john stuart mill - utilitarismo

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John Stuart Mill - Utilitarismo. Economia. Economia Politica.

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  • John Stuart Mill

    Utilitarismo

    ~ PORTO EDITORA

    COM O APOIO CIENTFICO DASOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA

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    Introduo, Traduo e Notas dePedro Galvo

  • FEVI2005 ISBN 972-0-41083-3Execuo grfica: Bloco Grfico, Lda . R. da Restaurao. 387 4050-506 PORTO' PORTUGAL

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    Indice Geral

    Anexos

    Da conexo entre justia e utilidade

    Notas

    Bibliografia

    ndice analtico

    Do tipo de prova que o princpio da utilidade admiteI~'

    O que o utilitarismo

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    Da sano ltima do princpio da utilidade

    1. o utilitarismo e lohn Stuart MiIl2. Epistemologia moral

    3. A teoria do valor: hedonismo

    4. A teoria da obrigao: consequencialismo

    5. Motivao moral

    6. A prova do utilitarismo

    7. A objeco da justia

    8. O utilitarismo depois de MiIl

    9. Leituras

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    Observaes gerais

    Utilitarisl/lo, de Jolm Stuart MillPedra GalvoPorto Editora

    Ttulo:Autor:

    Editora:

    Pedro GalvoLicenciado e mestre em Filosofia pela Universidade de Lisboa, onde prepara agora odoutoramento, com uma bolsa de investigao da Fundao para a Cincia e a Tecnologia,na especialidade de tica. Membro da direco da Sociedade Portuguesa de Filosofia.Participou em vrias publicaes apoiadas pelo Centro para o Ensino da Filosofiadesta instituio, e tambm autor de artigos de tica normativa. Publicou diversastradues de obras filosficas e edita uma revista electrnica de filosofia moral epoltica (www.trolei.net).

    Reservados todos os direitos.Esta publicao no pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer pro-cesso electrnico. mecnico, fotocpia, gravao ou outros, sem prvia autorizao escrita da Editora.

    ~ PORTO EDITORA Rua da Restauraco, 365 4099-023 PORTO' PORTUGALwww.portoeditora.pt E-mail [email protected] Telefone (351) 226088300 Fax (351) 2260883 01

    PORTO EDITORA, LDA. - 2005Rua da Restaurao. 3654099-023 PORTO - PORTUGAL

  • Nota de apresentao

    Esta traduo do Utilitarisl1lo foi realizada a pmtir das edies organizadaspor Geraint Williams (Everyman, 1996) e Roger Crisp (Oxford UniversityPress, 1998). Ambas baseiam-se na quarta edio da obra (1871), a ltimapublicada durante a vida de J. S. Mill. Alm das notas de Williams e de Clisp,consultei a edio castelhana de Esperanza Guisn (Alianza Editorial, 1984).

    Tanto na Introduo como nas Notas deste livro, tentei no s e1ucidaro contedo do Utilitarisl1lo sem pressupor quaisquer conhecimentos filo-sficos prvios, mas tambm situ-lo no contexto filosfico actual. Esperoque esta opo, alm de alimentm' a cmiosidade pelos problemas e teoriasque se discutem na filosofia moral, deixe claro que o valor desta obra deMill no meramente histrico.

    As referncias ao Utilitarisl1lot indicam o captulo e o pargrafo emcausa. Por exemplo, 2.3 refere o terceiro pargrafo do Captulo 2. Nas refe-rncias relativas a outras obras de Mill, os nmeros indicam, respectivamente,o volume e a pgina da edio de John Robson mencionada na Bibliografia,

    Este livro beneficiou imenso das revises e sugestes de TeresaCastanheira, Pau1a Mateus, Pedro Madeira, Ricardo Santos e lvm'ONunes.Agradeo-lhes calorosamente toda a ateno que dispensmam. Estou tam-bm grato ao Prof. Antnio Franco Alexandre por me ter orientado noestudo da teolia moral de Mill. Por fim, no posso deixar de referir o apoiofinanceiro da Fundao pm'a a Cincia e a Tecno1ogia e do Fundo SocialEuropeu no mbito do li Quadro Comunitrio de Apoio. Agradeo a Bolsade Doutoramento (SFRH!BD/9016/2002) que me foi concedida.

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    1. O utilitarismo e John Stuart Mill

    Uma parte importante da filosofia moral resulta do problema de sabercomo devemos viver. O utilitmista enfrenta este problema declmoando quedevemos perseguir a felicidade - no s a nossa prpria felicidade, mas afelicidade de todos aqueles cujo bem-estmo poder ser afectado pela nossaconduta. Os interesses do agente no tm, na verdade, mais importnciado que os interesses de quaisquer outros indivduos, sejam eles quemforem. Deste modo, o utilitarista advoga uma estrita igualdade na conside-rao dos interesses. O padro ltimo da moralidade, diz-nos, unicamente a promoo imparcial da felicidade. John Stuart Mill expri-miu assim a ideia central do utilitarismo:

    o credo que aceita a utilidade, ou o Princpio da MaiorFelicidade, como fundamento da moralidade, defende queas aces esto certas na medida em que tendem a promo-ver a felicidade, erradas na medida em que tendem aproduzir o reverso da felicidade. (2.2)

    Apresentado desta maneira, o utilitmoismo pode at pmoecer uma dou-trina quase trivial e demasiado genrica para ter algum valor prtico.Como se tornar claro, nada disto verdade. Se fosse pouco mais do queum trusmo inofensivo, a perspectiva utilitarista no teria enfrentado,

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  • Ulilitarismo

    desde que foi proposta, a forte oposio de muitos filsofos. E essa oposi-o tem resultado, em grande medida, do facto de o utilitarismo terconsequncias prticas que muitos no esto dispostos a aceitar. A rele-vncia prtica do utilitarismo, alis, torna-se manifesta logo queexaminamos os debates morais e polticos mais importantes em curso:quando, por exemplo, se analisa a moralidade do aborto ou da eutansia,se investiga como devemos reagir s desigualdades sociais e pobrezaabsoluta ou se discute como devemos tratar os animais no-humanos ou oambiente em geral, os argumentos utilitaristas assumem um lugar proemi-nente sempre que o debate filosoficamente informado.

    No entanto, o credo fundamental do utilitarismo inegavelmentevago. Afinal, em que consiste a felicidade? At que ponto estamos moral-mente obrigados a promov-la? E como afectar a sua promoo o modocomo devemos tomar decises? Estas so apenas algumas das questes queo utilitarista tem de esclarecer. E, como seria de esperar, muitas vezes osutilitmistas divergem profundamente na maneira como desenvolvem a suaperspectiva transformando-a numa teoria mais precisa. Nas seces 4 e 5desta Introduo, quando enfrentarmos o problema de identificm' o tipo deutilitmismo que Mill advoga, o leitor poder formar uma noo da conside-rvel diversidade das temias utilitm'istas disponveis.

    Mill no o fundador do utilitarismo. Esse epteto costuma ser atri-budo a Jeremy Bentham (1748-1832), que props a doutrina naIntroduo aos Princpios da Moral e Legislao (1789). No entanto, emvirtude da sua maior conciso e acessibilidade, foi o Utilitarismo que setornou a obra emblemtica da tradio utilitarista, sendo hoje um dosclssicos da filosofia moral mais lidos e discutidos. Esta obra foi publi-cada pela primeira vez em 1861 ao longo de trs edies da Fraser'sMagazine, uma revista intelectual dirigida a um pblico bastante amplo.Mill tinha ento cinquenta e cinco anos. Porm, reconhecia-se convicta-mente no utilitarismo desde a adolescncia, altura em que teve o primeirocontacto com o pensamento moral de Bentham. Na sua Autobiografia(1873), descreveu a adeso entusistica ao Princpio da Maior Felicidade(ou princpio da utilidade): Este deu unidade minha viso das coisas.Agora eu tinha opinies, um credo, uma doutrina, uma filosofia e, numdos melhores sentidos da palavra, uma religio, cuja inculcao e difusopoderia tornar-se o principal propsito exterior de uma vida (1. 69).

    De certo modo, a poderosa influncia de Bentham em Mill recuaquase ao seu nascimento, em 1806, na cidade de Londres. O seu pai, ofilsofo e economista James Mill (1773-1836), inclua-se entre os radi-

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    Utiltlarismo

    cais filosficos, um grupo liberal orientado por Bentham que marcou avida poltica da Gr-Bretanha. Empenhado em fazer de John Stuart umlder intelectual do movimento filosfico institudo por Bentham, JamesMill sujeitou-o a uma educao extraordinariamente exigente: f-lo come-ar a aprender grego logo aos trs anos e latim aos oito; aos doze anosMill j tinha lido todos os dilogos de Plato, e pouco depois, alm dedominar os elementos bsicos da economia, era versado em histria,lgica e matemtica.

    Por volta dos vinte anos, esgotado por todo este treino intensivo queinibiu o seu desenvolvimento afectivo, Mill sofreu uma profunda depressonervosa. A poesia, especialmente a de Wordsworth, parece ter desempe-nhado um papel importante na sua recuperao. Superada esta crise, Millmanteve-se fiel aos princpios fundamentais de Bentham, ruas alargou con-sideravelmente os seus interesses e procurou novas fontes de inspiraoestudando autores com mientaes fIlosficas muito diversas.

    Ainda na casa dos vinte anos, Mill conheceu e apaixonou-se porHarriet Taylor, a mulher que marcou profundamente a sua vida afectiva ese tornou uma fonte decisiva de estmulo intelectual. Embora fosse casada,Mill manteve sempre com ela um relacionamento muito prximo.Acabaram por casar em 1851, dois anos aps a morte do seu marido. Ocasamento foi feliz, mas infortunadamente breve: em 1858, durante umaviagem a Avinho, Harriet Taylor morreu.

    A vida profissional de Mill foi alheia ao meio acadmico. O seu paipreferiu mant-lo afastado das universidades e proporcionou-lhe uma cm'-reira na Companhia das ndias Orientais. Mill trabalhou nesta instituioat sua dissoluo, dispondo de muito tempo para actividades intelec-tuais e polticas. A par da investigao filosfica que o celebrizou,alimentou uma profusa correspondncia e escreveu incansavelmente pm'avrias revistas. A eleio para a Cmara dos Comuns, em 1865, repre-senta o seu sucesso poltico mais assinalvel. Apesar de no terconseguido a reeleio, Mill foi bastante aplaudido pela sua defesa dosdireitos das mulheres e das classes trabalhadoras. Passou os ltimos anosde vida em Avinho com Helen, a sua enteada. Morreu em 1873, tendosido sepultado ao lado da sua mulher.

    Mill costuma ser considerado o maior filsofo de lngua inglesa dosculo XIX. Alm do Utilitarismo, as suas obras filosoficamente mais sig-nificativas so Um Sistema de Lgica (1843), Exame da Filosofia de SirWilliam Hamilton (1865) e, no domnio da filosofia poltica, DaLiberdade (1859). Nas duas primeiras obras, Mill desenvolve uma filoso-

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    fia geral que se reflecte na sua teoria moral. Na verdade, para compreen-dermos o Utilitarismo devemos ter em mente dois aspectos dessafilosofia: o empirismo e o associacionismo.

    De acordo com o empirismo, todo o nosso conhecimento se baseia,em ltima anlise, nos dados dos sentidos ou na experincia. O raciocniopuro, alheio a qualquer experincia, no proporciona qualquer conheci-mento genuno - no existe conhecimento a priori. Mill, indo maislonge do que a maior parte dos empiristas, defendeu que at a lgica e amatemtica so empricas.

    O associacionismo uma teoria sobre o funcionamento da mentehumana. Segundo esta perspectiva, as nossas ideias (todas elas baseadasna experincia) estabelecem relaes entre si atravs de leis gerais deassociao. A tarefa da psicologia descobrir essas leis e us-las paraexplicar o comportamento humano. Veja-se, por exemplo, como Mill des-creve a Segunda Lei da Associao em Um Sistema de Lgica:Quando duas impresses foram frequentemente experienciadas (ou atse pensmos nelas) simultaneamente ou em sucesso imediata, sempreque uma dessas impresses, ou a sua ideia, se repete, tende a excitar aideia da outra (8.852). Se, por exemplo, sentimos repetidamente friosempre que seguramos em neve, tenderemos a pensar em frio quando vir-mos ou pensarmos em neve.

    No que diz respeito filosofia poltica de Mill, importa referir o seutrao fundamental: a defesa do liberalismo. Em Da Liberdade, persegue-seo objectivo de estabelecer o seguinte princpio, conhecido por princpio daliberdade: o nico fim para o qual os seres humanos esto autorizados ainteIferir, individual ou colectivamente, na liberdade de aco de qualquerindivduo a sua prpria proteco (1.9). Este princpio implica, entremuitas outras coisas, que toda a legislao destinada unicamente a impedirque as pessoas conduzam mal a sua prpria vida inaceitvel. Desde queisso seja compatvel com a liberdade dos outros, cada indivduo deve poderseguir o curso de vida que lhe parecer melhor. Um problema interessante o de saber se este princpio ser sequer consistente com o utilitarismo.Afinal, a tica utilitarista diz-nos para promover imparcialmente a felici-dade. Isto significa que ser permissvel limitar a liberdade individual (porexemplo, inibir a liberdade de expresso) sempre que essa limitao d mi-gem a um maior total de felicidade. Nessas circunstncias, parece que umutilitarista teria de rejeitar o princpio da liberdade.

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    UliIi(arismo

    2. Epistemologia moral

    O primeiro captulo do Utilitarismo consiste sobretudo numa breveincurso na rea da filosofia moral hoje conhecida por metatica. Nestarea no se discutem questes valorativas ou normativas (isso corresponde chamada tica normativa, na qual se enquadra a maior parte desta obra),mas problemas mais abstractos sobre a prpria natureza da moralidade. Oproblema metatico aflorado neste captulo uma questo de epistemologia(ou teoria do conhecimento) moral: como sabemos o que est certo ouelTado?

    Uma soluo para este problema implica postular a existncia de um sen-tido moral que intui as propriedades morais em cada caso particular. Tal comoa viso ou a audio nos permitem percepcionar' cores e sons em objectos par'-ticulares, tambm este sentido nos mostrar'ia directamente que determinadosactos so certos e outros so elTados. Mill afasta sumariamente esta temia afavor da perspectiva segundo a qual precisamos de princpios par'a determinar'as propriedades morais dos actos. Se, por exemplo, queremos saber se umagente procedeu erradamente ao mentir numa dada ocasio, no basta inspec-cionar' atentamente os aspectos particulares do caso - precisamos de oanalisar luz de princpios morais gerais, como sempre elTado mentir ouPode-se mentir apenas par'a salvar uma vida. (Em termos contemporneos,Mill um generalista, no um particularista.)

    Deste modo, a questo inicial conduz-nos ao seguinte problema: comopodemos saber quais so os princpios morais correctos? Mill distingue aquiduas teorias metaticas, identificando-se com a segunda: o intuicionismo eo indutivismo. O intuicionista julga que, graas a uma forma de intuiointelectual, podemos descobrir a priori os princpios morais sem os inferirde quaisquer premissas empricas. O indutivista, pelo contrrio, sustentaque o conhecimento desses princpios tem uma base emprica. Podemosinferir indutivamente esses princpios a partir da experincia.

    Os exemplos mais simples de induo so as generalizaes empricas:observamos, por exemplo, um conjunto limitado de corvos e constatamosque cada um deles negro; por induo, conclumos que todos os corvos sonegros. Como este exemplo deixa claro, as inferncias ou argumentos induti-vos, mesmo que partam de premissas verdadeiras, no nos proporcionam agarantia absoluta de que a concluso seja verdadeira. (No fica excluda apossibilidade de, numa prxima ocasio, observarmos um corvo de outracor, o que refutaria a concluso geral.) Os ar'gumentos dedutivos (ou deduti-

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  • Utilitarismo

    vamente vlidos), pelo contrrio, tm esta caracterstica notvel: se todas assuas premissas so verdadeiras, temos a garantia de que a sua concluso verdadeira. Por exemplo, de premissas que nos dizem que todos os corvosso negros e que um dado animal um corvo, podemos deduzir que esse ani-mal negro. Ficaremos ento com a garantia de que esse animal negro,mas a~enas se j tivermos estabelecido a verdade de ambas as premissas.

    Mill anuncia o objectivo, executado sobretudo no Captulo 4, de apre-sentar uma prova da tica utilitarista. No entanto, esclarece que no temem mente o ideal de uma prova dedutiva, ou seja, no vai tentar justificar oprincpio da utilidade exibindo-o como a concluso de um argumento dedu-tivamente vlido com premissas inquestionavelmente verdadeiras. A sua~mbio mais modesta: apresentar consideraes susceptveis de fazer omtelecto dar ou recusar o seu assentimento doutrina (1.5). Note-se, noentanto, que um intuicionista nem isso faria. Em vez de tentar justificar dealguma maneira o princpio moral fundamental que lhe parecesse correctolimitar-se-ia a encar-lo como uma verdade auto-evidente, que qualque;'pessoa razovel teria de aceitar, mesmo na ausncia de qualquer prova.

    3. A teoria do valor: hedonismo

    o Captulo 2 visa esclarecer o contedo da tica utilitarista. Esse escla-recimento decorre a par de respostas a vrias objeces que, alegadamente,resultam de uma incompreenso do utilitarismo. Para obtermos uma ima-gem e:clareced~ra da teoria de tica normativa proposta neste captulo, prefenve! exammar separadamente os seus dois componentes principais:uma teona do valor e uma teoria da obrigao moral. Estas teorias so bas-tante independentes entre si. partida, no estaremos a ser inconsistentesse concordarmos com aquilo que Mill defende acerca do valor mas no daobrigao moral- ou vice-versa. '

    Comecemos por delimitar o mbito da teoria do valor avanada nestecap~lo. Esta no visa abranger tudo aquilo que bom ou valioso, j que~e clrcuns~reve felicidade ou bem-estar individual. Por outras palavras,e uma teona sobre aquilo que torna a vida de um indivduo boa ou valiosapara si prprio.

    Mill, tal como Bentham, prope uma perspectiva hedonista do valor. Deacordo com o hedonismo, o bem-estar consiste unicamente no prazer e na

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    Utililansmo

    ausncia de dor. A vida de um indivduo boa para si prprio apenas emvirtude de exibir um forte predomnio das experincias aprazveis sobre asexperincias dolorosas. Alm disso, como Roger Crisp salienta (1997: 26),tanto Bentham como Mill advogam o hedonismo total: pensam no s queo bem-estar consiste em experincias aprazveis, mas tambm que essasexpelinias so boas ou valiosas apenas devido sua aprazibilidade, e no,por exemplo, porque satisfazem os nossos desejos ou porque esto deacordo com a vontade de Deus.

    Existem duas alternativas principais ao hedonismo. De acordo com umadelas, o bem-estar de um indivduo consiste primariamente na satisfaodos seus desejos ou preferncias. Uma vida boa aquela em que muitosdesejos intensos so satisfeitos e poucos so flUstrados. Durante o sculoXX, vrios fllsofos (incluindo diversos utilitaristas proeminentes) abraa-ram esta perspectiva e ensaiaram-na em muitas verses diferentes. Uma dasverses mais plausveis limita o bem-estar satisfao dos desejos racionaise informados. A segunda alternativa, tal como o hedonismo, explica o bem--estar sem apelar satisfao de preferncias, mas ope-se-lhe reconhe-cendo uma pluralidade irredutvel de valores: alm do prazer, h coisas quetornam a nossa vida boa para ns prprios independentemente de seremdesejadas ou de proporcionarem experincias aprazveis, como o conheci-mento, a vutude, a autonomia ou a amizade. O utilitalismo ideal de G. E.Moore envereda por esta alternativa.

    De acordo com o hedonismo de Bentham, o valor dos prazeres depende,em ltima anlise, apenas de dois factores: a sua durao e a sua intensi-dade. Os melhores prazeres - semelhana, obviamente, das piores dores- so os mais prolongados e intensos. Assim, Bentham tem uma visopuramente quantitativa do bem-estar. Pressupe que os prazeres (e as dores)so, pelos menos em princpio, inteu'amente comensurveis: depois de ter-mos determinado quantitativamente a intensidade e a durao de um prazer(ou dor), podemos multiplicar uma pela outra de modo a determinar o valordessa expelincia; se fizelmos o mesmo a outro prazer (ou dor), poderemoscompar-lo com o primeiro para descobru' qual tem mais valor.

    A inovao essencial de Mill relativamente ao hedonismo de Benthamconsiste em defender que, alm da durao e da intensidade, temos de aten-der qualidade dos prazeres. Alguns tipos de prazer so, em vutude da suanatureza, intrinsecamente superiores a outros. E, para maximizarmos onosso prprio bem-estar, devemos dar uma forte preferncia aos prazeressuperiores, recusando-nos a troc-los por uma quantidade idntica ou

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  • U~lilarismo

    Assim, parece que a teoria do valor de Mill, alm de ser coerentementehedonista, consiste num hedonismo mais sofisticado do que o de Bentham.No entanto, antes de nos ocuparmos da sua temia da obrigao moral, valea pena referir dois dos argumentos mais fortes que foram avanados contrao hedonismo clssico de Bentham e Mill.

    Um desses argumentos, proposto por Derek Parfit (1984: 493-494) eJames Gtiffin (1986: 7-8), diz-nos que os hedonistas clssicos pressupemeuadamente que o prazer (ou a dor) um tipo distinto de experincia ouestado mental. Se examinarmos prazeres como os de matar a sede, ctiar um

    Neste ponto, um defensor da perspectiva de Mill recusar-se-ia a aceitarque os prazeres so comensurveis desta maneira. Dma que nem todos osprazeres so mensurveis numa nica escala ou balana. Mas nesse caso,prossegue a objeco, Mill precipita-se na segunda face do dilema: podemosaceitar que os prazeres superiores tm mais valor, mas no por serem maisaprazlveis. Tem de haver uma propriedade diferente da aprazibilidade quecontribua para tomar as expetincias boas ou valiosas. Porm, deixaremos deser totalmente hedonistas a partir do momento em que admititmos que ovalor das experincias no determinado apenas pela sua aprazibilidade.

    Embora esta objeco possa parecer persuasiva, Crisp (1997: 33) reve-lou claramente a sua fraqueza:

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    Segundo Mill, o valor de uma experincia aprazveldepende no s da sua durao e intensidade, mas tambmda sua qualidade, da sua natureza intrnseca. Mill podesugerir, ento, que o prazer superior valioso devido suaaprazibilidade, evitando assim a primeira face do dilema. Umprazer inferior poderia ultrapassar o peso de um prazersuperior somente se a sua natureza se transformasse de talmaneira que ele deixasse de ser um prazer inferior. Aumen-tar apenas a quantidade - isto , a durao e a intensidadeda experincia aprazvel - no seria suficiente. Alm disso,enquanto se excluir uma comensurabilidade cardinal total,Mil! no tem de deixar de afirmar que os prazeres superio-res so mais aprazveis e, por isso, mais valiosos. Istosignifica que Mil! pode evitar a segunda face do dilema,segundo a qual ele deixaria de ser um hedonista por postu-lar uma propriedade distinta da aprazibilidade que torna ascoisas boas. Os prazeres superiores so bons para as pes-soas simplesmente devido sua aprazibilidade.

    CFT-UTll-2

    Utilitarismo

    mesmo maior de prazeres inferiores. Em termos gerais, Mill identifica osprazeres inferiores com os prazeres corporais e considera superiores aquelesprazeres que resultam do exerccio das nossas faculdades intelectuais. Parajustificar esta identificao, apela figura dos

  • Utltitarismo

    filho, andar de bicicleta, magoar um inimigo, ler um romance ou ganhar umprmio, constataremos que estes prazeres so to diversos que, enquantoexpelincias, no tm em comum qualquer qualidade distinta. Por isso, ohedonismo s ser defensvel caso d lugar a um hedonismo de prefern-cias~>.Nesta perspectiva, reconhece-se que os prazeres (e tambm as dores)pmtllham apenas uma celta relao com os nossos desejos ou preferncias:todos os prazeres so desejados quando so expelienciados, e so maiores oumelhores apenas em virtude de serem mais desejados. Deste modo, o bem--estm' no pode ser concebido independentemente da satisfao de desejos.. O segundo argumento, avanado por Robert Nozick (1974: 42-45),

    atmge no s o hedonismo clssico, mas qualquer perspectiva que entenda obem-estm' apenas em termos de certas expelincias subjectivas ou estadosmentais. Imaginemos uma mquina de realidade virtual capaz de ofereceruma vida muito lica em experincias aprazveis, permitindo at que o seuutilizador desfrute de quaisquer prazeres supedores. Suponhamos que temosde tomm' a seguinte deciso: continum' a ter uma vida genuna, nem sempregenerosa nos prazeres que a preenchem, ou ligarmo-nos mquina e habitm'-mos para sempre o seu mundo ilusrio. Que opo nos permitma ter umavida mais valiosa para ns prprios? De acordo com o hedonismo, mesmoq~e a mquina nos proporcionasse apenas uma vida ligeiramente mais apra-zlVel do que aquela com que podemos contar no mundo real, viveramosmelhor caso optssemos pela ligao. Mas Nozick sugere que essa seria umam opo: queremos fazer certas coisas, e no apenas ter a experincia deas fazer. No caso de celtas expedncias, queremos a experincia de realizm'as aces ~u de pensm' que as realizmos apenas porque, antes de mais, que-remos reahzm' essas aces. Ou seja, o nosso bem-estar no determinadoapenas por experincias, pela maneira como as coisas se nos apresentamsubjectivamente - a verdadeira origem dessas experincias tambmimporta. Se, por exemplo, uma pessoa quiser acima de tudo constituir umafamlia e educar bem os filhos, nada ter a ganhar em ligar-se a umamquina que, depois de gerar uma encantadora famlia vutual, lhe gaJ.'antirtodas as experincias associadas a ser uma boa me ou um bom pai. O hedo-nismo paJ.'eceser incapaz de acomodm' este facto.

    4. A teoria da obrigao: consequencialismo

    Uma teolia da obrigao especifica pdncpios que nos permitem ava-liar o estatuto moral dos actos, isto , determinar que actos somoralmente elTados, permissveis ou obrigatrios. As teorias da obrigao

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    Utiltarismo

    consequencialistas so aquelas que supem que as consequncias das nos-sas opes constituem o nico padro fundamental da tica. De acordocom as perspectivas consequencialistas mais fortes e directas, a nossanica obdgao bsica maximizaJ.' o bem: o acto moralmente certo (ouobrigatrio) sempre aquele que, avaliadas as coisas de uma forma estri-tamente imparcial, dar origem melhor situao ou ao maior bem.

    A tica de Mill - e qualquer outra verso de utilitarismo - umexemplo de consequencialismo. (O utilitalismo, alis, cOlTesponde s pers-pectivas consequencialistas nas quais se presume no s que o bem apromover consiste exclusivamente no bem-estm' dos seres sencientes, mastambm que a dishibuio do bem-estar no intlinsecamente importante.)Como veremos, est longe de ser consensual que Mill defenda uma teoriaconsequencialista das mais fmtes e dU'ectas, mas, se admitu'mos que esseo caso, obteremos o seguinte princpio tico: o acto moralmente certo (ouobdgatdo) sempre aquele que, considerados devidamente todos os pra-zeres e todas as dores, dar origem ao saldo mais positivo. (Note-se, apropsito, que a distino entre prazeres supedores e prazeres infedorestorna o apuramento deste saldo mais complicado.) Resumidamente, o actocerto sempre aquele que maxlniza o prazer.

    Antes de discutumos o problema de saber se esta a perspectiva queMill subscreve, vale a pena distinguir o consequencialismo das temias daobrigao deontolgicas. No fcil traar rigorosamente esta distino,mas para os nossos propsitos basta apontar um aspecto essencial dadeontologia: um defensor desta posio pode atdbuu' um grande peso promoo do bem, mas paJ.'aele o estatuto moral de um acto no deter-minado unicamente pelo valor das suas consequncias, pois existemrestries que colocam fortes limites quilo que permissvel fazer emfuno do maior bem. Os deontologistas reconhecem, pelo menos, umarestrio geral contra maltratar pessoas inocentes. Julgam no s que errado maltratar seriamente pessoas inocentes pm'a benefcio dos outros,mas tambm que errado maltrat-las mesmo que isso seja necessriopara impedir que outros agentes maltratem pessoas inocentes. (Estesegundo aspecto capta a ideia de que as restries em causa so centra-das no agente.) Por vezes, recorre-se ao idioma dos direitos paraexprimir a posio deontolgica: cada indivduo tem certos direitosmorais bsicos (como o direito a no ser maltratado) que nem semprepodem ser violados com a justificao de que a sua violao necessriapm'a produzu' um maior bem social.

    Immanuel Kant (1724-1804) , sem dvida, o filsofo mais influente datradio deontolgica. Tal como Mill, Kant props uma temia da obrigao

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  • Utililarismo

    que tem um nico princpio tico fundamental: o imperativo categrico. Deacordo com este princpio, devemos agir apenas segundo mximas que pos-samos querer universalizar. Se no podemos querer que todos ajam segundouma certa mxima, ento ela no universalizvel e, por isso, devemosrejeit-la. Imagine-se, por exemplo, uma pessoa que age segundo a mximaFaz promessas com a inteno de as no cumprires. No podemos quererque esta mxima se torne uma lei universal: se todos os agentes fizessempromessas com a inteno de as no cumprirem, a prpria prtica de fazer~romessas desapareceda, pois esta baseia-se na confiana entre as pessoas.E pura e simplesmente impossvel todos fazerem promessas com a intenode as no cumprirem. Por esta razo, no podemos querer que todos ajamsegundo essa mxima - ela deve ser rejeitada.

    Kant tentou mostrar que o imperativo categrico implica vtias restri-es ou proibies morais absolutas - alegou que sempre errado, porexemplo, quebrar uma promessa, mentir ou cometer suicdio. No pode-mos realizar actos como estes mesmo que a sua realizao possa darorigem a um grande bem ou evitar um grande mal. (Note-se, no entanto,que nem todos os deontologistas defendem que as restries so absolu-tas.) Kant sustentou tambm que o imperativo categrico pode serformulado como uma exigncia de respeito pelas pessoas: devemos trataras pessoas como fins, e nunca como simples meios ao servio de interes-ses pessoais ou sociais.

    Podemos avanar agora para o problema de identificar o tipo de conse-quencialismo (ou utilitarismo) proposto por Mil!. Num artigo muitodiscutido, 1. O. Urmson (1953) sugeriu que a teoria da obrigao de Millassenta em duas teses fundamentais:

    1. Uma aco particular certa se estiver de acordo com as regrasmorais correctas; errada se transgredir alguma das regras moraiscorrectas.

    2. Uma regra moral correcta em virtude de a sua aceitao promovero fim ltimo - a felicidade geral.

    Se Urmson tem razo, Mill no defende a forma mais directa de utilita-dsmo: a sua teoda no um utilitadsmo dos actos, mas um utilitarismo dasregras. Quem aceita o pdmeiro tipo de teoria aplica directamente o padroutilitarista a actos particulares, ou seja, diz-nos que cada acto certo ouenado apenas em virtude de promover a felicidade ou a infelicidade. O utili-tarista das regras, pelo contrtio, pensa que o estatuto moral dos actos

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    Ulililarismo

    particulares depende da sua conformidade a certas regras, mais precisamenteda conformidade quelas regras que constituem o cdigo moral correcto. isto que nos diz a tese 1. O padro utilitadsta usado apenas para identificaras regras que devemos incluir no nosso cdigo moral. Essas regras, comonos di;z;a tese 2, so aquelas cuja aceitao geral promove o bem-estar.

    Para tornar ntida a diferena entre estas duas formas de utilitarismo,imaginemos que um dado agente est na seguinte situao: se quebraruma promessa, produzir mais bem-estar do que se mantiver a sua pala-vra. O utilitarista dos actos dir que permissvel (ou mesmo obrigatrio)o agente quebrar a promessa, pois esse o acto que maximiza o bem--estar. O utilitarista das regras poder discordar. A aceitao geral da regraNo devemos quebrar promessas promove seguramente o bem-estar.Por isso, os actos particulares de quebrar promessas so errados. Pelamesma razo, errado fazer coisas como assassinar ou torturar pessoasinocentes mesmo nos casos particulares em que um acto de assassnio oude tortura maximizaria a felicidade geral.

    Como estes exemplos deixam claro, o utilitmismo das regras est frequen-temente mais prximo da tica kantiana (e da deontologia em geral) do que outilitmismo dos actos - tal como Kant, o utilitmista das regras avalia a morali-dade dos actos pmticulm'es apelando a diversas regras gerais. Porm, estas duasteorias divergem profundamente no modo como justificam essas regras. Pm'aKant, como vimos, as regras morais a observar deconem da exigncia de uni-versalizao que constitui o imperativo categrico. E Kant supunha que esteprincpio moral fundamental tinha uma autOlidade a priori: estabelecemo-losem reCOlTer experincia, reconendo unicamente razo. No contexto do uti-litarismo das regras, pelo contrrio, as normas morais que ditam a moralidadedos actos so estabelecidas por meios emplicos. PaI'a decidir se havemos deincluir no nosso cdigo moral regras como No devemos quebrar promes-sas, A mulher deve obedecer ao marido ou Nunca devemos praticm' aeutansia, temos de avaliar o impacto da sua aceitao na felicidade geral,usando pm'a o efeito os dados emplicos disponveis.

    Ser Mill um utilitarista das regras? O princpio da utilidade, recorde-mos, diz-nos que as aces esto certas na medida em que tendem apromover a felicidade, erradas na medida em que tendem a produzir oreverso da felicidade (2.2). Aparentemente, seria difcil encontraI' umaformulao mais clm'a do utilitaI'ismo dos actos. Porm, Urmson defendeque a referncia s tendncias das aces aponta para um compromissocom o utilitarismo das regras:

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  • Ulititarismo

    Em rigor, podemos dizer que uma certa aco tende aproduzir um certo resultado apenas se estivermos a falar det,ipos de aces em vez de aces particulares. Ingeriralcool pode tender a produzir alegria, mas o meu acto debeb~r este copo particular ou produz ou no produz alegria.Assim, parece que aqui podemos muito bem julgar que Millest a dizer que as regras morais probem ou ordenam tiposde aces. Na verdade, est a afirmar que as regras moraiscorrectas so aquelas que promovem o fim ltimo [ ... ].(1953: 6)

    Sob a interpretao proposta por Urmson, o princpio da utilidaderefere-se a tipos de aces, como mentir ou roubar, pois imprprio dizerque um acto particular, como uma mentira ou um roubo, tende a produzirfelicidade ou infelicidade - s podemos atribuir esse tipo de tendncia aclasses de aces. Urmson, no entanto, est enganado. Encontramos aprova do seu erro numa carta que Mill escreveu a John Venn em 1872. Apassagem crucial a seguinte:

    Concordo consigo quando diz que a maneira correcta detestar aces atravs das suas consequncias test-Iaspelas consequncias naturais da aco particular, e no~elas consequncias que se verificariam caso toda a gentefizesse o mesmo. Porm, na maior parte dos casos, consi-derar aquilo que aconteceria se toda a gente fizesse omesmo a nica maneira de descobrirmos a tendncia doacto no caso particular. (17.1881) .

    Esta passagem mostra trs coisas importantes. Em primeiro lugar, Millconsidera perfeitamente apropriado falar de tendncias a respeito de actosparticulares. Em segundo lugar, revela uma ntida inclinao para o utili-tarismo dos actos. Por fIm, Mill sustenta que na maior parte das situaesdevemos pensar como se fssemos uma espcie de utilitaristas das regras.Este ltimo aspecto o mais intrigante e tem de ser esclarecido.

    Comecemos por salientar que o princpio da utilidade primariamenteum padro que visa indicar o que torna os actos moralmente certos ou erra-dos. Um padro deste gnero, um critrio de moralidade, no deve serconfundido com um guia para tomar decises. Se aceitssemos o utilita-rismo dos actos e incorrssemos nessa confuso, tentaramos aplicar o

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    Utililarismo

    princpio da utilidade em todos os casos de maneira a decidir o que fazer.Isso implicaria estar sempre a calcular os custos e os benefcios de cada umdos cursos de aco disponveis. Dadas as nossas limitaes cognitivas, osclculos infmdveis acabariam por nos deixar praticamente paralisados e,em cons~quncia disso, desperdiaramos imensas oportunidades de pro-mover a felicidade geral. O utilitarismo delTotar-se-ia a si prprio.

    Mill est perfeitamente consciente disto. Por esta razo, no sugere deforma alguma que o nosso pensamento moral deve estar exclusivamentedominado por consideraes utilitaristas. Em termos contemporneos,recusa a ideia de que existe apenas um nvel de pensamento moral. A suateoria antecipa signifIcativamente o influente utilitarismo de dois nveisdesenvolvido por R. M. Hare, que se baseia na distino entre o nvelintuitivo e o nvel crtico do pensamento moral. Segundo Hare, devemospermanecer quase sempre no primeiro destes nveis. Em vez de tomarmosdecises raciocinando de uma forma utilitarista, melhor limitarmo-nos aobservar as regras que constituem a moralidade comum, isto , a seguir asintuies morais que nos inculcaram - entre outras, a intuio de que errado quebrar promessas, roubar ou matar. Mill aceita esta ideia.Defende que precisamos de nos guiar pelos princpios secundrios damoral idade comum, at porque estes resultaram em grande medida dainfluncia tcita do padro utilitarista. A experincia dos seres humanosmostrou, por exemplo, que a aceitao geral de uma regra contra quebrarpromessas promove o bem-estar. Por isso, temos de cultivar uma forte dis-posio para manter as promessas que fazemos, evitando iludirmo-noscom pretextos de teor utilitarista para quebrar promessas.

    Porm, Mill no afIrma que devemos limitar-nos a aderir cegamente moralidade comum ou, mais precisamente, aos costumes morais da socie-dade em que vivemos. Por vezes, os princpios secundrios entram emconflito e podemos ser forados a escolher, por exemplo, entre quebrar umapromessa e roubar um certo objecto. Em casos deste gnero, sugere Mill,temos de apelar ao critrio utilitarista para decidir o que fazer. Alm disso,o cdigo moral institudo est longe de ser perfeito: a par da sabedoria acu-mulada por muitas geraes de seres humanos, encerra supersties epreconceitos nocivos para a felicidade geral. Para refOlmar apropriadamenteo nosso cdigo moral, temos de o examinar luz do padro utilitarista.Mill, alis, lutou por reformas sociais e polticas considerveis, sendo dedestacar a este respeito a sua defesa resoluta da liberdade individual e daigualdade entre os sexos. Presumivelmente, encontrou no princpio da utili-dade a justifIcao fundamental para essas reformas.

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  • UliIiLarismo

    Podemos ento dizer que Mill, tal como Hare, alm do nvel intuitivor:conhece um nvel crtico do pensamento moral: um nvel em que racio-CInamos de uma forma utilitarista tanto para resolver os conflitos dede.veI~e~gerados p:l.a moralidade comum como para apeIfeioar e rever ospnncIplOS secundanos que a constituem.

    . Alm de determinar se a teoria consequencialista de Mill um utilita-nsmo dos actos ou das regras, desejvel caracteriz-la sob outrosas~ec~os importantes. Um desses aspectos diz respeito distino entredOIS tIpos de teorias utilitaristas: as que nos dizem que o melhor acto aquele que dar o,rigem ao maior total de bem-estar e as que afirmam queo melhor acto e aquele que produzir o maior bem-estar mdio.Geralmente, presume-se que Mill defende o utilitarismo total. Podemos~erceber a importncia desta distino se imaginarmos que um utilitaristat~~a ~e determinar a poltica demo grfica do seu pas. Se ele fosse umutIlItansta total, tenderia a prefeIir uma populao cada vez maior aindaqU,e.esse crescimento implicasse alguma reduo da qualidade d~ vidamedIa. Se, pelo contrrio, fosse um utilitarista de mdia, no hesitaria emtom~r medidas pa.ra reduzir drasticamente o tamanho da populao, desdeque ISSOse traduzIsse num aumento da qualidade de vida mdia.

    ?ut~a distino importante a que separa o utilitarismo objectivo dosubJectIvo. ~e acordo com o utilitarismo objectivo (ou actualista), o~elhor acto e sempre aquele que efectivamente maximiza o bem-estar,Iil~~pe~dentemente daquilo que o agente previu ou poderia ter previsto. OutIhtansmo subjectivo (ou probabilista), pelo contrrio, identifica omelh~r a:to at~ndendo perspectiva epistmica do agente: agir da melhormaneIra e segUIr o curso de aco que, ponderadas as probabilidades luzdos dados disponveis, se apresenta mais promissor. Imagine-se, porexemplo, um agente bem-intencionado que decide dar alimentos a umhomem muito pobre. Embora ningum o soubesse, esse homem extre-mamente alrgico ~ uma substncia presente nos alimentos e acaba pormon:e~'p~uco depOIS de os ter ingerido. Ser que o agente procedeu bem?O utihtansta subjectivo, mas no o objectivo, diIia que sim. Imaginemosagora que um agente mal-intencionado tenta envenenar uma pessoa ino-~ente que est bastante doente. No entanto, o veneno acaba por curarIil~~pe~adamente essa pessoa. Este segundo agente ter procedido bem? OutIlItansta objectivo, mas no o subjectivo, diria que sim. Infelizmenteno f~cil determinar que tipo de utilitarismo Mill pretende defender:(Mas veja-se Crisp (1997: 99-101).)

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    Uhtilarismo

    Uma terceira distino a ter em conta incide no grau de exigncia doutilitarismo. De acordo com a verso mais forte de utilitarismo, aquelaque costuma ser atribuda a Mill, o acto certo sempre aquele que maxi-miza o bem-estar. Ou seja: sempre obrigatrio, e no apenaspermissvel, realizar os actos que daro origem ao maior bem. Esta pers-pectiva, que nos coloca sob a obrigao permanente de promover afelicidade geral no mximo grau possvel, tem o seguinte corolrio: se umacto no maximiza o bem-estar, ento moralmente errado.

    Para termos uma ideia das exigncias morais que decorrem das versesmaximizantes de utilitarismo, imaginemos um agente que est a decidir oque fazer com o seu dinheiro. Suponhamos que, entre todas as opes dispo-nveis, aquela que resultar nas melhores consequncias a de doar 10 000euros UNlCEF. Porm, o agente doa apenas 9 000 euros a esta institui-o - ou opta por entregar os 10 000 euros Oxfam. Nesse caso, diria outilitarista maximizante, ele fez algo de moralmente errado.

    Dado que a exigncia de maximizao tem implicaes to contra--intuitivas, no surpreendente que tenham sido propostas verses sub--maximizantes de utilitarismo, nas quais se exige apenas que o agentepromova suficientemente o bem-estar. Ser que Mill advoga uma perspec-tiva mais moderada deste gnero? No fcil responder conclusivamentea esta questo, mas o princpio da utilidade parece autorizar uma respostaafirmativa. Mmal, Mill diz-nos que as aces esto certas na medida emque promovem a felicidade, e erradas tambm na medida em que no apromovem. Ora, isto sugere que o certo e o errado admitem graus: nonosso exemplo, a opo de doar 10 000 euros UNICEF pode ser maxi-mamente certa, mas da no podemos inferir que seja errado doar apenas9 000 euros ou entregar o dinheiro Oxfam. luz do critrio de Min,estas opes tambm podem ser avaliadas como moralmente certas, aindaque o sejam num grau um pouco inferior.

    O Utilitarismo proporciona seguramente uma boa oportunidade paradiscutir as qualidades e os defeitos das diversas formas que esta teoria daobrigao pode assumir. No entanto, como vimos, nem sempre fcildizer que teoria especfica Mill est interessado em defender. Em parte,isto pode acontecer porque as distines que introduzimos nesta seco(entre outras) no eram muito ntidas para os filsofos do sculo XIX.Alm disso, importa no esquecer que Mill no estava a escrever para umpblico muito especializado e interessado em distines filosficas rigo-rosas. Mas talvez exista outra razo para a dificuldade de caracteIizar ateoria moral de Min. Num artigo notvel, Daniel Jacobson (1993) susten-

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  • Utililarismo

    tou que no Utilitarismo a indetenninao propositada. De acordo com ainterpretao ecumnica avanada por Jacobson, o objectivo de Millno propor e articular uma forma definida de utilitarismo, mas defendero credo comum dos utilitadstas contra os autores associados ao intui-cionismo. Por isso, as tentativas de encontrar nesta obra uma versoparticular de utilitarismo so completamente deslocadas. Mesmo que estainterpretao peque por exagero, vale a pena t-la em mente durante a lei-tura do Utilitarismo.

    5. Motivao moral

    o breve Captulo 3 incide em duas questes sobre motivao moral.Mill comea por perguntar o que poder motivar as pessoas para agir emconformidade com a tica utilitadsta. Esta questo oportuna porque outilitarismo, contrariamente moralidade comum, no est ligado a umforte sentido de obrigao. Afinal, a educao que recebemos faz-nos sen-tir obrigados, por exemplo, a manter promessas e a no roubar, masgeralmente no temos uma motivao anloga para promover a felicidadegeral. Nos ltimos dois pargrafos do captulo, Mill concentra-se nasegunda questo, que tem um carcter normativo: porque deveremos estarmotivados para agir de acordo com o utilitarismo?

    A resposta de Mill para a plimeira questo consiste em sugerir que a edu-cao pode ser refOlmada de maneira a motivar as pessoas para promover afelicidade geral. Ou seja, as sanes da moralidade podem ser colocadas aoservio do utilitarismo. Uma sano, no sentido tcnico relevante nestecontexto, uma fonte de prazeres e dores que motiva efectivamente as pes-soas para agir. Entre as sanes morais, Mill distingue as sanes externas dasano interna. As sanes externas dependem directamente dos outros eincluem o receio de reprovao e a afeio. A sano interna a conscinciado indivduo ou o seu sentido do dever. Esta resulta da educao, mas acabapor adquirir uma vida prpria, proporcionando uma motivao moral inde-pendente da influncia directa dos outros.

    Mill enfrenta a questo normativa apelando sociabilidade natural dosseres humanos. Estamos constitudos de forma a desejar que os nossosinteresses estejam em harmonia com os dos nossos semelhantes. Por isso,se atendermos cada vez mais aos interesses dos outros em direco imparcialidade apontada pelo utilitmismo, descobriremos que a nossa

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    Utilitarismo

    vida cada vez melhor para ns prprios. Podemos encontrar aqui umargumento a favor do utilitarismo que apela ao interesse pessoal. Porm,como Crisp (1997: 92-93) observa, Mill pm'ece ser demasiado optimistaquanto coincidncia entre o interesse pessoal e a moralidade utilitarista:embora sej~ plausvel afumar que muitas pessoas tm uma vida melhorpara elas prprias em virtude de atenderem consideravelmente aos interes-ses dos outros, a partir de um certo ponto as exigncias da imparcialidadepodem lesar o interesse pessoal.

    6. A prova do utilitarismo

    O Captulo 4, no qual Mill expe o seu argumento fundamental a favordo utilitarismo, tem sido intensamente discutido. Muitos filsofos, entreos quais se destaca Moore (1903), sustentaram que a prova de Mill gros-seiramente falaciosa, mas os estudos mais recentes permitem-nos ter umaopinio mais favorvel a seu respeito.

    O denso pm'grafo 4.3 um dos mais importantes da prova e alimen-tou muitas confuses. O objectivo de Mill o de mostrm' que a felicidade(ou o prazer) desejvel. Para esse efeito, comea por estabelecer umaanalogia entre propriedades como a visibilidade e a audibilidade e a pro-priedade de ser desejvel. Como podemos saber que um certo objecto visvel? Obviamente, apontando o facto de as pessoas o verem. Domesmo modo, alega Mill, podemos determinar que uma coisa desejvelapontando o facto de as pessoas a desejm'em. Pode parecer, no entanto,que esta analogia completamente deslocada. Dizer que uma coisa vis-vel afirmar que esta pode ser vista; porm, dizer que uma coisa desejvel no afirmar simplesmente que esta pode ser desejada - declarar que merece ser desejada. Por isso, no podemos deduzir que umacoisa desejvel apenas a partir do facto de esta ser desejada.

    Isto verdade, mas a analogia que Mill pretende traar no repousa nesteerro to elementar. A ideia apenas a de comparar as questes de facto comas questes de fins ltimos: tal como podemos recorrer nossa capacidadede ver ou ouvir para detelminar que coisas so visveis ou audveis, tambmpodemos recorrer capacidade de desejar para determinm' que coisas sodesejveis. O facto de desejarmos uma coisa como fim ltimo, e de no ver-mos qualquer razo para no a desejmmos, pode no provar dedutivamenteque essa coisa desejvel, mas constitui evidncia empica a favor da sua

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  • Utililarismo

    desejabilidade. Ora, ns desejamos o prazer como um fim ltimo e novemos nisso nada de objectvel. Isto d-nos boas razes para concluir que oprazer desejvel como um dos fins ltimos da aco.

    O segundo momento decisivo da prova de Mill surge tambm em 4.3,consistindo essencialmente na seguinte inferncia: a felicidade de cadapessoa um bem para essa pessoa e, logo, a felicidade geral um bem parao agregado de todas as pessoas. Esta parece ser tambm uma infernciaprecipitada. Consideremos, por exemplo, a posio do egosta, isto , dealgum que defende a teoria segundo a qual cada agente deve promover asua prpria felicidade. O egosta reconhece que a sua prpria felicidade um bem, mas por que razo h-de concluir que a felicidade geral umbem que importa promover? A verdade que a inferncia de Milldepende de vrios pressupostos que no so formulados no Captulo 4.Antes de apontarmos esses pressupostos, consideremos o ltimo momentoprincipal da prova: a tentativa de mostrar que a felicidade (ou o prazer)no apenas um dos fins ltimos da conduta - que ela , na verdade, anica coisa desejvel como fim.

    Os crticos do utilitarismo poderiam dizer que, alm da felicidade, tam-bm a virtude um fim ltimo. Mill, curiosamente, no responde a estaobjeco sugedndo que a vittude desejvel apenas enquanto meio para afelicidade. Admite que desejamos a virtude considerando-a desejvel em simesma e que isso peIfeitamente aceitvel. Contudo, recusa a ideia de quea felicidade e a virtude estejam radicalmente separadas: a segunda, sustenta, um ingrediente fundamental da primeira. Para justificar esta afirmao,apresenta uma explicao associacionista que aplicvel no s vittude,mas a qualquer outro fim ltimo alegadamente alheio felicidade que osseus crticos possam illdicar. verdade que pdmeiro desejamos a virtudeenquanto meio para a felicidade, mas vamos associando gradualmente a vir-tude felicidade at que esta se torna desejada por si mesma, e istoacontece porque ter conscincia dela um prazer, porque a conscincia deestar sem ela uma dor ou por ambas as razes (4.8).

    Regressemos agora ao problema de saber como podemos infedr o uti-litarismo a partir da tese segundo a qual a felicidade, e s a felicidade, desejvel. Segundo Crisp (1997: 77-87), a inferncia de Mill resulta daaceitao tcita de quatro pressupostos diferentes.

    Suponhamos que atender s exigncias da moral perseguir ou pro-mover um certo fim - este o pressuposto teleolgico. E imaginemosque, por oposio queles que subscrevem posies como o egosmo,estamos dispostos a atender a essas exigncias, isto , a ter em conta dealguma forma os interesses dos outros. (Estamos assim a introduzir o

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    Utililarisrno

    pressuposto moral.) Coloca-se ento a seguinte questo: que fim devere-mos perseguir de modo a atender s exigncias da moral? O ~esu~t~dofundamental do Captulo 4 o de que a felicidade (ou o prazer) e o UlllC.Ofim ltimo de toda a aco humana - e, consequenteme~te, da m?rali-dade. Por isso, atender s exigncias da moralidade e pe:~egu~r. oupromover a felicidade. Ora, a felicidade te~ ~ma natureza aditlV~ (e ~st.oque nos diz o pressuposto agregativo): a feliCIdade de A soma~a ~ ~ehcI-d d de B maior do que a felicidade de cada um destes mdIvIduosa e . 'd d 'considerados isoladamente. Dado que a maneira como a fehcI a e esta

    distribuda entre indivduos diferentes no importa (este o pressupostoda imparcialidade), a melhor situao aqu~la que co~resp?n~de .a ummaior total de felicidade. Por isso, atender maxrmamente as eXIge~c.Ias damoralidade agir de maneira a dar origem ao maior total de fehcIdade.Chegamos assim tica utilitarista. .

    Obviamente, qualquer um destes pressupostos coloca problemas mUltodelicados, mas a sua explicitao coloca-nos em condies de fazer umaavaliao cuidada da prova de Mill.

    7. A objeco da justia

    O Captulo 5, o mais longo da obra, uma tentativa de responder objeco ao utilitarismo que Mill considera m~is forte. ~e a~ord?, comesta objeco, a tica utilitarista est em conflito com a .Ju~tla, Ja ~u.eaparentemente a realizao de certas injustias pode maxmllzar a fehcI-dade geral. Por exemplo, condenar uma pessoa inocente morte ou darum certo bem a quem menos o merece injusto, mas em alguns casosactos como esses podero dar origem ao maior bem. Mill faz um p~rc.ursoargumentativo muito sinuoso para mostrar que a justia no conStl~1 umobstculo insupervel para o utilitarismo. De modo a to~ar m.ai.sper-ceptvel a estrutura geral desse percurso, ."a~e ~ pena IdentIficar edescrever resumidamente os seus momentos prmCIpais. .

    Nos pargrafos 5.1 e 5.2, Mill illtroduz o problema d.o qual se .Vaioc~-par. verdade que temos um forte sentimento de j~stIa, ~as ~sso naosignifica que este seja uma revelao de ~lgum~ realidade obJectl,:,a quese sobreponha ao princpio da utilidade. E precIso, portanto, clarificar oestatuto desse sentimento.

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  • Ulili(arismo

    A investigao da natureza da Justia desenvolve-se ao longo dospargrafos 5.3-5.15. Mill tenta encontrar a caracterstica distintiva da jus-tia, e para esse efeito comea por identificar os vrios contextos em queclassificamos como justos ou injustos certos modos de agir ou certasestruturas sociais. Este exame inicial conduz distino entre seis esferasda justia. Diz-se que injusto (i) violar os direitos legais das pessoas; (ii)violar os direitos morais das pessoas; (iii) no dar a cada pessoa aquiloque ela merece; (iv) violar os compromissos que assumimos perante osoutros; (v) favorecer algumas pessoas de uma forma indevidamente par-cial; (vi) desrespeitar as exigncias de igualdade, cujo contedo, noentanto, muito controverso.

    Dado que os termos

  • UliltarisrTlO

    33CFT-UTIL-3

    Segundo Hare, o reconhecimento de que os juzos morais so prescn-es universalizveis leva-nos, no nvel crtico do pensamento moral,_ afazer os mesmos juzos que um utilitarista dos actos. Se esta afirmaaosurpreendente for verdadeira, o prescritivismo universal, (caso seja ,cred=vel enquantQ temia sobre o significado dos juzos morms) proporcIOnarauma boa justificao pm'a a tica utilitarista, Mas por que haveremos depensar que a perspectiva metatica de Hare conduz ao utilitarismo?Vrios filsofos que estudm'am atentamente o intrincado argumento deHm'e defenderam que este salto ilegtimo. Embora no seja este olugm' para determinar se tm razo, podemos, pelo menos, esboar o argu-mento a partir do exemplo muito simples que o prprio Hare utilizou parao introduzir,

    Imaginemos que, para estacionar o nosso automvel, a nica soluo mudar de lugm a bicicleta de outra pessoa. Desejamos estacionm' o carro,mas o proprietrio da bicicleta prefere mant-la onde est. S~r~ que mud~--la de lugar a opo moralmente acertada? Dado que os JUIZOSmormsso universalizveis, a resposta para esta questo no pode depender dosimples facto de sermos ns os proprietrios do automvel. Seja qual foro nosso juzo, temos de estar dispostos a faz-lo independentemente daposio que ocuparmos nesta situao, Assim, precisamos de imagi~ar oque estar no lugm' do proprietrio da bicicleta, com os seus desejos emotivaes. Admitamos que conseguimos representar perfeitamente a suaposio para ns prprios. Quando o fazemos, sustenta Hare, formamosum desejo com a mesma intensidade no sentido de a bicicleta ficar ondeest, Este desejo vai rivalizar com o nosso desejo original de estacionar oautomvel movendo a bicicleta, mas suponhamos que lhe bastante infe-rior em intensidade, Nestas circunstncias, prevalece o desejo original, oque resulta na concluso de que, afinal, devemos mudar a bicicleta delugar. Note-se que o proprietrio da bicicleta, se utilizasse o mesmomtodo de raciocnio, acabaria por fazer a mesma prescrio, j que, aoimaginm' perfeitamente a nossa posio, formaria um desejo de mover abicicleta mais forte do que o seu desejo original de mant-la onde est,Este mtodo, alega Hare, capaz de gerar o acordo moral a partir de pre-ferncias divergentes.

    O exemplo apresentado simples em parte porque envolve. apen~sdois indivduos. Na prtica, os casos multilaterais podem ser mUIto marscomplexos, mas Hare supe que no colocam dificuldades tericas acres-cidas: em todas as situaes, a exigncia de universalizar as nossasprescries leva-nos a aprovar apenas as opes que resultaro na maior

    8. O utilitarismo depois de Mill

    [A] justia um nome para certas exigncias morais que,consideradas colectivamente, ocupam um lugar mais ele-vado na escala da utilidade (e, por isso, tm umaobrigatoriedade mais forte) do que quaisquer outras, aindaque possam ocorrer casos particulares em que outro deversocial to importante que passa por cima das mximasgerais da justia. (5.37)

    Nestes termos, conclui Mill, o utilitarista pode conviver bem com asexigncias da justia.

    UlililariSrTlO

    Sobretudo no contexto da filosofia analtica da segunda metade dosculo XX, a tica utilitarista suscitou um debate filosfico extraordina-riamente rico e multifacetado, Seria insensato tentar resumir aqui todos osaspectos e desenvolvimentos importantes desse debate, mas vale a penamostrar, ainda que de uma forma muito sucinta, como o utilitarismo foidefendido e criticado por alguns dos filsofos que mais se destacaram nodomnio da tica,

    Comecemos pelas tentativas de justificao do utilitarismo. Uma dasmais discutidas foi proposta por Hare e, por oposio prova de Mill,no apela a dados empricos, baseando-se antes no estudo metatico dosignificado dos termos e dos juzos morais, De acordo com a teoriametatica de Hare, conhecida por prescritivismo universal, os juzosmorais tm um significado irredutivelmente prescritivo, Ao fazer um juzomoral, no estamos a descrever certos aspectos do mundo, mas a exprimiras nossas preferncias formulando uma prescrio. Porm, as prescriesmorais tm uma propriedade lgica interessante: so universalizveis. Istosignifica que, se fizermos um certo juzo moral sobre uma dada situao,teremos de fazer o mesmo juzo sobre quaisquer outras situaes poss-veis precisamente similares, seja qual for a posio que ocupemos nessassituaes - caso contrrio, estaremos a ser incoerentes. Por exemplo, ima-ginemos algum que pensa o seguinte: Eu devo mentir a X nestasituao, mas, numa situao exactamente similar em que X est no meulugar e eu estou no lugar de X, X no deve mentir-me. Esta afirmaofere a exigncia de coerncia que decorre da universalizabilidade dos ju-zos morais.

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  • Utitilarismo

    satisfao total de desejos ou preferncias, e, assim, os nossos juzos coin-cidiro sempre com os veredictos do utilitarismo dos actos.

    Peter Singer props uma maneira semelhante de defender o utilita-rismo. Singer (1993: 28-30) pretende mostrar que chegamosrapidamente a uma posio inicialmente utilitarista, a partir do momentoem que aplicamos o aspecto universal da tica tomada de decises sim-ples, pr-ticas. Comecemos, ento, por imaginar que estamos num nvelem que as consideraes morais no afectam minimamente as nossasdecises - numa espcie de estdio pr-tico. Se tivermos de escolherentre duas opes possveis, como tomaremos a deciso? Teremos, semdvida, de determinar como cada uma das opes afectar os nossos pr-prios interesses, e escolheremos aquela que mais os satisfizer.

    Suponhamos agora que comeamos a pensar eticamente. Dado que osjuzos ticos devem ser formulados de uma perspectiva universal, reco-nhecemos, ao adoptar essa perspectiva, que os nossos interesses, pelosimples facto de serem nossos, no tm mais importncia do que os inte-resses alheios. Em lugar dos meus interesses, declara Singer, tenhoagora de tomar em considerao os interesses de todas as pessoas quesero afectadas pela minha deciso. Isso exige que eu pondere todos essesinteresses e adopte a aco que tenha maior probabilidade de maximizaros interesses dos afectados. Chegamos assim ao utilitarismo.

    Note-se que Singer, contrariamente a Hare, no tem a pretenso dedefender que o aspecto universal da tica impe dedutivamente uma ticautilitarista. O seu objectivo, mais modesto, deixar clara a plausibilidadedo utilitarismo enquanto concepo minimalista da tica: para agirmoralmente temos, pelo menos, de atender aos interesses alheios. Talvez apromoo do bem-estar geral no seja tudo o que preciso levar em contanas decises ticas, mas compete aos adversrios do utilitarismo mostrarque existem outros factores importantes. Enquanto estes no tm sucesso,o utilitarismo mantm-se credvel.

    Uma terceira defesa interessante da tica utilitarista partiu de JohnHarsanyi. Para compreender o argumento de Harsanyi, imaginemos umindivduo, X, que pretende escolher entre dois sistemas sociais - porexemplo, entre uma democracia liberal e uma ditadura marcada pelonepotismo. Suponhamos que X quer apenas atender racionalmente aosseus prprios interesses. Se ele souber que posio especfica vai ocuparem cada um dos sistemas, no poderemos dizer que os avaliar de umponto de vista moral. (Por exemplo, provavelmente escolheria a ditadurase soubesse que, nesse sistema, seria sobrinho do ditador.) De modo a que

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    Utilitarismo

    sua escolha tenha um carcter moral, sugere Harsanyi, devemos imaginarque X no sabe que posio vai ocupar nos sistemas em questo - est sobum vu de ignorncia, para usar a expresso celebrizada pelo filsofoJohn Rawls. Este vu assegura a imparcialidade necessria para uma deci-so tica ..

    Vejamos, ento, como X avaliaria as opes disponveis se estivessenessa situao peculiar. Suponhamos que a sociedade consiste em n indi-vduos. Denotemos os nveis de bem-estar (ou de utilidade) de que osindivduos 1,2, , n desfrutariam no sistema social em causa da seguintemaneira: Uj, U2, , Un. Sob o vu de ignorncia de Harsanyi, X atribuira mesma probabilidade, l/n, situao de ocupar qualquer posio socialespecfica e, consequentemente, situao de desfrutar qualquer um dosnveis de bem-estar Uj, U2 ... , U'l' Se X for racional, escolher o sistemasocial que lhe oferecer as melhores perspectivas de bem-estar, ou seja,tentar maximizar a utilidade esperada, como se diz na teoria da deci-so. Como poder fazer isso? Para simplificar, suponhamos que temosapenas quatro cidados e que os nveis de bem-estar em cada sistema soos seguintes:

    Democracia Uj =4 U2= 3 U3- 3 U4-2Ditadura Uj=6 U2-2 U3-1 U4-1

    Como no sabe que posio ocupar em qualquer dos sistemas sociais,X atribuir uma probabilidade de '/4 hiptese de, em cada sistema, ocu-par cada uma das posies possveis. Poder ento calcular a utilidadeesperada de ambas as opes. Os clculos para a opo da democracia epara a opo da ditadura so, respectivamente, os seguintes:

    (4 x 1/4) + (3 x 1/4) + (3 x 1/4) + (2 x 1/4) = 3(6 x 1/4) + (2 x 1/4) + (I x '/4) + (I x 1/4) = 2,5

    Interessado em maximizar a utilidade esperada, X escolher, nestascircunstncias, o sistema social democrtico. Ao faz-lo, ter escolhido osistema que, considerados todos os indivduos, exibe o maior bem-estarmdio: como podemos constatar com facilidade, o bem-estar mdio nademocracia e na ditadura corresponde, respectivamente, a 3 e a 2,5.

    Podemos ver agora o resultado que Harsanyi pretende estabelecer. Osagentes racionais maximizam a utilidade esperada. Sob um vu de igno-

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  • Utilitarismo

    rncia que os faz assumir uma perspectiva moral, escolhem as opes quemaximizam o bem-estar mdio de toda a populao considerada, isto ,adoptam um utilitarismo de mdia. Assim, tal como Singer, Harsanyisugere que chegamos ao utilitarismo quando, partindo da ideia de agirracionalmente num contexto amoral, introduzimos (neste caso atravs dovu de ignorncia) a noo mnima de imparcialidade ou universalidadeque caracteriza o ponto de vista tico. S que Harsanyi, em vez de pensarque a tica utilitarista meramente plausvel, julga que esta se impe deuma forma conclusiva.

    Apesar destas tentativas de justificao engenhosas, os fundamentosdo utilitarismo e a forma mais precisa que a doutrina deve assumir conti-nuam a ser objecto de grande controvrsia. Por exemplo, se, semelhanados trs autores referidos, advogarmos um utilitarismo de preferncias,enfrentaremos o problema delicado de saber como podemos comparar aspreferncias de pessoas diferentes. Alm disso, precisaremos de determi-nar se, na deliberao moral, devemos atribuir peso a todos os tipos depreferncias, incluindo as malvolas ou as que dizem respeito primaria-mente vida dos outros. Caso queiramos excluir alguns tipos depreferncias de modo a evitar implicaes prticas contra-intuitivas, comopoderemos faz-lo justificadamente?

    A tica utilitarista tem sido criticada por razes muito diversas. Entreas crticas que receberam mais ateno, destaca-se a objeco da integri-dade. Colocada inicialmente por Bernard Williams, esta objeco diz-nosque o utilitarismo constitui uma forte ameaa integridade humana. Aquio termo integridade no tem o sentido de honestidade ou decnciamoral. A integridade de uma vida humana algo que resulta dos projectose compromissos pessoais que a estruturam e unificam, conferindo-lhe umsentido determinado. Segundo Williams, o utilitarismo exige que cadaagente veja os seus projectos e compromissos de uma perspectiva absolu-tamente exterior ou impessoal. Por exemplo, imaginemos uma pessoa quedecidiu dedicar uma parte essencial da sua vida criao literria. Paraela, a vida deixaria de fazer sentido caso se visse privada da literatura. Deacordo com o utilitarismo, alega Williams, essa pessoa deve ver os seusprojectos literrios apenas como um meio para produzir resultados valio-sos no universo como um todo, e estar disposta a abdicar deles logo que apromoo imparcial do bem o exija. Assim, o utilitarismo facilmente nosaliena da nossa vida e, por isso, no uma teoria tica aceitvel.

    Outra objeco influente, avanada por John Rawls (1971: 156), con-siste em defender que o utilitarismo no leva a srio a distino entre osdiversos sujeitos, isto , no presta ateno suficiente ao facto de cada

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    Utililarismo

    pessoa ter uma vida prpria para viver. O princpio da escolha racionalaplicado a um sujeito, acrescenta Rawls, tomado tambm como prin-cpio da escolha social. Por exemplo, racional sujeitarmo-nos a umaoperao dolorosa caso isso seja necessrio para vivermos com sadedurante os prximos vinte anos: a dor intensa sentida num curto perodode tempo ' amplamente compensada pelo bem-estar futuro. O utilitaristaestende este princpio de escolha sociedade no seu todo, permitindo que

    - alguns indivduos sofram grandes males para benefcio de outros sempreque isso maximize o bem-estar total ou mdio. Segundo Rawls, estaextenso imprpria, j que se traduz numa insensibilidade absoluta aomodo como o bem-estar est distribudo por pessoas com vidas distintas.

    Nenhuma destas objeces proporciona um argumento conclusivocontra o utilitarismo. Mill, alis, diria seguramente que as crticas como asde Williams e de Rawls falham o alvo. Mmal, um das ambies funda-mentais do Utilitarisl1lo deixar claro que a tica utilitarista, alm de sercompatvel com um plena realizao pessoal, torna possvel uma existn-cia social harmoniosa.

    9. Leituras

    Crisp (1997) um guia inestimvel para a leitura do Utilitarisl1lo - eno s. Lyons (1997) rene dez ensaios influentes sobre esta obra de Mill,sendo recomendvel para um estudo mais avanado. Para uma breveexposio da filosofia de Mill, leia Wilson (2002). Singer (1993) discutevrios problemas actuais de tica prtica numa perspectiva utilitarista eRachels (2002) uma das melhores introdues filosofia moral. Ambosos livros esto disponveis em boas edies portuguesas.

    Campbell (2003) explica os problemas e as teorias principais da epis-temologia moral. Dancy (2001) apresenta com clareza o debate entregeneralistas e particularistas.

    O Apndice I de Partit (1984) e a Parte I de Griffin (1986) so discus-ses incontornveis sobre a natureza do bem-estar.

    Kant (1785) a defesa clssica de uma tica deontolgica. Sobre ateoria da obrigao de Mill, importa destacar Urmson (1953), Brown(1973) e Jacobson (2003). O Captulo 5 de Crisp (1997) prope a ideia deque Mill defende um utilitarismo de vrios nveis. A Parte I de Hare(1981) desenvolve a verso mais conhecida deste tipo de teoria.

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  • Utilitarismo

    Para uma perspectiva semelhante de Mill sobre a relao entre ointeresse pessoal e a moralidade, veja-se o Captulo 12 de Singer (1993).

    Duas boas discusses da prova de Mill so West (1982) e o Captulo 4de Crisp (1997). Para uma anlise mais detalhada, veja-se Sayre-McCord(2001).

    Para a perspectiva de Mill acerca da justia e dos direitos morais, veja--se Lyons (1977) e Berger (1979).

    As justificaes do utilitarismo aqui apresentadas encontram-se naParte II de Hare (1981), no Captulo 1 de Singer (1993) e em Harsanyi(1977). O Captulo 2 de Resnik (1987) uma introduo excelente aotema das decises sob ignorncia. As objeces da integridade e da distin-o entre pessoas so avanadas, respectivamente, em Smart e Williams(1973) e no Captulo li de Rawls (1971).

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  • -~-----Observaes gerais

    Entre as circunstncias que definem o estado actual do conhecimento 1humano, poucas diferem mais daquilo que se poderia ter esperado, ou somais reveladoras do atraso em que ainda se detm a especulao sobre osassuntos mais importantes, do que o escasso progresso que se realizou naresoluo da controvrsia sobre o critrio do certo e do errado. Desde os 5primrdios da filosofia, a questo do summul1l bonu11l,t ou, o que omesmo, do fundamento da moralidade, foi considerada o problema princi-pal do pensamento especulativo, ocupou os intelectos mais dotados edividiu-os em seitas e escolas que mantiveram uma guerra vigorosa entresi. E, passados mais de dois mil anos, prosseguem as mesmas discusses, 10os filsofos ainda se agrupam sob os mesmos estandartes rivais, e nem ospensadores, nem a humanidade em geral, parecem estar mais prximos dechegar a um consenso neste assunto do que na poca em que o jovemScrates ouviu o velho Protgoras e defendeu (supondo que o dilogo dePlato se baseia numa conversa real) a teoria do utilitarismot contra a 15moral popular do sofista.

    verdade que h uma confuso e incerteza semelhantes, e em alguns 2casos uma discordncia semelhante, no que diz respeito aos primeirosprincpios de todas as cincias, no sendo excepo a matemtica, que considerada a mais certa de todas elas, mas isso no diminui muito (naverdade, geralmente no diminui nada) a fiabilidade das concluses des- 5

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    sas cincias, Pode-se explicar esta aparente anomalia com o facto de as dou-trinas detalhadas de uma cincia no costumarem ser deduzidas daquelesque so considerados os seus primeiros princpios, nem de a sua evidnciadeles depender, Se no fosse assim, no haveria cincia mais precria, oucujas concluses estivessem mais insuficientemente estabelecidas, do que algebra, que no detiva qualquer da sua celteza daqueles que habitualmenteso ensinados aos alunos como sendo os seus elementos, j que estes, talcomo so apresentados por alguns dos professores mais eminentes, esto tocheios de fices como a lei inglesa e de misttios como a teologia, As ver-dades que, em ltima anlise, so aceites como ptimeiros ptincpios de umacincia, so na realidade os resultados finais da anlise metafsica praticadanas noes elementares em que essa cincia versada, e a sua relao com acincia no a dos alicerces com um edifcio, mas a das razes com umarvore - estas podem desempenhar igualmente bem o seu papel mesmo quenunca tenham sido desentelTadas e expostas luz, Mas, embora na cincia asverdades pmticulares precedam a teotia geral, pode-se esperar que aconteao contrtio numa mte prtica, como a moral ou a legislao, Toda a aco realizada em funo de um fim, e as regras das aces, pm'ece natural sup--lo, devem tomm' todo o seu cm'cter e cor do fim que servem.t Quando nosenvolvemos na perseguio de um objectivo, uma concepo clara e precisadaquilo que perseguimos parece ser a ptimeira coisa de que precisamos, eno a ltima coisa a procurm'. Pensamos que um teste do celto e do erradotem de ser o meio de determinar aquilo que est certo e aquilo que esterrado, e no uma consequncia de o telmos j determinado,

    No se consegue evitm' a dificuldade recOlTendo teotia popular segundoa qual h uma faculdade natural, um sentido ou instinto, que nos infOlmaacerca daquilo que est certo e elTado,t Afinal, alm de a prpria existnciade um tal sentido moral ser uma das questes em disputa, mesmo aquelesque acreditam nessa faculdade e tm algumas pretenses filosficas foramobtigados a abandonar a ideia de que, tal como os nossos outros sentidos dis-cemem as imagens ou sons efectivamente presentes, tambm ela discemeaquilo que est certo e errado no caso particular que enfrentamos, Segundotodos os seus intrpretes dignos do nome de pensadores, a nossa faculdademoral proporciona-nos apenas os ptincpios gerais para fazer juzos morais;ela um ramo da nossa razo, no da nossa faculdade sensvel, e deve repor-tar-se s doutrinas abstractas da moral, no percepo moral de casosconcretos, A escola intuitiva da tica,t no menos do que aquela que pode-mos designar por escola indutiva, insiste na necessidade de leis gerais.Ambas admitem que a moralidade de uma aco pmticular no uma ques-

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    I. Observaes gerais

    to de percepo directa, mas de aplicao de uma lei a um caso pmticulm'.Reconhecem tambm, em grande medida, as mesmas leis morais, mas diver-gem quanto sua evidncia e fonte a partir da qual estas obtm a suaautoridade, De acordo com a ptimeira opinio, os ptincpios da moral soevidentes a priori, no exigindo outra coisa para impor a sua aceitao alm 20da compreenso do significado dos termos. De acordo com a outra doutrina,o certo e o elTado, tal como a verdade e a falsidade, so questes de observa-o e experincia, Porm, ambas defendem que a moral tem de ser deduzidaa pmtir de ptincpios, e a escola intuitiva afimIa to veementemente como aindutiva que h uma cincia da moral. No entanto, uma e outra raramente 25tentam fazer uma lista dos ptincpios a priOli que devem servir de premissasdessa cincia; mais raramente ainda fazem qualquer esforo para reduziresses vtios ptincpios a um nico primeiro ptincpio ou fundamento comumda obrigao, Ou presumem que os preceitos comuns da moral tm umaautotidade a priori, ou estabelecem como base comum dessas mximas uma 30ideia geral, cuja autotidade muito menos bvia do que as prprias mximase que nunca conseguiu conquistar a aceitao popular. Mas, para que as suaspretenses no sejam infundadas, deve haver um ptincpio ou lei fundamen-tal na raiz de toda a moral,t ou, se existirem vtios, deve haver entre elesuma determinada ordem de precedncia; e o princpio, ou a regra para deci- 35dir entre os vrios princpios quando estes entram em conflito, deve serauto-evidente,

    Investigar at que ponto os maus efeitos desta deficincia foram mitiga- 4dos na prtica, ou em que medida as crenas morais da humanidade foramviciadas ou tornadas incertas devido ausncia de qualquer reconhecimentodistinto de um padro ltimo, implicatia um exame e crtica exaustivos dasdouttinas ticas do passado e do presente. Contudo, setia fcil mostrar que, 5seja qual for a estabilidade ou consistncia que essas crenas morais tenhamatingido, ela deveu-se ptincipalmente influncia tcita de um padro noreconhecido, Embora a inexistncia de um ptimeiro princpio reconhecidotenha tomado a tica no tanto um guia, mas antes uma consagrao, dossentimentos que os homens efectivamente tm, ainda assim, como os senti- 10mentos dos homens, tanto de aprovao como de averso, so muitoinfluenciados por aquilo que eles supem ser os efeitos das coisas na suafelicidade, o ptincpio da utilidade, ou, como Bentham lhe chamou maistarde, o Ptincpio da Maior Felicidade, teve um grande peso na formao dasdoutrinas morais mesmo daqueles que mais desdenhosamente rejeitam a sua 15autotidade. Nem h qualquer escola de pensamento que, por menos dispostaque esteja a reconhecer a influncia das aces na felicidade como nicoprincpio fundamental da moralidade e fonte da obtigao moral, se recuse a

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    admitir que esta uma considerao das mais substanciais, e at predomi-nante, em muitos dos detalhes da moral. Eu poderia ir muito mais longe edizer que os argumentos utilitaristas so indispensveis para todos essesmoralistas do a priori que atlibuem alguma impmtncia argumentao. Omeu presente propsito no o de criticar esses pensadores; porm, noposso deixar de referir, a ttulo de exemplo, um tratado sistemtico de umdos mais ilustres deles: aMetafisica da tica, de Kant. t No tl'atado em ques-to, este homem notvel, cujo sistema de pensamento continuar a serdurante muito tempo um dos marcos na histria da especulao filosfica,estabelece como origem e fundamento da obrigao moral o seguinte pri-meiro princpio universal: Age de forma a que a regra segundo a qual agespossa ser adoptada como lei por todos os seres racionais. Mas, quandocomea a deduzir deste preceito cada um dos deveres efectivos da morali-dade, fracassa, de uma maneira quase grotesca, na tentativa de mostrar quehaveria uma contradio, uma impossibilidade lgica (para no dizer fsica)na adopo, por todos os seres racionais, das regras de conduta mais escan-dalosamente imorais. Tudo o que mostra que as consequncias da suaadopo universal seriam tais que ningum escolheria sujeitar-se a elas. t

    Na presente ocasio, e sem discutir mais as outras teorias, vou tentar con-tlibuir para a compreenso e apreciao da temia utilitarista ou da felicidade,bem como para prov-la no sentido em que esta susceptvel de prova. evidente que essa no poder tratar-se de uma prova no sentido comum epopular do termo. As questes sobre fins ltimos no admitem prova directa.Quando se pode provar que uma coisa boa, tem de se faz-lo provando queessa coisa um meio para algo admitido como bom sem prova. Prova-se quea arte mdica boa em virtude de conduzir sade, mas como ser possvelprovar que a sade boa? A arte musical boa porque, entre outras coisas,produz prazer, mas que prova se pode dar para a afirmao de que o prazer bom? Sendo assim, caso se afirme que h uma frmula abrangente que incluitodas as coisas boas em si mesmas, sendo as restantes coisas boas, no boascomo um fim, mas boas como um meio, a frmula pode ser aceite ou rejei-tada, mas no tema para aquilo que habitualmente se entende por prova.No devemos, no entanto, inferir que a sua aceitao ou rejeio tem dedepender de um impulso cego ou de uma escolha arbitrria. H um sentidomais amplo da palavra prova no qual esta questo, como qualquer outradas questes controversas da filosofia, susceptvel de prova. O assunto estdentro do alcance da faculdade racional, e essa faculdade no lida com ele deuma maneira meramente intuitiva. Podem apresentar-se consideraes sus-ceptveis de fazer o intelecto dar ou recusar o seu assentimento doutrina, oque equivale a uma prova.

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    I. Observaes gerais

    Vamos examinar aqui a natureza dessas consideraes, de que maneirase aplicam ao caso e, consequentemente, que razes podem ser apresenta-das para aceitar ou rejeitar a frmula utilitarista. Porm, compreenderconectamente a frmula uma condio preliminar da sua aceitao ourejeio raional. Creio que a prpria noo impeIfeita que geralmente seforma do seu significado o obstculo principal que impede a sua aceita-o, e que, mesmo que se pudessem eliminar apenas os erros deinterpretao mais grosseiros, a questo ficaria muito simplificada e umagrande parte das dificuldades seria removida. Sendo assim, antes de tentarentrar nas razes filosficas que podem ser apresentadas para aprovar opadro utilitarista, vou oferecer algumas ilustraes da prpria doutrinacom o objectivo de mostrar mais claramente aquilo que ela , de a distin-guir daquilo que ela no , e de remover as objeces prticas que tmorigem em interpretaes erradas do seu significado ou que lhes estoestreitamente ligadas. Tendo assim preparado o terreno, irei depois, tantoquanto me for possvel, esforar-me por esclarecer a questo, entendidacomo uma questo de teoria filosfica.

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    Ser suficiente um breve comentrio ao erro grosseiro de supor que 1aqueles que defendem a utilidade como teste do certo e do errado usam otermo naquele sentido restrito, meramente coloquial, segundo o qual a utili-dade se ope ao prazer. Temos de pedir desculpa aos adversrios filosficosdo utilitmlsmo que sejam confundidos, nem que seja apenas por momentos, 5com algum capaz de um equvoco to absurdo, que se toma mais extraor-dinrio em virtude de a acusao contrria (a de referir tudo ao prazer, eisso tambm da forma mais grosseira) ser outra das acusaes comuns aoutilitm"smo. E, como fez notar de fOlma perspicaz um autor talentoso, omesmo gnero de pessoas (e muitas vezes a mesma pessoa) denuncia a teo- \Oria por ser impraticavelmente austera quando a palavra 'utilidade' temprecedncia sobre a palavra 'prazer', e por ser demasiado voluptuosa naprtica quando a palavra 'prazer' tem precedncia sobre a palavra 'utili-dade'. Aqueles que percebem alguma coisa do assunto esto conscientesde que todos os autores, de Epicurot a Bentham, que defenderam a teoria 15da utilidade, no entendiam por ela algo a contradistinguir do prazer, mas oprprio prazer em conjuno com a iseno de dor, e, em vez de oporem otil ao agradvel ou ao ornamental, declm"aram sempre que estes se contamentre aquilo que abrangido pelo til. Ainda assim, a multido comum,incluindo a multido de autores, cai perpetuamente neste erro bsico no s 20em jomais e peridicos, mas tmnbm em livros de peso e pretenso. Tendoapanhado a palavra utilitarista sem conhecer nada sobre ela excepto o seu

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    e mais nobre - absolutamente baixo e desprezvel, defender uma dou-trina digna apenas de porcos, aos quais os seguidores de Epicuro foramdesdenhosamente comparados logo muito cedo; e os defensores modernos dadoutlina esto ocasionalmente sujeitos a comparaes igualmente simpticaspelos seus cticos alemes, franceses e ingleses.

    Quando foram atacados desta maneira, os epicuristas responderam sem-pre que no eram eles, mas os seus acusadores, que representavam a naturezahumana a uma luz degradante, pois a acusao supe que os seres humanosno so capazes de ter quaisquer prazeres alm daqueles que so acessveisaos porcos. Se esta suposio fosse verdadeir'a, a acusao no podelia serdesmentida, mas nesse caso deixada de constituir' uma objeco, j que, se asfontes de prazer fossem precisamente as mesmas para os seres humanos epara os porcos, a regra de vida que fosse suficientemente boa para uns seriasuficientemente boa para os outros. Sente-se que a comparao da vida epi-curista com a vida das bestas degradante precisamente porque os prazeresde uma besta no satisfazem as concepes de felicidade de um ser humano.Os seres humanos tm faculdades mais elevadas do que os apetites animais e,quando se tomam conscientes delas, no vem como felicidade nada que noinclua a sua gratificao. Na verdade, no considero que os epicuristastenham sido inteiramente irrepreensveis no modo como extraram os seusesquemas de consequncias do plincpio utilitatista. Para o fazer de maneir'asatisfatlia, tm de se ter em conta muitos elementos esticos, bem comocristos, mas no h qualquer teoria da vida epiculista conhecida que noatribua aos prazeres do intelecto, dos sentimentos e da imaginao, incluindoos sentimentos morais, um valor muito mais elevado enquanto prazeres doque aos prazeres da mera sensao. Contudo, tem de se admitir' que, de umamaneir'a geral, os autores utilitadstas atriburam a superimidade dos prazeresmentais sobre os corporais sobretudo maior permanncia e segurana, bemcomo menor dispendiosidade, dos primeiros - isto , s suas vantagenscircunstanciaist, e no sua natureza intrnseca. E em todos estes aspectos osutilitadstas provat'am completamente a sua posio, mas podeliam ter invo-cado a razo mais fmte, como lhe podemos chamar, com inteira consistncia. totalmente compatvel com o princpio da utilidade reconhecer o facto deque alguns tipos de prazer so mais desejveis e valiosos do que outros. Seliaabsurdo supor que, enquanto que na avaliao de todas as outras coisas seconsidera tanto a qualidade como a quantidade, a avaliao dos prazeresdependesse apenas da quantidade.

    Se me perguntarem o que entendo pela diferena qualitativa de praze-res, ou por aquilo que torna um prazer mais valioso do que outro,

    Utllitarismo

    som, usam-na habitualmente para exprimir a rejeio ou o menosprezo doprazer em alguma das suas formas, como a da beleza, a do ornamento ou ada diverso. Alm disso, o termo no mal aplicado apenas em deprecia-o, mas tambm, ocasionalmente, como elogio, como se implicasse umasuperioridade em relao frivolidade e aos meros prazeres efmeres. Eeste uso pervertido o nico pelo qual a palavra popularmente conhecida,e aquele pelo qual a nova gerao est a adquirir a nica noo do seu sig-nificado. Aqueles que introduziram a palavra, mas que durante muitos anosdeixaram de a usar como ttulo distintivo, podem muito bem sentir-se cha-mados a recuper-la se ao faz-lo puderem contribuir para a salvar destadegradao absoluta.

    O credo que aceita a utilidade, ou o Princpio da Maior Felicidade,como fundamento da moralidade, defende que as aces esto certas namedida em que tendem a promover a felicidade, erradas na medida emque tendem a produzir' o reverso da felicidade. Por felicidade, entende-seo prazer e a ausncia de dor; por infelicidade, a dor e a privao de prazer. preciso dizer muito mais para dar uma viso clara do padro moral esta-belecido por esta teoria - em particular, que coisas inclui ela nas ideiasde dor e de prazer e em que medida isso ainda uma questo em aberto.Mas essas explicaes suplementares no afectam a teoria da vida em queesta teoria da moralidade se baseia - nomeadamente, a ideia de que oprazer e a iseno de dor so as nicas coisas desejveis como fins, e deque todas as coisas desejveis (que so to numerosas no esquema utilita-rista como em qualquer outro) so desejveis ou pelo prazer inerente emsi mesmas ou enquanto meios para a promoo do prazer e da prevenoda dor.

    Ora, tal temia da vida excita em muitas mentes, e entre estas contam-sealgumas das mais estimveis em sentimento e propsito, um desagrado invete-rado. Consideram que supor que a vida no tem (como dizem) nenhum fimmais elevado do que o prazer - nenhum objecto de desejo e empenho melhor

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    o autor deste ensaio tem razes para acreditar que foi ele a primeira pessoa a divulgar apalavra utilitarista. No a inventou. mas adoptou-a de uma breve passagem dos Annals 01lhe Parish. do Sr. Galt.t Depois de a usar como designao durante vrios anos, ele e outrosabandonaram-na devido a uma crescente averso a tudo aquilo que se parecesse com umemblema ou senha de uma seita. Porm, como nome para uma nica opinio, e no para umconjunto de opinies - para denotar o reconhecimento da utilidade como um padro. e nopara qualquer maneira especffica de o aplicart - o termo satisfaz uma necessidade lingufs-fica e, em muitos casos, oferece ummodo conveniente de evitar parfrases cansativas.

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    UUlitarismo

    simplesmente enquanto prazer e no por ser maior em quantidade, s huma resposta possvel. De dois prazeres, se houver um ao qual todos ouquase todos aqueles que tiveram a experincia de ambos derem uma pre-ferncia decidida, independentemente de sentirem qualquer obrigaomoral para o preferirt, ento ser esse o prazer mais desejvel. Se um dosdois for colocado, por aqueles que esto competentemente familiarizadoscom ambos, to acima do outro que eles o preferem mesmo sabendo que acompanhado de um maior descontentamento, e se no abdicariam delepor qualquer quantidade do outro prazer acessvel sua natureza, entoteremos razo para atribuir ao deleite preferido uma superioridade emqualidade que ultrapassa de tal modo a quantidade que esta se torna, porcomparao, pouco importante.

    Ora, um facto inquestionvel que aqueles que esto igualmente fanri-liarizados com ambos, e que so igualmente capazes de os apreciar e de sedeleitar com eles, do uma preferncia muitssimo marcada ao modo deexistncia que emprega as suas faculdades superiores. Poucas criaturashumanas consentiriam ser transformadas em qualquer dos animais infe-riores perante a promessa da plena fruio dos prazeres de uma besta,nenhum ser humano inteligente consentiria tornar-se tolo, nenhuma pes-soa instruda se tornaria ignorante, nenhuma pessoa de sentimento econscincia se tornaria egosta e vil, mesmo que a persuadissem de que otolo, o asno e o velhaco esto mais satisfeitos com a sua sorte do que elacom a sua. No abdicaria daquilo que possui a mais do que eles em trocada plena satisfao de todos os desejos que tem em comum com eles. Sealguma vez desejasse estar no seu lugar, iss:aconteceria apenas em casosde infelicidade to extrema que, para lhe escapar, teria de trocar a suasorte por quase qualquer outra, por muito indesejvel que esta parecesseaos seus olhos. Um ser com faculdades superiores precisa de mais paraser feliz, provavelmente capaz de um sofrimento mais agudo e certa-mente -lhe vulnervel em mais aspectos. Mas, apesar destasdesvantagens, no pode nunca desejar realmente afundar-se naquilo quese lhe afigura como um nvel de existncia inferior. Podemos explicar estarecusa como nos apetecer - podemos atribu-la ao orgulho, um nome que dado indiscrinrinadamente a alguns d