sobre o novo utilitarismo

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Sobre o novo utilitarismo Ricardo Gomes Ribeiro 1 Moralidade individual e critério único A discussão sobre o utilitarismo requer duas vias; a via da moralidade individual e a via da escolha pública, ou o critério aplicável a política pública. Na teoria da moralidade ou racionalidade as decisões são tomadas a luz de considerações morais. Sendo assim uma questão está posta; o representante que toma tal decisão por algum critério está ancorado em algum princípio. Este argumento é necessário para mostrar que a decisão não pode ser tomada por intuição. E há um grande número de princípios em vários níveis e modos que é imensurável para cada pessoa. Não está claro por que alguém pensaria em utilitarismo. A boa procura promete - a felicidade ou bem-estar - é algo que todos nós prosseguimos em nossas próprias vidas e nas vidas daqueles que amam. Utilitaristas apenas exigem que o exercício de bem-estar humano ou o utilitário (que será utilizado esses termos como sinônimos) seja feito de forma imparcial, para todos na sociedade (KYMLICKA, p. 10, 1990). Soberania pública e única escolha No caso público, entretanto, há uma questão que pode ser um estágio ainda mais para trás do que no caso individual. O agente individual pode ser permitido sem muita controvérsia à decisão 1 PUCRS. ago. 2010.

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Sobre o novo utilitarismo

Ricardo Gomes Ribeiro1

Moralidade individual e critério únicoA discussão sobre o utilitarismo requer duas vias; a via

da moralidade individual e a via da escolha pública, ou o critério aplicável a política pública. Na teoria da moralidade ou racionalidade as decisões são tomadas a luz de considerações morais. Sendo assim uma questão está posta; o representante que toma tal decisão por algum critério está ancorado em algum princípio. Este argumento é necessário para mostrar que a decisão não pode ser tomada por intuição. E há um grande número de princípios em vários níveis e modos que é imensurável para cada pessoa.

Não está claro por que alguém pensaria em utilitarismo. A boa procura promete - a felicidade ou bem-estar - é algo que todos nós prosseguimos em nossas próprias vidas e nas vidas daqueles que amam. Utilitaristas apenas exigem que o exercício de bem-estar humano ou o utilitário (que será utilizado esses termos como sinônimos) seja feito de forma imparcial, para todos na sociedade (KYMLICKA, p. 10, 1990).

Soberania pública e única escolhaNo caso público, entretanto, há uma questão que pode

ser um estágio ainda mais para trás do que no caso individual. O agente individual pode ser permitido sem muita controvérsia à decisão dentro de um determinado intervalo de tempo o que é certo para ele fazer - embora não o fizermos, ao dizer que, temos que nos comprometer a visão de que a racionalidade exige que ele delibere indefinidamente em seu futuro. Mas, no caso público, que já está a fazer algumas suposições de fundo político para supor que existe ou deve ser um centro de decisão do soberano de determinar o que é certo, mesmo dentro de

1 PUCRS. ago. 2010.

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um período de tempo limitado, para a sociedade como um todo.

O utilitarismo é mais do que o assistencialismo, como tem sido chamado, e fica em aberto a seguinte pergunta: "como a sociedade está indo?, mas também um critério de ação pública. Por isso, quem deve assumir um agente público de um órgão supremo que escolha estados gerais da atividade para a sociedade como um todo. Em relação a questão pública, a mesma pergunta, de qualquer modo como surgem na relação privada: A concessão desta agência, tem que usar algum critério de ação? Essa questão, aliás, poderá recolher respostas no caso público mais favorável à teoria geral do que no caso particular, porque a noção de racionalidade pública, tal como aplicado a um complexo moderno da sociedade, plausivelmente explica as regras de modo que a racionalidade pessoal, em si, não precisa explicar.

Assistencialismo e consequencialismoDeixe-se supor que uma teoria ambiciosa é necessária.

O quê em particular, é o utilitarismo? Nós já implicitamente referimos-se ao ponto que pode ser considerada como a interseção entre dois tipos diferentes de teoria. Uma deles é uma teoria da maneira correta para avaliar ou atribuir valor aos negócios dos estados, e alega que a base correta de avaliação é o bem-estar, satisfação, ou de pessoas recebendo o que eles preferem. Esta teoria que tem um componente do utilitarismo foi chamada de “assistencialismo”. O outro componente é uma teoria da ação correta, que afirma que as ações são escolhidas em função dos estados de coisas que implicam em suas conseqüências: este tem sido chamado de consequencialismo, em suas formas centrais, recomenda-se uma escolha de ações com base nas conseqüências, bem como uma avaliação das conseqüências em termos de bem-estar. O utilitarismo é assim uma espécie de consequencialismo assistencialista - que exige o assistencialismo individual ou de utilidade para avaliar as

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conseqüências, de uma propriedade que às vezes é chamada de soma de classificação. Este, pelo menos, é um relato de suas formas diretas; seriam necessárias algumas modificações pequenas para acomodar as formas indiretas a que nos referimos no último parágrafo (SEN e WILLIAMS, p. 02-04 1999).

Conduta maximizadora e moralidade por acordoO significado normativo da concepção maximizadora

de racionalidade muda conforme a consideramos antes ou depois que os barganhistas chegam a um acordo. Para passar do ponto de um não acordo, cada barganhista escolhe sua estratégia individualmente, empenhando-se somente na maximização de sua própria utilidade. A solução da barganha, portanto, tem de pressupor que cada barganhista é um “maximizador puro”. Mas a situação muda de figura quando um resultado é selecionado: o ambiente deixa de ser de barganha e passa a ser de cooperação. A questão já não é mais a da escolha independente de estratégias individuais pelos barganhistas, e sim a da adesão continuada dos cooperantes a uma estratégia conjunta. Gauthier argumenta que é racional restringir a própria conduta de forma a conformá-la a um resultado que traz benefícios mútuos (e que ademais, supõe-se que sejam proporcionais à contribuição de cada um). E se é racional fazê-lo, então a conexão profunda entre razão e moralidade afinal se revela; é a disposição de cada um de aceitar restrições à própria conduta maximizadora, disposição essa que é racional adotar, que dá à cooperação seu significado propriamente moral. Dispor-se a cumprir normas de justiça, desde que um número suficiente de outros adote uma disposição similar, encontraria apoio em uma forma de interesse próprio sofisticado. Essa é a idéia central da “moralidade por acordo” (DE VITA, p. 140 2002).

Escolha pública e unidade soberana

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Para De Vita (2002) há necessidade de uma visão abrangente e uma distinção quanto as razões morais, e antes de discutí-las aponta duas proposições observadas por Darik Parfit e Thomas Nagel, que são fundamentais:

1)A vida de todas as pessoas tem valor e um valor igual;

2)Cada pessoa tem sua própria vida para levar.

As razões morais neutras em relação ao agente originam-se de valores comuns e impessoais, e, como ficará evidente, deriva da primeira das duas proposições já enunciadas, uma razão para o que devemos fazer é dessa natureza quando é possível dar a ela uma forma geral que não inclua uma referência essencial à pessoa que a tem. E o moral neste caso é termos um olhar de um ponto de vista imparcial e desinteressado.

Fazermos algo com razões neutras, pois resultará um estado de coisas que avaliamos como moralmente superior pressupõe dois componentes: Um é o próprio componente de imparcialidade e impessoalidade, pois existem razões que temos pelo bem-estar e pelos interesses de outros com um peso igual aos interesses legítimos de cada participante. O outro é um componente de consequencialismo: as ações eticamente acertadas são aquelas que têm por conseqüência estado de coisas em que a exigência de garantir uma consideração igual pelo bem-estar e pelos interesses de todos é melhor satisfeita. Então as razões neutras em relação ao agente são, em resumo, de natureza imparcial e conseqüencial. Existem versões de reflexão moral consequencialistas, o utilitarismo, em particular, para as quais somente os valores impessoais e comuns são valores morais genuínos. Dizer que existem razões para agir, que somos capazes de reconhecer desde que façamos abstração de nossos desejos e interesses particulares, é uma suposição normativa e não uma proposição de natureza causal.

Constrição deontológica

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As razões de autonomia pessoal dizem respeito aos objetivos e projetos que o indivíduo tem motivos, de sua própria perspectiva, para levar adiante, ou seja, de desenvolver uma concepção de seu próprio bem e de empenhar-se em realizá-la. Uma segunda categoria de razões morais relativas ao agente diz respeito às obrigações que temos para com as pessoas com as quais temos algum vínculo especial. As obrigações dos pais com seus filhos, as que de correm de uma relação de amizade, etc. Cada uma dessas relações pode, em certas circunstâncias, autorizar certa medida de parcialidade em relação à pessoa ou às pessoas a quem o agente esteja ligado por vínculos especiais. Uma pessoa deve escolher entre evitar que um grave dano ocorra à vida de seu filho ou à de um estranho. Nesse caso nossas intuições morais nos dizem que é mais certo priorizar o bem-estar do próprio filho. De um ponto de vista puramente imparcial, é indiferente em qual dos dois cursos de ação recai a escolha do agente (o estado de cosias resultante será avaliado da mesma forma). Mas o agente tem razões suas para preferir um desses dois cursos e um dos estados de coisas que poderiam resultar de sua ação. As razões de autonomia dizem respeito àquilo que é opcional ao agente, as constrições deontológicas são interdições à ação individual ou coletiva. Há formas de tratar os outros que são injustas, ainda que fazê-lo permitisse realizar objetivos que consideramos valiosos. A proibição à tortura, por exemplo, hoje pode ser considerada uma constrição deontológica não-excepcionável em nenhuma circunstância.

Maximização e o bem-estarJohn Harsanyi diz que para o utilitarismo, o espaço

moral relevante para a avaliação do bem-estar dos indivíduos é o da utilidade individual, quer ela seja entendida em termos hedonistas ou em termos de satisfação de preferências individuais. No nível mais fundamental da argumentação moral, o utilitarismo e o liberalismo igualitário divergem sobre que valor atribuir à

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satisfação de preferências individuais. O segundo ponto de divergência diz respeito às suposições motivacionais em conexão pela forma pela qual a noção de igualdade entra em uma estrutura moral utilitarista. O utilitarismo não recomenda aos indivíduos que maximizem a realização de seus próprios interesses e objetivos, isto é, sua própria utilidade individual. Não há nenhuma interpretação plausível da ética utilitarista na qual a “relatividade ao agente” ocupe uma posição central. Quando escolhas coletivas estão em questão, exige-se dos indivíduos que ajam de forma a maximizar o total líquido de utilidade (caso do utilitarismo clássico) ou a utilidade per capita (utilitarismo médio). A maximização da utilidade total ou média é a tradução utilitarista da exigência da razão prática de que, ao decidirmos entre linhas alternativas de conduta ou entre distintas configurações institucionais, levemos em conta igual e imparcialmente o bem-estar e os interesses de todas as pessoas envolvidas. Nossa escolha deverá recair na linha de conduta que (mais provavelmente) tenha por conseqüência um estado de coisas em que a utilidade total ou média será maximizada. O utilitarismo atribui esse objetivo, a maximização de utilidade total ou média, a todos os indivíduos; trata-se, portanto, de um objetivo comum. E quando os interesses pessoais conflitam com esse objetivo comum, são os primeiros que devem ceder o passo ao segundo. Em outros termos, os indivíduos devem estar sempre dispostos a abrir mão até mesmo de sua utilidade individual se isso for necessário para “fazer o bolo (a utilidade agregada) crescer”, isto é se for o melhor, da ótica utilitarista, para a sociedade. A premissa individual que há por trás da moralidade utilitarista é muito forte: só é possível justificar as escolhas sociais recomendadas de uma perspectiva utilitarista caso se suponha que os objetivos e valores comuns prevaleçam sempre, sempre, pelo menos que houver conflito, sobre o interesse próprio e os objetivos individuais. Fazer o que seria aprovado de um ponto de vista puramente imparcial e objetivo constitui a única motivação para a agência moral utilitarista.

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Justificação de interesses para a maximizaçãoApesar de exigente em termos motivacionais, o

utilitarismo, entretanto, oferece uma interpretação singularmente restritiva do que é “uma consideração igual pelos interesses de todos”. Sobre isso, o ponto a ser ressaltado é que o utilitarismo não está necessariamente comprometido com uma concepção de igualdade distributiva. As considerações agregativas relacionadas ao critério paretiano de eficiência, normalmente desempenham um papel muito mais importante, na argumentação moral utilitarista, do que as considerações distributivas. Em princípio o utilitarismo pode considerar justificado que se desconsiderem os interesses dos mais destituídos, se for conducente à maximização da soma total de utilidade ou da média.

A moralidade sob considerações agregativas e o agente

O utilitarismo oferece uma interpretação da imparcialidade moral. Imparcialidade e igualdade, no entanto, são conceitos distintos. A teoria da justiça de Rawls reserva um lugar mais claro e direto para a noção de igualdade. De Vita não está certo de haver uma divergência significativa entre o utilitarismo e o contratualismo rawlsiano. Uma crítica muitas vezes feita ao utilitarismo é a de que, em razão do viés de hiper-objetividade que impõe à teoria política normativa, não acomoda adequadamente as razões morais relativas ao agente. O utilitarismo constitui uma modalidade radical de pensamento moral fundado em razões neutras em relação ao agente. É comum se argumentar que é sempre possível invocar considerações agregativas para justificar violações de direitos, liberdades e razões de autonomia individual, obrigações especiais e interdições deontológicas. Uma vez que um consequencialismo puro é aceito como a forma mais apropriada de reflexão ética, não há nenhuma atrocidade, tirar a vida de pessoas inocentes, torturar opositores

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políticos, invadir direitos de pessoas, que não possa ser justificada com base no estado de coisas, avaliado como benéfico pelos agentes praticantes do ato atroz, que supostamente seria gerado. Mas pensemos em uma situação corriqueira e muito menos dramática que isso. Uma pessoa pobre em de decidir o que fazer com respeito a um empréstimo que lhe foi feito por um homem abastado: pagar ou calotear? Caso se recomende a pessoa pobre que decida aplicando de forma direta o critério da maximização da utilidade social, ela se decidiria por não pagar. Considerando-se que a soma de dinheiro emprestada tem uma utilidade marginal maior para a pessoa pobre do que para o homem abastado, conclui-se que a conduta de passar o calote gera mais utilidade social do que a conduta de pagar o débito. Teríamos de concluir, com o devedor, que calotear é o melhor para a sociedade. Exemplos similares poderiam ser concebidos para não cumprir as próprias promessas e obrigações contratuais, desrespeitar direitos de propriedade e direitos civis e ignorar interdições deontológicas e obrigações especiais.

Utilitarismo de atos e utilitarismo de normasO argumento utilitarista, entretanto, pode ser

sofisticado para dar conta dessa objeção. Os teóricos utilitaristas contemporâneos mais importantes, como Harsanyi e Richard Hare, rejeitam o “utilitarismo de atos”, citado no parágrafo anterior, em prol de um “utilitarismo de normas”. Este último recomenda que a avaliação conseqüencial não seja aplicada atos isolados, e sim a práticas morais e instituições. A prática de assumir obrigações por meio de promessas, e os efeitos sociais benéficos que a ela estão associados será destruída se cada um só cumprir suas promessas quando fazê-lo for, em cada caso específico, maximizador da utilidade social. Pagar débitos é uma forma de preservar uma prática (a de fazer empréstimos) que tem efeitos sociais úteis. Se essa prática não for em geral respeitada, o homem abastado não será motivado a fazer empréstimos à pessoa pobre. O respeito,

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em atos isolados, à obrigação de pagar os débitos tem efeitos de incentivo e de confiança sem os quais a prática de fazer empréstimos não se manterá. O mesmo vale para cumprir as promessas e obrigações contratuais, respeitar direitos de propriedade e assim por diante.

De acordo com o utilitarismo de normas, o conteúdo da moralidade não é especificado pelo princípio de utilidade e sim por princípios de normas morais substantivos estabelecidos, por exemplo, que os direitos das pessoas não devem ser desrespeitados, que não se devem punir os inocentes, que os próprios acordos e promessas sejam cumpridos. É a adesão generalizada a essas normas que tem o efeito de maximizar o total líquido de felicidade. O princípio de utilidade só desempenha um papel, em um segundo nível da reflexão prática, quando se trata de escolher entre códigos morais distintos. A questão a ser apresentada, dessa ótica, é algo do tipo: “se a norma x for em geral cumprida, pelo menos pelas pessoas que têm preocupações genuínas com a moralidade, terá isso o efeito de elevar a utilidade social? Se a resposta for afirmativa, a norma em questão será recomendada pelo princípio de utilidade. Uma formulação sintética de Austin exprime bem o que sesta sendo dito: “Nossas normas se conformariam à utilidade; e nossa conduta, a nossas normas”. Esta afirmativa não deixa de ser tortuosa a forma pela qual os direitos e liberdades individuais e os valores relativos ao agente encontram seu espaço em uma estrutura moral utilitarista. Há um descompasso entre os motivos que as pessoas têm para conformar sua conduta às normas e aos princípios morais e as razões pelas quais essas normas e princípios são considerados, no segundo nível de reflexão prática, benéficos. O utilitarista atribui um valor meramente instrumental àquilo que as pessoas tomam, ou se supõe que devem tomar, como razões de direito próprio para agir. E somente se elas consideram dessa forma a obediência àqueles princípios e normas, isto é, somente se houver um número considerável de pessoas que, exceto em circunstâncias excepcionais, consideram moralmente

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errado descumprir suas promessas, os efeitos sociais benéficos sociais benéficos esperados se produzirão. A valorização instrumental daquilo que se espera que as pessoas aprendam a valorizar de forma não instrumental deixa sempre a suspeita de que a primeira e a última palavras serão concedidas a considerações agregativas (DE VITA, p. 17-20, 2002).

O desequilíbrio da moralidade utilitaristaA questão é: não há uma forma mais direta de

acomodar considerações morais relativas ao agente em uma perspectiva normativa na qual a primazia cabe a valores neutros em relação ao agente? O problema mais geral e relevante nessa área da teoria política é o de conceder um ideal político praticável que faça justiça, na medida apropriada, aos dois tipos de razões para agir que estamos considerando. Ao passo que as duas variantes de “neoliberalismo moral” enviesam-se para o lado da relatividade ao agente, o utilitarismo tem uma irresistível tendência a fazer que a moralidade política se desequilibre na direção oposta. Entretanto, como foi dito acima, é objeto de discussão até que ponto o utilitarismo oferece uma interpretação aceitável da idéia que o faz enviesar na direção oposta, a de “igual consideração pelo bem-estar de todos”.Seria muito fácil e confortador sustentar que o liberalismo igualitário oferece uma solução inteiramente satisfatória para esse problema. Não estou certo disso. Prefiro encarar o empenho em chegar a tal solução como uma empreitada teórica em andamento (DE VITA, p. 20-28 2002).

Normatização da liberdade básica e princípios de justiça

Já que uma teoria deontológica, no sentido que Rawls julga pertinente para caracterizar sua própria teoria, os princípios de justiça têm primazia sobre o bem em dois sentidos: porque podem ser defendidos de uma forma que não pressupõe a validade de nenhuma visão específica do

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bem; e porque colocam limites à formas pelas quais cidadãos podem se empenhar em realizar as concepções do bem que julgam ser verdadeiras. Com respeito ao que faz uma doutrina ética ser teleológica, nenhum problema. Mas, em relação à deontologia estamos falando de coisas distintas. A prioridade da justiça sobre o bem, em meu entender, alude a um elemento central de tolerância liberal. Uma concepção de justiça que tem a pretensão de constituir o fundamento normativo de uma sociedade democrática deve satisfazer a exigência de seus princípios possam ser justificados, perante todos os cidadãos, de uma forma que não pressuponha a validade de uma doutrina abrangente (moral, filosófica ou política) específica. Do ponto de vista normativo, a aceitação dessa idéia é um traço ainda mais significativo do que a prioridade das liberdades básicas para caracterizar uma teoria política como “liberal”.

Podemos aceitar a primazia da justiça sobre as concepções do bem e, ao mesmo tempo, concebê-la em termos essencialmente consequencialistas. Isso se aplica, acredito à teoria de Rawls. (Como de resto se aplica a toda teoria normativa que abre um espaço considerável a valores neutros em relação ao agente). O consequencialismo é uma decorrência necessária de entender a justiça como “a virtude primeira das instituições sociais”. O objeto da justiça, para Rawls, não é a correção ou a incorreção moral da conduta de agentes individuais (quer se trate de indivíduos, de organizações de todo tipo ou de governos) e sim o que Rawls denomina a “estrutura básica da sociedade”. Contrariamente ao que diz Hayek na passagem já citada, primariamente as normas de justiça aplicam-se a avaliação, não da conduta individual, e sim de arranjos individuais que incluem a organização política e a distribuição de direitos e liberdades fundamentais, as formas de propriedades e organização da economia (DE VITA, p. 28-33 2002).

O libertarianismo de Nozick

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A teoria política de Robert Nozick como uma variante de concepção de justiça é fundada em direitos individuais. Ele considera o propósito central de sua concepção de justiça que é o de oferecer uma alternativa à moralidade utilitarista que dê o peso que o respeito aos direitos individuais merece em nossos argumentos morais. Ele endossa a avaliação de Rawls de que o “utilitarismo não leva a sério a distinção entre as pessoas”. E não o faz, segundo Rawls, porque os moralistas utilitários cedo ou tarde teriam de considerar aceitável (nos termos da moralidade utilitarista) a violação dos direitos de algumas ou mesmo de muitas pessoas em nome de considerações de natureza agregativa. Nozick afirma que a preocupação com a garantia de direitos individuais pode ser adequadamente interpretada como “restrições à ação” e “não como um estado final a ser realizado”. Essa é uma distinção central para entender as divergências entre o libertarianismo e o liberalismo igualitário.

Nozick rejeita inteiramente uma interpretação “consequencialista” e institucional coletiva dos direitos, em favor de uma concepção dos direitos como “restrições laterais” à ação. A idéia básica é a de que os direitos não prescrevem o que devemos fazer coletivamente; eles somente impõem restrições ao leque de escolhas coletivas permissíveis. Os direitos não nos dizem o que devemos fazer, individual ou coletivamente; eles só estabelecem o que não devemos fazer. Podemos fazer o que bem entendermos, empenharmo-nos em realizar qualquer concepção individual ou comunitária da boa vida que julguemos ser mais valiosa, desde que para fazer isso não seja preciso violar os direitos de outros à integridade física, à propriedade legitimamente adquirida e ao cumprimento de obrigações voluntariamente contraídas (por exemplo, em contratos). Se violarmos as constrições morais que o respeito a esses direitos impõem à nossa conduta, tratamos outras pessoas como meros meios para nossos próprios fins, isto é, não respeitamos sua individualidade pessoal.

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É uma noção específica e controversa de inviolabilidade pessoal que podemos derivar a interpretação de Nozick da neutralidade liberal. Um justo e neutro em relação aos fins perseguidos por seus cidadãos nada mais é do que um Estado que garante o respeito às constrições morais à conduta individual e acima de tudo que as respeita no que se refere à sua própria ação. Um estado que força uma pessoa (mais privilegiada) a contribuir para o bem estar de outra (mais desafortunada) admite, segundo Nozick, que a primeira seja utilizada para os fins da segunda, e, portanto, é um estado que não é neutro entre os seus cidadãos: usar uma pessoa dessa forma não leva suficientemente em conta e não respeita o fato de que ela é uma pessoa separada, que essa é sua única vida. Ela não obtém nenhum bem que compense o sacrifício que lhe é exigido, e ninguém tem o direito de forçá-la a isso, muito menos um estado ou um governo que tem pretensão de contar com sua fidelidade (pretensão essa que os outros indivíduos não tem) e que, conseqüentemente, deve ser escrupulosamente neutro entre seus cidadãos.

Categorias básicas segundo DworkinUm estado liberal neutro não deve somente levar em

conta as constrições morais que se impõe à ação estatal; ele deve respeitá-las de uma forma absoluta. Nenhum objetivo a ser realizado por meios políticos pode justificar, para Nozick, uma violação, por menos importante que seja as constrições morais propostas por sua teoria. Ronald Dworkin sugeriu que as teorias políticas normativas podem ser classificadas em três categorias básicas: teorias baseadas em objetivos as teorias baseadas em direitos e as teorias baseadas em deveres. Entretanto a noção central na teoria de Nozick não é a de direitos e sim a de dever.

As teorias baseadas em direitos e as baseadas em deveres são modalidades de individualismo moral tendo em vista que, para umas e outras, a fonte última de valor é o bem-estar de indivíduos. Mas essa preocupação com o

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bem-estar individual pode ser interpretada tomando-se a noção de direitos ou a de alternativamente, a de deveres como a mais central. Pode parecer estranho fazer esta distinção, já que uma forma possível de sustentar a existência de um direito consiste em apresentar um argumento onde a noção de dever é meramente derivativa de algo que é moralmente mais fundamental. Para as teorias baseadas em direitos, o princípio normativo que deriva da preocupação com o bem-estar de cada indivíduo é o de que o Estado deve empenhar-se em proteger e promover determinados interesses de todos os indivíduos. O ideal é aproximar-se das condições propícias para o exercício de seus direitos individuais. O que importa, acima de tudo, não é a conformidade individual a normas de conduta, mas sim a existência de condições que permitam a cada um se empenhar ativamente na realização daquilo que julga ser valioso na vida (DE VITA, p. 48-57 2002).

O utilitarismo de preferênciasA teoria utilitarista que Harsanyi propôs define a

utilidade social a partir de utilidades individuais, e define a função de utilidade de cada pessoa com base em suas preferências pessoais. Dessa forma, a utilidade social é, por fim definida em relação às preferências individuais das pessoas. Há excepcionais realizações profissionais científicas ou artísticas, por exemplo, que só pode ocorrer a custa de pesados sacrifícios pessoais, seja porque impõe sofrimentos, seja porque exigem a renúncia a coisas que produziriam estados conscientes de prazer, a seus realizadores. Se formos dizer que tudo isto ocorre a custa de bem estar individual, então o problema está na concepção de bem-estar que estamos adotando (isto é, uma concepção hedonista). Neste ponto, estamos em condições de perceber de onde vem o apelo do utilitarismo de preferências. Contra o hedonismo não-qualificado, a noção de utilidade deixa de ter um vínculo necessário com os estados sensoriais do agente. Trata-se de um ideal de neutralidade; em nossos julgamentos de justiça social (ou

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de utilidade social), devemos evitar os julgamentos de valor que tenham por objetivo as preferências e as escolhas individuais.

A plausibilidade do utilitarismo de preferências resulta da resposta, à primeira vista irretorquível, que oferece ao problema da neutralidade nas comparações interpessoais de bem-estar. Sobretudo nas decisões de política pública e no funcionamento de instituições sociais básicas. Não queremos conceder às autoridades públicas o poder discricionário de decidir sobre a distribuição de recursos escassos sobre a distribuição de recursos escassos e sobre o emprego ou a abstenção do emprego da coerção coletiva de modo geral, com base no que elas acreditam que cada um de nós deveria preferir ou fazer.

A maleabilidade de preferênciasO princípio de Harsanyi, diversamente, já de início é

de natureza distributiva. O que ele propõe é de natureza distributiva. O que ele propõe é que a satisfação de preferências individuais deve erigir-se no critério último para distribuição de recursos escassos (e, de modo geral, para todo e qualquer emprego da coerção coletiva). Ao tomar decisões de política pública, ou avaliá-las de um ponto de vista imparcial, só devemos levar em conta a intensidade das preferências individuais e sua distribuição pela comunidade, abstendo-nos, como vimos na seção anterior, de julgá-las por seu valor intrínseco. O fundamento de nossas decisões distributivas deveria constituir-se somente da força e do grau de difusão de preferências individuais.

Se tomarmos a intensidade das preferências com métrica para estimar o bem estar individual, e queremos igualar o nível de bem-estar dos dois indivíduos, então somos levados, contra - intuitivamente, a propor que uma parcela maior dos recursos sociais escassos seja destinada ao indivíduo, que é um consumidor mais eficiente de bens (aquele que é capaz de derivar sempre mais utilidade individual de parcelas adicionais de recursos). Nas

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comparações interpessoais de bem-estar, qualquer que seja a concepção de igualdade que adotemos, somos inevitavelmente levados a avaliar até que ponto são razoáveis as exigências que a satisfação de determinadas preferências faz à sociedade. Essa razoabilidade, entretanto, não é um atributo das próprias preferências ou de sua intensidade, trata-se de um padrão externo às preferências. Se não temos como evitar recorrer a uma noção de exigência razoável nas comparações interpessoais, então nossa concepção de igualdade, mesmo que se atenha a uma métrica subjetiva, já embute suposições prévias de eqüidade distributiva. E essas suposições prévias necessitam de uma justificação que seja independente dos interesses individuais que serão comparados (DE VITA, p. 156-165 2002).

A política utilitarista e a esterilização de mulheres

“As políticas de esterilização no Brasil e a legislação constituída a partir de alguns de seus paradigmas buscam impreterivelmente a satisfação do maior número possível de pessoas. Em outras palavras, quando se parte do pressuposto de que o desenvolvimento depende do controle de natalidade, de que o bem da maioria da população está condicionado ao sacrifício de alguns – em termos de realização de suas liberdades, no caso a reprodução como parte disso -, utiliza-se do princípio da utilidade. Mas a quem é reservado o poder de decidir sobre a reprodução. Em um modelo político como o dos utilitaristas, o que se presa é a garantia posterior da satisfação dos membros da comunidade, uma satisfação como foi visto, que está estritamente vinculada ao “princípio da escolha” exercido por um indivíduo ideal desta comunidade. Dessa forma o estado e as instituições serão avaliados pelo resultado, que são as conseqüências úteis de suas ações. Assim se partirem (as instituições e o estado) de teses como a de que o problema da pobreza ou do desenvolvimento é decorrente do crescimento populacional

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estarão legitimados para intervir e sacrificar direitos compreendidos com básicos e fundamentais (mais uma vez, o exemplo da políticas controlistas da china – política do filho único – as de esterilização do Brasil pode ser mencionado). Porém, se o modelo político preocupa-se prioritariamente com o pleno exercício dos direitos individuais, a reprodução, cuja titularidade é de um (e apenas um) indivíduo, não poderá sofrer intervenção de qualquer natureza, seja por parte do Estado, das suas instituições ou de outros indivíduos, devendo, assim, sempre ser respeitadas a autonomia e a liberdade de forma quase absoluta. Porém, o desafio aqui consiste em determinar esta autonomia, ou um conceito ou explicação sobre quem é um sujeito de direito e como se dá sua expressão” (BUGLIONE, Samantha. p. 63 2003).

Bibliografia

KUMLICKA, Will. Filosofia Política e contemporânea. São Paulo: 2006, Martins fontes, 2006.KYMLICKA, Will. Contemporary Political Philosophy. Oxford University Press, Oxford, 1990.DE VITA, Álvaro. A Justiça Igualitária e seus Críticos. Editora Unesp, São Paulo, 2002. HARSANYI, John. “Morality and the theory of rational behavior”. In: SEN and WILLIAMS (eds.). Utilitarism and Beyond. Cambridge University Press, Cambridge, 1999. HARSANYI, John. Essays on Ethics, Social Behaviour and Scientific Explanation, Reidel, Dordrecht, 1976. SEN, Amartya e WILLIAMS, Bernard. “Utilitarism and Beyond” In: SEN and WILLIAMS (eds.). Utilitarism and Beyond. Cambridge University Press, Cambridge, 1999.BUGLIONE, Samantha. Reprodução, esterilização e justiça: Os pressupostos liberais e utilitaristas na construção do sujeito de direito. Porto Alegre, 2003.

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