sobre chamas e cristais-a linguagem cotidiana, a linguagem cientifica e o ensino de ciências (1)

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21 lo:s dos conheGimentos ditos cientfficos e na compreensao do vfnculo desses conhecimentos com seu dia-a-dia. Como professores e professoras, de que modo olhamos a '1ela" na sala de aula e na escola com nossos alunos? A reflexao que 0 professor Eduardo Mortimer propoe atraves do seu textointitulado "Sobre chamas e cristais: a linguagem cotidiana, a linguagem Gientffica eo ensino de ciencias" e atual e necessaria, pois nos ajuda a perceber, professores e professoras, cada vez mais, que a tarefa de ensinar e tao complexa, como complexa e a realidade. E s6 tendo mais conhecimento e consciencia disso poderemos contribuir para que nossos alunos e alunas vejam melhor a tela do mundo da vida. SOBRE CHAMAS E CRISTAIS: A LINGUAGEM COTIDIANA, A LINGUAGEM CIENTIFICA E0 ENSINO DE CIENCIAS Maurivan Guntzel Ramos e licenciado em Quimica pela PUCRS e mestre em Educayao pela UFRGS. Eo professor do Instituto de Quimica e da Faculdade de Educayao da Pontificia Universidade Cat61ica do Rio Grande do Sui e atualmente e doutorando em Educayao - PUCRS, desenvolvendo traba- Iho de pesquisa relacionado il avaliayao institucional participativacom profes- sores de Quimica de ensino superior, sob a orientayao do Professor Dr. Roque Moraes. E.mail: mgramos@music.pucrs.br A linguagem talvez seja 0 mais importante instru- mento de trabalho que nos, professoras e professores, utilizamos na prc'itica cotidiana da sala de aula. Lidamos com a intera<;ao entre a lingua gem cientffica escolar e a lingua gem cotidiana do aluno de forma tao automc'itica e irrefletida que,as vezes, esquecemos-nos de que qualquer fato cientifico, pormaisobjetivo que seja, so adquiresig- nificado quando reconstrufdo no discurso cientffico esco- lar. A lingua gem cientifica escolar e a forma<;ao discursi- va, 0 registroa que estamos irremediavelmente ligados por for<;a da nossa profissao de professores e professor as. Como essa linguagem resignifica 0 mundo ao qual tive- mos acesso primeiramente por nossas experiencias e lin- guagens cotidianas? Estara essa lingua gem, aparentemen- te neutra, que constroi urn mundo asseptico, atemporal e sem sujeitos, contribuindo para construir novos universos para todos os cidadaos ou, ao contrario, para perpetuar as rela<;6es de poder em nossa sociedade? Sera essa lingua- gem incompatfvel com a lingua gem cotidiana? Sera essa

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MORTIMER, Eduardo Fleury. Sobre chamas e cristais: a linguagem cotidiana, a linguagem científica e o ensino de ciências. In: CHASSOT, Áttico; OLIVEIRA, Renato José de (Orgs.). Ciência, ética e cultura na educação. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1998. p. 99-118

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21 lo:s

dos conheGimentos ditos cientfficos e na compreensao dovfnculo desses conhecimentos com seu dia-a-dia.

Como professores e professoras, de que modo olhamos a'1ela" na sala de aula e na escola com nossos alunos?

A reflexao que 0 professor Eduardo Mortimer propoe atravesdo seu texto intitulado "Sobre chamas e cristais: a linguagem

cotidiana, a linguagem Gientffica eo ensino de ciencias" eatual e necessaria, pois nos ajuda a perceber, professores e

professoras, cada vez mais, que a tarefa de ensinar e taocomplexa, como complexa e a realidade. E s6 tendo mais

conhecimento e consciencia disso poderemos contribuir paraque nossos alunos e alunas vejam melhor a tela do mundo da

vida.

SOBRE CHAMAS E CRISTAIS:A LINGUAGEM COTIDIANA,

A LINGUAGEM CIENTIFICA E 0ENSINO DE CIENCIAS

Maurivan Guntzel Ramos e licenciado em Quimica pela PUCRS e •mestre em Educayao pela UFRGS. Eo professor do Instituto de Quimica e daFaculdade de Educayao da Pontificia Universidade Cat61ica do Rio Grande doSui e atualmente e doutorando em Educayao - PUCRS, desenvolvendo traba-Iho de pesquisa relacionado il avaliayao institucional participativa com profes-sores de Quimica de ensino superior, sob a orientayao do Professor Dr. RoqueMoraes. E.mail: [email protected]

A linguagem talvez seja 0 mais importante instru-mento de trabalho que nos, professoras e professores,utilizamos na prc'itica cotidiana da sala de aula. Lidamoscom a intera<;ao entre a lingua gem cientffica escolar e alingua gem cotidiana do aluno de forma tao automc'itica eirrefletida que, as vezes, esquecemos-nos de que qualquerfato cientifico, por mais objetivo que seja, so adquire sig-nificado quando reconstrufdo no discurso cientffico esco-lar.

A lingua gem cientifica escolar e a forma<;ao discursi-va, 0 registro a que estamos irremediavelmente ligadospor for<;ada nossa profissao de professores e professor as.Como essa linguagem resignifica 0 mundo ao qual tive-mos acesso primeiramente por nossas experiencias e lin-guagens cotidianas? Estara essa lingua gem, aparentemen-te neutra, que constroi urn mundo asseptico, atemporal esem sujeitos, contribuindo para construir novos universospara todos os cidadaos ou, ao contrario, para perpetuar asrela<;6es de poder em nossa sociedade? Sera essa lingua-gem incompatfvel com a lingua gem cotidiana? Sera essa

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linguagem neutra e atemporal acima do bem e do mal,com direito a ser livre de qualquer preocupac;ao etica?

Neste artigo, tentaremos apontar possfveis caminhospara a analise dessas questoes. Vamos comec;ar par exami-nar como certas noc;oes semelhantes, presentes em dife-rentes estudiosos - genero de discurso, registro, c6digo,lingua gem social - funcionam como mediadores entre 0uso da linguagem pelos indivfduos e 0 discurso do grupossociais a que estes indivfduos pertencem. Posteriormente,vamos discutir algumas caracterfsticas da linguagem cien-tifica e da lingua gem comum e verificar como essas carac-terfsticas podem ajudar a explicitar as dificuldades vivel1-ciadas por alunos e alunas nas salas de aula. Analisaremos,tambem, como 0 surgimento, neste fim de milenio, de umanova ciencia dos sistemas complexos tern forc;ado a lingua-gem cientffica a evoluir em novas direc;oes, reaproximan-do-se da linguagem cotidiana.

res entre 0 enunciado individual e as praticas sociais cole-tivas comuns a esses grupos e comunidades. Hallidaytrata dos diferentes registros que as diferentes comunida-des constroem para usar a linguagem em diferentes fun-c;oes, cada qual carregando suas pr6prias caracterfsticasgramaticais e semanticas. Bernstein estabelece que mesmonuma {mica atividade social, par exemplo a Escolarizac;aoBasica, ha diferenc;as adicionais nas caracterfsticas grama-ticais e semantic as que sac devido as diferentes formascomo cada classe social aprende a usar a lingua. Como 0sistema educacional reflete 0 dominie das classes mediase altas, as diferenc;as nos c6digos lingiifsticos levam aofracasso das classes pobres na escola e a sua permanencianos piores postos de trabalho e nas piores condic;oes devida da sociedade.

Esses diferentes auto res colocam em evidencia quecada grupo social tern suas pr6prias formac;oes discursi-vaSt seus pr6prios generos de discurso, em que os indivf-duos buscam seus enunciados. 0 discurso e, dessa forma,determinado e determinante das praticas sociais e naouma esfera de livre arbftrio de cada indivfduo. Nao toma-mos nossas falas dos dicionarios ou das gramaticas, masdas falas de outros indivfduos pertencentes ao mesmogrupo social. Nesse processo, os enunciados dos outrosvao sendo transformados e convertidos em nossos pr6-prios. Nossos enunciados sempre respondem a enuncia-dos anteriores e, de alguma forma, antecipam e preparamenunciados posteriores. Em cada esfera da vida social emque estamos envolvidos, usamos diferentes repert6rios deenunciados, diferentes registros, generos e c6digos.

A linguagem cientffica escolar e um desses registrosa que estamos irremediavelmente ligados por farc;a danossa profissao de professores e professoras. Por isso valea pena examinar mais de perto suas caracterfsticas e comoelas se relacionam a linguagem cotidiana, de modo aajudar a explicitar as dificuldades vivenciadas par alunosnas salas de aula.

A analise da lingua gem e de seu funcionamento empraticas discursivas concretas, entre os membros de umamesma comunidade, par exemplo os professores e profes-soras, ou entre pessoas de uma mesma classe social oufaixa eta ria, mostra que as pessoas nao constroem suasfalas a partir de unidades lingiifsticas tradicionais - pal a-vras e sentenc;as encontradas nos dicionarios -/ mas apartir de urn conjunto de enunciados pr6prios aquelegrupo. Bakhtin denominou generos de discurso a esse con-junto de enunciados tfpicos de determinado grupo social,os quais caracterizam as diferentes "vozes" ou lingua genssociais desses grupos. Outros lingiiistas e soci610gos, tra-tando do mesmo problema de como a linguagem se reIa-ciona com as praticas sociais dos diversos grupo e comu-nidades em uma sociedade, chegaram a tipos bastantesemelhantes de conceitos que funcionam como media do-

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Linguagem cientifica e linguagemcomum: a cristal e a chama

Segundo Prigogine, Premio Nobel de Quimica em1977 e urn dos pioneiros no estudo de caos e sistemascomplexos, a ciencia cLissica se livrou do tempo na maio-ria de suas descri<;6es e explica<;6es do mundo fisico. Essamorte do tempo vai se traduzir na cria<;ao da imagem douniverso como uma maquina descrita por urn conjuntoimutavel de leis universais. Nesse rel6gio harmonioso, 0

tempo nao existe. Atomos e eletrons nao tern idade, naotern hist6ria ou individualidade. E impossivel disting.uirentre os varios eletrons num Momo qualquer, como 0

Momo de oxigenio. Urn Momo nao conhece 0 tempo, naoconhece a irreversibilidade. Se ele e levado a urn estadoexcitado, por exemplo pela a<;ao de urn f6ton de luz, elerapidamente retorna ao estado original e qualquer "me-moria" desse processo e perdida.

As marcas dessa ciencia classica, atemporal e a-histo-rica, imprimiram-se em sua lingua gem, na sua nova ma-neira de construir esse novo mundo, imutavel. A lingua-gem cientffica tern, dessa forma, caracteristicas propriasque a distinguem da linguagem com urn. Essas caracteris-ticas nao foram inventadas em algum momenta determi-nado. Ao contrario, foram sendo estabelecidas ao longo dodesenvolvimento cientifico, como forma de registrar eampliar 0 conhecimento. Essas caracteristicas, muitas ve-zes, tornam a lingua gem cientifica estranha e dificil paraos alunos e alunas. Reconhecer essas diferen<;as implicaem admitir que a aprendizagem da ciencia e inseparavelda aprendizagem da linguagem cientffica.

Enquanto na linguagem comum predominam narra-tivas que relatam sequencias lineares de eventos, a lingua-gem cientffica congela os processos, transformando-os emgrupos nominais que SaG entao ligados por verbos queexprimem rela<;6es entre esses processos. A linguagemcientffica e, portanto, predominantemente estrutural en-

quanta que a linguagem cotidiana e linear, apresentandouma ordem sequencial que e estabelecida e mantida. Nalingua gem cientifica, 0 agente normalmente esta ausente,o que faz com que ela seja aparentemente descontextuali-zada, ocultando a perspectiva de urn narrador. Na lingua-gem cotidiana, 0 narrador esta sempre presente.

Para exemplificarmos essas distin<;6es, podemos to-mar urn exemplo de como uma mesma frase poderia serexpressa nurna e noutra linguagem. Deve-se observar quea tradu<;ao entre urn e outro tipo nem sempre e possivetpois as caracteristicas da lingua gem cientifica correspon-dem a uma forma diferenciada de se pensar ever 0 mundoque essa cultura construiu. Ao nos referirmos a como 0

aurnento de temperatura afeta a dissolu<;ao de sal de cozi-nha em agua no nosso cotidiano, normalmente falamos:quando colocamos sal em agua e aquecemos, conseguimos dis-solver uma maior quantidade do que em agua fria. Na lingua-gem cientifica, expressariamos esse mesmo fato de urnaforma diferente: 0 aumento de temperatura provoca um au-mento da solubilidade do sal. Note-se que, na primeira frase,o agente esta presente, os verb os designam a<;6esefetua-das por esse agente, e os fatos SaG apresentados nurnaordem sequencial que garante a linearidade do discurso.Ja na segunda frase, 0 agente desapareceu em consequen-cia da nominaliza<;ao dos processos. Dessa forma, as a<;6esantes designadas por verbos estao embutidas nos gruposnominais (aumento de temperatura e aumento da solubilidadedo sal). 0 verba (provoca) nao mais indica uma a<;ao,masuma rela<;ao entre os dois processos nominalizados.

A linguagem cotidiana e automatica e muito maisproxima da fala. As pessoas nao tern necessidade de esta-rem refletindo a todo 0 momenta sobre 0 que VaGdizer. Jaa lingua gem cientffica exige uma reflexao consciente noseu uso, e aproxima-se muito mais da linguagem escrita.A gramatica cotidiana e muito mais complexa e intrincadado que a gramatica cientffica, como detalharemos a seguir.No entanto, 0 processo de nominaliza<;ao aurnenta a den-

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sidade lexica da lingua gem cientifica, na qual quase todosos termos usados carregam significados interligadosnuma estrutura conceitual. A linguagem cotidiana apre-senta um mundo dinamico, em que as coisas estao sempreacontecendo, como numa chama ou numa onda. Ja nalinguagem cientifica, esses acontecimentos e processosforam congelados pelo processo de nominaliza<;ao, pois 0mais importante e coloca-los em estruturas, como numcristal ou numa partfcula. .

Vale destacar que Halliday & Martin (1993) referem-se ao processo de nominaliza<;ao como uma "metaforagramatical", na qual, no lugar da substitui<;ao de um nomepor outro, como na metafora ordinaria, ocorre a substitui-<;aode uma classe ou estrutura gramatical por outra. Ouseja, a linguagem cientifica substitui os processos, expres-sos normalmente por verbos, por grupos nominais."Quanto tempo uma rea<;ao quimica leva para completar-se", transforma-se, atraves da nominaliz('cao, em "rapidezde uma rea<;ao quimica". Isso pode constituir-se numadificuldade para 0 aluno, acostumado a designar seres ecoisas por nomes e processos por verbos. Ao usar a lingua-gem cientifica, ele come<;a a habitar urn estranho mundo,no qual os processos se transformaram em nomes ougrupos nomina is e os verbos nao expressam mais a<;6esesim rela<;6es.

De acordo com Halliday, a metafora gramatical naoe algo que foi inventado pelos cientistas em um momentadeterminado. Esse genero de discurso foi sendo construi-do ao longo do desenvolvimento da pr6pria ciencia pararesponder a uma necessidade do discurso cientifico deprogredir passo a passo, com urn movimento constante doque ja se conhece em dire<;ao a uma nova informa<;ao. Asduas partes ("0 que ja se conhece" e a "nova informa<;ao")tem que ser apresentadas de maneira que sua fun<;ao noargumento fique clara. A melhor maneira de faze-lo eagrupando essas duas partes numa linica frase. Para isso,as duas partes devem ser transformadas em nomes ou em

grupos nominais e 0 verba que se coloca entre elas devemostrar como a segunda parte ("nova informa<;ao") serelaciona com a primeira ("0 que ja se conhece").

Por exemplo, na frase:"0 citomoabsorve e emite energia unicamente em quanta,

ou unidades discretas. Cada absor~iio caracteriza uma tran-si~iio para um estado de maior energia e cada emissiiocaracteriza uma transi~iio para um estado de menor ener-gia"

No segundo periodo (grifado), cada frase consiste:1) Em uma parte "que ja se conhece", nominalizando 0

que havia sido dito antes:o Momo absorve energia ~ cada absor<;ao

o Momo emite energia ~ cada emissao2) Em uma parte que contem a "nova informar;ilo",

tambem nominalizada: a transi<;ao para urn estado demaior energia/menor energia.

3) Em uma rela<;ao entre essas duas partes, na formade um verba: caracteriza ja na lingua gem cotidiana, deacordo com Bruner (1991), os processos (a<;6es,eventos,process os mentais) se expressam por verbos; os partici-pantes (pessoas, animais, objetos concretos e abstratos)desses processos se expressam por nomes e substantivos;as circunstancias (tempo, lugar, modo, causa, condi<;ao) seexpressam por adverbios e 10cu<;6esadverbiais; e as reIa-<;6esentre os process os se expressam por conjun<;6es. Asdificuldades dos alunos em transitarem entre essas carac-teristicas da lingua gem cotidiana e aquelas descri tas paraa linguagem cientifica podem estar na origem de muitosdos problemas de aprendizagem das disciplinas cientifi-cas na Escola Basica.

Evidentemente que a lingua gem cientifica pode cau-sar estranheza ao aluno que entre em conta to com a cienciapela primeira vez. Na linguagem cotidiana, nomes saGusados para coisas, verb os para a<;6ese estados. Como emgrande parte das aulas de ciencias desse Brasil os fenome-nos nao saG trabalhados atraves de atividades experimen-

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tais, 0 aluno muitas vezes nao consegue reconhecer esseestranho mundo onde as coisas ja nao sao mais coisas e asa<;6esse transformaram em rela<;6es.

Uma outra caracterfstica da linguagem cientifica esua aparente neutralidade, assegurada por uma ausenciaaparente de sujeito, pel a presen<;a de uma "voz" universal,a-sujeitada. Nao colocamos cinco gotas de reagente nofrasco; adicionam-se cinco gotas. Nao misturamos quanti-dades iguais de reagentes; misturam-se essas quantida-des. Nao determinamos a massa da amostra; determina-sea massa. as relatos de experimentos, descri<;6es e defini-<;6espresentes nos livros didaticos carregam essa marcada neutralidade e da universalidade. Nos, sujeitos co-muns, nao temos voz na ciencia. Esse privilegio esta reser-vado a urn grupo seleto de grandes cientistas, esses sim,os unicos sujeitos com direito a palavra nas catedrais dosaber relatadas em muitos livros didMicos. Newton "des-cobriu" as leis da gravita<;ao universal, mas nos, merosmortais, nao temos 0 direito de misturarmos os reagentes.Esse recurso a voz passiva, analftica e sintetica e aindamais mandataria nos artigos cientificos. Este artigo, escritopredominantemente na primeira pessoa do plural paratentar compartilhar com voce, leitor ou leitora, essas refle-x6es sobre a lingua gem cientifica, dificilmente seria aceitoem revista cientffica de prestfgio intemacional, mesmo naarea de Educa<;ao em Ciencias. as editores e revisorescertamente recomendariam a transforma<;ao dessa vozativa em passiva.

Essa aparente neutralidade e ausencia de "voz" soma-se a nominaliza<;ao descrita anteriormente para dar urncarater universal e, consequentemente, superior a cienciaem rela<;ao as praticas e discursos cotidianos. Essas mes-mas caracterfsticas vao justificar a reprova<;ao e a exclusaodos "menos capazes", nao merecedores desse reino desabedoria e universalidade. Afinal, nossos alunos e alunasvivem num mundo real, povoado por coisas, objetos eseres que sao designados, na linguagem cotidiana, por

nomes. Esse mundo nao e estatico, estruturado e perfeita-mente relacionado, como querem as aulas de ciencias. Aocontrario, ele e dinamico, as vezes caotico; nele os verbosdesignam, na sua maior parte, a<;6es e estados. Nele asa<;6essao sempre realizadas por sujeitos reais, de carne eosso. Nao entender a ciencia significa, muitas vezes, arecusa implfcita em substituir esse mundo dinamico, im-previsfvel, intricado, mas ao mesmo tempo familiar, irre-fletido, gostoso, por um mundo estatico, atemporal, estru-turado, previsfvel, mas ao mesmo tempo estranho, mono-tono e sem atrativos. Valera a pena substituir a chama pelocristal, a onda pel a partfcula?

Esse discurso neutro e impessoal da ciencia come<;aa ser questionado num outro discurso, 0 pos-moderno,desse fim de milenio. A ciencia, atraves dos produtostecnologicos que possibilita, tern conferido aos pafses doprimeiro mundo, a frente da corrida cientifica e tecnologi-ca, urn enorme poder de construir e tambem de destruir.A enorme euforia que tomou conta do ocidente no pos-guerra, com 0 advento de produtos e tecnologias a servi<;oda maioria dos cidadaos do primeiro mundo e das elites eclasses medias, minoritarias, no terceiro mundo, vai aospoucos dando lugar a uma perplexidade e ceticismo anteaos en ormes problemas ambientais e desigualdades so-ciais que esse modelo gerou. Esse ceticismo da origem aurn amplo espectro de rea<;6es, que vao da nega<;ao abso-luta da racionalidade a recusa de compactuar com oshabitos de consumo geradores de toda essa crise social eambiental em myel planetario. A qufmica se toma a gran-de vila ambiental e os fabric antes anunciam alimentosnaturais, "sem produtos qufmicos."

Nesse processo, a sociedade come<;a a aprender acobrar da ciencia a sua cara, os seus sujeitos. As ciencias

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da natureza nao podem mais evitar 0 dialogo, entre si ecorn as ciencias humanas. Os cidadaos comuns passam acobrar 0 acesso a informa<;ao e a contestar a antes irrefuta-vel autoridade dos cientistas para determinar 0 que e 0

melhor para 0 futuro de cada comunidade.o ensino das ciencias que praticarnos ern nos so pais,

no entanto, esta ainda muito longe de ser atingido por essaonda p6s-moderna. Continuamos a ensinar os modeloscomo se fossem a realidade. Escrevemos equa<;6es quimi-cas nos quadros-negros como se fossem as pr6prias rea-<;6ese nao suas representa<;6es; desenhamos orbitais mo-leculares como se fossem reais, e nao modelos, cria<;6es denossas teorias. Enos escondemos atras da lingua gem cien-tffica, neutra e a-sujeitada, fria e atemporal, pretensamenteuniversal, para ensinarmos uma ciencia classica, na maio-ria dos casos ja super ad a historicamente, como a verdadeimutavel. Nao damos voz aos nossos alunos, nao escuta-mos como descrevem suas experiencias e seu mundo ernsua linguagem cotidiana, as vezes irrefletida, lacunar. Tra-tamos esse conhecimento corn desprezo, como algo infe-rior, que nao tern 0 direito de cruzar os umbrais do saberde nossas salas de aula.

Atraves desse ensino, perpetuamos as rela<;6es depoder ern nossa sociedade, excluimos aqueles que se recu-sam a entrar ern nosso universo discursivo. Entre os quetern sucesso, na maioria das vezes por ja possuirem essesc6digos e registros como urn bem cultural de sua classesocial, continuamos a ensinar uma ciencia neutra, livre dequalquer compromisso etico corn a solu<;ao dos problemasda humanidade. Uma ciencia "desinteressada" que, noentanto, produzira bens e val ores segundo a l6gica dospoderosos, perpetuando a domina<;ao, a explora<;ao semlimites do homem e do ambiente.

A chama ilumina 0 cristal:a linguagem dos sistemas complexos

o surgimento, neste fim de seculo, de novos paradig-mas nas ciencias da natureza, ligados a novos campos deinvestiga<;ao, aliado ao crescente numero de areas multi-disciplinares, situadas na interface dos campos cientificostradicionais, representa urn enorme desafio para se repen~sar a ciencia e seu ensino.

A introdu<;ao dos computadores ern todos os setoresda atividade human a representou, para a ciencia, a possi-bilidade revolucionaria de estudar sistemas complexosantes irredutfveis aos modelos simplificados que a cienciamoderna havia construido desde Galileu. Sabemos que aciencia classic a sempre trabalhou corn modelos que apre-sentam solu<;6es matematicas exatas apenas para sistemasmuito simples. Da mecanica newtoniana a mecanica quan-tica, todo sistema de mais de dois corpos nao encontrauma solu<;ao matematica exata. A ciencia sempre recorreuao artif:f~iode resolver os sistemas mais simples e, a partirdos modelos construidos para esses sistemas, fazer infe-rencias ern rela<;ao aos sistemas mais complexos. Essaestrategia impedia que se estudasse cientificamente, atra-yes de model os matematicos, muitos sistemas complexos.

Ja comentarnos que a ciencia classic a se livrou dotempo na maioria de suas descri<;6es e explica<;6es domundo fisico. Atomos e eletrons nao tern idade, nao ternhist6ria ou individualidade. E impossivel distinguir entreos varios eletrons num Momo qualquer, como 0Momo deoxigenio. Urn Momo nao conhece 0 tempo, nao conhece airreversibilidade. Nesse universo determinista e atempo-ral, 0 homem, de acordo corn Prigogine, nao se reconhece.Afinal, 0 tempo e a marca de nossas existencias comosistemas complexos. Nascemos, crescemos, envelhecemose morremos. A seta do tempo determina 0 sentido dodesenvolvimento da nossa existencia, da vida na Terra, dopr6prio planeta e de todo 0 universo. A grande maioria

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dos processos com que lidamos ao longo de nossas vidascarregam essas marcas da irreversibilidade no tempo. Urncopo de vidro cai ao solo e se espatifa em pequenos peda-<;:os;nunca assistiremos, na vida real, ao movimento con-tra.rio, dos peda<;:osse juntando para formar novamente 0

copo. Uma vela se queima, produzindo gases e fuligem,luz e calor. Nunca assistiremos ao movimento contrario,luz, calor, gas carbonico, agua e fuligem se juntando paraproduzir uma vela.

Essa flecha irreversivel do tempo foi farmulada pelaprimeira vez na ciencia atraves da Segunda Lei da Termo-dinamica: os sistemas fechados tendem para 0 estado deequilibrio, 0 estado com os valores mais provaveis paraqualquer propriedade macroscopica do sistema. De acor-do com a interpreta<;:ao de Boltzmann, 0 estado de equili-brio corresponde a uma dentre 0 maiar numero possivelde distribui<;:oes termodinamicamente equivalentes dasmoleculas. Qualquer outro estado sera menos provavelporque havera muito menos combina<;:oes molecularescorrespondentes a ele. 0 gas de botijao quando vaza, porexemplo, sempre se distribui por toda a cozinha, porqueesse e 0 estado que corresponde ao maiar nlimero possivelde distribui<;:oes termodinamicamente equivalentes dasmoleculas. Mesmo que fosse possivel ao gas se concentrarnurn dos cantos da cozinha (urn estado a que correspon-dem urn menar nlimero de distribui<;:oes equivalentes en-tre as moleculas), as colisoes ao acaso rapidamente 0 leva-riam de volta ao estado de equilibrio. 0 equilibrio e, dessaforma, 0 mais homogeneo, 0 mais simetrico, 0 menosdiverso, 0 estado demenor energia de urn sistema. Asmudan<;:as termodinamicas espontaneas movem do espe-cializado, do energetico, do diferenciado para 0 uniforme,o generico. De urn estado de ardem e organiza<;:ao - baixaentropia - para outro de total desardem e desorganiza<;:ao- alta entropia. Alem disso, os sistemas em equilibrio naotern nenhuma memoria das condi<;:oesiniciais, ou seja, nao

tern historia. Urn cristal e urn exemplo de sistema descritopela termodinamica de sistemas em equilibrio.

A maioria dos sistemas reais - sistemas complexos -san abertos e nao se comportam dessa maneira. Urn em-briao em desenvolvimento, par exemplo, passa de urnestado de menor para urn de maiar diferencia<;:ao, distan-ciando-se da homogeneidade. Esses sistemas existem emcondi<;:oesdistantes do equilibrio, nos quais 0 conceito dedistribui<;:ao mais provavel que e subjacente a interpreta-<;:aode Boltzmann para a Segunda Lei perde sua validade.As estruturas que existem em equilibrio, como os cristais,podem ser descritas como 0 resultado da compensa<;:aoestatistica da atividade de particulas microscopicas, comoos atomos e moleculas. Por defini<;:ao,eles san "inertes" emnivel global. Por essa razao, eles san tambem "imortais",pois uma vez que tenham sido farmados, eles podem serisolados e mantidos indefinidamente sem qualquer inte-ra<;:aocom 0 ambiente. As estruturas que existem em con-di<;:oesdrstantes do equilibrio, como uma celula, urn em-briao ou uma cidade, nao apenas san sistemas abertos, masexistem unicamente porque san abertos. Eles se aliment amdo fluxo de materia, informa<;:ao e energia que chega doambiente. Podemos isolar urn crista!, mas celulas, embrio-es e cidades morrem se far em isoladas do ambiente emque vivem. Eles formam uma parte integral do mundo doqual tiram seu sustento e nao podem ser separados dosfluxos que incessantemente transformam. No lugar dasestruturas de equilfbrio, descritas pela termodinamica clas-sica, os sistemas complexos sao, segundo Prigogine, estru-turas dissipativas.

o tempo meteorologico, as varia<;:oesnas popula<;:oesde especies animais e vegetais, os fenomenos de turbulen-cias em fluidos, a exemplo dos tornados, a difusao entreliquidos, uma floresta tropical san apenas alguns dosexemplos de sistemas complexos. 0 que torna esses siste-mas dinamicamente complexos nao e simplesmente 0

grande nlimero de variaveis necessarias para descreve-lo,

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mas como essas variaveis estao inter-relacionadas, comoelas dependem umas das outras. Quanto mais interconec-tadas elas estao, tanto em numero como em intensidadedas interconec~6es, mais dificil se torna preyer 0 futurodesse sistema.

Nosso planeta, como um sistema complexo, esta mui-to mais diferenciado e distante do equilibrio do que ha 4bilh6es de anos atras. A Terra, como todos outros exem-plos de sistemas complexos, sao sistemas abertos. Todoseles trocam, no minimo, energia e informa~ao com 0 am-biente. Muitos trocam tambem materia. A Terra recebe urnfluxo de energia do Sol, que e transformada pela vida eretorna ao espa~o como calor irradiado. Urn embriao hu-mana em desenvolvimento se alimenta de nutrientes einforma~6es do ambiente externo (a mae) e interno (0DNA), produzindo grande quantidade de residuos quimi-cos e de calor residual que devem ser eliminados. Emtodos esses sistemas abertos, os process os de transforma-~ao sao irreversiveis e geram entropia, ou seja, resultamem materia e energia mais pr6ximas do equilibrio, emmaior desordem. Mas essa entropia e eliminada do siste-ma e volta para 0 ambiente, possibilitando urn incrementolfquido na ordem do sistema as custas do ambiente. Numcerto sentido, nossas grandes metr6poles tambem saoexemplos de sistemas abertos, pois importam energia emateria prima do ambiente, exportando calor e residuosmateria is em grande quantidade. Neste processo aumentaa ordem na ocupa~ao do espa~o, principalmente para aselites e classes medias - vias de circula~ao, moradias orga-nizadas, espa~os comerciais cada vez mais assepticos - ascustas da desordem ambiental, da polui~ao e dos efeitosimprevisiveis no clima.

A maioria desses sistemas complexos apresentamtambem comportamento nao-linear. Isso significa que urnaumento, digamos, de 20% numa determinada variavel,por exemplo, na concentra~ao de substancias numa rea~aoautocatalisada, provoca urn aumento maior que 20% na

concentra~ao de outras substancias. Esses sistemas nao-li-neares nao permitiam 0 tratamento matematico exato desua evolu~ao no tempo. Por isso ficavam, na maioria dasvezes, a margem da investiga~ao cientffica. Com a entradados computadores nos laborat6rios de pesquisa, essesfenomenos come~aram a ser estudados, atraves da simu-la~ao de sistemas de comportamento nao-linear e do tra-tamento numerico desses tipos de equa~ao.

o estudo desses sistemas complexos tern provocadouma revol u~ao na ciencia deste final de seculo. Lado a ladocom essa rev,olu~ao podera estar nascendo uma nova lin-guagem. A linguagem cientffica, com processos congela-dos sob a forma de nomes ou grupos nominais, formandoestruturas conceituais atraves de verbos de rela~6es, vaitornando-se insuficiente para descrever toda essa classede sistemas complexos. Alem disso, nao e mais possivelexcluir 0 homem como sujeito de certos sistemas comple-xos. Os problemas ambientais gerados pelas grandes con-centra~6es urbanas tern 0 homem cada vez mais comosujeito desse processo e, ao mesmo tempo, 0 u.nico capazde ser sujeito de uma nova tecnologia, mais limpa, maisharmoniosa e menos entr6pica para com a natureza amea-

·~ada.Tudo isso leva a ciencia a uma rota de reencontro com

os val ores e a lingua gem da vida cotidiana. A linguagemcientffica nominalizada nao e a unica forma de descrevera natureza, estrutural, estatica, imutavel. A lingua gem dovir-a-ser das praticas cotidianas, dos processos e nao so-mente dos produtos, da chama e nao somente dos cristais,e necessaria para complementar a visao cientffica classica,ate entao pretensiosamente a mais poderosa e mesmo aunica forma correta de descrever 0 mundo. No entanto,essa descri~ao tern se revelado cada vez mais incompleta,mais parcial. Uma descri~ao mais adequada da realidadedevera dar-se segundo a mesma ideia de complementari-dade de Neils Bohr. Uma unica forma de discurso, urnunico registro, mesmo que seja 0 registro cientffico, abarca

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apenas uma parte da realidade. Para uma visao menosfragmentada e mais completa dessa realidade, e necessariorecorrer a outras formas de discurso, a outros registros.Nestes se incluem nao s6 as formas discursivas dinamicasda nova ciencia dos sistemas complexos, mas tambem asformas discursivas dinamicas da linguagem cotidiana.Nao podemos sob reviver sem essa lingua gem cotidiana.Sem ela, nosso mundo real se volatilizaria, nossas a<;:5escotidianas automaticas e irrefletidas se perderiam na com-plexidade e alto custo cognitivo do pensamento critico ecientifico. 0 mundo das rela<;:5eshumanas nao se constituiapenas de a<;:5escrfticas e refletidas, de pensamento cien-tifico e sistematizado. 0 fluxo dinamico e assistematico davida cotidiana, impresso em nossa lingua gem comum,tambem e parte dessa soma de descri<;:5escomplementaresdo mundo fisico e social.

Talvez a grande responsavel por esse estado de coisasseja a ausencia de dialogo entre a lingua gem cientifica e alinguagem cotidiana, entre a realidade criada pela cienciae a realidade da vida cotidiana, entre a teoria cientifica e apratica dos fenomenos, tanto os de laborat6rios quanto osdo dia-a-dia, entre os principios cientificos e os contextossociais e tecnol6gicos em que eles se materializam.

Bakhtin diz que todo entendimento e dial6gico.Quando urn professor transmite as descri<;:5ese explica-<;:5escientificas na sala de aula, 0 trabalho do allillo naoconsiste somente em decodifica-las. Se 0 aluno esta apren-dendo essas explica<;:5es,ele ainda nao possui os c6digosnecessarios para decifrar a mensa gem do professor. 0modelo de transmissao-recep<;:ao que esta sendo usado,mesmo que inconscientemente, pelo professor ou pelaprofessora, nao e suficiente para explicar 0 que ocorre. 0aluno s6 entende 0 novo significado que 0 professor eprofessora estao enunciando ao dialogar com ele, ao car-rega-lo com suas pr6prias palavras, seus pr6prios signifi-cados. Quanto maior for 0 numero de contrapalavras, de"respostas" que 0 enunciado do professor e professoraproduzir no aluno, mais profundo sera 0 seu entendimen-to.

Esse "dialogo" sempre ocorrera na sala de aula, mes-mo que nao haja espa<;:opara sua explicita<;:ao,mesmo queele ocorra apenas na mente do aluno. Essa e uma caracte-ristica inevitavel da natureza dial6gica do entendimento.Como a linguagem cientifica tern uma natureza bastantediferente da linguagem cotidiana, a ausencia de explicita-<;:aodesse dialogo pode levar 0 aluno a produzir umaamalgama indiferenciada entre conceitos cientificos e co-tidianos. Transformar a prMica de sala de aula numaprMica dial6gica significa dar voz aos alunos e alunas, naoapenas para que reproduzam as "respostas certas" doprofessor ou da professora, mas para que expressem suapr6pria visao de mundo, sua pr6pria "voz", no sentidoBakhtiniano do termo. Como a lingua gem cientifica esco-

Chamas e cristais:por urn ensino de Ciencias dia16gico

o ensino de ciencias, de uma maneira geral, ternrefor<;:adoa visao da ciencia como algo estatico, como urnconjunto de verdades imutaveis, de estruturas conceituaiscongeladas no tempo. A pratica de urn ensino sem nenhu-ma rela<;:aocom os contextos hist6ricos, socia is e tecno16-gicos em que a ciencia e construida e aplicada, a ausenciade fenomenos que possam mostrar a natureza das cons-tru<;:5este6ricas e dos modelos cientificos como constru-<;:5esmatematicas e discursivas para interpreta<;:ao e des-cri<;:aode uma realidade muito mais complexa, tudo issotorna a ciencia escolar algo desinteressante e sem sentidoppa a grande maioria dos estudantes. Ao fracassarem nasdisciplinas de fisica, quimica e biologia na Escola Media,os alunos internalizam a incapacidade e 0 discurso de quea ciencia e para uns poucos iluminados.

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lar e a linguagem cotidiana representam diferentes regis-tros, correspondentes a diferentes grupos sociais, e funda-mental que 0 aluno perceba que essa diferenc;a nao serestringe a urn vocabulario tecnico, presente nurna lingua-gem e ausente na outra, mas se traduz em formas radical-mente diferentes de construir a realidade discursivamen-te.

Trazer a linguagem cotidiana para a sala de aula,atraves da voz do aluno ou aluna, nao com 0 objetivo dedestrui-la atraves da lingua gem cientifica, mais "podero-sail, mas para mostrar que essas duas formas de conhecero mundo sao complementares, abre a possibilidade de queo aluno ou aluna entendem que qualquer forma de conhe-cimento e dinamica e ao mesmo tempo parcial. A medidaque 0 aluno e a aluna tomam consciencia de seu perfilconceitual, mesmo que inicialmente esse perfil contenhaapenas urnas poucas formas diferenciadas de ver e cons-truir 0 mundo discursivamente, eles estarao aptos a per-ceber a dinamica do conhecimento e admitirem uma dife-renciac;ao ainda maior desse perfil no futuro, com a apren-dizagem de conceitos mais sofisticados. Se 0 aluno e aaluna aprenderem que a descric;ao cientifica do calor comoenergia, proporcional a diferenc;a de temperatura, e com-plementar a sua ideia cotidiana de calor como substancia,proporcional a temperatura, ele estara reconhecendo aexistencia de noc;6es complementares que constituem,nesse momento, seu perfil para 0 conceito de calor. Se asnoc;6es sao complementares, existem contextos em queuma das ideias e mais apropriadamente aplicavel. 0 con-junto desses contextos diferenciados, que constituem arealidade em seus multiplos niveis, s6 pode ser entendidoatraves dessa perspectiva complementar. Afinal, chegarnurna loja e pedir urn blusa de la bem quente continuaraa ser mais apropriado do que pedir urn agasalho feito deurn born isolante termico que impec;a que 0 corpo troquecalor com 0 ambiente. Por outro lado, se sabemos porqueesse II quente" da la nao significa que ela possa ser usada

para esquentar urn cafezinho, estamos expressando aconsciencia desse perfil conceitual de calor, usando asideias cientificas e cotidianas nurna perspectiva de com-plementaridade.

Finalmente, implementar uma perspectiva dial6gicaem sala de aula nao significa apenas dar "voz" ao aluno ea aluna. Significa, tambem, contemplar as vozes da lingua-gem cotidiana e dos contextos sociais e tecnol6gicos ondea ciencia se materializa, na construc;ao do discurso cientl-fico escolar de sala de aula. Vma aula expositiva ou urntexto tambem podem ser profundamente dial6gicos, des-de que explicitamente contemplem essas outras vozes quenao apenas as da linguagem cientifica. Essa perspectivatambem se aplica a atividade experimental, que pode,dessa maneira, ser caracterizada como urn dialogo entreteoria e pratica. Por fim, essa perspectiva deve incentivarao aluno e a aluna a buscarem na sua comunidade, nosmeios de informac;ao, nas indus trias e nas atividades pro-dutivas em geral, vozes para alimentar esse constantedialogo da sala de aula, entre as varias linguagens dosdiferentes grupos sociais e a linguagem cientifica escolar.

Atraves do dialogo, a chama podera dissolver a rigi-dez do cristal sem destrui-lo. Infiltrando-se em seus inters-ticios como luz e movimento, projetara as imagens de umanova sociedade, mais justa e mais pr6xima da natureza.

Este texto se inspira em trabalhos de Mikhail Bakhtin, Ilya Prigogine,Michael Halliday e Jay Lemke, alem de alguns dos meus pr6prios trabalhos.

Bakhtin revolucionou a lingliistica e os estudos literarios com suas no~6esde dialogia, linguagem social e generos de discurso. Ao mostrar que a lingliisticaestruturalista nao dava conta de explicar como as diferentes esferas da atividadehumana produziam diferentes linguagens sociais, ele criou a teoria da enuncia-~ao, em que as unidades de analise deixam de ser as palavras e as frases e passama ser os enunciados completos. Bakhtin teve varios de seus trabalhos e de seuscolaboradores traduzidos para 0 portugues. Este texto se inspira particularmen-

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te no seu EsWica da Cria~ao Verbal (Sao Paulo: Martins Fontes, 1992) e ernMarxismo e Filosofia da Linguagem, de V. . Voloshinov (sao Paulo: Hucitec, 1981).

nya Prigogine, ganhador do premio Nobel de Quirnica ern 1977 pelo seutrabalho ern estruturas dissipativas, publicou, junto corn Isabelle Stengers, 0

livro La nouvelle alliance, traduzido e publicado no Brasil pela Editora da UnB,Brasilia, como A nova alian~a. Nesse livro, Prigogine se associa a quirnica e afil6sofa Isabelle Stengers para trac;ar urn belo panorama da crise da cienciacJassica e do surgimento da nova ciencia dos sistemas complexos.

Michael A. K. Halliday e urn lingliista britanico de grande expressao, queestudou como as diferentes esferas da vida social caracterizam diferentes regis-!ros, corn diferentes caracterfsticas semanticas e gramaticais. Halliday publicouern 1993, junto corn James R. Martin, uma colec;ao de ensaios intitulada WritingScience: literacy and discursive power (Pittsburgh: University of Pittsburgh Press),fonte inspiradora de muito 0 que foi escrito neste texto.

Jay L. Lemke e flsico e professor do Departamento de Educac;ao da Univer-sidade de New York. E autor de Talking Science: language, learning and values(Norwood, N], Ablex Publishing, 1990), 0 qual analisa a linguagem das salas deaula de ciencias sob 0 ponto de vista da teoria semi6tica social, e de TextualPolitics: discourse and social dynamics (London, Taylor & Francis, 1995), 0 qualtenta estabelecer as bases de uma teoria social para analise das politicas textuais.

Maria Quiroga Amoroso Anastacio dti aoseu texto a titulo de um cltissico entre

professores e professoras, Matemcitica: aarte de resolver problemas?, para

mostrar-nos quanta Educat;iiomatematica e os problemas /Ida vida

real", de Gelsa Knijnik, discute a temtiticada resolw;ao de problemas e as processos de

avaliafaO.