sobre a direita, carlos do carmo carapinha

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  • 8/3/2019 Sobre a Direita, Carlos do Carmo Carapinha

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    Sobre a Direita

    Carlos do Carmo Carapinha

    Fevereiro de 2005

    Pblico: J escreveu que em Portugal se vive um cl ima em que existe como que

    uma espcie de superioridade moral da esquerda, remetendo a direita para o papel

    de algum que s chamado para administrar as contas...

    Rui Ramos: Esse um quadro de desequilbrio poltico que tem razes no

    comprometimento das direitas com o Estado Novo. Isso leva at a que a direita nem

    se assuma como direita, quando muito coloca-se direita da esquerda. E tambm

    leva a que os partidos de direi ta no dem aos seus projectos uma dimenso

    poltica e tenham tendncia em afirm-los pela sua dimenso econmica. Oradefender o "crescimento" ou o "equilbrio das contas pblicas" reduzir ao

    esqueleto econmico o que um projecto poltico e um sinal da nossa

    imaturidade democrtica. O nosso sistema poltico tem imenso medo do confronto.

    Somos uma sociedade traumatizada pelo confronto, pelo que existe imenso medo

    que a afirmao de projectos polticos fortes, ideologicamente demarcados, possa

    resultar numa espcie de guerra-civi l. Criou-se o mito de que estamos divididos

    acerca dos meios mas estamos unidos acerca dos fins. Isso falso: estamos

    divididos acerca dos fins e precisamos de nos entender acerca dos meios. E os

    meios so os da democracia.

    Durante anos, quando me colocavam a sacramental pergunta s de direita ou deesquerda?, respondia invariavelmente sei apenas que no sou de esquerda. As razes

    para este understatement?

    1. O facto de ter nascido numa poca e num pas onde estava enraizada uma cultura de

    esquerda de inspirao francfona, cuja marca se fazia notar um pouco por todo o lado

    (nos jornais, nas academias, nas artes e espectculos, no milieuonde se movimentava a

    inteligncia lusa), contribuiu para uma certa pusilanimidade na hora de assumir partidos e

    convices. Quando alcancei a idade da razo, o clima de que falava Nelson Rodrigues, em

    relao ao Brasil dos anos 60, vivia-se em todo o seu esplendor: s se era intelectual,

    artista, cineasta, arquitecto, ciclista ou mata-mosquito com a aquiescncia da esquerda.Esta cultura de esquerda - que evoluiu exponencialmente por via da frentica actividade

    dos anti-corpos que combateram a ditadura salazarista (paternalista, autoritria e, a

    espaos, estranhamente socialista) contribuiu impudicamente para transfigurar o

    substantivo Direita em adjectivo e antema: a direita como a ideologia dos mais fortes

    contra os mais fracos; a direita defensora dos interesses; a direita precursora do

    egosmo contra o comunitarismo; a direita apologista do autoritarismo contra a tolerncia;

    a direita como receptculo do esprito conservador contra o progresso e a

    modernidade; a direita glacial e insensvel, incapaz de um gesto de bondade e de

    entreajuda. A prpria Direita portuguesa tambm se colocou a jeito: foi a sua corrente

    autoritria e centralizadora quem mais adeptos agregou em Portugal. Dito de outra forma, os

    espritos conservador e liberal que histrica e filosoficamente identificamos nos pases

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    anglo-saxnicos, nunca encontraram terreno frtil por terras de Viriato. No sc. XIX, aprpria corrente liberal era j distinta: olhava-se o Estado como agente preferencial doprogresso e da civilizao, observava-se a poltica como um estorvo, relegada queestava competio partidria e parlamentar. Convinha, alis, que assim fosse. Aschamadas foras vivas da nao os proprietrios, os comerciantes, os agricultores, os

    industriais de vivas tinham pouco e nem com papas de serrabulho se haviam suscitadoquaisquer foras. O divrcio entre as instituies polticas e o pas real (o dosignaros) estava consumado. O prprio projecto liberal - por insuficiente ouidiossincrtico que fosse foi, a partir da segunda metade do sculo XIX, sujeito a fortescrticas. Lembremo-nos de Oliveira Martins e da sua crtica nefasta deriva das ideiasliberais em torno do individualismo e da inconsequente soberania individual.Lembremo-nos da vida nova de Joo Franco. Com o tempo, os liberais deixaram de seruma classe poltica para passar a ser uma classe social. Com a Repblica, praticamentedesapareceram. O papel concedido ao Estado - omnipresente e omnipotente serviu acorrente tendencialmente autoritria da praxis poltica portuguesa. direita e esquerda.Os radicalismos fizeram o resto.

    2. Como lembrou Jaime Nogueira Pinto, foi a esquerda quem inventou as categorias,distribuiu nomes e contou a histria. Eu diria a sua histria. Ao contrrio da Direita, aEsquerda foi alvo de um trabalho de genealogia e de catalogao (meditica e no s), quelhe conferiu corpo e notoriedade. Cresci numa poca e num pas onde o recrudescimento doiderio esquerdista invadira por completo o espectro poltico-partidrio, com reflexosevidentes na chamada sociedade civil. Lembro o que escreveu Paulo Portas em 1992, numaaltura em que a ideia de se tornar num poltico lhe era totalmente avessa: Devo a VascoGonalves o facto de ser uma criatura irremediavelmente de direita. Olhei para ele e fiqueicontra-revolucionrio. Quando se novo, e falta de uma educao poltica, navega-se vista, com base em convices mais ou menos difusas, resultantes mais de reaces doque afirmaes. Em vora, cresci com a Esquerda a fazer-se ouvir nas tertlias, noscafs, na rua, no teatro, nas capelinhas culturais (faz, alis, parte da sua gnese essa formade incitao explicita, esse esforo de arregimentar os outros, essa propenso para ascausas audveis e fracturantes). Ser de direita, em vora, significava estar ao lado doslatifundirios preguiosos e falidos que, envergando patilha farta e bota cardada autoritria,pareciam contrariar as foras progressistas e reformistas, para alm, claro, decomerem ao pequeno almoo os que trabalhavam a terra. Se o critrio fosse esse o da

    notoriedade, o do barulho, o da capacidade de difuso - justia lhe teria de ser feita: foiprofcuo o trabalho dos homens de esquerda na difuso das suas cosmovises, da suasensibilidade, dos seus convencionalismos, aliado a uma presunosa superioridade moral.Bem vistas as coisas, essa inveno de categorias, e a proeminncia do que era umverdadeiro cdigo de tiques, posturas e atitudes, foi essencial na produo de reaces ede um crescente cepticismo face s bebedeiras colectivas, s vagas de fundo e acidental passeata. Para o bem e para o mal, a Esquerda era claramente aquilo. Gentehouve, principalmente a mais nova (onde eu humildemente me inclu), que cedo reconheceuque aquilo no lhe servia. Desconhecia, contudo, as origens, os princpios e a formacontrria daquilo. O que no de estranhar: autores como Hayek, Oakeshott, Aron,

    Berlin, von Mises ou Popper, para s falar nos contemporneos, no pertenceram, duranteanos, ao cnone institudo.

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    3. H quem advogue, hoje, que a boa e velha dicotomia est morta ou que, no mnimo, j no

    interessa. Que, afinal, os fins so iguais. No so. Nunca foram. Mas isso fica para mais

    tarde.

    (Originalmente publicado no blogue Contra a Corrente.)

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