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SOBRE A REPRODUÇÃO DO NÃO SABER
RESUMO: Este estudo tem como ponto de partida a pesquisa “As classes populares
chegam à universidade: perfil e representações sociais de alunos ingressantes no curso de Pedagogia de uma universidade privada” (FALSARELLA, ARTES e REIS) apresentada no 25º Simpósio Brasileiro e 2º Congresso Ibero-Americano sobre Política e Administração da Educação, realizado pela Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae) em 2011. Seu objetivo é ampliar a discussão sobre os níveis defasados de habilidades e conhecimentos observados na produção escrita desses alunos, aspecto não desenvolvido na pesquisa originária. Levanta a problemática relacionada às possíveis consequências dessa situação no desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo na formação do aluno e à sua futura atuação como docente. Tem como principais referências teóricas THEREZO (2007), BOURDIEU (2002) e CERTEAU (2001). Apresenta como conclusões: a) alunos das camadas populares, que passaram a ter acesso ao ensino superior em função das políticas públicas implantadas a partir dos anos 90, oriundos da própria escola pública onde atuarão, carregam deficiências de formação do Ensino Fundamental e do Ensino Médio; b) suprir esses hiatos é fundamental para que se quebre o círculo vicioso da escola de baixa qualidade para alunos pobres; c) os docentes do curso de Pedagogia buscam soluções paliativas, mas sem apoio institucional, haja vista a mercantilização da educação; d) se o objetivo é, de fato, melhorar a qualificação dos que atuam na escola pública, há necessidade de mudanças integradas em todo o cursus escolar percorrido pelo aluno e de estudos que busquem compreender o que faz o aluno com os conhecimentos que desenvolve na universidade. PALAVRAS-CHAVES: curso de Pedagogia; alunos ingressantes; dificuldades de escrita; formação e atuação docente; mercantilização da educação.
O problema
As políticas educacionais propostas a partir dos anos 90 levaram a mudanças no
alunado que busca a universidade e à consequente necessidade de estudos que delineiem
seu perfil e o papel das instituições na sua formação. O presente texto, que se alinha a
esta questão, tem como ponto de partida a pesquisa “As classes populares chegam à
Universidade: perfil e representações sociais de alunos ingressantes no curso de
Pedagogia de uma universidade privada” (FALSARELLA, ARTES e REIS / Anpae, 2011),
explorando um aspecto que, na investigação originária, foi apenas sinalizado.
Objetivo do trabalho
Discutir a questão dos níveis defasados de habilidades e conhecimentos prévios
observados na produção escrita de alunos ingressantes no curso de Pedagogia de uma
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Ana Maria Falsarella
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universidade privada, níveis estes que repercutem na aprendizagem e aproveitamento
desses alunos no ensino superior.
O ponto de partida
A pesquisa “As classes populares chegam à Universidade” foi realizada por meio
de questionário respondido pelos alunos do 1º ano do curso de Pedagogia do Instituto de
Educação da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban-SP)1, campus Osasco, no
início do segundo semestre de 2010, com o objetivo de delinear as características
socioeconômicas, motivações quanto à escolha do curso, aspirações profissionais, hábitos
e habilidades de estudo e representações sociais sobre a educação.
Partindo-se da prévia constatação de que a maioria quase absoluta dos alunos de
Pedagogia é do sexo feminino2, a análise das respostas permitiu concluir que grande parte
deles, ao ingressar, apresenta peculiaridades que os diferenciam do calouro típico, tais
como faixa etária maior que a esperada para o ingresso no ensino superior e menor poder
aquisitivo; além disso, associam o curso à possibilidade de ascensão social. A idealização
da educação como base de quase tudo (da cidadania, da formação humana, da nação, da
sociedade, do mundo, do futuro...) descortina uma representação salvacionista e acrítica,
além de uma consciência ingênua sobre a educação, que pode impedir ao sujeito
compreender as condições que determinam seu próprio modo de pensar3. As conclusões
confirmaram estudos anteriores, tais como os de GATTI, TARTUCE, NUNES e ALMEIDA
(2009) e GATTI e BARRETO (2009), inclusive quanto às dificuldades que segmentos
sociais desfavorecidos e oriundos de escolas públicas apresentam em função de
escolarização anterior precária e consequentes lacunas de formação.
Especialmente na educação, a possibilidade de inserção no mercado de trabalho
combinada à baixa atratividade da remuneração oferecida constitui fator que influencia
fortemente o perfil de quem opta pela docência. Muitos estudantes escolhem o curso de
Pedagogia e outros relacionados à docência porque vislumbram a possibilidade de
ingresso no serviço público, de estabilidade profissional e de ascensão social (GATTI e
BARRETO, 2009).
Mudanças no alunado
Haja vista a óbvia reprodução da má escolarização das classes populares no Brasil
e a importância da formação de futuros professores que têm a escola pública como
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destino prioritário, no presente estudo destacamos um ponto que não foi explorado na
pesquisa precedente por não fazer parte de seus objetivos: a análise ortográfica e sintática
da produção escrita dos alunos. De fato, os questionários permitiram a confirmação de um
problema (dentre muitos outros) que já vinha sendo detectado pelos docentes do curso de
Pedagogia da Uniban em atividades cotidianas: a dificuldade de redação e escrita em
aspectos de ortografia e sintaxe4. Em outras palavras: explora-se aqui o que não foi
perguntado na investigação inicial, mas emergiu como um dado relevante e preocupante.
De antemão, importa esclarecer que não pretendemos adentrar no debate sobre
preconceito linguístico versus norma padrão. Partimos do pressuposto de que todo
cidadão tem direito a ser respeitado em seu modo de se expressar, bem como a aprender o
português culto e a diferenciar sua utilização em função de situações sociais pertinentes.
Também, por não sermos da área, não pretendemos nos envolver no debate sobre as
diversas correntes linguísticas e suas concepções. De qualquer forma, entendemos como
GERALDI (2001/2002/2003/2004), que a escrita, sem a reflexão linguística simultânea à
leitura, é mera produção mecânica e artificial. Ao produzir um texto sem sentido, o aluno
perde a oportunidade satisfazer sua necessidade de comunicação, de expressar sua
subjetividade e sua compreensão de mundo por meio do registro de suas vivências e
reflexões. Entendemos também, como WEISZ (2003), que aprender e aperfeiçoar-se
permanentemente requer do aluno uma bagagem acadêmico-cultural básica de formação
geral em que conhecimentos de origem escolar se articulam a conhecimentos culturais de
origem social.
O que trazemos à baila são as possíveis consequências de uma escolarização
básica deficitária, quaisquer que sejam métodos e processos envolvidos, na formação de
futuros professores que atuarão na escola pública.
No que tange à ortografia, como destaca WEISZ (2003), depois que um estudante
compreendeu o sistema alfabético de escrita, é necessário que o professor intervenha na
questão ortográfica, invista nesta aprendizagem, considerando a melhor forma de fazê-lo.
“É importante que o professor tenha claro que depois de um tempo de escolaridade certos
tipos de erros são inaceitáveis” (p.89). Alguns erros “inaceitáveis”, no entanto ocorrem
regularmente entre os estudantes da Pedagogia conforme foi observado nas respostas
dadas aos questionários, como nos exemplos abaixo (grifos nossos):
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Espero exercer a profisão / profição. Assima de tudo ezecer a Profissão de professora. Eu guero esta em uma classe dando aulas para as crianças. Trabalhar no segimento que escolhi. Aprender na teoria e na prática como lessionar em uma escola. Espero superar minhas espectativas. A educação é importante para primoriar os conhecimentos obtidos e passar a outra
pessoa. A educação é importante para que a sociedade venha (a) ter mais conciência com
seus valores.
Além desses, observa-se confusões e inseguranças (em que um mesmo aluno ora
escreve de uma forma, ora de outra) no uso de palavras e expressões do vocabulário
cotidiano corriqueiro, como por exemplo, entre mas/mais, traz/atrás, lidar/lhe dar,
esta/está/estar, dentre outras.
No que tange à sintaxe5, para fazermos a análise das respostas dadas pelos alunos
aos questionários, tomamos como base o texto “Sintaxe da frase: problemas de
construção” (THEREZO, 2007, cap.7, p.133-152). Neste capítulo, a autora explica que a
frase é a expressão de um pensamento completo, pode conter uma ou mais orações e
implica na noção de pontuação. Para ela:
A freqüência com que surgem essas falhas de redação parece dever-se à confusão entre os conceitos de frase (= pensamento completo) e o de oração (sujeito + verbo + complementos). Parece dever-se, também, ao desconhecimento das regras de pontuação, o que tem sido evidenciado pela dificuldade com que os estudantes fazem as pausas breves e longas na leitura em voz alta, com prejuízos para a melodia da frase, que tanto auxilia a atribuição de sentidos. (THEREZO, 2007, p.134)
Com base em sua experiência na docência de Leitura e Produção de textos em
Língua Portuguesa (curso de Letras / Pontifícia Universidade Católica de Campinas –
PUC-Campinas), a autora apresenta como falhas mais comuns encontradas na escrita de
estudantes universitários: frases fragmentadas, incompletas ou emendadas; falta de
paralelismo gramatical e semântico; simplificação nas correlações de tempos verbais;
insegurança no uso da alternativa ou; dificuldades com o uso do referente; mau uso do
onde; verbos de regências diferentes com o mesmo complemento e ambiguidade (que
abarca: desordem na colocação das palavras, má posição do adjunto adverbial na frase;
dificuldade com o uso do pronome relativo e ausência de sujeito expresso para o verbo no
infinitivo, gerúndio ou particípio passado). Destas, selecionamos algumas categorias para
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ilustrar como de fato tais falhas ocorrem na escrita dos alunos do curso de Pedagogia da
Uniban (são nossos os comentários e complementações entre os colchetes):
1. Frases fragmentadas, incompletas ou emendadas: o uso inadequado da pontuação é
responsável por sérias falhas de redação. Quando isso acontece, há elaboração de
frases incompletas, de fragmentos soltos ou o encadeamento de duas ou mais frases
sem nenhuma pontuação. Exemplos:
A educação é importante para aprimorar os conhecimentos obtidos. Passar a outra
pessoa.
[O que pretende fazer com o diploma?] Antes de tudo, pegar o diploma, espero já estar
trabalhando na área como estagiária.
[A educação é importante] para formar novas ideias de cidadania e a pessoa lutar por
seus direitos.
[Quando concluir o curso pretendo] correr atrás de aulas e uma linda carreira sempre
com crianças.
2. Falta de paralelismo gramatical e semântico: na frase, as orações devem estruturar-se
sintaticamente e conter as mesmas categorias gramaticais. A ausência de paralelismo
gramatical atinge a coesão enquanto a ausência de paralelismo semântico atinge a
coerência, ambas prejudiciais ao sentido da frase. Exemplos:
[Espero] compreender os objetivos da profissão e que eu possa dar o melhor.
Quero sair daqui não sabendo tudo, pois com o tempo eu aprendo, mas o mais
importante é que quero aprender.
3. Simplificação [e uso inadequado] nas correlações de tempos [e modos] verbais:
decorre principalmente por influência da oralidade, que é, por si, simplificadora. [Quando me formar] espero já esta trabalhando na área.
4. Dificuldades com o uso do referente: “referente” é o ser do qual se fala e uma falha
muito comum na escrita dos alunos é a perda desse referente. Exemplo:
[Quando me formar pretendo] ensinar, mostrar a ela [quem?] que os conteúdos estão
diante de seus olhos e que vale a pena estudar.
5. Mau uso do onde: o uso do termo onde só faz sentido para indicar lugar, não para
outras situações, como no exemplo abaixo:
[Pretendo] arrumar um emprego melhor onde seja mais valorizada.
6. Frases ambíguas [e também vagas e sem sentido]: uma frase é ambígua quando
permite mais que uma interpretação, como nos exemplos abaixo. [Com o diploma pretendo] trabalhar em todas as áreas possíveis na educação, pois meu
objetivo não é ser professor.
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[A educação] É importante em todos os sentidos.
[A educação é importante] para aprender coisas novas desde pequenos.
[A educação é importante] para mudar a visão do professor hoje no Brasil [do
professor? que se tem sobre o professor?]
Papel das Instituições de Ensino Superior (IES)
A partir de fins do século XX houve grande ampliação de vagas no ensino
superior no Brasil, principalmente em faculdades e universidades privadas, vulgarmente
apontadas como de “segunda linha”, inclusive em função de programas federais de
financiamento estudantil (Programa Universidade para Todos – Prouni e Fundo de
Financiamento Estudantil – Fies). Assim, uma parcela da população que não tinha acesso
a instituições públicas, por limitações em sua formação básica, e a instituições privadas
de alto custo, por limitações econômicas, passou a ter acesso a este nível de
escolarização.
Se de um lado este fato é visto como positivo por ampliar o campo social de
acesso ao curso superior, de outro recebe críticas acirradas, em especial quanto ao modo
como é efetivado, uma vez que atenderia mais a uma visão mercantil de privatização
deste nível de ensino, com desresponsabilização por parte do Estado, do que a
verdadeiros objetivos educacionais de formação para a emancipação humana e de
democratização da educação6.
Na busca de explicações teóricas
Na busca de explicação, podemos recorrer ao texto de BOURDIEU (2002) “Os
incluídos do interior”, em que ele se refere à crise provocada pela entrada em cena de
categorias sociais que, antes dos anos 50 (século XX, França), não ingressavam
automaticamente no “sixième”7. Mesmo com acesso e permanência no sistema escolar, os
recém-chegados, oriundos das camadas mais desfavorecidas da população, recebem ao
final do curso diplomas desvalorizados.
Para BOURDIEU não se pode garantir o acesso aos diferentes níveis do sistema
escolar a alunos oriundos de famílias mais desprovidas econômica e culturalmente sem
modificar o valor simbólico e econômico dos diplomas. É o que ele chama de “fenômeno
de desvalorização dos diplomas” (p.221), decorrente da multiplicação de diplomas e de
seus detentores. Isso porque, na sociedade capitalista e classista, na verdade, as
instituições que conduzem às posições de poder econômico e político continuam
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exclusivas e o sistema de ensino, aparentemente aberto a todos, continua reservado a
poucos. Assim, a escola continua excluindo, mas agora de forma contínua, em todos os
níveis do cursus escolar. Tudo isso guarda estreita relação com uma contradição
fundamental do mundo econômico-social atual: uma ordem que tende cada vez mais a
dar tudo a todos (como o consumo de bens materiais, simbólicos e políticos), mas que,
através da aparência, do simulacro, da imitação, reserva para poucos a posse real e
legítima de bens exclusivos.
Podemos estabelecer um paralelo entre o que propõe BOURDIEU e o que acontece
no Brasil, onde também as crianças e adolescentes das classes populares passaram a ter
maior chance de cursar os ensinos fundamental e médio e de receber a certificação
(mesmo que esvaziada, pois sem os correspondentes conhecimentos) que lhes dá direito
ao ensino superior. Considerando que o sistema escolar constitui um continuum, podemos
pensar que, ao portar o direito de acesso ao ensino superior a partir dos anos 90, as
camadas populares são relegadas, no entanto, a instituições pouco preocupadas com a
qualidade da educação e, consequentemente a posições profissionais e sociais
secundárias. Sem dúvida, a força dos argumentos de BOURDIEU sobre a natureza da
sociedade capitalista nos deixa uma sensação de falta de alternativas e de perspectivas de
mudanças com relação ao papel reprodutor de desigualdades sociais que tem o sistema
escolar.
Estudos da Nova Sociologia da Educação, como por exemplo os de GIROUX e
MCLAREN (1999), trazem, no entanto, uma visão menos unitária e monolítica da relação
entre escolarização e capitalismo. Sob sua ótica, a sociedade é percebida como um
agregado de posições não determinadas exclusivamente pelo aspecto econômico e a
escola, em particular, como uma instituição histórica e cultural, terreno de luta ideológica
e política. Os autores propõem a busca por uma teoria sociocultural que vislumbre a
possibilidade de emancipação de grupos subordinados por meio da transformação das
relações assimétricas de poder, que ofereça novos caminhos quanto ao papel da escola, o
que inexiste tanto nas teorias sociais de direita (a escola serve para reproduzir as
ideologias tecnocráticas e corporativistas características das sociedades dominantes),
quanto nas de esquerda (que não avança para além de uma linguagem da crítica que
amarra os educadores a uma situação de impotência). Assim, na educação, além das
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discussões sobre classe social e determinismo econômico, é preciso abordar a esfera
cultural, determinante poderosa da ação humana, uma vez que “mediadora e produtora de
subjetividades e discursos” (p.135).
Para análise da esfera cultural podemos nos valer da obra de CERTEAU (2001), que
destaca a importância de se resistir aos efeitos da análise exclusiva e obsessiva das
instituições sociais pelo viés da reprodução econômica, posto que é impossível reduzir o
funcionamento de uma sociedade a um tipo dominante de procedimentos. Para ele, a obra
de BOURDIEU tem o mérito de apontar a reprodução das hierarquias sociais, mas, como
não apresenta possibilidade de escolha, demonstra uma visão reducionista sobre a
submissão inconsciente das camadas populares à racionalidade socioeconômica
dominante.
Segundo CERTEAU (2001), com o liberalismo houve uma progressiva
compartimentalização dos tempos e dos lugares dentro de uma lógica disjuntiva de
especialização pelo e para o trabalho, tendo o indivíduo abstrato como unidade básica.
Nesse sistema, aprender a escrever é a prática fundamental que define a iniciação na
sociedade, ou seja, a formação do sujeito moderno na sociedade capitalista é
intrinsecamente escriturística.
O objeto das pesquisas deste autor é o homem ordinário, comum, anônimo,
personagem geral na multidão (a que ele chama de anti-herói: Cada um, Todo Mundo ou
Ninguém), enfim, o usuário (ou, para nós neste estudo, o universitário das camadas
populares), e o que ele faz com a produção racionalizada que lhe é oferecida pelo sistema
dominante (no nosso caso, o acesso ao ensino superior e o diploma). O autor procura uma
inversão de perspectiva deslocando a atenção do consumo dos produtos culturais,
supostamente passivo, para o uso que o consumidor faz deles, percebendo
microdiferenças onde outros só vêem obediência e uniformidade, e demonstrando grande
confiança na inteligência e na inventividade do homem comum. Aponta, assim, um
movimento de microrresistências que fundam microliberdades e desloca as fronteiras da
dominação sobre a multidão anônima. Para ele, há uma inversão e uma subversão pelos
mais fracos que, parecendo submeter-se e conformar-se, fazem funcionar a ordem
dominante “num outro registro” (p.18) dentro de sua tradição própria e da margem de
manobra possibilitada pelas diferentes conjunturas.
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Conclusão
(...) esses indígenas faziam das ações rituais, representações ou leis que lhes eram impostas outra coisa que não aquela que o conquistador julgava obter por elas. Os indígenas as subvertiam, não rejeitando-as diretamente ou modificando-as, mas pela sua maneira de usá-las para fins e em função de referências estranhas ao sistema do qual não podiam fugir. (CERTEAU, 2001, p.39) Tornar melhor a educação pública no Brasil depende de um conjunto interligado
de fatores, sendo um deles a formação adequada dos professores nos cursos de graduação.
Considerando a aprendizagem humana como um continuum, é óbvio que as habilidades e
conhecimentos adquiridos no nível superior têm como alicerce estruturas que se
formaram e consolidaram nos níveis anteriores de ensino. Na ausência de uma formação
inicial que promova junto ao futuro docente uma reflexão sobre seu papel e sobre o papel
da escola, a tendência é que ele, uma vez em exercício, reproduza o que e como aprendeu
quando era aluno do ensino básico.
De acordo com VAILANT (2007), é pequena a probabilidade de formar um bom
docente em nível superior se ele teve um ensino básico ruim. Então, há necessidade de
uma profunda e articulada reforma de todo sistema escolar convencional, processo que
demanda uma perspectiva de longo prazo. Segundo a autora, ainda que na formulação de
políticas se evoque o docente ideal, em sua aplicação não se adotam as medidas para
formá-lo8.
Entendemos que, caso não superadas, as fragilidades apresentadas pelos alunos
dificultarão a apropriação de conhecimentos teórico-práticos que o curso de Pedagogia
oferece, a formação da consciência crítica do futuro docente e o próprio desenvolvimento
da educação escolar no Brasil. Como destacam MARTÍNEZ e TACCA (2009), “o estudo de
processos de aprendizagem naquele nível [superior] tem extraordinária significação
devido às funções que os egressos das universidades assumem, e às posições que ocupam
na estrutura social do país, em geral, e no campo da educação em particular” (p.6).
Quaisquer que sejam os processos de aprendizagem escolar pelos quais passaram na
educação básica, seja em função de concepções equivocadas sobre o processo de
alfabetização e de intervenções inadequadas ou inexistentes por parte dos professores,
seja por recorrentes e já bem conhecidos problemas estruturais dos sistemas públicos
educacionais no Brasil, o fato é que os alunos chegam ao curso de Pedagogia carregando
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graves problemas relacionados à escrita.
Partindo do pressuposto de que todos têm direito à educação, inclusive à educação
superior, lidar com essa situação é bastante complicado. Sem dúvida, alguns professores
tentam soluções paliativas (cursos paralelos, geralmente, não remunerados, orientações
quanto a estratégias de escrita e leitura, exercícios extraclasses, apoio particular a alunos
com maiores dificuldades), que ficam na dependência de iniciativas docentes individuais
e da disponibilidade dos alunos (lembrando que a maioria trabalha para arcar com seus
estudos). No entanto, embora possamos observar avanços na aprendizagem dos alunos no
decorrer do curso, tais soluções terão caráter remediador enquanto não houver uma real
integração entre os diferentes níveis de ensino.
Sem dúvida, os alunos das classes populares que passaram a ter acesso ao ensino
superior oriundos da própria escola pública onde atuarão, carregam deficiências de
formação do ensino fundamental e do ensino médio. Se o objetivo é, de fato, melhorar a
qualificação dos que atuam na escola pública, suprir esses hiatos é fundamental para que
se quebre o círculo vicioso da escola de baixa qualidade para alunos pobres.
Sem portar a ilusão de que a situação mude em horizonte próximo e de que a
mercantilização da educação vá se exaurir, esperamos ter contribuído para aprofundar o
entendimento sobre os mecanismos que continuam operando na conformação das
desigualdades de escolarização entre as classes sociais no Brasil e sobre a
responsabilidade do ensino superior na sua perpetuação ou na sua superação.
No entanto, muitas pesquisas são ainda necessárias para sabermos o que os alunos
fazem com o que lhes é oferecido no curso de Pedagogia, com a percepção do que sabem
e do que precisam saber, o quanto estão dispostos a investir para colocar a ordem
dominante a seu próprio favor e a favor do avanço das classes populares na conquista de
direitos, a começar pela educação. Conforme CERTEAU (2001), é lastimável constatar o
quanto nos falta ainda compreender sobre os inúmeros artifícios desses admiráveis
obscuros heróis do efêmero. Face à injustiça na ordem das coisas, buscamos não perder a
esperança de pensar um espaço, utópico que seja, quanto à possibilidade de mudança.
Fechamos este trabalho com um trecho do texto “Aprender”, escrito por CECÍLIA
MEIRELES em 1932.
Assim, os rotineiros pacíficos, viciados na imobilidade das idéias, e os rotineiros
pretensiosos, impregnados da convicção de uma sabedoria insuperável, constituem duas
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fileiras imensas, entre as quais passam a custo, e com uma impressionante coragem, os
que se acostumaram a pôr sobre todas as coisas uma claridade sem enganos, e
conquistaram o gosto de atingir cada dia um ponto mais alto para o seu destino. Notas 1. Em meados de 2011, a Uniban foi vendida para Anhanguera Educacional e houve dispensa
em massa de funcionários e professores, o que vem causando grande polêmica entre esses e apreensão por parte dos alunos. Em seu portal (http://portal.anhanguera.com/preview/ web_aesa/portal_institucional/a-instituicao/), a Anhanguera se apresenta como uma companhia de capital aberto a partir de 2003, sendo que as associações a ela vinculadas (Associação Lemense de Educação e Cultura/Centro Universitário Anhanguera de Leme e Pirassununga, Faculdade Comunitária de Campinas, Faculdades Integradas de Valinhos, Instituto Jundiaiense de Educação e Cultura/Faculdade Politécnica de Jundiaí e Instituto de Ensino Superior Anhanguera/Faculdade Politécnica de Matão), todas de natureza não lucrativa (sic) formaram a base legal para a transformação de cada uma delas em sociedades educacionais nos moldes de sociedades anônimas, forma organizacional então pensada e preparada para a futura abertura de seu capital na Bolsa de Valores. Dessas sociedades anônimas surgiu a Anhanguera Educacional, hoje mantenedora de todas as demais unidades educacionais existentes. Assim, desde 2004, os novos cursos e unidades orgânicas ou adquiridas estão sob a mantença da instituição. Ainda, nos termos do citado portal, ao longo da sua trajetória, a Anhanguera Educacional vivenciou diversas fases de crescimento: a primeira, de expansão dos seus cursos superiores e da sua base física, até 1998; a segunda, de otimização e qualificação dos seus currículos e projetos pedagógicos, até 2003; e a terceira, de reorganização estrutural, administrativa e financeira, tendo esta última se dado com o ingresso de novos parceiros-sócios e investidores, sendo um desses a Uniban (grifos nossos).
2. Com essa predominância, depreendeu-se que ainda haja uma associação da profissão docente com as funções maternas e com a possibilidade de conciliar emprego, criação de filhos e outras atividades domésticas. Educação e a profissão docente estão situadas em um campo simbólico que abarca profissões voltadas à regulação e à disciplinarização da mente, do corpo e das relações sociais. Assim, para as mulheres, as expectativas tradicionais com relação a seu modo de ser (dóceis, afetivas), sobretudo para as que provêem de um meio social portador de uma cultura mais fechada, a profissão docente possibilita que se encaixem nesse perfil. (FALSARELLA, ARTES e REIS, 2011).
3. A esse respeito, VIEIRA PINTO (2000) estabelece a relação entre representação, discurso e o conceito de consciência, tido como “a representação mental da realidade exterior, do objeto,
do mundo, e a representação mental de si, do sujeito, autoconsciência” (p.59). Neste sentido, a
educação comporta duas concepções distintas: a ingênua e a crítica. A consciência ingênua exclui em sua representação a compreensão dos condicionantes exteriores que determinam o que e como pensa o sujeito. Dela decorre uma concepção ingênua da educação escolar, entendida como transmissão de conhecimentos ou transmissão da matéria. Já aquele que chega à consciência crítica entende-se como sujeito histórico inserido no tempo e no espaço onde vive. No âmbito da educação, possibilita uma compreensão ampla da totalidade das condições que cercam a ação pedagógica.
4. Referimo-nos a erros de ortografia, grafia ilegível, uso de palavras inexistentes, utilização de palavras de forma inadequada, falhas na pontuação e na concordância verbal e nominal, além de aspectos relacionados à coerência, coesão, argumentação e organização de ideias.
5. A sintaxe é a parte da gramática que estuda a disposição das palavras na frase e a das frases no discurso, bem como a relação lógica das frases entre si. Ao emitir uma mensagem verbal, o emissor procura transmitir um significado completo e compreensível. Para isso, as palavras são relacionadas e combinadas entre si. A sintaxe é um instrumento essencial para o
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manuseio satisfatório das múltiplas possibilidades que existem para combinar palavras e orações. Disponível em http://www.soportugues.com.br/secoes/sint/; acesso em 11.jan.2012.
6. De acordo com SOUZA (2011), a predominância de objetivos economicistas em detrimento dos pedagógicos tem permitido a progressiva formação de conglomerados educacionais – grandes empresas de capital aberto – verdadeiros oligopólios do setor educacional, com autorização do Ministério da Educação (MEC). O setor educacional privado, que deveria ter caráter complementar, acabou predominando ao se valer do abandono do Estado na oferta de vagas públicas para a formação superior. Tais empresas, submetidas às leis do mercado e ao máximo aproveitamento de recursos humanos e materiais, têm por objetivo, como quaisquer outras, o lucro. Assim, com a melhoria do poder aquisitivo das camadas populares, estas passaram a ser disputadas pelos conglomerados educacionais em função de seu potencial como mercado consumidor e não, como alardeado pela publicidade privada e pelo falacioso discurso oficial, pelo seu direito a uma educação de qualidade. Aumentar lucros significa diminuir despesas. A gestão dessas instituições privadas segue, obviamente, a lógica empresarial, ficando a cargo de executivos que prestam contas a bancos ou fundos de investimentos. As relações de trabalho são padronizadas, impessoais e competitivas, muito distantes de objetivos e práticas educacionais que há muito têm sido defendidos e efetivados por professores e pesquisadores, com consequências que comprometem o próprio sentido da educação, dentre as quais podemos citar: precarização do trabalho e perda de autonomia docente, desvalorização dos professores mais qualificados academicamente, redução de salários e sobrecarga de trabalho. Não se pode esquecer que, paralelamente a isso, ocorre um processo subliminar de formação da subjetividade dos docentes. À empresa interessa profissionais pouco críticos, ou melhor, “colaboradores pró-ativos, que tenham empreendedorismo” (destaque nosso), que se alienem de seu fazer pedagógico e que formem
alunos igualmente alienados e acríticos com relação às questões sociais. 7. No Brasil corresponderia ao exame de admissão ao ginásio ou à passagem do primário (1º ao
4º ano) para o ginasial (1ª a 4ª série). 8. A esse respeito leia-se: FALSARELLA, Ana Maria. Curso de Pedagogia: “a bola da vez” –
uma reflexão sobre a avaliação dos cursos de Pedagogia no Brasil. Poster apresentado no 25º Simpósio Brasileiro e 2º Congresso Ibero-Americano sobre Política e Administração da Educação, realizado pela Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), 26 a 30 abr.2011, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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classes populares chegam à Universidade: perfil e representações sociais de alunos
ingressantes no curso de Pedagogia de uma universidade privada. Comunicação apresentada no 25º Simpósio Brasileiro e 2º Congresso Ibero-Americano sobre Política e Administração da Educação, realizado pela Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), 26 a 30 abr.2011, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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