", de forças que perderam sua capacidade de serem afetadas e, portanto, não possuem qualquer ponto de partida, partida esta substituída pelo sentido de instantaneidade, num espaço onde a extensão foi eliminada, a partir da fuga de todos os pontos que passam a se organizar como “pixels e bites” em uma rede de encontros virtuais. "Atualmente, com a revolução das transmissões instantâneas, assistimos às premissas de uma chegada generalizada, aonde tudo chega sem que seja necessário partir; a liquidação da viagem (que dizer, do intervalo do espaço e do tempo) do século XIX, volve-se neste final do século XX em eliminação da partida, perdendo, assim, o trajeto dos componentes sucessivos que o constituem, em benefício, unicamente, da chegada" 42.  A ordem da virtualidade especulativa carrega o germe da dissolução das fronteiras e dos entraves para a circulação, como elemento motriz de uma circulação difusa, na qual o aumento da velocidade de um movimento ininterrupto permite que todos os conteúdos trafeguem sem partida, na premissa de uma chegada generalizada. Os conteúdos vão, então, decompondo-se até chegarem a síntese diferencial das forças já não mais relacionadas nas formas. Livres das relações de ressonância elas passam a agir como um turbilhão de novas e diferentes possibilidades, na instantaneidade de sua aparição e desvanecimento, volatilidade cuja potência virtualiza as formas criando novas e persistentes disjunções que se superam a cada novo acontecimento, de modo cada vez mais veloz, "saindo e entrando sem parar, compondo-se de mil maneiras" 43 , em territórios que se desfazem e se recriam no menor espaço e tempo possível. O aumento da velocidade da circulação dos conteúdos compostos por forças relacionadas e a redução do espaço e do tempo criam diferenças de intensidades que liberam, no rastro de sua passagem, forças sem matéria, passando estas a atuarem como forças livres,  não relacionadas e portanto excedentes. Esse excedente é redistribuído em uma nova modalidade

41 Ibdem.42 Paul Virilio - A velocidade de libertação43 Gilles Deleuze - Diferença e repetição

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de relação que é simultaneamente potência de afetar e resultado excedente. A essa relação atribuiremos o nome de diferença excedente. A diferença excedente seria, então, o resultado da múltipla repetição periódica que produz uma diferença mínima entre o múltiplo das frequências ressonantes, diferença que se libera como potência e passa agir como virtualidade especulativa.

Apelando mais uma vez a Manuel Castells, diríamos que “em nenhum lugar essa lógica é mais evidente que na circulação global do capital”. Funcionando em tempo real, onde a velocidade das transações é suportada por uma rede de conexões virtuais apoiadas nas tecnologias do silício, que viabilizam o tráfego de conteúdos constituídos a partir de uma diferença excedente virtualmente especulada a partir da instantaneidade na qual se processam as compras e as vendas de índices financeiros. Trabalhando a partir da assimetria espaço-temporal de mercados interconectados ininterruptamente, as transações financeiras baseiam-se na “geração de valor a partir da captação do tempo futuro nas transações presentes”44, assim como na diferença que surge pelo excesso de transações, pelo sobredevir de conteúdos circulantes que liberam um potencial excedente que se desloca continuamente, criando, exponencialmente, ilimitados ganhos que são os rastros de passagem dos bits e bites circulantes. O capital financeiro figuraria como uma unidade de simulacro constantemente dissolvida em sua manipulação presente que comprime o tempo, absorve-o e vive da digestão de seus segundos, em unidades cada vez menores, como potência virtual que especula os ganhos a partir de uma assimetria temporal e uma instantaneidade geradas artificialmente em um horizonte aberto sem começo, fim ou sequência.

O último quarto do século XX conviveu com a irrupção de um pensamento que tentava capturar a aceleração dos movimentos dos conteúdos circulantes que iam deixando no seu rastro a disrupção das formas fixas do mundo. A sociedade da razão procurara fixar o mundo através das formas, tentando reter sua verdade como aquilo que permanecia imutável, compondo o estoque que iria servir de ferramenta para ajudar os seres da linguagem a expugnarem o insuportável sentimento de trasitoriedade que os acompanha deste que se inaugura sua existência individal, como uma descida inexorável para a morte, desintegração última de toda forma. Se a verdade no universo pré –racional era perseguida na tensão da ambiguidade de um mundo sempre aberto a pluralidade, a alteridade e ao acentramento, na idade da razão ela ganha cortornos fixos a partir da lógica da não contradição e da identidade formal. A partir dos movimentos acelerados dos conteúdos circulantes decompõe-se as formas em potências não relacionadas lançando-as de volta ao estado metaestável, onde a unidade dos conteúdos conectados em rede, assume o caráter de pura multiplicidade e indeterminação de forças não relacionadas, isoladas uma das outras pela fragmentação rizomática do espaço da rede. Neste não-lugar, o multipertencimento dos conteúdos alterados instantaneamente pela ação contínua dos enunciados das formas de expressão, estabelece um jogo, cujo dinamismo conta com a ação das potências infinitamente multiplicadas. Essas frequências se distribuem a partir de um espaçamento, no qual a velocidade das

44 Manuel Castells – A Sociedade em rede.

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partículas infinitesimais que constituem os conteúdos e suas relações engendram um espaço unidimensional metaestável.

A fala perde, então, o suporte em pontos fixos do espaço da representação e ao invés de remeter os sujeitos a objetos em um campo delimitado de significados fixos, oscila como frequência livre de uma absoluta diferença, isolada na teia da rede, mas conectada a todos os conteúdos e reivindicando sua singularidade, uma vez que o funcionamento de uma rede não dispõe os conteúdos de uma forma linear sistêmica e, portanto, atravessa a distinção usual entre palavras e coisas,  lançando os conteúdos e as expressões num movimento fractal cada vez mais rápido no ciberespaço. Assim a diferença surge pelo excesso que caracteriza o (sobre)devir de conteúdos circulantes, liberando um potencial excedente que se desloca continuamente criando, exponencialmente, ilimitadas possibilidades, diluindo as formas do mundo em rastros de passagem dos conteúdos, onde sobram apenas o seu eco; intensidade que vibra e que se afirma como tonalidade de um silêncio eterno, ou ruído de fundo ecoando nos vacúolos de solidão. O contágio participativo dos novos conteúdos da língua desata os nós das instituições sedimentares da linguagem, abrindo linha de fugas por onde os conteúdos se dissipam, assumindo um grau extremo de mobilidade e através do qual os discursos se afirmam pela capacidade de exercitar o dizer de uma nova era. Volátil, a-centrada e a-significante. Jorro ininterrupto de novidade de um tempo real que sincroniza as expressões de multiplicidade, sem os suportes tradicionais de uma linguagem dominante. Feira livre onde o passante se serve a vontade. O passar em si, libera potências circulantes. Como uma repetição que não mas carece de sínteses de identidade pela quais se tracem linhas de adequação entre sujeitos, objetos e significados. O passar infinitivo viabiliza brechas por onde brotam as diferenças puras, incompossíveis e impossíveis de serem referidas a partir de qualquer identidade entre os termos das relações. Relações disjuntivas que se processam em um espaço e tempo virtualizados.

Se a síntese entre as forças do homem e as forças do infinito geraram a forma- Deus e a síntese entre as forças do homem e as forças da finitude a forma- Homem as sínteses disjuntivas entre as forças do homem e as forças do finito ilimitado engendraram uma rede amorfa onde a falta de qualquer forma que pudesse estabilizar pela negatividade dialética das sínteses das diferenças de quantidade que atravessam o organismo na suas relações esquemáticas dadas pela tríade percepção, abstração e linguagem, passa a operar o processo de disjunção através de um a-centramento, liberando a potência do virtual numa rede de relações de forças integradas em sua diferença absoluta. A velocidade com que as forças passaram a circular não permite que cada ação encontre uma reação a ela relacionada e a repetição do movimento em um tempo infinitesimal como uma aparição e um esvanecimento imediato abre um espaçamento a ser ocupado por outra ação que obedece o mesmo padrão e assim se vai compondo uma rede de ilimitadas conexões onde as teias são constituídas pelo rastro da passagem das forças, interfaceadas pelos dispositivos de captura e reprodução desses rastros. Assim a diferença passa a ser o excedente virtual de forças não relacionadas, livres da cadeia de ressonâncias que as relacionam na identidade das formas, puras intensidades.

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Voltamos então ao virtual sob a sua forma caótica ou falta de forma que se constitui como um ação antipredicativa de uma inconsistência primordial de um estado metaestável e pré-individual. Antes que se possa dizer o Ser das coisas é preciso descontruir sua identidade resgatando o clamor do Ser que anima o mundo das ressonâncias, poder infinito de autodiferenciação e pura potência de um jorro ininterrupto de novidade. Está dada então a problematização cuja as resoluções passam a operar pela ilimitada capacidade de mudar os problemas sem cessar ou fazer surgir novos problemas antes que se possam predica-los. Devir louco que anima a rede de ilimitadas conexões fora do tempo e do espaço clássicos, uma vez que esses são marcados pelos limites da identidade dos pontos que fundam o lugar das ressonâncias. Se o devir da virtualidade se atualiza nos limites da identidade que resolvem os problemas através de suas sínteses (a visão como a síntese entre a luz e o olho, a abstração como a síntese entre a percepção e a memória, a razão como a síntese da abstração e da linguagem), o sobredevir opera nas síntese disjuntivas que virtualizam os limites da identidade em um espaço inextenso e em um tempo que é pura duração onde as chegadas generalizadas prescindem da partida como ponto, uma vez que a mobilidade ilimitada aboliu qualquer partida. Abre-se então a passagem para os incompossíveis, cuja a contradição outrora mantida como condição para a verdade da única realidade possível, transforma-se em disjunções e divergências que carregam toda a realidade virtual enquanto diferença. Não mais diferença como falta de similitude mais diferença em si, pura e sempre afirmativamente vindo a ser diferente. Singularidade que faz do acontecimento um evento único, impossível de se comparar pois mesmo o seu rastro de desvanece quando da sua passagem, antes que se possa fixa-lo em qualquer forma.

Com a falta de suporte da identidade que recolhe as qualidades e as partes e estabelece aquilo que permanece como o mesmo, a sociedade do finito-ilimitado usa e abusa das imagens para compor o quadro de um universo impermanente. Contudo essas imagens já não se dão pela impressão em um anteparo qualquer do reflexo da intensidade emitida por um corpo opaco. Ela (a imagem) transformou-se em uma imagem composição, veloz e delimitada pela combinação e ordenação de pixels, feita e refeita instantaneamente até que se atinja aquilo que se quer exprimir e possa se fazer circular em tempo real junto aos demais conteúdos conectados em rede. Essa mudança no processo de composição das imagens da realidade altera os elementos da percepção sensível como faculdade que captura as intensidades a invadir os sentidos, gerando novas sensações que carecem desses novos órgãos da percepção formatados em uma nova subjetividade. A virtualização da realidade formal desfaz os laços que constituíam as identidades das formas ressonantes, onde cada forma era capaz de se repetir pela manifestação de suas qualidades e partes, já catalogadas na memória, abstraídas pela razão e comunicadas pela linguagem. A ilimitada possibilidade de arranjo das intensidades que passaram a cruzar a percepção ganham a forma de códigos, pixels, files ou texturas, conferindo a realidade apreendida um caráter de singularidade, disposta em tempo real, em lugares fora do espaço da extensão e operadas por programas que a redistribui na rede. As novas tecnologias do silício antes de serem as responsáveis pela construção de uma realidade virtual é um dos elementos genéticos do processo de reterritorialização dos agenciamentos da ordem do finito-ilimitado. A potência

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disruptiva do virtual fora conjurada pelas construções de ordens diversas, da mesma forma que as sociedades sem Estado dos nômades coletores conjuravam o Estado que viria sintetizar a nova ordem e distribuir o espaço nos seus novos limites. Esse processo se arrastou ao longo da aventura de constituição da civilização dos seres da linguagem ditos, por si mesmo, humanos e carregou em seu bojo toda potência conjurada pelos esquemas reproduzidos em diferentes ordens que buscavam se livrar da instabilidade, do imponderabilidade e da impermanência, através das formas fixas da identidade.

Se a síntese entre as forças do homem e as forças do infinito geraram a forma- Deus e a síntese entre as forças do homem e as forças da finitude a forma- Homem, as sínteses disjuntivas entre as forças do homem e as forças do finito ilimitado engendraram uma rede amorfa onde a falta de qualquer forma que pudesse estabilizar pela negatividade dialética das sínteses e das diferenças de quantidade que atravessam o organismo na suas relações esquemáticas dadas pela tríade percepção, abstração e linguagem,  passa a operar o processo de disjunção através de um a-centramento,  liberando a potência do virtual numa rede de relações de forças integradas  em sua diferença absoluta. A velocidade com que as forças passaram a circular não permite que cada ação encontre uma reação a ela relacionada e a repetição do movimento em um tempo infinitesimal como uma aparição e um esvanecimento imediato abre um espaçamento a ser ocupado por outra ação que obedece o mesmo padrão e assim se vai compondo uma rede de ilimitadas conexões onde as teias são constituídas pelo rastro da passagem das forças, interfaceadas pelos dispositivos de captura e reprodução desses rastros. Assim a diferença passa a ser o excedente virtual de forças não relacionadas, livres da cadeia de ressonâncias que as relacionam na identidade das formas, puras intensidades. Voltamos então ao virtual sob a sua forma caótica ou falta de forma que se constitui como um ação antipredicativa da inconsistência primordial de um estado metaestável e pré-individual. Antes que se possa dizer o Ser das coisas é preciso descontruir sua identidade resgatando o clamor do Ser que anima o mundo das ressonâncias, poder infinito de autodiferenciação e pura potência de um jorro ininterrupto de novidade. Está dada então a problematização  cuja as resoluções passam a operar pela ilimitada capacidade de mudar os problemas sem cessar ou fazer surgir novos problemas antes que se possam predica-los.  Devir louco que anima a rede de ilimitadas conexões fora do tempo e do espaço clássicos, uma vez que esses são marcados pelos limites da identidade dos pontos que fundam o lugar das ressonâncias. Se o devir da virtualidade se atualiza nos limites da identidade que resolvem os problemas através de suas sínteses (a visão como a síntese entre a luz e o olho, a abstração como a síntese entre a percepção e a memória, a razão como a síntese da abstração e da linguagem), o sobredevir opera nas síntese disjuntivas que virtualizam os limites da identidade em um espaço inextenso e em um tempo que é pura duração onde as chegadas generalizadas prescindem da partida como ponto, uma vez que a mobilidade ilimitada aboliu qualquer partida. Abre-se então a passagem para os incompossíveis, cuja a contradição outrora mantida como condição para a verdade da única realidade possível, transforma-se em disjunções e divergências que carregam toda a realidade virtual enquanto diferença. Não mais diferença

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como falta de similitude mais diferença em si, pura e sempre afirmativamente vindo a ser diferente. Singularidade que faz do acontecimento um evento único, impossível de se comparar pois mesmo o seu rastro de desvanece quando da sua passagem, antes que se possa fixa-lo em qualquer forma. Com a falta de suporte da identidade que recolhe as qualidades e as partes e estabelece aquilo que permanece como o mesmo, a sociedade do finito-ilimitado usa e abusa das imagens para compor o quadro de um universo impermanente. Contudo essas imagens já não se dão pela impressão em um anteparo qualquer do reflexo da intensidade emitida por um corpo opaco. Ela (a imagem) transformou-se em uma imagem composição, veloz e delimitada pela combinação e ordenação de pixels, feita e refeita instantaneamente até que se atinja aquilo que se quer exprimir e possa se fazer circular  em tempo real junto aos demais conteúdos conectados em rede. Essa mudança no processo de composição das imagens da realidade altera os elementos da  percepção sensível como faculdade que captura as intensidades a invadir os sentidos,  gerando novas sensações que carecem desses novos órgãos da percepção formatados em uma nova subjetividade. A virtualização da realidade formal desfaz os laços que constituíam as identidades das formas ressonantes, onde cada forma era capaz de se repetir pela manifestação de suas qualidades e partes, já catalogadas na memória, abstraídas pela razão e comunicadas pela linguagem. A ilimitada possibilidade de arranjo das intensidades que cruzam a percepção ganha a forma de códigos, pixels, files ou texturas, conferindo a realidade apreendida um caráter de singularidade, disposta em tempo real, em lugares fora do espaço da extensão e operada por programas que a redistribui na rede. As novas tecnologias do silício antes de serem as responsáveis pela construção de uma realidade virtual é um dos elementos genéticos do processo de reterritorialização dos agenciamentos da ordem do finito-ilimitado. A potência disruptiva do virtual  fora conjurada pelas construções de ordens diversas, da mesma forma que as sociedades sem Estado dos nômades coletores conjuravam o Estado que viria sintetizar a nova  ordem e distribuir o espaço nos seus novos limites.  Esse processo se arrastou ao longo da aventura de constituição da  civilização dos seres da linguagem ditos, por si mesmo, humanos e carregou em seu bojo toda potência conjurada pelos esquemas reproduzidos em diferentes ordens que buscavam se livrar da instabilidade, da imponderabilidade e da impermanência, através das formas fixas da identidade. Se já não mais devemos contar com a identidade como síntese atual dos incompossíveis, o que então nos permite trafegar no caos da coexistência de forças absolutamente diferentes sem cairmos em um estado de total aturdimento?

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Unidade 7. Tempo, Duração, Mudança, Singularidade e Intensidade

É que ninguém, nem mesmo Deus, pode dizer, de antemão, se duas bordas irão enfileirar-se ou fazer fibra, se tal multiplicidade passará ou não à outra, ou se tais elementos heterogêneos entrarão em simbiose, farão uma multiplicidade consistente ou de cofundamento, apta à transformação. Ninguém pode dizer onde passará a linha de fuga (...) (Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil platôs).

Talvez Deleuze tenha sido o filósofo que melhor compreendeu as implicações de uma nova ordem da história das civilizações dos seres da linguagem, ditos por si mesmo humanos. Ele visualizava uma reversão do ato de pensar que começava a se dar a partir de conceitos fora dos esquemas de representação da razão clássica, que através da identidade dera conta das intensidades, traduzindo-as por intermédio de uma linguagem representativa que as lia gravadas nos anteparos de captura das cores, sons e volumes, orientando por séculos o olhar o ouvido, o tato e do pensamento. Através da procura por uma nova imagem para o pensamento, Deleuze rompe com as categorias da identidade fixadas no tempo da sucessão e no espaço extenso e sai em busca das intensidades puras, do tempo da duração e das singularidades de um espaço nômade. E assim, de repente, é como se abríssemos os olhos pela primeira vez em um acontecimento onde a novidade absolutamente carregada da potência de transcender as formas fixas que orientavam nossa visão. Deleuze problematizou as novas relações entre as forças de uma geração que passou a produzir novos afectos e perceptos, quando atravessada pelas linhas de fuga que empurravam o sujeito do conhecimento para além do horizonte das formas fixas do espaço e do tempo, onde os conteúdos eram dissolvidos em sua meta-estabilidade pré-individual. Talvez sua maior virtude tenha sido descrever essa dissolução em diversos domínios mergulhados no “caos sem fundo, informe e terrível”, de onde passaram a vibrar como frequências de um estado integrado, compondo um quadro singular. Arte, literatura, cinema, ciência e filosofia passam a dar conta de uma nova ordem: a ordem do finito-ilimitado, onde as identidades entre as palavras e as coisas não eram mais capaz de expressar a cada vez mais veloz circulação das forças e onde a tríade: percepção, abstração e linguagem não davam conta de expressar a singularidade diferencial desse estado integrado, sempre a emergir novos agenciamentos. A filosofia começa a visar as potências que animam os encontros,

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liberando-as das relações ressonantes das formas, onde a potência do virtual explode como o “clamor do ser”, a-formal, a-centrado e puro devir.

Se as categorias tradicionais do pensamento descreviam a realidade através das faculdades do ato cognitivo de uma razão afirmada como vontade de verdade, as novas categorias do pensamento lidavam com a realidade como uma multidão de linhas de fuga a produzir encontros singulares, onde a vontade não mais se propunha a fixar os limites da verdade mas sim explodir como potência virtual de uma multiplicidade nômade, num jorro ininterrupto de intensidades sempre novas e na duração de um tempo integrado, duração de um tempo real. Nada ficou de fora desse "rio sem margem, superfície ou fundo". Assim, perde-se o sentido de extensão espacial, pois a duração não poderia ser pensada ou expressa nos termos das marcações lineares dos instantes através do "número numerado do movimento" (1 segundo, duas horas, milhões de anos). O tempo passa a ser o tempo real da duração e o espaço o (não) lugar fora do plano de retas que unem pontos entre infinitos fixados como limites do ser ou da identidade de figuras em um plano geométrico qualquer e onde o movimento se constituía como partida de um ponto a outro. Na rede a-centrada e rizomática do finito-ilimitado, as chegadas perdem as partidas, os saltos se tornam saltos no vazio agitados em buracos e bordas por onde transbordam as intensidades que não param de sair e entrar em conexão, num contínuo ilimitado de um movimento acelerado de singularidades nômades e anônimas.

O movimento acelerado das relações entre as forças produzem as dobras que se fazem e desfazem, criando limiares virtuais e sua velocidade excessiva vai liberando as forças de sua relação ressonate, criando um excedente virtual de potências que se relacionam por disjunções ilimitadas. Essa diferença multiplicada ilimitadamente torna-se diferença excedente ou o impredicável de uma relação disjuntiva onde o que devem nunca é o mesmo e desse modo não se deixa abstrair por uma operação que pretenda reunir o “mesmo” que se repete e que permaneça identificável naquilo que se apresenta aos sentidos. A diferença excedente não se deixa projetar em um plano que se reparte em pontos, nem pode ser reconhecida em um lugar recortado por retas que formam ângulos cuja inclinação se adeque aos registros das sensações arquivadas na memória. Não há como inscrever esse excedente virtual como um bloco de sensações acumuladas ou como formas projetadas e nominadas por sua semelhança, num processo de comparação que vai esquadrinhando a realidade percebida por um crivo que julga o quanto as formas se aproximam ou se afastam, se assemelham ou se diferenciam. Ela é diferença pura de um tempo liberado do movimento, uma vez que o tempo se tornou o tempo das transmissões instantâneas, em zonas pré-individuais e não localizáveis. Quando se pensa na realidade desse tempo, onde as potências vibram como forças livres e os encontros se dão por disjunção, essas misturas são incapazes de serem descritas nos temos de enunciados que anunciam visibilidades claras, uma vez que o visível se desloca para uma zona obscura onde as distinções só são determináveis através dos diagramas de forças desterritorializadas que se deslocam instantaneamente em espaçamentos fora da função minorativa que reúne as frequências em identidades claras, distintas e distribuídas pelos dispositivos que limitam a ação das forças através de sua matéria que é a capacidade dessas forças serem afetadas.

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Essa revolução não poderia se confundir com as tentativas de articular as forças em novas relações ressonantes, pois todas as revoluções ao longo da história que procuravam desarticular os dispositivos de poder que mantinham as forças em uma determinada relação e redistribuí-las em uma nova forma, esgotaram-se quando da constituição de novas sínteses. Daí que pensar uma revolução em termos das sínteses disjuntivas na ordem do finito-ilimitado precipita-nos em níveis moleculares onde a singularidade que devem deve mantida em sua absoluta diferença e em uma duração total de um espaço unidimensional, onde as forças de fora são dobradas para dentro e encontram-se nesse interstício diferencial com forças livres sempre a produzir novas disjunções e liberando um excedente virtual que não para de produzir disjunções intensivas através das quais as forças não param de mudar sua natureza, em saltos e rodopios de um ritornelo de velocidade vertiginosa. Não há como, portanto, apreender esse tempo através dos gonzos que o amarrara na sucessão dos instantes de uma sequência linear onde se ia do presente ao futuro, deixando o passado para trás. Diferente do tempo como número numerado do movimento, o tempo da duração assume sua dimensão de pura novidade no tempo tornado real através das transmissões instantâneas e das velozes conexões em uma grande rede unidimensional. Tempo do contágio que contrai todas as distâncias na magra interface do programa que processa e lança os conteúdos além dos horizontes da extensão, como matéria inextensa, escura, não localizável e propagada instantaneamente pelos buracos abertos no tempo da sucessão, através de cordas que vibram sempre uma nova melodia. Devir que passa sem nuca atualizar por completo a sua potência virtual, deixando os ecos e o rastro de movimentos de chegadas generalizadas. Abole-se as partidas, os pontos, as medidas sucessivas, sobrando apenas a dança ilimitada das forças absolutamente diferentes no seu estado meta-estável e pré-individual. Acontecimento que se dá nos espaçamentos especulados virtualmente, sem identidade e sem forma. Intensidade pura sempre novamente problematizada sem que a resolução do problema tenha tempo de se dar, fervilhando, continuamente, ilimitadas e múltiplas vibrações, espalhadas como vírus ou metástases não localizáveis, em ebulição fora da escala de graus; devir louco de forças livres, não relacionadas, sempre ativas em potência, ato-potências sem data de nascimento ou morte.

Chegamos a era das transmissões instantâneas, onde o tráfego rizomático que embaralha as teias no rastro de sua passagem dissolvem as formas da identidade. Fluxos não lineares, fluxos de transdução, sem intervalo, suportes ou anteparos onde os pontos fogem ilimitadamente e produzem uma novidade ininterrupta em cada vibração não relacionada, mas ainda assim conectada a tudo que vibra nesse continuo relacionado por disjunção, produzindo sínteses de um tempo real na ubiquidade do espaço que isola pela diferença absoluta de um deslocamento em velocidade vertiginosa e que conectam sem relacionar. Acontecimento puro, em tempo real e em espaços simultâneos onde as linhas sempre fogem sem que se possa representa-las; música sempre nova e tocada ao vivo, nuca da mesma maneira, sem similitudes, imagem sem semelhança, sempre e ilimitadamente diferente em seu devir. Tempo libertado do movimento que lança as forças na quietude e no silêncio onde apenas um ruído de fundo, sem métrica, escalas e distribuindo as puras intensidades. Desfaz-se, assim, a unidade

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do número e adequação das figuras de um espaço geometrizado, liberando-se as multiplicidades nômades em um espaço liso e de imagens incessantemente mutantes, insubordinadas e penetradas pelo diverso, abandonando-se tanto a forma quanto o informe e afirmando a energia livre do a-formal, do não ligado e não relacionado, mas apenas conectado. A rede de conexões desse finito-ilimitado assume, portanto, a função que a matéria da abstração tinha exercido em relação ao tempo e ao espaço como a priori da percepção. Nunca talvez a expressão de Heráclito sobre o fato de ser “impossível mergulhar duas vezes no mesmo rio”, tenha sido carregada de tamanha realidade, quanto nesse tempo tornado real pelas velozes conexões que conferem a absoluta novidade ao ato do conhecimento, longe dos limites da identidade que procuravam resguardar o ser da insuportável transitoriedade do devir, provocando um revolução nas relações do sujeito com os intensidades que o atravessam. A partir da volatilização das formas as relações entre as forças processam-se fora do tempo e do espaço clássico. Eis o sentido do acontecimento em um modo onde tudo se torna passagem e onde a duração é a vibração de potências livres integradas em um única dimensão.

Quando no final do século XIX colocou-se a questão do movimento de partículas infinitesimais em cada átomo como a sustentação de unidades cada vez maiores de matéria, o pressuposto de que todo o objeto, a despeito de sua aparente estabilidade, encontrava-se em um ilimitado movimento de transformação, mesmo que imperceptível aos sentidos, faz do sítio da visão um lugar relativo do sujeito que captura o conjunto de ilimitadas mudanças a partir da inflexão que relaciona todas as frequências e deixa vazar a novidade que se renova na duração de cada vibração. Se o caminho do “Ser é marcado pela passagem do devir para a identidade, apaziguando as contradições de um fluxo impermanente e estabelecendo os limites do mesmo em uma unidade superior, hipostasiada e essencial, elemento de base para o processo de conhecimento do mundo pelo sujeito que dele se separa, as novas relações do finito-ilimitado carece de uma nova episteme que libere as forças indecidíveis e a partir dela passe a formular os agenciamentos em um novo território. A abertura para a diferença constitui, então, um espaçamento que se afasta da identidade, do igual, do limite do mesmo e do semelhante. Para nos movermos nesse novo território há de liberarmos o tempo do movimento, engendrando um devir que é ilimitada diferença, revertendo um modelo ondo os limites da identidade eram fundamentais para a passagem do tempo, sempre limitado a sucessão dos instantes. O tempo liberado do movimento alcança, enfim, a dimensão de duração que estoura nas singularidades do múltiplo. Múltiplo que não mais se apoia na unidade do número inteiro ou na geometria dos espaços extensos, mas que abre espaçamentos para uma multiplicidade a-centrada, rizomática e lisa. O número passa então a figurar como número nômade, numerante, insubordinado ao espaço estriado numerado pelo movimento. Se o limite era o limite das figuras cujos pontos se distanciam através da sequência de uma reta por onde se podia numerar todo o movimento, a nova geometria explora o ponto virtual e tão somente como inflexão de forças não relacionadas e livres das cadeias da ressonância. É essa procura pela inflexão que faz Deleuze se debruçar sobre o Barroco e em Leibniz, e formular o conceito de ponto como “ponto de vista”, muito próximo do que a física fez com o “colapso do observador”, inflexão em um

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“sítio de visão” onde articula-se as ilimitadas aparições do múltiplo que não para de multiplicar as diferenças. Forças incompossíveis que coexistem em um lugar onde a relação entre elas se dá através de disjunções. As frequências singulares não mais se relacionam pelo múltiplo inteiro das ressonâncias mas através de dobras disjuntivas de membranas interfaceadas por onde transbordam diferenças. Ilimitado transbordar das diferenças absolutas.

E é para lidar com essa multiplicidade que a nova episteme foi em busca da potência do absolutamente diferente, através de um pensamento liberado das cadeias do mesmo e da identidade, abrindo-se ao ritmo das frequências que atravessam os sentidos e sem o suporte de uma linguagem cuja tarefa era livrar o pensamento da equivocidade de dizer um mundo em frequentes transformações. As forças do homem, esse ser tido por si mesmo na cadeia de significados articulados a partir da identidade de tudo aquilo que é, começam a entrar em relação em um novo jogo de significações, longe dos significados apoiados nas faculdades da clássica tríade: percepção, abstração e linguagem. Há de se encontrar, então, uma língua capaz de significar o mundo fora da cadeia de significados que fixam os limites entre as palavras e as coisas. Numa operação que se assemelha ao que passa a ser realizado pela arte, onde as formas invisíveis são tornadas visíveis e as forças sonoras tornadas audíveis, mergulha-se nesse rio sem margem superfície ou fundo onde as forças se misturam no caos de sua coexistência. As imagens que surgem daí não são mais o resultado da contemplação de uma ideia essencial que busca fundar pelo reconhecimento nas coisas a univocidade do signo para estabelece um plano de referência onde tudo se divide em partes e qualidades. A nova imagem do pensamento ou o pensamento sem imagem, carece de um outro plano, longe da identidade do mesmo, da cadeia de significados, dos pontos de um espaço extenso e do número numerado do movimento. Deleuze iria batizar esse plano de “plano de imanência”, (não)lugar da duração, da mudança ilimitada, da singularidade e das intensidades puras.

A solução encontrada para o problema do múltiplo pela razão clássica, se deu através do ato de subordinar as intensidades às representação orgânicas, estabelecendo a identidade entre o que aparece e o conceito que o define, organizando por semelhança todas as sensações daquilo que é percebido, relacionando-as através de palavras com as coisas que aparecem. Contudo as coisas só poderiam aparecer mais de uma vez e de forma semelhante, se previamente se estabelecesse uma essência para aquilo que se manifesta para o o sujeito que a percebe, a abstrai, a julga e atribui predicados a elas, descobrindo o seu ser essencial, como aquilo que cada coisa é, sem que se confunda a essência delas - a essência do justo, do belo e do bom, que não se confunde com a extensão da justiça, da beleza e da bondade. E é no tempo e no espaço da razão, intervalo onde as coisas se constituem para a percepção como matéria extensa, medida, quantificada e especificada nas qualidades e nas partes, que as categorias fundaram os limites das identidades, a partir das formas fixas que relacionam as forças. Se contudo entrarmos no tempo tido como duração e no espaço não mais relacionado a extensão do movimento, encontramos as forças como alteridades para além de qualquer unidade de identidade, e para além de uma noção de forma que parta dessa identidade fundadora. Forças que

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vibram a todo o momento na alteridade de um tempo e de um espaço que brotam como aberturas e espaçamentos a se expor a todo o momento, como singularidade, a uma alteridade que lhes informa; interstício de um tempo real e de um espaço virtual. O espaçamento da duração é tempo real e os seus domínio são os espaços virtuais que não pode ser mais reduzido a dicotomia sujeito- objeto, uma vez que a relação entre as freqências que coexistem nessa única dimensão se dão alhures e algures, não se processando pelas sínteses ressonantes que dão identidade as formas, mas por sínteses disjuntivas, que se abrem e estão permanentemente presentes como um acontecimento singular em seu processo de ilimitada diferenciação, forças livres que que coexistem na abertura singular fora de qualquer indentidade ou medida.

Na duração do tempo real o intervalo nunca é preenchido pois as vibrações se esvanecem antes que se possam representa-las, sobrando apenas o rastro de sua passagem. A velocidade da aparição e do desvanecimento daquilo que vibra, liberta as forças da extensão e dos instantes e ganha sua consistência como acontecimento puro de forças livres e não relacionadas, em um tempo e espaço que não mais conseguem reter no intervalo as significações das aparições ao falante que as diz. Dizê-las passa a ser então uma tarefa de resgate de toda a potência pre-individual e impessoal que tinha sido liquidada com a individuação. Dize-las passa então pela dimensão de um tempo anorgânico, a-subjetivo, livre da tríade percepção, abstração e linguagem, indizível nos temos clássicos e deixado em um plano que devolve sua imanência de um sempre acontecimento singular e instantâneo. Cintilando todas as freqências; as silenciosas, as que escorrem em gostas de luz, as que escupem montes e vidas e se desfazem em nuvens, refazem sons e se repartem em cores, as que espalham coragens, calam o medo e sussurram segredos.

Uma vez que deixemos que a multidão de intensidades circulantes derrubem a proteção de uma razão reconfortante que opera pelas categorias fundadas na identidade, e tentemos formular os problemas muito além do que se pode observar, do que os olhos podem segurar com suas crenças, e supondo a existência de mundos diversos e superpostos, temos que entender como a projeção desses mundos determina uma visão de longo alcance, muito além dos anteparos onde as imagens vem ser formar. Atingimos a essa altura, a inflexão que determina o ponto de vista e o sítio da visão onde esses mundos aparecem. Se a forma-Deus solucionava o problema da relação das forças no homem com as forças do infinito através da transcendência e dos modelos perfeitos que emanavam suas fagulhas de perfeição para a terra, a forma-Homem veio a solucionar os problemas de uma relação onde a finitude vinha cravar os pés do sujeito cognoscente na terra, onde os agenciamentos produziram categorias a partir das quais todas as formas seguiam os princípios de um organismo que sustentava a vida. Os órgãos e suas funções determinavam a distribuição da relação entre as forças, uma vez que a forma-Homem determinava o campo de atualização de frequências cujo potencial virtual era ilimitado. A solução dos problemas passava pela via de agenciamentos que através da reprodução das formas atualizavam as potências em qualidades e partes. Conforme a reprodutibilidade das formas foi multiplicando as possibilidades das frequências estarem relacionadas, a resolução das equações das diferentes combinações

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possíveis passa a conviver com um numero cada vez maior de variáveis. Contudo o resultado era sempre “dobrado” para o centro onde a episteme relacionava as forças através do princípio da identidade entre as formas finitas do ser . Contudo o ato de arranjar as formas finitas em diferentes combinações, arranjos e variáveis, começa a liberar paradoxos que tinham sido apaziguados a partir das categorias da razão clássica e dos seus modelos descritivos e experimentais, isso provoca uma radical mudança do retrato do mundo que era projetado nos clássicos anteparos onde as imagens eram produzidas.

A imprevisível novidade de um universo de incompossíveis assume, definitivamente, a potência que iria exigir a reformulação dos princípios da identidade como unidade fundadora do “Ser” e do saber. Uma vez que eram ilimitada as possibilidades de se arranjar as frequências circulantes, o conhecimento da realidade do mundo das formas relacionadas passa a exigir que se expandisse seus domínios para outros universos, paralelos e em um número infinito de possibilidades, separados por membranas polimerizadas que funcionavam como barreiras seletivas para migração de novas dimensões entre um universo e o outro. Isso só poderia se tornar viável para o pensamento se não a partir de um inflexão específica do ponto de vista que originou o novo sítio de visão onde as formas passam a se desorganizar e onde começam a se desfazer as relações entre suas frequência. Uma vez que a própria visão é uma sínteses entre a luz capturada pela pupila que forma a imagem na retina, passa-se a se pensar possível que toda realidade possa ser criada no momento em que se abram os olhos, e só a partir dessa inflexão possa se gerar a realidade que começa a existir diante dos olhos. Ao ponto de vista dos observadores do mundo, sujeitos que tinham sido separados da realidade objetiva, é concedido o privilégio de orientar tudo que vem a seguir, sem que este ato fosse revestido de um caráter subjetivo que demarcava a diferença entre o sujeito agente da visão e a realidade objetivamente projetada na retina, mas a própria subjetividade é misturada na nova “assemblage”. Esse instante em particular torna-se a inflexão que faz nascer o tempo e o espaço da complementariedade onde as frequências vêm a se relacionar. Uma vez conferido a essa inflexão um “status” provisório dada a necessidade de que que as frequências estejam relacionadas para que haja o sujeito e o objeto, começa-se a empurrar a realidade de volta para o caos onde coexistem todas as possibilidades, dimensão única onde tudo coexiste como frequências não relacionadas em um estrado integrado. Rio sem margem, superfície ou fundo onde tudo dura ininterruptamente em sua absoluta diferença e onde qualquer relação, topologia ou marcação só pode se dar através das dobras de uma única membrana onde tudo se move como frequência não relacionada, livre e absolutamente diferente, secretando o tempo onde os mundos incompossíveis são revestidos pelos contornos fora dos domínio das formas que delimitam a extensão dos corpos e da matéria; crivo que devolve ao caos o seu “status” do lado de fora da forma.

Quando a ciência física do final do século XIX passa a ter que lidar com os paradoxos produzidos pela observação de novos fenômenos, começam a ser dissolvidos os fundamentos da identidade que constituíam as qualidades e as partes das funções científicas. Tendo que explicar o porque que apenas uma parcela ínfima de certas moléculas é afetada por um determinado pulso de

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frequência ou o porque um toda a energia de um determinado impulso que se estende por toda uma área é absorvida por uma única molécula, os novos paradigmas demandaram modelos que fossem capazes de dar conta da indeterminação, da imponderabilidade e do caráter probabilístico dos fenômenos analisados, reinterpretando ou reescrevendo leis que os descreviam de forma inequívoca. Novos problemas ganharam espaço também do universo das artes onde a representação através das figuras capturadas pelos sentidos e organizadas no anteparo da tela do artista são dissolvidas através das forças que não se deixam capturar pela clássica representação que se preocupava em descrever o resultado de sua ação através das formas onde elas já apareceriam relacionadas. Passa-se então a se tentar reproduzir as forças em seus estados livres, no caos sua absoluta diferença e na ilimitada possibilidade de suas ações, para além das suas aparições na forma. Essa nova cena contava com novas problematizações também na música bem como na literatura e assumia contornos diversos nos movimentos econômicos e políticos que atravessaram o século XX, fazendo explodir a subversão de forças aprisionadas por séculos nos esquemas da representação da razão clássica.

A revolução processada a partir do fim do século XIX, no âmbito da análise da aparição do mundo ao sujeito que o percebe, abstrai e o diz, tem haver com a disrupção do mundo das formas fundado na identidade das coisas. A partir do momento que admite-se a impossibilidade de se determinar exatamente a essência fundamental de qualquer objeto, fragmentam-se os conteúdos da realidade objetiva, uma vez que são multiplicadas as possibilidades de arranjos entre as forças que constitui essa objetividade na unidade de sua forma, determinação de suas partes e na qualidade de suas propriedades. Quando a ciência admite a impossibilidade de uma partícula atômica ser determinada em suas propriedades, bem como ser impossível determinar sua posição específica ou sua trajetória, as leis da mecânica clássica, construídas no século XVII, não conseguem mais dar respostas ao mundo que passa a ser observado, tendo elas então que buscar soluções para manter a objetividade daquilo que o sujeito contempla ao seu redor, sob o risco de se tornar pura subjetividade. Os princípio da incerteza e da imponderabilidade passam a acompanhar toda a descrição dos fenômenos observados pelo sujeito, e a objetividade transforma-se em relações estatísticas de probabilidade. Dessa forma a aparição do objetos no tempo e no espaço passa a ser relacionada a um campo onde se determina a probabilidade dessa ocorrência.

A ruptura dos clássicos modelos de se descrever o mundo em sua objetividade é alimentada pela relevância concedida a toda tendência que conduz aquilo que aparece como realidade objetiva e essa nova dinâmica foi sendo revestida com novas roupagens teóricas e experimentais na tentativa de se dar conta da fragmentação da identidade que tinha sobrevivido ao longo da aventura do pensamento. Se à matéria extensa, resultado das relações entre as forças, não se pudesse atribuir um fundamento último como sua unidade fundamental, liberar-se-ia toda a potência das forças na liberdade de sua função de afetar, sem que sua matéria, ou sua capacidade de ser afetada, restringisse essa ação. A atividade das forças é carregada, então, de uma imprevisível novidade; frequência que não para de pulsar e a determinar as intensidades múltiplas e sempre novas que

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atravessam os sentidos; jorro ininterrupto de novidade; fluxo das forças livres; fluxo do devir.

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Unidade 8. A emergência de uma nova ordem

O transmissor foi inventado em 1947, possibilitando o processamento de impulsos elétricos em velocidade rápida e em um modo binário de interrupção e amplificação, permitindo a codificação da lógica e da comunicação. Em 1954, a utilização do silício para a fabricação dos semicondutores foi realizada de forma pioneira pela Texas Instruments, em Dallas. Em 1957, foi inventado o circuito integrado; em 1971, o microprocessador e, em 1975, o microcomputador, tendo este último sido lançado com um grande sucesso comercial, em 1977, através do Apple II. Desde 1969, tinha entrado em funcionamento a primeira “rede de computadores” responsáveis por intercomunicar os centros de pesquisas que colaboravam com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, mas que em fins da década de 1980 já conectava alguns milhões de usuários de computadores e, na década de 1990, passam a unificar os “protocolos”, dando o atual formato de protocolos integrados da Internet e a difusão do seu uso pela sociedade em geral.

Coincidentemente ou não, foi durante o período que vai da invenção do transmissor à invenção do microprocessador que o sistema monetário mundial vive o apogeu e o colapso de Bretton Woods, e a emergência de um novo sistema monetário com uma maior ênfase em seu viés financeiro. Talvez também não tenha sido por acaso que os movimentos de contracultura tenham “explodido” com sua maior expressão e força nas artes plásticas, na música e nos padrões de comportamento a partir da década de 1940, através da geração dos “baby boomers”. Os “filhos da guerra” tiveram como herança um longo período de prosperidade material, que, ao invés de inspirar sentimentos de solidariedade com a “ordem instituída”, foram conduzidos a movimentos de contestação sem precedentes na história da civilização moderna, buscando inspirações em elementos culturais diversos fora da fronteira ocidental, em especial no Oriente. A liberdade, ideal máximo da sociedade moderna, ganha contornos cada vez mais fragmentados ressaltando as singularidades a partir de uma “ética social” da relativização dos costumes e da “babelização” dos valores, criando historicamente um espaço gelatinoso sobre o qual não se logra fixar nenhum consenso. Tudo se altera rápido em decorrência de ter sido a “aceleração vertiginosa” de mudanças incorporadas à agenda dos tempos.

Daí o fato de a observação e a descrição dos eventos dos “novos tempos” exigir que nossa análise sobre o conceito “ordem”, referida ao conjunto de relações entre os conteúdos da atual estrutura social, aponte para dimensão de

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estabilidade que a caracteriza; uma configuração onde se relacionam diversos elementos e onde existe uma variedade de conteúdos em constante movimento. A ordem deve ser capaz de organizar o espaço em que matérias diversas se relacionam por intermédio de linhas de articulações por onde as trocas se dão em diferentes quantidades e velocidades do “[...] caos do Ser, sempre vivo, sempre atuante, em que uma multiplicidade de formas se materializa a partir de um sem-número de elementos” (Thomas Carlyle, Selected Writings).

A ordem captura o devir através de modelos que reduzem o número de dimensões infinitas que a multiplicidade dos fragmentos abre como possibilidade. Ela define um estatuto para o estado das coisas e para os enunciados e relaciona os acontecimentos de forma a organizá-los em uma configuração específica. A base das estruturas de uma determinada ordem pode ser vista à luz de todos os movimentos que a interpenetram, e através da ação do devir que oblitera as tentativas de controle e redução de suas infinitas possibilidades por intermédio de dispositivos de captura do acontecimento e da produção do novo.

Os dispositivos de captura do acontecimento em uma determinada ordem se distribuem pelos processos individuais e coletivos responsáveis por fornecer sentido a uma realidade móvel, mantendo-a em equilíbrio. Essas linhas de articulação funcionam enquanto conseguem escoar o mesmo do acontecimento, e perdem sua eficácia quando o movimento encontra novas linhas de fuga que irão escoar o acontecimento através de novos segmentos. Daí a sucessão de diversas ordens, onde as matérias e enunciados se cristalizam num corpo social e são distribuídas em diferentes arranjos, onde os saltos ou rupturas que se podem detectar no movimento se traduzem em diferentes organizações por meio da “máquina social” que desenrola seu território.

Essa mistura compreende todas as “atrações” e “repulsões, as “simpatias” e as “antipatias”, as “alterações”, as “alianças”, as “penetrações” e as “expansões” que afetam os “conteúdos circulantes”, uns em relações aos outros. Assim, cada máquina social possui seu princípio ordenador que, em última instância, orienta a produção dessas formações sociais. Mais do que um modo de produção determinado, tais formações sociais se compõem por meio dos processos que definem os aparelhos de captura que engendrarão os amálgamas e simbioses dos quais os modos de produção dependem. Assim sendo, não seria a máquina social que suporia um modo de produção determinado, mas a máquina social que faria da produção um modo.

Ao propor analisar o conceito da emergência uma nova ordem ou a mudança do sentido da ordem, gostaria de situar esse plano no contexto da ordem dos Estados Nacionais Modernos Globalizados, onde um capitalismo de caráter financista, hoje também conhecido como “economia de mercado”, triunfou como sistema econômico e a democracia se apresentou como sistema político dominante. Chamaremos esta Ordem aqui de sobremodernidade (vide conceito de sobremodernidade utilizado por Marc Augé em “Sobremodernidade: do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial do amanhã – Sociedade midiatizada”).

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Apelando metodologicamente para uma série histórica que defina padrões de comportamento e modelos de produção, sinalizamos a existência de três grandes acontecimentos que envolveram três máquinas sociais: as Sociedades sem Estado, os Estados Arcaicos ou Cidades-Estado e o Estado Moderno. Cada um desses fenômenos carrega uma característica comum que é o desenvolvimento de instrumentos de ordenação e controle que passam por questões de conteúdo, como os códigos territoriais e a divisão do trabalho e da produção material, assim como por questões de expressão dos mecanismos de disciplina. Mesmo sem a necessidade de desenvolver uma teoria social, seria importante demarcar a forma como nos aproximamos de nosso objeto de estudo, uma vez que o mesmo não possui a regularidade dos fenômenos físicos matematicamente explicáveis em termos das funções de expansão e movimento. Assim, abrimos mão da tentativa de formular uma ciência para tentar nos aproximar de fenômenos relacionados a uma complexa rede de relações, cientes de que precisamos lançar mão de um modelo, buscando colocar as constâncias em evidência nas relações entre as variáveis, mas esforçando-se mais ainda para colocar as variáveis em estado de variação contínua. Deste modo, os fenômenos abordados, por apresentarem um grande número de variáveis distintas conectadas entre si e dependentes de um excesso de condições iniciais, não poderiam ser tratados matematicamente de forma a estabelecer axiomas que funcionassem na constância e regularidade de suas manifestações.

Nas ciências sociais, algumas teses sobre a origem de determinadas organizações sociais assumem a visão de que as sociedades evoluem num modelo de causalidade, de um sistema menos eficiente para um mais eficiente, de um menos hierarquizado para um mais hierarquizado. Pode-se apelar também para a ideia da existência de uma infraestrutura material que seria a relação entre corpos, ações e paixões em todas as suas dimensões (econômicas, políticas ou sociais), onde os conflitos e o modo de produção dominante determinariam a superestrutura política específica, ou seja, as suas determinações ideológicas. Diferentemente, há hipóteses que afirmam que o campo social de uma ordem se define menos por seus conflitos e suas contradições do que pelas linhas de fuga que o atravessam, não comportando nem infraestrutura, nem superestrutura, mas nivelando todas as suas dimensões em um mesmo plano no qual atuam as “pressuposições recíprocas e as inserções mútuas”. Marx já sinalizava o princípio de sua teoria dialética que permearia todo o seu pensamento e seria a base do entendimento da evolução dos sistemas econômicos a partir dos conflitos no nível da infraestrutura material das sociedades e que, segundo ele, assumiam validade universal e supra-histórica. Na refutação da teoria econômica clássica, ele dizia:

Este exemplo mostra de uma maneira muito clara, como até as categorias mais abstratas, precisamente por causa de sua natureza abstrata, apesar de sua validade para todas as épocas, são, contudo, na determinidade desta abstração, igualmente produto de condições históricas, e não possuem plena validez, senão para estas condições e dentro dos limites destas. A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada da produção. As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua própria articulação,

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permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, levam de arrastão, desenvolvendo tudo o que fora antes apenas indicado, que toma, assim, toda a sua significação etc. [...] O chamado desenvolvimento histórico repousa sobre o fato da última forma (sociedade burguesa) considerar as formas passadas como etapas que levam a seu próprio grau de desenvolvimento. [...] Em todas as formas de sociedade se encontra uma produção determinada, superior a todas as demais, e cuja situação aponta sua posição e influência sobre as outras. (Karl Marx, Para a crítica da economia política)

Esta concepção supõe um desenvolvimento progressivo de uma ordem para a outra através de um conflito dialético entre os modos de produção dominantes e os conflitos e contradições que iriam ganhando força no desenvolvimento de certas sociedades, até que, finalmente, se operasse a síntese do surgimento de uma nova ordem com o seu novo modo de produção. Teria sido assim na evolução das comunidades agrícolas “primitivas” sem Estado para o Estado imperial arcaico, deste para o Estado feudal e assim sucessivamente até o Estado moderno. Desta forma, cada ordem em si carregaria, necessariamente, os germes da que a sucederia e esta, os despojos decompostos daquela a que sucedeu.Neste ponto, gostaria de me deter na análise de quatro conceitos utilizados pelo filósofo Gilles Deleuze: conteúdo, enunciado, formas de conteúdo e formas de expressão. Segundo Deleuze, as formas de conteúdo seriam o “conjunto das modificações corpóreas”, enquanto as formas de expressão seriam entendidas como o “conjunto das transformações incorpóreas”, não existindo entre elas nenhuma correspondência ou conformidade por possuírem naturezas diferentes, independentes e heterogêneas. As formas de conteúdo seriam constituídas pelas ações e paixões dos corpos vistos como conteúdos, enquanto as de expressão pelos atos incorpóreos, os expressos dos enunciados. Poderíamos exemplificar esses conceitos a partir dos traços da sociedade moderna, onde a prática das trocas mercantis se caracterizaria como forma de conteúdo e o corpo de ideias que ficou conhecido como “Liberalismo” se constitui como uma forma de expressão.

A forma de expressão será constituída pelo encadeamento dos expressos, como a forma de conteúdo pela trama dos corpos. (Gilles Deleuze e Félix Gattari, Mil platôs)

A partir daí, relacionam-se as formas de conteúdo ao que se denomina “agenciamento maquínico de corpos”, enquanto as formas de expressão são relacionadas aos “agenciamentos coletivos de enunciação”. Como as duas formas são postas como possuidoras de diferentes naturezas, a relação entre elas se daria através de uma intervenção recíproca, onde os pontos de intervenção e de inserção são determinados pelos “graus de desterritorialização que quantificariam as formas respectivas e segundo os quais os conteúdos e as expressões se conjugam, se alternam, se precipitam uns sobre os outros ou, ao contrário, se estabilizam, operando uma reterritorialização” (Gilles Deleuze e Félix Gattari, Mil platôs). Assim, os agenciamentos teriam “lados territoriais” que os estabilizam e, de outra parte, “picos de desterritorialização” que os arrebatam.

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A intervenção recíproca entre as formas de conteúdo e expressão, corpos e enunciados, se daria a partir dos graus de equilíbrio ou estabilidade dos agenciamentos, que funcionariam como pontos de intervenção recíproca.

Os enunciados não são ideologias [...], são peças e engrenagens no agenciamento, não menos que os estados de coisas. [...] Os enunciados não se contentam em descrever os estados de coisas correspondentes: enunciados e bocas que os proferem são, antes, como duas formalizações não paralelas, formalização de expressão e formalização de conteúdo. [...] A única unidade (entre o conteúdo e a expressão) vem do fato de que uma única e mesma função é o expresso do enunciado e o atribuído do estado de corpo: um acontecimento que se estende ou se contrai, um devir no infinitivo [...]. Um agenciamento é, a um só tempo, agenciamento maquínico de efetuação e agenciamento coletivo de enunciação. [...] São variáveis da função, que entrecruzam continuamente seus valores ou seus segmentos. (Gilles Deleuze e Clarie Parnet, Diálogos)

A crítica deleuziana da dialética marxista parte da consideração de que seria um equívoco acreditar numa forma de conteúdo específica que determinasse qualquer forma de expressão. Deste modo, um agenciamento não comportaria nem infraestrutura, nem superestrutura, mas nivelaria todas as suas dimensões no mesmo plano de imanência em que atuam as pressuposições recíprocas e as inserções mútuas de conteúdos e expressões.Deleuze nos dá um exemplo disso em Mil platôs, quando se refere ao agenciamento feudal:

Considerar-se-ão as misturas de corpos que definem a feudalidade: o corpo da terra e o corpo social, os corpos do suserano, do vassalo e do servo, o corpo do cavaleiro e do cavalo, a nova relação que estabelecem com o estribo, as armas e as ferramentas que asseguram a simbiose dos corpos – é tudo um agenciamento maquínico. Mas também os enunciados, as expressões, o regime jurídico dos brasões, o conjunto das transformações incorpóreas, principalmente os juramentos com suas variáveis, o juramento de obediência, mas igualmente o juramento amoroso, etc. [...] é o agenciamento coletivo de enunciação. E, de acordo com o outro eixo, as territorialidades e reterritorializações feudais, ao mesmo tempo em que a linha de desterritorialização, que arrebata o cavaleiro e sua montaria, os enunciados e os atos. Como tudo isso se combina nas Cruzadas. (Gilles Deleuze, Mil platôs)

Mais nítida ainda fica a crítica de uma visão evolucionista da história quando Deleuze discute a formação do Estado a partir de sociedades ditas “sem Estado”, relacionadas à fixação do homem em um espaço delimitado, à troca do direito individual pelo bem-estar coletivo e à formação do estoque de uma sociedade organizada. Em Mil platôs, essa discussão evolui até a análise dos fundamentos da máquina social do “capitalismo tardio” que, com seus devires loucos e mobilidade ilimitada explodindo os territórios fixos, abrem espaços de circulação, onde os conteúdos trafegam em rede a uma velocidade alucinante. Se, em A lógica do sentido, Deleuze vai buscar o apoio na ontologia estoica para descrever o encontro de corpos que engendram o incorporal, e este como uma posição de sentidos no mundo, em Mil platôs ele dá continuidade à análise do

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Anti-Édipo, onde tenta seguir o movimento de passagem dos corpos e dos fluxos decodificados do capitalismo, na erraticidade de sua dinâmica esquizofrênica, onde o sentido desta nova ordem se estabelece a partir da volatilização dos vínculos entre os fluxos financeiros, de trabalho e capital.

Partamos, então, para definir o espírito da época sobremoderna, ressaltando que esse esforço não se apresenta como tentativa de retorno a qualquer momento histórico ou passado idealizado e alimentado pela nostalgia de uma harmonia que nunca existiu, nem mesmo como instrumento para transformar o presente em um futuro recheado de esperanças, mas numa postura que assume o transitório e o impermanente como estando na base de todas as civilizações. A sociedade do século XXI exacerbou a volatilidade, e esta passou a alimentar o processo das trocas e dos fluxos como motor da máquina social que conduz e sustenta o próprio movimento da trama social e dos seus agentes. Na instantaneidade das relações, o espírito sobremoderno aponta para a casualidade dos encontros e o constrangimento com o verdadeiro o tempo todo, tornando-se falso em plebiscito numa velocidade surpreendente. Cada plebiscito seria o resultado de um tratamento dos fatos e das questões a partir dos diversos novos elementos que compõem a abordagem, conectados e imbricados nas teias da trama de uma complexa rede, permitindo-nos substituí-los e seguir em frente, quase sem considerar os outros elementos, corpos ou conteúdos interconectados. Porém, o ponto fundamental para a compreensão do sentido de uma “exacerbação do volátil” é a tarefa de garantir o contínuo movimento dos conteúdos que são reunidos e reclassificados a todo o tempo, dada a velocidade, fluidez e alternância da natureza de seu fluxo, que não assume uma forma fixa, nem estável. Assim, o escopo do movimento é tomado na perspectiva de garantir o fluxo dos acontecimentos através de conteúdos que se movimentam continuamente e produzem transformações instantâneas a partir dos seus encontros e cruzamentos.

Como identificar os conteúdos moventes no espaço da sobremodernidade, onde os fluxos transitam numa velocidade vertiginosa? Um fluxo pressupõe um movimento contínuo. O deslocamento do movente sobremoderno só pode ser capturado através de cortes ou interrupções virtuais, que geram as “extremidades de intervalos”, onde se inscrevem, então, as grafias que pretendem traduzir o movimento dos conteúdos no espaço. Quando se aumenta a velocidade desse fluxo e o encontro das múltiplas formas circulantes desemboca em novos arranjos, realidades e mundos, torna-se mais difícil grafar o rastro de sua duração.

Ao tentar capturar esse exato instante em que o movente se localiza no fluxo, a impermanência que caracteriza o seu movimento precipita a perda dos suportes e seus elementos de convenção, pois a possibilidade de mensurar sua passagem através de virtuais pontos de captura, dada a velocidade do fluxo, dificulta a grafia de sua posição absoluta. Assim, a atitude sugerida para se lidar com a duração do fluxo sobremoderno seria a de espectadores de um tempo que foge em uma dimensão de “jorro ininterrupto de novidade”.

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Para que essa duração seja apreendida, o pensamento deve se libertar da expectativa de tentar medi-la, optando-se por vê-la, senti-la e vivê-la continuamente. Esse exercício trabalha o conceito de instante como movimento que se afasta em uma ausência contínua e se abre em uma única dimensão. Essa ausência atrai os conteúdos sem poder, em função disso, ser representada por um espaço definido ou por um lugar que pudesse reuni-los. Na verdade, ela se insinua na “brancura de sua ausência” e, assim sendo, não possui qualquer determinação que possa funcionar como causa da atração desses conteúdos. Sobra, então, a atração que confere – no vazio do movimento sem fim e sem causa – uma potência condutora que aponta para a própria ausência que se abre e se apresenta como um “não-lugar”: um espaço de vertigem, onde o olhar se perde, indefinidamente, no vazio de pés fora do chão.

Os conteúdos da sobremodernidade se definem a partir de sua capacidade de se movimentar livremente em um mundo cada vez mais sem barreiras. O tráfego dos conteúdos já não mais se orienta a partir de uma condução determinada em que o movimento representaria uma ação sobre o movente deslocado. Desta forma, os deslocamentos assumem o princípio da automotividade dos conteúdos circulantes. Este sentido de mobilidade se realiza na potência de deslocamento carregada pelos conteúdos. O movimento dos conteúdos não depende mais de qualquer matéria ou campo de força que exerça influência gravitacional sobre o movente.

A matéria escura (espécie de matéria que não absorve, nem emite luz ou qualquer faixa de radiação eletromagnética, mas exerce uma forte influência gravitacional sobre uma estrela, podendo assim ser inferida e não observada) foi deslocada para o interior dos conteúdos de forma a garantir a possibilidade de movimento dos fluxos, a partir da sua automotividade. Esse movimento é garantido pela própria característica volátil dos conteúdos, marcada por sua fluidez, capacidade de compartilhamento e anonimidade, princípios básicos da circulação.

A partir da dinâmica dos “nós flutuantes de acontecimentos que se interfaceiam e se envolvem reciprocamente” (Pierre Lévy, O que é o virtual?), os conteúdos perseguem a passagem do seu próprio movimento como rastros de uma “chegada generalizada” e de uma “partida sem origem”, uma vez que as transmissões instantâneas e a consequente alteração das dimensões de espaço e tempo abolem a noção de partida, substituindo-a pelo sentido de instantaneidade. Esses rastros funcionam como marcações de um tempo real, sempre presente, e de um espaço, cuja extensão foi eliminada a partir da fuga de todos os pontos que passam a se organizar como pixels e bites em uma rede de encontros virtuais.

Em substituição a uma ordem hierárquica ou de filiação, os rastros perseguidos pelo movimento dos conteúdos automotivos são as grafias que formam, em última instância, o plano de traficância que orienta o fluxo em redes absolutamente fragmentadas. Os gráficos de traficância são fundamentais para determinar o potencial ou a expectativa da posição relativa dos conteúdos no fluxo, cujo potencial especulado serve para configurar seu plano nesta

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traficância. A leitura do plano de traficância indica as possibilidades de posição dos conteúdos no interior do movimento a partir da captura de sua emergência eruptiva, relativizando a tradicional forma de fixar os pontos no espaço.

O deslocamento, aqui, não é visto através de uma linha que objetive uniformizar os limites do tempo e do espaço, mas, sim, como uma função que se alimenta do indecidível que habita as conexões dos conteúdos, tornando-as possíveis, sem, contudo deixar-se compreender por elas ou vir a constituir outro através delas. Essa leitura só é possível se compreendermos as transformações instantâneas às quais os conteúdos são submetidos quando as forças se chocam no interior do movimento. Os códigos das expressões especulativas conferem a estes instantes um status de “unidades de simulacro” que não se deixam mais compreender na posição simples no espaço, mas que são, entretanto, habitadas pelos conteúdos sem lhes opor resistência e desorganizando-os, sem jamais constituir um terceiro termo e nunca dar lugar a uma solução espaço-temporal, mas abrindo-se numa dimensão da virtualidade especulativa.

Faz-se necessário, desde já, definir o conceito de virtualidade com o qual trabalharei daqui para frente, tecendo, a priori, alguns comentários acerca do processo de virtualização que acomete a sobremodernidade.

Aproximando-me da filosofia escolástica que definia o virtual como um conteúdo que existe em potência e não em ato, o primeiro passo é conferir-lhe um estatuto de realidade sem o qual se cairia na oposição entre o virtual e o real, o que reivindicaria uma ausência de realidade nos conteúdos virtuais. Aproveitando a distinção efetuada por Pierre Lévy, diria que a principal dimensão a se opor ao virtual é a dimensão do atual. Contrariamente às dimensões do “já constituído”, do “estático” e do “determinado” que subjazem aos conteúdos atuais, o virtual explora um “complexo problemático”, um nó de tendências ou a mobilidade das forças que no processo de virtualização dos conteúdos eleva à potência máxima as entidades consideradas, deslocando seu centro de gravidade, que passa a encontrar sua consistência essencial num campo de problematização. Assim, segundo Lévy, “virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mudar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular” (Pierre Lévy, O que é o virtual?). Consequentemente, o conceito de virtualização, uma vez relacionado a um processo de determinação que redefine uma atualidade qualquer na dimensão da exploração de um novo problema, ressalta o grau de fluidificação entre as distinções já instituídas nos conteúdos atuais. A partir daí, a virtualização abre a possibilidade de evocarmos a dimensão do problema como um desprendimento do espaço físico ou geográfico ordinário e do tempo cronológico do relógio e do calendário, instituindo um espaço unidimensional não determinado ou não designável, onde fica ressaltada a ubiquidade e a simultaneidade dos eventos, e a possibilidade de seu processamento em uma única dimensão.

A perspectiva de uma única dimensão já havia sido proposta, mesmo que de maneira diferente, por Herbert Marcuse, em seu conceito de One-Dimensional Man, que era carregado de uma crítica social contra um modelo ao qual se

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contrapunha: o da sociedade industrial. Esta pode ser definida como a sociedade tecnológica, do artificialismo, da racionalidade institucional. É a sociedade sem oposições de nivelamento. O filósofo alemão utiliza a expressão “sociedade unidimensional” justamente para demonstrar as formas de controle desse tipo de sociedade, prova de como um sistema e um modo de produção dominante poderiam exercer influência sobre a consciência humana.Em “A ideologia da sociedade industrial” (One-Dimensional Man, 1964), Marcuse afirmava que a sociedade unidimensional, ao contrário da bidimensional, onde classes dominantes opõem-se às classes dominadas, caracterizava-se por sua capacidade de absorver as classes subalternas, tornando-as não-contestadoras. Desta forma, a ideia de Marx de que o operariado industrial, o moderno proletariado, seria a força motriz da revolução socialista não se verificava em sociedades de capitalismo tardio, como a norte-americana. Nelas, os trabalhadores eram acomodados, seduzidos pelo consumo e pelos bens materiais, e inseridos numa única dimensão. Segundo Marcuse, o desenvolvimento técnico era o principal culpado por um sentimento de que o sistema vigente seria capaz de gerar condições de satisfação das necessidades fundamentais da sociedade. Marcuse destacava a perspectiva da “homogeneização” numa ordem que, segundo ele, destruía o potencial de singularização e todo o potencial subversivo das minorias.

Ao utilizar novamente o conceito de unidimensionalidade, gostaria de fazê-lo sob uma perspectiva diferente. Embora reforçando a perspectiva da homogeneização levantada por Marcuse, incluí aí um contraponto típico da sobremodernidade: ao mesmo tempo em que a velocidade cada vez maior das conexões interliga diversos conteúdos, audiências e públicos, criando uma interdependência local, a homogeneização traz consigo a multiplicação das reivindicações de singularidades.

O paradoxo do mundo contemporâneo, ao mesmo tempo unificado e dividido, uniformizado e diverso (...) (Marc Augé, Sobremodernidade: Do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial do amanhã)

A ordem sobremoderna aponta um movimento de captura dos acontecimentos que produz multiplicidades achatadas em um mesmo plano, onde os saltos ou rupturas se estendem em uma única dimensão ou numa virtualidade unidimensional. A sobremodernidade carrega a potência que exprime a capacidade de homogeneização e interdependência dos acontecimentos, assim como reivindicações de singularidades que trafegam em diferentes direções. A sobremodernidade carrega o germe da dissolução das fronteiras e dos entraves para a livre circulação de conteúdos cujo fluxo dava de um ponto a outro no espaço extenso. A mudança do sentido da ordem reside na compreensão de uma realidade unidimensional, que figura como elemento motriz de uma circularidade difusa, na qual o aumento da velocidade das trocas achata as dimensões de espaço e tempo, permitindo que todos os conteúdos trafeguem sem partida, funcionando como premissa de uma chegada generalizada.

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Atualmente, com a revolução das transmissões instantâneas, assistimos às premissas de uma chegada generalizada, aonde tudo chega sem que seja necessário partir; a liquidação da viagem (quer dizer, do intervalo de espaço e de tempo) do século XIX, volve-se neste final do século XX em eliminação da partida, perdendo, assim, o trajeto dos componentes sucessivos que o constituíam, em benefício, unicamente, da chegada. (Paul Virilio, A velocidade de libertação)

Por virtualidade unidimensional entendemos todas as relações de possibilidades processadas nos diversos âmbitos, esferas e segmentos constitutivos da dimensão virtual, na dinâmica da relação dessas possibilidades circulantes no sentido de uma única dimensão subjacente. Essa dimensão subjacente caracteriza-se pelo alto grau de desterritorialização dos indivíduos e dos processos de trocas que virtualizam os conteúdos, lançando-os de volta ao espaço habitado pelo conjunto de possibilidades indistintas com uma multiplicidade indeterminada. A inexistência de territórios fixos, de limites demarcados e a presença de uma traficância volátil permitem a circulação dos fluxos em velocidades crescentes, criando a perspectiva de uma única dimensão, onde os acontecimentos e a conexão dos conteúdos abrem novas relações de possibilidades em um mesmo plano, sem alterar suas dimensões originais. A sobremodernidade assiste à multiplicação das trocas de conteúdos através do aumento da velocidade dos fluxos, que passa a intervir na efetuação de importantes transformações no sentido de atualidade da ordem.

A partir de uma máquina social de componentes interconectados em rede, os “muros”, mais do que derrubados foram transpassados a partir do desenvolvimento de tecnologias que aumentaram a velocidade das conexões e liquefizeram os limites que demarcavam a individuação dos conteúdos. Longe de constituir uma visão teleológica, este novo sentido de ordem aponta para inúmeras possibilidades sem conotações de utopias do porvir, submetendo a potência de criação e de realização de mundos possíveis à sua própria indeterminação. Quando falamos em relações e possibilidades, nos referimos às possibilidades da esfera pré-individual em sua interação dinâmica que desembocará na atualização espaço-temporal das relações do sujeito, do universo político, da evolução constitutiva do pensamento e das trocas materiais que se processam a partir de uma dinâmica produtiva.Na sobremodernidade, a interação entre as dimensões virtuais e atuais se processa em espaços unidimensionais, alinhados sob a égide da veloz traficância dos corpos e sentidos em que as resistências aparecem cada vez mais minadas, tanto no sentido histórico-social, subjetivo-individual, quanto possível-incorporal. A queda dos “muros” – e não apenas os limitados a movimentos políticos singulares, mas os próprios limites constitutivos das relações de individuação que compõem o universo de trocas da atual realidade –, imprimiu uma traficância de velocidade crescente. Contudo, a constituição de uma ordem que convive com a diversidade de possibilidades apresenta-se como explosão de uma multiplicidade que flui em uma única dimensão e enfatiza um paradoxo: o paradoxo da multiplicidade unidimensional, espaço onde tudo circula, mas, ao mesmo tempo, permanece no mesmo lugar. Félix Guattari já identificava esta multiplicidade unidimensional apontando para o que ele chamava de paralisia da subjetividade.

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Tudo circula: as músicas, os slogans publicitários, os turistas, os chips da informática, as filiais industriais e, ao mesmo tempo, tudo parece petrificar-se, permanecer no lugar, tanto as diferenças que se esbatem entre as coisas, entre os homens e os estados de coisas. No seio de espaços padronizados, tudo se tornou intercambiável, equivalente. Os turistas, por exemplo, fazem viagens quase imóveis, sendo depositados nos mesmos tipos de cabine de avião, de Pullman, de quartos de hotel e vendo desfilar diante de seus olhos paisagens que já encontraram cem vezes em suas telas de televisão ou em prospectos turísticos. (Félix Guattari, Caosmose – Um novo paradigma estético)

Nesta nova Ordem, a captura do devir se dá através de um movimento que reduz as dimensões a partir do aumento de velocidade das trocas e conexões em uma complexa rede. Nesta rede, são gerenciadas de forma fragmentária as atividades criadoras de sentido que se interconectam em um padrão unidimensional de cultura, que chamaremos de cultura unidimensional, dimensão que modula os diversos significados e as diversas possibilidades por intermédio de um diagrama que orienta a flexibilidade do movimento dos corpos e da produção de subjetividade. A expressão dessa cultura unidimensional pode ser entendida como o arranjo de agenciamentos individuais e coletivos entrecruzados em uma nova dimensão de espaço e no tempo, a partir da disrrupção provocada pelo aumento da velocidade das trocas e das ações recíprocas das formas de conteúdo e das formas de expressão. Tempo deixa então de ser encarado como linearidade progressiva e transforma-se em pura duração, onde espaço passa a ser visto como palco inextensivo dos encontros atemporais que cria novos e ilimitados sentido para ordem.

Se o sentido puder funcionar como o conjunto de possibilidades que intervém nos conteúdos, essa ordem se encontra em um espaço que assume significações cada vez mais voláteis e cuja potência virtualiza os conteúdos num arranjo que não para de se bifurcar e se superar a cada novo acontecimento de modo cada vez mais veloz, criando códigos de expressão de uma multiplicidade que se abre ilimitadamente. A máxima expressão dessa multiplicidade pode ser entendida fora do sentido de um espaço das ressonâncias, liberando as forças livres e não relacionadas como conteúdos de um fluxo ilimitado em uma rede rizomática.

Espaço de circulação onde os eventos se conectam numa velocidade crescente, que elimina as distâncias e os instantes, os eventos em suas relações não identitárias de acoplamento entre frequências de conteúdos e de expressões, numa perspectiva de não-pertencimento. Neste não-lugar, o multipertencimento dos conteúdos alterados instantaneamente pela ação contínua dos enunciados, estabelece um jogo cuja dinâmica conta com a ação de forças infinitamente multiplicadas. Essas frequências se distribuem a partir de uma organização molecular na qual a multiplicidade das partículas infinitesimais que constituem os corpos e suas relações aponta para a unidimensionalização de sujeitos e objetos.

Esse multipertencimento pode ser ilustrado através da abolição de pontos e instantes que ocupam um lugar simples no espaço, criando um não-lugar, onde o

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próprio espaço e tempo se confundem por força da intercambialidade das subjetividades, da multiplicidade de possibilidades e do multipertencimento dos conteúdos, que impedem a fixação de lugares onde se possam determinar sujeitos e objetos em suas dimensões de virtualidade e atualidade. Os enunciados flutuam e se cruzam em espaços inextensos e de ilimitadas linhas de fuga, numa velocidade vertiginosa, encontrando conteúdos não mais relacionados pelo múltiplo inteiro da ressonância mas pela instantaneidade de forças alternantes, em territórios que se desfazem e se recriam no menor espaço e tempo possível, formigando e emergindo constantemente das bordas de uma rachadura, “saindo e entrando sem parar, compondo-se de mil maneiras” (Gilles Deleuze, Diferença e repetição).

Dessa forma, a impermanência pode ser entendida como fluxo de um devir intransitivo e sem códigos de filiação, com semelhanças ou equivalências, assumido como uma “duração pura” na qual os intervalos seriam apenas o resultado da captura e do registro em um determinado plano ou território, de um movimento ilimitado. Nesses territórios específicos, os agenciamentos são constituídos e se dissolvem, aparecem e desaparecem, organizam-se e desmontam-se, reunindo “[...] animais, vegetais, microrganismos, partículas loucas, toda uma galáxia” (Gilles Deleuze e Félix Guattari , Mil platôs).

Assim, seria arriscado acreditar numa lógica que permitisse a apropriação ou antecipação dessa passagem pelos planos, apontando direções para suas inúmeras possibilidades através da leitura objetiva de seus registros grafados no instante do movimento. Toda tentativa de previsão das alternâncias dos movimentos que produzem a desterritorialização e reterritorialização de determinados agenciamentos é inútil, uma vez que a busca de semelhanças entre as frequências mostra-se infrutífera, já que os registros disponíveis se limitam a apontar cada possibilidade de forma meramente estatística, sugerindo a probabilidade do acoplamento das frequências. Contudo, as ressonâncias traçam diversas transversalidades por onde escoa um sem-número de seres e mundos, forças livres que não se deixam compreender por um esquema de filiação, mas, sim, como um movimento que apenas nos permite reconhecer a posição temporária desses mundos que viram da liberdade de sua frequência não relacionada, ou o conjunto das posições de seus seres inquietos, fervilhantes, marulhantes e espumosos, uns em relação aos outros, em toda a sua multiplicidade.

O alto componente de imprevisibilidade presente no fluxo que atravessa a realidade dos nossos arranjos sobremodernos, em lugar de instaurar um clima de total desconfiança capaz de inibir qualquer avaliação deve inspirar um esforço do pensamento para o seu aprofundamento nas regiões habitadas por ondas inomináveis e partículas inencontráveis. Deve inspirar uma tentativa de traçar pontos de fuga por onde seja permitido visualizar esses conteúdos que se alternam continuamente em uma empreitada que acompanhe essas mudanças de natureza por onde estas passagens não sejam interrompidas, mas, sim, perseguidas nas bordas de cada território, onde se dão os arranjos das múltiplas e heterogêneas partículas.

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Unidade 9. Caminhos para uma nova significação

“ Infeliz raça de efêmeros, filhos do acaso e da dor, por que tu me obrigas a dizer palavras que em nada serão úteis? A melhor coisa do mundo está fora do teu alcance: não ter nascido, não ser, não ser nada. Em segundo lugar, o melhor para ti seria morrer logo”. (Nietzsche)

Um significado pode ser comparado a um “retrato” de um mundo particular, onde as formas capturadas em cada anteparo são interpretadas pelas propriedades de cada elemento da figura que surge diante dos olhos, propriedades estas que orientam a visão. Quando fechamos os olhos e pensamos um significado qualquer, imediatamente uma imagem aparece em nosso espírito, a despeito desse significado estar relacionado a um objeto material ou a uma construção abstrata. Se um sujeito qualquer pudesse entrar em uma máquina do tempo e desembarcar alguns séculos antes em um determinado lugar onde se falasse sua língua nativa, haveria um descompasso entre os significados de certas palavras proferidas por esse sujeito do futuro, uma vez que os seus semelhantes do passado não conseguiriam relacionar essas palavras a nenhuma imagem que contivesse qualquer significado.

O processo de significar o mundo ao redor do sujeito que o observa, abstrai e o diz foi consolidado ao longo de um caminho cheio de desvios, saltos, rupturas, rodopios e continuidades, onde os limites daquilo que é observado pelo sujeito passa a determinar um estado de coisas a ser identificado através das propriedades que permanecem a cada “piscar” de olhos. Caso contrário em cada novo olhar o mundo ao redor do sujeito da visão se transformaria em algo inteiramente novo, uma vez que não se conseguiria reter nenhum elemento que permitisse relacionar esse estado de coisas as imagens gravadas no espírito do referido observador. Daí a necessidade de se estabelecer os limites da semelhança e causalidade entre as propriedades de cada estado de coisas que se manifesta a percepção de forma a relacioná-lo à cadeia de imagens arquivadas no espírito de quem o fita, através de uma cadeia de significados inequívocos. Cada significado unifica um conjunto diverso de signos emitidos por pessoas, objetos ou substâncias, formando assim uma pluralidade de mundos cada um com seu conjunto de signos, decifrados de maneira diversa, uma vez que cada estado de coisas a emitir signos está relacionado a significados específicos e que a pluralidade de mundos é tamanha que esses signos não são do mesmo tipo, não aparecem da mesma maneira, não permitem que sejam decifrados do mesmo

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modo, bem como não tem uma relação idêntica com seus significados. Assim cada unidade ou pluralidade de significados referem-se a mundos diferentes onde participam sujeitos diversos, implicando que cada um desses mundos sejam mundos de sujeitos singulares que coexistem como universos particulares; redondezas que transbordam signos. Cada um desses signos se diferenciam não apenas pela classe de significados que a eles se relacionam, mas de acordo com um conjunto de sujeitos que coexistem na tarefa de deles se apropriar, de relaciona-los e de produzirem cada vez mais signos e significados.

A sobreposição de estados de coisas, signos, significados e sujeitos que os percebem e os produzem, gera uma significação que irá legislar cada universo em particular, passando a sustentar cada visão, pensamento e ação. Cada significação possui uma existência autônoma a partir do momento em que ela se libera dos estados de coisas, dos signos e dos significados que estão diante da visão do sujeito que os fita, avançando além do espaço onde cada um dos sentidos desses fenômenos se aproximam, se contradizem ou entram em conflito. Se o sentido for entendido como as várias esferas de possibilidade por onde os estados de coisas, signos e significados se movem, o espaço da significação é o duplo ou a imagem inversa da visão do sujeito que permite que ele se livre do solipsismo do reflexo de si mesmo, que vai se resolvendo a cada olhar, na universalização de visões, pensamentos e ações que o espaço da significação produz. É no espaço da significação que permite se dizer as coisas fora do sujeito que as vê e significa, permitindo a coexistência de universos particulares, cada um deles como conjunto de estados de coisas, signos e significados. Ao exclamar: “penso logo existo”, ou que “o sujeito transcendental é capaz de conhecer e agir no mundo pela razão”, o eu pensante ou o sujeito transcendental não pode prescindir de um espaço de significação onde o signo de cada uma de suas exclamações consiga se relacionar a algum conjunto de significados determinados. O espaço da significação é o fundamento ontológico onde se permite dizer o “Ser”.

Cada exclamação do sujeito só é válida quando é feita em um espaço de significação e só ali pode encontrar os ecos que a legitimam, sem que cada universo particular lance o sujeito no caos do aturdimento e da equivocidade, onde nada se pode identificar ou ser dito. Assim, os sucessivos espaços de significação que permitiram o sujeito dizer o mundo afirmaram-se a partir do momento em que os signos delimitaram identidades prévias capazes de relacionar os estados de coisas e seus significados. É no espaço da significação que os signos são traduzidos, interpretados, decifrados e seus significados encontrados a partir de uma vontade de verdade que os torne universal a todos os sujeitos e sobre eles não paire nenhuma dúvida. Cada verdade só pode ser encontrada nos limites de um espaço de significação onde os signos possam ser desvelados e tragam com eles as relações de um tempo determinado nesses limites.

Podemos utilizar a distinção dos diversos tipos de signos efetuada por Deleuze em “Prost e os signos” para apoiar a nossa procura por signos que porventura possam escapar das cadeias estabelecidas em cada espaço de significação. Nos

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termos da procura de Proust45, Deleuze dispõe os signos em quatro grupos: signos mundanos, signos amorosos, signos sensíveis e signos artísticos. Fazendo isso Deleuze tenta demonstrar apoiado na Recherche prosteana como todos os estados de coisas apresentados pela relação das personagens do Romance que emitem signos diversos, distintos, comuns e heterogêneos, articulados em diferentes espaços de significações, cada um deles com sua legibilidade própria, dependente da matéria em que são inscritos, do modo que são emitidos e decifrados, da relação dos seus sentidos e das “faculdades que os interpretam”.46 Ao distribuir os signos em diferentes grupos, Deleuze pretende chegar a um tipo de signo que possa afirmar a sua superioridade exatamente pela capacidade de remeter-nos a um espaço da diferença absoluta, longe dos espaços de significações que sustentam os significados e os estados de coisas representados por signos que remetem a identidade como fundamento do pensamento. Daí a superioridade atribuída aos signos artísticos e arte em si mesma, como aquilo que nos lança, definitivamente, em uma “diferença última e absoluta, num tempo que não se confunde ao tempo dos espaços de significação que delimitam individualidades a partir de identidades comuns, apreendidas e distribuídas pelas faculdades clássicas envolvendo a tríade percepção, abstração e linguagem, guiadas pela “vontade de verdade”.

Ao reivindicarmos uma noção de tempo a partir de um ideal que se afasta da vontade de verdade que busca decifrar os signos de um determinado espaço de significação, fazendo desse ideal um “tempo redescoberto” descrito na busca proustiana, procuramos algo que altere as cadeias de significações que fundamentam os signos, atingindo assim o coração de um tempo tomado como eternidade, pura duração de um pluralismo que multiplica as combinações e onde cada signo participa em diversas linhas de tempo e cada linha de tempo se mistura com vários tipos de signos.

Há signos que nos obrigam a conceber o tempo como tempo perdido, isto é, a passagem do tempo, a aniquilação do que era, a alteração dos seres, ou que carregam uma revelação que nos permite ver novamente aqueles que nos eram familiares por seus rostos. Diferentemente, certos sinos não dependem do hábito de reproduzir semelhanças que se repetem, mais se apresentam em seu estado puro, como signos onde os efeitos do tempo da duração agem diferentemente e de forma incessante nos corpos, modificando-os, alongando-os ou esmagado-os. O tempo, a fim de tornar-se visível, procura corpos, em toda parte os encontra, aproveitando-os para lançar sua lanterna mágica sobre eles” .47 Ao dividir os signos em quatro grupos, Deleuze pretende explicitar, em última instância, duas categorias fundamentais aos quais cada grupo de signos se subordina: o tempo perdido e o tempo redescoberto. E é na dimensão do tempo redescoberto que o signo artístico, como signo puro revela a potência do tempo original absoluto e puro; tempo da duração pura idêntico a eternidade. Como afirma Roberto Machado, “se os signos plenos, afirmativos e alegres da arte são superiores aos signos mundanos, aos amorosos e até mesmo aos sensíveis, é porque são o

45 M. Proust – Em busca do tempo perdido46 ver o capítulo intitulado: Proust e o exercício do pensamento em Roberto Machado – Deleuze a arte e a filosofia47 Gilles Deleuze – Proust e os signos

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resultado de um aprendizado temporal que converge para a arte, transforma o tempo perdido em tempo redescoberto”. 48

Contudo a alegria da afirmação dos signos artísticos de maneira alguma se apresenta como o apaziguamento da adequação entre os signos e seus significados produzidos nos espaços de significação e orientado pela vontade de verdade que visa dar conta de todo o tempo perdido, nas marcações temporais sustentadas pela identidade do mesmo que se repete e se apresenta pacificamente ao pensamento. O tempo puro seria então o espaço de um signo ambíguo que força o sujeito a voltar-se para ele através de um sentimento que não dever ser confundindo com uma serena vontade de verdade. O signo ambíguo não se afirma a não ser pela violência do sentimento, não de quem duvida, mas de quem quer afirmar a potência de uma sempre novidade, diferentemente de quem quer livrar-se a todo custo do peso da dúvida. Diferentemente do tempo puro, redescoberto pela violência de uma novidade que não se permite antecipar nenhum significado, os espaços de significação são carregados pela busca da verdade na tentativa de apaziguar os corações que não suportam a incerteza de um estado de coisas que não possa ser decifrado através de significados inequívocos. Segundo Deleuze a fragilidade da vontade de verdade que perseguiu o pensamento abstrato ou a filosofia que se apresentava como pensamento racional, reside no fato de que tal pensamento “atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem perturbam”49. Quando se toma as ideias formadas pela inteligência pura, onde só se possui uma verdade lógica ou uma verdade possível, a relação entre os significados torna-se arbitrária, uma vez que são gratuitas e porque são apenas um produto de um pensamento que somente lhes confere uma possibilidade, e nunca a violência de encontros que lhes garantiria autenticidade. As ideias de inteligência só valem por sua significação explícita, portanto convencional. “As significações explícitas e convencionais nunca são profundas, somente é profundo o sentido, tal como aparece encoberto e implícito num signo exterior”50 . O acaso dos encontros, a pressão das coações são duas das principais características que podemos atribuir ao signo puro, a partir da leitura de Deleuze, pois é precisamente o signo puro que é objeto de um encontro volatilizado pelo aumento da velocidade das trocas que abrem espaçamentos onde se articulam o finito-ilimitado. Sua afirmação como signo livre e não relacionado a qualquer cadeia de significado ou estado de coisas que pudessem funcionar como seu suporte, permite-o exercer sobre os sujeitos a violência de um espaço de significação vazio que não permite antecipar sentidos, garantindo desse modo a necessidade daquilo que é pensado, como novidade absoluta. Podemos nos apropriar das ideias de Deleuze para diferenciar os signos fundados em um espaço de significação clássico, dos signos puros, livres ou vazios. Quando ele afirma que “os signos mundanos implicam principalmente um tempo que se perde; os signos do amor envolvem particularmente o tempo perdido. Os signos sensíveis muitas vezes nos fazem redescobrir o tempo, restituindo-o no meio do tempo perdido”51. Contudo quando queremos nos referir ao tempo como duração pura e espaço do signo

48 Roberto Machado – Deleuze – A arte e a filosofia49 Gilles Deleuze – Proust e os signos50 Ibdem51 Ibdem

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puro, podemos toma-los no sentido deleuziano para os signos da arte que, segundo ele, nos trazem um tempo redescoberto, tempo original absoluto que compreende todos os outros”.52

Assim é na potência do signo puro esta posta no mesmo sentido que, segundo Deleuze, nos permite supor a superioridade da arte sobre a vida, uma vez que todos os signos que encontramos na vida ainda são signos de um espaço de significação determinado, vinculado a um determinado estado de coisas e seus significados, enquanto que o signo da arte revela uma diferença, a diferença última e absoluta, sendo ela que constitui o ser que é capaz de nos dar o que procurávamos em vão na vida. Entenda-se vida aqui no sentido das operações hierarquizadas que fixam os limites da humanidade a partir da supressão da diferença e do devir. Todo o trabalho de Deleuze e recuperar a potência dissipada pelos estados de individuação para além dos limites das formas fixas da vida. Podemos avançar no entendimento sobre como se articula um novo espaço de significação a partir da potência virtual do signo puro, revisitando o processo de constituição de um espaço de significação onde se articulam os signos da vida, através do sentido dado a ela por Derrida, como possibilidade de auto-afecção do sujeito que sente, abstrai, fala e significa.

Na sua “Gramatologia”, Derrida pensa a auto-afecção como uma estrutura universal da experiência onde “todo vivente está em potência de auto-afecção. E só um ser capaz de simbolizar, isto é, auto-afetar-se, pode-se deixar afetar pelo outro em geral. A auto-afecção é a condição de uma experiência em geral. Esta possibilidade – outro nome para vida – é uma estrutura geral articulada pela história da vida e ocasionando operações complexas e hierarquizadas”. 53 E é pelo “poder de repetição”, submetendo ao espaço da significação toda exterioridade sensível que afeta o sujeito ou serve a ele de significante, que a espontaneidade dos encontros são esmaecidas pelo pensamento como vontade de verdade, incansável produtora de significantes que permanecem aprisionados a idealidade dos significados e a eles obrigados, na interioridade de espaços onde a exterioridade do signo puro é reduzida. Dessa forma Derrida coloca o problema do “grito – do que sempre se excluiu , do lado da animalidade ou da loucura, como o mito do grito inarticulado”54 gerado pela violência dos imprevisíveis encontros que ressaltam a sempre novidade da diferença, como o horror de uma jorro ininterrupto de novidade. É assim que ele ira nos falar de um presente que não se sujeita ao processo da diferencia como aquilo “a partir do que se acredita poder pensar o tempo”.55A novidade dos imprevisíveis encontros pode ser tido com a novidade do tempo puro da duração que se abre a diferença absoluta.

E é nessa diferença absoluta de um tempo puro que consiste, para Deleuze, o tempo redescoberto de Proust, onde “cada sujeito exprime o mundo de um certo ponto de vista. Mas o ponto de vista é a própria diferença, a diferença interna e absoluta. Cada sujeito exprime, pois, um mundo absolutamente diferente e, sem

52 Ibdem53 Jacques Derrida – Gramatologia.54 Ibdem55 Ibdem

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dúvida, o mundo expresso não existe fora do sujeito que o exprime. Ele não existe fora do sujeito que o exprime, mas é expresso como o Ser ou a região do Ser que se revela ao sujeito. Motivo pelo qual cada Ser é uma pátria, uma país, não se reduzindo a um estado psicológico, nem a subjetividade psicológica, nem mesmo a uma forma qualquer de subjetividade superior. O Ser no mundo é a o âmago do sujeito, sua essência mais profunda e sempre de outra ordem: Potência desconhecida de um mundo único. Não é o sujeito que explica a essência, é, antes, a essência que se implica, se envolve, se enrola no sujeito”. 56

E desse modo o papel da memória no romance de Proust pode ser tido como o anteparo que projeta as imagens invertidas de um sujeito que fita a si mesmo, evitando que ele de dissolva na sua própria visão, perdendo o que lhe é essêncial, capacidade de afirmar o seu Ser e de auto-afetar-se. Quando a avó do narrador morre, a sua agonia é retratada como um lento desfazer; em particular, as suas memórias parecem ir-se evaporando dela, até já nada restar. Esse estado se aproxima do estado dos animais que não possuem a capacidade de atuo-afetarem-se e no seu “esquecimento” estão livres da cadeia de significados temporais dos espaços de significação, e por isso pastam sem saber sobre o ontem ou amanhã na primavera ao redor. Comem, descansam, digerem, saltam novamente e assim, de manhã até à noite e de um dia até outro dia, com seus gostos e desgostos intimamente ligados a novidade da diferença absoluta e pura.

E era, justamente, por intermédio do esquecimento que segundo Nietzsche os homens poderiam se livrar da angústia e do sofrimento provocadas pela principal faculdade que os torna humanos e os distingue dos outros animais. Neste ponto apelamos a releitura de Rousseau proposta por Derrida, onde ele irá fazer uma distinção fundamental entre as propriedades da memória que distancia o homem da condição animal, dividindo-a em: centro produtor da razão, enquanto entendimento, faculdades de formar ideias, e centro produtor da imaginação, com seu poder de antecipação que excede o dado sensível e a experiência. Ao nos referirmos aos animais “sem memória” assim o fazemos a partir da sua incapacidade de imaginar. Derrida avança nessa distinção através da explicitação do sentido de imaginação como centro de produção que humaniza os entes que se dizem humanos. Não há humanidade sem que essa possa ser dita e nada se pode dizer humano sem uma linguagem que estabeleça esses limites de distinção.

Nesse ponto a imaginação pode ser comparada a uma potência ativa que excita um poder virtual que diferencia o processo de humanização em duas séries distintas. A primeira delas seguiria na cadeia: animalidade, necessidade, interesse, gesto, sensibilidade, entendimento, razão, etc. A segunda se desdobraria em humanidade, paixão, imaginação, fala, liberdade, perfectibilidade, etc. Assim o homem se anunciaria a partir da dupla ação da memória em prol de suas necessidades e seus desejos. A memória como um instrumento que serve aos propósitos de sua animalidade, a partir do arquivamento de elementos que permitirá o sujeito abstrair o mundo e através da razão representa-lo de forma a estabelecer as medidas através das quais poderá livrar-se das ameaças da natureza a que faz parte. Contudo ela (a

56 Gilles Deleuze – Proust e os signos.

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memória) se coloca também como o um arquivo de imagens da imaginação, centro produtor dos desejos e das paixões que faz nascer a linguagem. “Deve-se, pois, crer que as necessidades ditaram os primeiros gestos, e que as primeiras paixões arrancaram as primeiras vozes”.57 Dessa forma Derrida infere ser a “fala” que distingue o homem entre os animais, tendo como seu centro produtor a imaginação.

Se a fala é incitada pela imaginação como um centro produtor dos desejos e paixões, ao dizer a si próprio em sua capacidade de auto-afecção, o ser da linguagem começa a dizer o outro que vê diante de si, através de uma mesma abertura que permite a identificação com os demais seres comparados a si mesmo. A partir daí surge toda a possibilidade de um discurso sobre o traço comum da humanidade a partir da possibilidade desse ser se relacionar com um outro semelhante a si, quando então começa a se produzir as imagens do gênero humano. Dessa forma a imaginação “insere o animal na sociedade humana” ; “o faz ascender ao gênero humano”. E é do fundo da memória como potência de imaginar desse animal humanizado, que surgem todas as imagens que vão compondo sua história. E é a partir da imaginação como faculdade ativa da memória, ligada ao desejo e a paixão que a essência humana se enrola no sujeito ao longo da produção de espaços de significação, onde a imaginação se torna o poder para a vida, poder de afetar-se a si mesma por intermédio das representações que já trazem o sujeito dobrado sobre si no mundo, como movimento de uma “expropriação representativa”. O sujeito pode, assim, ultrapassar o dado, através das associações da memória que organizam os dados como um sistema articulado, impondo a essas articulações, pela imaginação, uma constância que elas não tem por si mesmo.

É precisamente na imaginação que os signos, a fala, os significados e os estados de coisas se relacionam na base dos espaços de significação e de onde é secretado o tempo das relações causais que criam os limites de um ser-diante-de outros. A imagem do outro enrolada para dentro do sujeito traz um conjunto de dados que passam a direcionar a subjetividade para além das experiências, onde o sujeito auto-afetado passa a construir sua natureza e direcionar o seu desejo. De saída as imagens de limitam as fronteiras da representação dos estados de coisas e cada limite se expande na direção dos sentidos assumidos pela vida, até esbarrar em um limite último que acaba determinando o sentido de todas as ações: o limite da morte. A vida é o espaço onde o desejo articula-se a partir de dispositivos que codificam e distribuem a produção desejante. Uma vez que a angústia e o temor produzida pela morte deve encontrar uma articulação nos fluxos associativos da imaginação, capaz de livrar os seus sujeitos do medo que os paralisa, podemos procuram na própria estrutura instintiva do indivíduo humanizado os códigos sociais que servem para universalizar uma ordem na dupla dimensão humana da necessidade/desejo e da falta. Paixão e natureza, vida e morte, princípios distintos e em sua ação recíproca como investimentos coletivos que “liga o desejo ao sócius e reune num todo a produção desejante”.58 , A diferença fundamental entre a necessidade animal e o desejo humano seria então o temor da morte. Enquanto os animais fogem da fome e da dor os homens

57 Ibdem58 Gilles Deleuze e Félix Guatari – O Anti-Édipo – Capitalismo e esquizofrenia.

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passam a fugir da morte. Não da morte em si mesma, pois ela nada é, mas da imagem da morte. Derrida, citando o Segundo Discurso de Rousseau pondera que “o animal jamais saberá o que é morrer, mas o conhecimento da morte e seus terrores é uma das primeiras aquisições que o homem fez, ao distanciar-se da condição animal”59

Se tomarmos os espaço de significação como o império da imaginação e o palco onde é encenado o teatro da vida e morte humana, num desenrolar das sínteses que vão processando o sujeito e sua história, encontramos esse “ser-no-mundo” como um emaranhado de dobras onde misturam-se o eu e o outro, local de encontros; visíveis, invisíveis, audíveis, inaudíveis, enunciados ou silenciosos. E é nesse é no espaço de significação onde misturam-se, animais, vegetais, microrganismos, partículas, toda uma galáxia em seu “apetite” e “esforço” pelo qual cada coisa persevera no seu ser, insiste e subsiste, e onde cada uma dessas coisas não param de emitir signos que são catalogados na memória, traduzidos em significados e ditos pela força da imaginação. A distinção desse processo em sínteses operadas pelas faculdades do sujeito60, e a ideia de que tais sínteses se processam tanto de forma passiva como ativa ganha um novo sentido, referindo as faculdades passivas a sensação e as ativas a memória, a partir da divisão da memória em centro produtor de duas séries distintas, uma na ordem da razão e outra da imaginação. Ligando a linguagem a série excitada pela imaginação, abre-se o caminho para se pensar os espaços de significação onde a imaginação possa resgatar sua potência, abrandada, contida e suprimida pela necessidade de adequar os seus produtos através de regras gerais que regulam os istintos e contem as paixões.

Para que a força da imaginação possa ser tomada a partir de sua potência virtual, sem que sua atividade seja regulada pela adequação dos seus produtos ao grau de razoabilidade em relação ao estados de coisas e as formas fixas dos sifnificados, temos que destacar o quantum que se revela como potência virtual ativa das ações reativas que as limitam. A potência virtual que se constitui força da imaginação e anima os desejos e as paixões é rebatida, exatamente, na reação que conta com o suporte do entendimento que pretende livrar a imaginação da ilusão de suas ficções, adequando-as aos estados da vida. Como força reativa, a ação do entendimento passa a impor a imaginação uma reserva que começa a inscrever a diferença entre o desejo e a força que o anima. Assim inicia-se o embate entre a potência do desejo e sua reserva constituida pelas regularidades da vida projetadas pela imaginação, não enquanto potência mas como reflexão que visa tomar o desejo, a partir da sua própria impotência e reatividade do Ser que se diz humano.

E é justamente a partir da reflexão da imaginação que se constituem os espaços de significação, tendo como fundamento o desejo como carência que nunca se deixa satisfazer, pois dele foi amputada sua potência virtual, fazendo do desejar um excesso de reserva instintiva de vida, carregadas em unidades cada vez maiores. Enquanto a natureza carrega o “apetite” e o “esforço” pelo qual cada

59 Ibdem60 Vide o capítulo x a explicação das três sínteses descritas por Deleuze

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coisa insiste e subsiste como potência , o sócius como palco dos agenciamento dos espaços de significação onde se ultrapassa a natureza, rebatendo-a por intemédio de uma humanidade, acumula a reserva de um desejo reativo a serviço da falta. Se compreendermos a imaginação como o centro comum de princípios separados em sua produção que se bifurca em instinto natural do desejo como gratificação e do desejo como reserva de preservação onde a natureza é ultrapassada pela humanidade e onde o desejo passa a ser articulado com a falta, poderíamos avançar na análise das estruturas instintivas, recolocando os instintos na posição ao lado das condições de vida histórica e socialmente determinada pelas paixões em suas relações de produção e de anti-produção

Para nos auxiliar na compreensão das estrutura instintivas, podemos nos servir do pensamento Deleuze e da maneira como ele associa as faculdades (sensações, memória, pensamento) com as forças do homem ou como aquilo que distingue este ser dos demais em sua vida coletiva. A partir do encontro dessas forças com as forças do fora associadas as condições de vida histórica, lança-se as bases de um mundo de exterioridade, mundo onde as forças do homem estão em uma relação fundamental com o de-fora. Mundo onde a conjunção “e” destrona a interioridade do verbo “é”.

E é nesse palco onde, segundo Deleuze, articulam-se o excesso e a carência e onde iria se “soldar” o desejo a falta. A distinção entre os traços de uma “formação molar” ou de uma “forma de gregariedade” nos permite compreender como é operada uma unificação, uma totalização das forças moleculares por acumulação, a partir de uma unidade que tanto pode ser unidade biológica de uma espécie quanto unidade estrutural de um socius, na ultrapassagem que faz aparecer um organismo, social ou vivo, composto como um todo, como um objeto global ou completo, onde os objetos parciais de ordem molecular aparecem como uma falta, ao mesmo tempo em que se pretende que o próprio todo falta aos objetos parciais. Assim, é a soldagem do desejo com a falta que lhe dá fins, objetivos, intenções coletivas ou pessoais, numa organização ou ordem que pertence ao organismo biológico ou social, species ou socius. Daí surgiria a “pressão seletiva que esmaga, elimina ou regulariza as singularidades”61, na ultrapasssagem da potência que as anima. Ao localizarmos essa ultrapassagem que solda o desejo a falta, localizamos o princípio da realidade que anima as “formações de soberania” e que funciona como objetividades totalizantes, unificantes, significantes, a fixar as organizações , as faltas e os objetivos, em diferentes modalidades de socius. A partir daí podemos reivindicar novos espaços de significação que possam recuperar a potência subversiva do desejo que quer gozar para além da inscrição da diferença entre o desejo e sua potência.

A aparente incompatibilidade entre a livre gratificação das necessidades instintivas do homem e o desenvolvimento de uma falta ilimitada na estrutura dos grupamentos sociais através do processo de desenvolvimento da civilização e de seus espaços de significação, não deve ser tomada como um atributo universal dos instintos que mantem inconciliável gozo e civilização. Se a base da

61 Ibdem

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ultrapassagem da natureza na natureza for deslocada para o processo a partir do qual a subjetividade humana se enrola no sujeito e onde estruturam-se os espaços de significação, a superação dessa incompatibilidade entre o “principio do prazer” e o “princípio da realidade” só poderá advir a partir do seu centro produtor, a saber: da imaginação. E aqui retornarmos a Proust em sua “procura pelo tempo”. Tempo que não se confunde com os signos de uma estrutura temporal habituada a produzir semelhanças através das representações e por intermédio da identidade. Tempo onde a força da imaginação resgata sua capacidade de afetar a partir da potência virtual que a anima enquanto força criativa de novos mundos, inumeráveis, incontáveis, tantos quanto se possa imaginar, fora dos limites da extensão e da marcação dos instantes. Tempo recuperado em sua dimensão de eternidade. Tempo puro que só pode ser dito pelo signo ambíguo e vazio, sem que de saída se apele para os significados dos estados de coisas que aparecem para a percepção sensível já articulados em um determinado espaço de significação.

Falar de novos espaços de significação onde a imaginação possa se livrar das redução de sua potência virtual desdobrada na atualidade de um mundo significado a partir da terrível imagem da morte que se desdobra nas relações desse sujeito rebatido sobre si mesmo pela auto-afecção e distribuído nas relações coletivas com o outro, requer o resgate dessa força rebatida pelos dispositivos da realidade nos seus princípios fundamentais da vida social. Como centro das paixões, a imaginação precisa recuperar a potência que anima o desejo para além do estoque de uma reserva desejante que constitui sua carência primordial , desejo voltado contra si mesmo. Somente a partir da liberação de sua força ativa; foça que a anima, livre e não relacionada às formas da representação dos estados de coisas pelo sujeito, o impérico da imaginação pode se livrar de sua reatividade e das relações reativas do indivíduo ao longo do processo de individuação, recuperando sua foça que não é nem individual, pessoal nem coletiva, mas singular.

Singularidade tida enquanto afeto da imaginação resgatado em um novo espaço de significação. Esse espaço não se confunde com o lugar onde são operadas as sínteses que contraem os estados de coisas, fixa-os nos registros das similitudes e separa os lados do sujeito e do objeto. Um espaço de significação não reativo só pode aparecer para além das operações da percepção, da razão e da linguagem que rebate o estado de coisas no interior o sujeito da auto-afecção e cria os estados de coisas. Somente fora do espaço onde o habito de reunir as impressões dos sentidos e onde os juízos da razão determinam as leis do sujeito já individuado, podemos supor um espaço onde se liberaria o afeto da imaginação como puro devir, potência criadora de singularidades. Um novo espaço de significação, portanto, seria o lugar do acontecimento no infinitivo, lugar do interstício do “e” e do “entre”. Espaço onde os planos se desdobram e redobram, abrindo linhas de fuga que não param de fugir, uma fez que foram liberadas em seu devir infinitivo e na potência virtual do vir-a-ser.

Se a civilização através do seu longo caminho, trabalhou na tentativa de adequar as paixões produzidas pela imaginação, limitando sua propensão de produzir ilusões ela terminou por produzir uma era onde as ficções da imaginação

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passaram a ter que se associar os signos de um estado de coisas excitado por uma diferença resultante de uma aumento de velocidade do fluxo de frequências relacionadas que foram liberando forças livres da relação ressonante, dada a multiplicidade de arranjos e de linhas de fugas a escoar essas forças, liberando uma diferença tomada como o excedente virtual ao longo dessas passagens. Numa rede rizomática de significações cada vez mais voláteis, onde os conteúdo trafegam e se reduplicam também pelo aumento da velocidade dos encontros que não param de emitir signos, a compressão do tempo e do espaço desses encontros trocas vai libertando os signos de seus conteúdos bem como da cadeia de significados e dos estados de coisas que compões o espaço de significação. Os signos assumem assim a liberdade das forças livres, carregados de uma potência virtual que é o vazio de um espaço de significação que não cessa de devir numa duração que virtualiza as estruturas significantes, especulando o sentido a ser assumido em novas cadeias de significações. Este é o signo vazio ou o signo puro libertado das imagens, dos estados de coisas e dos significados. Signo do silêncio, dos espaçamentos e o do grito inarticulado que ressoa em todas as direções como um ruído de fundo, incapaz de ser escrito nos limites das tonalidades de frequências definidas. Musica atonal de um tempo onde coexistem frequências que vibram em sua diferença absoluta.

Se a imaginação foi capaz de produzir uma cadeia de imagens associadas que permitiram que o sujeito poudesse relacionar cada ideia que se repete a um estado de coisas determinado pela regularidade de sua aparição, ela agora assume a tarefa de articular as ideias frente a um estado que não para de combinar as coisas em diferentes arranjos, sempre a se desfazerem antes mesmo que a imaginação possa dar conta de identifica-los a qualquer conjunto de imagens. Surge aí a eficácia de um pensamento sem imagem de uma imaginação que se abra a sua potência original de produzir ilimitadamente novas mundos que não param de se metamorfosear na mesma velocidade com que as coisas deixam o seu rastro de passagem, resgatando então a natureza em sua força desmedida e em sua indiferenciação abissal. Sem que possa buscar o máximo denominador comum capaz de reduzir as expressões múltiplas da diferença a um sentido único e familiar, a imaginação abre-se, então, para sua diversidade absoluta. Se através da imaginação a natureza foi ultrapassada por uma fala que diluiu a diferença na equivalência dos seres, em uma identidade universal do humano, metabolizando a alteridade na clausura das formas que contiveram as forças do fora, é pela mesma imaginação tomada pela sua potência ativa que se poderá dar conta de um fragmentado estado de coisas que não para de se construir e desconstruir, na velocidade dos acontecimentos virtualizados de um tempo real. Daí a necessidade de uma nova linguagem que não pretenda enclausurar a diferença, mas que se abra a ela em murmúrios e saiba assumir a vertigem de um fluxo acelerado que não para de irromper o novo. As imagens insólitas da imaginação, outrora relegadas a ilusões, assumem sua potência, e só podem ser ditas uma vez que as palavras se libertem de sua função designativa ou expressiva e assumam sua espessura própria. As palavras desenrolam-se, então, em um espaço de significação de signos nômades em relações disjuntivas cujo ritmo vai compondo a presença de uma ausência que não para de se afastar, assumindo assim o sentido de um ruído de um chão que se abre ao vazio de um Ser defasado.

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A emergência da ordem do finito ilimitado não para de produzir novas e particulares imagens, impossíveis de serem universalizadas no sentido de um todo que se tornou a aldeia global sobremoderna. A velocidade com que o verdadeiro se torna falso em plebiscitos que se multiplicam em praça pública impedem que as identidades possam fixar um único sentido para os signos que se espalham e se embaralham em uma grande rede de significados voláteis. Não se trata mais de decifrar ou interpretar esses signos, mas de seguir seu rastro no espaçamento da ausência de significados fixados pela identidade, abertura para o singular na liberdade de um contínuo vir-a-ser, sem fases e em um jorro de imprevisibilidade onde dissolvem-se a distinção entre ser e não ser, verdade e erro e entre a morte e a vida.

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