sob o signo de capricÓrnio: a jornada do herÓi no...

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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS ADRIANO LUÍS FONSACA SOB O SIGNO DE CAPRICÓRNIO: A JORNADA DO HERÓI NO QUADRINHO CORTO MALTESE, DE HUGO PRATT DISSERTAÇÃO CURITIBA 2018

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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS

ADRIANO LUÍS FONSACA

SOB O SIGNO DE CAPRICÓRNIO: A JORNADA DO HERÓI NO

QUADRINHO CORTO MALTESE, DE HUGO PRATT

DISSERTAÇÃO

CURITIBA

2018

ADRIANO LUÍS FONSACA

SOB O SIGNO DE CAPRICÓRNIO: A JORNADA DO HERÓI NO

QUADRINHO CORTO MALTESE, DE HUGO PRATT

Dissertação apresentada como requisito

parcial à obtenção do título de Mestre em

Estudos de Linguagens, pelo Programa de

Pós-Graduação em Letras: Estudos de

Linguagens (PPGEL) – na linha de pesquisa

Estéticas Contemporâneas, Modernidade e

Tecnologia, da Universidade Tecnológica

Federal do Paraná (UTFPR).

Orientador: Prof. Dr. Márcio Matiassi

Cantarin

Coorientadora: Profa. Dra. Juliana Sousa

CURITIBA

2018

AGRADECIMENTO

À minha noiva Claudia, sempre presente, companheira de todas as horas e

incentivadora de mais essa jornada em minha vida. Obrigado, minha amada.

À minha família por continuar me dando suporte na vida, inclusive num

momento tão decisivo.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Márcio Matiassi Cantarin, pelos ensinamentos,

pelo apoio à minha formação, pela dedicação e pela amizade.

À minha coorientadora, Profa. Dra. Juliana Sousa, por ter me auxiliado durante o

período de ausência do orientador.

Aos membros da banca, Profº. Dr. Marcelo Fernando de Lima e Profº. Dr. Hertz

Wendel de Camargo, pelas importantes contribuições para o aprimoramento desta

dissertação, bem como por seus auxílios.

Aos meus grandes amigos desde a infância ou adolescência – e fonte de

inspiração e admiração –, Luiz, Cristian, Carlos, Filippi, Filipi (sim, dois Filip-p-is em

minha vida), Bruno, Marcelo, Leonardo (citados em ordem cronológica de quando nos

conhecemos para não haver desentendimentos) e, é claro, meu irmão e sempre amigo

Cassiano.

Aos demais professores do mestrado, pela entrega com que lecionam e pelo

empenho em nos ajudar a trilhar o caminho do conhecimento.

Aos meus colegas de turma, pelo aprendizado em conjunto e por todo suporte.

Ulisses

O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo -

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos criou.

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade,

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre.

(PESSOA, 1934)

7

RESUMO

A presente pesquisa teve por objetivo principal compreender como uma narrativa moderna

apresenta o mito e seus arquétipos, além disso a maneira pela qual representa a jornada do

herói. Para executar a análise, utilizou-se a história em quadrinhos Corto Maltese: Sob o

Signo de Capricórnio, do cartunista italiano Hugo Pratt. Para chegar ao resultado, foi feito

inicialmente o questionamento: De que modo a jornada do herói marca sua presença e se

manifesta na linguagem da HQ Corto Maltese e como os mitos são revelados por meio do

olhar do autor, um estrangeiro à maioria das nações sobre as quais escreve? Após a

verificação da revisão bibliográfica de variados temas relacionados às narrativas e aos

quadrinhos, chegou-se ao caminho de análise que entrelaçou as teorias mais adequadas para

a proposta. A obra foi analisada por meio do mito do homem moderno, ou seja, como um

produto e um personagem criados sob o olhar de um estrangeiro às culturas das quais a

história trata. Não só a história de Corto atualiza os mitos, bem como satisfaz os anseios do

homem moderno que, afinal, é um viajante por natureza (em sentido figurado ou não). Por

fim, com o método de análise da jornada do herói proposto por Christopher Vogler, foi

identificado que esse aparente padrão arquetípico está também presente na referida obra, a

qual é um produto cultural do homem advindo da modernidade e suas tecnologias.

Palavras-chave: Corto Maltese, Hugo Pratt, Jornada do Herói.

8

ABSTRAC

This research aims to understand how a modern narrative exhibits the myth and its

archetype as well as how the hero‟s journey is represented. In order to fulfill this objective,

the comic Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio, made by the Italian cartoonist Hugo

Pratt, was analyzed. As a methodology, the following question was proposed as guide: In

which way the hero‟s journey is presented and manifested in the language of HQ Corto

Maltese: Sob o Signo de Capricórnio and how the myths are revealed by the perspective of

author, an outsider in relation of the countries he wrote about? After the literature review

about some themes concerning narratives and comics, it was possible to formulate the paths

of analysis which connected the most appropriate theories for fulfill the goal of this

research. The comic book was analyzed by the perspective of the modern men‟s myth: as a

product and a character created by a man who was an outsider to the cultures he talks about.

Not only does the comic‟s history retell myths by a modern view, but also it satisfies the

aspiration of modern man who, after all, is a traveler by nature (figuratively speaking or

otherwise). Finally, using this method of analysis suggested by Christopher Vogler, it was

possible to identify that the hero‟s journey archetype is present in the Hugo Pratt‟s comic

book, a cultural product, made by men, which comes from modernity and its technology.

Keywords: Corto Maltese, Hugo Pratt, Hero‟s journey.

9

LISTA DE IMAGENS

IMAGEM 1 – HUGO PRATT.............................................................................................. 11

IMAGEM 2 – FOTO DE HUGO PRATT.............................................................................12

IMAGEM 3 – HUGO PRATT...............................................................................................13

IMAGEM 4 – WILL EISNER...............................................................................................19

IMAGEM 5 – HUGO PRATT...............................................................................................20

IMAGEM 6 - HUGO PRATT ............................................................................................. 21

IMAGEM 7 – COLUNA TRAJANO....................................................................................23

IMAGEM 8 - ART SPIEGELMAN......................................................................................26

IMAGEM 9 - NOBUHIRO WATSUKI.............................................................................. .29

IMAGEM 10 - SCOTT MCCLOUD.................................................................................... 32

IMAGEM 11 - YOSHIHIRO TOGASHI............................................................................. 32

IMAGEM 12 - SCOTT MCCLOUD...............................................................................33-34

IMAGEM 13 - SCOTT MCCLOUD...............................................................................34-35

IMAGEM 14 – HUGO PRATT.....................................................................................……36

IMAGEM 15 – HUGO PRATT.............................................................................................44

IMAGEM 16 – MARVEL COMICS.....................................................................................48

IMAGEM 17 – HERGÉ........................................................................................................51

IMAGEM 18 – HUGO PRATT.............................................................................................52

IMAGEM 19 – RENATA FARHAT BORGES....................................................................54

IMAGEM 20 – HUGO PRATT............................................................................................ 56

IMAGEM 21 – HUGO PRATT.............................................................................................57

IMAGEM 22 – JOSEPH LÉON RIGHINI............................................................................58

IMAGEM 23 – HUGO PRATT.............................................................................................59

IMAGEM 24 - HUGO PRATT.............................................................................................59

IMAGEM 25 - ELLIPSE ANIMATION...............................................................................61

IMAGEM 26 – HUGO PRATT.............................................................................................64

IMAGEM 27 - HUGO PRATT.............................................................................................67

IMAGEM 28 - HUGO PRATT.............................................................................................78

IMAGEM 29 - HUGO PRATT.............................................................................................80

IMAGEM 30 - HUGO PRATT.............................................................................................81

IMAGEM 31 – HUGO PRATT.............................................................................................82

IMAGEM 32 - HUGO PRATT.............................................................................................84

IMAGEM 33 - HUGO PRATT.............................................................................................87

IMAGEM 34 - HUGO PRATT.............................................................................................87

10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11

1. SOB O SIGNO DOS QUADRINHOS: LINGUAGENS E TEORIAS .................. 18

1.1. Discurso narrativo e quadrinhos ...................................................................... 31

2. SOB O SIGNO DA ANÁLISE ............................................................................... 39

2.1. Viajantes e começo de um mito ....................................................................... 39

2.2. O formato que aventura um marinheiro ........................................................... 46

2.3. Análise Mitológica Simbólica ......................................................................... 62

2.4. A jornada do herói em Corto Maltese .............................................................. 78

3. FÓRMULA? UMA CONCLUSÃO ........................................................................ 92

REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 94

11

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa, desenvolvida entre 2016 e 2017 no âmbito do Programa de

Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da Universidade Tecnológica Federal do

Paraná (UTFPR), teve por objetivo geral investigar a jornada mítica do herói presente

no volume Sob o Signo de Capricórnio (2006), da série de histórias em quadrinhos

Corto Maltese1 do cartunista italiano Hugo Pratt, com vistas a compreender como uma

narrativa moderna apresenta o mito e seus arquétipos.

Corto Maltese foi concebido e desenhado em 1967. A primeira história e

aparição do personagem foi na série Una Ballata del Mare salato ou A Balada do Mar

Salgado em português, impressa em 10 de Julho na Revista Sgt. Kirk. Essa edição

versa sobre contrabandistas e piratas nas Ilhas do Pacífico na época da Primeira Guerra

Mundial.

Imagem 1 – Capa da primeira edição de Corto

Maltese publicada em italiano.

Fonte: Hugo Pratt, 1967.

Corto Maltese é marinheiro da Marinha Mercante e, vez ou outra, intitula-se

como um Cavalheiro da Fortuna ou Cavalheiro de Sorte (depende da versão da

tradução). Ele é filho de um marujo da Royal Navy, originário da Cornualha, e de uma

1 Sempre que o termo “Corto Maltese” se referir à série como um todo, e não ao personagem em si, ele

será grafado em itálico.

12

cigana natural de Sevilha. Nasceu em La Valletta, ilha de Malta, em 10 de Julho de

1887 e possui nacionalidade britânica. Segundo seu passaporte, vive em Antígua e

Barbuda, nas Antilhas, mas sua única residência conhecida nas histórias é em Hong

Kong.

Em suas aventuras cheias de referências históricas, Corto se encontra com

personagens reais, como o escritor Jack London, o piloto alemão Barão Vermelho, o

cangaceiro Corisco, dentre outros. Ele participa de diversas aventuras e conflitos em

variadas regiões do mundo, do oriente distante ao oriente próximo, da Europa às

Américas.

Muitas histórias do personagem se passam na América Latina e, sobre o Brasil,

Pratt escreveu a história Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio, volume que

sucedeu A Balada do Mar Salgado. Nela, o personagem, que teria por volta de 26 e 30

anos de idade, aventura-se pela Bahia e nordeste brasileiros, onde também encontra

personagens reais, como o já citado Corisco de São Jorge (cujo nome verdadeiro era

Cristino Gomes da Silva Cleto, nascido em 1907, foi cangaceiro do grupo de Lampião e

morto em 1940 por soldados da volante), além de figuras fictícias baseadas em tipos

históricos. Macumbeiras, visões oníricas e figuras míticas, como Ogum Ferreiro e

Iemanjá, também estão presentes na narrativa.

Imagem 2 – Foto de Hugo Pratt (SOLO, 2010).

13

Imagem 3 – Capa da edição brasileira e portuguesa de Sob o Signo de (do) Capricórnio.

Fonte: PRATT, 2006 e 1997.

Assim como seu personagem, Hugo Pratt também conheceu o mundo e teve uma

vida de aventuras. Nascido na cidade de Rímini, na Itália, passou a infância em Veneza.

Ainda jovem, foi morar na Etiópia com seus pais onde teve contato com diversas

culturas e línguas locais. Com um empregado da família, aprendeu a falar abissínio e

swahili, bem como se iniciou na cultura do país.

Em 1941, Pratt foi preso durante a repressão aos grupos que brigavam pela

independência da Etiópia por defender a emancipação do país e deportado à Itália; após

três anos, em Veneza, nova prisão, agora pela SS alemã, da qual posteriormente fugiu.

Então, uniu-se às tropas aliadas, assumindo o cargo de intérprete e organizador de

espetáculos para os soldados.

Após a Guerra, começou sua carreira como desenhista de HQs na revista Albo

Uragano, fazendo parte do Grupo de Veneza, composto também por Alberto Ongaro,

Bellavitis, Dino Battaglia, Fernando Carcupino, Ivo Pavone, Paolo Campani e Rinaldo

D‟Ami. Tendo como referência o desenho de Milton Caniff, do qual sempre foi um

grande admirador, produziu seus primeiros quadrinhos. Para a obra idealizada pelo

roteirista Alberto Ongaro, criou o conceito visual para o herói Asso di Picche, um

14

jornalista que, à noite, combate o crime em Nova Iorque. Além disso, Pratt fez outros

pequenos trabalhos.

Com a maioria dos autores do Grupo de Veneza, em 1949 imigrou para a

Argentina, país no qual trabalhou por mais de uma década. Lá, fez uma frutífera

parceria com o roteirista Hértor Oesterheld, que culminou nos memoráveis Sargento

Kirk (1953), Ticonderoga (1957) e Ernie Pike (1957). Na Argentina, também produziu

suas primeiras obras solo: Ana de la Jungla (1959), El Capitán Cormorant (1962) e

Wheeling (1962).

Regressou à Itália, onde fundou a já mencionada revista Sgt. Kirk, na qual iria

surgir Corto Maltese. Isso após um breve período na Inglaterra onde criou histórias

sobre guerra para a Fleetway Publications (VERGUEIRO, 2003). No Brasil, ajudou

Enrique Lipszyc na criação da Escola Pan-americana de Arte. Possui uma filha de um

relacionamento com uma brasileira, aparentemente de uma índia xavante, e participou

de diversas palestras no grupo Abril (PRATT, 2006).

Após esse período, basicamente dedicou-se somente a Corto Maltese. No ano de

1970, Pratt mudou-se para a França onde produziu, por quatro anos, várias histórias de

20 páginas para a revista Pif gadget. Publicou também em outras revistas conceituadas,

como Linus, Europeo, A Suivre e Corto Maltese, posteriormente essas histórias foram

compiladas em álbuns luxuosos. Hugo Pratt seguiria com o herói até sua última

narrativa, Mu, a Cidade Perdida, publicada em 1989, seis anos antes de seu

falecimento.

Fora do universo de Corto Maltese, Pratt também produziu a história Os

Escorpiões do Deserto (1980). Inspirada em fatos reais, conta as desventuras de um

grupo da elite militar britânica liderada pelo polonês Koinsky, também fez grande

sucesso e possui em sua narrativa a atmosfera do onírico, tema querido por Pratt e

sempre presente em suas obras. Possui alguns trabalhos feitos em colaboração com o

também cartunista italiano Milo Manara, dentre eles The Ape, para a Heavy Metal

revista cult do início dos anos 1980, Verão Índio (1983) e El Gaucho (1992).

Sua carreira ficou mundialmente marcada justamente pelo personagem que

desenhou na maior parte de sua vida, Corto Maltese, que influenciou diversos artistas ao

redor do globo. Por essa influência, como homenagem, no quadrinho The Dark Knight

Returns, o artista Frank Miller criou uma ilha chamada Corto Maltese, a qual

15

recentemente também apareceu no seriado Arrow, baseado no herói Arqueiro Verde da

DC Comics, do canal estadunidense The CW.

Assim como outras histórias em quadrinhos, Corto foi adaptado para animação,

esta produzida pelo estúdio Ellipse Animation (Doug Funnie, As Aventuras de Tintim,

Babar, dentre outros) em parceria com os canais televisivos franceses Canal + e France

2; também possui um jogo para computador, intitulado Corto Maltese - Secrets of

Venice.

Nas influências ficcionais de Pratt, figuram autores da literatura mundial, tais

como Joseph Conrad, Robert-Louis Stevenson, Hermann Hesse, Ernest Hemingway,

Jack London, Rudyard Kipling e André Malraux.

Com toda essa biografia, torna-se compreensível que estudar Hugo Pratt e seu

personagem é de vital importância para a academia, afinal “como escreve Umberto Eco

sobre Corto, o fato é que foi Hugo Pratt quem marcou a imaginação que trespassa as

fronteiras do espaço e da imaginação (LOUÇÃ, 2017).”

A ideia para essa pesquisa partiu de uma inquietação advinda da leitura do

quadrinho. Nele, nota-se que a narrativa se isola em um padrão arquetípico e que as

influências literárias do autor, bem como suas experiências de vida, refletem-se em sua

obra. Aqui, essa relação entre autor, viagens e sua obra já nos encaminha aos objetivos

específicos de uma análise.

Estudar quadrinhos no Programa em Estudos de Linguagens visa contribuir com

o leque do aprendizado dentro da estética e da linguagem nas narrativas ficcionais. Con-

firmamos também o aporte aos estudos literários, pois encontramos nos quadrinhos

“leitura” em um “sentido mais amplo que o comumente aplicado ao termo” (EISNER,

1989, p.7). A singular combinação da palavra e da imagem que “os modernos artistas

dos quadrinhos vêm desenvolvendo no seu ofício (EISNER, 1989, p.8)” fez com que

conseguissem durante o processo “uma hibridação bem-sucedida de ilustração e prosa

(EISNER, 1989, p.8)” o que nos leva a entender a importância de se estudar HQ de um

modo geral. Logo, pelos quadrinhos serem um produto derivado das artes, mas pautado

nas mídias de uma sociedade globalizada e de massas, outros pesquisadores de áreas,

como as da antropologia, artes, comunicação, mídia e sociologia, encontrarão, em seus

estudos, um amplo campo de possibilidades de interesse.

Mesmo que estejamos vivendo a era do streaming, dos seriados televisivos e das

webséries, a história em quadrinho mantém forte seu espaço na cultura midiática. Como

16

um produto de consumo, seu tamanho no mercado tem crescido novamente. Hoje em

dia, alguns leitores adquirem HQs pelo meio digital, mas a participação desse segmento

ainda é tímida, e as vendas físicas superam em muito as digitais, além de estarem em

crescimento (OVANDO, 2017). Também é perceptível que existe o leitor veterano,

aquele que compra HQs desde o século XX continuando a consumir esse tipo de

literatura por ser um “público do próprio formato”, mas também temos o leitor jovem

que entrou em contato com as HQs por outros meios. Indiferentemente ao acesso, é

notável a força que os quadrinhos exercem na cultura atual ao lembrarmos

simplesmente que, há quase duas décadas, eles vêm ditando fortemente as regras nas

produções cinematográficas hollywoodianas.

No mercado estadunidense, as grandes editoras DC e Marvel mantêm o mono-

pólio das vendas dos quadrinhos e, em 2016 com cerca de nove milhões de HQs

vendidas, fez seu melhor número de vendas desde 2003. Todavia, ainda não consegue

bater o recorde histórico ocorrido em 1993, quando 48 milhões de HQs foram consumi-

das em abril daquele ano (HESSEL, 2016). Já o quadrinho independente, se olharmos

aqui para o Brasil como exemplo, também tem movimentado o mercado geek por meio

de feiras e eventos com seus variados estilos e formatos, as pessoas não têm mais

“medo” de consumir o estilo (CASARIN, 2015).

Corto Maltese se diferencia por se situar no universo do quadrinho europeu e por

ser de um período histórico anterior ao nosso. O mercado Europeu de HQ está entre os

três maiores junto com o dos Estados Unidos e Japão. No mercado franco-belga, a

realidade do formato, distribuição e periodicidade é diferenciada dos demais.

Geralmente lançados em álbuns de 50 páginas, cada edição europeia pode levar um ano

ou mais para ser produzida (COSTA NETO, 2016).

Sabemos que “um dos primeiros traços do procedimento científico é que ele não

exige a observação de todas instâncias de um fenômeno para descrevê-lo; ele procede

antes por dedução” (TODOROV, 2010, p.8), logo, com esse e todos os outros fatores

anunciados, chegamos então ao ponto de identificar o caminho metodológico a ser to-

mado a fim de lidarmos com os dados e propostas da pesquisa da melhor forma

possível. Para tanto, tendo em vista o objeto de estudo, o mais pertinente a ser

explorado é a análise de conteúdo. As proposições de Christopher Vogler (2006) foram

tomadas como aporte metodológico e, a partir delas, foi possível identificar a jornada

mítica do herói presente no objeto, além de cerca de 7 arquétipos básicos que estão

17

presentes, segundo o autor, nas narrativas contemporâneas. Lembrando que essas

narrativas incluem a literatura, o cinema e o quadrinho, tais arquétipos se encontram

justamente entre esses estilos. Vale salientar que o cinema também é uma arte

sequencial2 ou sequência de planos, assim como a televisão. Esse método, somado à

revisão bibliográfica sobre o mito, arquétipo e símbolo, forma a metodologia.

Então, têm-se como problema central: De que modo a jornada do herói marca

sua presença e se manifesta na linguagem da HQ Corto Maltese?

Pensar como os mitos são manifestados por meio do olhar do cartunista italiano

Hugo Pratt, um estrangeiro à maioria das nações sobre as quais escreve, é outro

importante objeto de reflexão.

Para responder o principal questionamento, outras preguntas deverão ser

exploradas: Os 12 passos propostos por Vogler podem ser encontrados em Corto

Maltese: Sob o Signo de Capricórnio? Algum não está presente? Por quê? Qual a

função de cada arquétipo no quadrinho?

No capítulo 1, temos abordados os temas e as teorias que definem os caminhos

deste trabalho. Nele, são tratados temas pertinentes às narrativas, linguagens e histórias

em quadrinhos. Sobre HQs, são perpassados os temas técnicos e históricos do estilo,

bem como as narrativas com foco nos quadrinhos, no discurso narrativo, na hibridização

cultural dentre outros.

No capítulo 2, a análise do objeto em si é feita. Temos a análise de como Hugo

Pratt produz tecnicamente seus quadrinhos, seus padrões estilísticos, o que lhe

diferencia de outros autores e de onde advêm suas referências e inspirações. Também

encontramos a mitologia, literatura de viagem e arquétipos, assim como comentamos

sobre como essas teorias se entrelaçam em Corto Maltese através da jornada do herói.

Como resultado, verifica-se a presença dos arquétipos e da jornada do herói em

Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio e, por fim, tecem-se considerações finais

sobre a descoberta.

2 Imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações

e/ou a produzir uma resposta no espectador (MCCLOUD, 2005, p. 20).

18

1. SOB O SIGNO DOS QUADRINHOS: LINGUAGENS E TEORIAS

A mistura especial entre imagens e escrita não é nova. Sua justaposição é

experimentada desde tempos antigos. No ocidente, a inclusão de enunciados nas

pinturas que retratavam pessoas, de modo geral, foi deixada de lado somente após o

século XVI. Artistas começaram a concentrar seus esforços em traduzir essas

proposições, que outrora eram na forma de escrita, por meio de expressões faciais,

posturas ou cenários simbólicos. Depois, no século XVIII, a escrita reaparece em

panfletos e publicações populares. Os artistas que se preocupavam em contar histórias

para o público de massa buscavam

criar uma Gestalt, uma linguagem coesa que servisse como veículo para a expressão

de uma complexidade de pensamentos, sons, ações e ideias numa disposição em

sequência, separadas por quadros. Isso ampliou as possibilidades da imagem

simples. No processo, desenvolveu-se a moderna forma artística que chamamos de

histórias em quadrinhos (EISNER, 1989, p.13).

Apesar de originar-se de um mesmo local, a HQ é lida com esses dois

dispositivos, imagens e palavras, o que, segundo Will Eisner, decerto são consideradas

em separado por mera arbitrariedade. Todavia, a separação “parece válida, já que no

moderno mundo da comunicação esses dispositivos são tratados separadamente”

(EISNER, 1989, p.13).

As escolhas das palavras capazes de comunicar o que o autor deseja são cruciais

para a criação da narrativa num quadrinho, pois elas aparecem em menores quantidades

na obra se compararmos com a literatura. McCloud, mesmo após afirmar que acredita

ser capaz de histórias em quadrinhos serem criadas sem palavras, deixa claro que

Na maioria das boas histórias em quadrinhos, esse equilíbrio (entre palavras e

imagens) é dinâmico. Por vezes, as palavras assumem a frente, outras vezes são as

imagens... mas ambas atuam juntas para impelir a história para a frente

(MCCLOUD, 2008, p.128).

William S. Burroughs tratava a escrita como tecnologia, se olharmos que

palavras são feitas de letras e que elas são símbolos derivados de imagens comuns

refinadas até o ponto de se tornarem simplificadas e abstratas, podemos identificar que

essa afirmação é válida. Para elucidar, Will Eisner diz, por exemplo, que, no

desenvolvimento histórico dos pictogramas japoneses ou chineses, temos a imagem

visual tornando-se secundária e atribuindo importância central à execução prática do

19

símbolo. Por meio desse desenvolvimento, a arte da caligrafia evoluiu para uma técnica

que, na sua individualidade, assoma beleza e ritmo (EISNER, 1989, p.14). Essa lógica

pode ser também notada nos quadrinhos, onde “o estilo e a aplicação sutil de peso,

ênfase e delineamento combinam-se para evocar beleza e mensagem (EISNER, 1989,

p.14)”.

A seguir, na Imagem 4, nota-se que seja pela escrita que virou abstração ou pelo

desenho ilustrativo, o significado se exprime por meio de um símbolo.

Imagem 4 – Comparação entre pictogramas e representações cartunescas.

Fonte: EISNER, p. 15, 1989.

Uma série de outras técnicas norteia a criação de um quadrinho, por exemplo, o

enquadramento que, como no cinema, delimita o ângulo de visão da cena que está sendo

apresentada, mas por diferença necessita congelar um momento específico. Isso para

que uma imagem combine com a próxima a fim de gerar, na mente do leitor, ações e

noção de tempo. Também díspar do cinema, nas HQs os autores precisam lidar com a

possibilidade, sempre presente, de a visão do leitor se desviar ou se adiantar ao

andamento da narrativa. Logo, a disposição da página precisa encaminhar a leitura da

forma mais fluída possível.

Eisner passa à noção técnica de requadro o recorte do quadro. Nele, o autor

delimita se a totalidade de uma imagem será apresentada ou só parte dela, o restante

será preenchido pela mente do leitor por meio de suas noções sensoriais. Como recurso

narrativo, o requadro ajuda a criar diversas sensações, como emoções explosivas, noção

de altura, ilusão de ameaça ou delimitação de espaços.

Funcionando como um palco, o quadrinho controla o ponto de vista do leitor, o

contorno do quadrinho torna-se o campo de visão do leitor e estabelece a perspectiva

a partir da qual o local da ação é visto. Essa manipulação permite ao artista

esclarecer a atividade, orientar o leitor e estimular a emoção.

20

A “posição” do leitor é pressuposta ou predeterminada pelo artista. Em cada caso o

resultado é a visão que o leitor terá (EISNER, 1989, p.88).

Na imagem a seguir, vemos uma página de Corto Maltese, edição As Célticas.

Nela, identificamos somente quadros como contêiner, o layout mais básico oriundo das

tiras dos jornais onde as limitações de produção eram maiores. Apesar das variações do

tamanho dos quadrinhos, eles basicamente só delimitam a disposição das imagens e da

ação, ali não há requadros para auxiliar na expressão da narrativa. As imagens e o texto,

quando presentes, são os principais responsáveis pela narrativa. Enfim, podemos notar

também as escolhas estilísticas do autor.

Imagem 5 – Página diagramada com quadrinhos em forma de contêiner.

Fonte: PRATT, 1980, p.10.

21

Percebemos como todo o emaranhado de técnicas utilizadas para a confecção

dos quadrinhos traduz-se em seu estilo. A escolha dos quadros, requadros, tipo de

impressão e outros são os responsáveis pela criação o que perpassa pelo

“desenvolvimento inexorável da tecnologia das comunicações (servindo) para

universalizar imagens da experiência humana comum (EISNER, 1989, p.100)”.

Imagem 6 – Corto Maltese cita Arthur Rimbaud.

Fonte: PRATT, 1979b, p. 32.

Quando, na imagem acima, Corto Maltese cita o poeta Arthur Rimbaud,

podemos já imaginar a forte ligação que os quadrinhos têm com a literatura. Não

somente por causa da referência do autor, mas também por causa de todo texto escrito

em Corto Maltese e da sua linguagem visual, podemos encarar a HQ como um romance

que pede diversos “tipos de leitura” por parte leitor, a narrativa brinca com a

22

imaginação e traz sérias reflexões sobre o humano e a vida, tendo aqui um valor

equivalente ao da literatura como expressão humana e artística.

Corto Maltese não está isolado em si, as HQs como um todo atraem cada vez

mais a atenção de críticos, conquistando prêmios outrora só ofertados para livros da

literatura canonizada e alcançando seu patamar como arte séria e de qualidade

intelectual e estética.

Se pensarmos na estética da arte como não dissociada da sociedade e suas

mudanças, mas sim embutida nelas, os quadrinhos também não estão afastados de

outras áreas do conhecimento humano, afinal eles se utilizam de vários elementos já

criados pelo intelecto humano. Quando Canclini nos lembra de que

As histórias em quadrinhos se tornaram a tal ponto um componente central da

cultura contemporânea, com uma bibliografia tão extensa, que seria trivial insistir no

que todos sabemos de sua aliança inovadora, desde o final do século XIX, entre a

cultura icônica e literária (CANCLINI, 2013, p. 339),

conseguimos notar a importância cultural das HQs e como elas estão inseridas na

cultura contemporânea.

Scott McCloud, assim como Eisner, lembra-nos de que essa “aliança inovadora”

do final do século XIX é uma criação mais remota e primordialmente híbrida do que se

imagina. Os profissionais da área costumam acreditar que a primeira HQ surgiu no final

do século XIX, na revista estadunidense Truth. The Yellow Kid, desenhada pelo artista

Richard Felton Outcault é, em alguma medida, considerada a inspiração para a criação

dos quadrinhos modernos, no entanto, como mostra McCloud, em Desvendando os

Quadrinhos, a técnica de sugerir movimento por meio de imagens estáticas é bem mais

antiga do que se pensa. Esse equívoco ocorre porque não houve um estudo aprofundado

do assunto até o momento, pois “a maioria dos livros sobre quadrinhos começa pouco

antes da virada do século” (MCCLOUD, 2005, p.8). Como o autor também demonstra

nas páginas dez a vinte de seu livro, a arte sequencial, forma artística que se utiliza de

imagens inseridas em sequência para narrar um enredo ou passar informações, já estava

presente em pinturas pré-colombianas, entalhes egípcios, tapeçaria francesa, arabescos

japoneses, dentre outros. Um dos exemplos mais conhecidos é a Coluna de Trajano,

monumento construído na cidade de Roma em comemoração às campanhas militares

em Dácios. Com cerca de trinta metros de altura e construída em blocos de mármore,

em forma de espiral, com figuras em baixo relevo, ela conta várias vezes a história da

23

tal guerra. Técnicas revolucionárias para a época foram utilizadas, como a separação de

cenas através da figura de uma árvore e a própria forma rudimentar dos quadrinhos,

logo uma arte sequencial.

Imagem 7 – Coluna de Trajano e detalhe.

24

Como nas histórias em quadrinhos a movimentação das figuras se dá por meio

de imagens sequenciais atuantes na imaginação do leitor que se combinam ao texto

escrito, geralmente em formato de balões ou caixas, vemos propriedades ditas de outras

áreas aglutinadas em uma única. Scott McCloud mostra a existência dessa aglutinação

de tipos artísticos que as HQs possuem ao pontuar que essa combinação precisa ser

adequada para a narrativa funcionar no formato. Ele diz ainda que quando palavras e

imagens se combinam sem emendas é que os quadrinhos encontram sua melhor forma

(MCCLOUD, 2008, p. 149). Essas emendas seriam rupturas ou falta da combinação

(hibridização) adequada que criariam o formato “correto” dos quadrinhos. Esclarecemos

aqui a necessidade de combinação de aparentes díspares formas artísticas a fim de

formar algo novo e coeso.

A diferença entre os quadrinhos e outras obras de arte que, em um primeiro

momento, pareçam similares está nas ferramentas e procedimentos de trabalho, mas os

objetivos desse formato diferenciado seriam os mesmos em quaisquer artes: conquistar

a mente do leitor (MCCLOUD, 2008, p. 151). McCloud defende que o público deve ser

conquistado, todavia obviamente algum quadrinista pode ter objetivos díspares para

com sua obra como criar “arte pela arte” ou outras acepções. Mesmo que feita para as

massas,

a cultura veiculada pela mídia não pode ser simplesmente rejeitada como um

instrumento banal da ideologia dominante, mas deve ser interpretada e

contextualizada de modos diferentes dentro da matriz dos discursos e das forças

sociais concorrentes que a constituem (KELLNER, 2001, p. 27).

Toda a reflexão sobre a cultura, mídia ou arte no geral não pode ser reduzida a

grupos seletos de produções humanas. Afinal, entender

o que é arte não é apenas uma questão estética: é necessário levar em conta como

essa questão vai sendo respondida na intersecção do que fazem os jornalistas e os

críticos, os historiadores e os museógrafos, os marchands, os colecionadores e os

especuladores (CANCLINI, 2013, p. 23).

Já o híbrido, segundo Néstor García Canclini, é “(...) processos socioculturais

nos quais estruturas práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam

para gerar novas estruturas, objetos e práticas.” (CANCLINI, 2013, p. XIX). Logo, a

HQ seria resultado de combinações que os processos socioculturais fizeram eclodir em

artistas nas suas formas de se expressarem além das hibridizações de estilos artísticos.

Afinal, “a incerteza em relação ao sentido e ao valor da modernidade deriva não apenas

25

do que separa nações, etnias e classes, mas também dos cruzamentos socioculturais em

que o tradicional e o moderno se misturam” (CANCLINI, 2013, p. 18).

Para Canclini, as HQs também seriam um gênero impuro. Apesar do tom

pejorativo que o autor parece utilizar com essa palavra, ele não deixa de ter razão

levando em conta o que sabemos sobre a hibridização e as mesclas estéticas que os gibis

fazem para chegar a seus objetivos. Ademais, Canclini é categórico ao afirmar que

existem gêneros constitucionalmente híbridos, como os quadrinhos (CANCLINI, 2013,

p. 336).

Todavia, se pensarmos a fundo, praticamente toda arte não seria impura e uma

mescla de várias expressões humanas? Os quadrinhos não seriam, então, a principal

forma de arte constituída em um período de criações culturais híbridas? Perguntas para

serem pensadas, mas devemos primeiro voltar para as pessoas das sociedades que

permeiam essas reflexões.

No nosso mundo globalizado, as culturas têm se entrelaçado de diversas formas.

Essa mescla de bens culturais e simbólicos tem trazido à tona diversas discussões sobre

o rumo de nossa cultura. Por sua vez, as respostas que as HQs trouxeram aos anseios da

sociedade a partir da modernidade, especialmente para jovens e grupos que precisavam

ser ouvidos, sobretudo a partir do século XX, podem ser percebidas como fenômeno de

mídia provindo da hibridização cultural, além de ser uma resposta para os anseios da

contracultura que buscava questionar os valores e práticas das culturas dominantes.

Sobre esse assunto, Douglas Kellner nos esclarece ao dizer que a cultura da mídia cria

alegorias que articulam os temores, anseios e esperanças de classes sociais e grupos

contemporâneos (KELLNER, 2001, p. 125). Assim, a fantasia e o entretenimento são

bons instrumentos para análise de estudos culturais.

É possível perceber como as histórias em quadrinhos foram fortemente

importantes na contracultura se lembrarmos de alguns exemplos que questionaram a

censura e inovaram não só artisticamente, mas também politicamente (CASSONI,

2016). Na década de 1950 e 1960, nos EUA, a revista MAD, criticava a censura imposta

pelo governo que, embasados pelo psiquiatra Fredric Wertham, propagavam que as HQs

deturpariam a mente dos jovens. Já Trashman, questionava a luta de classes ao

apresentar um futuro distópico em que a polícia fascista controlava rigidamente a

sociedade.

26

Já no romance gráfico Maus, o autor sueco Art Spiegelman narra os efeitos

geracionais que aconteceram em sua família por causa da luta que seu pai empreendeu

para sobreviver ao holocausto através de um formato fabuloso em que os oprimidos são

ratos e os opressores são gatos.

Imagem 8 – Quadro da primeira página da revista Maus.

Fonte: Art Spiegelman, 1980.

Sair de casa e se deslocar por um período de tempo até chegar à ópera, esta a

quilômetros de distância de sua casa, ou ir ao teatro itinerante na praça, este um pouco

mais próximo. Claro que você só poderia fazer isso caso não morasse milhares de

léguas de centros culturais ou espaços onde as expressões artísticas eram propagadas.

Quem sabe lhe sobrariam histórias contadas por bêbados nas tabernas locais ou por

anciões da vila na beira de uma fogueira como em um tempo remoto. Festas folclóricas

e religiosas também seriam opções. Todavia, esse cenário remonta a outra época da

humanidade.

27

Desde os anos de 1950, os principais meios de acesso a bens culturais e

simbólicos, além da escola, são os meios de comunicação de massas. Para Canclini, esse

fato é percebido especialmente na América Latina.

Ao mesmo tempo, a escola vê reduzir-se sua influência: primeiro a mídia de massas

e, recentemente, a comunicação digital e eletrônica multiplicaram os espaços e

circuitos de acesso aos saberes e à formação cultural. (...) Também se aprende a ler e

a ser espectador sendo telespectador e internauta (CANCLINI, 2008, p.24).

Por sua vez, Lucia Santaella, pesquisadora de semiótica e mídias

contemporâneas, encara como fenômeno globalizado o papel central que os meios de

comunicação começaram a ter nas sociedades contemporâneas. A multiplicidade das

mídias resultou no aumento do processo de misturas entre meios de comunicação, algo

que se tornou mais forte a partir dos anos de 1980. Para a autora, a raiz dessa

hibridização de linguagens já existia em suplementos literários ou culturais

especializados de revistas e jornais, em revistas de cultura e arte, no telejornal etc

(SANTAELLA, 2007, p.125). Já as sementes começaram a germinar no século XX

graças ao

surgimento de equipamentos e dispositivos que possibilitaram o aparecimento de

uma cultura do disponível e do transitório: as fotocopiadoras, o controle remoto, a

TV a cabo, os videocassetes e aparelhos para gravação de vídeos, os equipamentos

do tipo walkman e walktalk, acompanhados de uma remarcável indústria de

videoclips e videogames, juntamente com a expansiva indústria de filmes em vídeo

para serem alugados nas videolocadoras (SANTAELLA, 2007, p. 125).

Fica então perceptível como a mídia de massas foi fator determinante no mundo,

em particular a partir do século XX, para moldar culturas e responder a anseios de

grupos sociais ou indivíduos, um verdadeiro caldeirão cultural se formou a partir de

então. Após a massificação, o consumo das mensagens ficou mais personalizado. Para

Santaella, essa lógica cultural que chama de cultura das mídias permitiu ao público

escolher a mensagem que quer receber e não ficar somente incorporando o que é

propagado pelas massas (SANTAELLA, 2007, p. 125). As várias nuances de variações

culturais, que acabam por se apropriar de diferentes linguagens, é o que atualmente se

chama de hibridização cultural.

Santaella nos traz outra reflexão para a questão de hibridização ao refletir sobre

o tema que

28

Não deve haver adjetivo mais fartamente utilizado na cultura contemporânea do que

“híbrido”. De fato, não poderia haver melhor qualificação do que “híbridas” para as

misturas entre as mídias, sob o nome de “multimídia”, e para as misturas entre

sistemas de signos diversos e linguagens distintas, configuradas em estruturas

hipertextuais, sob o nome de “hipermídia” (SANTAELLA, 2007, p. 132).

Levando em consideração que a miscelânea de temas e estilos artísticos seria a

considerada hibridização na contemporaneidade, então outras obras de arte ou culturas

que se uniram e criaram novidades, antes das culturas de massa e do frenesi advindo no

século XX, seriam algo a parte? De um ponto de vista geral, não. Todavia, da forma que

as culturas são propagadas e absorvidas por nichos ou tribos urbanas, pequenos grupos

de pessoas que se unem em prol de gostos em comum a fim de manter relações de

amizade e troca de experiências, como os punks, parece algo próprio dessa novidade na

história humana moderna que a sociedade de massas ainda é.

Aqui percebemos que o termo híbrido nos coloca novamente diante de dilemas:

Existiriam artes puras? O cinema e os quadrinhos, por exemplo, seriam meramente

produtos de uma mescla de cânones artísticos humanos? As respostas talvez não

existam, mas os quadrinhos sabem para que vieram.

Scott McCloud, já nos deixou claro que os quadrinhos vêm de uma concepção

antiga provinda da vontade de criar movimento e contar histórias por imagens

utilizando a arte sequencial (MCCLOUD, 2005, p. 12).

O momento híbrido pelo qual começamos a passar a partir do século XX foi o

ambiente perfeito para o desenvolvimento das HQs. Em paralelo com o cinema que

misturou imagens, sons e movimentos, os quadrinhos misturavam imagens sequenciais,

texto e cores. O objetivo final, basicamente, é o mesmo. Contar uma narrativa

visualmente objetiva que possa se utilizar de linguagem específica para trazer

experiências únicas aos expectadores que são diferentes das encontradas, por exemplo,

no teatro, justamente pelo leitor, no caso das HQs, possuir o domínio do tempo e espaço

em que a obra é propagada. Somente a mente do leitor pode decidir o ritmo que os

quadros e balões são lidos, bem como as lacunas de quadro a quadro são preenchidas

justamente pela imaginação de quem lê, assim como técnicas empregadas na confecção

da obra, como o enquadramento, servem para situar o leitor dos espaços em que ocorre

a narrativa (MCCLOUD, 2008, p.19). Todavia, é claro, em algum nível o ritmo da obra

é ditada pelo criador. Grandes quadros com desenhos detalhados podem suscitar a

necessidade de pausa para contemplação ou análise por parte do leitor, por exemplo.

29

Na imagem 9 abaixo, ilustração do quadrinista nipônico Nobuhiro Watsuki,

autor do famoso e premiado manga, Rurouni Kenshin, vemos como as imagens são

projeções objetivas do que o narrador quis mostrar, mas a ação ocorre na dinamicidade

da leitura. Vale salientar que nos mangas, HQs japonesas, a narrativa é lida da direita

para a esquerda, no eixo horizontal, e de cima para baixo no eixo vertical. Então, os

enquadramentos sugerem os espaços em que a ação acontece e os detalhes importantes

da situação apresentada. Já os espaços entre os quadros deixam de mostrar intervalos

entre uma ação e outra, que são preenchidas pela mente do leitor. Se lido em ritmo

diferente, por exemplo, a interpretação por parte do leitor pode ser outra mesmo que

parcialmente.

Já, narrativamente, vemos a história de um samurai que espera o golpe de seu

adversário enquanto fuma até, por fim, receber um golpe que corta seu cigarro e o faz

ter de acender outro. Essa cena é praticamente toda contada através dos desenhos, mas é

notável como o texto surge em sua forma verbal em onomatopeias para expressar

sentimentos do personagem. Torna-se claro que, como diz Almeida no artigo

Arquitetura da história em quadrinhos Vozes e linguagens, que “na HQ, a função

narrativa é exercida em grande parte através do desenho. Embora vez por outra o

discurso do narrador se apresente sob a forma verbal, ele é materializado

preferencialmente sob a forma icônica” (ALMEIDA, 2001, p.116).

Imagem 9 – Rurouni Kenshin: Tokuitsuban

Fonte: WATSUKI, 2016, p. 86 e 87.

30

Aqui, na cultura do século XXI, as HQs estão inseridas ainda mais dentro da

lógica da sociedade das mídias que é fortemente pautada pelas absorções de valores

culturais e ideológicos. Aparentemente um produto de entretenimento e consumo, os

quadrinhos foram, especialmente até os anos de 1990, mais uma arte de nichos e grupos

específicos. Apesar de os super-heróis americanos como Batman e Homem-Aranha

estarem dentro da lógica de mercado e venderem o suficiente para serem considerados

produtos de massas, até mesmo esses exemplos respondiam a anseios de um grupo

específico da população: os jovens. Se pensarmos no caso de histórias em quadrinhos

que buscavam ser resistência frente às culturas impostas ou serem objeto de crítica

social, aí veremos mais claramente como o nicho é fundamental para compreendermos

os grupos que se formam em torno dos quadrinhos. Obviamente, todas as produções

artísticas possuem públicos específicos, mesmo as que são massificadas, pois nada

abrange toda a diversidade cultural humana. Todavia, quando pensamos o segmento do

público em nichos, é notório como esses grupos estão dentro da lógica dos Sistemas

Midiáticos que

consistem em tecnologias comunicacionais e nas mais variadas práticas econômicas,

políticas, institucionais e culturais que crescem com eles. A emergência de um novo

sistema não desloca o que veio antes, mas adere como uma nova camada, tornando a

ecologia midiática ainda mais estratificada. Os autores reconhecem que, na lista

acima, falta a cultura visual. Mas sua história remonta já ao tempo da cultura oral;

tapeçarias e vitrais fizeram a ponte entre a cultura oral e a impressa; os quadrinhos

existem dentro da cultura impressa, mas também aparecem nos meios de massa, e

assim por diante. (SANTAELLA, 2007, p.122).

O quadrinho seria então uma nova camada que aderiu a cultura e a emergência

do sistema atual. Um possível reflexo dessas incertezas da modernidade que trouxe

anseios de criar e consumir um tipo de produção artística mais dinâmica e facilmente

reproduzível.

Nesses meios de consumo de entretenimento ou artes massificadas é onde

encontramos, hoje, os quadrinhos. Todavia, galerias alternativas e suburbanas também

consomem independentemente certas HQs como arte popular. Um produto? Arte

popular? Cânone artístico? Chegamos ao ponto de crer que os quadrinhos são tudo isso.

31

1.1. Discurso narrativo e quadrinhos

Para entendermos os quadrinhos, a análise das narrativas de uma forma geral

também se faz obviamente necessária. Para verificarmos o que caracteriza uma narrativa

Roland Barthes nos traz uma perspectiva acerca do que seriam narrativas ao dizer que

Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade

prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda

matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode

ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou

móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente

no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na

tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (recorde-se a Santa

Úrsula de Carpaccio), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait

divers, na conversação. Além disso, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está

presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a

narrativa começa com a própria história da humanidade; não há, não há em parte

alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm

suas narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas em comum por

homens de cultura diferente, e mesmo oposta: a narrativa ridiculariza a boa e a má

literatura: internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a

vida. (BARTHES, 1973, p. 19)

Também segundo Barthes, para analisarmos uma narrativa precisamos antes

dividi-la por funções. Essas unidades mínimas existem em todos os segmentos das

histórias. Isso foi posto desde os formalistas russos. Ele também esclarece que “a função

é evidentemente, do ponto de vista linguístico, uma unidade de conteúdo: é „o que quer

dizer‟ um enunciado que o constituiu como unidade funcional não a maneira pela qual

isto é dito” (BARTHES, 1973, p. 29). Vale salientar que as funções de Barthes têm por

origem as funções propostas por Vladimir Propp para os contos maravilhosos.

Como Barthes nos mostra que as histórias em quadrinhos englobam o todo que

são as narrativas, podemos refletir sobre as funções com foco na análise desta

dissertação. As funções distribucionais, relacionadas à Propp, seguem um modelo

clássico no qual a unidade básica de uma ação, como comprar uma pá, terá um correlato

direto da ação que isso poderá desencadear, no caso, o uso dessa pá. Scott McCloud, ao

analisar a narrativa nos quadrinhos, também traz à tona como uma unidade básica de

ação pode gerar outra diretamente ligada à anterior e basicamente o desfecho óbvio do

que o ponto de partida sugeriu. McCloud chama isso, nos quadrinhos, de transições

ação a ação.

32

Imagem 10 – Desenhando Quadrinhos.

Fonte: MCCLOUD, 2008, p. 18.

Posteriormente, as funções integrativas compreendem os índices no sentido mais

geral do termo, pelas palavras de Barthes (1973, p.31). Ainda segundo o autor, neste

caso a unidade não é um ato de consequência, mas algo mais impreciso, importante ao

sentido da história. Aqui, não necessariamente a consequência direta a uma situação

será a que realmente ocorrerá. O acontecimento está mais relacionado à tipologia geral

dos agentes atuantes da ação, significa algo além do obviamente posto.

Imagem 11 – Yu Yu Hakusho.

Fonte: TOGASHI,2003, p.64 a 66.

Na Imagem 11 que possui leitura da direita para a esquerda, podemos notar

como, na primeira página, temos uma função distribucional, já que um soco leva ao

33

arremesso da criatura que levou o golpe. Na sequência, a função se torna integrativa,

pois vemos o aparente óbvio “desequilibrou-se da plataforma e caiu na lava”, mas na

verdade o personagem Kuwabara consegue se salvar, pois ficou pendurado por sua

atadura. Ali temos a tipologia do personagem concretizada, pois se sabe de antemão

nesta história que Kuwabara é desastrado, mas tem muita sorte.

Para entendermos como estas unidades diferentes se articulam umas às outras ao

longo do sintagma narrativo de um quadrinho e como sua sintaxe funcional se encadeia,

podemos pensar na sequência que é nucleada em uma série lógica unida em uma

“relação de solidariedade: a sequência abre-se assim que um dos seus termos não tenha

antecedente solidário e se fecha logo que um de seus termos não tenha mais

consequente” (BARTHES, 1973, p.39). A sequência de acontecimentos, em um

exemplo simples, é algo que vai desde uma pessoa acordar, tomar banho, vestir-se,

tomar café e sair de casa. Nos quadrinhos, essa sequência pode ser algo direto e

correlato como no exemplo que foi dado, ou podemos encontrar alguma outra forma de

sequencialidade mais complexa. Todavia, sempre haverá uma ordem de fatores que se

seguem, mesmo que aparentemente caóticos. Ao demonstrar as transições que quadro a

quadro podem ter em uma história em quadrinhos, McCloud deixa claro como um

possível caos ou desordem pode gerar sentido dentro de sua proposta de linguagem:

34

Imagem 12 – Desenhando Quadrinhos.

Fonte: MCCLOUD, 2008, p. 15.3

Sobre ações nos quadrinhos, por meio de Barthes podemos pensar a personagem

não como um ser, mas como uma participante. Ela é uma agente de uma sequência de

ações, ou seja, uma semente de dente-de-leão que voa por toda uma cidade até repousar

em um riacho, seria uma personagem atuante em uma narrativa. Em outro exemplo,

McCloud mostra como nos quadrinhos elementos são utilizados, no caso, podemos ver

como a chuva seria a protagonista da seguinte sequência:

3 No intuito de fazer a imagem original caber na página sem deixar espaços em brancos, ela foi cortada,

ficando, assim, um pedaço dela em uma página e outro em outra.

35

Imagem 13 – Desenhando Quadrinhos.

Fonte: MCCLOUD, 2008, p. 17.4

Já o problema do sujeito, para Barthes, não é algo muito bem resolvido segundo

o próprio autor. Uma série de análises e autores que ele cita, bem como a teoria da

psicanálise parece não darem conta de definir como um sujeito seria classificado através

de uma fórmula. Barthes mesmo diz que para ele “a verdadeira dificuldade ventilada

pela classificação dos personagens é o lugar (...) do sujeito em toda matriz actancial”

(BARTHES, 1973, p.45). Aqui, cabe salientar que os arquétipos junguianos se tornam

nossa resposta para uma busca pela classificação de tipos aparentemente específicos de

personagens em uma narrativa. Vide, por exemplo, em Corto Maltese: A Juventude

onde o personagem Rasputin age como a sombra do protagonista, o arquétipo “sombra”

é amplamente comum em narrativas. Todavia, Rasputin além de ser um facínora que

age pelos instintos mais violentos que possui o que representa a antítese de Corto,

também é companheiro de muitas viagens do marinheiro. Dessa forma, nas histórias de

Corto Maltese, é perceptível que a sombra do protagonista o acompanha e o provoca

4 No intuito de fazer a imagem original caber na página sem deixar espaços em brancos, ela foi cortada,

ficando, assim, um pedaço dela em uma página e outro em outra.

36

todo tempo, mas não é necessariamente um vilão a ser encarado e Corto convive com

isso.

Imagem 14 – Corto Maltese – A Juventude.

Fonte: PRATT, 2011, p.88.

Ainda em Análise Estrutural da Narrativa (1973), Barthes problematiza sobre a

questão da comunicação narrativa e a interação, básica até, que sabemos existir na troca

entre o interlocutor de um texto e o seu receptor. É interessante pensarmos em sua

afirmação que diz que os signos do narrador parecem ser mais óbvios e em maior

quantidade que os do leitor, mas na verdade o leitor só está mais disfarçado que o

narrador (BARTHES, 1973, p.47). A perda por parte do leitor está em ele acabar

ignorando um signo posto pelo autor durante sua interação com a obra. Podemos então

dialogar com Walter Benjamin que, em Magia e técnica, arte e política (1987), diz que

“a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os

narradores” (BENJAMIN, 1987, p.198). Posteriormente, ele defende também o papel da

narrativa escrita e que ela possui todo um escopo diferenciado da oral o que caracteriza,

por si só, uma interação e produção de sentido específica da qual, podemos crer, a

37

produção de sentido nos quadrinhos também possui. Nesse sentido, o que o leitor ignora

ou não em sua leitura caracteriza ponto-chave na comunicação narrativa. Cada pessoa

tem sua interpretação, e elas variam de pessoa para pessoa, por isso Barthes diz, ao

analisar o cinema, que “não é possível fazer com que a „massa‟ dos leitores e dos

espectadores compreendam uma narrativa.” (BARTHES, 1990, p.56).

Em definição, notamos que o nível narracional é “pois ocupado pelos signos da

narratividade, o conjunto dos operadores que reintegram funções e ações na

comunicação narrativa, articulada sobre seu doador e seu destinatário”. (BARTHES,

1973, p.51). É neste nível que encontramos o que pode ser lido ou não pelo apreciador

da obra.

Já o sistema da narrativa nos quadrinhos passa pelo texto, que precisa incluir

“„afastamentos‟ na sua língua (BARTHES, 1973, p.54)”. O texto e sua combinação são

vitais para a produção de sentido, mas nas HQs temos uma novidade; as imagens

produzem sentido juntamente com o texto ou até mesmo sem ele. Pensar a imagem

sozinha como linguagem poderia gerar polêmica, pois “uns pensam que a imagem é um

sistema muito rudimentar em relação à língua; outros, que a significação não pode

esgotar a riqueza indizível da imagem (BARTHES, 1990, p.27)”. Todavia, é necessário

lembrarmos também que

todas obras de comunicação de massa reúnem, por meio de dialéticas diversas e

diversamente performantes, a fascinação de uma natureza, que é a natureza da

narrativa, da diegese, do sintagma, e a inteligibilidade de uma cultura, refugiada em

alguns símbolos descontínuos, que os homens „declinam‟ sob a proteção da palavra

viva (BARTHES, 1990, p.42).

Nesse sentido, não só a articulação da língua seria imprescindível para o que o proposto

seja compreendido, mas também a leitura semiótica pictográfica, tanto por parte do

interlocutor como do receptor, se faz necessária. A integração dos elementos capazes de

gerar o sentido em uma narrativa não acontece tão facilmente e sua integração é uma

troca que envolve um jogo incessante de elementos e códigos. Logo, os afastamentos

nos quadrinhos acontecem tanto na linguagem verbal quanto na icônica ali presentes. O

que buscamos em uma narrativa é a paixão pela significação que exerça influência sobre

emoções, ameaças, triunfos e esperanças (BARTHES, 1973, p.60). Essa reflexão faz

novamente nos lembrar de Walter Benjamin, quando o autor comenta que a narrativa

possui um papel importante em nos contar histórias que surpreendam e nos enalteçam e

38

não somente sejam informações explicadas e divulgadas (BENJAMIN, 1987, p.203).

Nesse sentido, todos os autores parecem chegar a uma unanimidade sobre o significado

de narrativas para humanidade: a paixão pela significação e pelas histórias que

surpreendem e significam algo para nós.

Por fim, na tese da educadora Cristina Gonçalves, vemos em tópicos

(GONÇALVES, 2008, p.45) um consistente comparativo entre narrativas convencionais

e suas variações encontradas nas histórias em quadrinhos ou banda desenhada em

português de Portugal. A micro, macro e superestrutura do texto narrativo convencional

ou da história em quadrinhos possuem similaridades que dizem respeito a elementos

textuais que as compõem. Todavia, os textos nas HQs são isolados por causa dos

quadros e imagens os quais narram por meio da disposição de seus ângulos,

enquadramentos ou cores. O jogo entre texto e desenho traz a dinâmica do quadrinho,

diferenciando-o de outras narrativas ditas convencionais.

Conclui-se neste capítulo então que as reflexões de Barthes, bem como outras

que dizem respeito às narrativas de um modo geral, também podem ser encontradas nos

quadrinhos ao mesmo tempo em que necessitam dialogar com as teorias e necessidades

específicas dos quadrinhos.

39

2. SOB O SIGNO DA ANÁLISE

2.1. Viajantes e começo de um mito

Como já citado, Hugo Pratt teve uma vida de viajante singular, já que transitava

por lugares exóticos segundo o ponto de vista de um europeu nato. Esse contexto foi

algo extremamente impactante na vida do autor, talvez dissesse um psicólogo que o

analisasse. Tão impactante que suas experiências de viajante e até uma vontade por

novas aventuras foram temas amplamente trabalhados em sua obra. Talvez a forma

como os países são apresentados nas histórias de Corto Maltese não seja em si o que de

mais rico a narrativa possui, mas com certeza o contato de Corto com outras culturas e

civilizações faz parte crucial de suas aventuras. Aqui um mito pode estar se formando,

pois

O tema da viagem tem importância para o mito enquanto passagem ou mutação de

um estado a outro, como são, nos acima exemplificados, a viagem em busca da

imortalidade, a viagem de volta a Ítaca, a viagem a reinos ultraterrenos feito dessa

vez, diferentemente dos anteriormente citados, no estado de sonho que é território do

inconsciente, através de um lugar mítico, mais além: Inferno, Purgatório e Paraíso

(AFFATATO apud KLEIN & CAMARGO, 2017, p.130).

Viajar pode se tornar uma necessidade de vislumbre de nações e realidades

diferentes das quais somos oriundos. Esse é o tema abordado pelo autor Sérgio Cardoso

em seu texto O Olhar dos Viajantes. Ele também fala sobre o etnólogo que, dentro da

ciência, busca uma apreciação analítica e comparativa das culturas e das civilizações,

tendo assim capacidade para entender a dimensão da diversidade humana, o que lhe

permitiria caminhar por diversas sociedades e compreendê-las (CARDOSO apud

NOVAES, 1995, p.360). Hugo Pratt utilizou de suas experiências como uma espécie de

etnólogo amador, tendo consciência disso ou não, foi um observador das culturas e as

traduziu como artista na forma de seus quadrinhos. Esse olhar de etnólogo pode ser

encontrado em sua obra por começar pela temática.

Ademais, o filósofo Nelson Brissac Peixoto diz que esse olhar do estrangeiro,

seja ele provocado por experiências de alguém que não domina a cultura do local ao

qual se projetou ou não, será traduzido somente em uma linguagem do signo. Temos

uma generalização da imagem, arraigada no pensamento ocidental, que leva a essas

meras proliferações de imagens a serem tidas como real; a distinção entre fato e artifício

se torna difusa (PEIXOTO apud NOVAES, 1995, p.362). Em seu próprio texto, Peixoto

já se lembra de Walter Benjamin por este introduzir a problemática de um olhar que

40

possa ser correspondido, no sentido de alguém saber corresponder o que outrem pensa

ou vive. Se aí as dificuldades são imensas, elas só aumentam se pensarmos na tradução

de um olhar distanciado também por cultura e sociedade.

Ao refletir sobre o narrador, Benjamin já traduz como as experiências de

linguagem estão distantes, como “as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica

que continuarão caindo até que seu valor desapareça por todo” (BENJAMIN, 1987,

p.198). Essa troca tão cara a Benjamin, segundo ele, está se desmantelando cada vez

mais, desde o final da Primeira Guerra Mundial. Nesse ponto que o olhar ocidental cada

vez mais se contamina em níveis clichês e repetitivos, vale lembrar que o enredo de

Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio se passa justamente durante esse período.

Essa reflexão leva a ter como signo, linguagem ou padrão a linguagem

inconsciente. Apesar de encontrarmos em várias facetas da sociedade atual as

inquietações e problemáticas acima abordadas, é notório como a sociedade atual busca

também preencher um vazio simbólico ou mitológico mesmo que por caminhos

tortuosos. Muitas situações humanas modernas que buscam preencher esse vazio estão,

sim, inseridas meramente em necessidades mesquinhas como vender produtos

massificados com o objetivo de acumular capital massivamente. Como acontece através

dos produtos de nosso tempo; narrativas criadas em publicidades, filmes

hollywoodianos que seguem padrões repetitivos e afins. Entretanto, muitas vezes, essa

tradução de expressões modernas que buscam preencher esse vazio mitológico dos

humanos pode estar criando novos épicos que simplesmente (ou até mesmo

naturalmente) estão inseridos na cultura atual no sentido de serem produtos do seu

tempo. Hertz Wendel de Camargo nos esclarece, ao falar de um sistema mítico formado

por narrativa, ritual, totem, tempo e magia, que

Esse conjunto, ou partes dele, se manifesta na mídia em diferentes suportes,

linguagens, gêneros, discursos, storytellings, narrativas. No entanto, verifica-se que

existe uma aderência “natural” entre mito e mídias essencialmente audiovisuais, tais

como o cinema e a televisão, características exploradas pela publicidade na

produção de filmes publicitários. (CAMARGO apud KLEIN & CAMARGO, 2017,

p. 264)

Lembrando como os quadrinhos foram utilizados pela contracultura e por grupos

que buscavam alternativas para o sistema social padrão, podemos notar que ainda

encontramos narrativas que significam algo para esses grupos da modernidade além de

somente servir ao sistema, como percebe Douglas Kellner em A Cultura da Mídia.

41

Essas obras dialogam e trazem significados com contornos mitológicos para

determinados nichos. Olhar para a fantasia de nosso tempo se torna importante, à

medida que

a descodificação dessas alegorias sociais possibilita um diagnóstico crítico, com boa

visão da situação de indivíduos pertencentes a várias classes e grupos sociais, como

a juventude. Assim, a fantasia e o entretenimento podem ser veículos de

diagnósticos seriíssimos de nossa época, coisas que os estudos culturais devem

analisar e interpretar (KELLNER, 2001, p. 164).

Os anseios do público e da juventude podem ser traduzidos a partir dos mitos

modernos. O que marca o ser humano pós-moderno, com raízes no moderno, é uma

vontade de liberdade enquanto a experiência de viver torna-se um jogo. Sobre isso,

Bauman diz que “a experiência de viver em tal mundo (...) é a experiência de um

jogador, e na experiência do jogador não há meio de se falar da necessidade de acidente

(BAUMAN, 1997, p. 112).” Mostra então que essa relação de jogo cria uma relação

dinâmica com a mesma intensidade, mas efêmera ao dizer que “manter o jogo curto

significa tomar cuidado com os compromissos a longo prazo (BAUMAN, 1997, p.

113).” Percebemos a relação com o pensamento de Kellner,

pois, que na cultura pós-moderna o sujeito se desintegrou num fluxo de euforia

intensa, fragmentada e desconexa, e que o eu pós-moderno descentrado já não sente

ansiedade (a histeria torna-se a típica doença psíquica pós-moderna) e já não possui

a profundidade, a substancialidade e a coerência que eram os ideais e às vezes a

realização do eu moderno (KELLNER, 2001, p. 298).

Lembrando-nos da contracultura, podemos refleti-la com o surgimento dos

quadrinhos como um movimento geral, global, que buscava contrapor o

conservadorismo paranoico dos anos de 1950. Nos EUA, um dos principais “problemas

sociais” refletidos giravam em torno da “delinquência juvenil” (CASSONI, 2016). A

sociedade queria frear o ímpeto jovem, logo, parar o espírito aventureiro das pessoas. Já

na Itália, país do autor de Corto Maltese, a partir dos anos 1960 até o final da década de

1980, o país passava por momentos turbulentos que os historiadores denominaram

como “anos de chumbo”. Nessa época, vários grupos paramilitares de direita e de

esquerda se enfrentavam em conflitos terroristas, e a tensão era generalizada.

Justamente nesse contexto global conservador e efusivo na Itália, Hugo Pratt cria Corto

Maltese. Nesse momento, o conceito de liberdade de indivíduo, liberdade interna, um

42

pensamento que norteava a contracultura (MACIEL, 2014, p.78) está claramente

incutido em Pratt e seu personagem notoriamente moderno.

Hugo Pratt recorreu a um movimento já contemporâneo e difundido em sua

época para dar vida às suas histórias. Movimento que possuía forte apelo intelectual na

Europa da época. Falar do quadrinho europeu pode ser uma tarefa um pouco difícil, pois

como Roberto Dias Costa Neto fala em artigo

Uma história abrangente ou em profundidade sobre os quadrinhos na Europa ainda

não foi escrita – ou pelo menos, ainda não foi traduzida para o inglês ou português.

Tal como está, aprender algo sobre a origem da arte e desenvolvimento é difícil. O

que sabemos é que as aventuras de Obadiah Oldbuck pelo cartunista suíço Rodolphe

Töpffer são, de acordo com Scott McCloud em Desvendando Quadrinhos, um dos

primeiros quadrinhos modernos e, como resultado, a história dos quadrinhos

encontra um ponto de apoio no continente europeu. Deve-se notar, no entanto, que

devido à dimensão do seu mercado, a cena de quadrinhos franco-belga domina a

história dos quadrinhos europeus, atraindo um número e calibre incríveis de

cartunistas. Este foco na França é especialmente prevalecente no discurso em língua

inglesa, uma vez que muita pouca história de cenas de quadrinhos em espanhol,

italiano ou alemão está disponível em outras línguas além de sua nativa (COSTA

NETO, 2016).

Apesar dessa dificuldade em se falar do quadrinho europeu, logo, mais

precisamente do contexto em que Hugo Pratt estava inserido, nota-se como Corto

Maltese, que inicialmente foi publicado na Itália, tem seu deslocamento para a França.

Isso traduz a forte produção e cultura quadrinista francesa. Afinal, até hoje, além do

grande mercado de HQs dos EUA e Japão, temos o franco-belga representando a

Europa como principal expoente (COSTA NETO, 2016).

Lembrando-se da história de vida de Hugo Pratt e de que ele escolheu as

histórias em quadrinhos para dar vida a Corto Maltese, torna-se curioso o fato de termos

textos e imagens juntas em um mesmo espaço, pois assim podemos comparar as HQs às

cadernetas que, antigamente, viajantes e marinheiros mantinham como diários onde

também desenhavam as coisas exóticas que avistavam durante suas viagens. Todo esse

contexto norteia o simbólico que ajudou Pratt a produzir sua obra.

Então, o simbólico nos quadrinhos que permeiam nosso mito moderno, pautado

numa suposta possibilidade de liberdade, é o que porventura marca a cultura desse

período. O próprio Corto Maltese pode ser percebido como um ser desse sistema. Ao

continuar suas reflexões, Bauman parece até definir o personagem que é Corto ao dizer

que “o horror e o fascínio, de igual modo, fazem a vida como peregrinação dificilmente

43

factível como uma estratégia e improvável de ser escolhida como tal. Não por muitos,

afinal de contas. E não com grande probabilidade de sucesso (BAUMAN, 1997,

p.113).” Corto, em suas histórias, é um ser liberto de amarras sociais e políticas, quer

viver por si só e, nesse ponto, parece conseguir o que quer e tem uma identidade sólida.

Todavia, sua vida não parece ter alcançado o sucesso merecido que a liberdade promete

como utopia o que acabaria por não responder aos anseios do marinheiro ao menos na

esfera pessoal. Continuando a “definir” Corto Maltese, Bauman diz que

a identidade durável e bem costurada já é uma vantagem; crescente, e de maneira

cada vez mais clara, ela se torna uma responsabilidade. O eixo da estratégia de vida

pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas evitar que se fixe (BAUMAN,

1997, p.114).

Corto joga o jogo da mobilidade, ele é o turista do mundo onde “a duração da

estada em qualquer lugar mal chega a ser planejada com antecipação; tampouco o é o

próximo destino (BAUMAN, 1997, p.114)” ou ainda

as escalas são acampamentos, não domicílios. (...) Só as mais superficiais das raízes,

se tanto, são lançadas. (...) Acima de tudo, não há nenhum comprometimento do

futuro, nenhuma incursão em obrigações de longo prazo, nenhuma admissão de

alguma coisa que aconteça para se ligar com o amanhã (BAUMAN, 1997, p.115).

Tudo isso diz respeito da sensação, também atribuída ao turista segundo

Bauman, de se estar no controle de tudo, apesar de esse controle não ser nada mais que

meramente situação. Nesse ponto, Corto até consegue ser bem-sucedido em suas

empreitadas em alguns momentos, possui certo controle, mas depois tudo pode

desmoronar. É claro que Corto Maltese encarna mais o clichê do aventureiro romântico,

todavia, esses abalos que o homem pós-moderno sente em sua identidade parece estar

enraizado ali, num momento de turbulências onde homem moderno está em busca de

sua liberdade e de sua identidade.

O que está fora do lugar, da ordem vigente, é impuro para quem está

estabelecido em um local. Nesse ponto, o turista, estrangeiro ou outsider que está fora

de seu mundo comum, é visto como um “agente poluidor” ou ser que deve ser retirado

desse espaço ou não deveria estar ali (BAUMAN, 1997, p.14). Para confirmar, a

pesquisa de Norbert Elias mostra empiricamente como membros de uma determinada

44

comunidade justificam seu status elevado por acharem que “os grupos estabelecidos

veem seu poder superior como um sinal de valor humano mais elevado (ELIAS, 2000,

p.28)” onde a inferioridade de poder é também vista como uma inferioridade humana

(ELIAS, 2000, p.28). Não diferente da forma como Corto Maltese é tratado pelas

pessoas nos ambientes que visita. Muitas vezes ele precisa conquistar o respeito dos

indivíduos para ser levado a sério.

Imagem 15 – Corto, o europeu e Cush, o muçulmano.

Fonte: PRATT, 1979a, p. 46.

Em Corto Maltese: As Etiópicas, um muçulmano chamado Cush demora a ter

empatia com Corto, pois o marinheiro é um “infiel” segundo a religião mulçumana e

também um estrangeiro. Aqui, percebemos um paralelo entre uma pessoa pautada em

uma sociedade mais antiga e com identidade fixada versus o ser moderno de identidade

mais instável. Ao final do diálogo, nota-se como Cush, que tinha tendências ao

45

individualismo como Corto Maltese, finalmente cede um de seus dogmas; ele tomava

chá em várias situações do dia, mas Corto sempre insistia, para tirar sarro de seus

padrões, que o chá não deve ser tomado antes das cinco horas, como os ingleses fazem.

Ao mesmo tempo, Corto Maltese também cedeu, pois ele que pergunta se o chá não será

tomado naquele momento. Ambos estão aqui alinhados em uma identidade que se

mescla, pois

segundo a perspectiva pós-moderna, à medida que o ritmo, as dimensões e a

complexidade das sociedades modernas aumentam, a identidade vai se tornando

cada vez mais instável e frágil. Nessa situação, os discursos da pós-modernidade

problematizam a própria noção de identidade, afirmando que ela é um mito e uma

ilusão (KELLNER, 2001, p.298).

Encontramos nesse embate cultural entre Cush e Corto, seres humanos do início

do século XX no qual a questão da transformação da própria identidade se faz presente.

Ao mesmo tempo em que o estrangeiro enxerga com menos carga cultural o local ao

qual visita, ele tende a generalizar e não entender as nuances e diversidades culturais em

suas profundidades. Ainda neste exemplo, a absorção da cultura estrangeira que Corto

faz quando finalmente evoca uma tradição do muçulmano ao invés de ser sarcástico

com o mesmo, mostra como o estrangeiro pode chegar ao limite de não ser mais

meramente estrangeiro de uma terra distante, mas começa a absorver e entender um

pouco da cultura de fora como os residentes o fariam.

Outro lado dos estrangeiros, os turistas, que podem ser considerados também

vagabundos, afinal eles acabam por ser párias em uma sociedade no sentido de lhes

serem externos e nunca estarem totalmente alocados nem sequer minimamente, como

Corto fez no exemplo acima. Turistas e vagabundos são metáforas da vida

contemporânea e aparentemente opostos não distantes um do outro, Bauman nos

esclarece que “o vagabundo é o alter ego do turista – exatamente como o miserável é o

alter ego do rico, o selvagem o alter ego do civilizado, ou o estrangeiro o alter ego do

nativo. (...) O alter ego é o escuro e sinistro fundo contra o qual o eu purificado pode

brilhar (BAUMAN, 1997, p. 119).” Nesse momento podemos lembrar-nos do próprio

Hugo Pratt e de seu alter ego Corto Maltese. Bauman parece ter matado a charada e

demonstrado como a sociedade criou seres que, usando uma alegoria, encenam um

grande teatro no palco da vida. Onde a alternância de papéis se dá tanto na esfera do real

quanto do irreal, onde as pessoas incorporam seus papéis uns com os outros como

46

quando estão viajando, ou em manifestações criativas, onde materializam esses papéis

em uma obra de arte.

O individualismo moderno criou para si, afinal, mitos. Esse ser hedonista por

natureza, liberto para si próprio em uma grande jornada pelo mundo, é justamente do

que romances como Robinson Crusoé ou do que a psicologia moderna trata. O homem

está a explorar esse “novo mundo” com uma grande companhia, a si próprio. Não só um

romance ou um ser individual, esses personagens criam os heróis e mitos da atualidade

(WATT, 1997, p.13). Corto Maltese, nesse e em diversos outros níveis, não deixa de ser

um desses mitos e um grande herói.

O outsider pode encarnar o herói moderno que possui aversão à tecnologia, que

prega certa anarquia à máquina. Apesar de Corto Maltese não ser exatamente o homem

moderno que não entende ou ojeriza à máquina, sua busca romântica e bucólica por algo

que ele mesmo parece não saber, traz por si só uma negação à vida e aos modos

modernos de existência. Ele é um errante perante a sociedade e vive em constante

movimento, dissociado do que está estabelecido.

2.2. O formato que aventura um marinheiro

No que concerne ao formato da HQ de Corto Maltese, são notórios os

enquadramentos que costumam ter como eixo, quase sempre, a linha do horizonte. O

autor pode variar os ângulos em que vemos os personagens, mas poucas vezes o eixo de

toda imagem. Aqui parece haver um padrão técnico na forma de Hugo Pratt trabalhar o

qual deve existir por uma combinação de fatores, mas não por algum ditame, pois, como

não há regras na concepção, o autor pode escolher o caminho que bem entende desde

que tenha sucesso em expressar o que deseja (MCCLOUD, 2008, p.5). Percebemos

assim que, na estética de uma HQ, a forma e o conteúdo são importantes como em

qualquer outra obra, ainda mais porque

as histórias em quadrinhos, ao gerar novas ordens e técnicas narrativas, mediante a

combinação original de tempo e imagens em um relato de quadros descontínuos,

contribuíram para mostrar a potencialidade visual da escrita e o dramatismo que

pode ser condensado em imagens estáticas (CANCLINI, 2013, p.339).

Dentro dessa reflexão, a função estética é onipresente e responsável por

inovações lexicais em obras literárias. Pode-se perceber a flutuação que o personagem

47

vive em suas aventuras porque Corto está à mercê de uma sociedade e porque o mundo

o persegue. O dito corrobora com o mito do homem moderno.

Sobre forma e conteúdo da função estética, Mukarovsky diz que

muito mais que algo que flutua à superfície das coisas e do mundo. [...] Ela intervém

de modo importante na vida da sociedade e do indivíduo, tomando parte na gestão

da relação [...] entre indivíduo e a sociedade, por um lado, e a realidade em cujo

centro se situam, por outro (MUKAROVSKY, 1988, p. 38).

Logo, a função estética num quadrinho não estaria dissociada das mudanças sociais que

ocorrem em sua narrativa ou no contexto pelo qual o autor passou, mas sim embutida

nelas. Nesse quesito, o momento pelo qual o mundo passava enquanto Hugo Pratt

produzia sua obra, bem como suas viagens, realmente não estão dissociados no que

culminou seu trabalho.

A inserção de Corto, nesse contexto da aliança da cultura icônica com a literária,

combina com o já abordado movimento mundial que resultou nos quadrinhos e que

culminou no efusivo mercado Europeu.

Até o advento dos meios digitais, as HQs só poderiam ser veiculadas através de

sua forma impressa, logo elas foram um produto da revolução tecnológica promovida

por Gutenberg. Posteriormente, os quadrinhos digitais começaram a existir, mas sua

forma impressa ainda era o formato mais usual e difundido nesta década. Gibis

impressos em alta qualidade são consumidos como troféus pelo público apreciador do

estilo e até mesmo algumas dessas edições de luxo são feitas em grande ou média

escala, várias cópias do mesmo material. O original muitas vezes é comercializado, aí

sim, com exclusividade e grandes preços, mas ele não passa do molde para a versão

impressa; apesar de ser o material produzido primeiro, pela lógica do design, seguir

especificações técnicas que propiciem a impressão final, podemos entender somente o

produto impresso como o de fato original. Levando isso em consideração, os quadrinhos

são um produto autenticamente da era da reprodutibilidade técnica e são produtos

concebidos pela e para a reprodução.

Como já comentado, no geral a disposição dos quadros em uma HQ costuma ser

padronizada dentro de regras técnicas, temos a lógica de um quadro que se segue a

outro, sendo as quebras entre eles pequenas com no máximo um quadrado maior ou um

retângulo tomando forma na página. Todavia, ao longo do tempo, cada país acaba por se

especializar em um “estilo” único. Tal e qual podemos reconhecer em uma pintura o

48

movimento do realismo ou do surrealismo, por exemplo, nos quadrinhos podemos

reconhecer, pelo seu estilo, de qual região geográfica a obra é oriunda. As comics

estadunidenses, por exemplo, são bem coloridas e ricas em detalhes especialmente por

tratarem em larga escala do tema dos super-heróis. O traço dos personagens, apesar de

toda ficção contida nessas obras e uniformes (fantasias) espalhafatosos, puxa para um

estilo mais realista e menos caricato como em outros casos. No Japão, temos a singular

aparição do manga com suas peculiares características: quase sempre possuem

personagens desenhados com o tamanho da anatomia humana real, mas suas faces são

mais estilizadas e exageradas em suas características, como nos narizes ou nos famosos

“olhos grandes”. Tanto nas comics, como nos mangas, podemos notar refinamentos

específicos na linguagem quadrinística. Nela, encontramos quadros vazados, imagens

que se sobrepõem aos mesmos ou grandes páginas que tomam lugar dos quadros

sequenciais e buscam valorizar mais o desenho.

Imagem 16 – Massacre Marvel.

Fonte: Marvel Comics, 1998, p.6.

Notamos como na Imagem 16, página do quadrinho Massacre Marvel, além de

mudar a leitura para o eixo horizontal, que na maior parte desta edição é na vertical,

possui apenas dois pequenos quadros estilizados acima. No resto da página, a imagem

49

mostra várias situações em um único enquadramento, o que valoriza o desenho do

artista e busca trazer uma sensação de ação num todo.

É claro que existem várias exceções dentro dos padrões dos quadrinhos em cada

nação, afinal, cada mercado geográfico, ou poderíamos até chamar de “escola

estilística”, possui as suas. No entanto, olhamos neste momento por um panorama mais

geral a fim de entendermos, então, a Europa e o que Hugo Pratt absorveu do estilo

presente em sua região.

Ao longo do tempo, cada autor cria seus detalhes e traços únicos que se

transformam em suas assinaturas. Corto Maltese, apesar de suas singularidades, pode

inicialmente ser reconhecido como um quadrinho europeu. Os quadrinhos europeus,

mais precisamente os relacionados ao forte mercado franco-belga, possuem o formato

padrão tanto pelo jeito de serem desenhados, como pela técnica empregada nas

impressões de almanaques encadernados que medem 21 cm x 29 cm. Inclusive, essas

são exatamente as medidas e formato das publicações de Corto Maltese. Ademais,

exemplos europeus, como As aventuras de TinTim, Asterix e Obelix e Tex Willer,

mostram-nos uma particularidade estilística do quadrinho europeu: os quadros se

mantêm muito na linha do horizonte, têm poucas variações de ângulo das cenas ou

personagens o que evidencia um forte apego à tradição que criou os quadrinhos como

estilo no século XX. Afinal, desde os primórdios a maioria das HQs seguia essa lógica

que é advinda das tirinhas publicadas nos jornais. Cada linha de quadros em publicações

europeias realmente parece seguir uma estrutura de tiras. Por curiosidade, se seguirmos

essa lógica, dá para entender por que as histórias em quadrinhos desenhadas em

Portugal são chamadas de banda. Esses quadros também são carregados de muito texto

escrito, a história costuma ser contada muito mais pelo texto do que pelas imagens. Esse

é um traço que difere muito a HQ europeia do manga em cujos quadros existem muitos

silêncios textuais e as imagens buscam contar a narrativa abrindo mão do texto em

vários momentos, situação, já citada anteriormente, na qual as mudanças de imagens são

as responsáveis por narrar os acontecimentos, o que McCloud (2008, p. 18.) chama de

aspecto a aspecto. Aqui encontramos então as principais heranças estilísticas de Hugo

Pratt em relação ao mercado geográfico onde produziu sua obra.

A temática no quadrinho europeu também costuma ter uma recorrência de

gênero narrativo. Contexto que parece traduzir o período histórico pelo qual a Europa

passou desde o final do século XIX. Enquanto nas comics encontramos quase sempre

super-heróis com seus poderes sobre-humanos buscando suas redenções ou a salvação

50

de sua nação, nas narrativas europeias encontramos heróis que encaram aventuras,

muitas vezes perpassando pelo contexto de guerras, de exploração e descobrimentos,

um tema clichê que, por exemplo, podemos ver cravado por Hollywood na série de

filmes Indiana Jones. Todavia, esse tema do aventureiro que viaja por terras

desconhecidas já era recorrente na literatura ocidental do século XIX. Autores, como o

polonês erradicado na Inglaterra Joseph Conrad e suas histórias de marinheiros viajantes

ou o estadunidense Jack London e seus famosos textos de aventuras em terras selvagens

como The Sea Wolf, foram influenciadores das temáticas do movimento quadrinista

europeu no século XX. Inclusive esses autores citados são influências de autores como

o próprio Hugo Pratt.

Se pensarmos em Asterix, Tintim e Corto Maltese, verificamos essa similaridade

temática. Da mesma forma que Corto Maltese se aventura pelas selvas americanas,

deserto do Oriente Médio e Leste Europeu, Tintim também o faz em suas histórias.

Ambos acabam por se deparar com algum tipo de conflito ou intriga política no meio do

caminho. De uma forma mais descontraída, Asterix também enfrenta seu exército de

romanos enquanto desbrava outras terras e culturas.

A periodicidade das publicações é mais lenta na Europa se compararmos ao

mercado estadunidense ou japonês. As comics são concebidas por um autor, mas

produzidas por diversos artistas, e o desenhista de manga possui uma rotina de trabalho

absurda para conseguir dar conta da demanda comercial e prazos impostos pela editora,

o que muitas vezes prejudica a qualidade de seu trabalho e até mesmo de sua saúde.

Logo, aqui, poderíamos encarar o quadrinho europeu como o mais autoral de todos,

mesmo se pensarmos nos autores mais inseridos no mercado comercial.

Tendo em vista o posto, podemos encarar que a forma empregada na arte de

Pratt é uma expressão de seu tempo. Corto Maltese possui traços singulares e bem

delimitados nos personagens que ajudam a manifestar o mais importante do conteúdo

desse quadrinho: a jornada de uma vida.

Vale salientar que Corto Maltese dispunha, para a época, de “inovador aspeto

gráfico, a gestão dos silêncios e os diferentes planos são os principais aspetos que

tornam a sua obra inconfundível” (PORTO EDITORA, 2003).

Já em As Aventuras de Tintim, do quadrinista belga Georges Prosper Remi, mais

conhecido como Hergé, notamos a citada sequência recorrente nas HQs europeias dos

quadros e sua grande quantidade de texto nos primeiros quadros e a rara exceção nos

últimos.

51

Imagem 17 – As Aventuras de Tintim.

Fonte: REMI, 2008, p. 28.

Na Imagem 17, em um dos momentos de ação da edição encadernada 17 de As

Aventuras de Tintim, temos a recorrência do maior silêncio textual da publicação.

Momentos assim são raros em nessa HQ, e, no caso acima, o recurso foi utilizado

meramente para dar um efeito cômico. Em outras situações da edição, os silêncios são

utilizados momentaneamente somente para apresentar algum espaço ou acontecimento,

por exemplo, um avião que acabou de cair no deserto ou um vilão que atira com uma

arma.

52

Imagem 18 – A Juventude de Corto Maltese.

Fonte: PRATT, 2011, p.32.

Já na Imagem 18, da história A Juventude de Corto Maltese, notamos os

silêncios traduzindo situações mais refinadas; eles apresentam os personagens que

observam, de uma trincheira, soldados e estes que são observados. Na sequência,

pontuam um movimento do personagem da trincheira e a consequência de sua ação. No

fim, temos um quadro com diálogo de personagens sobre a situação. Aqui podemos

verificar que em Corto Maltese a gestão de silêncios foi sim um aspecto inovador

53

especialmente levando em conta o mercado geográfico no qual estava inserido e a época

em que foi publicado.

Apesar de também não tão recorrente em Corto Maltese, se pensarmos os

quadrinhos como um fenômeno mundial, essa gestão de silêncios entre os quadros faz

com que o leitor, enquanto sua interação com o suporte apresentado, perceba uma

necessidade maior de pausa durante a leitura naquele momento ou tenha noção de

passagem de tempo dentro da narrativa. Aqui vemos as imagens se sobrepondo ao texto

e, assim, diferenciando-se mais ainda de narrativas somente escritas. Manusear esse

material no qual Corto foi impresso e lidar com essas pontualidades dos silêncios

trazem um ritmo diferenciado das demais mídias ao texto da HQ. Lembrando-nos dos

sistemas midiáticos de Lucia Santaella, esse ser inserido na cultura das mídias, leitor da

atualidade, possui um forte repertório multimidiático, todavia essa inserção pode não

necessariamente interferir na forma como a interação com o material impresso se dará.

Possivelmente a técnica do quadrinho cria por si só a ilusão de movimento na mente do

leitor, a despeito de, hipoteticamente, existir hoje esse leitor acostumado com o

audiovisual sempre em grande movimento.

Voltando para o texto escrito, normalmente a leitura de um livro é corrida e

somente as palavras que ditam as regras. Na literatura, podemos acabar encontrando

textos que pareçam frenéticos e outros que sejam lentos, mas a escrita do autor é quem

decidirá tudo. Claro que o modo como o leitor interpretará o que lê e qual ritmo

empregue em sua leitura também exercerá importante função nesta situação. Todavia, a

“atenção” que as imagens puxam para si, como na Imagem 17, traz um ritmo narrativo

que será fortemente ditado pela vontade do narrador. Apesar de o leitor também

influenciar o ritmo da narração, os quadros exercem maior influência deixando a

velocidade da ação mais clara.

Se o leitor não tivesse a interação com o suporte físico, o quadrinho impresso, as

mudanças de páginas ou o andamento que os quadros encaminham durante a leitura não

seriam os mesmos, logo, a experiência poderia ser outra. Uma reprodução simples do

quadrinho no meio digital talvez aproxime a experiência da original, mas caso o suporte

fosse outro, por exemplo, uma animação, a experiência e a inteiração seriam totalmente

diferentes.

O suporte é aquilo que medeia a interação entre expectador/leitor e objeto. Do

mesmo modo que a experiência de assistir a um filme adaptado de um livro não é a

mesma de ler o próprio livro, ler um quadrinho difere de ler literatura. Cada formato

54

apresenta suas particularidades e diferenças, o que, por fim, guia a experiência

específica de cada leitor.

Como exemplo, o projeto Clássicos em HQ (2013) visou “traduzir” clássicos da

literatura para os quadrinhos, como o Conto de Escola de Machado de Assis. Seja por

querer incentivar a leitura de clássicos ou por tentar trazer uma nova estética a uma obra

originalmente publicada em outro formato, podemos enxergar com esse exemplo a

diferenciação que o formato de leitura implica por si só, apesar de esse projeto não visar

a uma adaptação, mas basicamente a acrescentar imagens aos textos originais. No

quadrinho, o ritmo é outro, e a simples existência do desenho traduzindo o que, na

literatura, seria preenchido ou não pela imaginação leva a um novo tipo de leitura.

Imagem 19 – Conto de Escola, versão HQ.

Fonte: BORGES, 2013, p.114.

55

Vale lembrar também que as HQs “são uma mídia de fragmentos – um pouco de

texto aqui, uma figura recortada ali – mas quando dão certo, seus leitores combinam

esses fragmentos conforme leem e experimentam sua história como um todo contínuo”

(MCCLOUD, 2008, p.129). Tudo isso nos leva a pensarmos sobre as versões e os

suportes da obra de Hugo Pratt.

Corto Maltese, em suas primeiras edições, foi integralmente publicado em preto

e branco, somente as últimas edições produzidas, como A Juventude de Corto Maltese,

foram originalmente publicadas em colorido. Posteriormente, temos reedições de luxo

de histórias que acabaram sendo colorizadas (PORTO EDITORA, 2003). Além das

HQs e suas versões, a obra de Hugo Pratt foi adaptada para animação televisiva no ano

de 2003 pelo estúdio Ellipse Animation em parceria do canal italiano Rai Fiction, os

canais franceses Canal + e France 2, e foi distribuído pela Mediatoon.

Vale salientar que a escolha do preto e branco para a coloração dos quadrinhos

segue uma necessidade da época, pois, segundo o pesquisador em comunicação Lauro

Henrique de Paiva Teixeira,

Além do preto e do branco com suas variantes de cinza, o uso de cor na mídia, em

sua plenitude de recursos é relativamente novo. No caso dos meios impressos o uso

de cor antes da década de 1990 era mais restrito por dificuldades orçamentárias e

limitações técnicas que nem sempre permitiam resultados satisfatórios. (TEIXEIRA,

2006, p.1099)

Vamos comparar, logo abaixo, um trecho da edição original em P&B de Corto

Maltese: Sob o Signo de Capricórnio e o mesmo trecho em sua versão colorizada. Dá

para notarmos que o texto escrito está diferente, pois a versão P&B é brasileira, e a

colorida, portuguesa, mas não nos concentraremos nesta questão, no momento somente

nas imagens:

56

Imagem 20 – Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio.

Fonte: PRATT, 2006, p.12 e 13.

57

Imagem 21 – Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio.

Fonte: PRATT, 1997, p.24 e 25.

Para a colorização, o traço não foi alterado. A luz e a sombra utilizadas por Pratt,

para dar volume e perspectiva aos seus desenhos, foram mantidas. As cores, em uma

paleta mais pastel, buscam somente preencher espaços em branco. Nesse sentido, as

versões coloridas de Corto Maltese acertaram em manter a essência do original, pois no

preto e branco geralmente o leitor tem uma sensação imagética mais neutra. Aqui,

provavelmente, foi levado em conta o raciocínio de lidar com a cor seguindo a lógica

das capas das versões originais, única parte que era colorida no original. Pela

perspectiva da semiótica, cores pastéis passam sensação de época antiga em uma

narrativa visual, pois

58

O modo de informar o passado através de cores pelos tons pastéis amarelados, como

variantes do palha, do ocre e do sépia, pode ter sua raiz biofísica nos registros

históricos envelhecidos pelo tempo, como papéis e tecidos. (...) As cores são usadas

com determinados valores simbólicos, que ao serem apreendidas, antecipam a

informação. Isso acontece quando o leitor já está familiarizado com o seu uso em

um processo de reconhecimento do contexto no qual aquela cor foi inserida. Todo o

processo termina e recomeça no receptor, pois é ele quem retroalimenta o sistema

informativo contribuindo com suas experiências e criatividade para que o signo se

sustente ou sofra alterações. As cores tomam forma levando-se em conta seus

significados coletivos em uma determinada cultura, organizações do código

linguístico e sensações biofísicas que atuam independentes da intencionalidade do

homem. (TEIXEIRA, 2006, p.1098)

Os quadros dispostos em quatro tiras por página com a perspectiva voltada para

a linha do horizonte e poucas variações de ângulo, evidenciam uma forte característica

de vontade de representação do “que é observado” por parte de Hugo Pratt. Podemos ler

claramente como sendo a visão do viajante, sempre analisando fortemente o externo.

Pinturas, como a do italiano radicado no Brasil Joseph Léon Righini, mostram essa ideia

da visão de quem procura retratar o que é de fora. Paisagens acabavam por ser pintadas

dessa forma, pois aqui o que importa é o retrato do espaço em que se está.

Imagem 22 – Arredores da Cidade, 1862.

Fonte: Joseph Léon Righini – Acervo da Pinacoteca.

59

Imagem 23 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.

Fonte: PRATT, 1997, p. 39.

Notamos como é forte a característica paisagista nos desenhos de Pratt. Mesmo

quando o autor lida com pessoas e ângulos mais fechados, busca retratar os elementos e

evidencia fortemente seu aspecto de observador, especialmente quando mostra

ambientes mais naturais. Em espaços fechados, podemos encontrar somente o desenho

dos personagens e um branco (cor mais neutra) ao fundo, mostrando como só o diálogo

importa nesses momentos, mas quando estamos em, por exemplo, florestas, o ambiente

é desenhado a fim de trazer a sensação do ambiente.

Imagem 24 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.

Fonte: PRATT, 1997, p.75.

60

Na Imagem 24, é perceptível como a evidencia do espaço por meio do desenho,

ainda mais com os muitos elementos da mata, objetiva sensação ao leitor, no caso até

mesmo uma sensação de sufocamento pela floresta. Barthes, ao analisar a pintura como

expressão através da imagem e suas implicações de leitura, diz que

Não se trata evidentemente, de restringir a escrita do quadro à crítica profissional de

pintura. O quadro, qualquer um o pode escrever, só existe na narrativa que o

„escritor‟ lhe dá: ou ainda: na soma e na organização das leituras que dela se pode

fazer: um quadro nunca é mais elo que sua própria descrição plural. (BARTHES,

1990, p.136).

Nesse momento, vale também frisarmos que, mesmo o cangaceiro sendo o

personagem que transita historicamente pela região do semiárido, aqui, Pratt os retrata

em meio a uma vegetação exuberante, mais típica da floresta amazônica. Parece se

tratar de uma necessidade pelo exotismo que o estrangeiro busca aqui e que, neste caso,

não deixa de ser uma deturpação e inverossimilhança.

Falando agora da animação, ela procura se manter fiel ao quadrinho quase sendo

uma “tradução” do mesmo, mas, como em toda adaptação encontramos diferenças

significativas na abordagem, isso pode até mesmo levar a uma experiência

completamente diferenciada. O desenho animado de Corto Maltese difere de outras

animações que variam mais os enquadramentos, aqui um traço da aproximação com o

estilo do quadrinho, mas ela modifica em outras questões a essência da visão de Pratt. O

desenho animado também costuma lidar com recursos orçamentários que podem não ser

muito grandes e, a fim de utilizá-los da melhor forma possível, acabam por reaproveitar

certos desenhados já produzidos em algumas cenas semelhantes. Como muitos quadros

por segundo precisam ser desenhados, muitas vezes encontramos variações de ângulos

ou zooms para reaproveitamento de trabalho. Aqui já há uma padronização e constância

estilística, diferentemente das variações que o desenho numa HQ pode gerar. Segue

exemplo da mesma situação mostrada nas Imagens 20 e 21, mas agora na animação:

61

Imagem 25 – Animação de Corto Maltese.

Fonte: Ellipse Animation.

Além dos enquadramentos, notamos também que a cor mudou drasticamente e

existem muitos acréscimos nos detalhes dos desenhos, como o cenário ao fundo que é

quase inexistente na versão impressa. Nos quadrinhos, é comum, no modo de Pratt

trabalhar, ser somente desenhado o que mais importa para contar a história. Se em

62

algum momento o cenário seria meramente um fundo desfocado (em um audiovisual) e

não importaria para contar a história naquele dado momento, ele não é desenhado.

Ademais, o design do próprio Corto Maltese mudou drasticamente, ele foi estilizado e

está mais jovem e belo pensando nos padrões estéticos da atualidade.

2.3. Análise Mitológica Simbólica

Com isso, o fim das bifurcações do caminho dessa jornada que nos leva a uma

única estrada, que nos guiará para uma luz, começa em refletirmos sobre em que nível

Corto Maltese responde aos anseios individuais de seus leitores na esfera do simbólico e

em pensarmos o quadrinho sob as perspectivas da psicologia e semiótica. Assim, é de

vital importância entendermos como as questões relacionadas aos arquétipos e à

mitologia relacionam-se com o âmago das pessoas.

Primeiramente, vale pontuarmos a diferença entre símbolo e arquétipo. Um

símbolo representa um tipo de signo em que o significante (realidade concreta) equivale

a algo abstrato (nações, quantidades de matéria, tempo etc.) por força de convenção,

semelhança ou contiguidade semântica (como no caso do yin-yang que simboliza a

totalidade do universo para o taoísmo). Arquétipo, numa rápida definição, representa

ideias que são moldes de cada coisa existente, segundo a concepção de Platão. Portanto,

é o primeiro modelo ou imagem de algo, ou seja, antigas impressões sobre alguma

coisa.

A partir da era moderna, um enredo carregado desses conteúdos arquetípicos

pode ser capaz de transmitir uma mensagem que signifique algo na vida de quem

absorve a narrativa; por meio da mídia, portanto, das HQs, essas mensagens tornam-se

significantes nas vidas de determinados grupos de pessoas. Se pensarmos o conto de

fadas como exemplo importante da literatura fantástica, logo, uma narrativa tanto

arquetípica e quanto mitológica, podemos ver que “o primeiro narrador verdadeiro é e

continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho,

quando ele era difícil de obter, e oferecer ajuda, em caso de emergência (BENJAMIN,

1987, p.215)”. Ao falar do narrador do conto de fadas, Benjamin nos lembra das

definições de literatura fantástica que, segundo Todorov,

refere-se a uma variedade de literatura, ou, como se diz comumente, a um gênero

literário. Examinar obras literárias a partir da perspectiva de um gênero é um

empreendimento absolutamente peculiar (TODOROV, 2010, p.7)

63

ainda conclui que

O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais,

face a um acontecimento aparentemente sobrenatural.

O conceito de fantástico se define pois com relação aos de real e imaginário: e estes

últimos merecem mais do que uma simples menção (TODOROV, 2010, p.31).

Com nosso objeto, Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio, o autor

curiosamente fez o subtítulo possuir um contexto que nos leva a pensarmos nos signos.

Segundo Charles S. Peirce (2005, p.46) "um signo [...] é aquilo que [...] representa algo

para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria-se na mente dessa pessoa, um signo

equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido." Se pensarmos nas histórias em

quadrinhos e consequentemente em Corto Maltese, seu formato seria então um

construtor de signos que se formam por sua expressão artística e estilística própria. A já

citada combinação entre desenhos e texto é o que traz o significado e os arquétipos que

estariam ali embutidos.

Corto Maltese, o personagem, é um homem complexo, que pode ser um canalha

por usar golpes baixos em brigas físicas ou pode também se apegar rapidamente a uma

pessoa, mesmo sem admitir, demonstrando-lhe simpatia, gratidão e até cumplicidade.

Todavia, ele só demonstra esse apego caso as ideias defendidas por estas pessoas lhe

sejam simpáticas, viáveis ou rentáveis. Nota-se como Corto é muitas vezes levado a sair

de seu status quo graças às necessidades de outras pessoas; ele é impelido pelo destino

para uma região desconhecida onde precisará passar por provações na esteira do

enunciado por Campbell (2007, p. 66). Essa situação é corriqueira nas histórias do

marinheiro, ele sempre está “vivendo tranquilamente” em algum local aparentemente

paradisíaco até que alguma situação o impele a sair desta situação habitual. Corto

Maltese encarna o arquétipo maior do aventureiro romântico, que nos lembra de

personagens da literatura, como o Robinson Crusoé.

A aventura de Sob o Signo de Capricórnio se desencadeia justamente quando

um jovem chamado Tristan Bantan encontra-se com Corto. Tristan precisa de ajuda para

achar sua irmã Morgana que mora no Brasil e é fruto do segundo casamento de seu pai.

A trama leva o enredo à Bahia e revela toda uma espiritualidade em cima de ritos

brasileiros, como a macumba e o tarô cigano, ainda que estes sejam descritos de

maneira superficial e mistificada. Temos manifestações aparentemente sobrenaturais ou

64

inexplicáveis na narrativa, nas quais o devaneio apresenta-se como realidade. Os

simbolismos que indicam caminhos aos personagens geralmente ocorrem em sonhos ,

mas algumas situações são configuradas durante a vigília.

Simbolicamente, é notório como Tristan Bantan encara figuras arquetípicas

oriundas do inconsciente coletivo. Aqui, pensando em "como o aspecto exterior e

interior de uma única e mesma realidade [...] se esconde por trás das aparências"

(JUNG, 2008, p.352), encontramos relação deste pensamento proposto por Jung

juntamente com a reflexão de Campbell (2007, p.64) de que o desconhecido,

surpreendente e até assustador inconsciente projeta o herói ou um personagem de

encontro ao seu destino. Afinal, Tristan precisa enfrentar seus demônios e é impelido,

pelo mundo inconsciente, a seguir um caminho.

Imagem 26 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.

Fonte: (PRATT, 1997, p.53).

Corto Maltese possui o ideal de individualismo romântico e tenta levar uma vida

calma, geralmente em paraísos tropicais, mas enfrenta muitos problemas por não

conseguir encarar seus dramas do passado por ainda viver em um período de conflitos

armados e por quase sempre ser um estrangeiro. Corto viaja por inúmeros países e

conhece diferentes culturas, aprende a ter respeito e a olhar sem preconceitos para elas.

65

Analogamente, demonstra essa sua qualidade sendo irônico com os dogmas das

sociedades que visita. Isso faz de Corto uma pessoa livre de prejulgamentos sobre

outros povos, raças e culturas. Com essas características, o papel de Corto em suas

aventuras pode ser encarado como sendo o do herói-libertador ou o do homem divino

que possui uma força "sobre-humana", algo que pode remeter a Hércules ou outras

histórias lendárias (CAMPBELL, 2001, p.83).

Todo esse idealismo de Corto, um homem real em seus sofrimentos, mas um

herói nos conflitos que encara e supera, traz à tona arquétipos milenarmente

identificados pelos seres humanos e contados por meio de alegorias narrativas. No

mundo moderno, as referências a várias outras histórias ou a mitos que já exploraram o

tema poderiam ser percebidas, mas Corto consegue significar profundamente, trazer

reflexão e identificação ao ser humano em seu individualismo moderno. Os fãs de Corto

fazem de sua narrativa um simbolismo metafórico, assim tiram lições para suas vidas

como outrora aquela pessoa sentada à beira da fogueira o fazia ao ouvir a história

contada por outro indivíduo. Como diria Eliade,

Poder-se-ia quase dizer que o conto se repete, em outro plano e através de outros

meios, o enredo iniciatório exemplar. O conto reata e prolonga a “iniciação” ao nível

do imaginário. Se ele representa um divertimento ou uma evasão, é apenas para a

consciência banalizada e, particularmente, a consciência do homem moderno; na

psique profunda, os enredos iniciatórios conservam sua seriedade e continuam a

transmitir sua mensagem, a produzir mutação. Sem se dar conta e acreditando estar

se divertindo ou se evadindo, o homem das sociedades modernas ainda se beneficia

dessa iniciação imaginária proporcionada pelos contos. (ELIADE, 1986, p.174).

Ou seja, antigamente, o conto fantástico, normalmente contado próximo a uma

fogueira, servia para levar o ser humano a refletir sobre sua condição e a trazer

significado para a vida em níveis do imaginário. Hoje, nossos mitos estão em nossos

produtos culturais. O mito está na mídia. O pânico e a liquidez da sociedade estão

encarnados no mito na atualidade, onde ele “é a própria dessincronização da vida

moderna; da vertiginosa velocidade e fragmentação na urgência da vida nos centros

urbanos” (CONTRERA, 1996, p.61).

Para Jung, arquétipo é uma efígie apriorística encravada profundamente no

inconsciente coletivo5 da humanidade, projetando-se em diversos meandros da vida,

5 Jung diz que “é o mundo da mente primitiva que se mantém profundamente inconsciente enquanto tudo corre bem na vida, mas

que emerge dessa profundeza assim que algo de funesto se apresente à consciência. A esta camada impessoal da alma dei o nome de

inconsciente coletivo. É "coletivo" porque não se trata de nada que tenha sido adquirido pessoalmente. É como que o funcionamento

da estrutura herdada do cérebro, a qual em seus traços gerais é a mesma em todos os seres humanos, e de certo modo até mesmo em

66

como nos sonhos e até mesmo nas artes. Ele explica que "no concernente aos conteúdos

do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos arcaicos - ou melhor - primordiais,

isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos" (JUNG,

2000, p.16). Essas imagens universais estariam circundando todas as esferas do

humano, culminando em seu desenrolar nas narrativas ficcionais criadas pelos mesmos

seres humanos.

Ainda sobre o tema, C. G. Jung esclarece sobre onde encontramos as

representações arquetípicas a partir do conceito de que

deriva da observação reiterada de que os mitos e os contos da literatura universal

encerram temas bem definidos que reaparecem sempre e por toda parte.

Encontramos esses mesmos temas nas fantasias, nos sonhos, nas idéias delirantes e

ilusões dos indivíduos que vivem atualmente. A essas imagens e correspondências

típicas, denomino representações arquetípicas. Quanto mais nítidas, mais são

acompanhadas de tonalidades afetivas vividas... Elas nos impressionam, nos

influenciam, nos fascinam. Têm sua origem no arquétipo que, em si mesmo, escapa

à representação, forma preexistente e inconsciente que parece fazer parte da

estrutura psíquica herdada e pode, portanto, manifestar-se espontaneamente por toda

parte (JUNG, 1994, p.352).

Aqui já podemos antecipar que esse fascínio que possuímos pelas referências

arquetípicas é o que nos leva a sermos tão contagiados por narrativas que se utilizam,

consciente ou inconscientemente, de figuras simbólicas capazes de trazer significados e

sentidos à nossa própria vida. O que está carregado de arquétipos e desses símbolos é

justamente o supracitado mito. Todavia, é necessário entendermos qual o caminho que

desvela como o simbólico se constrói nas personas em nível narrativo e discursivo, suas

representações verbais e não verbais assim como sua interação com o suporte em que a

narrativa é veiculada. A persona essa que, nas narrativas, pode ser interpretada como a

máscara ou a forma como arquétipos se materializam a fim de trazer a significação e a

representação de que foi falado anteriormente.

Ainda sobre o nível representativo da psique, Joseph Campbell, por sua vez, já

demonstra de qual modo os arquétipos se materializam simbolicamente em mitos ao

refletir que

Os arquétipos a serem descobertos e assimilados são precisamente aqueles que

inspiraram, nos anais da cultura humana, as imagens básicas dos rituais, da

mitologia e das visões. Esses „seres eternos do sonho‟ não devem ser confundidos

todos os mamíferos. O cérebro herdado é o resultado da vida de nossos antepassados. Consta dos sedimentos estruturais ou das

correspondências àquelas atividades psíquicas, que inúmeras vezes foram repetidas na vida de nossos antepassados. Em

contrapartida, constitui também o tipo existente a priori e aquilo que desencadeia a atividade correspondente. (JUNG, 1995, p. 106).

67

com as figuras simbólicas, modificadas individualmente, que surgem num pesadelo

ou na insanidade mental do indivíduo ainda atormentado. O sonho é o mito

personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o sonho simbolizam, da

mesma maneira geral, a dinâmica da psique. Mas, nos sonhos, as formas são

distorcidas pelos problemas particulares do sonhador, ao passo que, nos mitos, os

problemas e soluções apresentados são válidos diretamente para toda a humanidade.

(CAMPBELL, 2007, p.27)

No caso da referida história em quadrinhos de Corto Maltese, é perceptível

como os arquétipos se manifestam no nível narrativo por meio de personas imaginadas

pelo olhar de um estrangeiro, o autor europeu Hugo Pratt, que realmente caminhou sob

o signo de capricórnio da América Latina e os interpretou através de suas experiências e

de seu imaginário. A própria temática do onírico, que remete diretamente ao simbólico,

inconsciente e arquétipos, estão presentes em toda a obra de Pratt.

Imagem 27 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.

Fonte: PRATT, 1997, p.56.

A representação verbal e não verbal da narrativa em quadrinhos de Corto

Maltese manifesta-se pelo próprio formato das HQs. Ela cria processos específicos

através de seu traço, cor, texto escrito e layout, pois escrever roteiros de quadrinhos por

si só já pode caracterizar uma arte, mas é no momento que palavras e imagens se

combinam sem emendas que a HQ encontra sua melhor forma (MCCLOUD, 2008, p.

149). Aqui temos a síntese dos quadrinhos ao entender que a combinação estilística e

específica de imagem e texto gera um formato diferenciado e não somente uma mescla

de dois estilos artísticos. Também segundo o quadrinista Scott McCloud, “os

quadrinhos são uma linguagem secreta à parte, e dominá-la apresenta desafios diversos

dos enfrentados por qualquer prosador, ilustrador ou outros profissionais de criação”

(MCCLOUD, 2008, p.2). Apesar da licença poética do autor em encarar os quadrinhos

como uma linguagem “secreta”, pode-se notar através desta citação como McCloud já

deixa aparente que o conjunto resultante de uma hibridização, se considerar os

68

quadrinhos como uma soma de mais de um formato artístico – prosa e ilustrações – traz

características únicas a serem analisadas tanto por parte dos criadores do formato ou

quanto dos pesquisadores da área.

O formato utilizado pelo quadrinho para contar uma narrativa acaba

proporcionando uma determinada interação do leitor com a obra. As técnicas

empregadas para tal acabam por ser cruciais ao desenvolvimento de sua semiótica.

McCloud, explorando conceitos das histórias em quadrinhos, elucida alguns dos

princípios próprios da comunicação do formato ao

como eles (os princípios da clareza e da comunicação) governam o modo como

nossas histórias são ritmadas, enquadradas e representadas. Como o olhar do leitor é

guiado de quadrinho em quadrinho, e como sua mente é persuadida a dar

importância ao que vê (MCCLOUD, 2008, p.3).

Como o autor Hugo Pratt realmente viajou pela América Latina e Brasil, torna-

se extremamente singular o contexto de sua experiência pessoal versus sua narrativa

versus clichês resultantes do olhar de um estrangeiro e viajante sobre outras nações. Há

seres humanos que parecem imóveis e indiferentes às diferenças geográficas, mas

muitos possuem vontade de extrapolar essas barreiras invisíveis e são impelidos a

buscar algo além de seu mundo comum (CARDOSO apud NOVAES, 1995, p. 351). O

estrangeiro acaba por perder, em seu pensamento e arte, o sentido do que constituem a

imagem e a identidade de um lugar (PEIXOTO apud NOVAES, 1995, p. 363). Peixoto

também nos diz que “o estrangeiro toma tudo como mitologia, como emblema.

Reintroduz imaginação e linguagem onde tudo era vazio e mutismo” (PEIXOTO apud

NOVAES, 1995, p. 363). Apesar de essa falta de noção da verdadeira cultura e

realidade local na qual um estrangeiro se insere parecer algo ruim aos olhos de Peixoto,

curiosamente ele já nos deixa a resposta ao porquê desse acontecimento se remeter aos

níveis arquetípicos e simbólicos de Jung. O olhar que Hugo Pratt teve sobre o Brasil,

por exemplo, pode ser “clichê” a ponto de traduzir somente questões mais genéricas do

país, que saltam aos olhos de quem não é brasileiro e provavelmente não é a impressão

real que um nativo tem sobre sua nação, mas parece traduzir muito bem o viés

simbólico e torna uma “aventura em terras estrangeiras” uma narrativa quase épica, mas

com certeza com contornos mitológicos.

Desde que se conhece o homem como um ser social, o mito é fonte de

explicações para as mais diversas condições humanas ou da natureza. Sempre

69

relacionados a ritos, os mitos podem ser entendidos como narrativas de caráter

simbólico-imagético. Apesar de muitas vezes o mito ser encarado como uma realidade

possível por diversas culturas, ele acabou por se transformar em uma forma

inconsciente que aparece em narrativas ficcionais de todos os tempos, inclusive nas

contemporâneas.

Dentro do posto, remetemos inicialmente ao estruturalista russo Vladimir Propp,

que se especializou em estudar seu principal campo de interesse, o folclore. Pensando o

folclore como o conjunto de tradições e usos populares, encontramos a narrativa

mitológica em seu cerne. Mesmo parecendo que Propp estuda um tema muito

específico, é notório que, segundo o pesquisador Ruy Matos Ferreira,

não é de se surpreender que, mesmo sendo dirigida quase que exclusivamente para o

folclore, a produção teórica de Propp tenha se prestado a uma larga e fecunda

aplicação nos mais diversos ramos de estudos literários (FERREIRA, 2014).

Vladimir Propp propõe uma metodologia de investigação do conto de magia ao

definir que esse tipo de narrativa, em relação à sua composição e construção, não aos

temas, possui uma possível padronização (FERREIRA, 2014). Define também que cada

uma das várias funções, que seriam os estágios de uma jornada das narrativas, possui

um signo combinatório em si (FERREIRA, 2014). Segundo ainda Ruy Matos, Propp

sugere que a sequência em que as narrativas se encadeiam é padronizada mesmo que

nem todas as funções existam ou se repitam. Isso fica claro ao Propp afirmar em seu

livro, Morfologia do Conto Maravilhoso, que “o conto maravilhoso atribui

frequentemente ações iguais a personagens diferentes. Isto nos permite estudar os

contos a partir das funções dos personagens” (PROPP, 2006, p.16).

Aqui podemos dialogar entre Propp e Jung. Para o fundador da psicologia

analítica, esse padrão pode ser ainda mais relativo. Apesar de os arquétipos encontrados

em toda literatura universal terem seus traços gerais e repetitivos, o que se pode fazer

com esses aparentes padrões é encaixar acontecimentos mitológicos, reais ou ficcionais

em uma forma (antigo fôrma), mas a combinação das funções (para Propp) ou imagens

arquetípicas (para Jung) pode ser tão arbitrária dentro de um conjunto de fatores

psicológicos e sociais ao ponto de não ser insolúvel. Em suas reflexões, Jung já dizia

que

70

é muito comum o mal-entendido de considerar o arquétipo como algo que possui um

conteúdo determinado; em outros termos, faz-se dele uma espécie de

“representação” inconsciente, se assim se pode dizer. É necessário sublinhar o fato

de que os arquétipos não têm conteúdo determinado; eles só são determinados em

sua forma e assim mesmo em grau limitado. Uma imagem primordial só tem um

conteúdo determinado a partir do momento em que se torna consciente e é, portanto,

preenchida pelo material da experiência consciente. Poder-se-ia talvez comparar sua

forma ao sistema axial de um cristal que prefigura, de algum modo, a estrutura

cristalina na água-mãe, se bem que não tenha por si mesmo qualquer existência

material. Esta só se verifica quando os íons e moléculas se agrupam de uma suposta

maneira. O arquétipo em si mesmo é vazio; é um elemento puramente formal,

apenas uma facultas praeformandi (possibilidade de preformação), forma de

representação dada a priori (JUNG, 1994, p. 352).

Propp, por estar arraigado ao movimento formalista busca definir que existe um

formato padrão e reproduzível em seus contos maravilhosos. Propp foi então capaz de

fazer uma hábil catalogação de contos. Podemos entender isso através do próprio Jung

quando este diz que

Não devemos entregar-nos à ilusão de que finalmente poderemos explicar um

arquétipo e assim “liquidá-lo”. A melhor tentativa de explicações não será mais do

que uma tradução relativamente bem-sucedida, num outro sistema de imagens

(JUNG, 1994, p. 353).

Apesar de Campbell também encaminhar reflexão similar a de Propp, na qual as

jornadas heroicas possuem similaridades e padrões em si, ele bebe mais da fonte da

psicologia de Jung que não encara possíveis estruturas coincidentes como uma forma

intrinsicamente rígida e quase imutável. Essas “coincidências” seriam histórias básicas

inspiradas por arquétipos “que inspiraram, nos anais da cultura humana, as imagens

básicas dos rituais, da mitologia e das visões” (CAMPBELL, 2007, p. 15).

As padronizações que o psicoterapeuta revelou sobre a imagem arquetípica

podem ser entendidas como “um símbolo psicológico, produzido espontaneamente, que

aparece universalmente tanto em sonhos como em mitos e ritos (JUNG apud

CAMPBELL, 2001, p. 157)”.

Em termos de linguagem, símbolos rapidamente nos remetem à semiótica e seus

estudos de significantes. Segundo Ana Claudia de Oliveira, é notório que conjuntos

significantes e seus agrupamentos são o cerne da investigação do tema, pois

a escolha da palavra semiótica para designar o campo de investigação que se dá

tentando circunscrever não é inocente. Seu uso implica em admitir que os rabiscos

que cobrem as superfícies utilizadas para tal fim constituem conjuntos significantes

e que as coleções destes conjuntos significantes, cujos limites ficam por precisar,

são, por sua vez, sistemas significantes. Eis aí uma hipótese forte que justifica a

71

intervenção da teoria semiótica e que, logo de início, não permite que nos

satisfaçamos como uma definição que só leve em conta a materialidade dos traços e

das regiões (“plages”) impressas num suporte (OLIVEIRA, 2004, p.76).

Ou seja, a semiótica se propõe a investigar fenômenos culturais como sistemas

de significação. As formas de manifestações, linguísticas ou não, fazem parte de sua

teoria geral. Os arquétipos são justamente o sistema significante capaz de traduzir

aspectos de uma mitologia ou narrativa.

Numa palavra, o mito se interioriza. Quero dizer com isto que o mito ganha um

espaço dentro do ser humano. Ele passa a ser reflexo de múltiplos movimentos de

interiores. O mito é o produto do inconsciente. Neste lugar se origina, neste lugar se

processa. Nele, também, se realiza. Ainda mais, é do inconsciente uma forma de

expressão. (ROCHA, 1991, p.40)

O relato fantástico que é o mito

implica portanto não apenas a existência de um acontecimento estranho, que

provoca hesitação no leitor e no herói; mas também numa maneira de ler, que se

pode por ora definir negativamente: não deve ser “poética”, nem “alegórica”.

(TODOROV, 2010, p.38)

O mito não ficou em um passado longínquo, ele é uma narrativa arquetípica

presente em todas as sociedades e tempos, mas na era moderna ele ganhou os contornos

de quem os propaga, a mídia. Ao falar do hábito de ler um jornal, Contrera diz que

nos chama a atenção é a dimensão verdadeiramente ritual que esse hábito adquire, já

que entendemos por ritual um acontecimento que estabelece um ritmo sincronizador

e que se instaura por meio de uma repetição que tem por função pontuar, estabelecer

um ritmo, garantindo a eficácia dessa pontuação, usando procedimentos que nos

remetem à dimensão arquetípica da cultura (CONTRERA, 1996, p.56).

Ler um jornal ou um website de notícias diariamente, adquirir um quadrinho em

um evento em que os fãs compartilham suas experiências, fantasiar-se da personagem

famosa daquele videojogo ou se deslocar ao cinema; todos esses são exemplos de

repetições, enfim rituais modernos. Neles temos o mito do herói presente, pois, segundo

Contrera, ao falar do cinema,

Esse belíssimo ritual (re-atual) do mito do herói apresentado pelo cinema de maneira

absolutamente atual e de forma a corresponder às expectativas do público (vide

índices de audiência) conta, dessa maneira, uma das mais antigas e universais

narrativas, a mesma já contada há muitos séculos (CONTRERA, 1996, p.108).

72

A matéria-prima do mito é o arquétipo. O mito é a matéria-prima das narrativas

(literárias, cinematográficas, publicitárias e, claro, das HQs). Teríamos assim uma

relação entre os temas que pode ser resumida no seguinte esquema:

Mito > narrativas midiáticas > arquétipo dentro do mito e dentro do

inconsciente coletivo > narrativas midiáticas, entre elas a HQ > revivem,

rememoram ou reatualizam os mitos/arquétipos.6

Como personagem literária, Corto veicula um significado cultural que

representar o homem em busca de autoconhecimento e autorealização ou como o

homem que se esconde por trás de uma máscara de aventureiro, cuja busca,

arquetipicamente falando, é por algo que não está no exterior. Se pensarmos no

arquétipo, pode ter um significado cultural e até psíquico relacionado ao trickster a

figura do “herói trapaceiro” que seria aquele que figura por ambos os lados de uma

história. Além de um viajante no mundo, o trickster também transita por entre os

mundos ou espaços, pois não pertence a um só lado. Em Corto Maltese isso é

claramente identificado, pois na época da Primeira Guerra Mundial que o personagem

vive, não é difícil encontra-lo do lado alemão ou inglês.

Vale pontuarmos também a questão do monomito e mitema. O monomito,

segundo Campbell, é a ideia da jornada do herói que poderia ser reduzida

primordialmente nos estágios de partida, iniciação e retorno. Onde algo ou alguém

precisa se deslocar de um espaço, caminhar e retornar. Já o mitema, para correntes

estruturalistas, é a partícula essencial do mito, enfim o elemento irredutível e imutável

do qual todos os mitos chegariam a uma origem.

Então, poderíamos então identificar que o mito do herói está presente nos

quadrinhos e, consequentemente, em Corto Maltese? Graças ao “fantástico permite

franquear certos limites inacessíveis quando a ele não se recorre” (TODOROV, 2010, p.

167) e conforme Campbell parece que sim. Aqui, vamos recorrer a um método de

análise.

Christopher Vogler, roteirista e pesquisador das ideias propostas por Campbell, é

de grande auxílio à reflexão de como encontramos a jornada do herói e arquétipos em

6 Esquema proposto pelo professor Dr. Hertz Wendel de Camargo no Exame de qualificação.

73

narrativas contemporâneas. Em seu livro, A Jornada do Escritor, o autor faz uma

espécie de manual com um apanhado geral de como os arquétipos e a jornada do herói

estão inseridas em narrativas e como um escritor poderia colocá-las em seu roteiro.

Todavia, é notório que essa espécie de compilação dos pensamentos de Jung, Campbell

e Propp serve para refletirmos não só sobre roteiros cinematográficos, mas também

sobre outras obras narrativas modernas que possuam estruturas similares como as dos

quadrinhos.

Diz Vogler, já na introdução de seu livro, que seu texto é: “(...) uma missão de

descoberta para explorar e mapear os limites fugidios entre o mito e a narrativa moderna

de histórias” (VOGLER, 2006, p. 35). Sua pesquisa estuda tanto os conceitos narrativos

de produções audiovisuais modernas quanto seus métodos. Por meio de análises

deroteiros e trabalhos de consultorias ligados a estúdios de cinema estadunidenses,

Christopher coletou um amplo leque de informações e mostra, a partir dos últimos

trabalhos, como as narrativas modernas são construídas com a mesma base comum de

qualquer outra história humana bem-sucedida no sentido de propagação. Vogler analisa

as estruturas míticas citando a figura e o papel do herói ou protagonista. “O propósito

dramático do Herói é dar à plateia uma janela para a história. Cada pessoa (...) é

convidada, nos estágios iniciais da história, a se identificar com o Herói, a se fundir com

ele e ver o mundo por meio dos olhos dele” (VOGLER, 2006, p. 76).

Sempre remetendo principalmente ao trabalho de Campbell, Vogler também nos

introduz ao tema da jornada do herói. Esta, basicamente, é uma estrutura de construção

narrativa, mal comparada às vinte seis letras do alfabeto; as quais, dependendo de suas

correlações, formam uma infinidade de palavras em uma língua. Aqui podemos nos

lembrar de Propp e suas funções do conto maravilhoso. Sendo assim, as doze etapas da

jornada heroica podem se relacionar de diversas maneiras a fim de criar uma infinidade

de narrativas:

1 – Mundo Comum – O herói é mostrado em sua vida cotidiana a fim de causar

identificação com o público.

2 – Chamado à Aventura – Algum motivo instiga o protagonista a sair de seu mundo

comum para resolver uma situação.

3 – Recusa ao Chamado – A figura heroica teme as mudanças e reluta em seguir em

frente com uma mudança.

74

4 – Encontro com o Mentor – O herói se depara com uma figura que lhe dá condições

ou encaminhamentos para se aventurar.

5 – Travessia do Primeiro Limiar – É quando o herói aceita o chamado e está prestes a

participar de algo que o mudará, mas enfrenta oposição de alguma força.

6 – Testes, Aliados e Inimigos – Aqui ele passa por testes que o tornam apto a continuar,

encontra aliados e se definem seus inimigos.

7 – Aproximação da Caverna Oculta – Forças opostas se levantam a fim de não deixá-

lo chegar ao seu objetivo.

8 – Provação – O herói chega em seu objetivo, a provação que o mudará como pessoa,

aqui ele enfrenta a maior resistência dos inimigos.

9 – Recompensa (Apanhando a Espada) – Consegue finalmente cumprir seu objetivo.

10 – Caminho de Volta – Ainda enfrenta resistência no caminho que o leva de volta ao

mundo comum.

11 – Ressurreição – Momento em que o herói morre metaforicamente e ressurge

mudado (juntamente de toda a experiência que adquiriu durante a jornada que agora está

fixa dentro de si).

12 – Retorno com o Elixir – Volta ao seu mundo comum (primeira etapa) com seu

objetivo concretizado e mudado como pessoa.

Não necessariamente uma obra seguirá essa ordem, bem como poderá não ter

todas as etapas da jornada, mas algumas delas sempre estarão lá. Estas, segundo Vogler,

aparecem em narrativas humanas capazes de nos cativar. Hamlet de Shakespeare, por

exemplo, está num dilema moral entre lutar ou não contra o assassino de seu pai. Sua

jornada heroica estaria voltada para a luta e para a recusa a este chamado como na etapa

três. Apesar de conseguir avançar, morre vítima da jornada e não tem como seguir aos

estágios dez, onze e doze; no entanto, fica implícito que era sua intenção e que estava

heroicamente disposto a morrer por isto. Contudo, todas as outras etapas estão presentes

nesta peça seja em ações físicas como ao nível simbólico, sendo suficientes para criar

empatia para com o expectador/leitor.

O padrão pode ser explicado também com uma metáfora: “Sabendo o que é a

espécie de tigre, podemos daí deduzir as propriedades de cada tigre particular; o

75

nascimento de um novo tigre não modifica a espécie em sua definição” (TODOROV,

2010, p. 10). Já Vogler vai mais longe ao dizer que a jornada existe na vida humana real

e que todos passam por jornadas heroicas. Afinal, esta jornada pode se manifestar

fisicamente, mas ela é uma imagem da nossa jornada psíquica. Um exemplo real

comum seria alguém que necessita encontrar um emprego. Primeiro sai de sua condição

de desempregado e decide procurar trabalho. Para isto precisa ser empurrado pela figura

de um mentor, seja uma pessoa que cumpre este papel ou uma necessidade pelo qual

nosso herói da realidade está passando. Ele enfrenta testes ao decidir se aprimorar para

conseguir tal emprego, também ganha amigos que podem ser reais, meramente ideias ou

figuras oníricas assim como adquire inimigos, cansaço, falta de tempo etc. Resolve

procurar o tal trabalho e assim está próximo da caverna oculta, o local onde será

provado para ver se é digno do trabalho. Conseguindo este, volta para casa satisfeito,

mas ainda pode enfrentar resistência questionando-se se é o emprego certo, se tudo

ficará bem. Passa o tempo e ele finalmente se acostuma com a nova atividade, gosta do

que faz e entende como funciona o local onde trabalha. Voltando para morada onde as

pessoas o conheciam na primeira etapa, mostra-se alguém mudado em relação à vida

profissional. Christopher Vogler admite que existem protagonistas que se aventuram

sem sentir resistência, como aqueles que falham fatalmente; o homem do exemplo

poderia ter errado a escolha profissional e passado a vida em agonia até se aposentar.

No entanto, só a jornada não é suficiente para termos uma base narrativa

completa, por isso os arquétipos de Jung estão presentes em todo o percurso. Esses

arquétipos são energias psíquicas contidas em todo o ser humano, mas que se

manifestam em momentos e etapas diferentes da vida. Na jornada do herói é onde esses

papéis acabam sendo definidos: cada personagem manifesta determinado arquétipo de

uma forma maior que os outros, mas isso também depende do ponto de vista da

narrativa. Segue um resumo dos arquétipos de Carl G. Jung:

Herói – O protagonista, aquele que tem um objetivo a cumprir e luta para obtê-lo,

mesmo que não o queira muito. Pode ser aquele que busca satisfazer as necessidades do

grupo a que pertence ou pode ser um anti-herói, é egoísta e não se importa com os

outros. Durante a jornada, um anti-herói pode mostrar características de herói ou vice-

versa, como também acontece de um arquétipo terminar a jornada como outro tipo.

Todos são heroicos em suas próprias histórias de vida. Segundo Vogler, mesmo o

inimigo de uma narrativa, é o herói de sua própria história.

76

Mentor – É a energia psíquica que ensina, dá capacidade para o herói enfrentar a

jornada.

Guardião de Limiar – É a figura que protege a saída do herói de seu mundo comum.

Sua função psíquica não é evitar que o protagonista se aventure, mas provar se é capaz

de sair, ou seja, se tem o que é necessário para sobreviver ao início da jornada fora de

seu cotidiano.

Arauto – É o arquétipo que lança o desafio ao herói ou anuncia a mudança que está por

vir.

Camaleão – Traduz a energia em movimento, são os arquétipos que mudam sua

condição física e/ou psíquica constantemente. Também se relaciona ao disfarce, quando

se precisa fingir para obter alguma coisa. Não deixa de ser um arquétipo que traduz a

condição entre homem e mulher, pois o sexo oposto pode sempre parecer um camaleão

por um não entender o outro completamente.

Sombra – É o arquétipo que se opõe completamente ao objetivo do herói. Na psique

humana, são todas as emoções e ideias que vão contra os objetivos de alguém, mas

estão na sua própria mente. Muitas vezes a sombra é a tradução de desejos reprimidos

que são positivos, porém, por algum valor moral, as pessoas tentam afastá-los.

Pícaro – É a figura arquetípica que questiona o status quo. Segundo Vogler “Incorpora

as energias das vontades de pregar peça e do desejo de mudança. Todos os personagens

de uma história que são principalmente palhaços ou manifestações cômicas expressam

esse arquétipo” (VOGLER, 2006, p. 129)

Estas, por assim dizer, manifestações psíquicas podem ocorrer internamente, na

psique de um ser, ou se manifestarem fisicamente como alguém ou algo. Na jornada, as

principais manifestações, até mesmo mais recorrentes ou clichês, seriam o herói e a

sombra/antagonista que precisa derrotar. Esta pode se manifestar como um vilão físico

que traduz tudo aquilo que o herói não quer ser. Analisando profundamente, a jornada

do herói acaba, sem querer, dando suporte à teoria marxista, já que uma melhora na

condição do protagonista acontece por meio de um choque entre ideias. Estas podem ser

de uma pessoa com ela mesma, entre pessoas, entre grupos ou classes sociais e mesmo

entre sociedades. Guerras não são nada mais que heróis de suas próprias histórias e suas

contrapartes lutando para um se sobrepor ao outro. Lembrando-se aqui, é claro, de que

77

essa visão heroica não é maniqueísta, já que eleva a sombra à condição de parte do

herói, contudo, que não é aceita por este.

Herói esse que, como pudemos ver, representa a própria saga humana, a trama nar-

rativa cuja matéria-prima viva é ao mesmo tempo a própria espécie, e cada

indivíduo, ele mesmo. Trama narrativa que tem como universo possível os textos da

cultura – espaço de realização de linguagem (CONTRERA, 1996, p. 120).

Ainda sobre o tema do mito moderno, Eliade nos mostra a importância do

enredo e de uma aventura ficcional para o ser humano ao dizer que

Embora, no Ocidente, o conto maravilhoso se tenha convertido há muito tempo em

literatura de diversão (para as crianças e os camponeses) ou de evasão (para os

habitantes das cidades), êle ainda apresenta a estrutura de uma aventura

infinitamente séria e responsável, pois se reduz, em suma, a um enredo iniciatório:

nêle reencontramos sempre as provas iniciatórias (lutas contra o monstro, obstáculos

aparentemente insuperáveis, enigmas a serem solucionados, tarefas impossíveis,

etc.), a descida ao Inferno ou a ascensão ao Céu (ou – o que vem a dar no mesmo – a

morte e a ressureição) e o casamento com a Princesa (ELIADE, 1986, p. 173).

Por essa necessidade de uma narrativa que introduza temas à psique que as

pessoas são tão cativadas por essas histórias. E não temos uma única narrativa que sirva

infinitamente à humanidade, mas sim várias atualizações em um ciclo permanente de

renascimento, pois “dentro do espírito e do organismo social deve haver (...) uma

contínua „recorrência de nascimento‟” (CAMPBBELL, 2007, p. 26).

Em Corto Maltese, podemos já em um olhar inicial identificar que a jornada

acontece Sob o Signo de Capricórnio. Geralmente as narrativas costumam colocar um

arquétipo predominante em cada personagem, fazendo os demais serem secundários,

assim como a jornada costuma ser apenas do protagonista. Todavia, muitas vezes esse

sistema pode se alterar e temos, assim, grandes mudanças de arquétipos e de

relacionamentos entre personagens, mas nosso (anti-)herói, Corto Maltese, segue um

papel fixo em Sob o Signo de Capricórnio, ao menos até a página 94 e antes do início

do capítulo V (consideremos aqui a versão brasileira de 2006), pois depois temos uma

mudança de ambiente e, apesar de a história estar continuando, a narrativa e seus

conflitos seguem outros caminhos isolados, disto será falado posteriormente. O papel

fixo de Corto é o de protagonista, mas ele “pega uma carona” na aventura de outra

figura. Na história analisada nesta dissertação (com a devida ressalva de até a página

94), Corto toma para si a jornada do personagem Tristan Bantan e o auxilia em uma

78

aventura. Dessa forma, podemos encarar Corto como um herói e protagonista, mas seu

arquétipo encarna a figura de mentor.

Em outras histórias, como em Corto Maltese A Juventude (PRATT, 2011), Corto

acaba por ter uma função diferenciada, pois nessa história ele aparece somente após

metade da narrativa e não cumpre com o papel de protagonista da ficção. Todavia,

acaba por “roubar a cena” ao final. Temos ali um deslocamento de herói e protagonista

em uma mesma edição. Por outro exemplo, em A Balada do Mar Salgado (1982), temos

uma jornada que conta a aventura do próprio Corto Maltese do início ao fim. Inclusive a

apresentação do personagem “crucificado” e abandonado no mar (Imagem 28)

escancara essa questão, pois remetemos a um clichê explorado à exaustão nas narrativas

modernas ocidentais, o do herói salvador que nos lembra do messias da religião cristã,

Jesus Cristo.

Vale salientarmos que, dentre tantas abordagens metodológicas de análise

narrativa, a jornada do herói uma possibilidade entre tantas outras. Todavia, ela sempre

está lá. Até hoje, para essa linha, nenhuma barreira se tornou incontornável.

Imagem 28 – Corto Maltese: A Balada do mar Salgado.

Fonte: PRATT, 1982, p. 9.

2.4. A jornada do herói em Corto Maltese

Em Sob o Signo de Capricórnio, como a primeira linha textual sugere, a história

começa com Corto Maltese descansando preguiçosamente na varanda de uma pensão na

capital da Guiana Holandesa (atual Suriname) e nos apresenta rapidamente ao mundo

comum do personagem, segundo o termo utilizado por Joseph Campbell e Christopher

Vogler. Isso até o destino lhe impelir para o caminho que traçará posteriormente o que

Vladimir Propp classifica como função do afastamento quando o personagem é

79

distanciado de sua situação inicial e impulsionado a uma mudança (PROPP, 2006, p.

19). A calmaria de Corto já parece ter fim com a aparição do personagem de Jeremiah

Steiner que é expulso bem ao lado de onde Corto buscava relaxar. Professor da

Universidade de Praga, Steiner é amargo com a vida o que lhe tornou um bêbado.

Apesar da rispidez com que Corto Maltese trata o professor, o mesmo não se sente

ofendido e continua depressivo. A personagem da Madame Java, que está com Corto,

conta um pouco da história de Steiner e também é respondida com sarcasmo pelo

protagonista. Pontuada aqui a personalidade egocêntrica de Corto isso nos leva a crer,

neste momento, que o protagonista encarna um típico anti-herói. Posteriormente, fica

mais claro que o Professor Steiner faz o papel de mentor nesta edição de Corto Maltese,

pois apesar de suas peculiaridades e problemas com o álcool, é ele quem sabe explicar

lendas e indicar caminhos aos personagens. É claro que, como já mencionado, Corto é

também mentor para outros personagens, ele é o herói-mentor. Em mais uma

comparação com a HQ de Tintim, Steiner faz o mesmo tipo do Capitão Haddock. Esse

encontro inicial de Corto com o professor chega a ser decisivo para uma ação futura de

Corto. Nela, este o ajudará a lutar contra valentões, situação a qual desencadeia as ações

já demonstrada nas Imagens 18, 19 e 23. Mesmo que Corto nunca fuja de uma boa briga

e pareça pensar somente em si por causa de seu sarcasmo com as situações da vida, ele

se mostra preocupado com os outros e é impelido, por vontade própria ou não, a ajudar

os indefesos. Agora podemos pensar Corto mais como um herói, egocêntrico e não cem

por cento ético e moral, logo, mais humano.

Na sequência aparece Tristan Bantan, personagem central em Sob o Signo de

Capricórnio e quem possui a demanda por uma aventura. Aqui encontramos o destino,

o chamado à aventura de Corto Maltese que o leva além de sua varanda, local onde

descansava preguiçosamente. Temos o conflito principal revelado e o que fará quase

toda a história de Sob o Signo de Capricórnio funcionar: Tristan é filho de um velho

amigo de Madame Java e está procurando pelo misterioso reino de Mú, pois é

atormentado por visões e vozes que lhe encaminham para essa busca. Todavia, nesse

momento, Corto acha que não é de seu interesse e recusa ao chamado, sai rumo ao seu

barco e é então que ele se envolve na já citada briga e acaba por salvar o Professor.

Aqui, graças a uma pergunta sarcástica de Steiner, eles acabam definindo que tipo de

herói o personagem é:

80

Imagem 29 – Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio.

Fonte: PRATT, 2006, p. 13.

Na Imagem 29, notamos como Steiner indaga por qual motivo Corto Maltese o

salvou, este é sarcástico na resposta, mas o Professor responde na mesma moeda. Essa

situação evidencia que Corto é um herói que não gosta muito de sua condição

messiânica devido ao seu passado sombrio no qual foi um herói que buscou utopias,

mas falhou nessas jornadas e, por isso, foge da realidade. Provavelmente essa situação

se deve ao período histórico em que a narrativa se desenrola, um mundo instável em

razão da Primeira Guerra Mundial. Aqui, um dos toques de realismo na narrativa, pois

nem sempre todos saem ilesos ou mesmo vivos nas aventuras de Corto e poucas vezes

os objetivos são conquistados, logo é impossível uma jornada acabar utopicamente feliz.

O que importa para Corto e sua sombra e colega muitas vezes presente, Rasputin, é a

jornada. “Nesse sentido, mais do que nunca o que importa é o percurso percorrido, que

se confunde com o objetivo em si; ou seja, o caminho é o único fim possível, apontando

naturalmente para um recomeço” (CONTRERA, 1996, p. 112) ou ainda “o herói

mitológico não é patrono das coisas que se tornaram, mas das coisas em processo de

tornar-se” (CAMPBELL, 2007, p. 324). Inclusive, a importância da jornada em

detrimento de uma ilusão de fim, cai como uma luva para obras seriadas como os

quadrinhos, nas quais geralmente temos várias edições e arcos narrativos que se iniciam

e terminam.

Voltando à análise, além do encontro que Corto Maltese teve com Steiner, temos

uma nova fase de encontro com o mentor, quando Madame Java solicita que Corto ouça

a história de Tristan (PRATT, 2006, p.15). É então que Tristan conta que foi chamado

por vozes e por um nome de uma figura mítica, o orixá Ogum Ferreiro (PRATT, 2006,

p. 16). Logo em seguida, a mensagem do chamado é confirmada pela Baianinha que

traz informações sobre Morgana, a irmã de Tristan (PRATT, 2006, p. 17). Ela encarna o

81

arquétipo do arauto, conforme proposto por Vogler (2006), pois é quem lança o desafio

que está por vir para o herói. Por fim, Corto que até então parecia ser somente o mentor

dessa história de Tristan, começa cada vez mais a ser impelido para a aventura pela

baiana que anuncia que Corto Maltese também está em perigo, segundo revelação de

Iemanjá, após Olhos de Sapo atirar em Tristan (PRATT, 2006, p. 19). Na sequência, o

barco de Corto, com Steiner adormecido dentro, é queimado por bandidos e o

protagonista finalmente nota que faz parte dessa aventura mesmo recusando o chamado

brevemente nesse momento (PRATT, 2006, p. 22).

Imagem 30 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.

Fonte: PRATT, 1997, p.34.

Nesse momento vale uma pausa do andamento da jornada do herói para

lembrarmos que a estrutura da jornada e suas fases estão acontecendo, mas em uma

ordem um pouco diferente da estabelecida por Vogler com algumas quebras e até quase

supressão de um dos estágios. Tivemos a apresentação do mundo comum, encontro com

o mentor Professor Steiner, Tristan já se aventurando, uma breve recusa da parte de

Corto por não ter interesse, um novo encontro com mentor no qual Corto Maltese é

definido como herói-mentor, chamado da aventura para Tristan e Corto e, por fim, uma

abreviada e verdadeira recusa ao chamado pela parte de Corto. As jornadas do

marinheiro e do jovem Tristan Bantam enfim se unem e notamos praticamente como a

82

jornada do herói e os arquétipos estão ali formando esse mito moderno, mas que ela

realmente não é uma estrutura rígida e imutável apesar de as partes se fazerem

presentes. Nesse trecho que se passou, também fomos apresentados à visão do

estrangeiro e de como Hugo Pratt retrata os clichês por meio dos quais os europeus

enxergam as religiões brasileiras de matriz africana.

Imagem 31 – Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.

Fonte: PRATT, 2006, p.17.

Percebe-se nitidamente como o olhar do estrangeiro é superficial e mistificador

da religião brasileira ao associar, sem maiores ressalvas, o candomblé (que também será

tratado como “macumba”) ao ritual do vodu, que é haitiano. Além disso, percebe-se

uma tentativa um tanto desastrada de sincretizar o Candomblé ao Espiritismo

Kardecista, como se tivesse sido psicografada uma mensagem ditada por Ogum, o que

não é possível na religião afro-brasileira, uma vez que os orixás só se comunicam por

meio do jogo de búzios.

83

Dando sequência, Corto Maltese procura pelos meliantes responsáveis pela

tentativa de assassinato de Tristan e pela queima do seu barco (PRATT, 2006, p. 23),

aqui, observa-se claramente a travessia do primeiro limiar onde um guardião precisou

ser superado. Também encontramos aqui uma singularidade repetida muito pelo mito do

herói moderno, Corto Maltese encarna, segundo Campbell, o herói guerreiro;

geralmente retratado como aquele cuja lança aponta contra o dragão, este tipo de herói

supera desafios físicos. Ainda diz que “o local de nascimento do herói, ou a terra remota

de exílio de onde ele retorna para realizar suas tarefas de adulto entre os homens, é o

ponto central ou centro do mundo” (CAMPBELL, 2007, p. 322). Corto não é o herói

que se aventura em um total desconhecido, mas é sim um velho conhecedor do mundo

que visita terras remotas para realizar fainas ou, em outras histórias que não estamos

analisando profundamente no momento, volta também para seu local de nascimento.

Poderíamos encará-lo, segundo termo de Campbell, como um senhor de dois mundos

(CAMPBELL, 2007, p. 225), pois ele parece transitar entre esse mundo dos homens e

um mundo mais elevado, no qual já encontrou respostas, mas não um fim.

Após uma aula sobre hieróglifos que Steiner ministra a Tristan e Corto, numa

espécie de referência metalinguística aos quadrinhos e à linguagem de um modo geral

(PRATT, 2006, p. 26), os três se lançam à busca pelo desconhecido. A partir do início

capítulo II, “Encontro na Bahia”, começa a fase de testes, aliados e inimigos. Segundo

Vogler (2006, p. 204), é aqui que o herói encara o contraste com o mundo comum,

passa por provações, encontra quem o ajuda e forma uma equipe e encontra com seus

antagonistas. Levando em conta que Corto Maltese é um senhor de dois mundos, ele

passa por todas essas fases juntamente de Tristan, exceto pelo choque cultural que é

exclusivo do menino, pois Corto é um viajante e enxerga as culturas de fora, mas esses

ambientes já lhe são conhecidos e muitos ele já acessou anteriormente. A interpretação

sob um ponto de vista exótico perpassa Tristan que indaga o motivo de sua irmã estar

rodeada de “estranhas feiticeiras”, já Corto, ao dizer que a irmã de Tristan cresceu numa

“parte do mundo tão diferente da sua Inglaterra” (PRATT, 2006, p. 31), ensina o

menino fazendo-o refletir sobre o fato de o mundo ser um lugar de contrastes. No caso

da equipe, encontramos a resposta à questão Corto e Tristan serem ambos heróis, pois

“muitas histórias apresentam heróis múltiplos, ou um herói apoiado em uma equipe de

personagens com habilidades ou qualidades específicas” (VOGLER, 2006, p. 207).

84

Temos então encontro com aliados na figura do ex-presidiário Caiena e alguns

índios que apontam caminhos aos personagens (PRATT, 2006, p. 34). Na sequência, os

personagens encontram-se enfim com a irmã de Tristan, Morgana. O rapaz passa por

um choque ao notar que ela é negra, mas Steiner e Corto, ambos no papel de mentores,

falam para ele não ter preconceitos.

Imagem 32 - Corto Maltese: Sob o Signo do Capricórnio.

Fonte: PRATT, 1997, p. 51.

Nesta altura da jornada, é comum que personagens adentrem locais

movimentados como bares ou saloons (VOGLER, 2006, p. 209) como quando Luke

Skywalker está sem rumo definido em sua aventura e se encontra com Han Solo no

filme Star Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança, mas isso é uma situação pouco

corriqueira nas aventuras de Corto Maltese. Normalmente, ele só encontra-se com

alguns grupos de pessoas que lhe auxiliam de alguma maneira, como aqui em Sob o

signo de Capricórnio.

Chegamos ao sétimo estágio descrito por Campbell, a aproximação com a

caverna oculta. Tristan encontra muitas respostas desconhecidas com sua irmã

Morgana (PRATT, 2006, p. 40), então forças do inconsciente se levantam contra Tristan

(vide imagens 24 e 25). Aqui temos uma antecipação do décimo primeiro estágio para

85

Tristan (a ressurreição), pois ele passa por uma morte e um renascimento simbólicos,

por meio dos quais teve experiências que o mudarão. É então que a sombra de Tristan,

seu antagonista e advogado da família, aparece como provação no oitavo estágio, o da

provação (PRATT, 2006, p. 45). Tristan clama pelo seu herói salvador: “gostaria que o

senhor Corto Maltese estivesse no meu lugar” (PRATT, 2006, p. 45), e, então, Corto

aparece salvando-o do advogado responsável pela morte de seu pai e, na sequência, com

tudo resolvido, o crânio de Tezcatlipoca aparece misteriosamente na porta da casa de

Morgana caracterizando o nono estágio, o da recompensa. Os personagens são então

encaminhados à Ilha de Maracá, onde Boca Dourada e o início do caminho de volta,

décimo estágio, avistam-se.

Todavia, é notável que aqui vemos uma inversão de caminhos na narrativa, pois

Tristan estava perseguindo as anotações de seu pai em relação ao reino perdido de Mú

(PRATT, 2006, p. 16) e o inconsciente lhe levava para essa demanda, mas o final de sua

jornada, ao menos em Sob o signo de Capricórnio, torna-se uma espécie de vingança ou

justiça feita pela morte de seu progenitor. Aqui vale pontuar uma característica da obra

de Hugo Pratt na totalidade: várias tramas ou subtramas ficam em suspenso para abrir

caminho a outras, sendo que algumas delas retornam em edições posteriores ou já

haviam sido abordadas em anteriores, dando uma característica de saga à obra. Na

última edição produzida e publicada por Pratt, Mu a Cidade Perdida, o próprio Tristan

volta a aparecer anos mais tarde na vida de Corto justamente para auxiliá-lo a procurar o

continente perdido de Mu, mas ali a jornada já é outra e Tristan é só um personagem

coadjuvante. As várias jornadas de cada edição de Corto e outros personagens se

entrelaçam em um grande emaranhado, maior do que cada narrativa, formando um todo

do qual optamos, neste momento, por isolar a história narrada em Sob o Signo de

Capricórnio.

No capítulo III, “Samba com Tiro Certeiro”, Corto e os demais se encontram

com Boca Dourada, uma mulher misteriosa que aparentemente tem muitos anos a mais

de vida do que um ser humano comum conseguiria ter. Aí temos uma mudança de foco

e da aventura, Tristan só está acompanhando Corto que, afinal, toma para si só o papel

de herói e se afirma como protagonista ao aceitar uma demanda de Boca Dourada. O

marinheiro assume a proposta aparentemente só pelo lucro monetário (PRATT, 2006, p.

56). O grupo formado por Corto, Tristan e Steiner dirige-se então ao cangaço e lá

participam da jornada dos cangaceiros mostrando claramente a quebra de tema e início

86

de uma nova jornada (vide imagem 22). Após fazer uma leitura de como era o governo

brasileiro no início do século XX (PRATT, 2006, p. 59), Corto se torna responsável

pelo nascimento de um novo chefe político, segundo o Professor Steiner: Tiro Certeiro

foi encaminhado por Corto Maltese. Essa mescla de figuras históricas ou semi-

históricas reais na narrativa do marinheiro é constante na maioria de suas aventuras,

mais um traço de Hugo Pratt. Após ajudar os revoltosos a se livrar do coronel corrupto,

Corto unge Corisco de São Jorge como o novo chefe dos cangaceiros (PRATT, 2006, p.

72), pois Tiro Certeiro morreu na empreitada. Aqui, novamente numa analogia à Bíblia,

Corto encarna novamente o mentor numa figura facilmente identificada com João

Batista e Corisco seria o futuro salvador, o nosso Jesus Cristo.

No quarto capítulo, “A águia do Brasil”, temos novamente Boca Dourada

encaminhando os personagens a uma aventura. Tristan continua como coadjuvante e

Steiner como conselheiro e aqui temos, enfim, as demandas do próprio Corto Maltese

postas em pauta: a busca por tesouros ou segredos. Tudo culmina no último capítulo

relacionado com a aventura que se iniciou na varanda da pensão de Java, “... E

Falaremos mais uma vez dos Cavalheiros da Fortuna”. Vale lembrar que, apesar de

fazerem parte de um todo que se fecha em si, Sob o Signo de Capricórnio muitas vezes

foi publicado em edições menores o que pode ter acarretado a inclusão de capítulos

posteriores à aventura de Tristan, sejam elas o fechamento do enredo iniciado com o

jovem inglês atrás de sua irmã Morgana ou não.

Apesar de continuar cronologicamente, o último capítulo contido no álbum Sob

o signo de Capricórnio, “Por Causa de Uma Gaivota”, é uma história totalmente isolada

e sua pequena trama não remete diretamente a nada acontecido anteriormente, ela só é

uma espécie de introdução para o que está por vir na edição, Corto Maltese: Sempre Um

Pouco Mais Distante.

No quinto capítulo, Tristan chega a ser abandonado pelo autor e desaparece após

as páginas iniciais. É aqui que, finalmente, Corto Maltese é posto à prova ao se

encontrar com Rasputin. Inúmeras vezes, o parceiro de viagens de Corto é Rasputin, um

sociopata russo que, arquetipicamente e dentro da jornada heroica de Corto como um

todo, além de amigo, faz o papel de sua sombra. Corto é avesso à maneira de agir de

Rasputin que costuma ser muito violento e inescrupuloso, matando qualquer um que

esteja em seu caminho, apesar de o russo buscar as mesmas coisas que Corto, ser um

Cavalheiro da Fortuna. Essa singular relação entre os dois significa que o herói

87

“descobre e assimila seu oposto (seu próprio eu insuspeitado), quer engolindo-o, quer

sendo engolido por ele. (...) Então, descobre que ele e seu oposto são, não de espécies

diferentes, mas de uma mesma carne” (CAMPBELL, 2007, p. 110).

Imagem 33 – Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio.

Fonte: PRATT, 2006, p.103.

Corto Maltese sempre entra em conflito com Rasputin, chegando ao ponto da violência,

vide a imagem abaixo. Curioso como Rasputin é inconstante, hora parece prestes a

matar Corto, hora o encara como seu único amigo. Nesse ponto, ele é também a figura

que encarna o arquétipo do camaleão.

Imagem 34 - Aventuras de Corto Maltese na Sibéria: II – Ungern da Mongólia.

Fonte: PRATT, 1979b, p. 21.

88

Após inúmeros percalços, a busca por um tesouro perdido e o encontro com a

figura do pícaro encarnada no louco da ilha que também exerce um antagonismo a

Corto (PRATT, 2006, p. 105), a narrativa enfim tem seu décimo primeiro estágio da

jornada, ressurreição, quando Corto e Rasputin se tornam um dos poucos sobreviventes

de um tiro de canhão (PRATT, 2006, p. 112). Tragicamente e ironicamente, temos

também aqui o estágio da recompensa para Corto, que recebe seu tesouro através de

um tiro, mas isso que lhe trará também mudanças, sua verdadeira recompensa (PRATT,

2006, p. 111).

Apesar de o estágio de ressureição para Corto ser simples, mais para ilustrativo e

não tão grandioso quanto o de um salvador da humanidade como Buda, é ele que

encaminha a mudança e a reflexão no herói, pois ironicamente, a munição era

justamente o tesouro que procuravam e Corto Maltese é quem prontamente identifica

esse acaso triste, mas risível (PRATT, 2006, p. 114). Aqui, mesmo não conseguindo

conquistar o que queria materialmente, Corto foi mudado espiritualmente por toda sua

jornada. O décimo segundo e último estágio da jornada, retorno com o elixir, está

cravado com uma última ironia na qual a informação necessária para tudo ter sido

diferente chega atrasada (PRATT, 2006, p. 116).

Corto não retorna ao seu mundo comum, não com a coisa material pretendida,

mas com uma soma de experiências. O seu barco e o mar, afinal, cravam o mundo

comum de Corto: um mundo do homem moderno, com uma vida em trânsito, sua casa é

a viagem e o deslocamento, não um espaço físico e imutável.

Temos aqui mais uma característica marcante de todas as histórias de Corto

Maltese de um modo geral, afinal o que sempre importa é o percurso da jornada, as

experiências que dela se conquista e não o seu breve e efêmero fim.

89

Agora podemos visualizar o resumo da jornada do herói em Corto Maltese: Sob

o Signo de Capricórnio através da tabela a seguir:

90

91

92

3. FÓRMULA? UMA CONCLUSÃO

Aqui, foram abertas as cortinas para caminhos e possibilidades referentes aos

estudos sobre a linguagem das HQs. O estudo dos quadrinhos e da arte sequencial

engloba um grande grupo de narrativas presentes na cultura de hoje, como o cinema,

videojogos, seriados, novelas etcs. Logo, seu estudo pode interessar diversas áreas que

se preocupem em estudar narrativas, mitos, contemporaneidade, dentre outros tantos

temas. Corto Maltese é um exemplo pertinente de ser observado, especialmente pela

falta de literatura sobre o tema no Brasil mesmo Hugo Pratt sendo um autor tão

próximo, ao menos como um viajante, de nós.

Apesar de aparentemente caótica, comprovamos que a jornada do herói,

seguindo os passos de Vogler, ocorre em Corto Maltese: Sob o Signo de Capricórnio.

Dessa maneira, parece-nos notável como padrões arcaicos reaparecem nos textos

que se propõem mais contemporâneos, apontando assim para a questão do tempo

mítico como sendo o tempo que atua na comunicação cultural, que se dá mesmo na

atualidade que se diz vanguarda e, aparentemente, despreza o passado. Afinal, para o

mito, apenas o que se relaciona às origens da vida é criativo, e esse retorno às

origens e ao tempo original se dá sempre por meio do processo ritual (CONTRERA,

1996, p. 70).

Os estudos referentes à mitologia e a narrativa contemporânea parecem afirmar o

que Contrera diz e temos hoje a mídia e seus produtos culturais como os substitutos dos

antigos mitos e seus ritos. Num caminho similar ao de Benjamin e Bauman que, como

já citado encontram o valor dos significados se desmantelando para as pessoas e para as

sociedades, Campbell parece um tanto desesperançoso quanto ao desaparecimento dos

rituais e do significado simbólico do herói no mundo moderno (CAMPBELL, 2007, p.

372). Todavia ele mesmo, em entrevista que concede ao jornalista Bill Moyers na série

de documentários, O Poder do Mito, parece animado com o panorama que o mito na

mídia, desde que através de produtos midiáticos com um viés mais profundo e artístico,

pode conferir ao ser humano moderno. Para exemplificar, ele cita o filme Star Wars de

seu amigo, o cineasta George Lucas. Nele, a jornada presente traz significado até

mesmo ritualístico aos expectadores. Hoje, com o recente Os Últimos Jedi, notamos que

as legiões de fãs consumindo os produtos e fazendo dos ensinamentos da narrativa seus

ensinamentos de vida continuam fortes, transgeracionais e sem data de validade. Star

Wars já ultrapassa quatro décadas no imaginário das pessoas com sua narrativa principal

(filmes) ou subprodutos (livros, jogos eletrônicos etc.).

93

O certo é que o desejo pelo contato com uma mitologia é uma constante na vida

humana, afinal “o poderoso herói, dotado de poderes extraordinários (...) é cada um de

nós: não o eu físico, que podemos ver no espelho, mas o rei que se encontra em nosso

íntimo” (CAMPBELL, 2007, p. 352). Essa experiência de alteridade e de um norte para

nossas vidas se faz necessária à medida que “o herói, por conseguinte, é o homem ou a

mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou

formas normalmente válidas, humanas” (CAMPBELL, 2007, p. 28). Nesse ponto, Corto

Maltese traduz esses anseios em um mito moderno, com as talvez inefáveis condições

do homem moderno, mas com certeza com a luta e a busca justamente por essa

superação e o entendimento de como se aventurar pela vida. Assim, “nem sequer

teremos de correr os riscos de nos aventurarmos sozinhos; pois os heróis de todos os

tempos nos procederam; o labirinto é totalmente conhecido” (CAMPBELL, 2007, p.

31).

Mas existe, afinal, um padrão imutável nas narrativas arquetípicas e os

quadrinhos como linguagem e narrativa estariam, logo, fadados a sempre estarem

inseridos nesse padrão? Depende do ponto de vista. Como Todorov sabiamente nos

exemplificou com a metáfora do tigre e da espécie, o mito e os arquétipos são um

complexo que necessitam ser analisados por diferentes espectros. Vogler, Jung,

Campbell, Contrera e outros autores nos mostraram um norte para a narrativa

arquetípica em um produto da mídia moderna, mas o que realmente causa empatia e

identificação deve continuar a ser explorado por diversas reflexões e objetos que, afinal,

são os responsáveis pela mitologia e significação individual das narrativas e de cada um

de nós.

94

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