sobre a morte entre os katukina (pano)

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    desgarrado do corpo. Nos sonhos owero yushin desgarra-se também, à revelia da vontadeconsciente de seu portador. As coisas que se vêem nessas viagens ao outro mundo podem pressagiar eventos terrenos, como a chegada de visitas, doenças, acidentes e mortes.

    Os presságios da morte e a morteDois mitos narram como os Katukina perderam a oportunidade de conseguir a vida

    eterna. Em um deles, os homens perderam a chance de ter a "pedra" (shoko nane , "pedra- jenipapo") que lhes garantiria a vida eterna, que acabou ficando em poder das cobras, porisso elas trocam a pele e nunca morrem. No segundo mito, a morte já havia irrompido entreeles. Um dia, uma certa mulher perde seu filho, ela lamenta a dor de tê-lo perdido.Enquanto chorava apareceuKoka Notowani , um demiurgo, que, na tentativa de aplacar seusofrimento, retira o coração da criança e assopra sobre ele. A criança ressuscita, a mãeassusta-se com o feito do demiurgo e começa a chorar.Koka Notowani irrita-se com ochoro da mulher, pois tentou aliviar a sua dor, mas ela chora. Aborrecido, ele vai para o céue desiste de restabelecer a vida na terra, ressuscitando pessoas mortas. Duas oportunidadesde obterem a vida eterna e dois deslizes que privaram os Katukina de viveremilimitadamente.

    Aos Katukina restou apenas a perspectiva de uma "ressurreição celeste"ii, já que osmortos, ao adentrarem o céu, adquirem uma nova pele.Koka Notowani recepciona owero

    yushin quando chega ao céu, retira seu coração, assopra sobre ele e fá-lo eterno. Assim osmortos ganham uma nova vida e não sentem saudades.iii

    Há um conjunto de sonhos que pressagiam mortes, acidentes e doenças, de outras pessoas mas também do sonhador. Assim, se no sonho aparecer uma peça de roupaflutuando no rio, isso indica a morte de uma outra pessoa; se a roupa pertencer ao sonhador,está sugerindo a sua própria morte. É também presságio de morte o sonho em que umaárvore cai sobre alguém. A morte de crianças são indicadas em sonhos em que elas

    aparecem sendo engolidas por uma grande cobra. Sonhos eróticos com parceiros brancos pressagiam doenças venéreas.

    As experiências oníricas expostas rapidamente acima têm uma interpretação fixa,invariável. Outros sonhos, entretanto, são menos padronizados e podem ser livrementeinterpretados. O rezador Mani disse ter sonhado certa vez com labaredas de fogo debaixodas sepulturas, nas quais muitas pessoas queimavam. O sonho antecipava que muitas

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    pessoas adoeceriam e foi confirmado, segundo ele. Mampo também sonhou com sepulturas,mas ao invés do fogo ardendo, viu água borbulhando (tokoi , o mesmo verbo paraferver/cozinhar) da superfície da sepultura. A água que borbulhava era de um corpo emdecomposição, de alguém recém-sepultado, mas ela não conseguia reconhecê-lo. É dignode nota que nesses dois sonhos, que serão retomados adiante, a morte foi associada ao fogoe ao cozimento, visto que os Katukina, e outros grupos pano, foram no passadoendocanibais – embora alguns deles hoje neguem.

    A morte instaura a ruptura e é vivida, pelos parentes mais próximos principalmente,como um momento dramático.iv

    Dos moribundos, à beira da morte, diz-se que estãovopi , que é traduzido livrementecomo muito doente. A etimologia devopi sugere (E. Camargo, comunicação pessoal) sua

    tradução literal como "comer cabelo" (voo, cabelo + pi , comer), que, infelizmente, não posso deslindar satisfatoriamente.

    Alguémvopi não come, não tem plena consciência de si nem dos outros. O corpodescontrola-se. A iminência da morte é percebida por todos pelo olhar do moribundo: osolhos apequenam-se e perdem o brilho, owero yushin está partindo. A palidez, como osolhos pequenos e sem brilho, indicam também a debilidade física e, ao mesmo tempo,espiritual. De pessoas muito pálidas, principalmente devido a doenças, comenta-se queestão "sem sangue" (imi yama ). Sendo o sangue o principal vetor das substânciasv,compreende-se que a palidez indica a falta delas e, por conseguinte, o risco de morte.

    Os parentes mais próximos acodem o doente: dão-lhe água, alimentam-no, trocamsuas roupas e limpam seus corpos. Mais que isso, dão conforto e suplicam por sua permanência neste mundo. Devem seguir também a mesma dieta do enfermo.

    Acompanhei o sofrimento de Maya e de seus parentes para mantê-la viva, na aldeiado rio Campinas. Ela, uma mulher de mais de 50 anos, caiu doente repentinamente: tinhadores de cabeça, febre alta e vômitos. Dois rezadores acompanhavam-na também, mas

    tinham dificuldade em estabelecer o diagnóstico, suspeitavam, entre outras coisas, que amãe de Maya, morta havia pouco tempo, estivesse tentando atraí-la para junto de si. Essaúltima suspeita era ainda maior porque Maya, no auge de seu descontrole e delirante,sentava-se na rede e com a voz vacilante, chamava por seus pais e apontava com os braços para a floresta repetidas vezes, como se quisesse partir. A recusa a comer, a invocação de

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    seus pais e o estado de completa prostração de Maya anunciavam a sua morte e, mais doque isso, o desejo mesmo da morte. "Ela quer morrer" era o que se ouvia das pessoas que aacompanhavam e que se ouve sempre que um doente não reage positivamente aos cuidadosque lhe são dispensados. Como a suspeita de que a mãe de Maya era quem estava tentandoatraí-la e potencialmente poderia matá-la, foi chamado o único filho de Maya, que estavaem uma outra casa, na tentativa de que ele sim poderia dar forças para que ela nãosucumbisse ao apelo de sua falecida mãe. A chegada dele de fato fez com que Mayarestabelecesse o controle.

    O gesto descontrolado e aflito de apontar para a floresta é repetitivo, ocorre emdiferentes situações em que se vislumbra a proximidade da morte. Em 1994 acompanhei odifícil parto de Vari. Numa manhã, após dois dias sentindo contrações, Vari descontrolou-

    se: levantou-se da rede, apontou para a mata e arriscou alguns passos apressados. Elainsistia em sair, aos gritos, e seus parentes correram para segurá-la e deitá-la novamente narede. Os dias de sofrimento e a tentativa de fuga para a floresta denunciavam a debilidadede seu estado físico e a proximidade da morte. Amparada por uma irmã classificatória, porsua mãe, por sua avó materna e por um rezador, Vari teve finalmente a criança.

    Na floresta habitam não só os animais, nela perambulam também os espíritos de pessoas mortas. Nos casos em que se suspeita de mortos tentando atrair os vivos, comoaconteceu com Maya, o momento de aflição é uma batalha em que rivalizam parentes vivose mortos, ambos querendo atraí-los para o seu próprio lado (Carneiro da Cunha 1978).

    É certo que nem toda morte é atribuída à atração dos espíritos de pessoas mortas, osentido dessa afirmação às vezes tem de ser tomado genericamente. De todo modo, noscasos em que tentam resistir à própria morte, os parentes mais próximos são ainda areferência à qual os moribundos se apegam para tentar não sucumbir. Yaka contou-me damorte de sua cunhada, acometida na madrugada de vômitos e diarréia e longe da casa deseus pais. Antes que amanhecesse seu marido foi chamá-los para que ajudassem a acudi-la.

    Quando chegaram, entretanto, já era tarde. A jovem, segundo Yaka, que a amparou portodo o tempo, teria morrido chamando por seus pais:Papa, papa, ea vopiai! Ewa, ewa, eavopiai! ("Pai, pai, eu estou morrendo! Mãe, mãe, eu estou morrendo!").

    O enterro, o cemitério, o luto lingüístico

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    Consumada a morte, iniciam-se os preparativos para o sepultamento do defunto. Não há propriamente um funeral, a simplicidade é mesmo o que mais destaca as exéquias. Na única morte que pude acompanhar em campo, a criança morreu na casa de um rezador, para onde os pais a tinham levado na tentativa de salvá-la. A casa do rezador era mais próxima do cemitério do que a casa dos pais da criança falecida e de lá mesmo o corpo foilevado ao cemitério e sepultado. A notícia de sua morte espalhou-se pela aldeiarapidamente e, embora todos comentassem o fato, ninguém se dirigiu para o local onde ocorpo estava sendo velado para acompanhar o enterro. Da vigília noturna participaramapenas os pais e irmãos da criança morta e os familiares do rezador, na casa de quem elahavia morrido. Estes passaram a noite ao lado dela, com porongas acesas, e o sepultamentoaconteceu com os primeiros raios de sol do dia seguinte. Encerrado o sepultamento, os pais

    e irmãos voltaram para suas casas. As informações obtidas sobre o velório e enterro de pessoas adultas repetem o mesmo padrão.

    Do enterro participam apenas as pessoas responsáveis pelo sepultamento e, vez ououtra, os familiares mais próximos. No cemitério, os mortos são enterrados com a cabeçaem direção ao nascente, a leste, para que owero yushin não se perca a caminho do céu. Oleste está associado ao lugar que os Katukina surgiram em tempos míticos, antes deatravessarem um grande rio sobre o jacaré gigante, e, ao mesmo tempo, à criação da vida.

    Os cemitérios recebem visitas apenas quando há enterros ou em 2 de novembro, Diade Finados. No restante do tempo é um lugar ermo e mal cuidado, no qual ninguém entrasem algum temor. Na aldeia do rio Campinas o cemitério está a alguns metros da beira daestrada, nas proximidades de um local conhecido como Nova Olinda. O lugar é evitadodurante a noite e não foram poucas as pessoas que assumiram jamais passar por alisozinhos ou, se corajosos, que aceleravam o passo muito mais do que normalmente. No Diade Finados as pessoas que têm parentes diretos enterrados no cemitério da aldeia e, portanto, sepulturas para zelar, vão todas juntas ao cemitério, ninguém se arrisca a ir

    sozinho.Chegando ao cemitério, cada um acode para limpar a sepultura do parente que lhe

    cabe. Cada um cuida da sepultura de um consangüíneo, de seus pais, mães, irmãos e filhos,não da sepultura de afins ou de parentes classificatórios. Jamais vi ou ouvi dizer quealguém tenha feito a manutenção da sepultura do marido, da esposa, do cunhado, do genro

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    simplesmente o verbo "morrer", mas é usado também com o sentido de "agonizar" e"adoecer seriamente". Entre os Katukina, do mesmo modo como ocorre entre os Kaxinawa(Lagrou 1998), a morte é entendida como um processo e o mesmo verbo é passível de serusado em situações que envolvam um morto ou um moribundo. Quanto ao uso de-shina ,este mesmo marcador aspecto-temporal foi identificado entre os Chacobo, um grupo panolocalizado na Bolívia, e também com o sentido de passado recentevii. Igualmente, entre osKaxinawa, segundo Camargo (1988:138),-xin é usado para tratar de ações que se passamdurante a noite. A diferença fundamental é que o marcador usado nestes dois grupos serve para tratar de eventos acontecidos num passado imediatamente anterior e não há três mesescomo ouvi entre os Katukina.

    Pelo fato de o sufixo-shina ser usado entre os Katukina exclusivamente no contexto

    da morte, pretendo que possa ser entendido como um luto lingüístico: indica a morterecente de alguém e, ao mesmo tempo, a dor decorrente da perda. Ao final,vopishina denota nada mais que a presença da ausência, isto é, a falta que ainda se sente de quem sefoi. Transcorrido o tempo, alguém pode dizer "kokan vopiyamenta ", "tio materno morreu hámuito tempo/faz tempo", um enunciado que traz embutido a idéia de superação da dor ouque a ausência não se faz mais presente.

    Os destinos pós-morte

    Encerrada a vida, os dois espíritos, o yora vaka e o wero yushin , dissociam-se dodefunto. No período que sucede a morte, o yora vaka , chamado mais freqüentementeapenas como yushin , fica próximo da sepultura e também vagando pela floresta e nasimediações das casas durante a noite e nos roçados durante o dia. Transcorrido um tempomaior, limita-se a circular entre o cemitério e a floresta, deixando de importunar aquelescom quem conviveu e, finalmente, desaparece.

    De todos os locais possíveis de se encontrar um yushin , o menos perigoso é a casa e

    o mais perigoso é o cemitério, embora os encontros com um yushin comportem semprealgum risco. Nas casas, os yushinvo (vo é um sufixo pluralizador) apenas fazem barulho, batem nas panelas, puxam o punho da rede e os cabelos das pessoas e jogam barro em cimada casa. O aparecimento de hematomas no corpo, sem que se saiba o motivo, são atribuídosaos yushinvo , que podem chupar o sangue das pessoas durante a noite. Já no cemitério osriscos de encontrar um yushin são bem mais graves. Próximos das sepulturas, os yushinvo

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    tornam-se agressivos, perseguem e atacam as pessoas: chupam o sangue e provocam asurdez. Para sobreviver a um ataque desses, só com a ajuda de um xamã extremamenteexperiente. Na floresta durante a noite, há o risco de ser também atacado.

    Quando não desaparecem repentinamente, os yushinvo transformam-se em bichos einsetos. As borboletas (shai pero ) são transmutações de yushin , razão pela qual os maisvelhos não permitem que as crianças persigam ou toquem as borboletas. Matar uma borboleta então é muito pior, pois pode levar a pessoa à loucura (nison ). Uma espécie dearanha, grande e preta ( yutan ), é também um yushin transformado. Na mata, a transmutaçãomais comum do yushin é na forma de um bicho-preguiça ( posan ). Há quem diga ter atiradoem um yushin e ter visto surgir no local uma preguiça morta. Os yushinvo mais barulhentose perturbadores corporificam-se em macaco-preto.

    O wero yushin , espírito do olho, tem um destino completamente diferente daqueledo yora vaka : desvinculado do corpo, segue rumo ao céu. Há um único caminho para sechegar ao céu, mas na travessia da grande ponte, suspensa sobre o rio que liga a terra aocéu, oswero yushinvo devem atravessar pontes distintas, em conformidade com cada umdos clãs que compõem a sociedade Katukina. Os Varinawa têm a ponte dos Varinawa, osKamanawa têm também sua própria ponte e assim por diante. Observei em trabalhoanterior (Lima 1994:50), que os clãs katukina não pareciam operar socialmente naorganização das relações entre as pessoas – diferentemente das seções Marubo (Melatti1977) ou Kaxinawa (Kensinger 1995), por exemplo. De fato, os clãs aparecem maisexplicitamente apenas no destino dowero yushin , na ponte específica que cada um deveatravessar.

    Apesar de serem seis os clãs katukinaviii, são mencionadas apenas quatro pontesinterligando a terra ao céu: a ponte de pupunha (wani tapan ) serve aos Waninawa, a pontede taboca ( paka tapan ) aos Varinawa, a ponte de assaí ( panan tapan ) aos Numanawa e a ponte de samaúma (shono tapan ) aos Kamanawa. As três primeiras pontes são

    extremamente finas e qualquer desequilíbrio pode interromper a viagem dowero yushin rumo ao céu, encerrando definitivamente sua existência. Assim, os Kamanawa, o povo daonça, estão em vantagem pois dispõem da maior e mais larga das pontes, feita de samaúma(shono tapan ). Para os Satanawa e Nainawa não foram mencionadas quaisquer pontes e prevalecia mesmo uma incerteza sobre como faziam a travessia do grande rio. Satanawa

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    quer dizer "povo da lontra", de um bicho aquático portanto, e alguns disseram que a ponteera dispensável, owero yushin , nesse caso, iria nadando. Nainawa quer dizer "povo do céu"e novamente a ponte parecia ser dispensável. Seja como for, não se questiona a possibilidade de membros dos clãs nainawa e satanawa chegarem ao céu, apenas restamdúvidas sobre a forma como isso é feito.ix

    As pontes que conduzem owero yushin ao céu não variam apenas em largura,também em comprimento. Não chegam ao céu aqueles que, em vida, foram sovinas( yohashi ), pois as pontes que os servem têm apenas a metade do comprimento daquelasdestinadas para a travessia de pessoas generosas. Como se quem muito sovina, acabassetendo a sua ponte sovinada. A ponte apresenta-se apenas parcialmente e impede acontinuidade da travessia. Owero yushin de uma pessoa avarenta, seja homem ou mulher,

    fica então no meio do caminho, sem conseguir atravessar para a outra margem do granderio, e é atacado por cupins (nakash ) que encobrem todo o seu corpo, deixando visíveisapenas os órgãos genitais. Outroswero yushinvo a caminho do céu, quando passam por alie vêem os avarentos cobertos de cupim, transformados mesmo em cupinzeiros, dão-lhes pancadas com pedaços de pau antes de tentarem a travessia.

    O sentido da avareza para os Katukina transborda as nossas concepçõesdicionarizadas. Uma pessoa avara, mesquinha, sovina, não apenas conserva o que tem parasi, apegando-se excessivamente às suas posses. Ela faz isso e mais. O sovina é acima detudo um dissimulado.Yohashikonawa , o sovina paradigmático, tinha um imenso roçadocom macaxeira, milho e banana. Naquele tempo (shenepavo , "tempo dos antigos") osKatukina não tinham nenhum cultígeno e foram pedir aYohashikonawa um pedaço demaniva, uma touceira de banana e sementes de milho.Yohashikonawa não se furtou a dar.Ele deu, mas não sem antes cozinhá-los, impedindo que germinassem. Os Katukinademoraram a descobrir o estratagema e pediram de novo e, mais uma vez, ele não serecusou a dar. Descoberta a verdade, o engodo sob a aparência de generosidade, os

    Katukina aliaram-se a um homem-grilo que roubou então deYohashikonawa aquilo que elesovinava: as manivas, as touceiras e as sementesin natura , adequadas ao plantio.

    Antes de tudo, um sovina, yohashi , é um mentiroso, yohai: alguém que finge darquando não dá ou que diz não ter quando tem. Em qualquer das alternativas, sonega averdade. Celestialmente, o sovina é vítima de sua própria conduta. Ao espírito do olho de

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    um avarento não falta a ponte, mas, assim como manivas, touceiras e sementes cozidas nãoservem para ser plantadas, uma ponte pela metade não serve à travessia.

    Se os avarentos estão impedidos de chegar ao céu, o acesso dos generosos não é

    completamente franqueado. Como foi dito, a queda da ponte pode interromper a travessiado wero yushin . Um sapo gigante,txoro , ameaça também cozinhar owero yushin , jogando-o em um grande caldeirão de água fervente, devorando-o em seguidax. Há quem diga que owero yushin de crianças muito pequenas, que ainda não andam nem falam, não chegam aocéu, pois são incapazes de vencer os perigos do caminho. Por sua vez, crianças um poucomaiores, capazes de desenvolverem ao menos parte de suas ações sozinhas, chegam ao céucomo se fossem adultas.

    Quando vence todo o percurso e chega ao céu, owero yushin lança na terra umatartaruga grande que eventualmente é encontrada por seus parentes vivos. No céu owero

    yushin é recebido porKoka Notowani que lhe retira o coração (ou a pele, conforme aversão) e assopra, criando-lhe um novo corpo, sem memória, dessubjetivado, despojado dalembrança dos parentes vivos. Os demiurgos, conforme a versão que se considere, querecebem os mortos e lhes proporcionam um novo corpo, são afins:Koka Notowani e KokaPino Txari . Koka é o termo de parentesco utilizado para designar o tio materno.

    A saudade atormenta vivos e mortos. Se na terra os vivos tentam escapar da

    lembrança do morto e da malignidade que a atração pelo yora vaka representa, despojando-se de seus pertences e evitando aproximar-se das sepulturas; no céu owero yushin édespojado de seu próprio corpo para não lembrar de seus parentes vivos. Em vida um corpoé modelado pela partilha de substâncias ( yoran pae ), que delineia uma relação decontinuidade entre parentes diretos. Com a morte, a descontinuidade irrompe duplamente:com o perecimento do corpo sepultado e, simbolicamente, com a troca de pele dowero

    yushin . O wero yushin , transformado assim pela aquisição de um novo invólucro, reúne-se

    aos seus parentes falecidos e ali permanece eternamente.Do mesmo modo como acontece na terra, owero yushin também envelhece no céu:com o tempo, sua pele torna-se enrugada e flácida e seus cabelos ficam brancos. Entretanto,no céu há uma renovação periódica de seu corpo, com a troca de sua pele e do cabelo, o

    wero yushin retorna sempre à juventude. A possibilidade mítica da imortalidade concretiza-se celestialmente.

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    Os wero yushinvo abrigam-se todos juntos de seus parentes nanai shovo , a casa docéu, e não têm nenhuma das preocupações terrenas. Os mortos mantêm-se apenas bebendouma "água doce", com o sabor parecido com o do abacaxi (kankan ). O céu dos Katukina,como escreveu Tastevin (1924:91), "não tem nada de atraente". A viagem final dos mortosacaba tendo como destino a indiferenciação, owero yushin de um falecido aporta numasociedade estéril. Ali os mortos não caçam, não plantam, não casam, não têm filhos.xi Como se pudéssemos repetir aos Katukina as mesmas palavras de Carneiro da Cunha(1978:145) a respeito dos Krahô: "a sociedade dos mortos é sociedade morta".

    A despeito das agruras do dia-a-dia e da finitude incontornável, a boa vida é aterrena. Não fosse e os mortos não sentiriam saudades. Após a morte, o mais próximo queexiste da vida terrena não é a vida celeste, mas a aquática. Nas profundezas das águas os

    mortos reproduzem a mesma vida que na terra, acompanhados doshene yushinvo ,"espíritos da água". Contrastando a vida no céu, na terra e na água, Mani comentou sobre odestino pós-morte: "No caminho do céu tem ponte de muito perigo, temnakash (cupim),tem txoro (o sapo gigante). Debaixo d'água é como na terra, é bonito. Debaixo d'água écomo na terra, não tem tristeza". No mundo aquático, idealizado a partir do mundo terreno,o wero yushin não sente saudades dos parentes que deixou e, então, sequer precisa quealgum demiurgo retire seu coração para moldar-lhe um novo corpo.

    O desvio dowero yushin para o mundo aquático é um evento contingente. O cantonoturno de um pássaro chamadotxontxon shene anuncia a proximidade da morte, masapenas daqueles que têm owero yushin conduzido para as profundezas das águas. Nenhumatributo distintivo, nenhum motivo especial, nada me foi apontado para explicar as razõesque justificassem que, dentre os mortos, apenas uns poucos pudessem ser "premiados" coma vida aquática pós-morte. Entretanto, suspeito que esse destino talvez possa ser menosaleatório.

    Os Katukina são bem-humorados, sempre fizeram brincadeiras comigo sobre os

    temas que eu já dominava e permitiam também que eu as fizesse. Um dia ouvi uma mulhercensurando seu marido, um rezador, por ter negado algo a uma terceira pessoa, acusava-ode sovinice. O tom da acusação não era grave e parecia-me mais que a mulher estavatentando fazê-lo mudar de idéia. Resolvi fazer uma brincadeira ao rezador acusado e disseque, após sua morte, os cupins lhe cobririam o corpo a caminho do céu – um eufemismo

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    reunir-se à sua "família espiritual" após ter morrido. Entretanto, não localizouespacialmente onde se deu essa reunião.

    Estes exemplos, recolhidos de grupos que têm diferentes graus de contato entre si, permitem mostrar como os temas do mundo subaquático e do "casamento místico" estãoespalhados no conjunto da família lingüística e recebem diferentes elaborações. Uns, queelaboram com mais vagar o tema do mundo subaquático, como os Kaxinawa e Yaminawa,nada dizem sobre as uniões de xamãs com mulheres-espíritos. Outro, como os Marubo,admite a possibilidade dos xamãs efetivarem a união carnal e mesmo a reprodução comessas "esposas", mas não fala da reunião póstuma do xamã com sua família no mundosubaquático. A terceira possibilidade, encontrada entre os Shipibo-Conibo, concilia os doistemas, mas não é possível saber com segurança se os xamãs após a morte reúnem-se às suas

    "famílias místicas" na profundeza das águas. O exercício comparativo baseia-se em simplesanalogias; contudo, permite tornar menos especulativa a suspeita de que a viagem final dosxamãs e rezadores, ao menos entre os Katukina, deva ser em direção ao mundo aquático,confirmando postumamente a relação com seus moradores.

    Ex-endocanibais?

    De tudo o que foi exposto sobre os procedimentos funerários e a escatologiakatukina, resta saber o que foi feito do famoso endocanibalismo pano. O indício mais forte

    do consumo dos parentes é identificado apenas (mas significativamente) em dois sonhosexpostos anteriormente, sem interpretação fixa: no primeiro há fogo queimando abaixo dasepultura; no segundo há água borbulhando da superfície da sepultura, presumivelmente deum corpo em decomposição. Ambos foram interpretados como presságios de morte.Admitindo o endocanibalismo como prática generalizada entre os grupos pano no passado – o que está longe de dar conta dos fatos concretos, como veremos a seguir – , o fogo e ocozimento são do domínio culinário-escatológico e a sepultura converte-se no grande

    camburão em que o corpo era cozido até a carne soltar-se completamente dos ossos, maistardes calcinados e consumidos com mingau de banana. Entretanto, nos dias de hoje restamos corpos depositados sob a terra, desguarnecidos em túmulo profano, já que se pretendeque o endocanibalismo pano seria um mecanismo de defesa contra os assaltos inimigos,fossem humanos fossem vermes (Erikson 1986:198).

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    Coincidentemente, os dois sonhos resumidos acima são de pessoas que têm versõesopostas sobre o endocanibalismo, uma afirma e a outra nega. Para evitar que adiante alguns juízos, vejamos logo o que dizem aqueles que o afirmam, em seguida aqueles que o negam.

    Entre as pessoas que admitem a prática endocanibal, a cerimônia funerária é descritasumariamente e repete o que foi registrado a respeito de outros grupos pano. Consumada amorte, o defunto era pranteado por todos, em seguida depositado em um grande camburão,com os pés amarrados ao pescoço, e cozido por aproximadamente um dia. Findo ocozimento, os ossos eram triturados e misturados com mingau de banana e consumidos. Nada me foi dito sobre o que era feito do caldo e da carne do defunto.

    A versão que nega o endocanibalismo é um pouco mais detalhada. Em comum coma versão anterior tem a negativa do sepultamento, uma prática que teria sido adotada apenas

    a partir do contato com os brancos. Nesta versão, a consumação da morte fazia-seacompanhar da construção de uma grande fogueira, sobre um buraco cavado na terra, emque o corpo era queimado. Para sua cremação o corpo era preparado: cortavam-lhe as mãose os pés e retiravam todas as vísceras. Ao final, tudo era queimado, com exceção do fígadoque deveria ser enterrado, para evitar o cheiro forte que emanaria caso fosse disposto nofogo. Entretanto, esse detalhe apenas impedia que o cheiro fosse mais forte do que já erarealmente e que causava o abandono do local de moradia. Caso respirassem aquele cheiro,todos adoeceriam. Enquanto ardia na pira funerária, o defunto era acompanhado apenas deduas ou três pessoas que o manipulavam com grandes varas para acelerar sua combustão, asdemais dispersavam-se na mata. Embora não tenham sido indicadas quais eram as pessoasque permaneciam junto ao morto nem qual o parentesco que as relacionavam, deveriamestimá-lo, caso contrário seu corpo não se consumia nas chamas. O corpo deveria serqueimado até que dele não restasse mais nada, quando então era abandonadocompletamente por aqueles que ali permaneceram.

    Fosse o defunto apenas incinerado ou incinerado e consumido por seus parentes,

    ambos os tratamentos são "anti-putrefação" (Chaumeil 1997:87). Por certo isso ajuda aexplicar o simbolismo dos dois sonhos expostos antes, que associam a sepultura ao fogo eao cozimento, como que dissimulando o processo de putrefação inevitável nos dias de hoje.

    À primeira vista as duas versões não negam parte da análise de Erikson (1986) deque o endocanibalismo pano seria, na verdade, um contra-exocanibalismo, uma medida

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    para evitar que os defuntos fossem comidos por outros. Sem comê-los, a mesmainterpretação mantém-se apropriada.

    Ainda na análise de Erikson, a variedade das práticas funerárias (endocanibalismo,cremação e enterro) entre os Pano aparece relacionada à guerra. Há, segundo o autor, umagradação de procedimentos: "o mínimo de guerra corresponde ao enterro, o máximo aoauto-consumo" (1986:200). A idéia de reciclagem dos defuntos via endocanibalismoaplicar-se-ia com mais propriedade aos grupos que entabulavam relações próximas econtínuas com o exterior e que, por isso, corriam o risco de serem exocanibalizados. Comoexemplo, o autor cita os Cashibo, um dos mais belicosos grupos pano, entre os quais osendocanibalismo seria generalizado. No pólo oposto estariam os Matis, que mesmo antesdo contato teriam renunciado ao rito endocanibal e também aos conflitos guerreiros.

    Voltando aos Katukina, não é apenas a existência de duas versões que embaralha ascartas do ritual funerário – qualquer que seja, já abandonado. O que pensar da amputaçãodas mãos e dos pés e da retirada das vísceras do defunto? Entre os Arara, um povo caribedo Xingu, esse era justamente o tratamento dado ao inimigo de guerra, com o acréscimo deque a cabeça era decepada (Teixeira-Pinto 1997). Sem nos afastarmos tanto cultural egeograficamente, os Uni, quando ainda guerreavam, decepavam a cabeça e amputavam osantebraços e as pernas de seus inimigos. A cabeça era suspensa em postes atrás das casascomunais que usavam. Os antebraços e as pernas eram cozidos, para que se separassefacilmente a carne dos ossos, com os quais fabricavam flautas e pontas de flechas quetinham, segundo Frank (1994:147), um "poder mágico extraordinário". Entre os própriosKatukina o tratamento dado aos defuntos na segunda versão das práticas funerárias no passado, pode ser relacionado àquele dado à caça, sobretudo às maiores. Porcos, queixadase veados, antes de serem partidos, têm suas patas amputadas e as vísceras retiradas. Entreos Yawanawa (L. Pérez, comunicação pessoal), a amputação dos braços e pés é otratamento dado a um personagem mítico que foi capturado, morto e devorado pelos

    "espíritos da terra",maiyushinvo .xii Em todos esses exemplos, os corpos parcialmenteesquartejados, sejam de inimigos ou de caça, são sempre de "outros".

    A divergência das versões sobre as práticas funerárias entre os Katukina no passado – que deixo como parte inconclusa dada a impossibilidade de saber se eram excludentes oucoexistentes – talvez apenas esteja trazendo à tona uma questão mais complicada, que diz

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    respeito ao estatuto dos mortos no mundo dos vivos (Carneiro da Cunha 1978). As análisesdisponíveis até agora têm destacado que o rito endocanibal entre os grupos pano não seriauma forma de opor vivos e mortos, em alguns casos pretende-se mesmo que os mortos nãosão perigosos (Erikson 1986) e que o endocanibalismo seria, na verdade, um ato de amor ecompaixão (McCallum 1996:70). Se esse bem pode ser o caso dos Matis e dos Kaxinawa,tenho minhas dúvidas no que diz respeito aos Katukina.

    Ainda que decidíssemos tomar a segundo versão do rito funerário, que fala apenasem cremação do defunto, como fantasiosa, como interpretar os detalhes acerca doesquartejamento parcial do corpo, do mesmo modo como inicialmente se prepara a caça?Mesmo que se queira tomar esses detalhes como fictícios, por que representar os mortosdessa maneira? Vivos e mortos opõem-se na concepção dos Katukina mais do que parece

    ser o caso entre outros grupos pano. Fossem os Katukina endocanibais ou não, hoje osobjetos pessoais do morto continuam sendo destruídos e podem provocar a mudança doslocais de moradia, devido ao medo que os espíritos dos mortos suscita.

    Há dois aspectos a serem ainda discutidos, que dizem respeito à morfologia social eao destino pós-morte. No que diz respeito ao primeiro, Erikson chama a atenção para osistema de parentesco a fim de reforçar sua tese de que vivos não se opõem radicalmenteentre os "grupos pano". Cito-o integralmente:

    "(…) há uma diferença muito marcada entre os Pano e outro s grupos amazônicos, que se pode talvez atribuir à sua estrutura social quase-linhageira (pseudo-kariera). Qualquer queseja, o morto não é comido porque é inimigo, como é o caso entre os Guayaki (H. Clastres1968). É exatamente o contrário: se se come o morto é precisamente porque ele não é uminimigo, mas pode vir a ser caso não seja reciclado (como será igualmente o nome…)"(1986:200).

    Contudo, os contornos australianos do sistema de parentesco de tantos grupos pano não severifica entre os Katukina, nem a reciclagem, via gerações alternadas, dos nomes se faz tãosimetricamente (Lima 1994). Não é o caso de discutir em detalhes aqui o sistema de

    parentesco Katukina. De todo modo, ele pode ser definido como uma variante dodravidiano, com o reconhecimento de três critérios básicos de classificação: nívelgeracional, gênero e distinção entre consangüíneos e afins. Entretanto, diferentemente dosMatis e de outros grupos pano, os Katukina mantêm a distinção entre consangüíneos e afinsapenas nas três gerações centrais, neutralizando-a nas duas distaisxiii (Lima 1994). O perfilkariera de alguns grupos pano (além dos Matis, podemos citar os Kaxinawa, Marubo e

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    Yaminawa) define seus contornos com o uso recíproco dos termos de parentesco entre asgerações alternadas. Às vezes generalizado como característico de todos os povos de língua pano, o perfil kariera, que tem na onomástica seu suporte mais evidente, não se verificaentre os Katukina.

    O cálculo sociocentrado do kariera está implicitamente destacado na citação acima, justamente para fazer sobressair a idéia de reciclagem dos mortos, mais ou menos como osMatis fazem com os nomes (Erikson 1993). A hipótese é bastante sedutora, mas não estáclaro o que o autor quer dizer com a idéia de "reciclagem dos mortos"xiv. Haveria aí a idéiade reencarnação, como quer a interpretação de Townsley (1993) a respeito da repetição dosnomes entre os Yaminawa? Outros grupos sul-americanos, penso particularmente emalguns povos de língua jê, reciclam seus nomes sem que se possa postular com isso a

    neutralização das relações entre vivos e mortos (Carneiro da Cunha 1978).Comparados aos Matis ou aos Kaxinawa, a organização social dos Katukina acaba

    por parecer "fluída" e podemos então passar ao segundo aspecto que mencionei, o destinodos mortos. O despojamento do defunto, para que se complete a integração à vida celeste, éduplo. Os procedimentos funerários executados pelos parentes do morto conformam apenasa primeira parte do processo de despojamento. A segunda parte completa-se com a chegadado yushin do olho ao céu e com intervenção de um demiurgo que lhe proporciona um novocorpo, dessa vez, imperecível. Em sua análise sobre a morte entre os Kaxinawa, McCallum(1996: 51) – comparando-os com os "Tupi" (em particular com os Araweté) e dessacomparação tirando conseqüências maiores que não cabe discutir aquixv – afirma: "osKaxinawa costumavam tomar a si a responsabilidade de despojar da memória a carne e osossos. O lugar da transformação do mortal em imortal era a terra, não o céu, o 'interior' nãoo 'exterior', e os agentes da transformação eram homens, não deuses". O despojamento domorto entre os Katukina se faz não por um dos termos, mas por ambos: no céu e na terra,interior e exteriormente e pelas mãos dos homens e dos deuses. Antes abordei os

    procedimentos funerários que se faz na terra e pelas mãos dos homens. Aqui cabe destacarque a partir da troca de pele no céu os mortos conquistam a imortalidade tão desejada porintermédio de um demiurgo que já havia tentado fazê-los eternos na própria terra. Umdemiurgo, não custa lembrar, que é designado justamente comokoka , um termo deafinidade reservado ao irmão da mãe. A presença deKoka Notowani (ou de Koka Pino

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    Txari ) como anfitrião celeste dos mortos, não apenas sugere a ruptura desses com os vivos.Faz mais do que isso: marca decisivamente a compreensão da morte como cisão radicalentre vivos e mortes e da alteridade paradigmaticamente como afinidade (Carneiro daCunha 1978; Viveiros de Castro 1993).

    O tema da troca de pele ou da aquisição de um novo corpo no céu não é novo entreos Pano, que eu saiba foi mencionado pela primeira vez entre os Marubo (MontagnerMelatti 1985:66) e, como ocorre entre os Katukina, associado ao esquecimento do mundodos vivos. Entre os próprios Kaxinawa a renovação corporal foi mencionada, uma vez queuma outra antropóloga dedicada ao estudo deste grupo menciona que o yuxin do olho, nocéu, "adquire um novo corpo e novas roupas" e que no canto para despedir o morto, seus parentes o exortam a ir "vestir a roupa amarela do Inca no céu" (Lagrou 1998: 26 e 143).xvi Mais recentemente o tema foi identificado entre os Yawanawa (Carid 1999:140-147), entreos quais ohuru yuxin tem o corpo pendurado como uma roupa numa árvore e purificado por um beija-flor.

    A idéia do duplo despojamento que identifiquei entre os Katukina talvez possa serestendida aos Marubo, Kaxinawa e Yawanawa. Entretanto, todos os grupos mencionados,diferentemente dos Katukina, têm um sistema de parentesco "australiano" e afirmam commais convicção o passado endocanibal. Se a organização social dos Katukina pode ser tida

    como "fluida" e suas versões sobre os ritos funerários do passado podem ser consideradasvacilantes, o mesmo não se passa com os demais grupos citados.

    A estreita vinculação do endocanibalismo com a organização social, para supor aneutralização ou mesmo a continuidade entre vivos e mortos, talvez não possa sergeneralizada, mesmo entre os grupos pano de feição kariera. O duplo despojamento nessesgrupos permite recuperar um tanto de individualismo que está envolvido no processo damorte e no destino do morto e, principalmente, rever a posição que os mortos ocupam em

    relação aos vivos. No caso dos Marubo, o caminho do céu, ainda que seja definido pelo pertencimento a cada uma das seções, está cheio de perigos que os espíritos dos mortos têmque vencer por suas próprias virtudes (Montagner Melatti 1985). Em todos os gruposcitados há uma transformação radical do corpo, tão radical que não perecem mais, aocontrário, vivem eternamente. Se o destino do yushin do olho pode ser consideradoirrelevante para a ação do funeral, como afirmou Townsley (1988:115) a respeito dos

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    Yaminawa, não o é para a compreensão do conjunto de problemas postos pelo fato damorte.

    Como deve estar claro, a leitura que faço das concepções sobre a morte entre os

    Katukina evoca, além do tema da afinidade potencial, diretamente a teoria do perspectivismo ou multinaturalismo proposta por Viveiros de Castro (1996), numacontinuidade de suas reflexões sobre a corporalidade ameríndia. Sem querer me estenderem detalhes, no perspectivismo certos seres da natureza são dotados de uma subjetividadesemelhante à humana. A atribuição de subjetividade aos não-humanos dota-os de "pontosde vista" que, então, se vêem como pessoas e interagem com os humanos nestes termos. Aidéia central é a de um "espírito humano" comum que unifica, enquanto o corpo diferencia:"não há mudança 'espiritual' que não passe por uma transformação corporal" (:131).Sugerindo a aplicabilidade do perspectivismo aos estudos sobre a descontinuidadeontológica entre vivos e mortos, Viveiros de Castro escreveu: "a distinção fundamentalentre vivos e mortos passa pelo corpo e não, precisamente, pelo espírito; a morte é umacatástrofe corporal que prevalece como diferenciador sobre a comum 'animação' dos vivose dos mortos" (:134).

    Tendo em conta essa sugestão e retornando aos Katukina, acredito que háargumentos suficientes para se postular uma separação radical entre os vivos e os mortos.

    Se o corpo faz a diferença (Seeger et alii 1987[1979]), não me parece possível postular,entre os Katukina, a neutralização das relações entre vivos e mortos nem sua continuidade. Na concepção katukina – que é, aliás, bastante difundida entre outros Pano – todo corpo possui dois espíritos principais – o do corpo propriamente dito, yora vaka , e o do olho,

    wero yushin – e ambos são transformados a partir do perecimento do corpo. Écompreensível a afirmação de que um corpo só se mantém com seus dois espíritos, mas nãodeve passar desapercebido que a forma corporal dos espíritos antes da morte do próprio

    corpo é irrelevante, simplesmente presume-se que se confundem. Entretanto, com a"catástrofe corporal" causada pela morte, a forma física do espírito, por falta de expressãomelhor, ganha importância. Desalojado de seu receptáculo, os espíritos passam então portransformações que são propriamente corporais. Por um lado temos as transformações doespírito do corpo: como um bicho-preguiça, como um ser infante de corpo robusto eadornado, como um macaco-preto ou em sua forma hedionda nas proximidades do

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    cemitério ou qualquer outra como se apresente. O yora vaka de um morto é como umfantasma, mas não é concebido como um ser incorpóreo. Por outro, e que me parece maisimportante, temos a revivificação do espírito do olho, marcada pela modelação de um novocorpo, cancelando a sua subjetividade, os seus afetos terrenos.

    Para finalizar, é necessário dizer que um dos demiurgos mencionados na recepçãodo céu,Koka Pino Txari , que assopra o coração dowero yushin de um falecido, modelandoseu novo corpo, é o mesmo que, em tempos primordiais, já havia transformado os homensem animais, instaurando uma primeira descontinuidade. De tudo o que foi exposto até aqui,é claro que a construção dos corpos depende de processos socio-fisiológicos que envolvema moderação da voz, dos gestos e da alimentação, entre outras coisas. Mas, se algumaliberdade interpretativa for permitida, talvez seja o caso de pensarmos o demiurgo como um

    gestor de transformações corporais, um "estilista cósmico", sempre envolvido com aaparência externa dos corpos, mas sem alterar significativamente a sua essência que persiste plenamente humana.

    Notas

    i Este artigo é uma versão resumida do terceiro capítulo de minha tese de doutorado, defendida noPPGAS/USP em 2000, e foi apresentada, no mesmo ano, no GT Etnologia Sul-Americana, coordenado porDominique Gallois e Denise Fajardo, no XXIV Encontro Anual da Anpocs. Iniciei a pesquisa com osKatukina (nas TIs do rio Campinas e do rio Gregório, no Acre) em 1991, mas a maior parte das informaçõesaqui apresentadas foram obtidas nos últimos seis meses que estive em campo, em 1997 e 1998, comfinanciamento da FAPESP e da CAPES.

    ii Empresto a expressão de Viveiros de Castro (1986:446), que a usou para tratar da relação troca de pele/imortalidade entre os Tupi.

    iii Recolhi também um outra versão, ligeiramente diferente. Ne'e diz que os mortos ganham nova vida e nãosentem saudades porque um outro demiurgo,Koka Pino Txari , retira a pele das pessoas para fazer um novocorpo. Em relação à versão do corpo do texto, muda o demiurgo e a parte do corpo que permite restituir avida.

    iv Em todo período de campo não presenciei a morte de nenhuma pessoa adulta. A etnografia que segue éentão o resultado de vários relatos combinados sobre a experiência de perder um parente.

    v Para uma exposição mais detalhada da noção de substância e da corporalidade katukina, ver Lima (2000:52-84).

    vi

    Isto na aldeia do rio Campinas, onde estive no Dia de Finados em 1995 e 1997. Não sei como as coisas se passam na aldeia do rio Gregório, dada a presença lá dos missionários da Missão Novas Tribos do Brasil.vii Agradeço a Philippe Erikson (comunicação pessoal), que pesquisa entre os Chacobo, esta informação. Nos

    trabalhos acadêmicos sobre a língua katukina foram identificados apenas três tempos verbais:ai (presente),va'i (passado) ekai (futuro), conforme Barros (1987) e Aguiar (1994:135-137). O uso de-yamenta estáregistrado apenas nas cartilhas produzidas pelos próprios Katukina (André Shere 1993:16) e pela MNTB(1977:23).

    viii Quando uso a denominação de "clãs" para as unidades que compõem a sociedade katukina, faço-o apenascomo o reconhecimento de uma "ancestralidade suposta ou presumida", como o fiz em trabalho anterior noqual esse assunto foi mais detalhado (Lima 1994:49-52). Atualmente há dúvidas sobre a regra de filiação

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    que opera para determinar o pertencimento aos clãs, enquanto uns afirmam a matrilinearidade, outrosafirmam a patrilinearidade.

    ix Nos dias de hoje é difícil saber o funcionamento ideal do modelo, mas não se deve duvidar da seriedadecom que os Katukina tratam do assunto. Certa vez, enquanto conversava com Mani sobre o destino dosmortos, fui surpreendida pela pergunta: "E os brancos, vão para o céu de barco?". Ele falava sério e queria aconfirmação dessa possibilidade, que tinha ouvido de um seringueiro anos atrás – um sujeito fabuladorcertamente, que contou a Mani do acesso dos brancos ao céu após ouvir Mani lhe contar sobre as ponteskatukina. Mani não duvidava da versão do seringueiro, já que para ele os brancos são todos ricos.

    x Tastevin (1924) comenta rapidamente de um habitante do céu, que ele grafou comoTyuvu , que cozinha osmortos num grande caldeirão e alimenta-se de seus ossos. Em um outro artigo, Tastevin (1926) mencionaque um velho kaxinawa lhe contou que subiu ao céu e viu lá o Inka , como se fosse um esqueleto vivo,comendo o coração de um homem. O próprio Tastevin relaciona oTyuvu dos Katukina com o Inka dosKaxinawa, destacando que ambos se alimentam de corpos defuntos. Contemporaneamente, McCallum(1996: 62) também menciona que "a alma pode ser devorada por espíritos-monstros".A idéia dos Katukina de que owero yushin é jogado num caldeirão de água fervente, tem seu contrapontono banho da imortalidade (com ou sem fogo) registrado entre tantos grupos Tupi-Guarani (Viveiros deCastro 1986:420-421). Contudo, entre os Katukina não se trata de um "banho mágico", mas de umcozimento literal, da elaboração culinária dowero yushin , que acaba por ser canibalizado celestialmente e por perder em definitivo a chance de alcançar a vida eterna. Se nos grupos Tupi a canibalização celeste égarantia de imortalidade, para os Katukina é justamente o contrário, é a perda dela.xi Uma concepção do céu bastante negativa é também encontrada entre os Yaminawa estudados por Townsley(1988). Essa negatividade do céu, seja dos Katukina ou dos Yaminawa, tem seu contraponto entre osKaxinawa (McCallum 1996:49; Lagrou 1998:281) e os Yawanawa (Carid 1999:140) que o concebem comoum lugar em que há muitas festas.

    xii Os Katukina têm uma versão muito parecida deste mito (Lima 1994), mas dela, ao menos na versão querecolhi, não consta o tratamento culinário dado ao personagem morto.

    xiii Como ocorre também entre os Uni (Frank 1994: 182-184) e os Shipibo-Conibo (Kensinger 1995:174).xiv Cabe dizer que a idéia de "reciclagem dos mortos" foi apresentada por Erikson apenas neste artigo de 1986,

    o primeiro que escreveu após ter feito pesquisa de campo entre os Matis. Em artigos posteriores o autor nãoretornou ao tema. De todo modo, dialogo com essa idéia aqui pelo fato de que o artigo de 1986 marcou aetnologia sul-americana por defender a tese de que vivos e mortos não se opõem radicalmente entre osgrupos pano. E, em razão dessa tese, tem sido citado em alguns trabalhos sobre a morte nas sociedade

    indígenas sul-americanas (Chaumeil 1992 e 1997).xv Para um comentário crítico ao artigo de McCallum (1996), ver Vilaça (1998).xvi As análises de Cecília McCallum (1996) e Elsje Lagrou (1998) sobre a morte divergem particularmente

    neste aspecto, mas não devo me estender em comparações sobre as análises a respeito dos Kaxinawa.

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