sobre cordeiros, navalhas e dentes-de-leÃo … · ... porque uma navalha?”, e eu lhe dizia, ......

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1 SOBRE CORDEIROS, NAVALHAS E DENTES-DE-LEÃO POR ANDRÉ LUIS SILVA PERSONAGENS: BÁRBARA JORGE LÚCIA CARLOS “/ INDICA SOBREPOSIÇÃO DE DIÁLOGOS PRIMEIRO ATO Com a cena ainda às escuras, ouve-se a terrível gargalhada de Bárbara. As luzes então se acendem gradualmente. A primeira delas ilumina um retrato, uma fotografia – a imagem de um homem robusto, mas sem brilho – inscrita em um moldura larga, e pendurada na parede que se estende pela direita alta. Um pouco para a esquerda do centro desta parede nasce uma pesada escada de madeira – dá qual só se vê alguns degraus. A escada dá para o hall íntimo da casa onde se localiza a entrada para os quartos. A porta da casa não se vê, ela está escondida por um corredor que alcança a grande sala pela direita baixa. Vê-se uma mesa retângular com cinco cadeiras. Quatro delas compõem um conjunto. A quinta, todavia, disposta na cabeceira da mesa, é uma velha poltrona reclinável de barbeiro. Uma poltrona surrada, com apoio para cabeça e pés. No canto da sala, junto à parede a esquerda, uma porta que dá para cozinha, um par de janelas, um armário com portas de vidro e recheado de

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SOBRE CORDEIROS, NAVALHAS E DENTES-DE-LEÃO

POR ANDRÉ LUIS SILVA

PERSONAGENS:

BÁRBARA

JORGE

LÚCIA

CARLOS

“/ “ INDICA SOBREPOSIÇÃO DE DIÁLOGOS

PRIMEIRO ATO

Com a cena ainda às escuras, ouve-se a terrível gargalhada de Bárbara.

As luzes então se acendem gradualmente. A primeira delas ilumina um

retrato, uma fotografia – a imagem de um homem robusto, mas sem brilho

– inscrita em um moldura larga, e pendurada na parede que se estende

pela direita alta. Um pouco para a esquerda do centro desta parede nasce

uma pesada escada de madeira – dá qual só se vê alguns degraus. A

escada dá para o hall íntimo da casa onde se localiza a entrada para os

quartos. A porta da casa não se vê, ela está escondida por um corredor

que alcança a grande sala pela direita baixa. Vê-se uma mesa retângular

com cinco cadeiras. Quatro delas compõem um conjunto. A quinta,

todavia, disposta na cabeceira da mesa, é uma velha poltrona reclinável

de barbeiro. Uma poltrona surrada, com apoio para cabeça e pés. No

canto da sala, junto à parede a esquerda, uma porta que dá para cozinha,

um par de janelas, um armário com portas de vidro e recheado de

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bonequinhas de porcelana pintadas à mão, dois jarros de vidro, um com

lírios e o outro com dentes-de-leão. Perto da mesa e, mais ao centro, há

ainda uma poltrona remendada e um aparador. Sobre o aparador, um

cinzeiro, uma caixa de charutos, guilhotina, palitos de fósforos, um

abajour, etc.

É o começo da noite. A mesa está posta para o jantar. Carlos, Jorge e

Bárbara estão à mesa. Ela ocupa a cadeira de barbeiro.

ENTRA LÚCIA CARREGANDO UMA BANDEJA COM UM CARRÉ DE

CORDEIRO

BÁRBARA - Ei, Lúcia! Ei! Lembra-se daquele dia em que você acordou com os

olhos tão inchados, mais tão inchados feito balões que as pálpebras se

grudavam e não se abriam e você chorava porque pensava que havia ficado

cega ou coisa assim?

LÚCIA - Estavam remelados/, mamãe, e os cílios se colaram uns nos outros.

BÁRBARA - Remelados! Sim, foi isso mesmo... E eu ri e lhe ofereci uma

navalha, você se lembra?

JORGE – Não foi bem assim...

BÁRBARA – Foi assim, sim!

JORGE - E nós sabemos que você o fez por brincadeira, Bárbara.

BÁRBARA (que desconversa) - Claro, claro, Jorge. E ela chorou ainda mais,

você se lembra, hein? Vamos, me passe a mostarda. Gritava, “mamãe,

mamãe, porque uma navalha?”, e eu lhe dizia, - você se lembra, Jorge? - “para

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que enxergue” ou “para que veja”, ou alguma coisa parecida, e ela soluçava/ e

já tinha vinte e quatro anos!

JORGE (que a interrompe bruscamente) – Vamos jantar?

Silêncio.

CARLOS – Que tal um brinde antes?

BÁRBARA – Um brinde? Hum... Carlos, né? E o que vamos brindar?

CARLOS – Não sei. Só sugeri que brindássemos, por tradição.

BÁRBARA – Essa é boa! O menino tem senso de humor, Jorge!

LÚCIA – Mas assim não tem graça.

CARLOS – Bom, então, vamos brindar... À recuperação de Lúcia! Seu punho

parece ótimo. Sim! E ao nosso sucesso,ao sucesso de vocês, a esta casa –

uma linda casa. Também, brindemos o fato de estarmos vivos e felizes. O que

acham? Isso é importante, não é não? Um brinde as nossas vidas. Isso. Às

vidas que seguem...

LÚCIA (que ri) – Vidas que seguem?

CARLOS – É... porque as vidas páram como... (Ri) Hoje, um colega perdeu

uma paciente lá no hospital. Que tristeza, meu Deus. Pensamos estar

acostumados a ver tantas mortes, mas a verdade... A verdade é que a gente

nunca se acostuma.

JORGE – Um brinde!

LÚCIA – Às vidas que seguem!(Bebem).

CARLOS – É tão bom estar entre amigos.

BÁRBARA (Enquanto acende o charuto. Para Carlos) – Sujeitinho alegre...

Entusiasmado. (Pausa) Então você é o tal médico?

CARLOS – Enfermeiro.

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BÁRBARA – É verdade. Jorge me contou... (Pausa) Por opção? Sim, por que

às vezes a gente desiste de uma coisa e vai fazer outra que parece mais fácil.

E dizem que isso é muito comum na sua área. (Bárbara traga demoradamente)

Você não se importa que eu fume, né? Claro que não. Afinal, esta é minha

casa e, bom, se eu não puder fumar em minha própria casa é porque já não

mando em nada, nem em mim mesma. Em todo caso, aqui as coisas não são

assim. Eu fumo e pronto! (Aponta as flores) Você que trouxe?

CARLOS – Os lírios.

LÚCIA (Que se adianta) – E um vinho também. Chileno, mamãe!

CARLOS – Só um agrado.

BÁRBARA – Lírios. Favoritas de Jorge.

LÚCIA – Minhas também.

BÁRBARA (Para Lúcia) – Não diga! Nem sabia que você gostava de flores.

(Pausa) O que é isso aí na travessa? O que o seu tio andou aprontando na

cozinha, hein Lúcia? Tô com fome.

LÚCIA – Cordeiro.

BÁRBARA – Cordeiro, Jorge? Hum... Aquele cordeiro que eu comprei?

JORGE – Ele mesmo.

BÁRBARA – E por que o cordeiro que eu comprei?

JORGE – Porque ele já estava na geladeira há semanas e podia estragar.

BÁRBARA – Eu ia cozinhar ele.

JORGE – Me lembro disso.

BÁRBARA – Eu não tive tempo, Jorge. Você sabe que eu trabalho muito.

JORGE – Uhum.

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BÁRBARA (para Carlos) – Eu gosto de cordeiro, sabe... Eu gosto de cordeiros.

E aqui na região há criatórios. Uns criatórios ótimos e de vez em quando gosto

de comprar um bom pedaço. Me satisfaz comprar um bom pedaço, bem

suculento. Ninguém sabe como são assim suculentos já que o povo daqui é tão

ignorante e sem jeito para tudo. Pois é! Não sei como é que criam esses

bichos... São uns roceiros imundos, mas o cordeiro é bom. Talvez seja a única

coisa que fazem de bom. Isso e o doce na compota. Que maravilha, aquilo lá...

Mas eu já não posso comer esses doces porque estou diabética. Uma coisa

horrosa se você quer saber, esse negócio de diabetes. Sou uma mulher

doente, sabe?

JORGE - Não, não é.

BÁRBARA – Sou sim! Você acha que não? Mas, sou sim!

JORGE – Não é, Bárbara.

BÁRBARA – Sou, Jorge, e não me irrite! Depois daquela última crise o médico

disse que eu não seria mais a mesma e desde então já nem consigo respirar

direito. Existe uma coisa aqui, ó. Aqui dentro. Uma coisa que me queima.

JORGE – Ah, é?

BÁRBARA – É! Uma coisa que... E a diabetes, se você quer saber. A diabetes!

Mas vocês não me levam a sério. (Pausa. Para Lúcia) Que tipo de cordeiro?

LÚCIA – Como assim?

BÁRBARA – Eu perguntei “que tipo de cordeiro?”, ué? Será que foi uma

pergunta muito difícil? Só quero saber o modo, o preparo... Ou se vamos comer

vivo.

LÚCIA – Ah... É um assado de cordeiro, mamãe.

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BÁRBARA – Huuu... Um assado, é? Na época do velho fazíamos bons

assados aqui. Ele sabia preparar um assado como ninguém. Que delícia. Papai

ia até o criatório, arranjava o cordeiro mais bonito, escolhia a dedo e esperava

o roceiro matar. Trazia a carne ainda pingando, vermelha e fresca. Tinha um

cheiro bom... Ah! Era como se ele tivesse caçado, entende? Eu gostava

daquilo. Colocava o bichão sobre a pedra e... huuu! Era uma delícia. (pausa)

Ah, papai!

LÚCIA – Mais uísque, mamãe?

BÁRBARA – E por que não?

CARLOS (que aponta para a cadeira de Bárbara) – Jorge me disse que ele

era Barbeiro. Dos melhores.

BÁRBARA – Imbatível! Um monstro, por assim dizer.

JORGE – Sim, ele era um dos bons. Vivia com minha mãe lá no centro até que

Bárbara nasceu e então vieram para cá.

CARLOS – E continuou fazendo barbas aqui?

JORGE – Barbas, bigodes, cabelos. Os clientes vinham de todas as partes e

ele os recebia metido em um avental branco, limpo e perfumado. Meu pai tinha

boa fama. Era ótimo com a navalha... De uma precisão cirúrgica. (Aponta pela

janela) Vê lá no fundo um galpão?

CARLOS – Com telhas de cerâmica?

JORGE – Era ali. Minha querida irmã decidiu trancar tudo depois que ele...

BÁRBARA – Ah, por favor, não banque o sentimental.

JORGE – Bem, isso já faz muito tempo agora.

Silêncio

JORGE (para Carlos) – Mais cordeiro?

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LÚCIA – Deixe que eu o sirvo, tio Jorge.

BÁRBARA – Ah papai... Era dele a navalha que... (ri) É, Lúcia tinha medo de

escuro e então, veja bem... – onde está a mostarda que eu pedi, Jorge? – esta

memória tem sido uma das minhas favoritas. Você e aqueles seus olhos

remelados, Lúcia. Eu guardo aquela antiga navalha. Uma bela navalha de

barbeiro, Carlos.

CARLOS – Agora eu entendo porque senhora se interessa por navalhas de

barbeiro.

JORGE – É, talvez até consigamos entender e perdoar o carinho que ela tem

pela navalha, mas não por essas porcarias que entulham nossa casa e que ela

compra sem olhar o preço, como aquele penico de porcelana pendurado na

parede ou esta mesa/ de jaqueira que cheira a compensado. Repare como ela

está firme.

(Jorge sacode a mesa que balança insegura em suas pernas)

BÁRBARA – Não comece, estamos jantando.

(Lúcia derruba uma fatia de cordeiro sobre Carlos)

LÚCIA – Eu sinto muito, Carlos.

JORGE – Foi o que imaginei, Bárbara, estamos jantando.

BÁRBARA (Para Lúcia) – Será que não consegue fazer nada direito? É um

simples pedaço de cordeiro. Um simples pedaço.

LÚCIA – Eu sinto muito, Carlos. Eu me distrai/ com a mesa, não foi por querer.

CARLOS – Tá tudo bem. Nada / que um pouco de água e sabão não resolvam.

JORGE – Por que não vão para cozinha antes que a mancha se fixe de uma

vez?

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BÁRBARA – Basta que encharque a esponja... E abram mais as janelas para

que entre um vento, ou iremos morrer aqui, sufocados por essa umidade.

SAEM CARLOS E LÚCIA

JORGE – Você tá bêbada?

BÁRBARA – Bem que poderia, mas não. Vamos, por que não me passa a

mostarda de uma vez?

JORGE – Sabe quantas vezes já aludiu a história da navalha hoje?

BÁRBARA – Quem está contando?

JORGE – Eu tô. / Já foram quatro e a noite tá só começando.

BÁRBARA – Claro que você está contando. Você é contador. Ou devia ser. É

o que você faz. Você conta, né Jorge? Apenas isso. Conta! (Pausa) Ah!

Estávamos nos divertindo e você gargalhou da primeira vez. Qual o problema

quando a gente resolve se divertir um pouco?

Silêncio. Eles comem. Jorge pousa os talheres sobre o prato e passa a

olhar fixamente pela janela, distraído.

BÁRBARA – E então... Tá esperando o quê?

JORGE - O que?

BÁRBARA – Foi o que eu perguntei. O que? Tá esperando o que?

JORGE – Eu? (pausa) Ué, nada.

BÁRBARA – Tá esperando sim. Tá esperando que eu sei, Jorge.

JORGE – Não tô não.

BÁRBARA – Claro que tá. Você tá sempre esperando alguma coisa. Nós

estamos sempre esperando alguma coisa... Eu, por exemplo, continuo

esperando a mostarda. Já você...

JORGE – Não desta vez.

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BÁRBARA – Aposto que tá. Essa sua cara não me engana, passou o dia todo

olhando a janela. Esperando.

JORGE – Não.

(pausa)

BÁRBARA – Você fumou.

JORGE – Não, não fumei.

BÁRBARA – Fumou sim, Jorge. Fumou cigarros, não pode me enganar.

JORGE – Já disse que não fumei.

BÁRBARA – Um ou dois cigarros.

JORGE – Você sabe que eu não fumo mais, Bárbara.

BÁRBARA – Mas fumou! Um ou dois cigarros. Fumou sim. E fumou por que

estava esperando. Ficou ansioso e fumou. Esperando. Esperando um

momento... É!(pausa) Um momento. Esperando um momento pra quê, hein,

Jorge?

JORGE – Não faça confusão, Bárbara. Só estava vendo lá fora.

BÁRBARA – Vendo lá fora?

JORGE – Sim. Vendo lá fora e pensando.

BÁRBARA – Vendo e pensando?

JORGE – Sim.

(pausa)

BÁRBARA – Que dia é hoje?

JORGE – Treze.

BÁRBARA – Não, não a data. O dia. Tipo, segunda, terça, sei lá...

JORGE – Sábado.

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BÁRBARA – Foi o que imaginei, mas fiquei na dúvida. Por um momento achei

que fosse domingo. (pausa) Sábado, né?

JORGE – Isso.

(Pausa. Bárbara pensa um pouco)

BÁRBARA – Você disse que hoje era treze?

JORGE – Bárbara...

BÁRBARA – Treze de junho. Oh, eu havia esquecido... Como sou idiota. Eu

esqueci completamente...

JORGE – Bárbara.

(pausa)

BÁRBARA – Até quando continuarão fazendo isso?

(Silêncio)

BÁRBARA – O que vocês querem, hein, Jorge? O que querem provar? O quê?

Diz! Até quando continuarão com essa palhaçada?

JORGE – Não é nada disso.

BÁRBARA – É o quê então? Passa a porra do dia olhando pro nada, enche a

merda dessa casa de flores, convida pessoas, assa meu maldito cordeiro e...

Puta que... Como eu sou idiota!

JORGE – Estamos apenas comemorando o aniversário dela, Bárbara. Que

problema há nisso?

BÁRBARA – Ela tá morta, Jorge, e morto não comemora aniversário! Entenda

isso de uma vez! (pausa)

JORGE – Foi um enterro simbólico...

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BÁRBARA – Simbólico? Eu vou lhe dizer o que é simbólico... Aquela filha de

uma puta escrota abandonou esse buraco de merda para ir morrer lá pras

bandas do inferno, e vocês ainda querem encher essa casa de flores...

JORGE – Eu sei que não tem sido fácil, Bárbara, mas procure entender.

BÁRBARA – Entender o quê? Que vocês são dois escrotos mal-agradecidos?

Ah! Isso eu já sabia.

JORGE – Já faz tanto tempo.

BÁRBARA – E mesmo assim você insiste em continuar lembrando. Ano após

ano sou obrigada a ver a casa repleta dessas malditas platas. Dentes-de-leão...

Claro, como fui burra. Um vaso cheio deles! E isso tudo por quê? Pergunta por

que, Jorge? Porque eu sou otária e deixo vocês dois montarem em mim.

JORGE – Não é isso.

BÁRBARA – Agora vão fazem carré, com o cordeiro que eu comprei, covidam

pessoas para... Para comemora o aniversário daquela...

JORGE – Ela é sua mãe, Bárbara.

Bárbara esmurra a mesa com força. Então, se recompõe.

BÁRBARA – Sua. Sua mãe, Jorge. Já que você insiste. Eu nunca tive uma.

Tive um pai (aponta para o quadro) que, mesmo com toda a maluquice... Eu...

Isso sim. Tive um pai. Você também. Um pai que era homem de verdade,

diferente de uns e outros. Mas mãe... Mãe, não.

JORGE – Devia se livrar desses ressentimentos, não lhe fazem bem.

BÁRBARA – Aquela cretina subiu em uma moto e, um dia, foi embora sem

nem me dar adeus. Você conhece essa história, Jorginho?

JORGE – Você se apega a essas coisas. Como pode ser tão mesquinha?

BÁRBARA – Mesquinha?

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JORGE – Ela teve os motivos dela.

BÁRBARA – Agora ela tem até motivos.

JORGE – Você sabe melhor do que eu que ela vivia presa aqui, Bárbara.

BÁRBARA – Não comece com essa ladainha. Você não sabe do que está

falando.

JORGE – Mas, não é verdade? Vivia presa e fez uma escolha. Quem pode

culpá-la por isso?

BÁRBARA – Você é um completo idiota se acha que se trata disso.

JORGE – Sou, Bárbara?

BÁRBARA – É, você é! Um grandissíssimo idiota e, de quebra, um belo de um

filho da puta. (pausa) Me passe a maldita mostarda! Não vou pedir outra vez –

eu só queria jantar. Um simples e vagabundo jantar de sábado... Mas não!

Não, senhor. Não pode ser um jantar quando a pessoa tem que ficar sentada

na extremidade da mesa com fome e é obrigada a implorar pela mostarda.

JORGE –Não vou lhe passar a mostarda, venha pegar. (pausa. Ele

reconsidera e lhe entrega o pote de mostarda). E se por acaso ela estivesse

viva?

BÁRBARA –Nós a enterramos, não a enterramos?

JORGE – Aquilo não foi bem um enterro.

BÁRBARA – Nós a enterramos.

JORGE – Não, Bárbara, nós...

BÁRBARA – Nós a enterramos... Você é surdo?

JORGE – Mas e se...?

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BÁRBARA – Não existe margem para um “e se...”, Jorge! A morte é definitiva

e, talvez seja exatamente isso que ela nos traga de bom. O fim é sempre o fim.

Agora... (pausa) Ainda que... Que conversa mais idiota. Você... Meu Deus...

Silêncio.

BÁRBARA – A vida dela não nos diria respeito. Estivesse viva? Pior para ela...

Teria que arrastar aquela carcaça imunda um pouco mais... Ainda bem que não

está.

JORGE – Você não tem a mínima curiosidade?

BÁRBARA – Minha imaginação sempre satifez toda a curiosidade. E sabe

como a imagino agora? Sabe, como eu a imagino Jorge?

JORGE – Não Bárbara, não sei.

BÁRBARA – Um monte de pó, carne, sangue e ossos devorados pelos

monstros da terra... uma pilha suja de pecados...

JORGE – Eu sei que se passaram todos esses anos, Bárbara, mas é que...

Não é possível que não sinta nada. Nada. / Nem curiosidade.

BÁRBARA – Você está errado, Jorge. Eu sinto. Sinto uma vontade louca de

morder... Enfiar meus dentões num suculento pedaço de carne, perfurar, rasgar

e cospir.

JORGE – Deus... Quem poderia levá-la à sério sem enlouquecer?

BÁRBARA – (abocanha um pedaço de cordeiro, com a boca cheia) O cordeiro

está ótimo. Sinto que você caprichou essa noite. Ah, Jorginho.../ sempre

querendo impressionar.

JORGE – Odeio quando me chama assim.

BÁRBARA – Fazia tempo que não comíamos assim... achei até que você

tivesse desistido de cozinhar. Agora vejo que, na verdade, você só anda

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escondendo o jogo... (indignada, mas rindo) Não me olhe assim. Você está

tenso, rapaz.

JORGE – Deu para ver coisas, Bárbara?

BÁRBARA – Eu sempre vejo coisas, isso não é uma novidade para você.

Relaxe, baby, vamos... baixe a guarda... o jantar está sendo um sucesso, não

vê como a Lúcia tá feliz? E até esse rapaz, esse seu amigo... ele também está

feliz. Todos estão tão felizes. Todos estão... Comemorando! Todos, menos a

pobre, velha e doente, Bárbara.

JORGE – Você podia se esforçar um pouco.

BÁRBARA – Não tenho mais idade para isso, meu bem. Hoje, só quero que a

noite acabe, vou tomar umas pílulas, vou me deitar e vou esquecer. Acredite,

vou sim! Esquecer esse maldito dia, essa maldita data e... (pausa) Mas por que

será que demoram tanto lá na cozinha?

JORGE – Talvez estejam fazendo planos.

BÁRBARA – Não seja ridículo.

(Uma pausa. Em seguida os dois gargalham)

BÁRBARA – Como adolescentes naqueles enlatados americanos baratos.

Tramando um plano, um plano de fuga. O enfermeiro e Lúcia? Quem poderia

imaginar... não... ele talvez, mas ela, ela seria incapaz.

JORGE – Devia demonstrar um pouco mais de carinho/ pela menina.

BÁRBARA – Eu a amo, Jorge, ela é minha filha, mas não é mulher para ele.

Na verdade, não é uma mulher. Ela não tem... como dizer? Ela não tem... É

isso. Não faz o tipo do moço, você sabe.

JORGE – Não, não sei.

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BÁRBARA – Vamos, lá! Talvez ele esteja interessado em algo mais quente...

hein? Algo mais experiente... algo mais safado... e até que ele não é tão sem

graça.

JORGE – Já está salivando pelo rapaz?

BÁRBARA – Não seria má ideia.

JORGE – Você, não tem vergonha? / Ela é sua filha e está apaixonada pelo

sujeito.

BÁRBARA – Essa é uma pergunta interessante. Pensando bem, ele até que é

bem gostoso... tem umas coxas de matar e cara de quem trepa direitinho. Ele

trepa direitinho? O que você acha?

JORGE – Por favor, Bárbara.

BÁRBARA – Oh, Jorginho... Jorginho, o ratinho... o ratinho mirradinho... ficou

encabulado, foi?

JORGE – Páre com isso.

BÁRBARA - Sua maninha tem uma boca suja, não tem? Ah, Jorginho, o

ratinho... Obrigado pela mostarda.

JORGE – Você tem uma alma imunda.

(Bárbara reacende o charuto).

BÁRBARA – E quem foi que disse que ela tava apaixonada?

JORGE – Ela disse.

BÁRBARA – Essa menina não sabe direito nem onde mora, Jorge. Ela não

teria condições de... Convenhamos, ela não sabe de nada.

JORGE – Não seja injusta... Dá para ver na maneira como ela o olha.

BÁRBARA – Então você está supondo.

JORGE – Sim, Bárbara, talvez eu esteja supondo.

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(pausa)

BÁRBARA – Ah... e para onde fugiriam, Jorge?

JORGE – O quê?

BÁRBARA – Não “o quê”, “quem”. Os dois, lá na cozinha. Como adolescentes.

Para onde fugiriam?

JORGE – Eu sei lá, Bárbara! Que conversa é essa?

BÁRBARA – Pois é! Não há para onde fugir, não é, meu bem. Não há. Eu já

tentei e você sabe, não sabe Jorge? Você também já tentou fugir, querido... Eu

me lembro. (gargalha com pervesidade) Sim, todos tentamos. Todos sempre

tentamos. Então, todas as manhãs que nasciam como portas para nós,

envoltas por esse maldito mormaço, depois de abertas... depois de abertas...

Sabe no que elas se transformavam depois de abertas, não sabe Jorge?

JORGE – Não Bárbara, no quê elas se transformavam?

BÁRBARA – Quando eu tentava passar por elas, elas se transformavam em

paredes de tijolos, muros de concreto eu brigava e me batia e me esfolava e

me arranhava... Por causa dele, por sua causa, por causa dela, por minha

causa também. Aí, um dia, assim, meio que de repente... Sabe o quê

aconteceu um dia, Jorge?

JORGE – Não Bárbara, o que aconteceu?

BÁRBARA – Puf!

JORGE – Puf?

BÁRBARA – Puf! A vontade passou... puf... a vontade passou e eu fiquei. Não

é engraçado?

JORGE – Não acho engraçado.

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BÁRBARA - Eu acho engraçado e recomendo que ache engraçado também.

Fica mais fácil assim. Puf!

ENTRA CARLOS

JORGE – Pelo visto, temos um problema a menos.

BÁRBARA – Não fale assim da menina, Jorge!

JORGE – Referia-me a mancha... Por Deus, Bárbara!

BÁRBARA – Onde está o seu senso de humor, meu bem? Venha Carlos,

sente-se.

JORGE – (para Carlos) A camisa já está limpa novamente.

CARLOS – Um pouco de sabão, uma esfregadinha e / voilá!

BÁRBARA – É o que eu sempre digo: uma esfregadinha e... Onde está o outro

problema?

JORGE – Ela quer saber de Lúcia.

BÁRBARA – Eu não preciso de intérpretes.

CARLOS – (constrangido) Lúcia subiu para se trocar por que se sujou

enquanto me limpava.

BÁRBARA – E foi? Ela se sujou? Isso é quase um poema, você não acha,

Jorge? Sujou por que limpava. Ela é muito gentil.

CARLOS – Sim, ela é. Fez questão de passar o sabão e não se cansava de

me pedir desculpas.

BÁRBARA – Essa é a minha Lúcia.

CARLOS – Ela me também me mostrou a casa. Enorme. E linda.

JORGE – Idéia de meu pai.

CARLOS – Ah, me desculpe, Bárbara. Quase esqueci de abrir as janelas.

Ele se adianta para as janelas e as escancaram.

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CARLOS (Frustrado) – Não venta.

JORGE – Aqui, os dias tem sido assim. Não me lembro desde quando... Ou se

sempre foram assim. Não venta.

CARLOS – Talvez tenha ver com a direção em que foi construída a casa.

JORGE – É, talvez seja isso.

CARLOS – Penso que se tivesse outra janela ali... Uma pena o engenheiro ou

arquiteto não ter cuidado disso.

BÁRBARA – Não houve essa hitória de engenheiro. Foi o velho que

construiu...

CARLOS – A impressão é de que aqui o ar entra e se esbarra naquela parede.

Se bem que se, de fato, ele ousasse entrar para se esbarrar, teríamos vento.

Acho que ele nem entra.

JORGE – E estamos em pleno inverno. (Olha pela janela) Talvez seja por isso.

Quando chove é pior. Se forma ao redor da casa uma cortina de umidade.

Tudo culpa desse maldito mormaço... As nuvens impedem o vento de circular.

É horrível. A chuva engana. Refresca um pouquinho, de leve, a gente se anima

e na sequência...

CARLOS – E por que não constroem uma janela daquele lado?

BÁRBARA – Parem já com isso! (para Carlos) Não há nenhum problema com

a construção da casa. Meu pai a construiu e a construiu bem. Se não venta, é

porque não venta e acabou. Vocês são metidos a filósofos e gostam de

inventar teorias para tudo.

CARLOS – Bom, é realmente uma bela casa. (pausa) Por que tão distante?

Passei por uma centena de pastos e plantações até chegar aqui. Acho que

nunca estive desse lado da cidade.

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JORGE – Meu pai era...

BÁRBARA – Papai teve um problema de saúde e achou que podia viver

melhor aqui. Longe da agitação do centro. (pausa) Coma um pouco mais e me

diga como foi que você e o Jorginho aqui se conheceram?

CARLOS – Bem...

JORGE – Foi no hospital. Lúcia nos apresentou. Estávamos juntos, não se

lembra?

BÁRBARA – Ah... Foi assim, Carlos?

CARLOS – Sua filha lesionou o punho.

BÁRBARA – É verdade. Ela tem se aplicado nessas aulas de digitação, mas

duvido que chegue a algum lugar. (pausa) E então, desde aquele dia você têm

se frequentado?

CARLOS – Como?

BÁRBARA – Você não é surdo. Eu perguntei, se... Ora... Desde então vocês...

têm se frequentado, não? Se visto, coisas assim.(reacende o charuto)

CARLOS – Eu...

JORGE – Por que está fazendo isso? (para Carlos) Não precisa responder...

BÁRBARA – Agora você manda nele, e o que mais?

CARLOS – Sim... Nos vimos duas ou três vezes no hospital.

BÁRBARA – No hospital.

CARLOS – Primeiro na revisão de sua filha e depois... (para Jorge) Depois

você foi fazer uma visita a um dos pacientes, não foi?

BÁRBARA – Uma visita?

JORGE – Um amigo.

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BÁRBARA – Isso é novidade. Até que enfim essa conversa tá ficando

interessante... (para Carlos) Jorginho nunca foi de muitos amigos. Acho que

você é o primeiro que ele traz pra casa. Ele tem medo, sabe... Pensa que...

Bem... Que constrangedor...

JORGE – Oh, Cristo!

BÁRBARA (em tom de fingida confidência para Carlos) – Ele tem medo

porque acha que não o amamos... Ele acha que não o amamos porque ele é...

hum... um homossexual.

JORGE – Bárbara!

BÁRBARA (que finge inocência) – O que foi? Isso não era segredo. Não

senhor... E mesmo que fosse, tenho certeza de que Carlos já sabia disso. Não

sabia, Carlos? Claro que sabia. Desde o momento que pus os olhos nele eu

percebi. Ele tem cara de quem já sabia.

Carlos engasga.

BÁRBARA – Meu Deus! Beba um pouco d’água rapaz... Deve ter sido o calor,

e como está quente aqui! Não estão sentindo? Está quente e... (ela aponta o

jarro com dentes-de-leão). Você sabe porque ela criava dentes-de-leão, Jorge?

JORGE – Ela?

BÁRBARA – Sua mãe... Sabe? Sim, aqueles ali do vaso que você e Lúcia

fazem questão de colher todo maldito dia treze de junho? Sabe porquê?

Silêncio.

BÁRBARA – Ora, Jorge, pergunto à sério! Você sabe? Sabe por que ela criava

dentes-de-leão?

JORGE – Não, Bárbara, porque ela os criava?

21

BÁRBARA – Por que desde aquela época já não ventava nessa merda de

lugar. (Pausa. Com um sorriso amargo) Não venta... Eu me lembro dela se

levantado de um sofá que tinhamos bem ali. Me lembro dala indo até o

caqueiro; me lembro dela arrancando um... Me lembro de como ela o soprava e

o via se desfazer.

JORGE – Ah...

BÁRBARA - Por isso.

CARLOS – (pausa) Não faz muito sentido.

BÁRBARA – Tem razão, não faz, por isso, é real. (Pausa) Por que estamos

tão secos aqui?

JORGE – Por que já somos alegres sem álcool.

BÁRBARA – Perigosos, foi o que ele quis dizer. Vamos, Jorge... vamos

Jorginho, nos sirva uma bebida. Qualquer coisa. /O que puder encontrar, com

bastante gelo para mim.

JORGE – Não acho uma boa ideia, Bárbara. Você já bebeu demais.

BÁRBARA – Não me faça ir lá buscar... eu posso me chatear, Jorge, e você

sabe que é preferível me ver bêbada à chateada. Vá meu bem, seja bonzinho e

agora, se mande!

SAI JORGE

CARLOS (que aponta para o jarro com os Dentes-de-leão)– A mãe de vocês

trabalhava na barbearia?

BÁRBARA – A mãe de Jorge e isso porque ele insiste em manter essas coisas

de consaguinidade, quando... A verdade, Carlos, a verdade é que a mãe dele

sou eu e ele não reconhece... Mas, porque estamos falando sobre essas

coisas?

22

CARLOS – Deve ter sido muito duro pra vocês.

BÁRBARA – Você acha?

Silêncio.

CARLOS – Uma barbearia... Nossa! Fico imaginando como deve ter sido para

Jorge ter tido um pai barbeiro. Imagino a primeira barba.

BÁRBARA – Não seja imbecil, apenas homens fazem a barba.

CARLOS – O que disse?

BÁRBARA – Que Jorginho era uma criança quando papai morreu... você me

entende, não entende? Nunca existiu essa história de primeira barba com um

pai barbeiro. Ele... Ele morreu assim, sem mais nem menos, numa tarde de

terça-feira... Jorginho tinha oito anos. Oito anos! Logo depois que ela... E você

sabe quantas pessoas ficaram em casa para cuidar de Jorginho, hein? Você

sabe? Vamos, diga, “não, Bárbara, quantos ficaram?”.

CARLOS – Não, Bárbara, quantos ficaram?

BÁRBARA – Euzinha! E foi isso. A pobre e monstruosa e cruel Bárbara que

não sabia preparar um maldito assado de cordeiro. Grávida... Me diga, Carlos,

você acha que tem problemas?

CARLOS – Problemas?

BÁRBARA – Sim. Problemas... problemas em sua vida.

CARLOS – Todos temos problemas.

BÁRBARA – Não, vocês não têm. E esse é o problema de toda sua geração:

não ter problemas. Daí, vocês criam. Inventam mentiras, situações

embaraçosas e se encrecam às quintas-feiras e vêm chorar e querem o colo da

mamãe aqui e que eu me apiede de vocês. Todas às quintas-feiras, sempre às

quintas-feiras. Mas eu não sou a sua mãe, sou Carlos?

23

CARLOS – Não.

BÁRBARA – Sabe... Eu odeio respostas curtas.

CARLOS – Não, Bárbara, você não é a minha mãe.

BÁRBARA – Que bom que chegamos a um consenso. Mesmo porque, eu

seria uma péssima mãe. Essa é a minha vocação: ser uma péssima mãe. E

você, acredite, não ia querer experimentar uma coisa dessas. (Pausa) Mais

cordeiro?

CARLOS – Acho que já tô satisfeito.

BÁRBARA – Você quase nem comeu e o último pedaço ficou todo na roupa.

Vamos, foi Jorge que preparou e essas coisas ele sabe fazer bem. (Pausa)

Jorge queria ser contador, sabia? Isso, experimente com a mostarda – aqui o

frasco. Tentou um vestibular e até passou, mas Jorginho não tem muito jeito

para... não tem muito jeito para a vida adulta. É um fracassado, como dizem

por aí.

CARLOS – Tem alma de artista.

BÁRBARA – Um artista. Ah, isso ele é sim! Dos grandes. Coisa de família, eu

acho... Eu fui atriz.

CARLOS – Ele escreve.

BÁRBARA – É... Coisas não muito interessantes e vive do meu dinheiro.

Nessa idade e o meu dinheiro e não tem vergonha. Artistas. (ri nervosamente)

E como está o cordeiro? Já deve estar frio, mas ainda delicioso. Não lhe disse

que ele sabia fazer bem? (pausa) O que há com vocês essa noite? Jorginho

também me parecia tenso. Você o viu? Ele não parecia tenso?

CARLOS – Deve ser o calor.

Bárbara vai à Carlos, se coloca por detrás da cadeira dele e o massageia.

24

BÁRBARA – (se insinua) Você malha, Carlos? Puxa ferro? Seus ombros me

dizem que sim... você é quente, rapaz.

CARLOS – (não consegue se esquivar) Eu nado um pouco... cuido do corpo,

da saúde.

BÁRBARA – Nada, é? Dá pra ver... eu não sou mais nenhuma mocinha,

Carlos, mas também não sou de se jogar fora, você não acha?

CARLOS – Ah...

BÁRBARA – Vamos, diga, não tenha vergonha... sei que ainda olham para

minha bunda. Mesmo metida neste pijama horroroso, ainda olham para minha

bunda. E olhe que já perdi muito do charme, o que é uma pena. Eu tinha unhas

enormes, feito garras e eu os arranhava, eles choravam e... E pediam mais...

(Bárbara começa a passar a mão por dentro da camisa de Carlos).

CARLOS – Acho que Lúcia.../

BÁRBARA – Tem um peitoral firme! Poucos pêlos... mamilos bons de apertar

(ela o belisca e ele geme de dor) O que tem Lúcia?

CARLOS – Acho que ela ficaria um pouco desapontada se nos visse desse

jeito.

BÁRBARA (que continua a apalpá-lo) – De que jeito?

CARLOS – Ah...

BÁRBARA – Você tem medo de desapontá-la, não é? Muito justo de sua

parte. Desapontá-la. Lúcia... É sobre ela que estamos conversando... Não é

mesmo, Carlos?

CARLOS – Sim.

BÁRBARA – E por que estamos mentindo?

CARLOS – Eu... Desculpe, eu não... Não sei a que se refere.

25

BÁRBARA – Não gagueje. Sabe sim. Tenho certeza de que escolheu

enfermagem porque não conseguiu ser aceito pela faculdade de medicina.

Pode contar para mim.

CARLOS – Não acho que seja bem esse o ponto...

BÁRBARA – Mas eu acho. E, quer saber, não há nada de errado nisso, há? Às

vezes a gente abandona os nossos sonhos porque... Veja, eu era atriz.

CARLOS – Você comentou.

BÁRBARA – Eu era uma mulher incrível... Eu vestia roupas incríveis e as

pessoas... As pessoas... Ah! Como me amavam. Dá pra acreditar? (Pausa)

Hoje eu trabalho numa porra de uma secretaria e carimbo pilhas de papel todo

santo dia... Todo santo... Mas... Veja... (Pausa) O que há de errado nisso? Eu

criei sozinha dois filhos da puta, uma imbecil inútil e um vagabundo ingrato que

nem saiu da porra da minha... (Pausa) Parabéns para mim! Mereço um prêmio.

E você... Você também, Carlos! Somos duas fraudes.

CARLOS – O pai de Lúcia ainda é vivo?

BÁRBARA – O que você acha? Nem o prazer de enterrá-lo esse infeliz me

deu. Algumas desgraças são eternas, ao que parece, você não acha?

CARLOS – Ele a abandonou?

BÁRBARA – Duas vezes abandonada, sim senhor! Quase uma sina...

CARLOS – E ele a abandonou por causa da criança?

BÁRBARA – Foi por causa do calor... Por causa desse maldito sufocamento.

Por causa desse... Desse... Você não o sente? Hein? Está aqui. Está em todo

lugar. (Pausa) Ele fez exatamente igual a ela... Começou com uma ladainha,

depois ficou valente, cheio de razão... Então, eu disse a ele que se ele não

26

calasse a boca, eu ia estourar a cara dele com um tiro de espingarda. (pausa)

Ele deve ter se assustado. Além de tudo, era covarde.

CARLOS – Um ator?

BÁRBARA – Não. Trabalhava na barbearia e não tinha onde cair morto e

morria de medo das navalhas do meu pai.

CARLOS – E o seus pais?

BÁRBARA – O que tem eles?

CARLOS – O que disseram sobre a criança?

BÁRBARA – Meu pai era um homem doente. Quando eu engravidei, ele já não

ligava mais para as coisas...

CARLOS – E.../

BÁRBARA – Pode perguntar. E ela? (pausa) Ela... A mãe de Jorge nunca viu

Lúcia. Graças a Deus, morreu antes. Saiu num dia de terça-feira por aquela

porta, já meio grisalha... mandou me chamar. Estava sem bagagem, mas eu

devia ter desconfiado... disse, eu vou ali... acredita nisso? Olhou para minha

barriga e... “Eu vou ali”. A filha da puta foi embora com um “eu vou ali”. Nem se

despediu de Jorge...

CARLOS – Assim?

BÁRBARA – Assim.

CARLOS – E Jorge?

BÁRBARA- Ficou sem falar comigo por uma semana ou mais, não me lembro.

Ele gostava de ficar sem falar comigo e eu deixava. Era uma maneira dele

colocar a culpa em alguém... é menos desgastante quando existe um culpado e

eu não me importava que fosse eu. Você fuma?

CARLOS – Não, o tabaco faz mal a saúde.

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BÁRBARA – É verdade! (acende outro charuto) Viver também... E, mesmo

assim, a gente vai vivendo. Então, um dia, tudo acaba como se tivesse sido um

grande despertício (pausa) Veja quem voltou! Achei que tivesse se perdido.

ENTRA LÚCIA

CARLOS – Está muito bonita neste vestido.

BÁRBARA – Você disse “muito bonita?”. Por favor... Ela não tem peitos (ri) O

que foi? Ora... Um piada. Não me conhecem? (Para Lúcia) Porque trocou de

roupa?

LÚCIA – Eu me sujei enquanto limpava/ a macha na roupa do Carlos..

CARLOS – Muito bonita.

BÁRBARA – Você insiste nisso. É... Dê uma voltinha, querida. Sim... Não é de

se jogar fora, mas já se vê nela as marcas da idade. Venha aqui Lúcia. (Lúcia

atravessa o palco e pára diante da mãe) Solte esses cabelos... assim está

melhor. E isso é batom? Você colocou batom... não foi para o Carlos, foi? Acho

que ele não se impressiona com essas coisas... se impressiona, Carlos?

LÚCIA – Mamãe é vaidosa/ e, por isso, não admite que mais ninguém seja

elogiado na frente dela.

BÁRBARA – Não diga bobagens, olhe para mim, estou de pijama! Existe algo

de menos vaidoso nisso? Ora, não posso ser vaidosa apenas por querer dizer

a verdade. E este vestido já está um pouco velho, se quer saber.

LÚCIA – Ela mesma me comprou este vestido.

BÁRBARA – Disso eu não me lembrava.

LÚCIA – Como não? Foi num dia no shopping. Estávamos com aquele ator da

companhia, aquele ator amigo seu, e ele me pegou pela mão e me pagou um

sorvete como se eu fosse uma menininha. Como pôde esquecer disso,

28

mamãe? Entramos na loja e eu experimentei uns dois ou três, nenhum que

gostasse de fato – ela lhe serviu mais cordeiro? - daí, você veio com esse nas

mãos e ele disse, quando me viu vestida, “agora, parece uma mulher”. E eu me

olhei no espelho e vi que parecia uma mulher, então, você disse para

vendedora, “eu compro, para que ela se pareça com uma mulher”.

BÁRBARA – (faz eco) Uma mulher.

CARLOS – Uma mulher encantadora e muito gentil.

BÁRBARA – Não, não me lembro de nada... (pausa) aliás, me lembro sim.

Sabe, Carlos, a Lúcia ela é frágil e teve um dia que nós discutimos por uma

coisa à toa. Todo mundo sempre discute por uma coisa à toa, não é mesmo?

LÚCIA – Mamãe, como era o nome do seu amigo ator?

BÁRBARA – Não me interropa agora, não vê que estou no meio de uma

história? Então, nós discutimos... nós brigamos e sabe o que ela me disse?

LÚCIA – Não mamãe, / o que foi que eu lhe disse?

BÁRBARA – Eu disse para não me interromper! (para Carlos) Aí ela disse que

tinha vergonha... vergonha de mim.

LÚCIA – Eu não disse isso, mamãe.

BÁRBARA – Você não consegue, não é? Você não consegue ficar com essa

maldita boca calada.

LÚCIA – Nunca quis dizer aquilo.../

BÁRBARA – (para Carlos) E devia sentir mesmo. Estava ali, naqueles olhos

sem graça... e justo quem? Você não tem filhos, Carlos, não sabe como é. Eles

olham para você e dizem... tenho vergonha. Depois de tudo.

LÚCIA – Eu fiquei com medo daquele homem que veio nos cobrar o

empréstimo.

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BÁRBARA – Não dizem nada quando é preciso carregá-los nas costas, mas

se você desliza, esqueça... eles montam e dizem que sentem vergonha. A vida

não é fácil quando se é mãe solteira e é verdade que às vezes a gente se

aperta. Existem sempre uns empréstimos aqui e acolá... e isso é motivo de

vergonha? Isso é? Não meu amigo, eu tenho a minha consciência tranquila...

LÚCIA – Foi só um susto.

BÁRBARA – Ela foi contar para Jorginho, e você sabe como ele é, não sabe?

Veio com essa história de herança e de que eu não sabia cuidar das coisas... e

a velha implicância com a decoração da casa. Um vagabundo que vive do meu

dinheiro. Me encurralaram, a mim, Bárbara! Então, coloquei ordem na casa,

sufoquei o motim. Algumas pessoas acham que eu sou um pouco dura, mas

não é isso... é que não se pode deixar um barco à deriva e aqui, eu sou...

LÚCIA – Mamãe...

BÁRBARA – Ah... Naquele dia você foi dormir com os olhos inchados de

choro, se lembra (ri feroz) e na manhã seguinte, tinha tanta remela nos seus

olhos que quase não conseguia desgrudá-los... Os cílios...

LÚCIA – ...por favor.

BÁRBARA – E eu lhe ofereci uma navalha. Uma navalha para desgrudar as

pálbebras. Foi... Ah, Carlos.

(pausa)

LÚCIA – Mamãe.

BÁRBARA – O que é?

LÚCIA – (ensaia mudar de assunto. Visivelmente constrangida) Como era

mesmo o nome dele?

BÁRBARA – Quem?

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LÚCIA – Seu amigo. Era um nome estranho, um nome de artista internacional,

com “h” mudo e um“w” eu acho. Ele tinha um verdadeiro fascínio pela mamãe,

Carlos.

BÁRBARA - Onde está o Jorge com a bebida? Eu não tô me sentindo bem...

LÚCIA – Ele gostava de passear no nosso carro.

BÁRBARA – (para a coxia) Jorge!

LÚCIA – Ele vinha com os amigos comer aqui em casa, você se lembra,

mamãe?

BÁRBARA – (para a coxia, ainda mais impaciente) Jorge! Estou sufocando.

(pausa. Em seguida, para Lúcia) Por que não pára de uma vez?

LÚCIA – Não agora, por favor. Não agora que o Carlos parece interessado.

Você está interessado, não está Carlos?

CARLOS – Eu...

LÚCIA – Ele vinha nas noites mais abafadas, noites como essa e fazia-se de

ventilador com dois abanos enormes. E às vezes ele tava mais sem grana do

que a gente e nos pedia dinheiro. Ele vinha e se sacudia com os abanos nas

orelhas e imitava um elefante. Da para imaginar? Depois largava um dos

abanos e colocava um braço diante do rosto e fingia que tinha uma trombra e

fazia os sons do elefante. Mais ou menos assim

(Lúcia coloca um dos braços diante do rosto e o sacode como se fosse

uma tromba de elefante)

LÚCIA – Você está rindo agora, Carlos? Está rindo? E olha que eu não consigo

nem chegar perto de como ele fazia, era incrível. Ouça só.

(Lúcia imita os sons de um elefante)

CARLOS – (constrangido) Formidável, eu acho...

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LÚCIA – Ele pedia que ela participasse e ela não cedia, por isso, ele levava

sua tromba até ela...

(Lúcia vai até a mãe, ainda fingindo ser um elefante)

LÚCIA – ...e bramia e bramia mais alto e mais alto e mais alto e incrivelmente

alto, como uma fera. Não se lembra, mamãe?

BÁRBARA – (para a coxia) Jorge! Eu tô sufocando... Tô sufocando! (pausa)

Está indo longe demais, Lúcia. Páre já.

LÚCIA – Não, não ainda. Eu gostava tanto dele. Ele tinha um nome de artista

internacional – como era mesmo? Então, nós ficamos sem dinheiro e ele não

veio mais... Qual era mesmo o nome? Vamos, ajude-me - e / vinha nas noites

quentes com seus... Como é mesmo? E ventava para nós.

BÁRBARA – Cale a boca! Vamos, cale-se, já!

(Lúcia se cala. Uma pausa. Em seguida, Lúcia chora)

LÚCIA – Desculpe-me, mamãe. Desculpe-me. Eu não fiz por mal./ Eu só

queria... eu só queria...

BÁRBARA – Claro que não. (para a coxia) Jorge! (Lúcia pára num rompante)

Aposto que estava apenas tentando ser bonitinha diante desse seu convidado

na esperança de que, um dia, talvez e bem por acaso, ele pudesse retornar a

esta casa, e lhe comprasse sorvetes e lhe comprasse vestidos e lhe dissesse

que metida num desses, você até que se parece com uma mulher. Então,

quem sabe um dia, talvez e bem por acaso, ele pudesse retornar a esta casa

com a promessa de um grande papel, com a promessa do seu retorno para os

palcos, e lhe comprasse uma estrela com o seu nome e lhe comprasse uma

noite num motel... – tudo com seu dinheiro, seu maldito dinheiro – e lhe

dissesse que, metida num desses, você bem que dissesse adeus a antiga vida.

32

E que essa vida era ingrata e mesquinha e grotesca e... e que, daquele dia em

diante, você seria outra mulher e ele seria todo o futuro possível. Então, quem

sabe um dia, talvez e bem por acaso, ele pudesse retornar a esta casa, com as

mãos abanando e um desculpa qualquer e... Então, quem sabe um dia, talvez

e bem por acaso, ele pudesse não retornar.

Silêncio.

LÚCIA – Desculpe-me, mamãe.

BÁRBARA – Apenas cale a boca, Lúcia.

LÚCIA – Eu posso trocar de vestido.

BÁRBARA – Fique onde está, isso não é um desfile. E eu disse que calasse a

boca.

ENTRA JORGE COM UMA GARRAFA DE UÍSQUE E QUATRO COPOS

JORGE – Que gritaria é essa?

BÁRBARA – Eu passei mal... Sabe que sou uma mulher doente. A propósito...

Pensei que estivesse fabricando a bebida.

JORGE – Deu trabalho para achar, você costumava esconder, se lembra?

Para beber sozinha...

BÁRBARA – Não diga isso. O que o rapaz vai pensar?

JORGE – Que você é um monstro bêbado e egoísta, mas como isso é a

verdade, está tudo bem... (mostrando a garrafa) E foi tudo que encontrei. O bar

me disse que estamos mesmo ficando sem grana. Talvez se você não fosse

tão extravagante, Bárbara, e não gastasse tanto com essas bobagens que

entulham a casa, a gente tivesse mais do que esta mísera garrafa de uísque.

BÁRBARA – Eu não lhe disse, Carlos? Jorginho é um implicante...

JORGE – Não me chame assim.

33

BÁRBARA – Por que não, hein?

JORGE – Porque é tão detestável quanto aquele penico.

BÁRBARA – Aquilo é porcelena chinesa! Vamos, não fique irritado... Ah,

Jorginho, Jorginho, Jorginho... o irmãozinho... o queridinho... Vamos, desfaça

esse bico.

JORGE – Não enche, Bárbara.

BÁRBARA – Venha meu Jorginho e deixe eu lhe apertar um pouquinho. Você

é quase como se fosse meu filho predileto, mas ainda bem que não é! Venha e

me traga uma dose para animar. Isso. Onde está o gelo que pedi?

JORGE – O gelo acabou.

BÁRBARA – Vai dizer que também não tivemos dinheiro para comprar.

JORGE – Alguém esqueceu de preencher a cuba... e, coincidentemente, você

sempre esquece de preencher a cuba.

BÁRBARA – Quer dizer que eu não enchi a cuba?

JORGE – Quero dizer que não temos gelo e que não adianta reclamar agora.

BÁRBARA – Está bem, está bem, você fez o seu melhor, embora, em se

tratando de você, querido, isso não signifique muita coisa. Por isso, mesmo

com todo este abafamento... com todo este maldito sufocamento... beberemos

uísque assim: sem vaselina. Espero que a visita não se importe. (bebe) Afinal,

não se pode atravessar essa cortina de umidade com a garganta seca, não se

pode. Não é mesmo? Não, não se pode. Como dizem por aí, uma madrugada

sem bebidas é tão insuportável quanto uma vida sem ilusões.

JORGE – Ninguém diz isso, Bárbara.

BÁRBARA – Diz sim.

JORGE – Não diz não.

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BÁRBARA – Você insiste em me contrariar! Diz sim, Jorge. Um mulher lá no

trabalho... Trabalho, sabe o que é? E, quer saber... Se ninguém diz, então, eu

digo. Isso, neném, pode encher mais um pouquinho o copo da belezinha aqui.

E agora, bebamos até estalarmos!

JORGE – Como você é vulgar.

BÁRBARA – E não estou bêbada ainda, para provar que é natural.

Naturalmente Bárbara.

(Bebem)

CARLOS – Então quer dizer que a decoração da casa é sua, Bárbara.

BÁRBARA – A casa também.

JORGE – Por favor...

CARLOS – Um primor! Dá para perceber que aqui tudo foi feito com muito

carinho e cuidado.

BÁRBARA – Viu, Jorge, alguém aqui gosta da minha porcelana chinesa.

JORGE – Ele só está sem assunto e está tentando ser agradável.

BÁRBARA – (para Carlos num desafio) Você está tentando ser agradável?

CARLOS – Eu...

JORGE (para Carlos a pós uma ligeira pausa) – Mamãe odiava esta casa, você

se lembra, Bárbara?

BÁRBARA – Não.

JORGE - Se ela estivesse viva, estaria completando hoje...

BÁRBARA – Se ela estivesse viva, Jorge. Se.

JORGE – Setenta? Setenta e dois? Uma pena.

CARLOS – É muito triste e a gente nunca se acostuma. Hoje, por exemplo...

BÁRBARA (que desconversa)– É, muito triste.

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JORGE – Agora, imagine se fosse possível reverter isso.

BÁRBARA – Jorge, nós não vamos ter essa conversa de novo. Eu já/ disse

que...

JORGE – Ah, Bárbara. Gostaria tanto de falar com ela... De beijá-la. De... Já

faz tanto tempo. Saber o que houve. Por onde ela esteve... O que ela viu.

(Lúcia o encara apavorada) Você também não se sente assim, Lúcia?

LÚCIA (apreensiva)– Não sei sobre o que está falando, tio Jorge. É sobre a

vida ou sobre a morte?

BÁRBARA – É sobre a vontade dele de me afrontar.

JORGE – Não, Bárbara! É muito maior do que isso... Eu tô falando sobre...

Sobre o que nós éramos, sobre o que nos fomos... Sobre... Sobre esse

cordeiro.

BÁRBARA – Sobre esse cordeiro?

JORGE – Isso! Sobre... Sobre cordeiros. Cordeiros, entende?

BÁRBARA – Você enlouqueceu.

JORGE – Sobre cordeiros, navalhas e... Sim! Dentes-de-leão.

Silêncio.

JORGE – Ela tá viva, Bárbara.

Silêncio.

BÁRBARA – Então é isso... Esperando o momento... Um ou dois cigarros. É

claro! (pausa) Você a viu?

JORGE – Você sabia?

Bárbara se levanta, apanha um molho de chaves e se encaminha para a porta.

JORGE – Aonde vai?

BÁRBARA – Comprar outra garrafa.

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SAI BÁRBARA

FIM DO PRIMEIRO ATO.

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SEGUNDO ATO

Ainda na sala de jantar. Sobre a mesa, uma garrafa de uísque recém

aberta. Em cena, Jorge regula o aparelho de som, coloca uma música

para tocar, se serve e começa a dançar com o copo em uma das mãos. Já

está embriagado. Entra Carlos, que retorna à sala. Vem do andar superior

da casa.

CARLOS (que aponta para a garrafa de uísque) – Pensei que tivéssemos

esvaziado o bar com aquela última garrafa.

JORGE – Todos temos os nossos segredos (ele ri). Onde está Lúcia?

CARLOS – Ainda agarrada ao vazo sanitário como uma devota. Pediu que a

deixasse sozinha.

JORGE – Fraca para bebida, mas corajosa.

CARLOS – Ou inconsequênte.

JORGE – Ou... Ou... Apenas alguém que... Precisa. Ou tudo isso junto, você

não acha? Não vamos julgá-la por isso.

Carlos tenta arrancar o copo da mão de Jorge que resiste.

JORGE – Não, não! Por favor... é o único remédio.

CARLOS – É melhor eu ir para casa.

JORGE (que confere o relógio) – Mas já? Amanhã é domingo. Não faz

sentido... Não dissemos tudo ainda. Venha... Eu estou aqui e você... Sejamos

sinceros. Você não veio por causa de Bárbara... nem de Lúcia, veio?

Silêncio.

JORGE – É complicado, eu sei (ele puxa uma carteira de cigarros do bolso,

acende um. Fuma). Eu a criei, Carlos... A base de um ou dois cigarros... Eu a

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criei, enquanto Bárbara... (Pausa. Oferece a carteira de cigarros para Carlos).

Aceita um?

CARLOS – Eu não fumo.

JORGE – Nem eu. Parei... Bem, tanto faz. (Pausa. Ele aponta para uma série

de bonequinhas de porcelana sobre o aparador). Essas são de Lúcia, você

sabia disso?

CARLOS – Ela me disse que pintava porcelana.

JORGE – Bárbara é fascinada por essas coisas, então, nada mais natural... É,

Lúcia pinta essas... Essas... Bonecas? Algumas são até bonitinhas. Olhe essa

aqui. Uma graça, não é não?

CARLOS – Ela me deu uma dessas. Deixa eu... Ah! Parecia com a de cá. Com

essa daqui do centro.

JORGE – Hum. Ela te deu, foi?

CARLOS – Sim. Um dia lá no hospital.

JORGE – E você a guardou, Carlos.

CARLOS – Com todo o cuidado.

JORGE – Com todo o... Hum... Entendo.(Pausa) Você a quebrou?

CARLOS – Não.

JORGE – Você a quebrou.

CARLOS (constrangido) – Um acidente. Escorregou da... (Pausa) Como

você...?

JORGE – Como é que eu sabia? Bom, eu não sabia. Apenas supus... Foi

quando você disse “cuidado”. Havia algo ali. Daí, pensei um pouco e...

CARLOS – Supos.

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JORGE – Isso. Supus. Sou bom nisso.(Pausa) Sabe... Depois dessa doença

no punho, ela parou de pintar. Pois é... Bárbara acha que a pintura pode ter

sobrecarregado a coisa toda já que ela trabalha com esse negócio de

digitação... Eu sei lá. Convenceu a menina disso. Ela é mesmo uma mulher

escrota... (Pausa) E, ainda assim, você ganhou uma bonequinha.

CARLOS – Sim.

JORGE – E a quebrou?

CARLOS – Foi mesmo um acidente.

JORGE – Uhum. (Pausa) Ela tá apaixonada, Carlos.

Silêncio.

CARLOS – Sabia que não devia ter vindo.

JORGE – Não seja bobo! Você fez bem em ter vindo. Foi uma surpresa... E

ela te convidou, então... Lúcia! Foi muito gentil. Foi uma surpresa boa. Isso. É

só que... (bebe um pouco mais) Você contou a ela?

CARLOS – Sobre...?

JORGE – Sobre aquela quar.. Quinta-feira! Foi uma quinta-feira não foi?

CARLOS – Não me lembro.

JORGE – Foi sim, quinta-feira! Por causa do curso de digitação... Elas foram

resolver um não-sei-o-quê. Aquela história de atestado, não foi? Pois é...

Quase me convenceu. Por um momento essa... Escute... Ei, escute. Não faça

essa cara. Eu tô dizendo que quando... Hoje no jantar! (ele ri) Eu quase

acreditei que você nunca tinha vindo aqui. Quase!

CARLOS – O que queria que eu tivesse feito?

JORGE – Ah! Foi tão... Tão real. Foi a mentira mais bem contada da noite. É! A

mentira... (Pausa) E você trouxe lírios.

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CARLOS – Eu sinto muito, Jorge. Não imaginei que fosse incomodar.

JORGE – Oh, oh... Que conversa é essa, Carlos. Você não... Oh... Olha pra

mim. Você não incomoda. Não... Não! É que...

CARLOS – E, além do mais, nem tudo foi mentira.

JORGE – Nunca o é, né? No nosso caso, a mentira é como uma ponta de

iceberg e a verdade... A verdade é aquilo que a gente afoga numa bacia

gigante de água/ gelada pra...

CARLOS – Só estive aqui uma vez antes. E, essa noite, quase me perdi.

Esses pastos são todos iguais... Também não me lembrava do calor, nem

dessa janela, ou da...

JORGE – Não é o calor. É a soma dele com a umidade.

CARLOS – Me poupe! O que eu quero dizer.../

JORGE – Eu sei. (Pausa) Você quer dizer que é um direito seu. Que você

conquistou isso.

CARLOS – O que tá falando?

JORGE – Nós dois, Carlos. Primeiro no hospital, depois no café, depois aquela

trepada clandestina no... Aquilo era uma escada de segurança? E então aqui,

naquela quinta-feira... E tudo meio que virou oficial, embora não fosse.

Cumprimos etapas e você teve o seu direito. (Pausa) Você se... Como é

mesmo que se diz? Quando uma pessoa se torna substância na vida de outra,

ocupa espaço e passa a ter direitos? Como é mesmo que se diz?

CARLOS – Não sei aonde quer chegar.

JORGE (desapontado) – Ah, não? Que pena... (Pausa) Já vi homens de direito

iguais a você... Homens que são carne, ossos e Direito Puro. Ah... Direito Pu...

(Pausa) Sabe, Carlos, quando o direito se apodera de um homem, não existe

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exorcísmo capaz de livrá-lo da possessão. Conduzem suas vidas como os

trilhos de um trem... São donos, senhores do futuro. Comedidos. São homens

que não sentem dor de cabeça depois de um porre como esse que estamos

tomando. Eles, simplesmente, sentem em suas malditas cabeças o direito

doloroso de ser bem tratado. Curioso, não?

CARLOS – Jorge, por favor. Eu nunca quis apressar as coisas. Entenda...

JORGE (que ri) – Apressar as coisas? Você não é desses. Jamais se utilizaria

de Lúcia para voltar a esta casa. Não depois daquela noite... Daquela quinta-

feira. Não depois que eu parei de procurá-lo. Não, você jamais faria isso. Quer

dizer... A menos que você fosse um homem de direitos. É! Aí sim, quem sabe

você até trouxesse lírios.

CARLOS – Você é mesmo um filho da puta tão escroto quanto sua irmã, Jorge.

Vocês se merecem... E, sinceramente, já não sei o que vi em você.

JORGE – Agora estamos finalmente falando a verdade. Lembra do iceberg?

Pois é... Não se irrite, Carlos. Sei que essas coisas são difíceis para homens

de direitos. Esses sujeitos quase nunca estão acostumados a “penetrância”...

Existe essa palavra? “Penetrância” da verdade. É como uma faca, né? Nem

todos resistem. Quer ver? (aponta para o retrato do pai) Olhe para este homem

aqui! Um belo exemplo desses sujeitos do seu tipo.

CARLOS – Vá se fuder.

JORGE – Calma... Ei, escute. Eu sei que a comparação parece um pouco

idiota, mas você vai entender, eu prometo. Ei! Carlos? Então?

CARLOS – Eu tô ouvindo, Jorge, embora não saiba bem o porquê.

JORGE – Exatamente. É essa a questão. Vocês são assim... Meu pai era

assim. Duro e determinado, mas indulgente. Sabe o que é isso?

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CARLOS – Sei.

JORGE – É mais ou menos quando uma pessoa acha que é melhor do que a

outra e pratica uma espécie de caridade. Ela só consegue esse tipo de coisa

quando tá tão segura de sua existência que faz as outras pessoas tremerem

quando pensam no próprio direito de existir. (Pausa) Meu pai era assim! Ao

lado dele, era como se eu tivesse surgido por acaso, sabe, Carlos? Ainda

menino, eu já existia por acaso... como uma pedra, como um musgo. É assim.

Minha vida se desenvolve ao acaso. E não só a minha vida. Minha mãe,

Bárbara...

CARLOS – Ele era esquizofrênico, né?

JORGE – Isso foi depois. Primeiro, foi um homem que sabia o que queria...

Que sabia também o que nós devíamos querer. E ele podia, por que tinha

direitos... Eu já disse. Igual a você. (Pausa) Ele queria, por exemplo que eu

fosse contador.

CARLOS – Isso você nunca me disse.

JORGE – Então acrescente a lista das coisas que nunca lhe disse.. (fuma)

Depois que ele morreu, Bárbara achou que tinha herdado esses direitos. Ela é

uma piadista. Boa nessa coisa de mise on scene. Nada mais natural... Ela foi

atriz. (dança) E queria que eu fosse contador.

CARLOS – Ela também.

JORGE (que dança ainda mais animado) – Ela também. Não se espante... Por

um tempo, até eu achei que quisesse. E aí eu tentei. Não acredita? Pois... eu

tentei. Palavra! Me esforcei como água em cano entupido. Acordava todos os

dias, desanimado e me arrastava para fora da cama. Subia uma ladeira

desgraçada para chegar à faculdade. Quase nunca atrasava e tirava boas

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notas. Então, um dia – nossa! – um dia, numa aula de administração pública...

Lembro-me como se tivesse sido ontem. Eu senti a minha existência. Louco,

isso! Minha existência sem direitos. Minha... Senti a minha bunda esquentar

sobre o assento de madeira, minha mão deslizar sobre a superfície lisa do

papel e uma raiva que nascia na garganta como... Como um embrulho de

estômago e a vontade de vomitar. Então, me levantei e sem pedir licensa a

senhor ninguém, saí da sala atordoado, ainda sem saber ao certo o que

aconteceria depois. Me mandei. Fui pra bem longe da faculdade, peguei a

bicicleta e voltei pra divisa... Me embrenhei por esses pastos. Larguei a

bicicleta encostada em uma cancela e corri... Corri... Corri... Corri tanto. Para

que me faltasse o fôlego. (ele para de dançar) Quando acabou, eu tava

perdido... Como é que se fala? (pensa um pouco) Desnorteado! Desmontei no

chão e liguei para Bárbara.

CARLOS (que se serve de mais uísque) – E ela?

JORGE – Ah... (Ele desliga o som) Eu... Ela me achou.

CARLOS – Ela te achou?

JORGE – Foi. Deitado sobre a grama... Esmagado contra um céu violeta...

Esmagado por um... (Pausa) Aí, ela me tomou no colo, enxugou minhas

lágrimas e me disse: chega!

CARLOS – Chega?

JORGE – Chega. Era a hora de me assumir como uma folha jogada no vento.

De me abandonar nos braços dela. Nada fazia sentido mesmo. Podia ser um

inútil. Alguém que se dá ao luxo de não fazer nada enquanto apenas existe. É

assim que ela me vê... E eu podia ser, porque essa minha existência vazia

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dava algum sentido a existência dela. Sim! Eu podia ser... Desde de que eu

fosse dela. Uma troca, entende?

CARLOS – Mais ou menos.

JORGE (que aponta para o retrato)– Acho que tudo meio que começou com

ele. Talvez essa merda seja genética. Sei lá... Quando ele ficou doente, tiveram

que construir a casa e tudo o mais. As pessoas não entendiam lá na cidade e

ninguém admitiria que meu pai tava ficando demente. Ele era um homem de

direitos, dos melhores. Todos sabiam disso. (pausa) Só que minha mãe

sempre gostou da cidade... Uma merda, isso, né? E ele era muito violento.

CARLOS – Ele te batia?

JORGE – Batia em Bárbara. Eu era pequeno. Apanhava pouco... Mas ela,

coitada. Ele dizia que ela era puta, por causa do teatro. Dizia que tinha

vergonha dela. Caralho... Minha mãe se metia no meio e aí, já viu, né? Era

bizarro. Um dia... Um dia as coisas viraram do avesso. Minha mãe subiu na

garupa de velho amigo de meu pai e... puf! Foi embora. Meu pai parou de

trabalhar. A doença... Bem... Bárbara largou o teatro, arranjou um emprego

qualquer. Pariu. Depois ele morreu. Não me lembro se Lúcia chegou a

conhecê-lo. E ela... Bárbara, passou a odiar minha mãe todos os dias de

nossas vidas.

CARLOS – Que história louca!

JORGE – O pior vem agora: minha mãe sumiu. Escafedeu-se. Virou pó, vapor,

sei lá! E aí, Bárbara nos veio com a notícia de que ela havia morrido.

CARLOS – Quanto tempo depois?

JORGE – Que ela partiu? Ah... Uns dez ou doze anos. Lúcia engoliu a história

de primeira, mas não eu. (com raiva crescente) Não eu! Ela fez a gente pegar

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um monte de fotos de minha mãe e tacar fogo. Enterro simbólico. Não é

escrota? Tacar fogo, Carlos! E por quê? Me diz, Carlos, por quê?

CARLOS – Ela pode ter ficado enciumada, você não acha? Eu também...

JORGE – Ciúmes? Não... Inveja. Minha mãe foi embora e ela teve que ficar

para cuidar.

CARLOS – Não é uma tarefa fácil. Eu sou enfermeiro, você sabe. E é preciso

estômago. A gente vê coisas e tem que saber lidar... Hoje, por exemplo, um

amigo... Hoje, eu... (bebe) Hoje nós perdemos uma paciente lá no hospital. Foi

triste. Ela morreu nos meus braços, enquanto eu aplicava o medicamento.

Tinha sonhos tumultuados... Toda vez que eu entrava no quarto durante a

noite, tinha a sensação de que ela tava se confessando. E eu ouvia e dividia

aquela culpa. A gente precisa. Faz parte, não faz?

JORGE – Dividir a culpa? (pensa um pouco) Deve fazer.

Silêncio.

CARLOS – E como foi que você...?

JORGE – O quê?

CARLOS – Sua mãe.

JORGE – Ah... Ela mandou uma carta.

CARLOS – Sério?

JORGE – É. Isso já tem uns três meses.

CARLOS – Ela tá por aqui?

JORGE – Na cidade.

CARLOS – Você a viu?

JORGE – Não tive coragem ainda. Tava me decidindo. É foda... Há três meses

minha vida recuperou algum sentido sabe? Eu me apliquei... Eu... Ela não

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disse na carta onde tava. Vasculhei a cidade e, de repente, eu tinha motivos,

eu tava vivo de novo. Foi como se amanhecesse...

CARLOS – E Bárbara?

JORGE – Nunca soube. Quer dizer... Eu nunca contei, tava esperando a

oportunidade. Esperei o aniversário. O aniversário de minha mãe. É hoje... A

gente sempre faz essa coisa de pegar os dentes-de-leão. Ah... Não sei o que

me deu. E aí você apareceu hoje. Mas... Tanto faz. O fato é que ela...

ENTRA LÚCIA.

LÚCIA – Mamãe já voltou?

JORGE – Não, meu bem. Se eu conheço Bárbara, e eu a conheço bem, ela

deve ter ido dar uma voltinha no inferno para barganhar com o diabo alguma

novo cacareco.

LÚCIA – A essa hora?

CARLOS – Ela não é assim tão louca.

JORGE – Você ainda não viu nada. Espere um pouco mais e antes do dia

amanhecer, poderá tirar suas próprias conclusões.

LÚCIA – Estou um pouco enjoada, tio Jorge.

JORGE – Com certeza, não tá grávida. Quem sabe um pouco mais de uísque

ajude a passar? Ainda tem alguma coisa na garrafa, venha.

LÚCIA – Porque não? O mundo já começou a girar, como um carrossel.

(Jorge serve mais uma dose para Lúcia)

JORGE – Ele já gira assim a pelo menos uns quatro bilhões de anos, querida.

A gente nasce nesse giro e porque já nasceu girando, não se dá conta. Não é

assim, Carlos? Apenas quando a gente bebe...

LÚCIA – Quando a gente bebe, a gente ver girar.

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JORGE – Exato. E às vezes é difícil de acompanhar o giro, é muita informação,

mas não faz mal, a gente vomita, acorda de ressaca e fica na cama até às dez,

daí, toma um remédio e tá tudo bem de novo.

CARLOS – Também sou fraco para a bebida, Lúcia.

LÚCIA – De verdade? E o seu mundo gira igual o meu? Sempre quis saber

essas coisas? O seu gira igual ao meu? O meu, quero dizer, eu... eu nem

consigo te ver direito... é como se você estivesse dançando, mas você está

parado, não está? E eu, eu estou parada ou estou dançando para você?

CARLOS – Você ainda está parada.

LÚCIA – Que bom, porque eu já não sabia. Upa! Acho que tropecei.

CARLOS – Você ainda está parada.

LÚCIA – Então, acho que me enganei.

CARLOS – Estamos ficando alegres demais. Nossa, como já está tarde! (para

Jorge) Preciso ir.

LÚCIA – Não vá agora. Não. Estamos comemorando, não estamos, tio Jorge?

A vovó... É aniversário dela. E (em tom de confidência para Carlos) ela tá viva.

(Para Jorge) Você contou pra mamãe, não foi, tio, Jorge. Você contou e ela

ficou chateada. Ela não quer a vovó aqui... Porque... (pensa um pouco) A vovó

toma uísque, tio Jorge?

JORGE – Ela toma medicamentos.

LÚCIA – Ah... E quando ela voltar nós vamos cantar alguma coisa alegre e

vamos ver o mundo girar. Ou então... Eu posso dar a ela uma de minhas

bonequinhas. O que você acha das bonequinhas, tio Jorge? Ela vai gostar?

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JORGE – Já conversamos sobre isso. Não pode sair por aí distribuindo suas

bonequinhas, Lúcia. Não depois que parou de pintar. Você vai acabar ficando

sem nenhuma.

LÚCIA – Mas eu não dou, tio Jorge. Eu só ia... Pra vovó, entende? Eu nunca...

JORGE – Você deu uma bonequinha pra Carlos?

LÚCIA – Não.

JORGE – Você deu uma bonequinha para Carlos.

LÚCIA (apavorada) – Não. (para Carlos suplicante) Eu te dei alguma

bonequinha, Carlos?

CARLOS (que mente piedoso) – Não.

LÚCIA – Tá vendo, tio Jorge. Seria só pra vovó e eu... Eu nem vou dar mais.

Não... Nada de bonequinhas eu posso dar dentes-de-leão... Ou então... quem

sabe? Podemos imitar animais com ela, hein? Igual antigamente. Que você

acha, hein? (Para Carlos) Você sabe imitar animais, Carlos? Eu sei imitar

animais. Na verdade, eu sei imitar um elefante. Um elefante daqueles de

trombas e orelhas de abano. Foi um amigo de mamãe que me ensinou. E

porque ele nunca mais veio, hein, tio Jorge?

JORGE – Porque ele só queria o nosso dinheiro e sua mãe odeia... Bem,

digamos que sua mãe odeia dentes-de-leão.

LÚCIA – Sim, sim! Ela tem dentes de leão. Dentes afiados. Eu sou o elefante e

mamãe é o leão. Não, o amigo da mamãe – como era mesmo o nome dele, tio

Jorge? – ele era o elefante, mamãe era o leão e... Que animal eu era?

JORGE – Não me lembro, meu anjo.

LÚCIA – Um anjo! Sim, eu sou um anjo e a mamãe... onde está a mamãe?

CARLOS – Eu preciso ir.

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LÚCIA – Não! Não, não vá. Por favor. Eu prometo que não digo mais besteiras.

Tio Jorge vai me controlar, não vai, tio Jorge? É o uísque. Paro de falar

besteiras e eu me calo para que fique, por que se você for... se você for...

pensará que eu só falo besteiras e eu não quero que pense isso.

CARLOS – Não é nada disso.

LÚCIA – E quando você for, você não vai voltar. Não vai voltar por mim, por

que eu só digo besteiras e imito elefantes e... você tá dançando agora?

CARLOS – Não.

LÚCIA – Por um momento me pareceu que sim. Eu to tonta e... fique mais um

pouco... porque... porque... ninguém nunca vem aqui. Eu tö bêbada, tio Jorge?

Devo tá, por isso me olham assim. Mas eu aprendi a fazer um assado de

cordeiro hoje e, se você voltar... se você voltar... eu... eu... por que eu estou

chorando? (Pausa) Ah, sim, aprendi a fazer o assado. Pedi que ele me

ensinasse, queria fazer para você... queria sim... desde o dia em que você me

viu e foi tão gentil e eu chorei quando me tiraram o sangue, para o exame, você

lembra? Eu queria tanto... pedi tanto e hoje, quando soube que você viria... Tio

Jorge fez.

CARLOS – Podemos nos ver qualquer dia. Passarei aqui para conhecer sua

avó...

LÚCIA – Ela virá para casa. É por isso que estamos comemorando, não

estamos? Mas mamãe ficou tão brava. (Pausa) Por que não cantamos uma

música alegre? Por que você não fica um pouco mais?

JORGE – Chega, meu amor.

LÚCIA – Mamãe disse que eu nunca vou ser igual a ela. Nunca, nunquinha. E

sabe por que, tio Jorge?

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JORGE – Não, Lúcia, por quê?

LÚCIA – Estávamos brigando e eu chorei. Ela disse que eu disse que sentia

vergonha dela e eu nunca disse isso. E eu chorei e meus olhos ficaram

inchados feito balões e na manhã seguinte ela me deu aquela navalha... Sabe

o que ela me disse, tio Jorge? Ela disse que eu nunca ia ser igual a ela

porque... porque eu tenho medo de ficar sozinha. E eu tenho tanto... tanto...

tanto medo.

JORGE – Todos temos, meu amor.

LÚCIA – A mamãe não. Mas eu tenho tanto...

(pausa)

JORGE – Por que você não se deita um pouco, hein? Estire-se aqui no sofá,

até que o medo passe e amanhã... amanhã vai estar tudo bem de novo.

LÚCIA – Vamos rescussitar igual a vovó.

JORGE – É... igual.

LÚCIA – Obrigado, tio Jorge. Obrigado por ter vindo, Carlos.

CARLOS AVANÇA PARA A PORTA. ENTRA BÁRBARA COM UMA

ESPINGARDA VELHA NAS MÃOS.

BÁRBARA (para Carlos) – Aonde pensa que vai, querido?

JORGE – Que loucura é essa, Bárbara? Perdeu o juízo de uma vez?

CARLOS – Por favor, não atire!

BÁRBARA – Essa eu aprendi com os antigos, Jorginho. É assim que eles

defendiam suas propriedades de estranhos: na bala.

CARLOS – Eu juro que não tive a intenção de incomodar e, se me permitir, vou

embora agora mesmo.

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BÁRBARA – Fique onde está, Quinta-feira! Quinta-feira. Ah, Bárbara, você é

genial. Este não era o nome daquele sujeito que o Crusoé encontrou no...

Onde foi mesmo que ele encontrou, hein, Jorge? Como era o nome do... Era

um dia da semana. Era ou não era? E ele não era muito criativo para nomes,

não é mesmo? Mas eu sou, Jorginho, eu sou.

JORGE – Bárbara, não acha que está exagerando?

BÁRBARA – Sabe qual é o nome dessa gracinha aqui?

JORGE – Essa é a espingarda velha do papai.

BÁRBARA – Não seja mal-educado, Jorge. Me responda, sabe qual é o nome

dessa gracinha aqui?

JORGE – Não.

(Bárbara aponta a espingarda para Carlos)

BÁRBARA – Odeio respostas curtas.

JORGE – Não, Bárbara, não sei. Qual o nome dessa gracinha?

BÁRBARA – Eu a chamo “Agnus Dei”.

JORGE – Você não tem limites.

CARLOS – Não devia discutir, ela está armada.

BÁRBARA – Em sua homenagem: “Cordeiro de Deus que tirais os pecados

do mundo...”

(Bárbara engatilha a arma)

JORGE – Essa espingarda já não funciona.

BÁRBARA – “dai-nos a paz” (ela dispara. Lúcia grita e Carlos se encolhe de

medo. Ouve-se um clique seco da espingarda quebrada. Bárbara ri). Melhor do

que na Bíblia. Amém! Achei lá no galpão... Tava procurando bebida e aí

pensei... Bem... É um desperdício deixá-la abandonada. Mesmo quebrada.

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CARLOS – Por um momento eu...

BÁRBARA – Sabe Carlos, Jorge tem razão, essa era a velha espingarda do

papai. Ele era adepto da caça esportiva e usava essa espingarda. A mãe de

Jorge achava uma brutalidade, mas eu sempre admirei isso nele. Esse tesão

que ele sentia ao se embrenhar no mato só com a espingarda e um cachorro...

farejava no ar a presa, articulava a melhor maneira de abatê-la e quando o

momento chegava... bum! Ele me levou com ele algumas vezes e me ensinou

a caçar. Loucura, não? O cara era esquizofrênico e mesmo assim... Ele dizia,

menina valente! Eu era uma menina valente com uma espingarda. Ele me fez

assim, não é engraçado isso?

JORGE – Não há nada de engraçado nisso.

LÚCIA – Você tá com uma arma. Você... Você atirou... Por que fez isso,

mamãe?

BÁRBARA – Para mostrar quem é que manda! (ri com ferocidade) Ora, eu não

atirei em ninguém. Foi uma piada, ok? Vocês não tem senso de humor...

Nenhum de vocês. É verdade que eu sempre quis matá-los, mas...

Convenhamos... (repara na garrafa de uíque sobre a mesa) Olha, olha!

Escondendo o jogo. E eu me acabando atrás de um trago. Me dê um pouco.

JORGE – Venha buscar.

BÁRBARA – De onde veio toda essa agressividade?

JORGE – Acho que é de família.

BÁRBARA – Você me assustou agora, sabia? Me assustou mesmo com essa

voz de macho e esse “venha buscar”. Por um momento achei até que Jorginho

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tivesse virado homem, mas... nah! Não.. Tenho certeza de que é apenas o

efeito da bebida. Já estamos estalando, Jorginho querido? Já estamos?

JORGE – Eu tô de saco cheio.

BÁRBARA – Ah, tá?

JORGE – Tô sim, Bárbara.

BÁRBARA – Saco cheio de quê, hein? Até onde eu sei, você é o vagabundo

da história... O parasita, o homem que...

LÚCIA – Eu to enjoada.

JORGE – Homem que não trabalha? (Pausa) Você me paraliza.

BÁRBARA – Ah, claro! Como se eu.../

JORGE – Me acostumei a pensar que era seu... Não é ridículo isso? Ei, Carlos,

o que acha disso, hein? Eu achei que se não fosse dela, não seria nada.

Espantosa essa nossa capacidade de mentir. No fundo eu sabia. Naquele dia,

lá no pasto, quando eu corri... Meu Deus.

BÁRBARA – É, você correu como um franguinho. E desde de então não

consegue arranjar um emprego e olhe que já lhe...

JORGE – Vendi minha alma e me amaldiçoei.

BÁRBARA – Você largou uma carreira brilhante. E agora só fica enfurnado

naquele quarto fingindo que escreve. Mentindo para você mesmo, sobre...

Sobre.... Sobre quem você é. Foi isso que você fez. É isso que você faz! E pare

de uma vez com essa metafísica barata.

JORGE – É isso, né? E você aceita... Aceita e alimenta a farsa... a minha

decisão porque eu já não sou mais dono do meu nariz. É assim que você nos

controla. (Pausa. Ele ri histérico) Como foi que começou, hein? Você chegou a

se sentir mãe em algum momento, ou era só vontade de dominar, de se vingar.

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É isso, né Bárbara? É vingança da vida, vingança dela. Faz sentido agora não

sermos nada.

Silêncio. Ela apoia a espingarda na cadeira e vai se servir.

BÁRBARA – Escuta aqui, Carlos.../

JORGE (para Bárbara) – Quando foi que você soube?

Silêncio.

BÁRBARA – Não sei do que tá falando. (aponta para o cinzeiro) Voltou a

fumar?

CARLOS – Eu preciso ir...

LÚCIA (para Carlos) – Fique, por favor.

JORGE – Quando foi que você soube, Bárbara?

BÁRBARA – Já disse que não sei do que tá falando.

JORGE (que grita) – Quando foi que você soube?

BÁRBARA – Como se atreve... Baixe o tom.

JORGE – Você a viu?

BÁRBARA – Não é da sua conta.

JORGE – Você a viu?

CARLOS – Jorge, por que não acalmamos os ânimos primeiro, hein?

JORGE (para Bárbara) – Responda, sua bruxa! Você a viu?

BÁRBARA – Faz alguma diferença?

JORGE – Você é um demônio, Bárbara. Todo esse tempo... E essa história de

enterro simbólico. Você sabia. Sabia que ela tava viva. Talvez até tenha

rasgado as cartas ou impedido... Meu Deus... Você a afastou, não foi? Você a

mandou embora várias vezes... Mandou embora porque não queria que ela

soubesse... Não queria que ela visse o monstro... O fracasso que você...

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BÁRBARA – É melhor parar. Eu ainda posso machucar você.

JORGE – Tacamos fogo nas fotos. Meu Deus. Eu vi a crepitar, por sua...

Crepitar. Qual o sentido?

BÁRBARA – Cale a boca. Eu não tô me sentindo bem...

JORGE – Tem medo que possamos descobrir uma vida para além dessas

janelas, né? Que possamos enxergar a crueldade dessa sua benevolência.

Porque você é igual a ele... Você... Você é um vampiro, Bárbara. Suga nossas

vidas. Posa de santa... Diz que se doou, mas a verdade é que precisa de

alguém para pisar e tem medo de que um dia possamos não querer mais ficar

aqui. Tem medo de que não queiramos descascar como a mobília e o papel de

parede. Ouça essa, Lúcia. É assim que nos vê, né? Somos mais um penico de

porcela. A sua coleção... Que descasca.

BÁRBARA – Pare! Eu tô sufocando!

JORGE – Já não pode fazer isso comigo, Bárbara. Ela está viva e, sabe o que

isso significa? Sabe?

CARLOS – Jorge...

JORGE – Significa que é possível. (Pausa) Você a viu?

Silêncio. Bárbara tem uma crise, começa a sufocar.

JORGE – Eu lhe fiz uma pergunta. Vamos, responda. Você a viu? (ele avança

sobre ela) Hein? Consegue respirar agora? Você a viu? (Ele a agarra com

força pelo pescoço e a derruba sobre a cadeira de barbeiro) Essa noite. Você

estava lá com ela, não estava? Você saiu para vê-la... Vamos... Se sente

melhor agora? Hein? Você a viu? Preciso que me diga! Você a viu? (ele a

estrangula. Carlos corre para separá-los. Lúcia chora).

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Silêncio.

JORGE – Me desculpe, Bárbara. Eu perdi a cabeça... Me desculpe.

BÁRBARA (ainda quase sem ar)– Não, Jorge. Hoje eu não a vi. E, se eu fosse

você, eu parava com essas sua suposições idiotas.

JORGE – Eu não aguento mais. Eu... Eu queria poder ir embora.

BÁRBARA – Isso, vá embora... faça o que ela lhe ensinou a fazer, me

abandone, vá! Vá suba numa moto. Vá... atrás da sua vida. Não é assim? A

sua vida... Que vida, Jorge? Aqui vai uma novidade: não há nenhuma... nunca

houve, desde que ela se foi. Mas você não sabe disso, não é? Você não sabe

porque eu nunca contei e se eu nunca contei foi para que fosse mais fácil, mas

não foi e hoje você quer a sua vida. Não é engraçado, Jorge? Não é? Por que

não me responde? Ah... porque você foi logo ali. Quem sabe possa trazer mais

uísque quando voltar, hein? Ou quem sabe, nem volte... mas, antes, pergunta

por que ela foi embora, querido. Vamos, pergunte. Pergunte porque ela morreu

para nós. Eu gosto dessa parte... vamos pergunte. Sabe porque ela morreu,

Jorge? Porque já tinha acabado... ela acabou com tudo, entende? Ela acabou

com nossos sonhos, com nossas expectativas. Ela pulou fora e depois de tudo,

o que restou? Hein? Era fraca, covarde. Não seja um covarde, querido. Não

seja. Eu não sou... eu tô velha e doente e, memso assim, como foi que eu

disse quando nós a enterramos? Eu... eu mato um leão todos os dias. E ela...

por isso ela foi embora... e ainda assim, eu deixo que você me aponte o dedo e

diga... diga o que quiser dizer, você não é meu. Nem meu filho, nem o meu

fracasso, ouviu? Vamos, diga... diga que não gosta da minha porcelana

chinesa, que nem deve ser chinesa e que foi comprada de segunda mão. Não

é um penico, querido e foi bem barata, mas você não sabe. Também não sabe

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aonde fui hoje. Não... Hoje eu fui aonde vou às quintas-feiras... pois é, também

tenho as minhas quintas-feiras e pego o meu carro, aquele que terminei de

pagar e saio para levar Lúcia. Ela vai ser secretária e vai ganhar mais no

trabalho. É... ao contrário de você, ela trabalha... e eu a deixo no curso, todas

as quintas e não volto para casa porque sei que você também precisa de

algum sossego... É claro que você não acredita, nisso, né, porque você só

pensa em mim quando dói... (pausa) Sempre foi assim... Você não sabe de

nada. Não sabe, por exemplo, que depois e sempre que deixo Lúcia no curso,

passeio de carro pelo quadra da faculdade e estaciono perto do miniteatro,

aquele da esquina e fico na porta vendo o povo que entra e que sai, converso

com o bilheteiro e às vezes... às vezes eu mendigo um ingresso e às vezes...

às vezes eles me deixam entrar e já não sabem mais quem eu fui. Então me

sento numa poltrona, espero o terceiro sinal com o coração na boca e quando

os refletores acendem, sabe o que acontece? Sabe, Jorge? Eu me sinto

iluminada... sinto o dourar da pele sob a luz âmbar e, mesmo na platéia, me

ofusco como se estivesse diante de uma boca negra cheia de dentes e

expectativas. Daí, murmuro aqueles textos antigos, tão familiares e, finalmente,

me sinto em casa. Vou embora sempre antes que a cortina se feche e não sei

por que... acho que é para não sufocar. É... para não sufocar, esmagada pelo o

que eu poderia ter sido. Então eu saio, pego o carro, pego Lúcia, enquanto

você brinca... e agora ela tá viva e você quer que eu explique sobre a sua vida.

Não pode me humilhar assim. Isso devia ser proibido, devia ser ilegal... o seu

pedido é... criminoso, sabia? Criminoso! (pausa) Tudo bem, Jorge, você pode ir

se quiser. Como é que você diz... Ah. Homem de Direitos. Você é um Homem

de Direitos, agora. Vá com ela, já que ela está vivo agora. Vá pro inferno. Ela

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deve saber o caminho... É isso o que você quer, não é? Um caminho para

longe de mim... um caminho... (pausa) Ah querido, por que se ilude assim? Por

que me ilude assim. Não vamos a lugar nenhum, Jorge. Por causa dessas

paredes... portas que são paredes. Somos a mobília e não vamos... Lugar

nenhum. (ela se serve de uma dose de uísque. Em seguida, vai até a porta e a

escancara. Por fim, se senta na cadeira de barbeiro). Ela tá no hospital. No

hospital em que ele trabalho.

CARLOS – O que disse?

BÁRBARA – Ela é diabética. Havia perdido tudo... Tava mal. Deu uma topada

na tampa de um bueiro aberto, necrosou e tiveram que aputar metade do pé.

JORGE – Ela não disse isso na carta.

BÁRBARA – Claro que não.

LÚCIA – No hospital. Onde eu faço as minhas revisões.

BÁRBARA – Onde ele trabalha.

CARLOS – Meu Deus...

BÁRBARA (para Jorge) – Devem ter passado por ela inúmeras vezes.

CARLOS – No hospital?

JORGE – Você conversou com ela?

BÁRBARA – Eles precisavam de alguém da família para autorizar a cirurgia,

então... Isso foi depois da carta.

JORGE – E o que foi que ela disse?

BÁRBARA – Disse que não se arrependia de nada. E eu vi que tava mentindo.

JORGE – Você escondeu isso esse tempo todo? Por quê?

BÁRBARA – Use a cabeça. Você só consegue enxergar vingança e ódio... O

que, de fato, essa mulher poderia nos trazer de bom? Desde que você recebeu

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a carta tem se agarrado a isso como uma tábua de salvação, Jorge. Ela nunca

esteve presente, ela nunca quis saber de você... Porque complicar as coisas

agora?

JORGE – Você não tinha o direito.

LÚCIA – Todo esse tempo, no hospital? Eu tô muito enjoada. Acho que vou

vomitar.

BÁRBARA (para Jorge) – Você acha que vai ser como depois da ressureição

dela? Hein? Que vai se tornar uma pessoa Admirável e Ordinária... Gente

assim sempre te impressionou muito, né Jorginho. Gente que costuma casar,

acordar às seis e meia sete, chegar no trabalho às oito, voltar para casa no fim

da tarde, comer um sanduíche, se esparramar no sofá para ver o jornal. Gente

que talvez tenha cachorros ou adote uma criança. Gente que poupa dinheiro,

uma poupança, nada de investimentos arriscados, que planeja uma viagem por

ano, que gosta de tirar fotos em lugares estranhos e da comida que come.

Gente que, como... Como Carlos aqui, não deve ter paciência para filas e que

se acha digno quase sempre que dá uma olhada no espelho... gente que sabe

onde vai chegar, que tem um plano que não foi necessariamente traçado por

eles nem por gente como eles. Ah... gente que tem meta e gente que tem

futuro... A vida é muito mais complexa e tem gente do tipo da gente que não é

nada parecido com esse daí (aponta para Carlos).

CARLOS – Em que leito ela está?

BÁRBARA – Cento e vinte e cinco “d”.

CARLOS – Oh meu Deus, Jorge...

BÁRBARA (para Jorge ) – Quer ir embora? Vá. Quem sabe volte um dia com

um pé a menos e uma consciência cheia de pecados. No dia que enjoar de...

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Pode ser que eu não o receba mais... Você é quem sabe. Quanto tempo

duraria esse sonho?

Silêncio. Ela vai até o vaso de com os dentes-de-leão.

BÁRBARA - Ah, Jorge... Jorginho, querido. Não fique assim... Esqueça essa

história toda. Não vale à pena. Ei, escute... É melhor que ela seja apenas uma

lembrança, não é não? Ei! Escute... Você sabe por que ela criava dentes-de-

leão? Hein? Não ouvi... Vamos, querido. Você sabe? Vamos, me diga... Diga

“não, Bárbara, por que ela criava dentes-de-leão?”. (pausa) Ela criava dentes-

de-leão... (chora baixinho) eu.. ela criava dentes-de-leão por que não ventava...

por que não venta, querido. Não venta.

Silêncio.

CARLOS – Hoje, lá no hospital, nós perdemos uma paciente... Ela se

engasgou enquanto tomava um remédio. Nos meus braços... Forçou a cabeça

para o lado, sabe? Eu... Eu não consegui impedir. Tava se recuperando da

cirurgia. Precisamos amputar um pedaço do... Meu Deus. Leito cento e... Ela

se engasgou e eu... Meu Deus, Jorge. Eu sinto muito.

Silêncio.

LÚCIA – Tá amanhecendo. (pausa) Mamãe, meu enjoo passou.

BÁRBARA – Que bom querida.

Jorge chora. Bárbara arranca um dente-de-leão e o assopra.

CAI O PANO.