slocum joshua sozinho ao redor do mundo

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E então, Munição, gostando do acervo? Não? Só porque eu não coloquei "Tropa de Elite"? Ah! Mas isto todo mundo já colocou, bando de idiotas que nem olha o que já existe aqui! Além do mais, é uma verdadeira merda, pessimamente escrito! Vamos ao que interessa: Esta edição não traz somente a primeira volta ao mundo em solitário, no pequeno veleiro Spray: nos dá também toda uma "primeira parte" (que não se encontra em qualquer edição) onde é narrado o naufrágio de Slocum numa tempestade, incidente que encerrou a sua carreira de capitão de linha, e fato anterior à construção do Spray: a incrível construção do Liberty - que Slocum propriamente "arrancou das árvores" no litoral pernambucano, fazendo este barco a mão, na base do machado e da única serra manual que possuía - com a ajuda da esposa, do filho e dos caboclos brasileiros. Sem dinheiro e náufrago no Brasil, Slocum regressou aos EUA a bordo do Liberty. Lá, então, construiu o Spray, com o qual deu uma belíssima e serena volta ao mundo em solitário. Formatado para dispositivos móveis do tipo Kindle - Revisado e Garantido por Um Ano. (Less)

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APRESENTAÇÃO Esta minha construção literária vai fazer-se ao mar, no modelo e armação originais,carregada com a narração dos estranhosacontecimentos ocorridos num larflutuante. O construtor, marinheiro hámuitos anos, poderia ter carregado obarquinho, por assim dizer, com umacarga de sal, em vez de tão ousadamentese intrometer nos domínios dosnavegadores da borda de água. Pudesseao menos o autor e construtor virar debordo, à maneira dos velhos lobos domar, ai de mim! e esperar que operdoassem! Que importa que a corrente nos sejacontrária? Se estiver a favor, somos porela levados, mas para onde, ou para quê?A rota de toda a viagem é tãoinsignificante que pouco interessa, talvez;e afinal, onde quer que se vá, o que

importa é a felicidade de se viver maisum dia no mar! É isso que torna feliz ovelho marinheiro, mesmo na tempestade;e que o mantém cheio de esperança,ainda que agarrado a uma tábua no meiodo oceano. Sem dúvida, é só isso! porquea beleza espiritual do mar, que conquistaa alma do Homem, não admite infiéis nassuas extensões sem limites. . . . . . . . . . . . .

1ª Parte A VIAGEM DO LIBERDADE CAPITULO I O navio — A tripulação — Um furacão —Ilhas de Cabo Verde — Cabo Frio — Umpampeiro. Para começar a singrar: foi em 28 deFevereiro de 1886 que a barca Aquidneck,carregada de tambores de petróleo,largou de Nova Iorque para Montevideu,capital do Uruguai, essa faixa deterritório que confina a Nascente com oRio da Prata e é chamada pelos naturais«Banda Oriental». O Aquidneck era umbelo navio de 326 toneladas de arqueação,procedente de Baltimore, porto célebrepelos seus clíperes, e ele próprio erafamoso entre os demais pelo andamento

veloz e ganhara bela reputação emmuitos mares. A tripulação era de dez homens, no total,mas a lotação, no tempo dos bons fretes,tinha sido de doze homens. Além dopessoal com lugares certos na faina, haviaum petiz, de uns 6 anos de idade, e suamãe (cuja idade não vem ao caso) que sedistinguiam dos restantes por estaremdispensados de fazer quartos. O imediato,Victor, que ainda teria de passar pormuitas aventuras antes de regressar aNova Iorque, nascera e criara-se no mar.Tinha uma saúde de ferro e era fortecomo um cabrestante. Quando pelaprimeira vez viu a luz e começou a darordens, estava em São Francisco a bordodo paquete Constitution, o navio que seperdeu na tempestade, em Samoa, poucoantes do grande desastre naval que aliocorreu no ano de 1889 - Garfield, o petiz

de que já falei, irmão do Victor, nascerano porto de Hong Kong, na velha barcaAmethyst; embora nascido em portoestrangeiro, era cidadão americano depleno direito. O Amethyst tinhadesafiado o vento e as vagas ao longo de58 anos, mas, pelo que sei, nunca haviaexperimentado vento tão rijo como o quedesabou sobre os seus velhos madeirosnaquele memorável dia 3 de Março de1880. A bordo do Aquidneck, a gente da proaera de seis homens oriundos de outrostantos países, estranhos para mim eestranhos uns para os outros; só ócozinheiro, um negro, era americano —pelo menos de nascença. Mesmo assim,ter tantos americanos num navio eraconsiderada coisa rara. Mas, por muito ou pouco que interesseesta história da família e a descrição da

tripulação: o dia em que zarpámos estavagelado e tempestuoso, não pressagiandonada de bom para a viagem que íamosiniciar e que havia de ser, na verdade, amais memorável da minha vida de maisde trinta e cinco anos de mar. Estudandoo boletim meteorológico da manhã, antesde largar, vimos que se previa umtemporal do Nordeste e que outro seaproximava do Sudoeste ao mesmotempo. «A perspectiva», diziam os jornaisde Nova Iorque, «não é animadora».Apesar disso, como estávamos ansiosospor largar, tendo a tripulação a bordo etudo pronto, fizemo-nos ao mar, umpouco contra o bom senso. O Noroeste,que soprava então com uma velocidadede quarenta milhas por hora, subiu paraoitenta ou noventa milhas em 2 de Março.O furacão manteve-se por todo o dia 3 e

fez-nos recear seriamente pelo barco epela gente que levava. Em Nova Iorque, nesse dias, o ventosoprou do Norte com o «centro ciclónicoalgures no Atlântico», como disseram ossábios marinheiros do serviçometeorológico, a quem, diga-se depassagem, os homens do mar muitodevem, hoje em dia, pela previsão, porvezes com dias de antecedência, detempestades que se aproximam. Oprognóstico era correcto, como pudemosverificar. Ao largo, no Atlântico, nãopodia a nossa barca levar mais que umavela de tempo à proa, pouco maior queuma toalha de mesa, e com este panocorria com o tempo fazendo uma bela«bigodeira» (*) e ganhando muitocaminho. Montanhas de água galgavam onavio na sua corrida desenfreada,

cobrindo o convés até ao cimo da bordafalsa e sacudindo tudo de alto a baixo. Os homens tinham-se amarrado cada umno seu posto; e toda a peça de mastreaçãode reserva que não se ligou devidamenteno seu lugar foi levada pela borda forajuntamente com outras peças partidas earrancadas das pregaduras pelotemporal. A cozinha sofreu a sua parte no desastre eo próprio cozinheiro safou-se, por pouco,de um acidente grave quando uma vagaavançou rugindo pelos conveses, levandoconsigo portas, vigias, fogão, panelas,caçarolas à mistura com o artistaculinário, acabando os destroços por iraterrar nos embornais de sotavento mas,muito felizmente, com o mestre por cima.Um desastre assim faz-se sempre... sentir.Molha-nos a boa disposição, por assim

dizer. Significa comida fria durantealgum tempo, ou preço ainda pior. O dia seguinte, porém, já não foi tão mau.As vagas gigantescas que mais tardecomeçaram a alcançar o navio,prenunciavam boa mudança: quebrada asua velocidade com o amainar do tempo,podia agora o mar alcançar a barca muitogrande e lançado. (*) Na linguagem dos marítimos, chama-se às ondas e à espuma que se forma naproa do barco, «bigodeira» ou «bigodes». Largou-se logo mais pano e fomos dandovelas à medida que o temporal amainava,porque o navio não pode seguir ronceirocom um grande mar a correr atrás dele. Eassim voava, como nuvem impelida pelovento, içando vela após vela e, no dia 5 deMarço, abertas todas as suas asas brancas,alegremente «caminhava pelas águascomo uma coisa viva». Tivemos então,

durante vários dias, vento bastante, masnão demais, e o nosso barco veloz ria-separa as vagas, tentando alcançá-las. Navegámos, assim alegremente, durantedias e dias empurrados pelo vento defeição e, como íamos ganhando em cadadia quatro graus de longitude, todas asmanhãs encontrávamos o Sol um bombocado mais cedo. Chegou a altura,durante estes dias ensoalhados, de nosprecavermos com roupas secas contra omau tempo que estivesse para vir.Trouxeram-se para o convés arcas e sacas,e o pessoal de folga ocupou-se emenxugar e remendar, enquanto os homensdo quarto se mexiam na faina de pôr onavio em ordem. «Chips», o carpinteiro,reparou a cozinha; puseram-secataplasmas nas canelas do cozinheiro; e,em poucos dias, estava tudo de novo emboas condições. E os marinheiros que se

azafamavam, prazenteiros, nas suasroupas remendadas de várias cores,faziam-me lembrar pombos malhadosdebicando à procura de alimento; mas ospombos, pensava eu, eram os quelevavam melhor vida. Um caldeiro decafé ou chá quente, um biscoito e umnaco de carne de salmoura, regalaram atripulação e restituíram-lhe a voz. Fez-seentão ouvir na brisa a toada do «ReubenRanzo», e a amura do grande foi tesadaao som do «Johnny Boker». Durante osquartos da noite faziam-se ouvir outrasmaravilhosas canções a condizer comaquele belo tempo. Depois, esgotadas ascantigas e as histórias, os homens falavamdo que fariam e do que não fariam nopróximo porto. Aguenta, marinheiro, aguenta o socairo edá volta!, ou a jaqueta nova queresolveste comprar para ti, hão-de usá-la

os engajadores de Montevideu enquantotu hás-de andar ao largo do Cabo Horncantando o «Haul out to leeward», comuma meia molhada em volta do pescoço ecom o mesmo «pelico» velho que, desdehá muito sem pêlo e gasto até ao fio, jánão é «pelico» senão de nome; quer dizer,se não «rondas o brando» das tuas ideiase se não «amarras tudo a ficar», hás-decontinuar a usar a mesma roupa dealgodão que agora trazes, enquanto osengajadores dividem entre si os teusmagros proveitos. Ao cabo de dez dias de navegaçãoencontrámos os alísios do Nordeste. Porbaixo da proa brincavam toninhas, comosó as toninhas o sabem fazer; ao longo docostado corriam golfinhos e a toda a voltaviam-se peixes voadores. Era, na verdade,uma alegre mudança; parecia que se tinhaentrado num mundo novo. Esqueceram-

se todas as fadigas passadas, porque «omar lava todas as misérias dos homens». Mais uma semana de bom velejar, comtudo em boa ordem a bordo, e as ilhas deCabo Verde estavam à vista. E que vistaadmirável! Todos gritaram, terra firma!Como é bom ver-te de novo! Ao meio-dia tínhamos as ilhas pelotravés, e o alísio fresco da tarde levou-nospara fora da sua vista antes do escurecer. É admirável navegar assim, sentindo abarca galear as vagas num balançocompassado, largo, com o vento numaalheta a impeli-la para vante até ela saltaralegremente de crista em crista, como atentar competir com os próprios peixesvoadores, seus acompanhantes. Se umavaga se lhe opõe, arremete-a com a proaairosa, lançando para a luz miríades departículas de espuma que brilham comonuma auréola de glória. Anda-se agora

no convés com mais leveza, e o pequenomundo a bordo sente-se alegre. A aterragem seguinte seria o Cabo Frio.Ao atingirmos este ponto, tínhamosatravessado o Atlântico duas vezes.Seguimos primeiro uma rota para CaboVerde, para irmos aí buscar os alíseos deSudeste que nos levassem de feição até aoCabo Frio, segundo o rumo Sudoeste.Esta última derrota foi uma direiturafácil, sem qualquer acontecimento dignode registo. Seguimos daqui para diantecom ventos variáveis até ao Rio da Prata,onde nos caiu em cima um pampeiro, quesoprou muito duro, assobiando, comouma corneta, no aparelho do navio. Os pampeiros (ventos das Pampas)costumam soprar com fúria, mas dãoaviso, com largo tempo, da suaaproximação. O primeiro sinal foi umperíodo belíssimo de tempo, com nuvens

pequenas, em flocos, flutuando tãolevemente no Céu que mal se lhedistinguia o movimento; e no entanto elaslá corriam, como um imenso rebanho quedeslizasse, imperturbável, no grandeprado azul. Assistimos a tudo isto etomámo-lo em boa conta. Depois,gradualmente, e sem qualquer motivoaparente, as nuvens começaram aacastelar-se em grandes grupos; oselementos confirmavam o primeiro sinaldado. De trás das suas massas acasteladassaiu então um clarão de fogo e, depois,um rugido longínquo. Aí estava o aviso, eum aviso que nenhum navio podia deixarpassar em claro. «Ferra tudo!», foi aordem. Colher todo o pano quando estesvisitantes temíveis andam pelo mar afazer tropelias, e recebê-los em árvoreseca, é a manobra mais segura, a não ser,é claro, que se tenham envergadas as

melhores velas de tempo; e mesmo assimé mais seguro carregar as gáveas pelomeio da esteira, antes das primeirasrajadas chegarem. E enquanto nãoamaina a fúria do temporal, o navio nãopede pano, porque só então começa o mara crescer e é preciso dar velas para evitaro balanço. (*) Esta, como muitas outras expressõesque iremos sublinhando e anotando aolongo do livro, é do punho do própriocapitão Slocum. Não se leve a mal aortografia um tanto «livre» com que ovelho marinheiro registou certos termosportugueses e espanhóis, mas emendá-lapareceu-nos uma falta de respeito paracom a forma original da obra. Por isso aconservamos escrupulosamente, muitoembora as originalidades ortográficastornem por vezes os termos quaseimpossíveis de decifrar.

As primeiras rajadas do temporal,arrasando o mar na sua passagem efazendo voar as pretensas vagas emlençóis — lençóis de marinheiro, se assimlhes quisermos chamar — davam ao marum aspecto selvagem e aterrador; masnão havia o temor de uma terra asotavento, porque o vento, como opróprio nome indica, da terra soprava. Depois do aguaceiro seguiu-se umacalma e, depois desta, ventos de feição,que nos levaram ao porto de destino —.Montevideu — onde largámos ferro nodia 5 de Maio e, depois da visita daAlfândega, fizemos preparativos para adescarga. A carga foi transbordada parabatelões, que a transportaram para oscais, e daqui levada para os armazéns,onde termina a responsabilidade donavio para com o proprietário dos bens.Mas só então cessa a responsabilidade do

navio, ou os cuidados do capitão com amercadoria que lhe foi confiada. Não hádúvida de que o capitão tem dores decabeça no mar e em terra. . . . . . . . . . . . . . . . . .

CAPITULO II Montevideu — Mendigos — Carga demate em Antonina — De Antonina aBuenos Aires — A bombelia. Montevideu, cidade irmã de BuenosAires, é, das duas, a mais bela de ver domar, pela sua posição mais elevada e,como Buenos Aires, faz gala nas suaslindas vivendas, mulheres airosas,escolas, e um cemitério pomposo. É em Montevideu que o «mendigocavaleiro» é uma realidade (os cavalossão baratos); dirige-se para nós ao galopee, lamentoso, implora: «Pelo amor deCristo, amigo, dê-me uma moeda paracomprar pão». De Montevideu fomos a Antonina, noBrasil, para meter um carregamento demate, uma espécie de chá que, comobebida, é agradável e refrescante. Os

naturais bebem-no em comum, de ummodo particularmente cativante, por umtubo metido na beberagem quente numbule de prata ou numa cabaça, conformeo que estiver à mão quando «amigossedentos encontram outros amigos»,todos eles chupando, deliciados, pelomesmo tubo que vai passando de bocaem boca. Por muitas bocas que haja, abombelia (1), como lhe chamam, devechegar para todos. Pode suceder ter de seencher de novo para a bebida fazer aroda, e mesmo por mais que uma vez, sea companhia é numerosa, mas a operaçãofaz-se sem perda de tempo. Deitando nobule ou na cabaça uma colherada da erva,duas colheradas de açúcar e meio litro deágua que se despeja a ferver por cimadaquela, fica pronta a bebida. Para se lhedar mais um aroma fantasista, deita-se-lhe para dentro uma brasa acesa (carbo

vegetable) (1). Depois da operaçãoretoma-se a rodada a partir do último quese serviu. Feliz daquele a quem, sendoum estranho, cabe ser o primeiro achupar o tubo, mas o iniciado não tempreconceitos. Enquanto estive nesta terraparticipei com frequência nestas rodadassociais de mate, e por fim deleitei-me comuma bombelia só minha. A gente de Antonina (e, na verdade, todaa gente que vimos no Brasil) era amável,extremamente hospitaleira e delicada;geralmente sóbria, poucos desejos tinhapara além dos seus recursos. O cenário damontanha, visto da baía, era de deleitarquem o olhava; mas não vi no Mundolugar mais grandioso e atraente. Tambémo clima é saudável. O único médico dosítio, na altura em que lá estivemos, traziao casaco roto nos cotovelos, por falta declientela. Que desejável porto é Antonina!

Houve entretenimentos musicais a bordo,enquanto aqui estivemos. Fazia bem àalma de um marinheiro maltratado pelomar, ouvir cantar as doces cantorasbrasileiras, mostrando seus belos dentesalvos. Uma ninfa dedicou ao autor, umacanção que fez todos rir muito. Comocantava na língua local, não a entendia,mas é claro que me ri com os restantes oque os fez contorcer-se em gargalhadas,do que conclui que a graça era à minhacusta. Mas também apreciei isso, tanto oumesmo mais que se tivesse saboreadoareytos em meu louvor. Seguimos com o mate para Buenos Aires,onde o processo de descarga era o mesmoque em Montevideu — em barcaças. Masem Buenos Aires ficámos ao quádruploda distância de terra; cerca de quatromilhas.

A erva, ou herva maté (1), é metida embarricas, caixas e sacas de pele de bezerrocosidas com fortes tiras de couro. Oconteúdo, fortemente comprimido,quando a erva está verde e elástica, torna-se duro como uma bala de canhão pelacontracção que sofre à medida que vaisecando. O pequeno Garfield viu achegada da primeira carga de coroescomo lhe chamam, no porto deembarque. Em pilhas na barcaça, bemacima do alcatrate, com o lado do pêlopara fora, tinham, na verdade, umaspecto curioso. «Oh, papá», disse opetiz, «vem ali um carregamento devacas! Aguenta aí, ó gente, e metam-nas abordo!». . . . .

CAPITULO III Salvamento dum carregamento de vinho— Marinheiros felizes — Cólera naArgentina — Morte em terra — O Harry«Holandês» — Pete «o Grego» —Engajadores famosos — Perda de umaembarcação — Rumo à Ilha Grande —Expulsos do porto — Sérias tribulações. De Buenos Aires, subimos o Rio da Prataaté perto da confluência dos rios Paraná eParaguai, para salvar um carregamentode vinho do brigue Neovo San Pascual,vindo de Marselha, que encalhara. As águas do grande rio, neste ponto, forada acção das marés, correm para jusantecom força, formando quase um mar, e ummar perigoso de navegar; daí, a perda doSan Pascual e de muitos outros antesdeste.

Se já alguma vez qualquer de nós tinhagritado, como o velho marinheiro, «água,água em todo o redor, e nem uma gotapara beber!», esquecemo-nos disso agoraneste rio generoso. E vinho, também otínhamos sem restrições. O agente dosSeguros, para não deixar pretexto parainterferir com a carga, puxou para foraum barril do melhor e, como umverdadeiro Hans Breitmann, «partiu-lhe obatoque». Depois, durante a fainatambém se partiram algumas caixas cujoconteúdo ensopou, de alto a baixo, osmarinheiros que as transportavam àcabeça. Ah! a diversidade da vida dummarinheiro! «Quem sabe se umaexperiência como a do Dana e da suatripulação, carregando peles secas àcabeça, numa costa queimada do Sol, nãonos estará reservada; ou mesmo uma

pior», diríamos nós, nadando agora emdelícias — água e vinho à vontade.Embora a esta boa sorte se pudesse seguirdias menos alegres, preferíamos contá-la,dizíamos, como compensação deinfortúnios passados, acentuando bemque «nunca chove, só cai água». O carregamento de vinho foi, na devidaaltura, descarregado em Rosário apenascom ligeiras perdas, e a tripulação,exceptuando um só caso, manteve-sebastante sóbria para ajudar a manobra,mesmo no difícil Paraná. Mas umpecador empedernido — o tal caso de quefalei — um antigo pescador do Labrador,deu num borracho inútil a despeito detudo quanto pudemos fazer. E digo«pudemos» porque a maioria datripulação estava do meu lado, partidáriade negócio limpo e «abastecimentosregulares».

Trancou-se e fechou-se o porão a cadeadoe não houve sítio que não fosse logorevistado; mas o Dan continuava perdidode bêbado. Por fim levantou-se-lhe ocolchão e dele rolaram umas doze oumais garrafas do melhor néctar. Seguiu-seuma grande zaragata, mas foi toda feitapelo Dan, que jurava terrível vingançacontra o homem — se algum dia opudesse descobrir — que tinha metido apinga no seu beliche «para o meter emsarilhos»; alguns daqueles «rapazinhoshaviam de se arrepender!» Descarregado o vinho, fretei paracarregar luzerna em fardos para o Rio deJaneiro. Entretanto, terrivelmente súbitas,começavam a registar-se muitas mortes, edepressa ficámos a saber que a cólera nosolhava a todos de frente e alastravarapidamente pelo país, mergulhandoaldeias e cidades na doença e na morte.

Aproximando-se aterradoramente de nós,levou-nos o piloto; a sua mulherenviuvava no dia seguinte àquele em queele levou a nossa barca até aoancoradouro de carga. E o jovem que nostinha começado a entregar ocarregamento foi prostrado um diadepois. O seu navio tinha chegado! Sucumbiram à peste muitos homensválidos e muitas, muitas mulheres ecrianças; tivemos, no entanto, a venturade atravessar a nuvem negra semperdermos um ente querido, enquanto ànossa volta a doença ceifava pessoas aosmilhares, no meio da desolação e da dor.Houve um momento em que pareciaestarmos no centro da nuvem que vinhaserpenteando pelo país, envenenandotodos os que tocava e deixando a mortena sua esteira. Era a cólera, na verdade, ena sua forma mais terrível!

Um pobre homem, sentado à porta dohotel da Viúva Lacina, dizia-medesorientado: «Há dois dias, podia-mesentar na minha própria casa com amulher e três filhos ao meu lado. Hojeestou só no Mundo! Até a minha casa,pobre como era, veio abaixo».Compreendi a aflição do homem; semdúvida, a casa dele «veio abaixo». Não havia forma de se combater oveneno ou evitá-lo, a não ser por meio dedesinfectantes e conservando o orga-nismo a funcionar com regularidade. Omal tinha alastrado a todo o país e o arestava impregnado dele. Os remédiosvendiam-se por tal preço que muitaspessoas devem ter morrido semexperimentar uma droga com quecombater a doença. Levantaram-seprotestos contra os droguistas semescrúpulos que especulavam com os

medicamentos, mas não se tomarammedidas para pôr cobro à sua avidez. Acânfora chegou a vender-se a quase novedólares (*) o quilo, e um droguista quetivesse para vender uns poucos centos degotas de láudano e outro tanto de«clorodine», podia depois vir passearpela Europa à custa dos lucros donegócio. (*) E nove dólares eram, naquela época,uma boa quantia. Foi em Rosário, e por esse tempo, quelevámos a enterrar o nosso jovem amigo,estimado por novos e velhos, o CapitãoSpeck. Os amigos não perguntaram se foiou não de cólera que ele morreu, etomaram parte na derradeira mani-festação de amizade, como competia ahomens de coração e de sentimentos. Oministro não pôde comparecer naqueledia, mas o pequenino amigo do Capitão

Speck, o Garfield, disse: «Içou-se o sinalpara virem os anjos e levarem o Capitãopara o Céu!» Que mais era preciso dizer? E asbandeiras estiveram desfraldadas todo odia. Depois, erigimos-lhe uma lápide nacampa e — o mais difícil de tudo —escrevemos à viúva e aos órfãos. Foi umamensagem muito simples, lá para tãolonge, em Santa Fé, mas escrita com ocoração a doer. Depois disto, sucederam-se em Rosário,dias tristes, que se arrastaram porsemanas e meses; o pensamento fugia-nosconstantemente para os felizes diaspassados. Preferíamos abalar daqui paraoutras regiões, ainda que apenas emimaginação. Mas havia entre nós umaalma feliz — a criança, cujo rosto era umraio de sol que brilhava sempre com bom

ou mau tempo, feliz na sua ignorânciados males que atormentavam os homens. Chegou, finalmente, o dia de zarpar deRosário; e, com a impressão de que eramgrilhetas que quebrávamos, soltámos asamarras e largámos rio abaixo com onavio completamente carregado. Mas emvez de nos fazermos de vela para o Rio,conforme o contrato de fretamento, porordem do cônsul brasileiro tivemos deseguir para a Ilha Grande, o porto dequarentena do Brasil, que fica a umassessenta e duas milhas do Rio, para onavio ser aí desinfectado e descarregado. Antes de largar, tinha contratado eembarcado nova equipagem, masenquanto eu estava tratando dos papéis,por volta do meio-dia, os marinheirosroubaram-me uma das embarcações donavio e desapareceram, fugindo parajusante o mais depressa que podiam.

Nunca mais os vi. Desertaram, levando,além da embarcação, um mês de venci-mento adiantado por um tal Sr. Harry«Holandês», um engajador que me tinharoubado a primitiva equipagem porquepodia, gabou-se ele depois, «embarcarnova gente no seu lugar». Considerandoque quem perdera o dinheiro fora o talHarry, o mais vil dos engajadores, quasedesculpei aos bandidos o roubo daembarcação. (O navio é usualmenteresponsável pelos ordenados vinte equatro horas depois de zarpar, desde queo pessoal siga nele para o mar). Alémdisso, sendo da espécie que eram,indignos do nome de marinheiros, o meunavio ficava muito melhor sem eles e erabem empregado o custo de se ver livre detais homens, ainda que esse custo fosse opreço da embarcação.

Tenho, no entanto, de me retratar de terchamado o «mais vil dos engajadores» aoHarry «Holandês». Chegou a Rosário umainda pior, um tal Pete «o Grego», quetinha cortado as orelhas a um engajadorrival, em Boca, e depois de as deitar ao riofugiu para Rosário, distante de Bocaumas 160 milhas, e aqui se estabeleceu nonegócio, em concorrência com o Harry«Holandês» a quem, pouco depois,narcotizou e fez meter a bordo de umnavio como marinheiro; e a partir daí«reinou pacificamente nos domínios dooutro». Um capitão vítima, como eu, desta súciafamosa, contou-me mais tarde, deleitado,ter visto o Harry a bordo de uma barcaitaliana que saía a barra com umcarregamento de ossos — «já quase forada barra». A última vez que o meu amigocapitão lhe pôs a vista em cima, estava

ele, «entre o arvoredo» (1), com umacorda em volta do pescoço naturalmentetinham-no enforcado; não sei para queoutra coisa seria a corda, nem quem maismerecia ser enforcado. O capitão berravadeliciado: «vai ter sopa de ossos, pelomenos durante algum tempo, em vez dasboas febras de borrego de Santa Fé, quecomia à nossa custa». A segunda equipagem foi-me fornecidapelo Sr. Pete, de quem já falei, e no dia 17de Dezembro fizemo-nos à vela paralonge desta terra de revoluções. As coisasa bordo voltaram à normalidade e vi quetinha motivo para me sentir satisfeito coma mudança do pessoal. Deslizámoscalmamente rio abaixo, desejando nuncamais voltar a ver Rosário nascircunstâncias penosas por que acabámosde passar.

No dia seguinte, enquanto deslizávamosao sabor da aragem, vimos na água umcão que se debatia entre os fortesremoinhos, impotente para se safar, e jáexausto. Demos-lhe a proa, carregou-se agávea para o mastaréu, e quandopassámos pelo pobre bicho, ummarinheiro, suspenso por um lais de guia,amarrou um cabo em volta do cachorro,outro homem içou-o para bordocuidadosamente, e assim terminou aoperação de salvamento. Era um cão decaça, ainda novinho, e as suasmanifestações de agradecimento por otermos salvo de morrer afogado poucomenos eloquentes eram que a linguagemhumana. Este agradável incidente ocorreu numasexta-feira, o que sugeriu, naturalmente,o nome que havíamos de lhe dar. O seunovo dono, é claro, passou a ser o

Garfield que disse logo: «Julgo que nãome vão conhecer quando chegar a casacom o meu fato novo — e um cão!». Apartir de então, cedo ou tarde aí andavamos dois em espalhafato pelo convés; e erabom vê-los assim a brincar, com o «Sexta--feira» a «ladrar de alegria». (*) «Arvoredo» tem aqui o significado damastreação do navio. Os nossos bichos de estimação iam-setornando numerosos e todos pareciamfelizes até ao dia em que um gato, queentrara no navio sem sabermos, matou opobre do «Pete», o canário. Durante dezanos, ou mais, tínhamos escutado ochilreio do passarinho em muitos portos eclimas. O suave cantor foi, finalmente,inumado no grande Atlântico. Um gatoestranho, um despenseiro descuidado, eassim findou a sua vida frágil. Foi naverdade uma grande perda que todos nós

lamentámos — quase tão grande como amorte de uma criança. Um livro que se leu no mar conquista umlugar semelhante na nossa amizade etorna-se um objecto de que muito noscusta desfazer ou mesmo troçar, aindaque por outro melhor. Ah! mas o amigoexpe-rimentado de tantas viagens, é tãoduro separarmo-nos dele no mar. Umlugar de repouso no mar solene dauniformidade — no oceano sem marcas,cruzado por linhas apenas em imaginação— é um lugar bem triste para se olhar; eno entanto, quantos não têm lá os seusmelhores tesouros! Mas voltemos ao diário da nossa viagem:o piloto que levávamos revelou-seincompetente e foi por pouco queescapámos a um encalhe na barra deMartin Garcia, sítio perigoso do Rio daPrata. O capitão de uma pequena escuna

que igualmente ia saindo a barra, homemque seria tudo menos um marinheiro deprincípios, ao ver que não lhe largávamosa esteira, resolveu de propósito meter-nosem dificuldades. Enquanto eu seguiaconfiado no meu piloto, e este confiadona escuna —, a qual, sendo de poucocalado, podia passar por baixios onde omeu barco encalharia — o velhaco docapitão não fez melhor que ir passarabraçado com um sítio perigoso, levandosempre o meu piloto fielmente na suaesteira. Depois, quando íamos passandopelo través do baixio, pulou para cima dabalaustrada do barco e berrou como umcomanche para o meu piloto: «Leme abombordo!», e o que fez o meugrandíssimo asno senão carregar o lemetodo para bombordo. A barca, é claro,pegou no fundo imediatamente, como ooutro tinha previsto, e aquela tripulação

de piratas — seriam bem pouco menosque piratas — juntou-se ao capitão rindoperdidamente, mas fez-se ao largo semnos causar outros males. À custa dos maiores esforços,conseguimos desencalhar a barca, o quenão se fez nem um segundo cedo demaisporque tão depressa safámos paramaiores fundos, caiu-nos em cima umpampeiro. Aguentámos o aguaceirofundeados em segurança, graças a umatripulação desembaraçada. Encheram-sede novo tanques e barris que tinham sidodes-pejados de água, para aliviar o naviono desencalhe. Na tarde seguinte o temporal faleceu e,por comum acordo, o nosso piloto deágua doce deixou-nos, passando parabordo de um barco do rio, levando oordenado e o melhor conselho que lhepudemos dar: que embarcasse numa

draga, onde as suas aptidões seriamaltamente apreciadas. Depois disto, sob minha pilotagem, e semqualquer outro acidente, alcançámos obarco-farol, passando-o no dia de Natal.A partir daqui' dobrámos o Banco Inglêse todos os outros perigos da barra e, antesdo escurecer, metemos rumo à IlhaGrande. Todos a bordo respiraram dealívio. Jamais o velho mar salgado foratão benvindo como naquele dia de Natal. Tirando a morte do passarinho, de quefalei, e cuja perda todos sentimos nadamais ocorreu com interesse durante atravessia para o Brasil. Chegámos à Ilha Grande, o porto dodestino, no dia 7 de Janeiro de 1887, elançámos ferro por nove braças de fundo,por volta do meio-dia, à distância de umtiro de espingarda do barco guarda-costas, bandeiras de sinais. Alguns

navios, fartos das restrições daquarentena, Mais ou menos, trocavam-semensagens entre todos eles por meio dasbandeiras de sinais. Alguns navios, fartosdas restrições da quarentena divertiam-semetralhando o guarda-costas com sinais.Um escandinavo, bem me recordo,perguntou se o autorizavam a comunicarpor cabo submarino com os seusarmadores, em Cristiana. O guarda-costasdeu-lhe, como diria o Irlandês, «umaresposta evasiva», e o cabograma,suponho eu, foi arrumado. Outro pediaassistência policial. Um terceiro pretendiasaber se poderia arranjar provisõesfrescas — no valor de 10 mil réis, (era umalemão) — descriminando uma dúzia, oumais, de artigos que desejava, «e o trocoem cebolas!» Em suma, pode dizer-se queos rapazes do guarda-costas estavampassando por um bom treino de sinais.

No dia seguinte, 8 de Janeiro, os oficiaisdo porto vieram ao nosso portaló numalancha a motor, e mandaram-nos fazer aomar dizendo que o porto tinha sidofechado essa manhã. «Mas nós já cáestávamos», disse eu. «Não interessa»,disse o guarda, «tem de levantar ferro já,ou o guarda-costas dispara contra si». Istopareceu-me ser um tratamento arbitrárioe grosseiro. Um raio que caísse de umCéu sem nuvens não nos teriasurpreendido mais, nem nos teriacausado piores prejuízos - ficar com onegócio arruinado ou receber um raio nonavio, eram duas coisas igualmente más! Depois, apontando-nos qualquer coisacomo uma arma, o Dom Pedroacrescentou «vaya homem (1), ou aindanos pega a cólera». E assim tivemos devoltar atrás para Rosário, com a carga deforragem - e preocupações. Mas à

chegada encontrámos as coisas melhoresque à partida. A cólera tinha cessado.Estava a epidemia a declinar quandopartimos para a Ilha Grande e agora, noregresso, já era raro algum caso dedoença em todo o país para Este deCórdova. Era realmente consolador, mas em nadadiminuiu as nossas tribulações quevieram a acabar na perda total do navio,depois de provações e perdas cruéis,como veremos adiante. . . . . . . . . .

CAPITULO IV A decisão da Ilha Grande — Regresso aRosário — Esperando a abertura dosportos brasileiros — Escassez demarinheiros — Bandidos feitos pilotos —Navegando rio abaixo — Fundeando naIlha Grande pela segunda vez — Dequarentena e fumigados — Livre prática— Rumo ao Rio — Intimados uma vezmais — No Rio de Janeiro, finalmente. Aquela decisão da Ilha Grande, narealidade uma simples medida política,veio causar-nos dissabores muito graves,muito embora não passasse de umarepresália dos brasileiros por velhosagravos dos vizi-nhos argentinos; nãotanto pelas quarentenas contra as febresvindas do Rio, como pelos direitosdiscriminatoriamente lançados sobre oaçúcar importado do império. Uma série

de dificuldades levantadas ao comércio— mais que os sensíveis brasileirospodiam suportar — irritou-os tanto que afebre de represaria atingiu neles aindamais calor que a febre marello (1), edecidiram dar aos seus primosrepublicanos uma valente lição. O seudesejo era, contudo, vingar-se semprovocar uma guerra; e foi isso quefizeram. Com efeito, o encerramento dosseus portos no início da melhor estaçãode exportação para o Brasil, e para maiscom pretextos plausíveis, nomeadamenteo receio de dores de estômago, de talmaneira encheu os argentinos deadmiração pelos seus rivais na estratégia,que na primeira oportunidadedecretaram dois feriados pú-blicos emhonra do Brasil ilustre. E assim acabou acausa do diferendo, para alegria de todos— com foguetes e champanhe!

Para alegria de todos, menos doproprietário e da tripulação doAquidneck. Para a barca não haviaremédio senão regressar ao porto deorigem da carga, com um prejuízoruinoso de tempo e dinheiro. Tocámos noprimeiro porto que encontrámos aberto edaí telegrafei ao dono da mercadoria, masnão obtive resposta. Depois, segui paraBuenos Aires, de onde telegrafeinovamente pedindo instruções. Osoficiais do guarda-costas, quando viram omeu relatório do Brasil, ficaram perdidosde riso, enquanto eu — devo confessá-lo— não consegui ver onde estava a graça.Ao cabo de dois dias de espera, chegouesta resposta diplomática do dono damercadoria: «Proceda conforme o casorequeira». Acerca deste assunto ouvivárias opiniões. Uma pessoa sugeriu queo «caso requeria» que eu lançasse toda a

carga ao mar! Devo dizer que este amigoera de Boston. Ainda hoje me arrependo de não lhe terseguido o conselho. Parecia não haverprotecção para o navio; não se atendia àlei que defende os direitos de vida de umbarco; mais ainda, invertia-se a lei, eencontravam-se a cada passo intrujões egatunos prontos a aproveitar-se dosnossos infortúnios ou até mesmo a levar-nos a situações desesperadoras. Resolvi-me por fim, a correr com todos eles e,subindo o anamá, fui fundear de novo nomesmo ancoradouro em que, poucassemanas antes, tinha metido a carga.Armaram-se os paus de carga com asrespectivas talhas e alestou-se o naviopara a descarga. Agora era uma questãode «vem cá, McCarthy, ou McCarthy,vem cá». E tanto se me dava uma coisacomo outra: tinha o direito por mim e

nunca perdi isso de vista; nomeadamenteo direito de descarregar a mercadoriaonde primeiro a recebi. Mas onde irbuscar dinheiro para comprar lastro epagar as outras despesas, é que não podiadescobrir. O meu mercador procurou-me, muitocondoído pelos meus «infortúnios», mas«carramba!» (1), dizia ele, «as minhasperdas também são grandes». Nãoprecisou de muitos argumentos para memostrar que a solução menos dispendiosaera também para mim a mais segura, euma vez que me garantia lucrossuficientes na transacção, pareceu-memais sensato não mexer na carga econservá-la a bordo, aguardando aabertura dos portos brasileiros. Foi o quefiz. Dizia-se que o meu mercador, DonManuel, valia alguns milhões de pesos.

Lançou as bases da sua fortuna vendendocarvão de porta em porta. A princípio,diga-se em seu abono, carregava-o àscostas, e era um bom rapaz. De entãopara cá meteu-se em negócios rendosos ehoje é um «Don» que vive nunca casa de90 mil dólares e já não vende carvão pelacidade. Ali ficámos fundeados em Rosário,esperando e esperando; mas todos nósbem de saúde e eu menos agitado deespírito. Também o meu velho amigoDon Manuel parecia melhor; «podiaainda resgatar-se e viver limpo como umcavalheiro». Após a chegada a Rosário, soube quetinham morrido alguns dos nossosantigos tripulantes. Foram levados peloflagelo, para deixar lugar a outros. Masforam poupadas algumas criaturas, cujamorte teria sido bem menos lamentada.

De todos os correctores de navios queconheci em Rosário, e conhecimuitíssimos, nem um a morte levou.Escaparam todos por serem, como sedizia, à prova de epidemias. Haja emvista o meu corrector, Don CristoCristiano — a quem o Don Manuelchamava «El Sweaga» (1) (O Sueco) —impenetrável a tudo, excepto a uma boacomissão. Chegou finalmente, em 9 de Abril de1887, a notícia de que os portos brasileirosestavam abertos. A cólera havia muitoque desaparecera de Santa Fé e de BuenosAires. Entretanto, os brasileiros tinhamconstruído as suas próprias instalações desecagem de carne e podiam agora abrir osportos à competição, o que provocoularga actividade, entre os navios.Engajavam-se as equipagens por aqui epor ali, nos poucos bordeis que não foram

demolidos durante a cólera, nas ruas cmnos campos. Algumas chegaram a vir dasmatas. Misturados nas tripulações, haviamuitos homens a quem tinham soltadodas prisões, por todo o país, para se evitarque a epidemia fizesse mais vítimas nascadeias superlotadas. Dos seis homensque me recrutaram, quatro haviam assimsaído da prisão onde cumpriam pena porhomicídio ou roubo; tudo isto vim eu asaber quando já era tarde demais. Embreve terei ocasião de falar de novodestes homens. Bem! Largámos e fizemos algumas milhasrio abaixo, no primeiro dia, com estaequipagem que era a mais mal encaradaque jamais tinha posto o pé em naviomeu, e com um piloto grego, muitoescuro, que só podia ser tomado por umpirata em qualquer parte do Mundo. Ocontra-mestre, que também embarcou em

Rosário, não era menos mal encarado etinha, além do aspecto já de sinaturalmente desagradável, umaprofunda cicatriz que lhe atravessava acara, sugerindo um rijo golpe de sabre,que, reflecti eu depois de o conhecermelhor, fora com certeza bem merecido.Não me consegui sentir à vontade logo aoprimeiro contacto com a minha nova e tãodesagradável equipagem. Por isso, no fimda primeira tarde, lancei ferro e pus tudoem boa ordem antes do escurecer, porrazões de prudência. Na manhã seguinte,o grego, em vez de pôr o barco acaminho, como eu esperava que fizesse,veio ter comigo pedindo maior ordenadopelos seus serviços e, julgando talvez quenão podia passar sem ele, exigiu que odeixasse desembarcar, a menos que meprontificasse a pagar-lheconsideravelmente mais que o

regulamento estipulava. Peguei-lhe napalavra e desembarquei-o, a ele e mais aosaco das bagagens, ali mesmo e naquelemomento, sem gastar tempo nempalavreado. Dizia-se então, conforme vimmais tarde a saber, que o «velho Slocum»se iria pôr na esteira de qualquer outronavio, poupando o ordenado do piloto;com efeito, não sabiam «que outra coisapodia ele fazer» uma vez que os pilotosestavam, então, todos ocupados noutrosnavios. Tomou-se boa conta do dinheiro, é certo,e também se tomou boa conta doAquidneck! Ao alvorecer do dia seguinte,seguia ele a todo o pano, à cabeça de umgrupo de navios que levavam piloto e,sendo ele o mais veloz, fácil lhe foimanter-se na frente. E também foi um dosbarcos que não «rompe el banco» (1) aocontrário da profecia dos pilotos, que

encolhiam os ombros acima das orelhasexclamando: «No practico. No possebla!»É certo que esta era já a minha segundaviagem ao longo do Paraná, que eu játinha navegado outros rios tãomaravilhosos como este, e que, alémdisso, tinha lido a «Vida no Mississípi» deMark Twain, livro cheio de informaçõessem fim sobre correntes, baixios, bancosde areia, e tudo quanto convém saberacerca dos rios; por isso me sentiaconfiante na minha habilidade. Tudoquanto bastou para me decidir foi airritação que tive por causa do piloto, oupirata, como for mais correcto chamar-lhe— marinheiro de verdade é que ele nãoera, de certeza! Um vento moderado e constante, e acorrente de feição, levavam--nos voandoágua abaixo, conservando sempre adianteira, com as Estrelas e Faixas

desfraldadas onde sempre se devem ver:quero dizer, no navio testa! Afinalaqueles inúteis é que vieram na nossaesteira, em vez de sermos nós a segui-los;e lá viemos nós em boa ordem,acompanhados dos bons desejos dosoficiais e tripulações. Mas os pilotos,alçando os ombros e repetindo oestribilho «No practico. No possebla!» (1),amaldiçoavam-nos amargamente e,furiosos, como me contaram mais tarde,praguejavam mais que de costume, o queé dizer muito, sem dúvida, porque todosquantos já os ouviram hão-de concordarque o piloto «Dago» (2) é a coisa delíngua mais desbragada que anda porcima do mar. Lá saímos o rio e dobrámos o barco-farolmais uma vez, mas desta sem ter deaquartelar e atravessar para desembarcarpiloto, sem nada, enfim, que nos

detivesse. A pano solto e com vento defeição, aportámos à Ilha Grande oito diasdepois, batendo os restantes navios poruma diferença de dois dias. O Garfield seguiu tudo com a maioratenção. Estava no convés quandoachámos terra; na bruma e no escuro danoite não conseguíamos ver mais que oscontornos esbatidos de um promontório.Pareceu-me reconhecer o lugar e oGarfield disse que lhe cheirava a terra, anevoeiro ou a alcatrão, o que — temos deo admitir — era reconfortante. Umcardume de alegres toninhas que sedivertiam sob a proa enquantoconfiadamente tomávamos terra,mergulhando e cruzando o caminho dabarra em todas as direcções, também nosguardavam do perigo. Eu sabia que,enquanto as toninhas se conservassemjunto de nós, não havia a temer encalhe.

Quando o vigia gritou «as toninhasforam-se!», virámos a proa ao mar,aquartelámos a gávea e lançámos oprumo. A chumbada trouxe, de catorzebraças de fundo, alguns grãos de areia euma conchinha branca, delicada. Apenastínhamos de ir dando atenção a todosestes avisos e indicações, para o caminhose nos tornar toleravelmente claro, pormuito densos que fossem o nevoeiro e aescuridão. (*) «Dago», possivelmente uma corrupçãode Diego, é um nome depreciativo quenos E. U. A. se dá genericamente aespanhóis e italianos. Continuámos a prumar constantemente,enquanto seguíamos envolvidos pelonegrume cerrado, até que a entradaexterior do porto se nos tornou visível nolusco-fusco da manhã nevoenta. O que oGarfield tinha cheirado, devo referi-lo,

era afinal alcatrão duma lata que opramador, durante a noite, tinha viradono convés. Já de manhã, em 29 de Abril, demos coma entrada interior para a Ilha Grande efomos fundear no porto, pela segundavez, com o nosso carregamento deforragem. Estava ainda muito enevoadoe, durante todo o dia, desciam pelamontanha fortes rajadas de vento,carregadas de nevoeiro e chuva. Dois dias depois, o tempo limpou e osnossos amigos começaram a entrar noporto. Encontraram-nos lá muito bem,fundeados junto a terra a coberto dosmontes mais altos. Oito dias taciturnos, de cerração e chuva;depois, caíram-nos em cima enxofre,fumo e lume e fomos consideradossuficientemente saudáveis para nosconcederem livre prática no Rio. Lá

chegámos no dia 11 de Maio com oavanço de um dia sobre os amigáveiscompetidores, que acabaram por chegartambém sãos e salvos, excepto um, abarca inglesa Dublin, destruída por umincêndio a meio caminho. A tripulação foirecolhida pelo Capitão Lunt e trazida asalvo para o Rio no dia seguinte. À entrada do porto do Rio de Janeiro,fomos uma vez mais intimados, e filámosao vento, na embocadura, mas a maré,que corria com extrema velocidade, fez abarca descair sobre as amarras com umaviolência que quase a partiu. Parece que o Aquidneck andou maisdepressa que o telegrama que o devia terprecedido. No entanto, era um estritodever obedecer às ordens das autoridadesdo porto, as quais por sua vez, deviam tersido mais razoáveis. Para os que estavamno forte, era fácil dizer: «Parem, ou

afundamo-los», mas nós, no navio, entreos dois males, estivemos quase a afundar-nos para obedecermos à intimação. Quando este forte dava sinal deintimação a um navio, disparava, senecessário, para o fazer deter, um, doisou três tiros, à custa do navio, cobrando15 xelins pelo primeiro tiro, 30 pelosegundo e 60 pelo terceiro; mas parabarcos americanos, disparava-se primeiroo tiro de 60 xelins — aos americanosdava-se sempre o melhor! Depois de se terem esclarecido todas asdificuldades, de se receber o telegramaem atraso e de nos termos identificado,uma vez mais, levantámos ferro, pelaúltima vez nesta viagem, e entrámos noporto de destino, a vasta e encantadorabaía do Rio. . .

CAPITULO V No Rio — Viagem para Antonina comcarga variada — Um pampeiro — Decobertas a prumo — Carga bemmisturada — Mastaréus dos joanetesdesarvorados — Chegados a salvo aAntonina. A carga foi finalmente desembarcada eninguém se sentiu mal a bordo com isso.Também se fez troca de ratos; os quetrazíamos a bordo deram o lugar a outrosdas Docas de Dom Pedro, ondeestávamos amarrados. Também as pulgassaltavam por todo o lado na luzerna,felizes como cotovias e quase tão grandescomo elas. E toda a outra bicharada quetrazíamos de Rosário — só Deus sabe deque espécie e parentesco — chegou rija esã do oceano, a despeito de todas as

fumigações e de todo o reboliço que sefizeram na quarentena. Tivéssemos nós, com efeito, os taismicrobiozinhos, os brasileiros não nosteriam fechado as portas de um hospital!Não são gente cruel nem cobarde. Voltaras costas à doença seria cruel e estúpido,para dizer o mínimo! As razões porquenos expulsaram, já eu expliquei. Depois de passar tanto tempo emcondições penosas, achámos quedevíamos aproveitar bem este agradávelRio! No primeiro dia bonito, depois deamarrarmos na doca, largámos para acidade em busca de aventura ecomeçámos por parar no Ouvidor — aBroadway do Rio — onde a minhamulher comprou um chapéu alto quedurante noites a fio me surgia como amiragem de um horrendo saco de luzerna— a causa inocente de tantas

preocupações — pelo que jurei por tudoquanto havia de sagrado — em sonhos —que não havia de o levar comigo para omar, pois antes o deitaria pela borda fora. Fiquei nervoso com a questão dasquarentenas. Fui visitar com a família ofamoso Jardim Botânico e tremia de medode pensar que nos podiam fumigar emqualquer altura do caminho. Mas o tempoque passámos no Rio foi agradável, e noprimeiro dia de Junho fizemo-nos de velamais uma vez para Paranaguá eAntonina, de tão gratas recordações. Onavio ia meio carregado com farinha,petróleo, breu, alcatrão, resina, vinho, trêspianos, lembro-me, e uma máquina devapor com a respectiva caldeira, tudo istocomo lastro: «livre de frete», dizia adeclaração de carga, que acrescentavaque o navio «não seria responsável porágua aberta, quebra ou ferrugem». Esta

cláusula foi uma boa coisa, porque onavio foi apanhado por um pampeirofurioso que o fez adornar violentamente,pondo-o de cobertas a prumo e ficandoaquela variada carga numa misturada enuma confusão indescritível. O navioaguentou-se firme, apesar de tudo, semsofrer sérias avarias e adriçou-se ao fimde alguns momentos, mas sem osmastaréus dos joanetes que desarvoraramà primeira rajada do temporal. Este incidente deixou uma profundaimpressão no Garfield. Aconteceu queestava no convés quando os mastaréusforam levados, mas conseguiu escapulir-se sem uma beliscadura. Depois disso,navio que se avistasse com algum mastropartido ou vela rasgada, era «um naviopampeirado». O temporal, embora breve, foiextremamente severo e fustigou

Paranaguá e Antonina com uma violênciarara. Disseram-me depois que o dono dospianos rezava por nós e lamentava-se denão os ter segurado. Mas quando sedescarregaram, em condições não muitomás para os trambolhões que tinhamdado, o dono, o velho Strichine (este era overdadeiro nome, ou quase, mas osrapazes chamavam-lhe estricnina porqueo cantar dele era pior, diziam, que«veneno para ratos»; brincadeiras dejovens, a que o artista muitosensatamente fechava os olhos), declarouque o navio era muito bom e que ocapitão era um excelente piloto; e comonão teve de pagar frete nem seguro, esabendo que eu gostava muito de música,ele e a mulher resolveram homenagear-me com um recital. Tinham passado avida inteira a esganiçar-se em óperas, naItália, mas isso não me entusiasmou

muito. Conforme se combinou, lá estavaeu no convés, no local e hora aprazados,pronto a enfrentar todos os riscos. Os pianos, como eu muito bem esperava,estavam terrivelmente desafinados —sofrendo, dir-se-ia, os efeitos do enjoo. Tão desafinados que ninguém me tira dacabeça que o artista aproveitou a ocasiãopara se vingar dos estragos provocadospelo temporal e que, sinceramente, eunão podia ter evitado. O bom Strichine ea sua encantadora mulher ficaramdeslumbrados com o número de árias queeu já conhecia e tentaram convencer-me acantar «O Trovador». Mas contive-mequando me lembrei que já bastavam osestragos que tínhamos sofrido. . . . .

CAPITULO VI Motim — Tentativa de assassínio e roubo— Quatro contra um — Dois caídos nafrente de uma espingarda — Ordemrestabelecida. O dia 23 de Julho de 1887 leva-me a umpasso imprevisto e chocante na históriada viagem, que de bom grado esqueceriase pudesse. Entre as 11 horas e a meianoite desse dia fui chamado subitamentea defender a vida e tudo quanto umhomem tem de mais querido. A barca, fundeada sozinha no porto deAntonina, estava escondida da cidade naescuridão de uma noite que bem podiater encoberto a mais negra das tragédias.Os meus piratas entenderam que tinhachegado a oportunidade de seapoderarem do Aquidneck, e tentaramaproveitá-la. O cabecilha do bando era

um velhaco grandalhão que se gabava deter «chegado» no imediato e no contra-mestre do último navio em que tinhaembarcado, e de ter «partido a cara aocapitão» à chegada ao Rio, porto dedestino do navio, onde, evidentemente, ocapitão o descarregou. Foi ali que o vilãoembarcou comigo, no lugar de um doshomens do grupo de Rosário, a quem aguarda da Ilha Grande tomou a seucuidado e despachou para o Rio para serjulgado perante o cônsul americano, porinsubordinação. Um dia em que lhe deiordem para se despachar e ajudar amanobra de safar as gáveas numaborrasca, disse ele: «Oh! eu não sou ummole a quem se fale assim!». Isto foi naaltura em que a barca perdeu osmastaréus e ficou de cobertas a prumo, naviagem para Antonina; não era ocasiãopara perdas de tempo e, a uma ordem

decisiva da minha parte, tratou de seapressar a subir com os outros para amanobra. O que eu então lhe disse,amedrontou-o. É fácil de admitir que metenha ficado com rancor a partir de entãoe aguardasse apenas a sua oportunidade;para mais, sabendo que era eu oproprietário do navio e devia ter dinheirocomigo. Houve quem o ouvisse dizernuma taberna do porto, um ou dois diasantes do ataque, que «havia de tirar avida, e o dinheiro também, ao...» O seu amigo dilecto tinha vindo direitoda penitenciária de Palermo, de BuenosAires, quando embarcou no meu navioem Rosário. Não era segredo paraninguém a bordo da barca, o ter estadodois anos a cumprir pena por roubar, ecortar de orelha a orelha o pescoço de umrancheiro. Estas façanhas de que cada umdeles parecia gloriar-se, vieram a

confirmar-se em ambos os casos. Vim aconhecer, mais tarde, o capitão a quem ooutro tinha «partido a cara», o CapitãoRoberts, de Baltimore, um cavalheirosossegado, incapaz de querer mal fosse aquem fosse e, tal como eu, de idadeavançada. Dois do bando, velhos marujos deRosário, tinham estado na cadeia pelosimples crime de furto — tinham-seatrasado! Os outros dois dos meushomens da proa — um deles umholandês respeitável, o outro ummarinheiro japonês, vivo e muito jovem— foram roubados e espancados pelosquatro rufiões e depois ameaçados, de talforma que preferiram desertar para asmatas em vez de me apresentaremqueixa, com medo, como dizia o japonêsmais tarde, quando o perigo já estava

passado, com medo de que os «la-la-longmans would makee killo mi!» (1). O cabecilha fanfarrão tinha feito todos ospossíveis para provocar uma altercaçãoquando entrei a bordo ao fim da tarde,mas como vi que tinha estado a beber,tomei a coisa, o melhor que pude, comoconsequências do rum, e mandei-o para aproa. Em vez de cumprir a ordem,quando virei costas para conduzir aminha mulher ao camarote, seguiu-meameaçadoramente até ao castelo da popa.O que mais me chocou, porém, foi aatitude do amigalhaço dele, que estavasóbrio, mas com um ar estranho,arrogante, satisfeito. Eram horas deacabar o serviço, quando me dirigi para osítio onde ele estava a fazer uma costurano estai de contra do mastaréu dasobregata, último trabalho que faltavapara reparar os estragos do pampeiro;

como o imediato estivesse ocupadoalgures, dei-lhe eu a ordem para largar oserviço. «Dá volta», disse eu ao homem,«e arruma as ferramentas. O aparelhoparece bom», acrescentei «e se amanhãestiver bom tempo, fica tudo pronto».Nesta altura o parceiro riu-se comimpertinência na minha cara e repetiuentre dentes as minhas palavras: «ficatudo pronto!», acrescentando, «antes deamanhã!». Foi esta a primeira insolênciaque me dirigiu o «Tommy Sanguinário»,que bem pouco tempo antes tinhacometido um assassinato. Mas eu tinhaandado a ser observado pelo parceiro quenão despregava os olhos felinos de cimade mim. Só na manhã seguinte, quando o viestendido no convés com uma armaassassina na mão, compreendi todo osignificado daquelas palavras! Não

esperava um ataque cobarde, pela caladada noite, mas mesmo assim conservei aarma carregada. Deitei-me essa noitecomo de costume, e esqueci odesagradável episódio tão depressaencostei a cabeça no travesseiro, mas aminha mulher, de instinto mais apurado,manteve-se acordada. Foi bom para todosnós que ela assim fizesse. por volta dameia-noite, tendo ouvido a primeirapassada no convés da popa, acordou-mesem fazer ruído e disse-me: «Temos denos levantar e defender! Há qualquercoisa que está a correr mal no convés;largaram o ferro da embarcação, que fezmuito barulho, e... Oh! Não subas aoconvés por esse lado. Ouvi alguém naescada e ouvi cochichar na entrada devante». «Deves ter sonhado», disse eu.

«Não, não sonhei», respondeu-me, «aindanem adormeci; não vás para o convéspela escada da vante; estão aí à espera,tenho a certeza, porque ouvi estalar odegrau da entrada, que está partido». Se a minha mulher não tinha sonhado,pensei eu, havia grave conjura, semdúvida. (*) Conservou-se o pitoresco discursoinglês em que aparece o vocábuloportuguês "ladrão" tipicamenteirrompido por um nipónico: «la-la-lom»;a forma «la-da-lom» também seriaplausível - O sentido do discurso é claro:com medo de que os ladrões mematassem. Nada justifica uma visita ao convés dapopa depois das horas de serviço, exceptouma chamada para socorrer um doenteou acudir a qualquer outra emergência, e

em tal caso não se admite uma visitafurtiva. Devo aqui dizer, para as pessoas que nãoestão familiarizadas com a vida do mar,que os alojamentos dos marinheiros sãona parte da vante do navio, onde elesdevem permanecer depois das horas deserviço, no porto, nunca passando para aré do mastro grande; daqui a expressão«gente da proa». O meu primeiro impulso foi sair para oconvés por onde costumava fazê-lo, masas súplicas da minha mulher puseram-meem guarda contra um perigo que deviaser investigado com cautela. Armando-me, portanto, com uma boa carabina derepetição com oito cartuchos no depósito,saí para o convés pela escotilha da ré emvez de o fazer pela vante onde,evidentemente, estava sendo esperado.Detive-me, esfregando os olhos por um

momento, procurando adaptá-los àescuridão cerrada, e então fez-se ouviruma voz rouca que berrava na escada davante, dirigindo-se a mim: «Porque nãovens para o convés como um homem, enão mandas os teus homens para aproa?». Foi esta a saudação que recebi, foia primeira coisa que ouvi com os meuspróprios ouvidos, mas não precisei deouvir mais nada. Para dizer tudo numapalavra, compreendi que tinha de fazerfrente a um motim. Não podia dizer menos que: «Vai para aproa, tu aí!». «Tu aí, és tu?», disse o quefalara e com uma blasfémia avançou paramim, praguejando enquanto seaproximava. Voltei a mandá-lo para a proa e disse:«Estou armado, se te aproximas disparo».Mas abstive-me de o fazerimediatamente. Julguei que o podia deter,

porque a espingarda era pesada, equando se aproximou mandei-lhe umacoronhada capaz de derrubar um boi.Mas isso era o que eu julgava; o golpe nãoproduziu qualquer efeito aparente e uminstante depois, o homem estava dentroda minha guarda. Então, agarrando-mepelo pescoço, tentou lançar-me por cimada balaustrada da popa e, quando mesentiu começar a ceder à sua força brutal,berrou exultante: «Dispara agora, doidodanado!», e puxou pela faca para meacabar. Não podia falar nem mesmo respirar,mas a carabina falou por mim, e odesordeiro caiu apertando a faca na mãoque se tinha erguido contra mim! Afirmeza superou a força bruta; sabia queas vidas de outros, além da minha,dependiam de mim naquele momento.Sem se intimidarem, os outros avançaram

para mim, como lobos esfaimados. Volteia gritar: «para a proa!», mas julgandotalvez que a minha espingarda era detiro-a-tiro, ou que não a podia carregartão depressa, não me obedeceram. «E se eu não for para a proa?», foi apergunta ameaçadora do «TommySanguinário», que acrescentou, pulandona minha direcção: «tenho aqui isto parati!»; mas caiu no mesmo momento emque levantou a mão. Ali acabaram as suasdesgraças, e, tal como o outro, caiu com afaca assassina crispada na mão. Sentia-me bem, agora. O temor do açotinha-me deixado no momento em queme libertei do primeiro assassino, e sódesejava saber quantos teimariam aindaem querer tirar-me a vida. Mas, lembradode que restavam apenas dois amotinadose que a espingarda ainda tinha seiscartuchos no depósito e um já pronto na

câmara, conservei-me alerta, com o cãoarmado, dedo no gatilho, com a certezade que ninguém me deitaria abaixo. Não precisei de recorrer a outras medidasextremas. Os dois restantes sumiram-seda popa, na escuridão, e a ordem voltou areinar no navio. Como recuperei vantagem depois de umavez a ter perdido, é coisa que não sei bem;mas do que estou certo é que, uma vezvencido, não me poupariam. Então, omedo deu lugar ao furor e senti-me capazde fazer frente a tudo o que pudesse vircontra mim. Conservei-me, porém,sempre sereno e nem senti desejos de irno encalço dos dois piratas que fugiram. Logo a seguir ao segundo tiro, de novosenhor do meu navio, ordenei aos outrosdois que voltassem à popa, o que elesfizeram, desta vez com maneiraspacíficas, podem crer.

Seria ocioso dizer o que devia ou não terfeito para evitar a calamidade ou, poroutras palavras, para ter embarcado umaequipagem de marinheiros em vez de umbando de faquistas. Mas, uma vez postoperante a situação, só tinha um caminho aseguir; e foi esse que segui resolutamente.Um homem tem de se defender, a si e àfamília, a todo o preço. A vida vale muito,apesar de tudo. Foi esclarecedor, como o tribunal veio aconcluir, o facto de todos eles estaremvestidos e calçados, à excepção do quemorreu primeiro (esse apenas tinha postoas meias) enquanto o meu filho não tevetempo sequer para se vestir. O que estavade meias foi o que estava à minha esperana escada de que geralmente me servia,mas que evitei desta vez. Havia fartasprovas circunstanciais para o caso setornar perfeitamente claro para as

autoridades. Poucas pessoas haveráinteressadas em ouvir mais a respeito detão odioso episódio, e ainda menosempenho sinto eu em escrever. Não teriamesmo dito tanto como disse, se nãofosse a iniciativa de um jovemfuncionário que, julgando-se importantepor dizer ao Mundo o que sabia, eantevendo também alguns emolumentos,tratou de multiplicar as mensagensconsulares, obrigando-me assim a lutarpela minha inocência até à última. Mas,para não ser muito severo para com o talpobre amanuense, apenas acrescentareique, durante o inquérito rigoroso que seseguiu à tragédia, não sofri qualquervexame da parte das autoridades. E como o julgamento tinha em vista ajustiça e não o meu dinheiro, o casodepressa se encerrou. Esperosinceramente nunca mais me encontrar

com homens do estofo destes que saíramdas prisões, para espalharem o mal e ador por onde passavam. O trabalho da carga terminou poucodepois daquela calamidade e contratou-seum mestre espanhol para levar a barcapara Montevideu, indo o meu filho, oVictor, como capitão de bandeira. Pilotei o Aquidneck ao sair a barra edeixei-o, ao dobrar a última baliza, belo eelegante como qualquer marinheirogostaria de ver um barco. Tinham-sereparado os estragos causados pelopampeiro, arvoraram-se novos mastaréuse pôs-se tudo em boa ordem. Estive aolhar o garboso navio navegando já clarodos últimos perigos da barra, e depois,cheio de amargura, remei de volta àcidade. É que eu estava em liberdade sobpalavra e devia comparecer a julgamento,

como réu! Era este o nome; não sei deoutro que escreva em seu lugar que fique, pois!

CAPITULO VII De novo na barca em Montevideu —Nova equipagem — Aparece a varíola —Rumo a Maldonado e Flores — Semauxilio — Morte de marinheiros — ParaMontevideu, em perigo — Quarentena. Logo que o caso foi encerrado, segui numvapor para Montevideu, onde a barcatinha chegado poucos dias à minhafrente. Encontrei-a já despida de velas,preparada para longa estadia no porto. Eu tinha dado ordens estritas ao Victorpara não interferir com o Espanhol emcoisa nenhuma e entregar-lhe,praticamente, o comando de tudo. Podiater dado o comando ao meu rapaz, adespeito dos seus verdes anos, mas tinhametido uma equipagem desconhecida, deestrangeiros, que poderia exigir, comotanta vez sucede, reflexão mais madura

que a necessária para dirigir a navegaçãodo barco. Mas como depois se veio a ver,até o cozinheiro a muitos títulos era umhomem superior ao mestre. O Vítor apareceu-me com ar abatido e osmarinheiros olharam-me com arinquiridor quando entrei a bordo. Umdeles, em especial, a quem jamaisesquecerei, dirigiu-me, juntamente comum aceno de cabeça, uma saudaçãoprazenteira que dizia um mundo; e no diaseguinte lá andava ele, alegre, no alto, amanobrar as vergas. Verifiquei que aminha tripulação brasileira era formadapor excelentes marinheiros e as coisas abordo do Arquidneck começaramimediatamente a tomar um aspecto maisanimado. Depressa se desembarcou a carga,carregou-se outra, e aparelhou-se a barcapara largar. A minha equipagem, volto a

dizê-lo, era das melhores; mas — pobredela! — estava destinada às pioresprovações: às piores que os homenspodem experimentar, e alguns dosrapazes seriam ceifados pela morte cruelantes que a viagem estivesse terminada.Com frequência, um infortúnio nuncavem só. A pouca sorte pôs-nos pela frente, destavez, um funcionário subalterno, emMontevideu, o qual teria aptidões,quando muito, para estar em casa. Sabiamais, talvez, do que precisa saber umvaqueiro, mas não o suficiente para umcônsul. O funcionário garantiu à minhatripulação que a mudança do capitãodissolvia o seu contrato e convenceu-a adesembarcar e reclamar o pagamento portoda a viagem, e ainda pela passagem deregresso num vapor, tal como se a barcativesse sido vendida.

O que se vai seguir mostrará os terríveisprejuízos que provocam os indivíduosincompetentes colocados em cargos deresponsabilidade. Esta interferênciainsensata, estúpida, foi a causa indirectado sofrimento e das mortes que atripulação veio depois a suportar. Podia ter demonstrado ao cônsul e aosecretário que os marinheiros são semprecontratados para o navio e não para ocapitão, e que a substituição do capitãoem nada afecta o contrato. Preferi, noentanto, pagar à equipagem e deixar aoseu critério reembarcar ou não, já porquenão havia abandonado o navio de suainiciativa, já porque eu sabia que opessoal queria voltar para casa e era paralá que a barca ia seguir de rota batida. Todos voltaram a assinar o contrato àexcepção de um, um andaluzguedelhudo, que eu não queria mais a

bordo por preço nenhum. Mantiveram-seos salários anteriormente combinados etodos os homens voltaram aos seusserviços, alegres e de bom grado. Masenquanto aguardavam a decisão docônsul (que, diga-se a propósito, tomei eupor ele), dormiram numa casa contagiadaonde contraíram varíola da pior espécie. Estávamos agora prontos para zarpar.Nem os engajadores mais espertos deMontevideu, com todo o seu rum,conseguiriam convencer estes sóbriosmarítimos a desertar do navio. Estes «engajadores» eram uns autênticostubarões que, sempre que podiam,embebedavam os marinheiros edespojavam-nos dos salários. Osmarinheiros são sempre pagosadiantadamente; por vezes, é deste modoque recebem a maior parte do saláriocorrespondente à viagem, indo para o

mar já depois do dinheiro gasto, perdidoou roubado. Todos nós sabemos o que quer dizertrabalhar sem proveito — os marinheirosconhecem bem demais o seu significado. Como se aproximasse o dia da largada, oshomens pediram-me meio dia de licençaa cada quarto, para irem a terra fazercompras para a família e amigos deParanaguá. Dei-lhes imediatamente aautorização pedida e senti-meamplamente compensado vendo quetodos voltavam à hora prometida e todoseles sóbrios. No dia seguinte, quandolargámos ferro, estavam nos seus postoscantando o «Cheerily, ho!» e pareciamcontentes. Todos menos um que sequeixava de ligeiros arrepios e febre; masdisse-me que já não era a primeira vezque tinha aquilo, e que com uma dose dequinino depressa estaria bom.

Parecia coisa simples, mas ao cabo dedois dias os arrepios deram lugar aqualquer coisa de que eu menos sabia. Nooutro dia, adoeceram mais três homenscom calafrios na espinha e na base docrânio. Percebi então que tínhamos avaríola entre nós! Metemos logo com rumo a Maldonado, oporto mais próximo. Maldonado étambém o nome da terra de que se falanas «Viagens de Gulliver», mas oGulliver, estou convencido, enganou-setanto na sua identidade como nalocalização. Entrámos no porto correndocom um temporal que soprou frio echuvoso do Este. Para pedirmosassistência médica imediata, içámos orespectivo sinal, mas as bandeirasestiveram desfraldadas trinta e seis horasantes que alguém viesse ao nossoencontro. Ao fim desse tempo veio a

bordo um amedrontado Yahoo (a terraainda é habitada por Yahoos), num footetripulado por dois outros animais (1) edisse «sim, os seus homens apanharam asbexigas». Vechega (2) foi como ele lhechamou, mas eu entendo a algarviaYahoo muito bem; percebo-lhe o sentidoe até sabia dizer algumas palavras.«Vechega!» berrou para os parceiros dobote, e virando-se para mim acrescentouem Yahoo: «Tem de sair do porto, e já!»depois saltou para o bote e sumiu-se atoda a pressa com os seus companheirosapavorados (3). Deixar um porto nas nossas condições eracoisa bem dura, mas como não podiaobter socorros para a minha pobreequipagem, nada me restava senão partir,se é que de todo seria capaz de o fazer.Com efeito, o pessoal da manobra estavareduzidíssimo; mas o desespero

duplicava--nos as forças e lá conseguimoslevantar ferro e içar pano bastante paranos metermos ao mar, rumo à Ilha dasFlores para onde seguimos na maisterrível das situações. (*) Seria difícil, numa só alusão, definirtão depreciativamente os habitantes deuma localidade! A terra imaginária queSwift descreve nas suas «Viagens deGulliver», e a que chama Maldonado,seria habitada por uma espécie deanimais irracionais com figura humanamas com os instintos de autênticos bichosselvagens — os «yahoos». (*) Na nossa conversa falou-se Yahoo masreproduzi-a em inglês porque muitos dosmeus leitores não entenderiam o original. Os sinais que içámos eram formadospelas bandeiras do código universal. Porexemplo, içando as duas bandeirasrepresentativas das letras «P» e «D»,

queria dizer «pede-se assistênciaimediata» Assim, içando-se duas, três ouquatro bandeiras representativas dasconsoantes, davam-se a saber os nossospedidos e desejos a quem dispusesse dachave do código. O código comercial de sinais está de talmodo ideado e arranjado que se podemestabelecer comunicações com a maiordas simplicidades qualquer que seja alíngua falada por quem encontramos,ainda que seja a mais estranhamenteincompreensível. O sistema é tãoencantadoramente simples que mesmouma criança de inteligência média o podeentender. Até os Yahoos foram feitos parao perceber — a menos que fossemdaltónicos.. E para que não esqueçam alição, mandam-lhes, de ano a ano ou dedois em dois anos, uma canhoneira paraos bombardear a tiro de peça.

(Deve acrescentar-se que o CódigoComercial de Sinais a que o CapitãoSlocum nesta sua nota se refere foisubstituído pelo Código Internacional deSinais de 1899, aperfeiçoamento daquele.É o C. I. S. o que ainda hoje se emprega. Um vendaval, que hei-de recordar pormuito tempo, caiu-nos em cimasubitamente, levando-nos as velas comose fossem folhas de Outono ainda a barcaestava a menos de três léguas deMaldonado. Não tivemos forças paraabafar o pano e por isso ele se rasgoutodo, e lá fomos correndo em árvore secaimpelidos pela tempestade desenfreada.Uma ave marinha, alva como a neve,procurando fugir ao temporal, veio acerta altura poisar no convés. O incidenteencheu de temor os meus marinheiros,para quem tomou proporções de umpresságio miraculoso; arrastaram-se para

perto da ave e, prostrados na sua frente,rogaram à Virgem Santa para queintercedesse junto de Deus para os livrardo mal. A chuva caía-nos em cima emtorrentes, enquanto a barca ia seguindosacudida, balançando fortemente, até queo dia se tornou negro como a noite. Otemporal soprava de E. S. E. e o nossorumo era pelo W. N. W. ou algunsquartos menos. Recordo-me de que memantive à roda do leme ainda com o fatode ir a terra, porque não tive temposequer para o trocar pelo fato de oleado.Isto pouca importância tinha em simesmo, mas faz-nos agora lembrar decomo eu ia ocupado com outraspreocupações. Fui sempre um bomtimoneiro e por isso tomei conta dogoverno do navio no temporal, e deiinstruções ao Victor e ao carpinteiro paraprepararem desinfectantes para eles e

remédios para os doentes. A arca dosmedicamentos estava razoavelmenteabastecida. Quando conseguimos avistar as Flores,estava a terra mesmo à nossa beira. Aoclarão dos relâmpagos, mostravam-se-nosos penhascos baixos espantosamenteperto de nós e enquanto a barca singravaa grande velocidade, o estampido darebentação no litoral, que se fazia ouvirpor cima do estrépito da tempestade,lembrou-nos um perigo a evitar. Pus oleme de contra e a barca singrou parasotavento da ilha como um ser vivo,obediente. Lançámos os dois ferros e arriámos asamarras até se acabarem, porque otemporal era agora um ciclone. A barcagarrou com as duas âncoras a despeito detudo quanto pudéssemos fazer, até queum dos ferros, enroscando-se num cabo

submarino, fez rebentar a amarra eperdeu-se; mas o outro fez presa e a barcafinalmente filou ao vento e ali ficousacudida pelo temporal. Passámos a noite obcecados pelo receiode que a segunda amarra cedessetambém, mas dentro do navio játínhamos um perigo bem maior que nosenchia a todos de ansiedade. Nessa mesma noite e não longe de nós,dois navios, com pilotos a bordo,perderam-se ao tentar passar pelo sítioonde o Aquidneck entrara sem piloto e sócom três homens no convés para omanobrar. As tripulações foram salvasmuito a custo e levadas para Montevideu.Depois de fazermos o que podíamos,içámos um farol num estai, mas a luzbruxuleou no vendaval e apagou-se.Depois, molhados, contundidos eextenuados, ainda com as mesmas roupas

ensopadas, deixámo-nos cair nos beliches,procurando algum repouso — dormindoou escutando os lamentos dos nossoscompanheiros moribundos. Ao nascer do dia — depois da mais tristede todas as minhas noites no mar —içámos um sinal informando da tristesituação dos meus homens e implorandoassistência médica. Ao cair da tarde o tempo amainou; mascomo não viesse qualquer embarcação aonosso encontro, apoderou-se datripulação da minha barca empestada amais negra tristeza; os homens rezavamimplorando que fossem poupados paravoltarem a ver os entes queridos que osesperavam no lar. Os nossos repetidos sinais obtiveram, nodia seguinte, a resposta «Aguarde».Carramba! (1) Como podíamos nósaguentar; e como podíamos levantar ferro

e navegar contra o vento e a corrente!Ninguém sabia isto melhor que a genteda ilha porque os meus sinais tinham ditotoda a história e, estando nós apenas amilha e meia da praia, as bandeiras viam-se de lá distintamente. Não podia haverdúvidas a esse respeito! Pela tarde adiante, contudo, aproximou-se de nós um escaler, mal tripulado e malmanobrado por um grupo de «gebos» tãoassarapantados como os mais medrososque alguma vez emborcaram um barcoou fugiram de uma sombra! O arraistinha mais coisas a dizer que o doutor, e oYahoo — esquecia-me de dizer que aindaestávamos nos domínios dos Yahoos, masqualquer pessoa podia ver isso, mesmosem esta explicação — o Yahoo da proafalava ainda mais que os outros dois.Todos eles beberam uma valente goladade um garrafa de cachazza (2), mas o

doutor é que deu o sinal de começar,devo dizê-lo, pelo menos com uma ouduas goladas antes de deixar a praia, deforma que conseguia parecer maisanimado que o resto da tripulação. Depois de mais uma ou duas chupadelasextra, o doutor, com a coragem de umborracho, entrou a bordo trazendoconsigo meio quilo de enxofre, meio litrode ácido fénico e um pouco de cevada —o bastante para dar de comer a umpintassilgo — pelo que lhe ficámos muitoagradecidos, uma vez que os nossosdesinfectantes estavam, por essa altura,quase no fim. Em seguida deitou umaolhadela para os homens prostrados efugiu a toda a pressa, como tinha feito ooutro em Maldonado. Perguntei-lhe o quehavia de fazer dos que morressemdurante a noite — lançá-los ao mar, deonde estávamos? «Oh, não, não!» gritou o

Yahoo da proa; mas o doutor apontousignificativamente para a água, ao longodo costado. Compreendi! (*) Diz -se que esta cachazza é mortalpara os micróbios ou até para bichosmaiores; mata tudo, com efeito, exceptoum Yahoo! Nessa noite lançámos ao mar o corpo doJosé, o marinheiro cujo sorriso franco meacolhera quando reembarquei emMontevideu. Eu tinha mandado trazerpedras para o convés, antes do anoitecer,a pretexto de ter ali com que lastrar oescaler. Sabia que em breve seriamnecessárias! Por volta da meia-noite ocozinheiro, na maior das aflições, veiochamar-me dizendo que o José ia morrersem confissão! Assim lançámos o pobre José ao mar nogrande estuário do Rio da Prata. Ouvi oruído surdo, solene, que falava de uma

vida que passou, de trabalhos quefindaram; mas por fúnebre, triste,melancólico, que o momento fosse, nãopude deixar de sorrir quando ocozinheiro, que não tinha segurado bem olastro, o deixou ir pela borda fora atrás doamigo enquanto exclamava «Adeus, José,adeus!» E eu acrescentei «Adeus, bomcompanheiro, adeus! Tenho a certeza deque descansarás em paz!» No dia seguinte, o sinal içado em terraem resposta aos meus pedidos insistentesde auxílio, foi o mesmo: «Aguarde».Nesta altura os meus homens estavam jádesmoralizados e tomados de pânico, e ospobres rapazes imploraram-me que, se omédico não os viesse tratar, arranjasseum padre para os confessar a todos.Avistei um padre caminhando na praia eicei um sinal pedindo-lhe para vir a

'bordo. Ninguém atentou nas bandeiras econtinuámos entregues a nós mesmos. Depois de termos lançado ao mar maisum homem da equipagem, decidimosnão ficar nem mais um momento naquelelugar maldito. Um navio inglês, dereabastecimento da companhia dotelégrafo, que passava fazendo-se ao mar,observou os nossos sinais e prontificou-sea informar o seu cônsul em Maldonado,que por sua vez telegrafou paraMontevideu. Como o vento soprasse de terra — comoespero que sopre sempre que algumamigo meu se aproxime desta costa —resolvemos levantar ferro ou largar aamarra sem mais perda de tempo, nacerteza de que, em consequência dascomunicações telegráficas, alguém estariavigiando a nossa chegada e faria com queo Aquidneck fosse levado a reboque para

o porto, se viesse a acontecer o pior, istoé, se o resto da tripulação caísse doente. Aâncora, com as suas noventas braças deamarra, teve de ser levantada por três denós; a outra amarra tinha partido junto aocabrestante, no temporal. Depoismetemos a caminho para Montevideu, oporto de onde largámos, havia tão poucotempo, cheios de esperanças e de alegresprevisões; e aqui íamos agoradesalentados, vencidos pelo sofrimento,depois de ver partir alguns de nós paraaquela viagem que, apesar de tudo,parece estar ainda tão distante. Em Montevideu as coisas melhoraram.Ao fim de dois dias de espera, acabarampor levar os doentes do navio, e o meuagente arranjou um rebocador que oslevou, no meu escaler, rebocados poruma toa de trezentas braças decomprimento. Assim foram

transportados para a Ilha das Flores,onde, durante dias e dias, antes, lhetinham recusado admissão! Desta vez iamacompanhados de uma ordem doGovernador de Montevideu e foram,finalmente, recebidos. Dois dos casosestavam, por esta altura, a evoluirfavoravelmente, mas o pobre cozinheiro,que sempre se manteve fielmente a meulado e por nada abandonaria os seusvelhos companheiros, seguiu com elespara a ilha para cuidar deles, contraiu aterrível doença, morreu, e foi enterradonão longe do local onde ele mesmo tinhalançado ao mar o seu amigo José bempouco tempo antes. A morte deste bomhomem ocorreu no dia em que a minhabarca se fazia finalmente ao mar, e nomomento em que bordejava a ilha.Passávamos à vista da janela do hospitalquando o seu navio fantasma se fez ao

largo e o levou para além da barra! Lá emParanaguá, disseram-mo depois, a pobreviúva morreu de desgosto ao saber dotriste destino do marido. A desinfecção do barco feita emMontevideu depois de se teremdesembarcado os doentes, foi umamanobra de especulação conduzida damaneira mais perfeita. Puseram a bordo,às dúzias, garrafões de ácido fénicodiluído e pronto a servir, a três dólarespor garrafão. Depois postaram-me abordo um guardo (1) encarregado de oaplicar; e foi isto que ele fezreligiosamente, deitando-o por cima dasua preciosa pessoa, no meu camarote dapopa, o mais longe que pôde daextremidade do navio onde o perigo seencontrava. Alguém, desinfectou el proa(1), mas não ele! Apesar da abundânciada droga, tive de andar à procura do

suficiente para lavar os alojamentos daproa, enquanto à ré quase chegava aojoelho. E a três dólares o garrafão! Aharpia que me poisou no convés, emMaldonado, essa mandou-me uma contade cem dólares — paguei oitenta. O que me custou toda esta desgraça emdinheiro dispendido, e que nem interessaesmiuçar, foi a passar de mil dólares. Oque me custou em saúde e em sofrimentomoral, é coisa que nem se pode calcular. Enão fui eu o mais duramente atingido. Seguiu-se, podem acreditar, uma tarefaainda mais dolorosa ao reunirmos todasas prendas baratas e outras compras queos homens tinham feito pensando nasmulheres e nos filhos que os esperavam;tudo isso tinha de se destruir ou inutilizarcom ácido fénico! Aqui um chapéu para opetiz, ali um par de botinas para a

mulher, e tantas outras coisas para toda afamília (1) — tudo destruído! . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

CAPITULO VIII Nova equipagem — Viagem paraAntonina — Carregando madeira —Pirogas nativas — Naufrágio doAquidneck Depois desta tragédia, metemos novaequipagem e o Aquidneck voltou a fazer-se ao mar. Ao costearmos a Ilha dasFlores vimos o guarda-costas procurando,como nos tinham dito, um suposto navionaufragado, o qual, no último temporal,fora visto, entre aguaceiros, arvorandosinais de pedido de socorro. Senti-memuito satisfeito quando concluí que era anossa barca o tal navio avistado notemporal; as supostas bandeiras não erammais que velas rasgadas, ou o que delasrestava, panejando ao vento. Mas abstive-me de desencorajar a busca porque malnão podia ela fazer e além disso, pensei,

talvez viessem a dar com qualquer outracoisa que merecesse ser vista. Como já disse, foi nesse dia que o meufiel cozinheiro morreu enquanto a barcapassava à vista da janela do seu quarto dedoente. Era, para nós, um dia luminoso,encantador. Também para ele, nãopodemos dizer que não tivesse sidoluminoso. Respirando de novo o ar puríssimo domar, largadas todas as velas, seguimospara Paranaguá, dobrando os faróis dacosta para, depois, os deixarmos piscandono horizonte até se sumirem da nossavista. Predominou o bom tempo, mascom muitos ventos de proa; mesmo assimlá íamos velejando e raramente sepassava um dia em que nãoencurtássemos qualquer coisa ao caminhoque nos separava do porto de destino.Um dia, porém, ao aproximarmo-nos de

uma ilha — uma ilha cujos únicoshabitantes eram pássaros — chegámos auma altura em que parecia impossível irmais além; era como se estivéssemossendo vítimas de algum feitiço. Reconhecio local; poucos anos antes, um amigoquerido tinha estado ao meu lado noconvés olhando esta ilha. Foi a últimaterra que esse meu amigo jamais viu. Quase desanimava já de a podercontornar, quando se levantou umarzinho de vento que nos fez ganharalgumas léguas para além dela, mas aopôr do Sol a brisa faleceu e a corrente fez-nos abater de tal maneira que, no diaseguinte tínhamos perdido todo estecaminho e estávamos de novo para cá dailha. Outra vez se levantou vento defeição e conseguimos então costeá-la pelooutro lado, fechando assim o périplo dailha.

Daí para diante, com ventos mais oumenos de feição, que sempre nos iamenchendo as velas, fomos singrando atéao porto de destino. A cidadezinha de Antonina, onde aminha mulher e o Garfield tinham ficadodurante toda esta minha viagem, umasdoze milhas para além de Paranaguá,animou-se, logo a seguir à nossa chegada,rindo da música e das marchas de umrancho de crianças; o meu «Yawcob», ocompanheiro mais invejado do rancho,dirigia a banda tocando uma harmónicade noventa cêntimos. As tristezasdissiparam-se, ou guardaram-se nadespensa, que vem a ser o melhor lugarpara os infortúnios passados. A viagem para Montevideu fora bemdura para todos! Os sobreviventeschegaram à sua terra pouco depois denós. Traziam as feições terrivelmente

marcadas e desfiguradas; tanto que nãoos reconheci senão quando se medirigiram a primeira vez que nosencontrámos. Recordo com saudade o bom carácter dosmeus marujos brasileiros, e por isso sintomais profundamente a sua triste sorte.Talvez nos encontremos um dia! Quinesabe! (1) Tentando esquecer, como pudemos, todaaquela triste história, lançámo-nos emnova transacção: a compra e o embarquede um carregamento das famosasmadeiras do Brasil. Fundeou-se oAquidneck num braço da baía, abarbadocom uma floresta virgem, a uns vinteminutos de piroga da aldeia deGuarakasava, e ali depressa começou acarregar. A madeira do país, geralmente muitopesada, é apesar disso levada até à água à

força de braço e, aí, amarrada a umapiroga e rebocada até ao navio. Estas pirogas, feitas por vezes de árvoresgigantescas, perfeitamente delineadas, eescavadas com mestria, sãosimultaneamente a carruagem quetransporta a família para o citio (1) e ohortelão que leva o arroz para odescasque. Onde quer que se possautilizar a piroga, as estradas quase sedesconhecem; homens, mulheres ecrianças são, por isso, quase igualmentehábeis na manobra destas embarcações.Não há, nestas paragens, carroças de quevalha a pena falar, e um simples cavalode sela é uma avis rara. Para sermosprecisos, havia um cavalo emGuarakasava, e o dono dele era umapessoa muito importante. A piroga familiar a que me referi, desloca,com frequência, algumas toneladas, é

belamente entalhada ao longo das bordas,e pintada, como o «Geordie» diria, «denenhuma das vossas cores berrantes, masde um bom vermelho ou azul» noentanto, também as víamos pintadas deverde. O preço destas belas pirogas regula,digamos, de uns 250 dólares, um barcograndioso, até uns cinco mil réis (2dólares e meio) que é um preço de umaembarcação para um só homem. Do maior ao mais pequeno, são objectode cuidados quase carinhosos, e durammuitos anos. Uma outra coisa que mesmo o mais pobredos brasileiros muito aprecia é a sua ternaesposa que, tanto simbólica comoliteralmente, anda, a todo o instante, nomesmo barco com o marido (1),navegando contra a corrente. Os laços defamília são fortes, no Brasil, e a suave flor

da amizade desabrocha no seu climaluminoso. Na costa que se estende do Cabo Frio aSanta Catarina, predomina o regime debrisas do mar e da terra, com granderegularidade, durante quase todo o ano;é, portanto, a vela o meio maisextensamente utilizado pelos habitantesquase anfíbios, que adoram o mar e,como autênticos marinheiros natos, só sesentem bem na água. Se o vento falece,fazem mover a piroga a remos ou à varacom igual facilidade. Nas mais pequenas,os ocupantes manobram-nas de pé agrande velocidade. As maiores sãomanobradas por remos que se prendem afortes toletes armados na borda, por meiode estropos que abraçam folgadamente osremos, permitindo-lhe assim que joguemlivremente nas mãos do remador.

Quando se lançam velozes por sobre aságuas mansas das baías e rios, malencrespando a superfície com as proasfinas e graciosas, dão--nos uma imageminexcedível de habilidade e elegância. Ainda que seja apenas para mostrar aopinião dominante que formei acerca dosnativos enquanto permaneci no meiodeles, registo aqui, com a verdade de umhistoriador, a seguinte nota que escrevino meu livro de bordo quase ao terminaro negócio em Guarakasava: Guarakasava, 20 de Dezembro. Atribuí, até hoje, aos nativos brasileiroshonestidade, valor náutico nacional ehabilidade na manobra das canoas, mas omeu sonho de um paraíso perfeito acaboude se desmoronar para sempre. Descobri,ai de mim! que até aqui se fazem sentir osefeitos do pecado de Adão. Quando hojecarregávamos alguns troncos, o preto

encarregado da contagem, persistiu emcontar duas vezes o mesmo madeiro.Quando a primeira extremidade dotronco entrava pelo sisbordo, era «umo»(1); quando o outro extremo acabava dedesaparecer no navio, o homem cantava«does» (2). (*) Aqui, o simbolismo reside naexpressão inglesa que se aplica a pessoasque vivem em boa harmonia: they are inthe same boat, andam no mesmo barco. Não tive grandes dificuldades com aquestão, mas deixei Guarakasava com asensação desagradável de ter sidodissuadido de que um e um fazemquatro. Passámos o Natal de 1887 emGuarakasava. Pouco depois, carregada abarca, ao seguirmos ao longo da baia, ovento e as correntes apanharam-na emforça perto de uma restinga de areia

perigosa, o navio mentiu a virar e foilevado para o areal. Lançou-se logo umferro para o deter, mas a âncora não fezpresa naquele fundo de areias traiçoeiras;então o navio garrou e encalhou de lado,atravessado ao mar, ficando exposto auma forte calema que o sacudiu da popaà proa durante três dias, rebentando comviolência de encontro ao costadogemebundo, até que finalmente se partiu— e, porque não dizê-lo? também ocoração se nos partiu ao vê-lo destruído.Ao cabo de vinte e cinco anos de bonsserviços aqui viera o Aquidneck acabar osseus dias! Eu próprio desembarquei carga apóscarga mas, ai de mim! não podiatransportar uma montanha; tinhachegado ao extremo em que o melhor daminha experiência e energia já de nadaservia. Que havia a fazer? Que se poderia

fazer? Tínhamos, na verdade, todo o ar degente naufragada, perdida em terraslongínquas. Não era caso para lágrimas, porque sesalvaram as vidas de toda a tripulação;mas também não era caso para rir,porque grande tinha sido nossa a perda. Mas o mar amainou, vendi os salvadosque se fizeram flutuar depois do mautempo e, depois de pagar os ordenados àtripulação fiquei com algumas sobrasdesse dinheiro para mim e para a família— uma pequena quantia. Então comecei a pensar no futuro e nummeio de fugir ao exílio. A equipagem(que era estrangeira) conseguiu naviopara Montevideu, o porto em que haviaembarcado no Aquidneck emsubstituição dos marinheiros brasileirosdoentes. Mas aquela solução era quaseimpossível para nós, ainda que não nos

importássemos de nos afastarmos maisde casa — e isso era tudo quanto menospodíamos desejar. Navios que seguissemo caminho desejado não os havia. . . . . . ; ; ; ; ; ; ; ; ; ; ; .

CAPITULO IX A CONSTRUÇÃO DO LIBERDADE Avante, avante, nenhuma nuvem descesobre nós / Livremente cortamos agora avaga com a proa / Iça, iça o pano todo;perante nós / Brilha o farol da esperançapara encorajar os valentes. Masaniello Quando se salvou do naufrágio tudoquanto merecia ou podia ser salvo,achámo-nos de posse de alguns bens quedepressa se tornariam de grande valorpara nós, especialmente a agulha e ascartas que, embora estragadas, aindapodiam servir e que estavam mesmo apedir que as utilizássemos; e quandoencontrei o cronometro intacto acabaramas minhas indecisões sobre o caminho aseguir, e a minha mulher e os meus filhos

concordaram com o que eu entendia ser omelhor. O plano era, numa palavra, o seguinte:não podíamos esmolar a nossa passagemnem nos podíamos quedar ociosos entreos nativos. Concordámos que nos seriapedida muito mais coragem paraficarmos nesta terra distante que voltarpara casa numa embarcação quedecidimos construir para esse fim (1). O meu filho Victor, com muito orgulho esatisfação, entrou de alma e coração noplano que prometia um rápido regresso.Aplicou todas as suas energias no sentidoprático e trabalhou no barco como umvelho construtor. Mas antes de pormos em prática oprojecto, pesámos todas asresponsabilidades. Contámos com ascorrentes marítimas muito rápidas nasvizinhanças de cabos e recifes de coral e,

acima de todo o resto digno do nome deperigoso, contámos com as bravastempestades tropicais que, com toda acerteza, iríamos encontrar. (*) Tinha de aceitar esta alternativa, outeria de levar a família para casa nacondição de indigentes, porque todo omeu dinheiro se fora - preciso de explicarmais? Mas vi-me obrigado a apresentaresta justificação. «Então temos de construir um barcosólido e de posse», dissemos todos, «aoqual possamos confiar a vida sem temor,mesmo na tempestade». E com a vantagem de uma longaexperiência de navios e embarcações detodos os tamanhos e em muitos mares,lancei-me ao trabalho de construir, deacordo com as minhas ideias e os meiosdisponíveis, um barco o melhor possívelcapaz de afrontar todo o tempo e todas as

circunstâncias. E a família apoiou-me comtodas as suas forças e simpatia. A estabilidade devia ser a primeira e maisimportante das qualidades do nossonavio microscópico; em seguida, deviavelejar bem, pelo menos com ventoslargos e de popa. Contávamos comventos de feição e, com efeito, foram osque tivemos durante a maior parte daviagem que pouco depois realizávamos. Longas exposições à doença nas suasvárias formas, muitas e gravescontrariedades, longas quarentenas,fumigações caríssimas e visitas ruinosasde médicos, tudo isto se nos fazia sentiragora na saúde e no ânimo. Mas, semprecom energias de reserva e as nossas ideiassobre o regresso a casa, atirámo-nos aotrabalho com ferramentas salvas donaufrágio e em breve assumíamos ocomando de um novo navio. É deste

navio que vou descrever a construção, etambém as dimensões, modelo eaparelho, mas não sem primeiromencionar as ferramentas — bem poucas,aliás — com que o construímos. Para começar, tínhamos um machado,uma enxó de cabo comprido, duas serras,um trado de 1/2 polegada e duas pontasde pua, uma de 6/8 e outra de 3/8 depolegada; havia ainda duas grandesagulhas de coser velas, quetransformámos em verrumas, e umaespicha que deu um bom punção; e, apeça mais preciosa, uma lima queencontrámos num velho saco de velasque veio dar à praia. Um esquadro foicoisa que depressa fizemos. Duas ripas debambu deram-nos um compasso. Carvãofinamente pulverizado e amassado comágua deu-nos um substituto para a linhade giz — a linha tínhamo-la em

quantidade. Nos casos em que tínhamosde abrir furos mais largos que a ponta de6/8, aquecíamos ao rubro a ponta de umpequeno varão de ferro e com ela se iaqueimando o furo até ao diâmetronecessário. Ao fim de contas aindadispúnhamos de uma colecçãozinharazoável para andar com o trabalho paradiante. Grampos, tais como os usadospelos construtores navais, não ospossuíamos mas improvisaram-se com amadeira torcida da guava e damassaranduba (1). Quando as madeiras salvas do naufrágionão podiam servir, abatíamos árvores dafloresta vizinha. Algumas destas árvores,cuja madeira nos interessava para finsespeciais, tinham nomes de ressonânciasexóticas, como arregebah, guanandee,batetenandinglastampai (1). Esta última,por ser muito dura, nunca a cortávamos à

serra; desbastava-se a machado,lembrados de que tínhamos uma só limapara afiar as serras, enquanto que para asferramentas de lâmina nos bastava ir aum regato próximo para trazer pedras deafiar em abundância. Os muitos embaraços que se levantaramdurante a construção do barco, não vale apena contá-los aqui. Entre os de menorimportância menciono uma febre tropicalque muito nos fez sofrer. Mas todos estese outros obstáculos acabaram pordesaparecer, ou atenuaram-se, frente anovas energias que iam crescendo àmedida que crescia o barco, e, assim, aconstrução progredia a olhos vistos. Nãohavia limite de horas de trabalho, masdescansávamos ao sábado e entãoexaminávamos o trabalho feito durante asemana e faziam-se projectos sobre o quêe como fazer na semana seguinte.

A parte do trabalho que exigia menoshabilidade, como o corte das tábuas decedro (2), largamente utilizadas naconstrução, foi entregue a nativos que asserravam grosseiramente deixando aindamuito para aplainar e desempolar demodo a dar-se às peças a formarequerida. As tábuas do fundo eram depau-ferro, de 1 1/4x10 polegadas. Para ocostado usou-se o cedro vermelho emtábuas que, à excepção de duas, corriaminteiriças da popa à proa. Esta disposição,com madeira excepcionalmente pesadano fundo e tabuado muito leve nasbordas, contribuía em muito para aestabilidade do barco. O pau-ferro eradenso como pedra e o cedro, leve eelástico, garantia a flutuabilidade e aflexibilidade que pretendíamos. As pregaduras foram obtidas de váriasorigens — algumas da borda falsa do

navio naufragado, outras das dobradiçasde portas e escotilhas, e ainda outros dorevestimento de cobre do navio, que osnativos fundiram para fazer pregos.Conseguimos obter dos nativos pregos debom cobre, que paguei em moedastambém de cobre, à razão de dois quilosde moedas por um quilo de pregos. Essasmesmas moedas, depois de cortadas emhexágono e furadas a meio, serviam-nosde aninas — anilhas sobre as quaisrevirávamos as pontas dos pregos.Quando os pregos eram compridosdemais, cortavam-se ao tamanhodesejado, mas tínhamos o cuidado deguardar as pontas para se refundiremjuntamente com as chapas dorevestimento para se fazerem novospregos. Alguns parafusos de olhai,aproveitados da retranca da vela ré do

navio, serviram-nos como olhais doconvés para arreigar cabos. Algumas cavilhas com porca quearranjámos entre os nativos, fizeram-nosmuito bom jeito; para as ajustar aocomprimento requerido, metia-as atravésde blocos de madeira com a devidaespessura, ficando os blocos, é claro, pelaparte de dentro do barco, e afogava asporcas à face com as tábuas, pelo lado defora; depois aparafusando a cavilha dedentro para fora, os madeiros ficavam aliapertados como num torno. O tabuadofoi posto segundo o sistema de «trincado»que é sem dúvida nenhuma o mais sólidoprocesso de se construir um barco. (*) Este «cedro», o Cedrela sp., conhecidoem língua inglesa por cedro vermelho, éuma madeira tropical que nada tem quever com o cedro conhecido na Europa ouno Líbano.

As tais cavilhas e porcas, setenta ao todo,e os pregos de cobre ficaram-nos caros,mas as cavilhas de madeira com quetambém se pregou o barco, apenas noscustaram o trabalho de as fazermos.Também as arreataduras que demos aquie ali na armação do rufo, não custarampraticamente nada, porque nos servimosde cascas fibrosas que só exigiam otrabalho de as arrancarmos de algumasárvores, que por ali havia em boaquantidade. Deste modo, vendo a coisaem geral, os materiais não ficaram caros,tendo sido a madeira o que levou maisdinheiro — uns trinta e três cêntimos pormetro quadrado, já cerrada oudesbastada. Pau-rosa, pau-ferro, cedro oumogno, andavam todos pelo mesmopreço e pouco mais caros eram quequalquer madeira ordinária. Por issoescolhemos sempre as melhores

madeiras, tanto mais que usando osmelhores materiais menos trabalhotínhamos com o seu acabamento. Armados e ligados os madeiros epregaduras o melhor que pude-mos,ficámos com um barco suficientementeforte e marinheiro para aguentar todas asinvestidas do oceano, em que dentro empouco iria navegar. Acabado o casco à custa de muitas outrasimprovisações e ideias originais, em quepor vezes o «serralheiro de madeiras» foichamado a ajudar, e a mãe da invençãonos deitou também a sua mão protectora,fizeram-se ferragens para o aparelho, quese portaram tão bem na viagem como setivessem sido feitas num estaleiro por altopreço. Os meus construtores a nada se negaram,e no dia 13 de Maio, o dia da abolição da

escravatura no Brasil, lançou-se o barco àágua e deu-se-lhe o nome de Liberdade. As dimensões eram: 35 pés de fora-a-fora,7 1/2 pés de boca e 3 pés de pontal (1).Quem dirá aí que não era bastantegrande? O modelo foi tirado das minhasreminiscências dos dóris do Cabo Ann, ede uma fotografia dum sampan japonêsmuito elegante, que tinha comigo; porisso, como era de esperar, quando o barcoficou pronto assemelhava-se, em certamedida, àqueles dois tipos. A armação era ao estilo do sampanchinês, a qual é, em minha opinião, amais perfeita de todo o Mundo. Era este o barco — ou canoa, comoprefiro chamar-lhe — em que nosdecidimos fazer de vela para a Américado Norte e para casa.

(*) Respectivamente, uns 10,5 m. 2,25 m. e0,90 m. Todos nos absorvemos no trabalho daconstrução e esqueceram-se todos osinfortúnios passados. A Madame fez asvelas — e bem boas elas ficaram! O Victor, carpinteiro, cordoeiro e operáriode todo o serviço, desempenhou-secabalmente das suas tarefas. O nossohomenzinho, o Garfield, arranjouemprego para segurar o martelo notrabalho de revirar as pontas dos pregos edeu-nos muitos conselhos a propósito dafutura viagem. Todos estávamosabsorvidos no trabalho, volto a dizê-lo, eninguém tinha ainda pensado no queteríamos a esperar das autoridadesmarítimas ao longo da costa; entendiamelas que não se poderiam concederdocumentos a um barco tão pequeno para

uma viagem tão longa como a que seplaneava, para a América do Norte. Nesta ocasião voltou a febre ao escritor econstrutor, e tive de baixar à cama portrês dias. Finalmente, veio-me à ideia queem qualquer sítio da caixa dos remédios,que se tinha salvo do naufrágio, estavaguardado um pouco de arsénicun, comocreio que se chama. Tomei algumas dosesdaquilo (começando por doses pequenas,podem crer), e depressa se me começou afazer sentir nas veias o belo efeito doveneno mortal. Aumentandoligeiramente as doses, pude sentir, dehora para hora, o seu efeito benéfico e, empoucos dias tinha recuperadocompletamente da doença. Por muito absurdo que pareça que oraciocínio de um marinheiro possa serespevitado por micróbios, é um facto que

devo confessar; é que os micróbios erammuitos. Por esta altura — como diria umastrólogo — veio um mensageiro daAlfândega (1), para eu aparecer por lá nodia seguinte ao meio dia. Isto deixou-mepositivamente alarmado. É certo que omensageiro tinha comunicado o recadocom a maior das delicadezas, mas issonada queria dizer porque os brasileirossão sempre delicados. Este episódio, porinsignificante que hoje pareça, quase mevoltou a dar febres. Que teria eu feito? Lá fui no dia seguinte, depois de umanoite de pesadelos, preparando-me paradizer que não voltaria a fazer isso! Masquando me apresentei, o amáveladministrador não me acusou denenhuma falta; pelo contrário, fez-me umelogio. «O pequeno Liberdade», observouele, tinha chamado a atenção do seu povo

e despertado a sua própria curiosidadepor ser «um barco elegante e bemconstruído». Foram-me ditas esta e váriasoutras afirmações lisonjeiras, ao que memostrei surpreso, mas disse para mimmesmo: «Creio que tem razão, senhor, etambém tem bom gosto, para um oficialaduaneiro». O objectivo dos seus elogios era, emresumo, pedir-me para construir umbarco para a Alfândega (1) ou, se oGoverno não lhe desse dinheiro parafazer um novo, «não poderia eu repararum?» E apontava para um que comcerteza estava a pedir quilha, forro,balizas, roda de proa e cadaste, tudonovo. Respondi à proposta, pedindo algumtempo para pensar. Embora as palavrasdo oficial fossem lisonjeiras e secundadaspela promessa de pagamento liberal, se o

barco pudesse ser reparado, não sentiadesejos de permanecer naquela terra tãoquente, arriscado a contrair a febre maisuma vez. Mas ainda havia o velho'obstáculo a vencer, ou seja, o passaportede que dependia, estávamos certos, anossa viagem. No entanto, para encurtar razões,concederam-me uma licença de pesca eadmirei-me de como ainda me não tinhalembrado de tal coisa, porque afinal eutinha sido pescador, em tempos.Enveredando então pela nova políticadiplomática, comecei a aparelhar parauma campanha de pesca. Nessa ordem deideias, começámos por fazer uma redeque, de qualquer modo, seria semprebom ter à disposição. Depois preparámosanzóis e linhas, e fizemos uma amarra.Esta amarra foi feita com os caules deuma planta rastejante que se desenvolve

imenso nos areais logo acima do nível daágua; alguns destes caules torcidos fazemum cabo muito aceitável leve e elásticoque, por isso mesmo, é especialmenteindicado para a âncora ou para o drogue.Os nativos prepararam-nos noventabraças deste cabo pela soma de dez milréis. A âncora, pode dizer-se que caiu do Céuaos trambolhões. Tinha eu feito uma demadeira mais densa que a água, quandoum dia veio ter comigo um robustorancheiro trazendo consigo uma âncoraque, disse ele, tinha servido aos seusescravos como um gancho para o caldeiroda comida. «Mas agora que estão livres ese foram embora», disse, «já não me servepara nada esta coisa torta». Por sua vez,cobiçava uma máquina de costura quenos tinha servido para cozer as velas eque já não nos servia para nada; em troca

da máquina deixou-nos logo a âncora,ficando nós ainda a ganhar com atransacção. Correndo assim as coisas anosso favor, guardou-se a âncora demadeira para servir como ferro dereserva. Acabados estes aprestos, o barco tomou oaspecto de um pesqueiro e eu comecei-mea sentir no meu velho elemento, semreceio de me vir a faltar um modo de vidaquando chegasse às costas americanas,cujos bancos de pesca conhecia bem. Edepressa me foi entregue pelasautoridades do porto um documento querezava: «Licença para pescar dentro e forada barra». «Até que distância da barra podemos ircom isto?» perguntei eu. «Quin sabe!» (1),disse o oficial. (Isto significa literalmente«quem sabe?» mas para um espanhol oupara um português também se usa para

dizer «Ninguém sabe» ou «Não tenhonada com isso»). «Adeus, senhor», disse o cortês oficial,«encontrar-nos-emos no Céu». Isto queria dizer «você pode ir, já queinsiste, mas oficialmente não sei de nada;e provavelmente vai para o fundo». Eranisto que ele e vários outros seenganavam. Depois de termos na mão o necessáriodocumento, começámos a meterprovisões: 60 quilos de biscoitos; 12,5quilos de farinha; 4,5 quilos de café que,torrado e moído, rendia o dobro do caféque se preparava na América do Norte, eque nos dava uma bebida muitíssimosuperior. De chá, metemos 15 quilos; porco, 10quilos; carne seca, 50 quilos; baccalaosecca (1), 10 quilos; 2 garrafas de mel; 200laranjas, 6 cachos de bananas, 120 galões

de água; e ainda um cestinho de inhamese uma dúzia de canas de açúcar, na vezde hortaliças. Na caixa dos medicamentos metemoscastanhas do Maranhão, pimenta ecanela; não precisávamos de outrasdrogas ou especiarias para a viagem,excepto sal comum de que também nosabastecemos. Arrecadámos um mosquete e umacarabina — que já nos tinha prestadovalioso auxílio — munições e trêsmachetes, para utilizar em casosdesesperados, mas de qualquer maneirapara usar se necessário. Armazenei os abastecimentos leves nosextremos da canoa e os mais pesados ameio navio, dispostos no fundo,economizando espaço e contribuindoassim para a estabilidade do barco. Porcima das provisões, a meio navio, armei

um pavimento, coberto por um rufo delona subido 3 pés acima do convés, earmado com um esqueleto de bambu, quedava uma altura de 4 pés, cómodo para seestar sentado, e um comprimento de 12pés ao longo do barco. Este arranjo da cabina a meio navio,permitia que os meus passageirosdormissem onde menos se fazia sentir obalanço; mas isto não é dizer tudo porquepelo muito que fizemos para o evitar,ainda tínhamos de aguentar muitosafanão do mar. Tomámos todas as precauções que osnossos recursos e habilidade permitiram.Sempre que se precisava de um pau, fossede que espécie fosse, como para os vaus echaços da armação do rufo, vergas dasvelas e para a defensa ao longo da borda,usámos o bambu, elástico e leve, fazendoassim com que a canoa se endireitasse por

si, caso alguma vez se emborcasse. Cadasecção de bambu era uma câmara de arnatural com uma flutuabilidade dealguns quilogramas, e tínhamos no barcoum milhar delas. As provisões mais importantes,especialmente a farinha, o pão e o caféforam hermeticamente acondicionadas,de modo que se alguma vez o mar nosemborcasse não só o barco se adriçariapor si mas também as provisões ficariamonde estavam, enxutas, e depois seriaapenas questão de achicar o barco e metê-lo outra vez ao rumo para continuar aseguir, melhor que nunca. Mas nãotivemos de passar por tal experiência. Enquanto todos nós sentíamos apossibilidade de várias e desagradáveisocorrências, o perigo que mais surgia àmente do pequeno Garfield era o dostubarões.

Viemos a capturar um durante a viagem,que tinha cinco fiadas de dentes afiadoscomo lancetas. Diz-se que alguns destesmonstros têm nove fiadas; e que andam

sempre esfomeados é coisa aceita pormarinheiros de grande experiência. Nãocompreendo como alguns marinheirostomam banho, como frequentementefazem, perante um perigo tão terrível. Écerto que a sua profissão é um constantedesafio ao perigo, mas isto é expor-seinutilmente e o preço é muitas vezes avida. Nas costas de Cuba, não há muitotempo, o contra-mestre de uma barca foicortado ao meio e os dois pedaçosengolidos por um tubarão monstruosoque o homem desafiou desta forma. Otubarão foi apanhado logo a seguir e osrestos do pobre rapaz retirados do ventrerepugnante. Deixando os tubarões onde estão, é commuito prazer que volto à viagem doLiberdade. . .

CAPITULO X Saindo a barra — Rota para Santos —Para o Rio, a reboque de um vapor — NoRio de Janeiro. Depressa descobrimos todas asqualidades da canoa. No dia 24 de Junho,depois de velejar uns dias na baía paranos adaptarmos ao novo barco e irmosajustando as coisas nos seus lugares,saímos a barra e fizemo-nos ao largo,enquanto ficavam no porto seis navioscujos pilotos achavam que era muito duropara se meterem ao tempo lá fora;quando saíamos, os pilotos, sem arredarda sua opinião, benziam-se em nossaintenção e gritavam-nos que o mar estavacrudo Mas o Liberdade seguiu o seucaminho e a tripulação nunca searrependeu disso.

Nesse momento, o vento que soprava doSudoeste era já o amainar de umpampeiro, em consequência do qual selevantara uma forte calema que quebrava,trovejando na barra com um rugidoensurdecedor, numa majestosa ostentaçãode força. Mas o nosso barquito atravessou arebentação como um peixe — como sefora parte natural dos elementos, e tãolivre como eles! De todos os mares que quebravamfuriosamente ao redor dele, mantendo-opor vezes, quase a prumo, nem um só ovarreu, nem sequer lhe entrou a bordo, eo barco atravessou triunfante aquelatempestade de escarcéus. Depois,metendo em cheio, abriu as velas ávidasde vento e voou por sobre o mar comouma ave.

Foi precisa muita confiança e algumacoragem, para nos metermos ao primeirotemporal numa embarcação tão pequena,depois de passar tantos anos em grandesnavios; mas voltar para trás teriarequerido muito maior coragem que aque tinha qualquer de nós, porque odesejo de regressar tinha-se apossado porcompleto do nosso espírito. Além disso, a velha paixão da vela, oamor da coisa em si mesma, crescia denovo dentro de mim à medida que obarquinho seguia vencendo o mar; e todaa tripulação dizia em uníssono: «Paradiante». A pesada calema do AtlânticoSul, que avançava sobre a praia enquantoa íamos costeando, começava a quebrarao atingir a linha das dez braças defundo, e rebentava num rolo trovejanteque nos impedia de chegar mais a terra.

Evidentemente, a derrota mais segura eraseguir longe de terra, onde a vaga,embora muito grande, era regular epassava correndo suavemente sob o barcoque dançava como uma casca de nósenquanto seguia o seu caminho. Vinte equatro horas depois de sairmos a barra deParanaguá, estávamos nas alturas dasCabeças de Santos; uma singradura de150 milhas. Na altura em que dobrávamos as cabeças,um pé de vento soprando de uma ravina,caiu-nos em cima, pôs-nos as velas emtiras e levou-nos em árvore seca paraSantos. Encontrei por ali um velho amigo, ocapitão Baker, do vapor do correio,Finance, que largava para o Rio;lançaram-nos amigavelmente um cabo eno dia seguinte saímos para o Rio deJaneiro a reboque do poderoso vapor, tão

depressa quanto poderíamos desejar. Aminha mulher e o marinheiro mais novopassaram para bordo do vapor, e o Vítorficou comigo na canoa, de machado namão, pronto a picar o cabo do reboqueem caso de emergência. Eu ia ao governo. «Cuidado», disse o Baker, quando ovapor se começava a mover, «cuidado,não vá eu puxar-te a canoa debaixo de ti».«Anda lá com o teu correio, Baker», foi oque lhe pude dizer, «não faças tu explodiro navio com a minha mulher e o meufilho a bordo, que eu cá olho pelo paquetedesta ponta da corda», O Baker acelerouaté treze nós, mas o Liberdade aguentou! A toa com que nos rebocavam era umcabo de 1 polegada e 1/3 de diâmetro, e90 braças de comprido. Quando o vaportrepava à crista de uma vaga, deixando acanoa no cavado da segunda vaga à ré, atoa ficava tensa, como a corda de uma

harpa. Outras vezes brandeava e caíafrouxa na água mas só por um momentoaté que o vapor se lançava na vagaseguinte e a tesava de novo, arrastando-nos com um puxão violento e sacudido.Em tais circunstâncias era imperativogovernar a canoa sempre a direito: umaguinada a um ou outro bordo seria o fimda carreira do Liberdade com um grandemergulho pelo mar dentro. Por isso,comecei a sentir o cansaço de vinte horasde leme — eu, o mais velho e maisexperiente timoneiro. Mas estava bem enão me sentia fatigado em demasia,enquanto o Baker não se lembrou decomeçar a deitar óleo nas «águasagitadas». Disso é que me farteiimediatamente. O Vítor ia debaixo do toldo de lona,sempre de machado na mão, pronto apicar a toa, que fora passada de modo a

poder cortar-se de dentro da cabina, e acortá-la instantaneamente, se por algumacaso a canoa desse uma guinada. Senti algum receio de que o rapaz seamodorrasse, metesse a cabeça «debaixoda asa» para uma soneca e esquecesse oserviço, mas o meu grito frequente«Aguenta aí, Vítor!» encontrou-o semprealerta, embora resmungando contraaquela correria sacudida. Pesados borrifos salgados fustigavam-mede alto a baixo, no meu posto ao leme,mas como a surriada parecia lavar o fumodo enxofre de tantas quarentenas, sentia-me de espírito alegre. Começou a levantar-se um mar confuso,alto e perigoso — muitas vezes bemacima da borda — mas as belas curvas dacanoa equilibravam-na bem e ela galeavaas vagas, segura e desenxovalhada.

Esta corrida na canoa foi qualquer coisade excitante e satisfez-nos a todos. Comuma tão completa prova de qualidadesnáuticas ficou mais que demonstrado quea nossa canoa era um extraordináriobarco de mar alto. A certa altura o capitão do vapor mandoudeitar óleo no mar, de espaço a espaço,para nos livrar de tanta surriada eatenuar o movimento sacudido da canoa,mas em troca veio-me arruinar o paladarporque vinha, tocado pelo vento, cair emcima de mim e sujar-me a cara. Dizia ocapitão a um dos seus homens (um velhobaleeiro, diga-se a propósito, e osbaleeiros, por qualquer razãoindiscernível, nunca sentiram muitaconsideração por um pobre marinheiromercante): «Senhor Smith». «Pronto, senhor!» respondia o velhoSmith.

«Senhor Smith, lance esse óleo!» «Pronto, senhor!» dizia o velho baleeiro,cumprindo a ordem com a maior dassatisfações, e menos de cinco minutosdepois, estava eu ensopado em gordura eo barco sujo de óleo da quilha aos topes. «Está bem, agora» dizia o Smith. «Está bem!» dizia o Baker; mas eu achavaque estava mesmo mal. Tínhamos agora ovento pelo olho e antes de entrarmos oporto do Rio já eu tinha engolido óleobastante para curar qualquer tuberculose. Parece que o Baker dissera que não seimportaria muito de «afogar o Slocum».Mas comigo ia tudo bem desde que acanoa não guinasse, c chegámosfinalmente ao Rio, sãos e salvos, depoisda mais excitante corrida de canoa, detoda a minha vida. Eu não desejava cortara toa que nos rebocava tão bem e sabia

que o Baker não a soltaria porque no fimde contas o cabo era dele. Soube no Rio que a minha licença depesca podia ser trocada por umdocumento de maior importância,documento esse que devia obter atravésdo gabinete do Ministro da Marinha. Vários foram os linguistasdesembaraçados que se prontificaram aservir-se da sua influência para intercederpor mim junto daquela alta entidade; masao cabo de um mês, descobri que estavaavançando com a velocidade de umgaleão holandês com mar de proa, depoisdo vento falecer. O nosso respeitávelcônsul, o general H. Clay Armstrong deu-me a entender qual era a dificuldade ecomo evitá-la. Fui então tratar do casopessoalmente, como devia ter feito logode início, e encontrei nos váriosdepartamentos quem estivesse pronto a

ajudar-me sem a intervenção de«influências» estranhas. O Comandante Marques, da ArmadaBrasileira, recomendou-me a SuaExcelência o Ministro da Marinha, que«não tem simpatias», disse ele, «pormarinheiros americanos»; mas quando onovo documento veio, era um «PasseEspecial» (1) e trazia um selo do tamanhode um prato de sopa. Um oficial deMarinha, do porto, apresentou-me entãoao bom Administradore que também medeu um passe especial com o selo daAlfândega. Faltava-me agora obter apenas umcertificado de saúde, para ficar compapéis bastantes para um navio deguerra. Como o Rio era considerado terrasaudável, isto depressa me foi concedidoe assim ficou pronto o nossoequipamento.

Conheci aqui o nosso ministro cujosdeveres incluíam o de fornecer previsõesmeteorológicas a esse pobre órfão que é onavio americano — ai de mim! o meupobre parente! Foi ele que me disse «Capitão, se o seuLiberdade for tão bom como os seuspapéis» (os documentos que me deram asautoridades brasileiras), «pode lá chegare bem»; e acrescentou: «bem, se o barcoalguma vez chegar ao porto, vai serobjecto de grande curiosidade», com oque ele queria dizer, concluí eu: «asprobabilidades que terá de fazer negóciocom um museu de bugigangas, não serãomás de todo». Ouvir isto depois de tantosanos de capitão de navios e até dearmador, se bem que em pequena escala,era um estranho encorajamento. Emcompensação, os nossos amigos

brasileiros consideravam a viagem comocoisa garantida. «Temos confiança na perícia e sangue-friodo audacioso marinheiro americano»,dizia o «Journal Opiz» (1) do Rio, «porisso esperamos que dentro em poucotempo veremos o seu nome proclamadopor todos os jornais do velho e novoMundo. A nós também caberá parte daglória» (2). Acompanhados por estas e outrasexpressões, igualmente amáveis de todosos nossos amigos, largámos do Rio efizemo-nos de vela na manhã do dia 23de Julho de 1888. (*) Tal como foi transcrito pelo Cap.Slocum do tal «Journal. . . . .

CAPITULO XI Largando do Rio — Fundeado no CaboFrio — Encontro com uma baleia —Tesouro submarino — O mestre-escola —O lojista — A boa gente da aldeia — Umavisita agradável. 23 de Julho de 1888 foi, como já disse, odia em que largámos do Rio de Janeiro. Encontrámos ventos fracos pela proa epor isso durante o dia pouco caminhoganhámos; ao cair da noite fundeámosumas vinte milhas a Este dos cabeços doRio, próximo da praia. Um mar largo, aquebrar, que nos baloiçava ao passar, edepois se ia lançar pesadamente sobre asrochas, embalou-nos com a sua músicadurante toda a noite. Foi então que noespírito do Garfield surgiu um problemaem que até aí ninguém pensara; «Mamã»gritou ele. Sacudido de lado para lado do

pequeno camarote pelos balouços que asgrandes vagas davam ao barco, quandoele se ajoelhava, muito sério, para aoração da noite, «este barco não ébastante grande para rezar cá dentro!»Mas a dificuldade passou com o tempo eo Garfield aprendeu a fazer quartos tãobem como a rezar durante a viagem e,cheio de fé em que tudo seguiria bem,deitava-se todas as noites e dormia tãodescansado como qualquer bom cristãono mar ou em terra. Ao amanhecer do segundo dia,estávamos de novo a caminho, bolinandopara Este com vento e mar pela proa.Nessa noite continuámos seguindoviagem e na manhã seguinte estávamos àvista do Cabo Frio, onde ancorámos àbarra de um bom fundeadouro. Tempo decorrido, dois dias; distâncianavegada, 70 milhas. Com o vento e a

maré contrários, tivemos de esperar cáfora por uma mudança favorável.Enquanto estávamos ancorados, umagrande baleia que andava por ali acheirar, meteu-se por debaixo da canoa epregou-nos um encontrão e um grandesusto. Estávamos a jantar quando aquiloaconteceu, e escusado será dizer que arefeição acabou sem sobremesa. O grandeanfíbio — que teria quinze a dezoitometros de comprido — nadando à nossavolta, parecia gigantesco. Por duas vezespassou tão perto de mim que lhe podiater tocado com um remo. A cauda,revolvendo a água como a hélice de umnavio, poderosíssima, parecia-nos tãoterrivelmente próxima! E que bocasinistra que o monstro tinha! Bem,esperávamos ser desfeitos de ummomento para o outro. Apareceu peranteos meus olhos o triste destino do valente

navio baleeiro Essex. A viagem doLiberdade, pensei, estava a chegar ao fim;e tratei de olhar por bocados de bambucom que levar a mulher e os filhos para apraia. Mas nessa altura, com grandealívio de todos nós. o leviatan pôs-se aandar sem nos fazer grande mal,satisfeito, talvez, por não termos o profetaJonas a bordo. Perdemos uma âncora, no incidente, esofremos ligeiros estragos na quilha, masnão tivemos outras avarias a lamentar —e mesmo aquilo, concluí eu depois depensar segunda vez, não foi intencional;foi só a brincar. «Até um tubarão é capazde uma brincadeira» costuma dizer-se, ede trincar uma pessoa também, mas parao humor espirituoso, bonacheirão, não hácomo a baleia. «Se, para começar, isto é já uma amostradas nossas aventuras», pensei eu, «vamos

ter para fartar, até ao fim da viagem».Não se tinha contado com uma visitadesta categoria; mas como diz o SanchoPança: «De onde menos se espera salta alebre», que no nosso caso, diga-se depassagem, era uma grandíssima baleia! Quando recuperámos o fôlego e o cabelodesceu até ao nível normal, demos velas ebordejámos a sotavento do cabo atéchegarmos a uma enseada, orlada por umareal tentador, a umas três milhas paraNoroeste do sítio onde perdemos aâncora, na notável aventura com a baleia.Talingámos logo a âncora de reserva efundeámos perto de uma arriba por ondepassava uma vereda que ia dar a umaaldeia de pescadores, a uma milha dedistância. Guinando o barco para amargem rochosa da enseada, que erabastante funda, saltámos em terra comuma espia na mão e amarrámos o barco a

um rochedo, acima do nível da marécheia. Depois, trepámos pela arriba eandámos para a aldeia, não sem primeirose improvisar uma segunda âncora, quecorrespondia muito bem ao que delaqueríamos, com dois paus e uma pedra. Vendo logo que éramos estrangeiros, osaldeões correram ao nosso encontro epuseram tudo em reboliço para nosreceber da forma mais hospitaleirasegundo o costume da terra. Entre oshabitantes, estava um cavalheirocanadiano, um tal Sr. Newkirk, que sededicava, quando o mar estava calmo, arecolher o tesouro afundado perto doCabo, no navio de guerra inglês Thetisque naufragara ali em 1830. O tesouro,alguns milhões, em moedas de prata ebarras de ouro, ia do Peru para Inglaterrae jazia agora no fundo da enseada quefica a Poente e perto da ponta do Cabo, e

que tomou, desde então, o nome do navioali naufragado. Foram-nos oferecidas algumas dessasmoedas como recordação da agradávelvisita. Encontrámos no Sr. Newkirk umgénio da versatilidade e do nomadismo;tinha sido mestre-escola na sua terra, forauma vez capitão de uma escuna doslagos, praticara Medicina, creio que foitambém pregador e ainda mais coisas quenão cheguei a saber. Tinha experimentado muitos modos devida mas, como a pedra errante da fábula,não amealhara coisa nenhuma. «Ascoisas», dizia-me o Canadiano, «corriam-me de mal a pior, até que, para manter acabeça fora de água, tive de vir para baixodo mar». E parece que encontrou umariqueza, se é que porventura o ouro queele trazia na carga do barco não era umsinal disso. Este homem das mil

aventuras falava ainda como umjovenzinho; e nunca ninguém lhe disseque estava a envelhecer. Falou-me devoltar a casa, logo que tivesse apanhadotodo o tesouro, «só para ver a sua velha equerida mãe»; ora, a mãe, diga-se apropósito, tinha setenta e quatro anos deidade quando ele saiu de casa, uns vinteanos antes. Desde a última vez querecebera notícias da família, tinhampassado quase duas décadas. Era «o maisnovo de dezoito irmãos todos vivos,embora», acrescentava ele, «a famíliativesse estado ontem quase a perder umquando uma baleia avançou para nós deboca aberta, parecendo que ia comer omeu barco, o sino de mergulhar, atripulação, dinheiro e tudo. Mas com umaremadela valente, surripiámos-lhe ojantar, se era de jantar que ela andava àprocura, e eu julgo que era mesmo; mas

cá estou eu!», gritou, «e óptimo!» E podiater acrescentado «e rico, finalmente». Depois de ouvir o mergulhador, contei,em português, a aventura que tive nomesmo dia e, provavelmente, com amesma baleia pois que o monstro se tinhaafastado na direcção em que se deviaencontrar o seu barco. Foi grande aadmiração dos ouvintes quandosouberam da nossa viagem para aAmérica do Norte (1), benzeram-se epediram a Deus que nos cobrisse com asua graça. «A América do Norte é perto de NovaIorque?» perguntou o lojista da aldeia,que era também proprietário de todos osbarcos e redes do lugar. «Pois, a América é em Nova Iorque»,respondeu o antigo mestre-escola. «É como eu pensava» disse o mercador,satisfeito consigo mesmo. E sem dúvida

pensou que algum de nós seria muitoestúpido, ou ignorante, ou ambas ascoisas, mas apesar de tudo tive de sorrircom o ar convincente do canadiano. «Porque é que você não lhe respondeucorrectamente?» perguntei ao mestre-escola. «Respondi-lhe», disse o Newkirk, «deacordo com a ignorância dele. Tivesse eucorrigido a geografia ferrugenta dohomem, em frente destes pescadoressimples e pobres, que ele não meperdoava tão cedo; e quanto ao restodestas pobres almas, pouco proveito lhefaria essa sabença». Devo dizer que neste lugar isolado nãohavia uma escola e, tirando os poucosensinamentos que aprendiam na igreja,com o catecismo e o terço, eram as maisinocentes de todas as criaturas que jamaisencontrei por esse Mundo fora. Mas

pareciam saber tudo acerca do Céu e nãohá dúvida de que eram felizes. Depois da conversa breve e amigável,serviu-se uma rodada de café, discutiram-se as probabilidades da viagem doLiberdade e avisou-se a tripulação contraos riscos da balaena que era frequente aolongo da costa e, nessa época do ano, eraparticularmente perigosa por ter crias adefender. Experimentei muita vez, nos meusquartos ao leme, a tremenda sensação queproduz o súbito aparecimento dessesleviatans, quebrando repentinamente opesado silêncio da noite com um estrépitosemelhante ao bramido de um grandevaga, tão assustadoramente perto que mefazia logo pensar na aventura do CaboFrio; e a minha equipagem, creio bem,não era menos sensível a essa mesmasensação de um perigo terrível, embora

mais imaginário que real. Lembro-me emespecial de numa noite escura e brumosa,o Vítor me ter chamado, excitadamente,dizendo que qualquer coisa monstruosaaparecera pela proa e se aproximavarapidamente. Tratava-se de uma baleia que, porqualquer razão desconhecida, faziaespadanar o mar com o corpomonstruoso, pulando em todas asdirecções, de tal modo que eu já não sabiapara que lado guinar para me safar doperigo. Pelo estardalhaço que fazia,cheguei a julgar que se estavadesenrolando um combate como um aque eu em tempos assistira do convés doAquidneck, não longe destas paragens.Mudámos de rumo logo que pudemosdecidir qual a rota a seguir para evitar, sepossível, os animais marinhos que assimnos roubavam o sossego.

Desejava especialmente manter-me àdistância do furioso espadarte, que eutemia pudesse andar por ali pronto a dar-nos uma estocada às cegas. Sabendocomo são capazes de atravessar um naviosólido com a sua arma formidável,comecei a sentir-me em cuidados pelasminhas costelas, confesso, e o resto datripulação também se sentia pouco àvontade e sem sono; é que eles sabiammuito bem que uma daquelas espadas eracapaz de atravessar o barquinho daquilha ao convés. Não seria a primeiravez que um navio tinha de demandarporto, com água aberta em consequênciade rombo feito por um espadarte, mas oque eu mais temia era a possibilidade deum de nós ficar pregado ao barco. De uma ocasião, um espadarte atravessoucom a espada o forro exterior, uma sólidabaliza e o forro interior de um navio

baleeiro. Ao descarregar, em NovaBedford, encontraram a espada, umavaliosa rolha não há dúvida, presa aocasco e com a ponta metida por um barrilno porão. . . . . . . . . . . . . . . . .

CAPÍTULO XII Largando do Cabo Frio — Dobrando ocabo de S. Tomé — Mar grosso ecorrentes fortes — Nos alísios — Escolhosperigosos — Entrada inesperada numfundeadouro, numa noite negra etempestuosa — Em Caravelas — Bomtempo — Um temporal — Porto de S.Paulo — Nativos perigosos — Rumo àBaía. No dia 30 de Julho de manhã, depois deuma agradável visita ao Cabo, largámospara o Norte, não sem primeiro termosprocurado algumas conchas que,juntamente com as relíquias do Thetis,constituiriam uma recordação de umamuito grata visita às praias hospitaleirasdo Cabo Frio. Depois de dobrar o Cabo, um dos pontosimportantes da nossa viagem,

comprovadas, em definitivo, asqualidades náuticas do nosso barquinho ecertos, agora, de que já nada tínhamos atemer da peixaria miúda do mar (um dosseus maiores monstros não nosemborcara), seguimos viagem com maiorconfiança que nunca, embora vigilantescontra qualquer acontecimentoinesperado que pudesse ocorrer. Um vento sul fresco impelia-nos, de panorizado, para os alísios mais calmos dostrópicos, mas pela meia-noite rondoupara Este e fez--nos descair muito paracima de terra. «Atenção gente debombordo! Toda a gente ao convés edeita fora dos rizes!», gritei então. Parabarlaventearmos a dobrar o Cabo de S.Tomé tivemos de desfraldar o pano todo,e seguimos voando por cima dos parcéiscom mar agitado e a corrente a nossofavor. Vinte e quatro horas depois do

Cabo Frio, o Cruzeiro do Sul descera trêsgraus sobre o horizonte — navegáramos180 milhas. Enquanto dobrávamos o Cabo, a canoaora se detinha numa crista oramergulhava no cavado da vaga, correndosempre com a corrente de feição até ofarol de S. Tomé se sumir na distância.No dia seguinte o vento acalmou e fez-sede Sudeste; era o alísio. A canoa corriaagora ligeira sobre ondas amigas que aseguiam marulhando ao longo das tábuasdelgadas que separavam a tripulação daeternidade, numa música deliciosa deouvir. Crescia a confiança a bordo dobarco, à medida que nos aproximávamosde casa. Mas quão intensamente sentimos asolidão, uma noite, ouvindo a cançãolúgubre do mar rebentando num bramidoeterno, sobre recifes de coral! Não se

avistava sinal de vida em todo o redor,excepto, talvez, a esteira fosforescente dealgum tubarão faminto, avisando-nos doperigo de uma má companhia e tornandoainda mais sinistro o negrume daquelasparagens. Numa noite fundeámos abrigados asotavento dos extensos recifes chamadosParedes, sem avistarmos a rebentação,muito embora a ouvíssemos não longe, naescuridão. Numa outra noite negra etempestuosa, navegando com todo opano para nos safarmos de terra asotavento, entrámos subitamente emáguas calmas onde fundeámos e ferrámosvelas; passámos a noite naqueleancoradouro de sonho, para descobrir namanhã seguinte que o local se achavarodeado de recifes em que o marrebentava com fúria, por todos os lados aperder de vista, excepto na estreita

abertura por onde tínhamos enfiado, naescuridão. A posição deste porto natural é39° 30' de Longitude Oeste (Greenwich)por 16° 48' de Latitude Sul. Demos aolocal o nome de «Porto Liberdade». As paragens que avistámos depois disso,foram os temíveis Abrolhos e a aldeia deCaravelas abrigada por trás dos recifes,onde fui de novo alestar e onde umagalinha custava mil réis, um cacho debananas quatrocentos réis -, mas umadúzia de laranjas custava vinte réis umcêntimo. Viam-se apetrechos da pesca dabaleia um pouco por toda a parte e noareal estava a carcaça de um dessesanimais, morto havia uns nove dias.Encostado a um barco de bom apresto,estava um pescador grisalho; homem ebarco relíquias de Nova Bedford,dedicando-se por estas paragens à suaactividade familiar. O velho estava

descalço e quase nu, segundo o costumedeste clima. Apesar disso reconheci ovelho pescador e marinheiro sob aquelespoucos trajos e o chapéu de palha («mata-bicho» de burro) que tirou da cabeça numgesto marinheiro ao nosso primeirocumprimento. «Filio do mm do NordAmericano» disse, à maneira deapresentação, apontando para o velho,um nativo gentil que ali estava, logo quesoube que também nós éramos daAmérica do Norte. Procurei saber, dovelho marítimo, porque razão viera dar àcosta em tão estranho local e pareceu-meque havia sido arrastado pela baleia,apesar de todas as informações emcontrário. Depois de escolher fundeadouro bem abarlavento da baleia morta —provavelmente a que vomitou o «velhohomem do mar»! — largou-se o ferro,

içou-se um farol num mastro e tratámosde dormir. Na manhã seguinte, muitocedo, começou o bulício na aldeia; aspirogas já estavam na água, e os milruídos de varas, remos, caixas do isco emuitas outras coisas necessárias à fainadiária, que rapidamente se iamembarcando nas pirogas, faziam ecoarnos palmares a música de uma vidaatarefada e lembraram-nos que eramhoras de levantar ferro e largar para omar. Zarpámos ao som da alegrebarulheira e depressa deixávamos o portopara trás. Enquanto o barco deslizavaveloz, costeando a praia na madrugada,de velas abertas à brisa de terra quesoprava carregada do perfume da florestatropical e das toadas de canções,sentíamos em nós o prazer de velejar, semreceio dos perigos; não havia perigos domar a temer.

Prosseguimos ao longo desta cintura deventos moderados, impelidosalternadamente por ventos do mar e daterra, até uma região de alísios quealcançavam por vezes a intensidade deum pequeno temporal. Por isso não foisurpresa encontrar, após dias denavegação com bom tempo, umatempestade que nos levou a procurarabrigo e a permanecer por dois dias noancoradouro, bem pouco bom, de S.Paulo, a trinta milhas da Baía. Tempo decorrido depois de Caravelas,três dias; distância navegada, 270 milhas. S. Paulo era habitado por algunspescadores, extremamente pobres, cujavida se passava esperando a maréfavorável para entrar ou sair o porto, paralhes pôr as pirogas a flutuar ou para lhesarrastar o peixe para as armações de rede.Com efeito, parecia que a única

preocupação que tinham na vida eraesperar. As casas, de telhadosesburacados, pareciam sorrir pelosburacos deixados nas paredes pelosadobes caídos, como se fossem símbolosda própria mortalidade dos homens. Não encontrámos, neste S. Paulo, outracoisa além de santos. A miserável terrioladeveria ser sistematicamente evitada,excepto como abrigo contra o mau tempo,como ocorreu connosco. Saímos dali àprimeira mãozinha de vento, depois deameaçados por um ataque de um bandode brutos meio bêbados que entraram abordo grosseiramente, pisando eempurrando o que calhava e falando umdialecto que, apesar de tudo, euconseguia perceber. Servindo-me do meuportuguês mal falado, consegui ver-melivre deles e, tendo-os corrido, resolvimantê-los ;à distância. Não me enganava

ao suspeitar de que voltariam e tentariamentrar a bordo. Com efeito, assim foi masnão me demovi da ideia de os manter aolargo. Servindo-me esta vez da suaprópria algaraviada, fiz-lhe saber queestava bem armado; por fim, lá remaramde volta para a praia e assim acabaram asvisitas. Fizemos turnos de vigia durante anoite, e no dia seguinte, 12 de Agosto, demadrugada, metemo-nos ao mar ondeapanhámos uma forte calema, cujocarácter conhecia melhor e me mereciamais confiança que aquele porto denativos perigosos. Chegámos nesse mesmo dia, ainda cedo,à Baía de Todos os Santos (a célebrecidade da Baía), um porto encantador,situado numa região magnífica. Foi desteporto, diga-se a propósito que RoblnsonCrusoé partiu para África em busca deescravos para as plantações que ele e um

seu amigo possuíam. Pelo menos é o quea História conta. Encontramos na Baía vários amigos egente encantadora. Não menos dignas deinteresse são, neste porto, as jovensnegras que se vêem nos mercados e nasruas levando à cabeça cestos de fruta oubilhas de agua em fácil e graciosoequilíbrio, e movendo-se com aquelesnobre que é exclusivo das raparigas decor. . . . . . . . . . .

CAPÍTULO XIII Na Baía — Meditações sobre osdescobridores — Os antilhanos. Na Baía voltámos a alestar o barco,metendo as necessárias provisões ereparando a quilha que, conforme severificou quando se varou a canoa,apresentava alguns estragos provocadospela baleia que encontrámos no CaboFrio. Acrescentou-se então uma falsaquilha de ferro para proveito de qualquermonstro marinho que nela desejasse vircoçar as costas. Entre os vários amigos que encontrámosna Baía, contavam-se o Capitão Boyd efamília, da barca H. W. Palmer. DoPalmer e dos Boyds voltaremos a falar apropósito da viagem. Havia muito quecomerciavam com a América do Sul etinham, neste porto, muitos amigos que

se combinaram para nos tornaragradabilíssima a estadia. O filhito deles,o Rupert, ficou encantado com o«iíiberdade», como lhe chamava, e vinha-nos visitar a cada passo. Também asautoridades do porto se interessarammuito pela nossa viagem e vinham abordo com frequência. Ninguém nospodia ter tratado com maior gen-tileza. O venerando Administradore (1) empessoa, apresentou-nos as boas--vindasde forma especial e, à partida, dirigiu-nosuma palavra gentil, acompanhada de umpresente para minha mulher, na forma deuma flor rara que muito apreciámos,como coisa vinda das mãos de umverdadeiro cavalheiro. Alguns abolicionistas ferrenhos da Baíaconvidaram-nos para uma lauta ceia,para comemorar o nome dado à canoa,nome que fora adoptado por se ter

lançado o barco à água no dia 13 de Maio,data em que todo o ser humano no Brasilpôde dizer: «Não tenho senão umSenhor». Declinei o convite por andarentão ocupado a reforçar o barco contraos terríveis gusanos dos mares queiríamos cruzar, lembrado, como estava,dos apuros que passou o meu grandepredecessor nos mares das Antilhas, porcausa destas e doutras coisas. Estavadecidido a fortificar-me contra o inimigo. Não se deve esquecer que o bomColombo contraiu reumatismo enquantoo almirante e o navio — por este ter sidoatacado por gusanos — se encontravamencalhados, entre selvagens temíveis, erodeados também por um bando bárbaroe ameaçador de compatriotas seus, nãomenos temíveis que os mais ferozescanibais. A situação era crítica, não hádúvida! Uma das calamidades resultou

de vida descansada de mais — o que euestava decidido a evitar — , e a outra foi aconsequência da negligência do pessoalque não cuidou do navio como pertenciaa marinheiros cuidar. Quanto a esta, nãotinha eu riscos a temer. Preguiçosos e bárbaros, e servindo-se dopretexto da religião, os marinheirosinfluenciavam o espírito piedoso do bomalmirante convencendo-o, em cadaaterragem, a mandar dizer missa em vezde limpar o fundo, já bem sujo, do navio.Assim, à custa de intriga e negligência,levaram o chefe ao desastre e à tristeza eespalharam a confusão entre si. Não sepodia esperar que a sua religião — bempouco profunda, de resto — mantivesse ofundo do navio livre do teredo, por issose lhe arruinaram os madeiros esobreveio a desgraça para todos. PobreColombo! Tivesse ele trazido como única

tripulação o filho, Diego, e o nobre irmão,Bartolomeu, sem esquecer a ajuda de umavalorosa mulher, ter-se-ia descoberto aAmérica sem as horríveis cenas demiséria e as calamidades confrangedorasque se seguiram na esteira dos seus falsoscompanheiros. Nem o navio iria menosbem equipado do que ia agora oLiberdade, para navegar no mesmo mar epor entre tantas das ilhas visitadas pelogrande descobridor — e além do mais,navegar sem acidente sério de qualquernatureza e sem doença oudescontentamento a bordo. A nossavantagem sobre Colombo, volto a dizê-lo,era muito grande e resultava não tanto daexperiência e sabença colhidas ao longodos séculos decorridos, como de ter umatripulação unida navegando semdissensão ou murmúrio — navegando nomesmo barco, é o termo (1).

E impossível viajar-se por entre oscenários do primitivo Novo Mundo semque a meditação se aposse do viajante.Imaginar a experiência dos navegadoresremotos era para nós, que seguíamosagora nesta viagem de agradáveisrecordações, qualquer coisa deintensamente excitante. Navegar por entre ilhas vestidas de umverde eterno, as mesmas que Colombocontemplou mergulhado emmaravilhosas previsões e o venerandoLas Casas olhara com piedosa admiração,transportava-nos mentalmente aostempos dos velhos navegadores; equando nos aproximávamos de umlitoral, apossava-se de nós a impressão deque, de um momento para o outro, aodobrar algum promontório próximo,íamos encontrar pela frente as suas naus.Havia nessas ilhas todo o necessário para

despertar a imaginação e o espíritosonhador no mesmo ar perfumado, naatmosfera sonolenta, em que Juan Poncede Leon de bom grado conservaria aeterna juventude, trabalhando lado a ladocom a vida da terra, sempre renovada,mas onde, em vez dela, em breveencarava a morte. Quem queira viverlonga vida nestas terras tem de seguir asleis da grande Natureza. Assim odescobriram o robusto Juan e milhõesdoutros que se lhe seguiram, e assim serásempre. Tudo ali se conserva para dar testemunhodo passado; tudo excepto os primeirosdonos da terra. Esses, ai de mim! ospobres antilhanos, foram extintos há anose anos. Ninguém, com sentimentoshumanos pode ler ou ouvir das torturascruéis e do extermínio dos primitivoshabitantes das ilhas, por muito selvagens

que fossem, sem uma sensação deangústia perante uma página tãodolorosa de uma história de glória ecivilização. . . . . . . . . . . . . . . . . .

CAPITULO XIV Da Baua a Pernambuco — Encontro como Finance, no mar — Em Pernambuco —Dobrando o Cabo de S. Roque — Umtemporal — Na rebentação — Rota paraBarbados — Peixes voadores no convés— Desmastreado — Chegada à Baía deCarlysle. Da Baía a Pernambuco, a nossa rotaseguia a faixa da costa brasileiraconstantemente batida pelos alísios. Nadade especial ocorreu que nos viesseperturbar a paz de espírito ou anavegação, e fomos fazendo força de vela,noite e dia, como já de há muitodesejávamos. O Victor e eu íamo-nos revezando nosquartos, geralmente de quatro horas cadaum. A mais difícil das experiências quesuportámos, navegando com bom tempo,

era a tremenda sonolência que de noite seapoderava de nós enquanto seguíamos deolhos fixos na agulha que oscilava; atémesmo de dia este movimento bastariapara encher de sono qualquer pessoa. Depressa descobrimos a necessidade dearranjar um código de sinais quepermitisse a comunicação entre otimoneiro e o «homem da proa».Conseguimo-lo por meio de um caboligando um ao outro, e os sinaisentendiam-se conforme o número depuxões dados ao cabo; três puxões, porexemplo, significavam «Acorda!»; um,como resposta, queria dizer «Pronto,estou acordado; o que é preciso?» outropuxão do timoneiro era «São 4 horas;muda o quarto», e assim por diante. Mastrês puxões rápidos significavam «Cápara fora, e riza as velas».

O Victor, é claro, devia atar um doschicotes do cabo a um braço ou a umaperna de modo que eu, ao puxá-lo,tivesse a certeza de o acordar ou de oatirar, com alguma sem-cerimónia, dobeliche abaixo. Mas uma vez o nossosistema falhou. Em resposta à minhachamada, veio uma bota na ponta docabo, com tanta facilidade que percebilogo a partida. Não havia dúvida; tratava-se de um plano para aproveitar maisalguns momentos de sono, à custa deuma intrujice feita ao timoneiro. Por este sistema telegráfico, haviatambém um sinal para avisar quetínhamos peixes voadores a bordo — omaná do mar — para juntar e levar para acozinha; era com frequência queaterravam no convés e, com a mesmafrequência, recebiam calorosas boas-vindas.

Nunca foi preciso chamar o quarto derepouso quando se tratava de dar maispano. Quanto a mim, sempre preocupadoem levar a viagem a bom termo e,portanto, em constante estado de alerta,nunca tive de ser acordado. Em boaverdade, posso mesmo dizer que nunca,no mar, dormi tão profundamente queperdesse a consciência do sítio em que meencontrava, e quando calhava cair emsonolência era só para sonhar com obarco e com a viagem. Para a frente!, era a nossa senha no mar,mas enquanto estávamos num porto,gozávamos a estadia e trocávamos oscuidados por repouso e divertimentos deque levávamos um bom carregamentopara o mar, onde iriam recomeçar oscuidados da navegação. Embora fosse possível partir-se ummastro, isso não era coisa que desse

preocupações sérias porque não seriadifícil reparar e arvorar qualquer peça damastreação, num instante e onde querque nos encontrássemos. No terceiro dia depois de sair da Baía,pôs-se um tempo magnífico. Algunspeixes voadores faziam tentativas inúteispara saltar acima da superfície, quase nãodespertando o interesse das gaivotas quecontinuavam pousadas, olhandopensativamente o mar espelhado. O Liberdade fazia o possível paracaminhar naquela calmaria, mas poucoconseguiu progredir. Um bonito peixebrincava na esteira do barco até que,tentado por um terrível apetite pormoscas, acabou por aterrar no convésatrás dum anzol, e daí passou para otacho onde já vários outros tinham idoparar antes dele. Acabámos o pequenoalmoço ainda muito cedo; depois foi um

dia de alegre memória — «o encontro denavios no mar». When o'er the silent sea alone For days and nights we've cheerless gone,Oh they who've felt it know how sweet, Some sunny morn a sail to meet. Sparkling at once is every eye, «Ship ahoyl Ship ahoyl» our joyful cry While answering back the sound we hear, «Ship ahoyl Ship ahoyl what cheer, whatcheer». Then sails are backed, we nearer come, Kind words are said of friends and home, And soon, too soon, we part with pain,To sail o'er silent seas again. Quando sobre o mar silencioso, sozinhosDurante dias e noites tristes navegámos /Oh! os que o experimentaram sabemquão doce e numa manhã de sol avistaruma vela. / Todos os olhos se enchemlogo de brilho / «Navio à vista! Navio à

vista!» é o nosso grito alegre Enquantonos chega ao ouvido o som da resposta /«Navio à vista! Navio à vista! quealegria». / Aquartela-se o pano,aproximamo-nos, / Dizem-se notíciasgratas dos amigos e da terra / E logo,logo em seguida, separamo-nos comtristeza Para seguir de novo sobre maressilenciosos. No horizonte claro avistava-se um navioque depressa concluímos ser o nossorobusto e velho amigo Finance que seguiarumo ao Brasil e navegava quase na nossadirecção. Guinámos logo para lhe cortar aproa. O Finance foi crescendo nohorizonte a olhos vistos, mostrando assuas linhas de inconfundível beleza, comas Estrelas e Faixas ondulando nos topes.De bordo do grande navio acabaram porlobrigar o nosso barquinho e deram sinalpor meio de um toque de sereia, grave,

que veio zumbindo por sobre o mar aindicar que fôramos reconhecidos.Poucos momentos depois paravam asmáquinas e logo veio, pelo porta-voz, apergunta cordial «Precisam de auxílio?»À nossa resposta «Não» levantou-se umcoro de aclamações no convés do vapor,enquanto o Liberdade, cabeceando ebalançando, parecia fazer reverências aonavio. O Capitão Baker, entretanto, nãoesquecendo um luxo muito altamenteapreciado por qualquer marinheiro, tinhamandado passar uma linga a uma barricade batatas — fresquinhas, vindas da terra!Lá as descarregaram num instante para anossa canoa, o que a fez mergulhar maisumas boas polegadas. Passaram-nosainda outras provisões frescas e algunslivros e jornais atrasados. O Reverendo J.Aspinwill Hodge, D.D., que seguia para oBrasil numa viagem de inspecção da

Missão Presbiteriana, tirou uma excelentefotografia da canoa (1). Um cavalheiro passou-nos uma garrafade vinho em cujo rótulo se lia o nome deum velho conhecido nosso, umcomerciante do Rio. Brindámos ao Sr.Gudgeon e a todos os seus companheirosde viagem, e conservámos ainda algumpara beber à saúde do capitão e datripulação do navio. Pouco tempo haviapara falar e, por isso, os cumprimentostrocados foram breves. As valentes chapas do costado do Financeinspiravam confiança na construçãosólida dos estaleiros americanos. Maltivemos tempo de as mirar, já um apitopotente nos dizia «adeus» e o grandenavio começava a mover-semajestosamente, para cedo desaparecerao longe, enquanto o nosso barquinho,fazendo cabeça com amuras a estibordo,

prosseguia a caminho de casa saboreandoainda a troca de saudações amigas,embora já sob a sensação da solidão quevoltava. Dois dias depois deste agradávelencontro, chegávamos ao porto dePernambuco. (*) Tivemos o prazer de encontrar denovo este cavalheiro durante a viagem,em Barbados, depois em Nova Londres e,finalmente, tivemos o prazer de lhe ouviruma conferência sobre as suas viagens,em Newport, onde vimos, reproduzidanuma parede a própria fotografia doLiberdade tirada pelo doutor no grandeoceano. Correndo na frente de um alísio frescoque se levantara de tarde e acompanhadopor mares largos, bem cadenciados, acanoa dobrou lindamente a ponta entre orochedo do farol e a baliza pintada.

Como de propósito, o vento molhou-nosas velas com a surriada das vagas querebentavam no rochedo, dando-lhesassim uma boa superfície plana para acanoa seguir cingida à bolina. O canal que conduz ao porto já não eraestranho para nós, e por isso seguimosconfiantes costeando a magnífica muralhade origem biogénica, a que Pernambucodeve o seu porto magnífico, e que,estendendo-se ao longo de uma boaextensão da costa, protege o Brasil dainvasão do mar. Às 8 horas da tarde fundeávamos numancoradouro recatado, não longe daAlfândega(1) e na manhã seguinte, muitocedo, recebíamos a visita oficial dasamáveis autoridades do porto. Tempodecorrido depois da Baía, cinco dias;distância navegada, 390 milhas.

Pernambuco, a capital da rica e extensaprovíncia do mesmo nome, é uma terrapróspera, exportadora de produtosvaliosos, principalmente açúcar ealgodão. Em tempos idos, eu próprioembarcara aqui ricos carregamentos. Cáencontrei o meu velho mercador, masdesta vez não lhe pude meter asmercadorias no Liberdade. Apesar disso atripulação refrescou-se com a fruta dosseus pomares e um belo passeio por entreo arvoredo, preparando-se assim para aviagem até Barbados, que íamos iniciarsem tardança. À saída de Pernambuco encontrámosuma forte corrente a nosso favor àmistura, por vezes, com um mar detravés, muito confuso, que nosenxovalhava consideravelmente. Mas acorrente que nos fazia avançarvelozmente, compensava-nos de sobra de

todos os desconfortos, muito embora assacudidelas fossem muitas. Ao longodesta faixa da costa brasileira (dePernambuco ao Amazonas), por cada diade bom tempo, havíamos de ter trêstempestuosos, mas o vento soprava defeição, fazendo-nos avançar a uma boavelocidade. A meio caminho, entre o Cabo de S.Roque e o Amazonas, o vento que haviadois dias, vinha soprando rijo de E. S. E.,levantando um mar cavado e curto,espertou até à força de um temporal,arrasando as vagas e enxovalhando obarquinho mais do que nunca. A coisaestava-se tornando monótona e esgotante.Para evitar então aquele feio mar detravés ao longo da corrente, resolvichegar-me mais à terra, e para lá fiz umbordo. Foi um erro; ainda não tínhamosandado muito, quando uma repentina

subida da canoa, seguida de uma corridaanormalmente longa no cavado de umavaga, nos revelou um perigo em que malnos atrevíamos a acreditar; depois a vagagigantesca quebrou, mas quis aprovidência que ela rebentasse semalcançar o barco que, com pouco pano, iadeslizando a grande velocidade. Estávamos sobre um baixio em que o marrebentava desde o fundo! Uma segundavaga monstruosa avançou para nós,crescendo, crescendo como umamontanha de água a que faltasse umsuporte e pareceu deter-se por uminstante antes de cair, apenas para secertificar de que nos iria apanhar na suafúria destruidora. Pus o leme de contra; isto, e rezar, eratudo quanto podia fazer. Com o lemecarregado, a canoa guinou, proa aoperigo, enquanto nós, com a respiração

cortada pela ansiedade, nospreparávamos para fazer face ao queviesse a acontecer, o melhor quepudéssemos. Antes de termos tempo paradizer «Salva-nos, Senhor, ou perecemos»,a vaga quebrou com força aterradora epassou por nós, deixando-nos a tremernas Suas mãos, mais indefesos que nunca.Outras vagas avançavam já correndodesenfreadamente, quebrando com sanhadestruidora; e como rugiam sobre oscachopos! Vinha-me ao nariz o cheiro doslimos do fundo, quando a vaga quebrava!Sentia na boca areia salgada! Nesta perigosa situação, mergulhadospor vezes nos escarcéus espumantes,outras vezes sacudidos como uma cascade nós na crista das vagas, lutámos comtodas as forças ao leme e às escotas,folgando ou obrigando-a a avançar comcuidado, ganhando caminho pouco a

pouco para águas mais fundas, até que acanoa acabou por sair do baixio, sacudiuas penas como uma ave marinha elançou-se correndo para as ondas amigas.Só então tivemos tempo e coragem paraolhar para trás. Que espectáculo extraordinário! Ohorizonte iluminava-se com afosforescência da rebentação queacabámos de atravessar. O aguaceiro queencobrira a costa, tinha-se dissipado epodíamos avistar, atrás de nós, todo ocampo dos perigos. Num ponto em que avaga quebrava sobre um rochedo à flordas águas, formava-se um halo de ondepartia um feixe de luz que chegava aoscéus. Foi este o maior perigo por quepassámos. E foi a elasticidade da canoa,não o seu tamanho, que a salvou de umaperda certa. As madeiras leves e flexíveis,

e a flutuabilidade do bambu é que aadriçaram uma e outra vez entre apavorosa rebentação. Estávamosespantados com os feitos maravilhosos donosso barquinho. Fatigados, exaustos pela ansiedade, logoque nos safámos do baixio, guinámospara o largo com o pano rizado e todosnos deitámos a repousar até à madrugadaseguinte. Então, demos de novo a popaao vento, largámos todo o pano que acanoa podia aguentar e seguimos a bomandamento, com vento de feição emborasoprando muito rijo. Apesar de tudo, otempo parecia-nos agora belo eagradável, porque agradáveis eram osnossos pensamentos. Depois de seescapar de uma terra de sotavento,qualquer tempo que o barco possaaguentar é tempo agradável — embora

possa haver tempo mais agradável queoutro. Depois de uma tão impressionanteexperiência, o que mais podíamos desejarera mar largo e vento de feição em boaquantidade. Toda a tripulação eraunânime a este respeito. Por isso fiz rotabem ao largo para me conservar àdistância de todos os perigos da costa. A terrível tempestade tropical dosúltimos dias foi esmorecendo até setornar num alísio bonançoso e a canoavoltou a deslizar veloz sobre marescalmos. Também a nossa agitação se foi, epassámos a navegar livres depreocupações. Ventos suavestransportavam-nos agora por sobre ondasdelicadas, e de bom grado contaríamosapenas belos dias daí para diante,deixando atrás de nós a lembrança dosdias de temporal. Assim velejámos dias e

dias, sempre animados por estaesperança; nunca nos sentimos abater,antes pelo contrário, a boa disposiçãocada vez mais nos fazia esquecer da tristesituação e dos infortúnios a que fôramoslevados em praias estranhas. Quando, aoanoitecer, se mostrava no Céu umaestrela, recebíamo-la como a um amigonosso e conhecido dos nossos velhosamigos. Quando já todas as estrelasbrilhavam no firmamento, aquela hora nomar era alegre, luminosa, encantadora.Welby via, ou imaginava, um dia comoaqueles que experimentámos nos alísiossuaves, transparentes, quando escreveuas belas linhas: The twilight hours like birds flew by, /As lightly and as free, / Ten thousandstars were in the sky, / Ten thousand onthe sea. / For every rippling, dancingwave, / That leaped upon the air, /Had

caught a star in its embrace, / And held ittrembling there. As horas do crepúsculo voaram comoaves / Leves e livres / Havia dez milestrelas no Céu / E dez mil no mar/Porque cada onda murmurante, bailando, Que se ergueu no ar / Colheu uma estrelano seu abraço / E conservou-a consigo, atremer. «Os dias passam, e o navio voa célere nasua derrota». Enquanto navegávamos nas vizinhançasdo Equador, durante vários dias,podíamos observar as constelações dosdois hemisférios, mas à medida queavançávamos para o Norte, asconstelações austrais, com o Cruzeiro doSul — a mais bela de todos os céus —foram dando lugar a outras mais amigas. Era com todo o pano aberto à alegre brisa,que íamos deixando as constelações

meridionais a caminhos das do Norte eneste agradável velejar fomos seguindosem um momento de desânimo, e semnunca descrer do piloto ou do barco. Uma noite apareceu-nos um fantasma domajestoso Aquidneck correndo, de velascelestes içadas roçando ao de leve asestrelas. Nenhuma outra aparição nosimpressionaria mais que esta bela visãofugidia, tão semelhante ao Aquidneck,deslizando rápida e imperturbável dequalquer missão em terras estranhas — etambém a visão navegava com rumo àPátria! O incidente do fantasma do Aquidneckque nos apareceu à meia--noite sobre omar, fez-nos sentir por momentos atristeza da nossa solidão. Mas no dia seguinte, um pombo correioveio poisar no tope do mastro, como paranos dizer que ainda tínhamos um amigo!

Bem-vindo, mensageiro dos bonspresságios! Trazes contigo pensamentosdos anjos! O amável visitante ficou connosco doisdias, levantando e tornando a poisar, masfoi-se embora ao terceiro, quandopassávamos ao largo da Ilha de Avis, aqual talvez fosse a terra do seu destino. Asua vinda do Leste, e a partida para Oesteem direcção à ilha, trouxe-nos à ideia abalada «O Último Flibusteiro», desse belocantor que era Kingsley: If I might but be a sea dove, I'd fly acrossthe main / To the pleasant Isle of Avis, tolook at it once again. Se eu pudesse ser um pombo marinho,voaria cruzando o mar largo / Para a belaIlha de Avis, para a ver uma vez mais. Poderia ser talvez o velho flibusteiro, maspreferimos tomá-lo pelo passarinho — o

que era mais provável — que poisa nostopes para guardar o pobre «Jack». There's a sweet little cherub that sits upaloft, / To look out for a berth for poorJack — Dibdin's Poems. Há um doce querubinzinho que poisa nostopes / Buscando um ancoradoiro para opobre Jack. Uma mariposa que veio trazida pelovento por sobre o mar, encontrou abrigo eboas-vindas no nosso barco. Quanto aopombo, prestámos-lhe adoração intima-mente. Com a maior confiança no barco,confiança ganha em vários incidentesemocionantes, navegávamos agoraconstantemente forçando a vela, fizessevento rijo ou galerno e por isso a canoamuitas e muitas vezes levantava grandesbigodes ao singrar, o que muitocontentava os navegantes. Pensando um

dia que se podia largar mais pano nomastro, que já ia bem vergado para vantecom a vela que levava, cometemos o errode ir cegamente atrás do nosso desejo, e,de tanto pano que demos, o mastrogrande foi pela borda e o traquete caiupara cima da proa. Mastros, retrancas evelas baloiçavam-se ao lado do barco,como asas quebradas, mas depressaforam colhidos e metidos a bordo. Omastro grande, que se partira, foiemendado e reforçado com umaarreatadura, à maneira das talas que osmédicos aplicam a um membro partido. Em poucos momentos tínhamos osmastros de novo arvorados e prontos aaguentar pano como até aí; e o barcometeu ao caminho singrando veloz comoantes. Fizemos nesse dia, cento e setenta ecinco milhas, uma das nossas melhoressingraduras.

Aqui declaro que a minha mulher nuncadevia ter gritado «Mais vela! mais vela!»quando toda a gente podia ver que acanoa já levava todo o pano queconseguia aguentar! Até alcançarmos a ilha de Barbados nadamais aconteceu que quebrasse a rotinadiária. Com frequência, durante a noite, opeixe-voador chocava com as velas empleno vôo, abastecendo-nos assim combastantes fritadas saborosas. Enquantonavegámos na zona dos alísios, istoacontecia diariamente. Não é brincadeiranenhuma ser atingido por um destespeixes em vôo, especialmente se seapanha com ele na cara, caso em que écerto ficar-se com uma valente equimoseou mesmo com um olho preto. Com acabeça dura que tem, o peixe voador é naverdade um projéctil de temer durante anoite. De dia nunca cai a bordo. Também

o espadim veloz é um perigo de temer denoite, nos trópicos, mas encontra-sesobretudo no Oceano Pacífico; por isso osilhéus dos mares do Sul abominam viajardurante a «estação do espadim». Quanto ao voo destes peixes, diria que odo peixe-voador não ultrapassa unsquatro metros e meio de altura e unsquatrocentos e cinquenta metros decomprimento, mas com maior frequêncianão alcança sequer metade destasgrandezas. O espadim, que mais pareceuma flecha disparada de um arco,felizmente para os marinheiros nãoconsegue saltar muito alto nem alcançatão grandes distâncias como o peixe-voador, ficando-se pelos setenta e cincometros nos dias em que está de melhordisposição para saltar. Dos muitos peixes velozes que sulcam osmares, o golfinho é talvez o mais

extraordinário, e a sua bem conhecidabeleza é qualquer coisa de notável.Apanhámos alguns destes corredoresdurante a viagem, mas achámo-los durose mal saborosos, e a despeito dos elogiosque lhe têm feito certos gastrónomos,acabámos por deitar fora aquelaembrulhada. Talvez que os que arpoámosnão fossem senão piratas do Mar Tirreno,«transformados em golfinhos» nos diasde antanho. No 19.° dia depois de largar dePernambuco, de manhã cedo, tínhamosBarbados à vista pelo Oeste. Apareceramprimeiro as montanhas azuladas, férteis,e depois os campos verdejantes,salpicados de casas brancas que seestendiam entre sentinelas gigantes, osvelhos moinhos de vento, quase tãovelhos como as montanhas. Barbados é ailha mais atraente das Antilhas e navegar

em torno da sua orla de coral verde ésimplesmente encantador. Seguimos nobordo da terra, bem a barlavento, enavegámos ao longo da rebentação paradar uma olhadela a todo o magníficopanorama. Ao meio-dia, dobrámos oextremo Sul da ilha e entrámos da Baía deCarlysle, completando assim a rota desdePernambuco em dezanove dias. Isto davaconsideravelmente mais que cem milhaspor dia; como a distância navegada forafrancamente aumentada com a rota queseguimos pelo largo, a coisa andaria por2150 milhas. . . . . . . .

CAPITULO XV Em Barbados — Mayaguez — Cruzandoos bancos das Bahamas — A corrente dogolfo — Chegada à costa da Carolina doSul. Logo que chegámos, vários amigos econhecidos de velha data vieram-nos ver,todos eles cheios de curiosidade peloestranho barco. Enquanto aqui estivemos,o velho amigo Palmer que deixáramos naBaía, entrou no porto para reparaçõesporque tinha partido um mastro,«tentando passar-nos à frente», segundo aversão de Garfield. Por tudo isso, batemo-lo nós por quatro dias. Quem poderáentão dizer que passámos noites e noitesfundeados ou perdemos muito temponavegando abraçados com a terra?Também aqui encontrámos o Condor sobo comando de um velho amigo nosso,

acompanhado da sua simpática esposa ecompanheira que no ano anterior, lado alado com o marido, tinha corrido o riscode um naufrágio num furacão por entreestas ilhas. O encontro com tantos companheiros denumerosas e variadas aventuras tornou aestadia particularmente agradável eacabámos por decidir que aqui ficaríamosaté ao fim da estação dos furacões.Entretanto também um outro amigo, oFinance, demandou o porto mas ao fimde poucas horas fazia-se ao mar, com ocorreio, a caminho de casa. Os belos dias em Barbados, com todo oseu encanto, voaram ligeiros e, no dia 7de Outubro, seguimos viagem dandoainda à estação dos furacões umavantagem de oito dias. A estaçãoconsiderava-se terminada no dia 15.

Ao passar para o Mar das Antilhas, porentre as ilhas do arquipélago, iniciava-seum novo período da viagem. As velas doLiberdade enchiam-se com brisasbonançosas enquanto navegávamos sobremares calmos, esquadrinhandoavidamente com o olhar cada ilha queíamos avistando, detendo-nos em cadauma, em pensamento, como em terrasagrada dos ilustres descobridores —nessas ilhas que se conservavam tal comoos descobridores as viram! Também asaves de «rara plumagem» aqui estavamainda, voando de ilha para ilha, tal comoos descobridores as viram; e o mar rico depeixes dos mais belos matizes, dando aoquadro um encanto não menosmaravilhoso que o ar e a terra, cá estavapara emocionar o navegante, agora talcomo então. Bastava-nos olhar paravermos os descobridores de antanho.

Fossem aves com barbatanas ou peixesalados, ou mesmo nem uns nem outros, oque os velhos navegadores viram,descobriram no entanto o bastante parase maravilharem e regozijarem. «Montanhas de açúcar, rios de rum epeixes-voadores, foi o que eu vi, mãe»,dizia o filho regressado de uma viagem aestas ilhas. «João», dir-lhe-ia a mãeenlevada, «deves estar enganado acercados peixes; não me mintas, João.Montanhas de açúcar, viste-ascertamente, e até rios de rum, meu filho,mas peixes-voadores não podia ser». E noentanto os peixes lá estavam. Entre as ilhas mais curiosas que seavistaram durante a viagem pelo Mar dasAntilhas, a mais notável foi a de SantaCruz, a ilha famosa pelas suas mulherescorajosas, resolutas, dos dias idos, que,enquanto os maridos estavam ausentes,

defenderam com êxito o lar e atranquilidade contra os invasores cristãose, por isso, passaram a ser olhadas comoselvagens ferozes. De bom grado terialevado comigo um punhado de terra dailha, em memória das corajosas mulheres.Por pequeno que o barco fosse, teríamosarranjado nele algum espaço para umarecordação tão valiosa; mas o alísio quenos impelia para Norte, afastava-nos dailha e tivemos de renunciar ao prazer deabicar às suas praias. Seguindo sempre em direitura,demandámos Porto Rico, a primeira terraque nos ficava na rota depois da Ilha dasMulheres Corajosas, abraçando-nos bemcom os promontórios de Sudeste. A partirdaqui, costeámos o litoral Sul em águascalmas como os de uma lagoa, ao longode um cenário cuja vista valia bem osperigos de dez viagens, e em 12 de

Outubro aportávamos a Mayaguez, nobordo ocidental da ilha, ondedesentorpecemos as pernas emencantadores passeios por entre visõestropicais. Tempo, cinco dias a partir deBarbados; distância, 570 milhas. Foi esta a nossa última derrota por entreos arvoredos das Índias Ocidentais e porisso tratámos de a aproveitar o melhorpossível. «Tão belo porto paramarinheiros, não voltarei a ver!» Asautoridades da terra, amáveis e delicadas,prestaram todas as gentilezas da praxe aoestranha barco piquina. O cônsul americano, Sr. Christie, o cônsuldinamarquês, Sr. Falby, e o bom cônsulfrancês, rivalizaram em tornar a nossaestadia a mais agradável possível. Uns fotógrafos de Mayaguez quedesejavam fazer o retrato da canoa com atripulação no convés, precisamente numa

ocasião em que preferíamos ficar adescansar em sossego sob as sombras, emterra, puseram um negro a bordo parafazer as vezes do capitão. As fotografiasassim tiradas foram parar a jornais deParis e Madrid, que as publicaramjuntamente com referências muitolisonjeiras, mas fazendo notar que ocapitão era um sujeito de belo aspecto,mas «terrivelmente bronzeado»! O negrotinha-se vestido a rigor para a ocasião eda sua figura ressaltava a impressão deuma grande força física de que ninguémse envergonharia, mas teria ficado maisparecido comigo, devo dizê-lo, se otivessem fotografado de costas. Demos longos passeios de carruagem porpropriedades soberbas em Mayaguez.Mas vimos com desgosto que a sombradas tropas tudo cobria, penetrando aatmosfera como se fora um miasma.

De mosquete e sabre, enchouriçados nosuniformes, odiados pelos habitantes edesprezados por si mesmos, os soldadosmarchavam e tornavam a marchar,sabendo que estavam a mais daquelaterra e que os seus dias no Novo Mundoestavam contados. Os filhos das colóniaseram por demais educados e cristãos parase deixarem governar sempre pela espadae pela pistola. No dia 15 de Outubro, depois de três diasde descanso, metemos provisões frescasque chegassem até ao porto seguinte,como costumávamos fazer sempre, efizemo-nos de vela para o Canal dasBahamas. Dobrámos a ponta Este doHaiti, seguindo depois a costear o bordoNorte até ao extremo Oeste da ilha; daquimetemos direitos a Cuba e seguimos-lhea costa até Cardinas e, a partir desteponto, metemos ao largo deixando para

trás as ilhas, com grande desgosto de nãopodermos dar a volta a todas elas. A região a Norte de Cuba éfrequentemente visitada por temporais degrande violência que fazem da ilha umaperigosa terra de sotavento; ali semantinha um centro de previsão dotempo que vigiava principalmente asdirecções de Norte a Noroeste, origemdos furacões. Predominavam, porém, osaguaceiros de outros quadrantes,sobretudo do Este, com fortes rajadas,chuva e trovoadas; havia-os todas astardes, e uma vez ouvidos nunca mais seesqueciam. O ribombar da artilhariaceleste, acompanhado de vivo relampejar,era coisa quase certa durante algumashoras todos os dias; a seguir tudo voltavaà serenidade. As noites que se seguiam a estes violentosaguaceiros, eram sempre claras e

agradáveis e os céus cintilavam deestrelas que nos guiavam familiarmenteno caminho. A tripulação não ardia agora em desejosde demandar qualquer porto antes dechegar às nossas costas, mas impacientepor ver a Estrela do Norte subir nohorizonte, puxava pelas energias emareava o pano para apressar oandamento. Por isso evitámos tocar emNassau, o porto para onde acorrespondência nos vinha sendodirigida. Este desvio no planoinicialmente traçado, foi a única alteraçãoao «contrato de fretamento» em toda aviagem. Não houve nela navegação aoacaso. A menos que o Sol estivesse oculto,faziam-se observações diárias para adeterminação da latitude e da longitude,e os resultados das observaçõesastronómicas eram muito mais rigorosas

do que se possa supor, embora realizadosnuma canoa minúscula. Ao cabo depoucos dias de prática, estávamos aptos afazer uma leitura expedita, aproveitandoo momento em que a canoa trepava àcrista de uma vaga, momento esse emque evidentemente melhor resultado sepodia obter. O posto do observador erasimplesmente a cobertura do rufo, onde oVítor ou eu, escarranchados como sobreum cavalo, tomávamos as «alturas»; e narealidade, muito antes da viagemterminar, tínhamo-nos tornado peritosem observações expeditas. Uma noite, no Canal das Bahamas,quando corríamos na frente de um alísioteso em direcção aos bancos, quedemoravam por Noroeste, fui chamado,durante o quarto de prima, para virdepressa ao convés; o Vítor supunha versinais dos temíveis «nortes». O nosso fiel

barómetro desconcertou-me um tantomas, quando nos aproximámos, descobrique se tratava apenas do reflexo dosbancos no Céu, não havendo, portanto,motivo para alarme. Pouco depois deste episódio, avistava-sepiscando no horizonte o clarão ténue dofarol dos Lobos, a duas quartas pelaamura de barlavento. Como estivesseresolvido tocarmos no Cay, a ilhota emque se encontra o farol, orcei três quartas,deixando assim uma quarta comodesconto para o abatimento, o que não foidemais. Passadas três horas estávamos asotavento do Cay e lançámos ferro poruma braça e meia de água, em bomabrigo. Vimos então por cima da cabeça,num espectáculo de indescritível beleza,o fenómeno que nos surpreendera aocomeço da noite: um mapa dos bancos

fosforescentes nitidamente marcado noCéu. Ferrou-se o pano, içou-se um farol numestai e, aproveitando as três horas queainda faltavam para o nascer do dia,deitámo-nos a descansar. Ao alvorecer, jáa tripulação estava em actividade,preparando-se para abicar à procura deágua, numa boa praia que se avistavaagora muito bem, um pouco parasotavento, e onde a rebentação eramoderada. Sob a base da torre de ferro do farol doCay — o farol que tínhamos avistado domar, a umas 14 milhas — existemcisternas onde se armazenam umas boascentenas de metros cúbicos de água daschuvas. O faroleiro, um robusto nativo deNassau, logo que descobriu o barco quechegava à «ilha», içou a bandeira inglesa

do Board of Trade (1) num mastro que seelevava naquele seu pequeno mundo e,em seguida, veio-nos falar julgando, disseele, sermos marinheiros naufragados. Eéramos náufragos, com efeito, mas nãoem perigo como ele supôs ao içar abandeira em sinal de socorro. Masquando soube da nossa história, olhou-nos com sérias suspeitas, recusou água aoVítor que já tinha desembarcado com osbaldes e disse que o capitão tinha de ir aterra com os papeis para se lheapresentar. Que não recebia aapresentação do imediato. Assim setransformou o desejado amigo nogovernador de uma ilha. Isto divertiu-mea valer e mandei, de volta, recado aoSancho Pança dizendo que em muitasviagens pelas ilhas, era o meu imediatoquem tratava das apresentações àsautoridades, com o que Sua Excelência se

irritou consideravelmente, e começou aandar para cá e para lá na praia, dandopuxões nervosos às calças, enquantoaguardava a minha submissão às leis dailha. Percebi que o Governadorsuspeitava que fôssemos contrabandistase pilhantes de naufrágios, cujos costumesmostrava saber muito bem, se é que, naverdade, não fosse ele mesmo um piratareformado. No entanto, para satisfazer osescrúpulos de Sua Excelência, uma vezque ele era Governador de uma ilha, metios documentos no chapéu e, saltandopara a rebentação, fui a patinhar na águaaté à praia, onde fui recebido como porum rei. (*) A bandeira usada pela marinhamercante inglesa. Tem o «Jack» no terçosuperior do firme, sobre fundo vermelho. O documento que lhe apresentei era oPasse Especial (1); o tal que tinha o

grande selo e estava escrito emportuguês. Ainda que estivesse escrito emchoctàw (2), o Governador tê-lo-ia lidocom a mesma facilidade com que leuaquele. Então olhou para o papel com arentendido e disse «está bem, leve a águaque quiser; é de graça». (*) Uma das muitas línguas faladas pelosíndios da América do Norte. Apresentei um relato minucioso daviagem ao Governador e expliquei a SuaExcelência para onde ficava a «Ilha doRio», como Sua Graça teimava emchamar ao Rio de Janeiro. Conversando acerca de ilhas, que erampara ele todo o Mundo, o Governadornotou com desconfiança a falta de uma sópalavra que fosse, referente a uma ilha,ou pelo menos a uma ilhota; isto, em suaopinião, era uma omissão lamentável,porque certamente Nova Iorque, a que os

documentos faziam referência, estavasituada numa ilha. Prontifiquei-me ajurar, segundo a fórmula barata dejuramento tão familiar aos capitães denavios, que eram autênticos os meuscertificados. «Na ilha não!», exclamoulogo o Governador, «porque não jurarás onome de Deus em vão; está escrito naBíblia!» Manifestei ao Governador o meu altoapreço pelos seus sentimentos pios sobreos juramentos vãos — um princípiolouvável que os próprios chinesesadoptam por sistema — e assegurei-lheque falaria disso, logo que regressasse àminha terra, para que todos quantos porali passassem respeitassem as leis da ilha;então o Governador, muito satisfeito,insistiu para que levasse mais água,fazendo-me notar uma vez mais, que erade graça.

Em poucos minutos, tinha embarcadotoda a água de que necessitava. Arranjeitambém algumas conchas de aurora porintermédio da Senhora do Governador,que aparecera ao nascer do Sol paraemprestar beleza àquele dia; de todas asbelas coisas que trazia no regaçogeneroso, escolhi conchas de aurora, empaga das quais lhe dei — para estragar apoesia — cocos e inhames nodosos ebolorentos. A senhora viera apenas visitar o seusenhor e amo, o monarca de todo oterritório que se avistava. Estavamtambém os três filhos que com ela tinhamvindo de Nassau, em visita, e doisauxiliares do farol. E era esta a populaçãode tão pequeno mundo no oceano. Foi o mais pequeno domínio habitadoque jamais visitei; e, de longe, o maisisolado.

Umas poucas ervas que iam lutando pelavida — e que não chegavam paraalimentar uma cabra — , o farol, a areia eaqueles personagens, era tudo quanto ailha tinha para se ver. Algumas pequenascasas e um mastro de sinais haviamadornado o lugar, mas tinham sidolevados juntamente com um bando degalinhas — os únicos animais da ilha —por um furacão que, pouco tempo antes,passara por ali. Já abastecido de água, e com a minhagente a bordo à espera, apresentei asdespedidas ao poderoso Governador,saudei a rainha da ilha num gestomarinheiro, regressei ao meu pequenomundo e largámos, mais uma vez, rumoao Norte. Enquanto navegámos sobre os GrandesBancos das Bahamas, num mar com atransparência do cristal, podíamos ver,

nos fundos de greda branca, curiososseres vivos; o búzio na sua casa de coresexóticas, a grande estrela do mar decúpula radiada de construção estranha, emuitos outros habitantes dos mares, cujosnomes nem sei. «Os que vão para o mar em navios, vêemas maravilhas do Senhor», escreveu-meuma senhora amiga ao receber algumasdestas curiosidades que fui guardandodurante a viagem, «porque todas estascoisas belas e estranhas são obra das Suasmãos. Quem poderá olhar para elas semsentir o coração elevar-se em adoração?» Qual o marinheiro que não estariadisposto a explorar os abismos do oceanosó para ouvir palavras como estas? E,além do mais, palavras de uma senhora. Dois dias de alegre velejar levaram-nospor sobre os Bancos das Bahamas atéBimini. Daqui até às costas da nossa

América natal ia um salto. O vento tinharondado do Nordeste para Sudoeste, aochegarmos às paragens de Bimini,prometendo-nos uma boa travessia.Lançámo-nos, logo a seguir, na grandeCorrente do Golfo e lá fomos arrastadospelo seu movimento sem fim, fazendo noprimeiro dia, com vento e corrente afavor, duzentas e vinte milhas. Para tãopequena canoa era uma bela singradura.Quando navegava a tão grandevelocidade, na segunda noite, a canoachocou com um tronco de árvore egalgou-o num salto. A falsa quilha partiu-se com o choque mas a canoa sacudiu-a eseguiu muito bem para diante sem ela.Não sofremos qualquer outro estrago nobarquinho, muito embora houvéssemostemido algumas vezes pela sua própriaossatura, antes de deixar este rio oceânicotão agitado. No meio da corrente, onde os

mares, embora grossos, eram regulares,íamos seguindo com um balanço ritmado,largo, e sentíamo-nos bem; mas quandonos aproximámos do bordo da corrente,encontrámos um mar desencontrado devaga curta e cavada, vinda de todas asdirecções, e o movimento do Liberdadepassou a ser tudo menos poético ouagradável. Entretanto, o vento tinharondado para o Nordeste, mesmo peloolho, e como soprasse contra a corrente,levantou um mar mais grosso e confusoque nunca, que nos causou algum malestar. Tivemos também visitasindesejadas a bordo, uma das quais,rebentando furiosamente em cima dacanoa, fez-lhe vergar e ranger todos osmadeiros. Mas eu ia procurandoremediar um pouco o mal, governando àsguinadas.

«Mares assim não podem partir estebarco», diria o nosso jovem arrais, «foiconstruído rijo». Era confortanteencontrar na tripulação este sentimentode confiança no garboso barquinho. Etambém eu me sentia confiante nas suasqualidades náuticas. Apesar de tudo,diminuí o pano e orcei, atento às sotas,para o fazer galear com facilidade osgrandes mares, o melhor que podia. Maso Neptuno iracundo não estava dispostoa deixar-nos com essa simplicidade toda;não passara muito tempo quando umavaga cavalgou o barco, ensopou otimoneiro dos pés à cabeça, e — partidaainda mais estúpida — apagou-nos olume e atirou com o fogão e com ocozinhado para o fundo da canoa,deixando-nos apenas um ensopado parao pequeno almoço! No entanto as coisas

melhoraram pelo dia adiante, e à ceiativemos uma festa grandiosa. Ao princípio da tarde avistávamos terra eentrávamos em águas calmas, o que, sópor si, já era bem uma festa. O que semostrava aos nossos olhos eram colinasda América, que navegáramos milharesde milhas para ver. À medida que nosaproximávamos, surgiram-nos matasricas e extensas, depois prados e aldeias e,por todo o lado, indícios de uma terrapróspera. Verificámos que se tratava deuma região próxima da Baía do Touro, nacosta da Carolina do Sul, e, ao cair danoite, víamos claramente, para o Norte, aluz do farol do Cabo Romano. Como ovento caísse, ao chegarmos à costa, e nossurgisse uma corrente contrária,lançámos ferro por quatro braças defundo a umas duas milhas da praia.

Eram, neste momento, 8 da noite do dia28 de Outubro de 1888, a treze dias deviagem de Mayaguez, vinte e um dias deBarbados, etc. Aqui fica a relação aproximada do tempoverdadeiro e das distâncias navegadas,em milhas marítimas, de porto a porto, aolongo da nossa rota: Dias Distâncias De Paranaguá a Santos 1 150 Santos ao Rio de Janeiro (a reboque doFinance) 3/4 200 Rio ao Cabo Frio 270 Cabo Frio às Caravelas 4 370 Caravelas a S. Paulo 3 270 S. Paulo à Baía 1/2 40 Baía a Pernambuco 5 390 Pernambuco a Barbados 192.150 Barbados a Mayaguez 5 570 Mayaguez ao Cabo Romano 131.300 Total: 53 1/4 5.510

Entrando em linha de conta compequenas voltas que demos, o total dasdistâncias aumentaria sensivelmente.Dizendo, portanto, que o Liberdade fezuma singradura média de 103 milhasdurante 53 dias, ainda se fica bem paraaquém da verdade. Foi esta a viagem feita no barco que noscustou — tirando o trabalho de oconstruirmos — menos de cem dólares.Por esse Mundo fora, falou-se do nossofeito em palavras nada desagradáveis, emvários jornais; e enquanto estivemosfundeados em Washington chegaram aténós alguns deles com encómios em setelínguas diferentes. Tivesse esta minhaconstruçãozinha literária a mesma boasorte que seguiu o Liberdade, bempoderia ir em segurança para muitasterras. Sem esperar, contudo, por tão bomdestino, o relato da viagem foi tão

cuidadosamente construído e, creio eu,tão conscienciosamente, como foi oLiberdade, por uma mão mais habituada,ai de mim! a segurar o sextante que amanejar a plaina ou a pena, e só peloprazer de o construir. Esta explicaçãoviria mais a propósito logo ao princípiodo relato, talvez, mas foi agora que meocorreu, e tal como muitas coisas pormim feitas, num impulso de momento,bem ou mal, ela aqui fica. . . . . . . . . . .

CAPITULO XVI Correntes marítimas — Visita a SouthSantee — No rio Typee — De quarentena— South Port e Wilmington, N. C. —Navegando por águas interiores paraBeaufort, Norfolk e Washington, D. C. —Fim da viagem. Ninguém se sentirá mais surpreso do quenós próprios com o êxito da viagem e avelocidade a que a fizemos. Um dos factores que para isso maiscontribuiu e merece uma referênciaespecial, foram as correntes marítimas, deque já falei, que nos arrastaram no seumovimento amistoso. Muitas são as teorias, entre os filósofos deágua doce, para explicar a razão de serdas correntes, mas na navegação prática,em que o tema se nos depara na suaforma tangível, reconhece-se apenas uma

causa: a acção do vento sobre a água,impelindo as vagas na sua frente. Aolargo, no oceano, o efeito mal se percebe aprincípio; mas os alísios que sopram deuma direcção constante, formando eimpelindo milhões e milhões de vagassem fim, num único sentido, acabam porcriar aquela força motriz poderosíssimaque o marinheiro encontra por vezescomo inimigo que o atrasa, outras vezes,como no nosso caso, como uma mãoamiga que o ajuda ao longo do caminho.São estes os pontos de vista daexperiência prática, sem bases teóricasque pareçam prová-los. Ao amanhecer do dia 29. levantámosferro e fizemo-nos de vela para o Norte.Vento e corrente eram-nos aindacontrários, mas seguimos todo o dia embordos curtos junto à terra, onde o efeitoda corrente menos se fazia sentir. Quando

a noite chegou, encontrou-nos mais pertodo farol do Cabo Romano. No diaseguinte costeámos, bordejando, asotavento dos baixios do Cabo Romano etomámos porto no South Santee, umriacho a Norte do cabo, dentro do alcancedo farol, para ali descansar enquanto ovento não se fizesse mais de feição. Na manhã seguinte, como o vento nãomudasse, levantámos ferro e subimos orio à procura de habitantes com quemfalar; queríamos ouvir outras vozes, quenão fossem as nossas. A pesquisadepressa resultou. Ao dobrar uma pontacoberta de arvoredo, deparou-se-nos namargem uma casa de quinta. Acostei o barco à margem e saltámos emterra, mas mal desembarcámos, como setivesse saído da terra, avançou para nósuma coisa que nos pareceu um bommilhar de cães prontos a devorar-nos.

Nessa altura, saiu de casa uma bonitamulher que fez perceber a todos, emespecial a um rafeiro teimoso, com umapaulada na cabeça, que a nossa visita eraamigável; depois tudo voltou à calma. Obom homem andava ali perto no campo eveio logo ter connosco, acompanhadopelos dois filhos, uns mocetões, quetraziam, como se fosse um brinquedo, umsaco de milho cada um. Os Andersons —era este o nome da família — viviamliteralmente isolados e o mais pri-mitivamente que o coração poderiadesejar. A simplicidade encantadoradesta boa gente cativou logo a tripulação.Ao longo da costa, muitos foram os queencontrámos inocentes do pecado daavareza, mas de todos os homensgenerosos, o Anderson mais velho era opríncipe, sem dúvida.

Tendo comprado umas poucas de coisas aeste bom homem, descobriu-se que elenão tinha troco para a moeda de dólarque lhe dei em pagamento. Garanti-lheque ficava mais que satisfeito, deixando-lhe aqueles poucos cêntimos, porquerecebera mais hortaliças que as quejamais me deram por um dólar emqualquer parte do Mundo. E a verdade éque ficava mesmo satisfeito. Mas oquinteiro é que não estava contente eofereceu-me uma ou duas peles de urso;como eu não as quisesse, e não houvessepor ali com que fazer o troco, não se faloumais nisso e convenci-me de que oassunto tinha morrido. Qual não foi omeu espanto quando à noite — já euesquecera aquilo — o bom homem seofereceu para me levar uma carta para ocorreio, a sete milhas de distância, para«saldar» o troco dos vinte cêntimos do

negócio da manhã! A carta lá foi e nadevida altura lhe recebi a resposta. Não quero dizer que o negócio tivesseficado rigorosamente por aqueles vintecêntimos mas mesmo assim, receio nãoter pago o bastante ao honrado Anderson.Fosse como fosse, sentíamo-nos todossatisfeitos, a conversa animou-se, fez-seuma fogueira ao ar livre e ali estivemosem amena cavaqueira. Aquela boa gente não podia percebercomo os brasileiros libertaram os escravossem uma guerra, e o Sr. Andersonexclamava a cada passo: «Muito bem;sim, senhor; digo-lhe eu. Libertaram ospretos e não tiveram guerra!» «Senhor», disse ele, voltando-se para mimdepois de uma longa pausa, «o senhorsabe que os do Sul foram uns loucos?Tiveram uma guerra e também tiveramque libertar os pretos».

«Sim, senhor, eu estive lá! Acolá, por trásdaqueles carvalhos era a minha casa». «Sim, senhor, também combati e lutei avaler, mas não serviu de nada». Como muitos outros valentes lutadores, oAnderson era também um homempiedoso, vivendo num espírito deresignação que fazia inveja. Os anos que passara na nova quinta, nailha, foram duros e de provaçõesextremas. Os meus infortúniosapagavam-se na sombra quando pensavana vida dura dos Andersons; e aresolução que eu tomara de comprar umaquinta, começou a vacilar e acabou por sedissolver em fortes dúvidas sobre asensatez de um tal rumo. Nesta quinta,tinham começado por criar porcos masdescobriram que não valia a pena porqueos porcos se tornavam selvagens e erapreciso juntá-los com a ajuda dos cães; e

quando os cães os conseguiam juntar,matavam-se e salgavam-se mas o sal nãoos curava e apodreciam a maior parte dasvezes. A empresa foi, assim, abandonadae passaram a arrotear o solo e a fazersementeira, mas os porcos que os cãesnão tinham juntado, vinham de noite edesenraizavam as batatas todas.Resolveram então construir uma sebe.«De acordo», dizia ele, «os rapazes e eufizemos uma que mantinha o gado láfora, mas, senhor, os ratos podiam entrar!Levaram-me toda a batata do chão! Detoda a que eu lá pus e a principalsementeira foi de batatas — não vi nemum rebento!» Como, no ano anterior, osratos tinham deixado as sementeiras paraproveita dos seus parentes — os porcos— era a coisa que mais parecia confundiro espírito do quinteiro. Apesar de tudo«ainda havia trigo no Egipto»; e no serão

familiar, em torno do lenho que ardia,naquela noite, brincava um sorriso deesperança na face do quinteiro ao dizercom profunda convicção que deviamestar gratos por tudo quanto tinham.Aprendemos uma verdadeira lição depaciência com esta família e sentimo-nossatisfeitos por o vento nos ter trazido àsua praia. Dizia o quinteiro: «E veio todo o caminhonesse barco, desde o Brasil! Mulher, e nãovais tu a Georgetown no barco que eu fizporque rareia muito a terra! E eleslibertaram os pretos e não tiveram guerra!Muito bem, muito bem, digo-lho eu!» Talvez não voltemos a encontrar tão boagente como os quinteiros de SouthSantee. Na madrugada seguintedissemos-lhes adeus e largámos na frentede um terral muito fraco que, daí apouco, falecia.

Nesta altura, o vapor Planter que passavaa caminho de Georgetown, deu-nos umreboque até lá. Mas não tivemos o prazerde ver a velha e querida cidade; comotínhamos a bordo uma meia dúzia decocos, uma pequena sobra dosabastecimentos da viagem, um oficial deserviço fez-nos deter na área dequarentena. Como não se permitia aentrada de fruta na Carolina do Sul senãodepois do dia 1 de Novembro, embora jáfosse o dia 1 e estivéssemos no fim datarde, tivemos de ficar essa noite naquarentena, com a promessa de nosconcederem livre prática na manhãseguinte. Mas no dia seguinte não havia nenhumvapor para subir o rio. O Planter, quevoltava de Georgetown, forneceu-nosalgumas provisões frescas que não sepuderam obter na quinta de Santee.

Depois, voltamos para o mar e seguimosbordejando vagarosamente contra ovento e a corrente. Começámos nesta altura a encontrar,como era de prever, aguaceiros deOutono, de violência considerável; o maisduro de todos, apanhámo-lo no baixio deFrying-pan e obrigou-nos a arrepiarcaminho para nos irmos abrigar asotavento do Cabo Fear. South Port eWilmington estavam agora tão perto queresolvemos visitá-los, e duas semanas quese passaram nestes dois portosrefrescaram a tripulação e tornaram-nadesejosa de voltar para o mar. Saindo daqui pelo canal de Corn-cakeevitámos o Cabo Fear e o baixio deFrying-pan, na ideia de nos metermos noscanais costeiros do estado de Carolina e,daí, alcançarmos as águas interiores omais depressa que pudéssemos.

Foi uma boa coisa termos encontrado umvelho e hábil piloto na ria de Corn-cake,que nos guiou ao longo do canal, no seubarco; foi o Capitão Bloodgood, dono doPacket, um barco da cabotagem doalcatrão e algodão da Carolina, dequarenta toneladas de arqueação, cujatripulação era constituída, exclusi-vamente, pelo capitão e pelos dois filhos,um de doze e o outro de dez anos deidade. E foi na tripulação, não no barco,que achei maior motivo de interesse. OBloodgood, quando a maré entrou avazar, deu a voz de comando: «Vamosfilhos, vamos tentar isto!» E lançámo-nostodos na tentativa, com o Packet à testa. Ovento Oeste de refregas que nos iaenchendo o pano enquanto o Liberdadecosteava a praia, com a rebentação junto anós, fez-nos seguir poucas léguas e

depois, sem aviso, rondou para oNordeste e começou a espertar. Como aquilo depressa se tornasse numpequeno temporal, senti-me inclinado aaportar à ria de New River, quedemorava muito perto de nós porsotavento, com um perigoso baixio deareia, de permeio, que havia de exigirmuito cuidado para se transpor. Mas cá fora fazia muito mau tempoenquanto que dentro do porto, podíamosvê-lo, o mar estava calmo; então, a minhagente gritou: «Qualquer porto, numatempestade». Decidi-me logo: carreguei o leme, meti a popa ao vento e a canoa,batida pelo temporal, entrou no portopassando por sobre a rebentação, numacorrida de nos fazer tremer deentusiasmo. Só uma onda entrou a bordoe mesmo essa não fez qualquer mal, alémda última molhadela da viagem. Foi este

o último mar que quebrou sobre a canoa,na sua derrota memorável. O porto adentro da barra de New Riverera bom, e abundava em peixe e caça,com que enriquecemos os luxos de bordo. O Packet que se separara de nós, aportouao seu destino umas três léguas mais paralá. A última vez que vimos osBloodgoods, iam os filhos a caçar a escotado grande, e o pai ao leme, voando naneblina, sem medo, como marinheirosque eram. Depois de conhecer os marítimos daCarolina, para não falar dos poucos queainda existem um tanto mais para Norte,desafio essa história da supremacia dosgregos. A cidadezinha de South Port erahabitada quase apenas por pilotospossuidores de todas as qualidades deum marinheiro e de um fidalgo.

Fundeados na angra, um bom abrigo, eraagradável escutar o rugido da rebentaçãona barra, mas não tão alegre era pensarem fazer frente às grandes vagas ao largo.Veio-nos então à mente a ideia demetermos por uma vala que atravessavaas marismas de New River ao BogueSound (1), e irmo-la aprofundando osuficiente para a canoa passar. A partirdo Bogue Sound podíamos fazer o restoda viagem por águas interiores semestorvos ou dificuldades de qualquernatureza. Com esse plano em vista,começámos a preparar aparelhosimprovisados com que levantar a canoapor sobre os baixos fundos, e pedimosuma pá emprestada a um amigo, capitãode uma escuna, para aprofundar a valaonde quer que necessário, para se poderavançar. Mas os vendavais dominantesde Nordeste tinham feito subir o nível

das águas no extremo ocidental do braçode mar, e as rias e valas estavam cheias atransbordar. Nessa altura acabaram-se ashesitações e, com um vento Oeste rijo emaré cheia, meti pelas marismas direito àvala, disposto a passar fosse como fosse. O «Coast Pilot» (2) referindo-se a estasparagens, diz que nunca por aqui há maisque uns 30 centímetros de água e mesmoestes 30 centímetros só raramente seencontram. Ora, o Liberdade meteu porali apesar do seu calado de 70centímetros, o que mostra que a sortesegue sempre a perseverança, muitoembora por vezes seja má sorte! Não seise me fiz perceber a respeito destaquestão que, na melhor das hipóteses,continuará sendo uma questãocontroversa. Já me começava a sentir desorientado nomeio daqueles lamaçais e valas que,

desde que entrei neles, pareciam seguirem todas as direcções menos na boa,quando avistei perto do barco umcaçador que me informou e me garantiu oêxito. Também não vi homem maisadmirado, em todo o estado da Carolinado Norte, do que este mesmo caçadorquando lhe perguntei se conhecia a valaque seguia para onde eu queria ir. «Ora essa, estrangeiro», disse ele, «foi omeu avô que abriu essa vala.» Pulei de satisfação; mas que melhorpiloto podia eu querer! (*) Os Sounds são braços de mar muitocaracterísticos da costa Este dos EstadosUnidos. Ligados entre si por canaisnaturais ou artificiais, permitem anavegação por águas interiores ao longode muitas centenas de milhas. (*) Corresponde ao nosso Roteiro. É umapublicação que descreve os acidentes da

costa e fornece informações sobre marés,sondas, ventos dominantes, faróis, etc. «Bem, estrangeiro», disse ele em respostaà minha proposta, «se algum homem opode levar por essa vala, ora, posso eu»; eacrescentou, duvidoso, «Nunca ouvi dumbarco do Brasil a navegar por estes lados;mas se você tem de meter por aí, entãomete mesmo. Bem, é mesmo por aqui;você mete e mete mesmo». Depressa se fechou o contrato e o meupiloto entrou a bordo armado de umaespingarda de cano comprido que,enquanto íamos navegando, se revelouum terror para os patos. Entrámos navala, que se encontrava ali mesmo ao pé,ao sabor de uma corrente que nelaenfiava, e não precisei de muito tempopara descobrir que o piloto sabia o queestava a fazer. Deixávamos a um e outrobordo juncais e milheirais, ficávamos por

vezes mergulhados em bunhos queroçavam estalando ao longo do costado, àmedida que a canoa seguia veloz pelavala adiante, sem se deter nosestreitamentos, ainda que à custa de umou outro encontrão nas margens. Emdado momento, ainda no canal coleante,o meu piloto atirou o chapéu ao ar eberrou a plenos pulmões: «Os seus sarilhos acabaram! Diabos melevem se não acabaram! E aí veio você doBrasil todo o caminho, para atravessar avala do meu avô! Muito bem, digo-lheeu!» Pelo discurso, concluí que já tínhamospassado o mais difícil e, com efeito, assimera. Antes do entardecer já o meu pilototinha ido à procura de troco para umanota de cinco dólares, e ao crepúsculoestava a tripulação do Liberdade sentadaem volta de um empadão feito com as

aves que ele abatera durante a viagempelas marismas, e isto depois de um diade travessia em que não prováramos umapitada sequer. O piloto ao regressar,quando o empadão ainda fumegava,declarou-o «melhor que urso». Que agradável travessia foi esta, ao longoda vala «que o avô abriu». Em volta dafogueira do acampamento que armámosjunto de um porto de pesca, juntaram-senessa noite trinta homens que falaramdas suas aventuras. O meu piloto, omelhor orador, manteve a assistência emconstante gargalhada e eu, que aprecioimenso o bom humor, saí dali dorido detanto rir. As aventuras com ursos ejacarés que aqueles homens narraram,eram realmente espantosas. Muitas histórias se contaram. Mas,voltando frequentemente à viagem doLiberdade, todos declaravam que «tinha

sido a maior coisa depois da guerra», oque eu tomei como expressão de amávelhospitalidade. «Quando o barco pegounum baixio de areia», dizia o piloto, «ora,o capitão saltou logo por cima da borda eo filho saltou logo ali também paraempurrar, e a mulher do capitão ajudou». Na madrugada seguinte largávamos doagradável acampamento e, no outro dia,28 de Novembro, chegávamos a Beaufortpelo meio-dia. O «mayor» Bell e vários seus concidadãosesperavam-nos no cais e deram-nos, amim e à tripulação, umas boas-vindas tãocalorosas que nos sentimos como seaquela terra também fosse nossa. «Bem-vindos, bem-vindos a casa!» dizia omayor; «temos lido as vossas aventuras, eseguido com profundo interesse esimpatia a vossa viagem, pelos relatosrecebidos de tempos a tempos».

Soubemos então das preces que se tinhamerguido em terra, por intenção dapequena canoa que andava no mar.Estávamos realmente na América, nanossa casa, pela qual tanto tínhamossuspirado ao longo de milhares de milhaspelo oceano fora. De Beaufort a Norfolk, e daí atéWashington foi um passeio agradável,com ventos de feição e águas calmas.Passou-se o Natal em Chesapeake; quebelo, que delicioso dia foi aquele! Nemum carneiro se via nas águas da baía. Ospatos que nadavam à, frente da canoa,enquanto esta deslizava serena, nem sedavam ao trabalho de levantar com umabrisa tão leve; limitavam-se a afastar-se,quando o barco se aproximava, meio aremar, meio a voar, mantendo-se fora doalcance de um tiro de espingarda. Mascomo tínhamos embarcado, no último

porto, um peru de não pequenasproporções de que fizemos um assado na«cozinha» de bordo, bem podíamos olharpara os patos sem que nos viessem ganasde os matar. Com este peru e umempadão de ameixas gigantesco,conseguimos fazer uma grande ceiamesmo no pequeno Liberdade. Dos muitos Natais que me vêm àmemória; de dias passados no mar ou emportos longínquos, segundo os destinosde um marinheiro — de todos eles, seriabem difícil dizer qual foi o mais alegre.Mas de uma coisa estou certo, é que oNatal que se passou a bordo doLiberdade na baía de Chesapeake não foio menos feliz de todos. No dia seguinte encontrava-nos noPotomac com o mesmo tempo risonho e aalegria da véspera. Ventos de feiçãolevaram-nos rio acima; e a mesma boa

sorte que assistira ao barquinho atravésdas tormentas, seguiu-o até ao fim daviagem que terminava em dias amenos eensoalhados. No dia 27 de Dezembro de 1888, umabrisa do Sul levava-nos ao porto deWashington, D. C, onde amarrámos paraa invernia, ferrámos as velas eaduchámos os cabos, depois de umaviagem de alegrias e preocupações,coroada finalmente por prazeres que nosfariam esquecer os desgostos passados. Depois de amarrar o Liberdade e de lhedobrar as abitaduras, só me resta dizerque tendo com ele passado pelos perigosde uma viagem nos trópicos, passando asalvo por recifes, baixios, mares de rolo etodas as tormentas sem um únicoacidente sério de qualquer natureza,aprendemos a amar a canoazinha o mais

que se pode amar uma coisa feita pelamão do Homem. Dizer que não tivemos um momento dedoença durante toda a derrota, ainda nãoé contar a história toda. A minha mulher,suficientemente corajosa para arrostarcom os piores temporais, como tantasvezes o são as mulheres no mar ou emterra, não só gozou de perfeita saúde,como até ficou com melhor aspecto. OVictor descobriu, no fim da viagem, quecrescera uma polegada e que nuncaperdera a presença de espírito. O Garfield— bem, esse também cresceu algumacoisa — continuou a ser um bomrapazinho e aguentou-se semprelindamente, fizesse bom ou mau tempo.Era ele quem estava à proa a receber aretinida para amarrar, no momento emque o Liberdade acostou ao cais no termoda sua viagem. Quanto a mim, finalmente

(como deve ser), perdi algumas libras depeso mas, tal como os restantes demandeio porto em plena saúde. No fim de contassó as recordações agradáveis da viagemficaram conosco. Com todas as suas vicissitudes, não possodeixar de amar a vida do grande mar enão lamento a escolha da minhaprofissão. Mas chegou o momento dedesembarcar do Liberdade, amarradoagora ao cais onde o deixo por algumtempo; e a minha gente, essa, está poragora em porto seguro. . . . . . . . .

O ÚLTIMO PORTO DO LIBERDADE Em meados de Abril, o Liberdade largouas amarras da doca de Washington e,abrindo as velas a um vento rijo do Oeste,desceu o Potomac com a mesmafacilidade com que o subira emDezembro com o vento Sul pela popa;depois deitou para Nova Iorque,passando por Baltimore e Filadélfia,numa viagem que foi uma autênticaexcursão de recreio. A Primavera dava atoda a paisagem um aspecto da maiorbeleza, e os viajantes sentiam que asnossas florestas do Norte nada ficavam adever em encanto às «tonalidadestropicais» dos climas exóticos. E até ocanto do pintassilgo soava com maisdoçura aos ouvidos dos tripulantes, que oescutavam agora na terra amada. De Nova Iorque, o Liberdade seguiu paraBoston, por Nova Londres, Nova

Bedford, Vinha da Marta, Newport eTaunton; nesta última localidade foi postaem seco e, daqui até Boston, a tripulaçãogozou a novidade de «navegar por terra». Em Boston fundeou-se o Liberdade embom abrigo e a tripulação passou oInverno entre amigos. Encontrámos aqui,por esta altura, o homem que, em BuenosAires, aconselhou o capitão a deitar aomar o carregamento de forragem; por nãolhe ter seguido o conselho, ai de mim! foitestemunha das minhas desgraças. Finalmente, ao regressar a Primavera,alestou-se o Liberdade e levou-se pelocaminho inverso até Washington onde,depois de chegar em boa ordem, irápassar a velhice na InstituiçãoSmithsoniana — um ancoradoiro dehonra que muitos gostarão de saber queele ganhou. .

. . .

SEGUNDA PARTE SOZINHO À VOLTA DO MUNDO

Àquele que disse: «O Spray há-de voltar».

CAPITULO I Uma família da Nova Escócia comtendências yankees — Amor precoce pelomar — Senhor do navio Northern Light— Perda do Aquidneck - Regresso doBrasil na canoa Liberdade — A oferta deum <navio> — A reconstrução do Spray— Difíceis questões sobre finanças ecalafeto — O bota-abaixo do Spray. Na bela terra da Nova Escócia, provínciamarítima, existe uma cordilheirachamada North Mountain que domina,por um lado, a Baía de Fundy e, poroutro, o vale fecundo de Annapolis. Naencosta Norte da cordilheira cresce ovigoroso spruce, um excelente lenho paraconstrução naval, de que se têmconstruído muitos navios de todos ostipos.

As gentes desta costa, vigorosas e sólidas,são inclinadas a fazer comércio por esseMundo fora e nada há a objectar contraum capitão de navio, se o lugar denascimento registado no seu certificadofor a Nova Escócia. Nasci numa terramuito fria, na frigidíssima NorthMountain, num dia 20 de Fevereirogelado, mas sou cidadão dos EstadosUnidos — um yankee naturalizado, sepodemos dizer que os da Nova Escócianão são yankees no sentido estrito dapalavra. Nos dois lados da minha famíliahavia marinheiros, e se algum Slocumnão andava a navegar, era dado, pelomenos, a construir modelos de barcos e apensar em viagens. O meu pai era ogénero de homem que se naufragassenuma ilha desabitada, havia de acharmaneira de voltar para casa desde quetivesse à mão uma navalha e encontrasse

uma árvore. Era um bom julgador debarcos, mas a velha quinta barrenta quequalquer calamidade tornou sua, foi paraele uma âncora. Não temia um vendavale nunca se sentou numa cadeira de costasnum piquenique ou numa festacampestre dos velhos tempos. Quanto a mim, o mar maravilhosoenfeitiçou-me desde os meus primeirosdias. Aos oito anos já eu andava comoutros rapazes nas águas da baía, comtodas as probabilidades de acabarafogado. Era ainda um catraio quando fuipreencher o importante posto decozinheiro a bordo de uma escuna depesca; mas não fiquei muito tempo nacozinha porque a equipagem amotinou-seà vista do meu primeiro empadão ecorreu comigo sem me dar aoportunidade de brilhar como artistaculinário. A etapa seguinte, a caminho da

felicidade, encontrou-me entre a gente daproa num grande navio em viagem parao estrangeiro. E assim cheguei, por cimada proa e não pelas vigias da câmara, aocomando de um navio. O meu melhor comando foi o domagnífico navio Northern Light, de queera co-proprietário. Tinha razão para mesentir orgulhoso dele porque por nessaaltura - ao redor de 1880 - era o mais belonavio americano a navegar. Depois dissocomprei e comandei o Aquidneck, umabarca que de todas as obras humanas meparecia a que mais se aproximava daperfeição e da beleza, e, quanto avelocidade, quando o vento soprava nãoficava a dever nada aos vapores. Já tinhavinte e cinco anos de capitão de naviosquando abandonei o convés doAquidneck, na costa do Brasil onde ele seperdeu. A viagem de regresso a Nova

Iorque fi-la, com a família, na canoaLiberdade, sem acidente. Todas as minhas viagens foram paralonge. Naveguei como fretador ecomerciante principalmente para a China,Austrália, Japão e entre as Ilhas dasEspeciarias. O meu género de vida nãoera de molde a fazer-me desejar lançaramarras à terra, cujos costumes e modosde viver tinha, por fim, quase esquecido.E assim, quando os tempos se tornaramdifíceis para os veleiros mercantes eprocurei abandonar o mar, que haveriapara um velho marinheiro fazer? Nascerae criara-me ao vento e estudei o marcomo talvez poucos o tenham estudado,desprezando todo o resto. A seguir àatracção das viagens, vinha para mim aconstrução naval. Desejei tornar-memestre nas duas profissões e, em pequenaescala, com o tempo acabei por consegui-

lo. Nos conveses de valentes navios, nostemporais, calculava mentalmente otamanho e as formas do género de naviomais seguro para todos os tempos e todosos mares. Por isso, a viagem que vounarrar foi o resultado natural não apenasdo meu amor pela aventura, mas tambémda minha experiência de uma vidainteira. Num dia dos meados do inverno de 1892,em Boston, onde por assim dizer, foraarrojado à costa um ou dois anos antes,andava eu a cogitar se devia pedir umcomando para voltar a ganhar o meu pão no mar, ou se devia ir trabalhar para oestaleiro, quando encontrei um velhoconhecido, um capitão baleeiro, que medisse: «Vem a Fair-haven e dou-te umnavio. Mas precisa de alguns fabricos».As condições, quando o capitão masexplicou, pareceram-me mais que

satisfatórias. Incluíam toda a ajuda deque eu precisasse para aparelhar o naviopara o mar. Dizer apenas que me sentisatisfeito, seria dizer muito pouco,porque já tinha descoberto que nãoconseguia arranjar trabalho no estaleirosem primeiro pagar cinquenta dólares auma sociedade e, quanto a navio paracomandar, já não os havia para isso.Quase todos os nossos navios de altosmastros tinham sido desarvorados eandavam a carregar carvão de porto emporto, indecorosamente rebocados pelofocinho, enquanto muitos valorososcapitães se retiravam para o Porto deAbrigo dos Marinheiros. No dia seguinte demandei Fairhaven, emfrente de Nova Bedford, e descobri que omeu amigo me pregara qualquer coisacomo uma partida. Tinha estado sete anosà espera de a pregar. O «navio» era afinal

um cúter muito antiquado, chamadoSpray, que a vizinhança declarava tersido construído no ano 1. Estavacarinhosamente escorado, num campo acerta distância da água, coberto comlonas. A gente de Fairhaven, quase nãopreciso de o dizer, é poupada eobservadora. Durante sete anos tinham-seinterrogado: «Que irá o capitão EbenPierce fazer do velho Spray?» No dia emque apareci, o rumor correu célere:alguém viera finalmente e estava atrabalhar no velho Spray. «Vai parti-lopara lenha, creio eu». «Não; vaireconstruí-lo». Grande foi o espanto.«Valerá a pena?» era a pergunta a que,durante um ano, ou mais, respondiadeclarando que havia de fazer com quevalesse. O meu machado abateu um robustocarvalho, ali próximo, para a quilha e o

quinteiro Howard, por uma pequenaquantia, transportou--me este e outrosmadeiros para a ossatura do novo barco.Armei uma caixa de vapor e de umapanela fiz a caldeira. Como os madeirospara as balizas fossem peças novasdireitas, dava-lhes a espessura devida,punha-as ao vapor até se tornaremmaleáveis e depois vergava-as contra ummolde onde ficavam até ganharem aforma devida. Todos os dias se via coisapalpável a atestar o meu trabalho, e osvizinhos tornavam a tarefa agradável. Foium grande dia no estaleiro do Sprayquando se colocou e cavilhou a roda deproa para a nova quilha. Vieram capitães baleeiros de longe para aver. Unanimemente, declararam-na «A 1»(1) e, na sua opinião, «capaz de quebrargelo». O mais velho dos capitães apertou-me a mão calorosamente quando instalei

as buçardas, e declarou não ver razãopara que o Spray não houvesse de «cortarem direitura» mesmo ao largo da costa daGroenlândia. A muito apreciada roda deproa foi tirada do topo de um carvalho damelhor qualidade; mais tarde, partiu emdois um cachopo de coral sem ficar comuma beliscadura. Melhor madeira paranavios que o carvalho branco é coisa queestá para nascer. As buçardas, bem comoas balizas, foram feitas desta madeira evergadas ao vapor até à forma desejada.Estávamos em pleno mês de Marçoquando comecei o trabalho a valer, masmesmo assim havia sempre muitosinspectores para me ajudar com os seusconselhos. Sempre que um capitãoaparecia à vista, apoiava-me ao cabo daenxó e cavaqueava por um bocado. Nova Bedford, o porto dos capitãesbaleeiros, está ligada a Fairhaven por

uma ponte e o passeio faz-se bem. Pormim, nunca eles apareciam comfrequência demais no estaleiro; foram assuas histórias admiráveis da pesca dabaleia no Árctico que me convenceram apôr dois jogos de buçardas no Spray, demodo que ficasse capaz de quebrar gelo. As estações passaram depressa enquantotrabalhava. Mal instalei as balizas nobarco, já as macieiras estavam a florir.Pouco depois vinham as margaridas e ascerejeiras. Perto do local onde o VelhoSpray estava renascendo, repousavam ascinzas de John Cook um venerado padreperegrino, por isso o novo Spray nasceusobre terra sagrada. Do convés do barco,podia estender o braço e colher cerejasque cresciam sobre a campa. O forro exterior do novo barco, quepouco depois comecei a assentar, era depinho da Geórgia, de polegada e meia de

espessura. A operação de colocar otabuado foi morosa, mas uma vezassente, o calafeto foi fácil. Os bordosexteriores das costuras ficaramligeiramente abertos para receber ocalafeto, mas os bordos interiores ficaramtão apertados que através deles nãopassava um raio de luz. Os topos dastábuas foram pregados com parafusos eporcas que os apertavam para as balizas edeles também não havia nada a dizer.Utilizei noutras partes do barco o mesmosistema de parafusos com porca, queatingiram um total de cerca de ummilhar. A minha ideia era fazer um barcosólido e robusto. Ora, há uma lei nos Lloyds que diz que oJane que ficar depois de reparado, aindaque todas as peças sejam inteiramentesubstituídas por novas, continua a ser oJane. O Spray mudou de corpo tão

gradualmente que era difícil dizer-sequando morreu o velho ou o novonasceu; mas isso também pouco importa. (*) «A 1» é a mais alta classificação dosLloyds, atribuída a uma construção. Construí a borda falsa com cabeços decarvalho branco de trinta e cincocentímetros de altura, revestidos comtábuas de pinho branco de doiscentímetros de espessura. Os cabeços,emechados através de entalhes numatabica de cinco centímetros de espessura,foram calafetados com cunhas delgadasde cedro. Mantiveram-se perfeitamenteestanques desde então. O convés foi feitode pinho branco, em tábuas de quatro porsete centímetros e meio, pregadas paravaus de quinze por quinze centímetros,de pinho amarelo ou da Geórgia,afastados de noventa centímetros.

As superstruturas ficaram, uma sobre aantiga escotilha principal, de 1,8 por 1,8metros, para uma cozinha, e a outra, à ré,com uns 3 por 3,6 metros, para a cabina.Elevavam-se ambas uns noventacentímetros acima do convés e tinhamprofundidade, no interior do casco, paraeu poder ficar em pé à vontade. Nosespaços ao longo dos lados da cabina, sobo convés, arranjei um beliche para dormire prateleiras para arrumações miúdas,não esquecendo um lugar para a caixados medicamentos. No porão de meianau, quer dizer, no espaço entre a cabinae a cozinha, sob o convés, havia espaçopara armazenar água, sal, carne, etc, àvontade para muitos meses. Acabado o casco do barco, tão fortequanto a madeira e as pregaduras opodiam fazer, e divididos os espaçosinteriores, lancei-me ao trabalho de

calafetar o navio. Grandes receiospreocuparam alguns, pensando que nesteponto eu falharia, e eu mesmo cheguei apensar se não seria mais aconselhávelpagar a um calafate profissional. Aprimeira martelada que dei no algodãocom o macete e o ferro, e que a mim mepareceu muito bem dada, a muitos outrospareceu mal. «Vai cuspir!» gritou-me um homem deMarion que passava com um cesto deamêijoas às costas. «Isso acaba porcuspir!» gritava-me outro de West Islandquando me viu meter algodão nascosturas. O Bruno limitava-se a abanar acauda. Até o Sr. Ben J..., conhecida autoridadeem navios baleeiros, mas de quem sedizia não ter já a mente muito certa, meperguntou muito confidencialmente se eunão pensava que aquilo «ia cuspir».

«Daqui a quanto tempo vai isso cuspir?»,gritava-me um velho capitão meu amigo,que muita vez fora rebocado porcachalotes. «Diga-nos, daqui a quanto,para podermos tomar porto a tempo». Mas, por cima do algodão, meti-lhe umacamada de estopa, como pensava fazerdesde o início. E o Bruno voltou a abanara cauda. O certo é que o algodão nuncafoi «cuspido». Acabado o calafeto, deiduas mãos de tinta de cobre no fundo eduas de alvaiade nos costados e na bordafalsa. Depois, calei e pintei o leme, e nodia seguinte foi o bota-abaixo do Spray.Amarrado à velha âncora ferrugenta,parecia um cisne poisado na água. As dimensões do Spray eram onze metrosde fora a fora, quatro metros e trinta deboca e um metro e vinte e sete de calado.Deslocava nove toneladas e a arqueação

era de doze toneladas e setenta e umcentésimos. Depois, arvorou-se o mastro, umavergôntea de bom spruce de NewHampshire, e alestou-se o barco comtodas as pertenças necessárias para umcruzeiro breve. Envergaram-se as velas eaí foi o Spray com o capitão Pierce ecomigo a bordo, pela Baía de Buzzardnum passeio de experiência. Tudo omelhor possível. A única coisa que agora apoquentava osmeus amigos de Fairhaven era se «valeriaa pena». O novo barco custara-me 553,62dólares de materiais e treze meses detrabalho. No entanto, além desse tempopassei mais alguns meses em Faihavenporque ia arranjando trabalho, de vez emquando, em algum navio baleeiro queestava aparelhando no porto. .

CAPITULO II Insucesso como pescador — Projectandouma viagem à volta do Mundo — DeBoston a Gloucester — Aparelhando paraa viagem oceânica — Meio dóri paraembarcação do navio — De Gloucester aNova Escócia —- Temporal em águasfamiliares — Entre velhos amigos. Passei uma estação no meu novo barco napesca costeira, apenas para descobrir quenão tinha habilidade bastante para iscarum anzol. Mas chegou finalmente omomento desejado de levantar ferro elargar para o mar a valer. Tinha decididolançar-me numa viagem à volta doMundo e como naquela manhã de 24 deAbril de 1895 o vento estivesse de feição,pelo meio-dia levantei ferro, dei velas elarguei de Boston, onde o Spray passara oinverno fundeado em bom abrigo.

Soavam no molhe os sinais de buzina domeio-dia, na altura em que o cúterlargava velas com todo o pano largo. Fizprimeiro um bordo curto, porto acima,com amuras a bombordo, depois, vireipor davante e o Spray aproou ao mar,com a retranca bem aberta parabombordo, e assim ultrapassou, a toda avelocidade, os vapores que faziamcarreira na baía. Um fotógrafo, no caisexterior de East Boston, tirou-lhe umafotografia quando ele passava debandeira içada no pique e bemdesfraldada ao vento. Emocionado, sentia o coração baterdentro do peito, e andava com maisleveza pelo convés sob a fresca brisa. Sentia que já não podia voltar atrás e queestava mergulhando numa aventura cujosignificado compreendia em absoluto.Não pedira conselhos a ninguém, por me

sentir com direito a ter opiniões muitominhas em coisas que se prendiam com omar. Que os melhores marinheirospodiam fazer pior que eu, mesmo só, eracoisa que estava patente aos meus olhos,a menos de duas léguas das docas deBoston, onde um grande navio de vaporjazia naufragado. Era o Venetian quecompletamente equipado, comandado epilotado, encalhou numa restinga e ali separtiu completamente pelo meio. Ao caboda primeira hora da minha viagemsolitária, já tinha uma prova de que oSpray podia fazer melhor que aquelevapor de numerosa tripulação; pelomenos já tinha chegado mais longe queele, na sua viagem. «Olha bem paraaquele aviso, Spray, e toma tento!», griteiao meu barquinho que deslizava numsilêncio de sonho descendo a baía.

O vento refrescou e o Spray dobrou ofarol de Deer Island à velocidade de setenós. Passado o farol, meti em cheio, com aproa a Gloucester onde ia em procura dealgumas provisões de pesca. Saindo oporto, o Spray começou a encontrar umapequena vaga alegre e bailadeira na Baíade Massachusetts; de cada vez que lhemetia a proa, lançava para o ar miríadesde gotas brilhantes que ficavamsuspensas no ar. O dia estava perfeito e aluz do Sol límpida e forte. Cada partículade água lançada ao ar tornava-se comouma pedra preciosa, e o Spray lançando-se para a frente, tirava do mar colares depedras, sem fim, com que se adornavapara logo em seguida os lançar de si.Todos vimos já os pequenos arco-íris quese formam em torno da proa de um naviomas o Spray arvorou naquele dia umarco-íris muito seu, como nunca eu vira

nenhum. O seu anjo bom tinhaembarcado para a viagem; assim o li nomar. Bold Nahant passava-nos, pouco depois,pelo través, e mais tarde deixávamosMarblehead à popa. Viam-se na baíaoutros barcos que também saíam para omar, mas nenhum deles conseguiualcançar o Spray. Ouvi o som tristonho dosino de Norman's Woe e, mais adiante,passei abraçado com o recife onde aescuna Hesperus encalhou. Na praia queme demorava pelo través, erguia-se oesqueleto de um barco naufragado. Como o vento refrescasse mais, arriei umtudo nada a boca da carangueja dogrande para o barco ficar um poucomenos ardente, mas a verdade é que jáme custava a aguentá-lo metido em cheioe com a vela grande toda larga. Umaescuna que seguia à minha frente arriou

todo o pano e correu com o tempo emárvore seca, em demanda de abrigo. Naaltura em que o Spray passava por ela, vique lhe tinham sido levadas algumasvelas e levava bocados de lona pendentesdo aparelho, em consequência de algumpé de vento. Aproei à enseada, um braço encantadordo belo porto de Gloucester, para melhorpreparar o Spray e arrumar as minhasideias e todo o resto antes de largar para aviagem. A carneirada cobria a baía comuma toalha branca quando o meubarquinho lá entrou envolvido pelasurriada. Era a primeira vez queexperimentava a sensação de entraisozinho num porto e pelo meio danavegação. Alguns velhos pescadorescorreram para o cais para onde o Spray sedirigia, na clara intenção de ali ir amarrar.Ainda estou para saber como não se deu

um valente desastre; com o coração naboca larguei a roda do leme e precipitei-me para a proa a arriar a bujarrona. Obarco, é claro, fez ala e larga por simesmo e, já quase sem seguimento, foiencostar uma bochecha a um cabeço docanto de barlavento do cais, com talsuavidade que não teria esmagado umovo. Com ar muito calmo, dei volta nocabeço e assim ficou o Spray amarrado.Neste momento partiu uma verdadeiraovação do pequeno grupo que se juntarano cais. «Você não conseguia fazermelhor», gritou um velho arrais, «sepesasse uma tonelada!» Ora, o meu pesoé bastante inferior a um quinze avos detonelada (1), mas não disse nada e limitei-me a assumir um ar descuidado como sedissesse para mim mesmo: «Oh, isto nãovale nada». Sabia-me observado pormarinheiros dos mais hábeis do Mundo e

não lhes queria parecer um principiante,porque tinha ideias de ficar entre eles, emGloucester, durante alguns dias. Tivesseeu dito uma só palavra nesse momento,em que ainda estava nervosíssimo equase sem fôlego, e ter-me-ia traído. Fiquei em Gloucester cerca de duassemanas, embarcando os artigosnecessários à viagem, que maisfacilmente encontraria aqui. Os donos docais onde me encontrava, e donostambém de vários navios de pesca,meteram-me a bordo um nunca acabar debacalhau seco e um barril de óleo paraacalmar as vagas. Sendo eles mesmosantigos arrais, interessaram-se enor-memente pela viagem e ofereceramtambém ao Spray uma lanterna «depescador», capaz de se ver a uma grandedistância em todo o redor. Não há dúvidade que um navio que abalroasse um

barco com uma tão boa luz a bordo, seriacapaz de abalroar um navio-farol.Meteram-me ainda a bordo um peixeiro,um arpéu e uma rede que um velhopescador me declarou serem indis-pensáveis para navegar. Do outro lado daenseada veio também uma lata de tintade cobre, famoso produto antivegetativo,que me fez muito bom arranjo durantelongo tempo. Apliquei duas mãos destatinta no fundo do Spray depois de ovarar, por uma maré ou duas, numa praiade areia firme. Como precisasse de uma embarcaçãopara levar comigo, tive de cortar a meioum dóri abandonado e fazer um painelde popa para o fechar no extremocortado. Era fácil para mim embarcar elançar à água este meio dóri,suspendendo-o da adriça da boca pormeio de um estropo que lhe passei à proa,

de propósito para o efeito. Um dóriinteiro seria pesado e desajeitado paramanejar sozinho. Além disso não tinhaespaço no convés senão para metade deuma embarcação, que, ao fim de contas,sempre era melhor que não ter barconenhum e era suficientemente grandepara um só homem. Descobri, também,que o barco assim arranjado servialindamente de máquina de lavar, quandodisposto de borda a borda no convés, eaté de banheira. Com efeito, o dóriencurtado ganhou tal reputação naquelaprimeira aplicação que a minha lavadeirade Samoa não se podia conformar se eunão lho desse. Era fácil de ver para elaque se tratava de uma nova invenção quesuplantava todas as ideias ianquestrazidas pelos missionários para as ilhas,e queria ficar com ele fosse como fosse.

(*) Há aqui um trocadilho. Aquele «sevocê pesasse uma tonelada», tem tambémo significado «se o seu barco pesasse umatonelada» ou «deslocasse uma tonelada. A falta de um cronômetro era tudoquanto agora me podia preocupar.Segundo as novas ideias sobrenavegação, supõe-se que um marinheironão pode achar o caminho se não tiverum; e até eu acabara por adquirir estamaneira de pensar. O meu velhocronometro, uma bela máquina, haviamuito que estava parado e pediam-mequinze dólares para o limpar e regular.Quinze dólares! Por bastantes razõesdeixei esse relógio em casa, onde oholandês deixou a âncora. Já tinha a grande lanterna de pescador, euma senhora de Boston mandou-medinheiro para uma valente lâmpada decabina, de dois bicos, que iluminava a

cabina durante a noite e, com unspequenos arranjos, passou a servir defogão durante o dia. Assim alestado, sentia-me já pronto parao mar, e no dia 7 de Maio larguei. Commuito pouco espaço para virar à vontade,o Spray ao ganhar seguimento arranhou apintura de um velho barco de bom--tempo, que estava sendo betumado epintado para uma campanha de verão. «Quem paga isto?» perguntaram ospintores. «Eu!» respondi-lhes. «Com a escota do grande» berrou-lhes ocapitão do Bluebird, que estava ali perto,querendo dizer com isto que eu iaembora. Não haveria a pagar mais queuns cinco cêntimos de tinta, vá lá, mas azaragata que se armou entre o velhopesqueiro e o Bluebird, que tomara o meupartido, foi tamanha que o motivo inicialdepressa se esqueceu por completo. De

qualquer modo, não me mandaram aconta. No dia em que saí de Gloucester. o tempoestava sereno. Logo que o Spray saiu daenseada, surgiu-nos um quadro animado:a frontaria de uma grande fábrica que seerguia na ponta, toda ela eram lenços etoucas a adejar. Do rés-do-chão ao últimoandar, as janelas estavam cheias de rostosbonitos que sorriam desejando-me bonvoyage. Algumas gritavam-me pergun-tando onde ia eu e porquê sozinho.Porquê? Manobrei como se fosse parafundear e então estendeu-se para mimuma centena de pares de braços aconvidar-me a ficar, mas a praia eraperigosa! O cúter saiu a baía bordejando com umaaragem do Sudoeste e, por volta do meio-dia, meteu em cheio ao dobrar EasternPoint, recebendo nesse momento uma

calorosa saudação de terra — a últimadas muitas gentilezas que lhedispensaram em Gloucester. Ao largo daponta o vento espertou e, deslizandosuavemente, o Spray depressa chegava àvista dos faróis da Ilha de Thatcher.Daqui, mareei o barco pela bússola, demodo a passar a norte de Cashes Ledge edos Amen Rocks, sentei-me a pensar maisuma vez em toda a questão e perguntei-me se seria efectivamente a melhorsolução passar para além da restinga edas rochas. Eu apenas dissera que ianavegar à volta do Mundo no Spray, «nãocontando com as fortunas do mar», masdevo tê-lo dito muito a sério. Estavaamarrado ao «afretamento» que fizeracomigo mesmo, e por isso segui paradiante. Ao cair da tarde meti de capa,preparei um anzol e pus-me à. pesca depeixe do fundo, por trinta braças de água,

no bordo da restinga de Cashes. Até aoescurecer pesquei com certo êxito,fazendo aterrar no convés três bacalhause três outros peixes da mesma família e, omelhor de todos, um pequeno halibute,todos eles gordos e bonitos. Resolvi queaquele seria o local indicado para meteruma reserva de provisões além das que játinha comigo e, como tal, lancei umdrogue para manter o barco filado aovento. Como o Spray estava entre o ventoe a corrente, senti-me na certeza de oencontrar ainda sobre o banco ou muitoperto dele, ao romper o dia seguinte.Então, depois de içar o farol no estai,deitei-me pela primeira vez só no mar,não para dormir, mas para dormitar esonhar. Tinha lido em tempos que uma escuna depesca lançou ferro numa baleia que arebocou por muito tempo e a grande

velocidade. Pois foi isto exactamente queaconteceu ao Spray — no meu sonho!Ainda o sonho não se dissiparacompletamente quando acordei edescobri que fora o vento e um grandemar que me interromperam o descanso.Cobrindo a Lua, voava uma nuvemtocada pelo vento. Estava-se a levantarum temporal; ou melhor, o tempo jáestava tempestuoso. Rizei as velas, colhi odrogue e, dando todo o pano que o cúterpodia aguentar, aproei ao farol deMonhegan que alcançámos antes doalvorecer do dia 8. Com vento largo,meti-me no porto de Round Pond, umpequeno fundeadouro a nascente dePemaquid. Descansei aqui um dia,enquanto o vento sacudia ruidosamenteos pinheiros em terra. No dia seguinte otempo tinha melhorado e fiz-me ao mar,não sem primeiro preencher o diário da

navegação desde o Cabo Ann e semesquecer o relato completo da aventuracom a baleia! O Spray meteu rumo Este e seguiucosteando várias ilhas por sobre um marchão. Na tarde desse dia, 10 de Maio,tomou porto à beira de uma ilhaconsideravelmente maior que as restantese cujo nome para mim será sempre o deIlha das Rãs, porque ali esteve o Spray adeliciar-se com o coaxar de milharesdaqueles animais. Da Ilha das Rãsdemandámos a Ilha das Aves, chamadaGannet Island ou Gannet Rock, onde háum farol brilhante, de relâmpagos, queiluminava a espaços, melancolicamente, oconvés do barco enquanto este corria acosta da ilha. Daqui guinei para Briar'sIsland, passando na tarde seguinte porentre vários barcos que andavam nosbancos de pesca ocidentais e, depois de

vir à fala com um pescador que me deuum rumo errado, meti-me a direito pelobordo sudoeste da restinga, pelo meio damais furiosa das correntes de maré, até àBaía de Funda e fui fazer porto emWestern, na Nova Escócia, onde tinhapassado oito anos quando ainda rapaz. Pode ser que o tal pescador me tenhadito: «És-sudeste», que era o rumo que euseguia quando lhe fiz a pergunta; masentendi «És-nordeste» e por isso meti aeste rumo. Antes que se decidisse a dar-me qualquer resposta, aproveitou aocasião para satisfazer a curiosidade eperguntou-me donde vinha eu, se estavasozinho e se não tinha «nem cão nemgato». Era a primeira vez, em toda aminha vida no mar, que ouvia um pedidode informação respondido com umapergunta. Creio que o sujeito era das«Ilhas dos Forasteiros». De uma coisa

estou certo: não era de Briar's Islandporque se encolheu de uma onda que lhesaltou por cima da horda e, parando paralimpar a cara, deixou fugir um belobacalhau que já tinha quase embarcado.Nunca um ilhéu dos meus faria tal coisa.Gente de Briar's Island, com peixe ou sempeixe no anzol, não se esquiva à vaga;limita-se a tomar tento às linhas e a«zagaiar». Ou não tivesse eu visto um diao meu velho amigo, o diácono W. D..., umexcelente homem da ilha, enquantoescutava um sermão na pequena igreja daterra, estender a mão por cima dadivisória da bancada e «zagaiar» lulasimaginárias que estivessem na coxia, paragáudio da rapaziada que nãocompreendia que para apanhar bompeixe é preciso boa isca, a coisa que maispreocupava a mente do diácono.

Estava radiante por entrar em Westport.Aliás qualquer porto seria uma delíciadepois da terrível tareia que apanhei dovento sudoeste, mas era sobretudoencantador encontrar-me entre velhoscompanheiros da escola. Estava-se no dia13 do mês e o 13 é o meu número da sorte— facto registado já muito antes do Dr.Nansen ter largado em de-manda do PóloNorte com uma tripulação de trezehomens. Talvez que ele tivesse sabido domeu êxito quando consegui levar até aoBrasil o mais singular dos navios comesse número na tripulação. Sentia-me contente por ver as própriaspedras de Briar's Island, e eu conhecia-astodas. A lojeca da esquina, que haviatrinta e cinco anos não voltara a ver, eraainda a mesma: parecia talvez um poucomais pequena. A tabuleta que ostentava,era ainda a mesma, estou absolutamente

certo; ou não conhecesse eu o telhadoonde, com outros miúdos, noite apósnoite, tinha andado à caça da pele de umgato preto, que devia ser apanhado numanoite escura, para fazer um emplastropara um pobre homem aleijado. Lowry, oalfaiate vivia ainda no mesmo sítio dequando eu era rapaz. Lembro-me de queo Lowry, nos seus dias, tinha um grandeorgulho na pistola e trazia semprepólvora solta no bolso do casaco; tambémtrazia, constantemente, uma beatadependurada da boca e, um dia, nummomento diabólico, meteu a beata acesano bolso com a pólvora. Era um homemoriginal o sr. Lowry. Em Briar's Island vistoriei o Spray maisuma vez e inspeccionei-lhe as costurasmas verifiquei que nem o mar curto doSudoeste fora prova bastante para asfazer dar de si. Ao largo dominava o mau

tempo e ventos ponteiros, e não me sentiacom pressa de dobrar o Cabo Sable. Fizuma breve excursão com alguns amigosaté St. Mary's Bay, tradicional zona decruzeiro, regressando depois à ilha.Depois, meti a caminho mas aportei aYarmouth no dia a seguir por causa donevoeiro e dos contrastes. Passei uns diasagradáveis em Yarmouth e aproveiteipara meter alguma manteiga para aviagem, uma barrica de batatas, e seisbarris de água que arrumei dentro dobarco. Foi também em Yarmouth quecomprei o meu famoso relógio de lata, oúnico relógio que levei em toda a viagem;o preço era de um dólar e meio, mascomo tinha a frente amolgada, o lojistadeixou-mo por um dólar. . . .

CAPITULO III Adeus à costa americana — Ao largo deSable Island no nevoeiro — No mar alto— O homem da Lua interessa-se pelaviagem — O primeiro acesso de nostalgia— O Spray encontra-se com o La Vaguisa— Uma garrafa de vinho do Espanhol —Troca de palavras com o capitão do Java— A fala com o vapor Olympia —Chegada aos Açores. Tratei de pôr em segurança tudo quantotinha a bordo, para me meter ao Atlânticoturbulento que se me abria na frente, edesarvorei o mastaréu, pois concluí que oSpray ficaria melhor com ele no convés.Depois repiquei e amarrei de novo oscolhedores dos ovéns e verifiquei que achapa do estai real estava segura, à proa,e que tudo estava bem amarrado, porque

mesmo no Verão pode-se apanhar mautempo na travessia. Com efeito, passaram-se algumas sema-nas em que dominou o mau tempo. Masno 1. de Julho, depois dum violentotemporal, o tempo limpou e o ventorondou para o Noroeste pondo-se assimde feição. No dia seguinte, abatido o marde proa, larguei de Yarmouth, deixandoassim a minha última escala na América.O diário do meu primeiro dia noAtlântico, a bordo do Spray, dizlaconicamente: «9.30 a. m. larguei deYarmouth. 4.30 p. m. dobrei Cabo Sable;distância, três amarras da terra. O cúterfaz oito nós. Vento fresco N. W.» Antesdo sol-pôr, estava eu a comer uma ceia demorangos e chá, em águas calmas, asotavento das terras do Este que o Sprayia agora costeando descansadamente.

Pelo meio-dia de 3 de Julho, via a Ilha deAronbound pelo través. O Spray seguiade novo a todo o andamento. Umagrande escuna deitou fora da barra deLiverpool, Nova Escócia, nessa manhã,rumo ao Este, mas o Spray deixava-a asumir-se no horizonte cinco horas depois.Pelas 6.45 p. m. encontrava-me navizinhança do farol de Chebucto Head,próximo do porto de Halifax. Icei abandeira e meti em cheio, para tomar olargo de George's Island antes doescurecer e passar a Este de Sable Island.Há vários faróis ao longo desta costa.Sambro, o Rochedo das Lamentações, temum belo farol que, no entanto, o paqueteAtlantic não viu na noite do seu terríveldesastre. Estive atento a todos os faróis,um após outro, até o de Sambro, o últimode todos, se começar a afogar nohorizonte. O Spray encontrou-se então

sozinho navegando na sua derrota. Nodia 4, às 6 da manhã rizei nos segundos eàs 8.30 deitei fora dos rizes. Às 9.40 danoite só conseguia vislumbrar o clarão dofarol da ponta Este de Sable Island, quebem se podia chamar a Ilha dasTragédias. O nevoeiro que até então semantivera alto, baixou sobre o mar comoum manto. Encontrava-me num mundode nevoeiro, isolado do Universo. Deixeide ver por completo o farol. Pelo prumo,que ia lançando com frequência,verifiquei, pouco depois da meia-noite,que estava dobrando a ponta Este da Ilhae cedo estaria a salvo dos perigos da terrae dos baixios. O vento continuava largo,embora soprasse do lado do nevoeiro,Sul-Sudoeste. Diz-se que dentro depoucos anos Sable Island ter-se-áreduzido de 40 para 20 milhas decomprimento, e que, dos três faróis

construídos depois de 1880, dois terãosido levados pelo mar, e o terceiro nãoterá de esperar muito tempo para seafundar também. Na tarde de 5 de Julho, depois de passaro dia ao leme num mar cavado, pus oSpray de proa à vaga para navegar semajuda de timoneiro. Tinha vindo a seguirao rumo Es-Sudeste e, como o ventorondou um pouco para Norte, fez cabeçaao Sudeste e seguiu a uns oito nós, omelhor das suas possibilidades. Dei asvelas todas para atravessar, sem perdertempo, as rotas frequentadas pelosvapores e chegar o mais depressapossível à amigável Corrente do Golfo.Como o nevoeiro levantasse antes doanoitecer, pude dar uma olhadela ao Solno momento em que tocava no mar.Estive a olhá-lo enquanto se afogava edesaparecia no horizonte. Virei-me

depois para o Nascente e ali, como quepousada no lais do pau da bujarrona,estava sorridente a Lua cheia que acabarade se erguer do mar. O próprio Neptunoque me tivesse entrado pela proa, não meteria surpreendido mais. «Boa noite,cavalheiro!», gritei: «Muito prazer em vê-lo.» Desde então, muitas conversas tivecom o homem da Lua (1) que foi meuconfidente durante a viagem. Por volta da meia-noite, o nevoeirovoltou a cerrar-se, mais denso que nunca;quase se podia «cortar à faca». E assimcontinuou por vários dias, enquanto ovento, por seu lado, refrescava até setornar num vendaval. O mar pôs-se devaga grossa, mas eu tinha um bom navio. No meio do nevoeiro deprimente, sentia-me levar pelo sentimento da solidãocomo se fora um insecto agarrado a umafolha levada ao sabor dos elementos.

Amarrei a roda do leme; o barcomantinha-se no rumo e enquanto elenavegava dormia eu. Durante estes diasapossou-se de mim uma impressão detemor. A memória trabalhava num ritmoespantoso. O terrível, o insignificante, ogrande, o pequeno, o encantador, ovulgar — tudo me desfilava perante aimaginação como numa sucessão mágica.Recordava páginas da minha história, hátanto tempo esquecidas, que pareciamfazer parte de uma existência remota.Ouvia todas as vozes do passado rindo,gritando, dizendo o que eu lhes ouviradizer em tantos sítios da terra. (*) Nas histórias infantis inglesas, o rostoque parece desenhado na Lua é «ohomem da Lua», the man in tke moon. A solidão foi-se embora quando otemporal cresceu e descobri que tinhamuito trabalho para fazer. Com o bom

tempo voltou a solidão que nunca fuicapaz de sacudir por completo. Falavaalto com frequência, limitando-me, aprincípio, a pronunciar as vozes decomando que vinham a propósito dosserviços, porque me tinham dito que, coma falta do hábito acabaria por perder afala (1). Quando media a altura meridianado Sol, dizia em voz alta «Meio dia; mudao quarto», como faria num navio no mar.Outras vezes perguntava de dentro dacabina a um timoneiro imaginário:«Como governa?», ou então «Vai norumo?» Mas, à falta de resposta, sentia-me ainda mais só. A voz soava-me a ocono ar deserto, e acabei por abandonar aprática. Mas não se passou muito tempoque não me recordasse, que era meucostume cantar quando garoto; porquenão experimentar agora, que certamentenão incomodaria ninguém? O meu

talento musical nunca fez a inveja deoutrem, e então no Atlântico, bem aolargo, haviam de me ouvir cantar parafazer uma ideia do que aquilo era.Haviam de ver as toninhas saltar quandoeu elevava a voz para as vagas, para omar e para tudo o que estava dentro dele.Velhas tartarugas de olhos enormes,espichavam a cabeça quando me ouviramcantar o «Johnny Boker», o «We'll PayDarby Doyl for his Boots» e outras coisasparecidas. Mas as toninhas eramconsideravelmente melhores apreci-adoras que as tartarugas; saltavam muitomais alto. Um dia quando estava acantarolar uma canção favorita — julgoque era a «Babylon's a Fallin», umatoninha saltou mais alto que o pau dabujarrona. Se o Spray fosse um poucomais depressa, tinha ficado espetada. As

aves marinhas, essas andavam à nossavolta um tanto desconfiadas. 10 de Julho, há oito dias no mar; o Sprayencontra-se mil e duzentas milhas a Estedo Cabo Sable. Cento e cinquenta milhaspor dia, para tão pequeno barco, podeconsiderar-se bom velejar. Foi a maislonga distância que o Spray jamais cobriuem tão poucos dias. Na tarde de 14 deJulho, na melhor das disposições, toda atripulação gritou «Navio à vista!» Asvelas que apareciam a três quartas pelaamura de barlavento, eram de um lugre-patacho cujo casco ainda se não avistava.Caiu a noite. O meu navio continuava asingrar sem ser necessário mexer-se-lheno leme. O vento soprava do Sul e onosso rumo era Este. (*) Desculpemos ao Capitão Slocum estasuposição ingénua. A verdade é que foiele o primeiro a fazer a experiência...

As velas iam compassadas como a velado náutilo e puxaram bem durante toda anoite. Subi ao convés com frequência masencontrei sempre tudo em ordem sob aalegre brisa do Sul. Bem cedo, na manhãde 15, o Spray estava já muito perto dodesconhecido que era afinal o La Vaguisa,de Vigo, a 23 dias de viagem deFiladélfia, em demanda de Vigo. Umvigia, empoleirado no mastro, avistara oSpray na tarde anterior. Logo que meaproximei o bastante, o capitão atirou-meum cabo e por ele fez escorregar umagarrafa de vinho dependurada pelogargalo; e que bom vinho era! Mandou-me também o cartão, com o nome de JuanGantes. Era com certeza um bom homem,como os espanhóis costumam ser. Masquando lhe pedi para transmitir ainformação «tudo bem a bordo» (o Sprayia a ultrapassá-lo em bom seguimento),

levantou os ombros acima da cabeça; equando o imediato, que sabia da minhaexpedição, lhe disse que eu ia sozinho,benzeu-se e zarpou para o camarote. Nãoo voltei a ver. Ao pôr do Sol tinha-o pelapopa, tão longe quanto na véspera à,tarde o tivera pela proa. Havia agora cada vez menos monotonia.Em 16 de Julho o vento soprava doNoroeste, com tempo claro e mar chão.Uma grande barca, ainda com o cascoafogado, apareceu à vista pela amura desotavento e, às 2.30 da tarde, chegava àfala com o estrangeiro. Era o Java deGlasgow, em viagem do Peru paraQueenstown, para negócio. O velhocapitão da barca parecia um urso, mas jáuma vez encontrei um urso, no Alasca,que parecia mais agradável. Pelo menos,o urso mostrou-se satisfeito por me ver,enquanto que este...! Bem, julgo que foi o

meu chamamento que lhe interrompeu asesta; e a simples vista do meu barquinhoa ultrapassar-lhe o enorme navio deve terproduzido nele um efeito parecido com oque tem um pano vermelho para umtoiro. Com ventos fracos como os destestrês últimos dias, o meu cúter levava umaboa vantagem sobre os navios de grandedeslocamento. Não fazia mais que umaaragem; o navio, que era pesado e levavao fundo sujo, pouco seguimento fazia,enquanto o Spray com o seu pano grandede bom tamanho que enfunava com amais leve brisa, deslizava tão lesto quantoalguém podia desejar. «Há quanto tempo há calmas por aqui?»,perguntou o capitão do Java quandoviemos à fala. «Não sei, capitão», respondi-lhe berrandoo mais que podia, «não estou aqui hámuito tempo». Ao ouvir isto, o imediato,

no castelo da proa, arvorou um largosorriso. «Deixei o Cabo Sable há catorzedias», acrescentei. (Estava agora bemlonge do Cabo, a caminho dos Açores). «Imediato!» rugiu ele para o oficial maisgraduado, «imediato, venha cá e ouça ahistória do Yankee. Arrie a bandeira,imediato, arrie a bandeira!» (1) (*) Arriar a bandeira para depois a voltara içar é o sinal de saudação entre navios. Assim se rendeu, afinal, o Java ao Sprayna melhor das disposições. Não voltei a sentir a impressão de solidãocom a agudeza com que primeiro a haviaexperimentado. Tinha penetrado ummistério e, para começar, naveguei nonevoeiro; depois encontrei-me com oNeptuno colérico, mas como ele viu que onão tratei com contumácia, tolerou queprosseguisse na minha exploração.

No diário, no dia 18 de Julho, tenho oseguinte registo: «Bom tempo, vento Sul-Sudoeste. Toninhas brincando em todo oredor. O N/V Olympia passou às 11.30 a.m., Long. 34° 50' W». «Faltam agora três minutos para a meiahora», gritou o capitão ao dar-me alongitude e o tempo. Admirei o ardesembaraçado do Olympia, mas aindahoje tenho a impressão de que o capitãofoi um pouco categórico de mais na suaestima. O que poderia não ter grandeimportância já que tínhamos tanto marlargo em volta. Mas foi o excesso deconfiança, julgo eu, a causa do desastredo paquete Atlantic e de muitos outroscomo ele. O capitão sabia bem de maisonde se encontrava; é que não traziatoninhas navegando ao lado do Olympia!As toninhas preferem sempre os barcosde vela Vi que o capitão era um jovem e

tinha perante si, espero, uma belacarreira. Terra à vista! Na manhã de 19 de Julho,isolado no mar, tinha pela proa umacúpula mística que lembrava umamontanha de prata. Embora a terraestivesse ainda oculta pela brumaesbranquiçada que brilhava ao Sol comoprata polida, não tive dúvidas de quefosse a Ilha das Flores. Às quatro e meiada tarde, tinha-a pelo través. A bruma,entretanto, havia-se dissipado. As Floresestão a cento e setenta e quatro milhas doFaial mas, embora seja uma ilha de boaaltitude, ficou muitos anos por descobrirjá depois do grupo principal doarquipélago começar a ser colonizado. (*) Aqui vai um esclarecimento paraquem não tenha apreendido o significadodas considerações do capitão Slocumacerca de longitudes e toninhas. Se

estivesse certa a longitude transmitidapelo Olympia, tanto ele como o Sprayestariam então a 3o 35' a Oeste das ilhasmais ocidentais do arquipélago dosAçores e portanto, na melhor dashipóteses, a mais de 215 milhas, emapartamento, da ilha das Flores. O Spray avistou a Ilha das Flores noamanhecer do dia seguinte; no momentoem que avistou o cume do Monte Grande(927 m de altitude), estaria talvez a umas50 milhas da ilha. Se considerarmos queSpray fazia os seus 4 nós com ventosbonançosos, teria navegado até essemomento, e desde que recebeu alongitude do Olympia, 74 milhas paraEste. Quer dizer, a sua longitude deveriaandar por uns 33° 20' W; ora o Olympiadeu-lhe a longitude de 34° 50' W o quefazia os dois barcos pelo menos 10 30'

(mais de 90 milhas!) mais afastados daIlha das Flores do que estavam realmente!A quarta parte de um tal erro, emcálculos de navegação astronómica, seriao suficiente para fazer reprovar qualquercandidato às provas de «patrão do altomar»! Por sua vez as toninhasabandonam, em regra, a companhia donavio quando este se aproxima de terra e,como tal, são mais um sinal de que umbom marinheiro se pode servir nas suasestimas. O velho Slocum deve ter levadoesse sinal em linha de conta. No dia 20 de Julho, de manhã, avistei oPico espreitando por cima das nuvenspela amura de estibordo. As terras baixasiam-se descobrindo à medida que o Soldissipava o nevoeiro matinal e, uma apósoutra, foram-se-me mostrando as outrasilhas. Ao aproximar-me mais, apareceramos campos cultivados; e que verdes

estavam os milheirais! Só quem já viu osAçores do convés de um navio, podefazer ideia da beleza desse quadro domeio do Oceano. Às quatro e meia da tarde fundeava noFaial, precisamente dezoito dias depoisde passar o Cabo Sable. O cônsulamericano, num bonito barco, veio aoencontro do Spray antes deste chegar aomolhe, e um jovem graduado deMarinha, que temia pela segurança domeu cúter, entrou a bordo e ofereceu osseus préstimos como piloto. O rapazinho(não tenho razões para duvidar de tal)seria capaz de manobrar um navio deguerra, mas o Spray era pequeno demaispara o uniforme que usava. Apesar detudo, depois de abalroar todas asembarcações que estavam no porto, e deafundar uma barcaça, o meu barco láfundeou sem que ele mesmo tivesse

sofrido grande coisa. Este maravilhosopiloto estava à espera de umagratificação, mas se isso se devia, seria oseu Governo e não eu quem tinha depagar as custas de pôr a barcaça a flutuar,ou se era por não ter afundado o Spray,foi coisa que não cheguei a descobrir. Masperdoo-lhe. Estava-se na época da fruta quandocheguei aos Açores e ao fim de poucotempo já tinha para meter a bordo tanta ede tanta variedade que nem sabia quefazer dela. Os ilhéus são sempre gente da mais gentil do Mundo e nunca encontreifosse quem fosse e onde fosse, mais gentilque os bondosos corações desta terra. Apopulação dos Açores não é umacomunidade muito rica. O peso dosimpostos é grande, e escassos são osprivilégios concedidos; parece mesmoque o ar que se respira é talvez a única

coisa não sujeita a contribuição. Ametrópole não lhe: concede, sequer,entrada a malas postais estrangeiras.Qualquer paquete que passe por ali pertocom correio para a Horta, tem de o irentregar a Lisboa, a pretexto dasdesinfecções mas, na realidade, pela tarifacobrada pelo porto. As minhas cartasexpedidas da Horta chegaram aosEstados Unidos 6 dias depois da queenviei de Gibraltar; e esta foi expedida 13dias depois daquelas. No dia seguinte ao da minha chegada,havia festa na Horta em honra de umgrande santo. Vieram de outras ilhasbarcos carregados de gente para ascelebrações na capital, a Jerusalém dosAçores. De manhã à noite, o convés doSpray esteve apinhado de homens,mulheres e crianças. No dia a seguir, umnativo de bom coração arranjou um

carrinho puxado por uma parelha deanimais e levou-me a dar um passeio porestradas encantadoras à volta do Faial,«porque», disse ele em inglês vacilante,«quando estive na América e não sabiauma palavra de inglês, senti-me sempremal até que encontrei alguém que pareciater tempo para ouvir a minha história, eentão prometi ao meu santo que sempreque um estrangeiro viesse à minha terra,procuraria tornar-lhe a vida agradável».Infelizmente, este autêntico cavalheirotrouxe consigo um intérprete queentendeu que eu devia «conhecer melhora terra». O parceiro quase me matou afalar de navios, viagens e dos barcos quetinha pilotado, a última coisa desteMundo que eu desejaria ouvir. Tinhalargado de Nova Bedford, assim o disse,contratado por «aquele Joe Wing a quechamam John». O meu amigo e

hospedeiro poucas oportunidades teve demeter uma palavra na conversa. Antes, denos separarmos, deu-me de jantar comuma alegria que teria feito regozijar ocoração de um príncipe. Viviacompletamente só na sua casa. «A minhamulher e os filhos repousam ali» dizia-me, apontando para o adro em frente.«Mudei-me de longe para esta casa paraficar perto do sítio onde rezo por elestodas as manhãs». Fiquei quatro dias no Faial, ou seja doisdias mais do que tencionava demorar-me.Foi a amabilidade dos ilhéus e a suasimplicidade tocante que me retiveram.Um dia uma rapariguinha, inocente comoum anjo, veio ter comigo e disse queseguiria no Spray se eu a desembarcasseem Lisboa. Disse que seria capaz decozinhar peixe--voador mas que o seuforte era arranjar bacalhau (1). O irmão

dela, António, que servia de intérprete,deu a entender que, de qualquer modo,gostaria de fazer a viagem. A amizade doAntónio ia toda para um tal John Wilson,e estava pronto a navegar para a Américapela rota dos dois cabos (2) para ir ver oamigo. «Conhece o John Wilson de Boston?» «Conheço um John Wilson, mas não é deBoston», respondi eu. «Tinha uma filha eum filho» dizia o António, à guisa deidentificação. Se isto alguma vez chegar às mãos doJohn Wilson em questão, estouincumbido de lhe dizer que «o Antóniodo Pico não se esquece dele». (*) O Horn e o da Boa Esperança. Umarota bem dura. . . .

CAPITULO IV Mau tempo nos Açores — Boa vida —Delírio resultante de queijo e ameixas —O piloto do Pinta — Em Gibraltar —Troca de cumprimentos com a ArmadaBritânica — Um piquenique nas praias deMarrocos. Larguei da Horta na madrugada de 24 deJulho. Nesse momento o vento sopravafraco do Sudoeste, mas ao nascer do Solcomeçaram a vir rajadas e senti-mesatisfeito por ter dado rizes ainda antesde ter navegado uma milha. Mal tinharizado o grande nos segundos, umarajada, vinda das montanhas, apanhou ocúter em cheio com tal violência quejulguei que o mastro ia embora. Orceicom uma guinada rápida do leme, masmesmo assim um dos colhedores debarlavento rebentou e o outro ficou

sangrado. O alguidar de estanho,apanhado pelo vento, foi-me levado avoar por cima de um navio-escola francêsque passava a sotavento. Todo o diativemos tempo de aguaceiros de vento,mas ao dobrar uma arriba, encontrei umacalheta onde podia reparar os colhedorespartidos pela rajada. Mal tinha arriado asvelas quando de algum buraco das rochassaiu um barco de quatro remos, trazendoa bordo um funcionário aduaneiro quejulgava ter caído em cima de umcontrabandista. Tive alguma dificuldadeem lhe fazer compreender a verdade. Noentanto, um dos da equipagem, ummarinheiro desembaraçado, enquanto nósparlamentávamos, saltou-me para bordo,gorniu os novos colhedores que eu játinha preparado e, com mão amiga,ajudou-me a «afinar o aparelho». Esteincidente virou as coisas em meu favor e

a minha história tornou-se clara paratodos. São estas as vias do Mundo; nãotenha uma pessoa um amigo e verá o quelhe acontece! Passei a Ilha do Pico depois do aparelhoestar em ordem e mareei o Spray demodo a passar a sotavento da Ilha de S.Miguel, que apareceu à vista namadrugada de 26 de Julho, quandoventava forte. Nesse mesmo dia cruzei-me com o belo iote (x) do Príncipe deMónaco em viagem para o Faial, onde,numa viagem anterior, tinha largado asamarras para «escapar a uma recepção»que os padres da ilha lhe queriam fazer.Por que razão tanto temia a «ovação» éque eu não cheguei a saber. Na Hortatambém não o sabiam. (*) Como a palavra inglesa yacht, à faltade vocábulo português que lhecorresponda, já entrou na nossa língua.

Permitam-me que assim a transcrevaporque é assim que se pronuncia. Otermo português iate tem outrosignificado na nossa terminologia náuticae, como tal, não traduz o inglês yacht. Desde que chegara às ilhas, viviaopiparamente de pão e manteiga frescos,hortaliças e frutas de todas as espécies.Ameixas era o que eu tinha em maiorabundância no Spray, e comi delas afartar. Tinha também um queijo fresco doPico que o General Ranking, o cônsulamericano, me dera e que eu supus fossepara comer, pelo que marchoujuntamente com as ameixas. Ai de mim! ànoite estava todo dobrado com cãibras. Ovento que era já fresco, espertou aindamais, com o tempo carregado aoSudoeste. Tinha deitado fora dos rizesmas tive de os dar outra vez, de qualquermaneira. Entre as cãibras, arriei o grande,

tesei os impunidouros da forra o melhorque pude e amarrei os segundos rizes,um por um. Com tanto mar limpo emredor, devia, dentro da mais estritaprudência, ter amarrado tudo a preceito eido logo para o meu beliche; costumo sercuidadoso no mar, mas nessa noite, sob otemporal que se aproximava, icei as velasque, embora rizadas, eram demais paraum tempo tão duro, e verifiquei que asescotas estavam devidamente amarradas.Numa palavra, devia ter posto de capamorta mas não o fiz; larguei o granderizado nos segundos e a bujarrona, emareei para seguir ao rumo desejado.Depois fui para baixo e deitei-me nopavimento da cabina cheio de dores.Quanto tempo ali estive, é coisa que nãosei dizer porque entrei em delírio. Aoacordar do desmaio — ou quando julgueique acordara senti o cúter a arfar num

mar grosso e, ao olhar pela escotilha, vicom grande espanto um homem alto aoleme. As mãos firmes crispadas nasmalaguetas da roda, seguravam-nascomo se foram um torno. Pode-seimaginar o meu assombro. A vestimentaera a de um marinheiro estrangeiro, ogrande barrete vermelho descaía-lhesobre a orelha esquerda e do todosobressaíam-lhe as grandes patilhaspretas, hirsutas. Seria tomado por umpirata em qualquer parte do Mundo.Olhando o seu aspecto ameaçador,esqueci a tempestade e comecei a pensarse ele não teria vindo para me cortar opescoço. Mas o homem pareceu adivinharisso. «Senor» (1), disse ele desbarretando-se, «não vim para lhe fazer mal». E umsorriso, o mais ténue do Mundo masmesmo assim um sorriso, brincou-lhe norosto que não parecia desagradável

quando falava. «Não vim para lhe fazermal; tenho navegado por onde calha»,continuou, «mas o pior que fiz foi sercontrabandista Sou da tripulação doColombo; sou o piloto do Pinta e vimpara o ajudar. Esteja sossegado Senorcapitão, que eu piloto-lhe o navio estanoite. O que tem é calentura (2), eamanhã já está bom». Comecei a cogitarque o homem devia ser maluco paranavegar com tanta vela larga. Uma vezmais pareceu ler os meus pensamentos, eexclamou «Além vai o Pinta à nossafrente; temos de o alcançar. Dá-lhe velas;dá-lhe velas! Vale, vale, muy vale!» (*)Depois, trincou um bom naco de pãopreto e disse-me «Fez mal, capitão, emmisturar queijo com ameixas. Queijofresco nunca é de fiar se não se souber deonde veio. Quien sabe ( ); pode ser feito

de leche de capra (3) e tornar-secaprichoso...» «Alto, aí!», gritei eu, «não estou comcabeça para ouvir sermões.» Arrastei-me para estender um colchão edeitar-me nele em vez de continuarestendido no pavimento, mas nãodespreguei os olhos do estranho visitanteque, depois de me fazer notar mais umavez que o meu mal era «só dores ecalentura», entrou de cantar, por entresorrisos à socapa, uma canção selvagem: High are the waves, fierce, gleaming!High is the tempest roar! High the sea-bird screaming! High the Azore! Altas são as vagas, furiosas, cintilantes! Alto é o rugir da tempestade! Alto o gritoda ave marinha! Alto o açor! Creio que nesta altura tinha já começadoa melhorar; sentia-me mal humorado erecalcitrei: «Detesto os teus versos. O teu

açor devia estar no poleiro, e estaria lácom certeza se fosse um pássarorespeitável!» Pedi-lhe para atar com umafilaça o resto da cantiga, se porventurahouvesse mais para cantar. Sentia-meainda cheio de dores. O Spray continuavaa embarcar grandes mares, mas no estadofebril em que me encontrava, julgava queestavam a cair no convés embarcaçõesque uns estivadores descuidadosatiravam de cima de vagões, do cais a queeu supunha ter o Spray amarrado, semdefensas com que o proteger. «Vocêspartem os barcos!» gritava eu uma e outravez à medida que as vagas vinhamembater na cabina por cima da minhacabeça. «Vocês partem os barcos, mas nãoconseguem fazer mal ao Spray. Ele é rijo!»Quando me passaram as dores e a febre,descobri que o convés, completamentebranco de espuma, tinha sido varrido de

tudo quanto o mar pudera levar.Verifiquei também, com grande espanto,que nesse momento, já manhã alta, oSpray mantinha o rumo em que eu omareara, e seguia como um cavalo decorrida. Colombo não o teria mantidomelhor no rumo. Durante a noite, o Spraytinha coberto noventa milhas por sobreum grande mar. Senti-me grato para como velho piloto, mas estranhei um tantoque ele não tivesse arriado a bujarrona. Otempo estava a abater e pelo meio-diadescobriu o Sol. Uma altura meridiana e adistância registada na barca patente, quetrazia sempre a reboque, deram-me asaber que o barco tinha feito umadireitura ao longo das vinte e quatrohoras. Sentia-me agora bastante melhor masainda tão fraco que não deitei fora dosrizes que tinha dado a noite anterior,

apesar do vento ser agora bonançoso;limitei-me a pôr as roupas molhadas aoSol, e depois deitei-me no convés adormir. Quem me havia de aparecerentão, em sonhos, senão o velho amigo danoite passada. «Fez muito bem em seguiro meu conselho», dizia-me ele, «e, se opermitir, gostaria de lhe fazer companhiadurante a viagem, só por amor àaventura.» Depois de dizer o que tinha adizer, desbarretou-se e desapareceu tãomisteriosamente como viera pararegressar, julgo eu, ao fantasma do Pinta.Acordei bem disposto, sob a impressãode ter estado na presença de um amigo emarinheiro de larga experiência. Apanheias roupas que por essa altura já estavamenxutas e depois, por inspiração, tratei delançar ao mar todas as ameixas que tinhaa bordo.

O dia 28 de Julho foi excepcionalmentebelo. O vento que soprava do Noroesteera leve e o ar perfumado. Passei revistaao guarda-roupa e enverguei uma camisabranca para o caso de cruzar com algumpaquete com gente de educação a bordo.Lavei também alguma roupa para lhetirar o sal e no fim de tudo isto já mesentia com fome. Acendi então o lume emuito conscienciosamente assei duasperas que pus de lado, enquantopreparava um púcaro de café; não mefaltava açúcar nem creme para estes doispreparados. Mas o prato de honra foi umfricassé de peixe que chegava para dois.Voltava a sentir-me de boa saúde e estavacom um apetite positivamente famélico.Enquanto jantava (1) pus uma cebola nofogareiro a estufar para comer à merenda,lá mais para a tarde. Bela vida.

Ao princípio da tarde o Spray passoujunto a uma tartaruga enorme quedormia à tona da água. Acordou com oarpão a atravessar-lhe o pescoço, se é quechegou a acordar. Custou-me imensoembarcá-la mas acabei por consegui-lo,içando-a com a adriça da boca enfiadanuma das barbatanas; era quase tãopesada como o meu dóri. Vi maistartarugas e, para não ter de arriar ogrande sempre que me servia das adriças,tratei de aparelhar um teque para as içar.È um bife de tartaruga é qualquer coisade bom. Não tinha que me queixar docozinheiro e era das regras da viagem ocozinheiro não ter razões de queixa demim. Nunca reinou tanta harmonia entrea tripulação de um navio. Nessa noite, aementa foi bifes de tartaruga, chá, tosta,batatas fritas e cebola estufada, comsobremesa de peras assadas e creme.

(*) Jantar era então a refeição do meio-dia.De tarde, tinha passado por uma bóia queia flutuando ao sabor do mar; estavapintada de encarnado e tinha um pau debandeira de quase uns dois metros dealtura. Como se aproximasse uma mudança detempo, não consegui pescar maistartarugas nem peixes antes de chegar aoporto seguinte. Em 31 de Julho caiu-meem cima, de repente, mau tempo doNorte, com mares grossos, e tive dereduzir o pano. A singradura do Spray,nesse dia, foi só de cinquenta e umamilhas. Pelo dia 1 de Agosto continuou omau tempo com mar cavado. O cúterseguiu, por toda essa noite, navegando aum largo, com o grande rizado nosterceiros e bujarrona na antegalha. Às 3da tarde do dia seguinte, rebentou aamura da bujarrona e a vela ficou em

tiras. Ao cair da noite enverguei numestai a giba de pescador. E quanto àbujarrona... deixá-la ir; aproveitei-lhe ospedaços e, no final de contas, estava aprecisar de panos de cozinha. No dia 3 de Agosto o tempo aliviou ecomecei a descobrir prenúncios de terra.Como o mau tempo se tinha feito sentirna cozinha, lembrei-me de experimentarfazer pão e, para tanto, preparei umapanela com brasas, no convés, para ocozer e o facto é que depressa estavapronta uma carcassa. Uma das grandescaracterísticas da culinária marítima éque o apetite duma pessoa, no mar, ésempre bom — facto que já tinhaverificado quando cozinhava para atripulação de pescadores nos meustempos de rapaz, conforme já fiz menção.Acabado o jantar, sentei-me, horasesquecidas, a ler a vida de Colombo e,

enquanto o tempo passava, via as avesvoando todas na mesma direcção, e dissepara comigo: «É para ali que está a terra». Na madrugada seguinte, 4 de Agosto,estava à vista da Espanha. Viam-sefogueiras em terra; era país habitado. OSpray prosseguiu no mesmo rumo até sechegar à terra, por alturas de Trafalgar.Nessa altura deitei uma quarta para olargo para passar o Estreito de Gibraltare, pelas 3 da tarde, ou seja, menos devinte e nove dias após ter deixado o CaboSable, lançava ferro no porto de Gibraltar.No final desta travessia preliminar,encontrava-me de perfeita saúde, nemdemasiadamente fatigado nem tolhido,mas antes em melhores condições quenunca, embora estivesse magro como umfio de vela. Já bastante tempo depois de ter ancorado,vi passar, a costear a margem africana do

estreito, duas barcas italianas que nessamanhã tivera bem perto de mim, pelotravés, e que deixara a perder de vista,pela popa, ainda antes de chegar a Tarifa.Pelo que sei, o Spray bateu tudo quantovinha atravessando o Atlântico, exceptoos navios de vapor. Estava tudo em ordem, a bordo, masesquecera-me de trazer da Horta a cartade saúde, de modo que quando o temívelmédico do porto veio a bordo, armou-seuma zaragata. Mas isso era mesmo o queas circunstâncias requeriam. Se alguémquiser conseguir alguma coisa de umverdadeiro britânico, tem de começar porarmar uma tremenda discussão. Eu sabia-o muito bem e por isso fui disparando osmeus argumentos, um atrás do outro, omelhor que podia, até que o doutor medisse, por fim, «Bem, a sua tripulação estáde saúde, não há dúvida, mas quem sabe

que doenças havia no seu último porto?»A observação era razoável. «Devíamosmetê-lo no forte, sir!», rugiu ele; «mas nãofaz mal. Livre prática, sir! Vamos embora,arrais!» E foi a última vez que o vi. Na manhã seguinte, uma lancha devapor, muito mais comprida que o Spray,veio prolongar-se com ele — pelo menosficou com uma parte prolongada com oSpray, — com os cumprimentos doAlmirante Bruce, o oficial de mais altapatente no porto, informando que haviaum fundeadouro para o Spray na área doarsenal. Isso era para lá do novo molhe, eeu ancorara junto do velho onde o marestava agitado e desagradável. É claro,fiquei satisfeitíssimo por me mudar, e fi-lo logo que possível pensando em quebela companhia ia ficar entre oscouraçados Collingwood, Barfleur eCormorant, que então ali faziam base e a

bordo dos quais vim, depois, a serrecebido principescamente. Put it thar! (1), como dizem osamericanos, foi o acolhimento que me fezo Almirante Bruce quando me apresenteino almirantado para lhe agradecer acedência do ancoradouro e o reboque dalancha até à doca. «Quanto aoancoradouro, está tudo bem se lhe dájeito; e também o havemos de rebocar atélá fora quando estiver pronto para largar.Mas diga, de que reparações necessita? Ódo Hebe, podem-me dispensar o veleiro?O Spray precisa duma bujarrona nova! Ódas reparações! podem-me olhar peloSpray? Mas diga-me, meu velho, o senhordeve ter vindo a correr atrás do diabopara chegar cá, sozinho, em vinte e novedias! Mas vamos-lhe tornar as coisasagradáveis por aqui!» Nem o navio de

Sua Majestade Collingwood foi tão bemtratado como o Spray em Gibraltar. Mais tarde, nesse dia, veio até mim obrado: «Ó do Spray! Mrs. Burce gostariade vir a bordo cumprimentar o Spray.Hoje calha bem?» «Muito bem!», gritei eualegremente. No dia seguinte, Sir F.Carrington, ao tempo Governador deGibraltar, com outras altas patentes daguarnição e todos os comandantes doscouraçados vieram a bordo e assinaram odiário do Spray. Depois, veio novo brado:«Ó do Spray!» «Pronto!» «Cumprimentosdo Comandante Reynold. Está convidado para bordo do Collingwood, em família,às 4:30 da tarde. Mas venha antes das5:30». Eu já tinha reparado na pobreza domeu guarda-roupa e concluído que, parajanota, era um autêntico falhanço. (*) Put it there! Não se fala mais nisso.Literalmente, seria ponha isso aí.

«Esperam que venha, sir, de chapéu alto ecasaco de rabo de grilo.» «Então não posso ir!» «Deixe-se disso! Venha como estiver, é oque queremos dizer.» «Pronto, senhor!» A recepção do Collingwood foi excelente,e não seria por levar um chapéu alto quechegasse da Terra à Lua, que eu teriagozado melhores momentos e me sentiriamais em família. Quando um inglêsrecebe a bordo, mesmo nos seus grandescouraçados, põe-se à vontade logo que oconviva entra o portaló e quando diz «emfamília» é mesmo em família que recebe. Nem vale a pena dizer quanto foiagradável a visita a Gibraltar. Da cercapalacial do almirantado vinham-mehortaliças duas vezes por semana e leitetodos os dias. «Ó do Spray!» bradava oalmirante. «Ó do Spray!» «Pronto!» «Hoje

é o seu dia das hortaliças». «Pronto,senhor!» Deambulei muita vez pela velha cidade, eum artilheiro pilotou-me ao longo dasgalerias do rochedo, tão longe quanto erapermitido a um estrangeiro. Das obrasmilitares que há por esse Mundo, não háescavação que se aproxime, em concepçãoou execução, das galerias de Gibraltar.Perante estas obras estupendas, custava-me a crer que estivesse realmente noGibraltar de que falava o velhocompêndio da Geografia escolar. Antes de partir fui convidado para umpiquenique com o governador, os oficiaisda guarnição e os comandantes dosnavios de guerra da base; foi umpiquenique régio. O torpedeiro n.º 9L avinte e dois nós, levou o grupo até à costade Marrocos e trouxe-o de volta. O diaestava uma maravilha; estava mesmo

bom demais para alguém se sentir bemem terra e por isso ninguém desembarcouem Marrocos. O n.º 91 tremia como umafolha ao correr sobre o mar, a toda a forçadas máquinas. O comandante, osubtenente Houver, que não seria aindasenão um rapazinho, manobrava o naviocom a arte de um velho marinheiro. Almocei, no dia seguinte, com o GeneralCarrington, o Governador, em Line WallHouse, um antigo convento franciscano.Neste interessante edifício conservam-serecordações dos catorze cercos queGibraltar suportou. No dia a seguir, janteina residência do Almirante, no palácioque fora em tempos o convento dosMercenários (1). Senti por toda a parte oapoio de mãos amigas, que me instilou acoragem necessária para enfrentar oslongos dias que me aguardavam no mar.A disciplina, a ordem, a alegria que

reinavam em Gibraltar, devo dizê-lo,foram apenas um segundo motivo deencanto naquele baluarte grandioso. Otremendo volume de trabalho que ali sedesenrolava não causava mais excitaçãoque uma viagem calma num navio bemaparelhado por sobre um mar espelhado.Excepto algum mestre de embarcação,numa ocasião ou noutra, ninguémelevava a voz acima do tom normal. (1) Monges da ordem de Nossa Senhoradas Mercês. O Hon. Horatio J. Sprague, cônsul dosEstados Unidos em Gibraltar, honrou oSpray com uma visita no dia 24 deAgosto, um sábado, e mostrou-seencantado por saber como os nossosprimos britânicos haviam sido tão gentispara com ele. . .

CAPITULO V Largando de Gibraltar com a ajuda dumrebocador de Sua Majestade — Alterada aderrota do Spray, do canal de Suez para oCabo Horn — Perseguido por piratasmoiros — Uma comparação comColombo — Ilhas Canárias — Ilhas deCabo Verde — Vida marinha — Chegadaa Pernambuco — Uma factura para oGoverno brasileiro — Preparando para omau tempo do Cabo. Em 25 de Agosto, 2.a feira, o Spray largoude Gibraltar, amplamente compensadodo desvio que fizera, em relação a umarota mais directa, para chegar a esteporto. Um rebocador de Sua Magestadelevou o cúter até onde corria uma boabrisa, a descoberto da montanha; aquiencheram-se-lhe as velas com um ventoque, à medida que o levava para o

Atlântico, foi espertando até se tornarfuriosamente duro. Era minha ideia, enquanto fosse descendoa costa africana, manter-me bem ao largoporque aquelas terras são valhacoito depiratas, mas ainda não tinha andadomuito quando vi um caíque deitar fora doporto mais próximo e meter-se na esteirado Spray. Ora, quando demandeiGibraltar, a intenção era atravessar oMediterrâneo, o Canal de Suez, MarVermelho, e prosseguir a viagem peloEste, em vez de seguir a derrota doOcidente como acabei por fazer. Masalguns oficiais com larga experiência danavegação nestes mares, convenceram-me a alterar o projecto inicial. E com apresença de numerosos piratas ao largodaquelas costas, não podia fechar osouvidos a tais conselhos. Mas ao fim decontas aqui estava eu à mercê de piratas e

ladrões! Mudei o rumo; o caíque fez omesmo. Os dois barcos seguiam emandamento muito rápido mas a distânciaentre eles diminuía de momento paramomento. O Spray comportava-sevalorosamente, excedia mesmo o melhordas suas possibilidades mas a despeito detudo quanto eu pudesse fazer, nãoconseguia evitar que arribasse uma vezou outra. O pano que levava erademasiado e eu tinha que escolher entrerizar ou ficar desmastreado e perdertudo, com piratas ou sem piratas. Decidirizar ainda que tivesse de vir ao combatecom eles em defesa da vida. Não demorei muito a rizar e repicar ogrande — talvez não mais de quinzeminutos; mas entretanto o caíque tinhaganho tanto caminho que já sedistinguiam as trunfas dos tripulantes —pelas quais se diz que o Maomé agarra os

vilões para os levar ao paraíso — econtinuava a aproximar-se ligeiro como ovento. Pelo que agora me era dado ver,percebi que aqueles filhos de gerações depiratas se preparavam para me abordar.Mas, num instante, o ar de satisfação quese lhes espelhava na cara transformou-senum olhar de medo e raiva quando ocaíque, que seguia com pano de mais, seatravessou na crista de uma vaga enorme.Foi este grande mar que, com avelocidade de um raio, veio mudar ocurso dos acontecimentos. Três minutosmais tarde, a vaga alcançava o Sprayfazendo-lhe estremecer todos os madeirose, nesse momento, o estropo da escotarebentou e lá se foi a retranca partidajunto à boca. Num salto, atirei-me àadriça do estai e arriei-o sem perder umsegundo. Arriado o estai e carregado oleme de ló, o cuter, com um grande salto,

veio ao vento. Nos curtos instantes emque ele ficou ali a tremer, meti dentro ogrande, e amarrei a bordo a retrancapartida e todo o resto. Como conseguirecolher a retranca antes que a vela serasgasse, não sei bem, mas a verdade éque nem um ponto se descoseu. Feitoisto, icei de novo o estai e, sem perdertempo a olhar em volta, precipitei-mepara a cabina e peguei na espingarda, jácarregada, e em munições, e trepei aoconvés. Calculava eu que entretanto obarco pirata tivesse recuperado e seencontrasse quase a abordar-me; e nessecaso seria melhor para mim olhar para eleao longo dum cano de espingarda. Foi jácom a arma à, cara que espreitei pelabruma mas num raio de uma milha nãose avistava um pirata. A vaga e a rajadaque me partiram a retranca, tinhamdesmastreado o caíque. Podia ver a

tripulação — uma dúzia de gatunos oumais — lutando para pescar a mastreaçãoe o aparelho da água. Que Alá lhesenegreça a cara! Icei então a bujarrona e, com os doispanos de proa, o barco seguiu emandamento agradável. Dei umaarreatadura na retranca e ferrei o grandea preceito para a noite e, em seguida,deitei duas quartas para o largo paracompensar a corrente e a pesadaondulação que corriam para terra.Quando tudo isto ficou pronto, caíra anoite e já tinha aterrado no convés umpeixe-voador. Peguei nele e levei-o parabaixo para a ceia mas sentia-me cansadode mais para cozinhar, ou até mesmopara comer qualquer coisa já preparada;nem me lembro de alguma vez me tersentido tão cansado como ao anoitecerdaquele dia. Fatigado demais para

dormir, deitei-me no beliche a balançarcom os movimentos do barco e, por voltada meia-noite, levantei-me para cozinharo peixe e fazer uma chávena de chá.Começava a ver, em toda a sua realidade,se é que o não vira antes, o esforço brutalque uma tão longa viagem ia exigir demim. Em 27 de Agosto, nada se via dos moirose das suas terras a não ser dois cumes quese erguiam no horizonte, muito longe, naatmosfera límpida da manhã, e mesmoestes desapareceram na bruma, paraminha satisfação logo que o sol selevantou. A seguir ao episódio com os piratas, ovento soprou muito rijo mas igual, e omar, embora de vaga grossa, não estavadesagradavelmente duro nem perigoso.Quando me sentava na cabina quase nemdava pela ondulação, tão suave era o

movimento largo e cadenciado do cútersobre as vagas. Passada a excitação e adesagradável preocupação do episódio,encontrava-me de novo sozinho comigomesmo, consciente de estar à mercê domar poderoso, nas mãos dos elementos.Mas sentia-me feliz e cada vez maisinteressado pela viagem. Colombo ao velejar no Santa Maria porsobre estes mares, quatrocentos anosantes, não se sentia tão satisfeito como eu,nem tão seguro do êxito do seuempreendimento. Por estas paragens, jáos seus cuidados tinham começado. Atripulação, fosse por má fé, fosse porqualquer outro motivo, tinha-lheavariado o leme enquanto corriam comum temporal comparável talvez ao que oSpray atravessara; e a bordo do SantaMaria já reinava a discórdia, coisa que noSpray se desconhecia.

Depois de três dias de aguaceiros eventos variáveis, deitei-me paradescansar e dormir enquanto o cúter, deleme amarrado, seguia fielmente o seurumo. Em 1 de Setembro, ao amanhecer, nuvensde terra que se amontoavam pela proa,deram-me notícia das ilhas Canárias, nãomuito longe. No dia a seguir, o tempomudou: por todo o céu estendiam-se osbraços de nuvens de tempestade. Do Estepodia ver o harmatão selvagem, ou, doSul, o temível furacão. De todos osquadrantes da bússola espreitava,ameaçadora, a tempestade. Mantinha-meconstantemente pronto a rizar e nãopodia perder tempo a fazê-lo porque, deum momento para o outro, o mar ficavanuma autêntica confusão e eu tinha deguinar a um e outro bordo para levar obarco a galear a vaga em segurança.

Navegava então de modo a ir passarentre a costa africana e a ilha deFuerteventura, o extremo oriental dasCanárias que contava avistar a todo oinstante. Pelas duas da tarde, o tempoaliviou subitamente e vi a ilha, já pelotravés, a menos de sete milhas dedistância. Fuerteventura tem uns 820metros de altitude e, com bom tempo, évisível a muitas léguas de distância. O vento refrescou durante a noite e oSpray fez bom caminho ao longo docanal. Ao amanhecer de 3 de Setembro,encontrava-me a vinte e cinco milhaspara além das ilhas, quando veio umacalmaria precursora de novo pé de ventoque depressa chegou carregado de areiada costa africana. O vento uivavasinistramente e embora não estivéssemosna época do harmatão, ao cabo de umahora tinha coberto o mar de poeira

castanho-avermelhada. O ar manteve-secerrado com a poeira em suspensão,durante toda a tarde, mas o vento rondoupara o Noroeste, ao anoitecer, varreu aspoeiras para terra e o Spray teve maisuma noite de céu claro. O mastro ia agoravergado sob uma pressão constante,poderosa, e a vela panda rasava o marenquanto o Spray seguia com a água notrincaniz, caturrando como que a fazerreverências às ondas. Emocionava-me aosentir a vaga sacudir a proa do barco epassar a correr, depois, sob a quilha. Eraum velejar admirável. Em 4 de Setembroo vento rondou para o Nor-Nordeste e omar passou a correr com o barco. Por volta do meio-dia apareceu à vistaum vapor vindo do Rio da Prata, umtransporte de gado, com rumo aoNordeste, que navegava como se estiveranum temporal. Fiz-lhe sinais mas não

obtive resposta. O navio caturrava nomar de proa e balançava de borda aborda de uma maneira espantosa, e pelasguinadas que dava dir-se-ia que levavaao leme um timoneiro louco. Na manhã do dia 6, encontrei três peixes-voadores no convés e um outro dentro daescotilha da vante mesmo ao pé dafrigideira. Foi a minha melhor pescariaaté então e proporcionou-me um almoçoe um jantar opíparos. O Spray encontrava-se agora em plenoalísio ganhando bom caminho ao longoda sua rota. Nesse mesmo dia surgiu àvista outro cargueiro balançando tãoexageradamente como o seu predecessor.Não icei qualquer sinal mas passei ummau bocado ao cruzá-lo por sotavento.Que grande chaveco! E o que berrava odesgraçado do gado! Já lá vai o tempo emque os navios ao cruzarem-se no mar

braceavam em contrário os joanetes,trocavam dois dedos de conversa e, aoafastar-se, faziam uma salva de canhão. Jálá vai esse tempo... Hoje em dia, ascriaturas já não têm tempo para sefalarem mesmo no meio do grandeoceano, onde as novidades sãonovidades; e quanto às salvas não hádinheiro para a pólvora. Acabou-se apoesia dos velhos veleiros mercantes nomar. A vida é bem prosaica quando nosfalta o tempo para dar os bons-dias unsaos outros. O meu navio, seguindo com o alísio pelapopa, deixava-me os dias livres paradescansar e recuperar. Preenchia o tempoa ler, a escrever, ou a dar uma mão nasvelas ou no aparelho, conforme fossepreciso, para manter tudo em boa ordem.A cozinha pouco trabalho me dava; aementa consistia sobretudo de peixe-

voador, biscoitos quentes com manteiga,batatas, café e creme, pratos estes quedepressa se preparavam. A 10 de Setembro, o Spray passava pertoda ilha de Santo Antão, o extremoNoroeste das ilhas de Cabo Verde. Aaterragem foi perfeita; e, para mais, nãofiz observações para a determinação dalongitude. Próximo da ilha soprava umNordeste de rajadas, mas tratei de rizar opano e fiz-me ao largo das terras altas eventosas de Santo Antão. Deixando asilhas de Cabo Verde a afogar-se nohorizonte, achei-me mais uma vez no mardeserto, rodeado pela solidão. Quandodormia, sonhava que estava só, e estaimpressão nunca me abandonou. Mas, adormir ou acordado, parecia-me conhecerem todo o momento a posição do cúter, ever o barco mover-se ao longo da carta;

isto tornou-se para mim uma imagemviva. Uma noite, estava eu sentado na cabineembebido naquelas visões, quando o somde vozes humanas veio quebrar oprofundo silêncio que me rodeava. Puleiimediatamente para o convés, maisespantado do que é possível descrever.Cruzando a fazer a barba ao Spray porsotavento, passava, como uma aparição,uma barca branca com todo o pano largo.Os marinheiros estavam ocupados embracear as vergas que, por pouco,tocavam no mastro do cúter. Não veionenhum chamamento do voador de asasbrancas, mas ouvi alguém dizer a bordoter visto luzes no cúter e julgar tratar-sede um pescador. Fiquei, depois, sentadolongo tempo no convés sob a luz ténuedas estrelas, pensando em navios e

olhando as constelações na sua viagematravés do firmamento. No dia seguinte, 13 de Setembro, passou,algo distante por barlavento, um grandenavio de quatro mastros, rumo ao Norte. O cúter aproximava-se rapidamente daregião das calmas; já se sentia diminuir aintensidade do alísio e podia-se ver, peloarrepiado da vaga, a acção de umacontra-corrente. Estimei-a em cerca dedezasseis milhas por dia, mas bem no seuinterior a velocidade era superior a isso,correndo para Este. Em 14 de Setembro, do tope do mastroavistei um navio de três mastros queseguia rumo ao Norte. Nem este navionem o da véspera passaram à distância desinais mas mesmo assim foi consoladorpara mim tê-los visto. No dia seguinte oSul carregou-se de grossas nuvens deaguaceiros que acabaram por encobrir o

Sol: outro prenúncio agourento da regiãodas calmas. Foi a 16 que o Spray entrounelas para se debater com rajadas ou ficarinerte por entre calmas melancólicas. Éeste o estado dos elementos entre osalísios do Nordeste e do Sudeste, em quecada sistema de ventos, em luta pelasupremacia, gasta as suas energiasremoinhando em todas as direcções. Paratornar a coisa ainda mais deprimentepara os nervos e a paciência de umapessoa, o mar era empurrado numaconfusão de vagas desencontradas eencrespado por correntes rede-moinhantes. E para que nada faltasse:para completar as desventuras de ummarinheiro, a chuva caía em torrentes,noite e dia. O Spray debateu-se e sacudiu-se durante dez dias, cobrindo apenastrezentas milhas durante esse período. Eeu não disse uma palavra!

Em 23 de Setembro, vim à fala com a belaescuna Nantasket de Boston, em viagemde Bear River para o Rio da Prata,carregada de madeira; depois de umabreve troca de palavras, o Nantasketseguiu o seu caminho e, como levava ofundo sujo, cheio de cracas, levou consigoos animais da escolta do Spray cujo fundoestava muito menos fornecido de talgénero de pastagem (1). Os peixespreferem seguir um navio sujo. Umabarca-patente que se leve a reboqueexerce a mesma atracção sobre os peixesdo alto se tiver cracas agarradas. Um dosanimais deste pequeno cardume dedesertores era um golfinho que veio aescoltar o Spray durante umas mil milhase que se contentara em comer os restos decomida que eu lhe ia atirando; esteanimal tinha sido ferido e por isso, talvez,

não podia correr em busca de peixes paracomer. (*) Se um navio se mantém longo tempona água, a despeito das tintas anti-vegetativas ou de outros processospreventivos, o fundo acaba por se cobrirde limos e de moluscos conquilíferos,como os que vivem agarrados às rochas.Os mais característicos destes moluscossão as cracas, mas em casos extremos atéos percebes se instalam num fundo sujo. Tinha-me habituado à companhia dogolfinho, que conhecia pelas suascicatrizes, e já lhe sentia a falta quandouma vez ou outra se afastava numpasseio ocasional. Um dia, depois de terandado por lá algumas horas, voltouacompanhado de três rabos-amarelos,seus parentes próximos. Este pequenocardume mantinha-se sempre juntonavegando com o Spray, excepto quando

ameaçados por algum perigo ou embusca de alimento pelo mar. A piorameaça para eles eram tubarõesesfaimados que se aproximavam do barcoe que, mais que uma vez, os obrigavam aescapadas difíceis. A maneira comoescapavam ao ataque erainteressantíssima, e eu passava horas aobservá-los. Quando ameaçados,disparavam cada um em sua direcção, demodo que o tubarão, perseguindo umdeles, se afastasse dos restantes; ao fim dealgum tempo regressavam e reuniam-se aum ou a outro bordo do cúter. Conseguipor duas vezes despistar osperseguidores por meio de um tacho deestanho que pus a reboque e que elestomaram por algum peixe luzidio;depois, no momento em que se viravamde lado, naquele gesto peculiar do

tubarão ao abocar a presa, desfechei-lhesum tiro na cabeça. A fragilidade da vida parecia preocuparmuito pouco os rabos-amarelos, se é quede algum modo os preocupava. Todo oser vivo receia a morte, sem dúvida, masalgumas das espécies que tenhoconhecido, limitam-se, quando atacadas,a cerrar o cardume como se soubessemque foram criadas para alimentar ospeixes maiores e desejassem dar omínimo possível de trabalho aos seuscaptores. Já vi baleias nadando emcírculos, à volta de um cardume dearenques e empurrando o peixe para ocentro do cardume, com grandes golpesde cauda que faziam remoinhar a água;quando o peixe miúdo estava bemapinhado no meio do vértice, um ououtro dos leviatans atravessava o centroda massa, de boca escancarada, para

engolir numa só vez o peixe bastante paraencher um bote. Ao largo do Cabo da BoaEsperança vi cardumes de sardinhas eoutro peixe pequeno, tratados de modosemelhante por inúmeros charreus. Nãohavia a mais ténue possibilidade desalvação para as sardinhas enquanto oscharreus circulavam em todos ossentidos, abastecendo-se da periferia docardume. Era extraordinário ver como opeixe miúdo desaparecia, e embora aoperação se repetisse vezes sem contoperante os meus olhos, tão destramenteela era feita que não consegui aperceber-me da captura de uma única sardinha. Ao longo do limite equatorial do alísio doSudeste, o ar estava fortemente carregadode electricidade e os raios e trovões nãofaltavam em profusão. Lembrei-me deque fora nestas paragens que o navioamericano Alert tinha sido destruído por

um raio. A gente do navio, por umextraordinário golpe de sorte, foirecolhida no mesmo dia e levada paraPernambuco, onde me encontrei com ela. Em 25 de Setembro, à latitude de 5o N elongitude 26° 30' W, vim à fala com onavio North Star de Londres. O1 grandenavio achava-se a quarenta e oito dias deNorfolk, Virgínia, e seguia viagem para oRio, onde nos viemos a encontrar de novouns dois meses mais tarde. O peixe que se seguiu na comitiva doSpray foi um espadarte que veio nadar aolado do barco com a sua grandebarbatana preta bem à vista, fora da água;mas logo que deitei a mão ao arpãoarriou a bandeira preta e sumiu-se. Em 30de Setembro, pelas onze e meia damanhã, o Spray cruzava o Equador àlongitude 29° 30' W e ao meio--diaencontrava-se a duas milhas para Sul da

linha. O alísio do Sudeste que começara asoprar, ainda muito fraco, pelos 4o N,dava agora um belo impulso às velas,levando o barco galantemente por sobre omar em direcção à costa do Brasil, queavistei em 5 de Outubro, um pouco aNorte da ponta de Olinda, sem qualquerincidente; e por volta do meio-dia lançavaferro no porto de Pernambuco. Quarentadias de Gibraltar e tudo bem a bordo.Ter-me-ia aborrecido da viagem, durantetodo este tempo? Nem a mais pequenacoisa! Nunca me sentira tão bem em todaa vida e ansiava por ir ao encontro dasexperiências mais arriscadas da passagemdo Cabo Horn. Numa vida como é a dos marinheiros,nada era para estranhar que, depois decruzar o Atlântico duas vezes, e de meachar a meia viagem de Gibraltar para oHorn, me encontrasse ainda entre amigos.

A decisão de navegar de Gibraltar paraOeste não só me permitiu livrar-me dospiratas do Mar Vermelho, mas também,ao trazer-me a Pernambuco, permitia-meaportar a terras familiares. Viajara muitavez por este e outros portos do Brasil. Em1893 fui contratado para comandar atripulação que levou de Nova Iorque parao Brasil o famoso navio construído peloEricsson, o Destroyer, que havia de serempregado contra o grupo rebelde doMello. O Destroyer, diga-se de passagem,estava armado com um canhãosubmarino de comprimento desconforme.Na mesma expedição veio o Nktheroy, onavio que os Estados Unidos compraramdepois durante a guerra com a Espanha, eao qual mudaram o nome para Buffalo. ODestroyer, por muitos motivos, era omelhor dos dois, mas os própriosbrasileiros durante aquela estranha

guerra afundaram-no na Baía, e, com ele,afundaram-se as minhas esperanças dereceber o salário que me era devido; noentanto, podia ter tentado recebê-lo,porque para mim sempre era umaimportante maquia, mas nestes dois anoso rodopio do tempo tinha levado aopoder o grupo do Mello, e embora tivessesido o Governo legítimo que mecontratou, os chamados «rebeldes»sentiam-se muito menos obrigados paracomigo do que eu desejaria. Nas visitas que fiz ao Brasil, traveiconhecimento com o Dr. Pereira,proprietário e editor do El CommercioJournal (1) e pouco depois de terancorado o Spray em Upper TopsailReach (2), o doutor, que era umapaixonado pelos desportos náuticos,veio visitar-me e levou-me pela ria acimaaté à sua residência de campo. A entrada

para a mansão, pelo lado da ria, estavaguardada pela armada do doutor, umaesquadra de embarcações que incluíauma sampana chinesa, um botenorueguês e um dóri do Cabo Ann; esteúltimo fora obtido do Destroyer. Odoutor levou-me muita vez a jantar daboa culinária brasileira para que eupudesse, dizia ele, «salle gordo» para aviagem; mas acabou por verificar que,mesmo comendo do melhor, muito poucoeu engordava. Depois de embarcar hortaliças e todas asoutras provisões necessárias à viagem,em 23 de Outubro preparei-me paralargar. Nesta altura encontrei, na pessoade um colector da Alfândega, um dos dafacção do Mello, incapaz de perdoar, queexigiu que o Spray pagasse a taxa dearqueação pela estadia no porto apesar deele navegar com um certificado de barco

de recreio e, como tal, estar isento detodas as taxas portuárias. O nosso cônsulchamou a atenção do colector para isso eainda o facto — muito poucodiplomaticamente, pensei — de ter sidoeu quem trouxera o Destroyer para oBrasil. «Ah, sim!» respondeu o afávelcolector, «lembramo-nos muito bem». Decerto modo, era esta a sua vez. O sr. Lungrin, um comerciante, para meajudar a sair da dificuldade propôs-mefretar o Spray para lhe transportar umcarregamento de pólvora para a Baía, oque me daria alguns fundos; e quando ascompanhias de seguros se negaram aresponsabilizar-se por um carregamentoembarcado num barco de tão reduzidatripulação, propôs-se embarcá-lo semseguro, tomando sobre si todos os riscos.Isto foi um cumprimento maior, talvez,do que eu merecia. A razão porque não

aceitei o negócio foi porque se o fizesseiria violar o meu certificado de barco derecreio e passaria a incorrer, por esse Mundo fora, em despesasportuárias superiores ao que ganhariacom o frete. No fim de contas um outrocomerciante e velho amigo veio em meuauxílio, emprestando-me o dinheironecessário. (*) Com todas as probabilidades seria«Jornal do Comércio». (**) Desconhecemos qual o ancoradoirodo porto de Pernambuco (Recife) quecorresponda ao nome que lhe dá aqui oCapitão Slocum e cuja correspondênciaem português seria «Braço (ou Ria) doSobre Grande». Seria algum nome usadopelos capitães mercantes americanos quenaquela época demandavam o Rio comfrequência?

Enquanto estive em Pernambuco encurteia retranca, que se partira ao largo dacosta marroquina, tirando-lhe o bocadopartido, o que levou um metro e vinte davergôntea junto à boca. Depois fiz-lheumas orelhas novas para a boca de lobo. Em 24 de Outubro de 1895, um belo diamesmo entre os dias belos do Brasil, oSpray deitou fora do porto depois de umaentusiástica despedida'. No dia 5 deNovembro, depois de uma viagem semincidentes, em que cobri umas cemmilhas por dia, cheguei ao Rio de Janeiroe ao meio-dia deitei ferro perto deVillaganon e aguardei as visitas formaisdo porto. No dia seguinte tratei deprocurar o mais alto lorde do almirantadoe os ministros, para saber o que haviaquanto ao salário que me deviam do bem-amado Destroyer. A alta patente com quefalei, respondeu-me: «Capitão, pelo que

nos toca, pode ficar com o navio e seestiver disposto a aceitá-lo mandamos-lheum oficial para lhe mostrar onde eleestá». Bem demais sabia eu onde o navioestava naquele momento. O tope dachaminé estava ao lume de água, na Baía,e era mais que provável que o restoestivesse por baixo dela, no fundo.Agradeci ao gentil oficial, mas declinei aoferta. O Spray com um grupo de velhoscapitães de navio, deu um passeio pelabaía do Rio na véspera de se fazer ao mar.Como tivesse decidido mudar a armaçãodo Spray para a de iole, ainda no Riotinha-lhe instalado o suporte para ofuturo mastro da catita. Aqueles velhoscapitães inspeccionaram o aparelho eaprestos do barco, e cada um delescontribuiu com qualquer coisa paramelhor o equipar. O Capitão Jones deu

uma âncora e um dos capitães dosvapores deu uma amarra a dizer com aâncora. Nunca a âncora de Jones garrou, ea amarra não só aguentou o Spray sobtempo e abarbado com uma terra asotavento, mas ainda, quando o barco foirebocado nas paragens do Cabo Horn,ajudou a quebrar as vagas que selevantavam à popa, ameaçando cavalgá-lo. . . . . . . . . . . .

CAPITULO VI Largada do Rio de Janeiro — O Sprayencalhado nas areias do Uruguai — Salvopor um fio de um naufrágio — O rapazque descobriu um cúter — O Spray aflutuar mas com avarias — Gentilezas docônsul britânico em Maldonado —Acolhimento caloroso em Montevideu —Excursão a Buenos Aires — Encurtando omastro e o pau da bujarrona. Em 28 de Novembro, o Spray largou doRio de Janeiro e começou por entrar numtemporal desfeito, que causou muitosprejuízos em terra e grandes estragos ànavegação. Foi bom para o barco terapanhado o tempo ao largo, longe dosperigos da costa. Enquanto navegava a costear, nesta faseda viagem, verifiquei que muitos dospequenos navios que encontrava e que

durante o dia conseguiam ultrapassar oSpray, voltavam a ficar-lhe à popadurante a noite. Para o meu barco a noitee o dia eram a mesma coisa; para osoutros, evidentemente, havia umadiferença. Num dos belos dias encontrei,depois de largar do Rio, o vapor SouthWaies que veio à fala com o Spray e,mesmo sem lhe ter sido pedido, deu alongitude calculada ao cronometro 48° W,«tão aproximada quanto posso dizer»,acrescentou o capitão. O Spray, com o seurelógio de lata tinha exactamente amesma estima. Sentia-me já à vontadecom o meu método primitivo denavegação mas, mesmo assim, não mesurpreendeu pouco ver a minha estimaconfirmada pelo cronometro do navio. Em 5 de Dezembro avistei um lugre-patacho e, durante dias, navegámos deconserva ao longo da costa. Ao cabo

destes dias começou-se a fazer sentir umacorrente a puxar para o Norte, tornando-se-me assim necessário abraçar-me maiscom a terra que, de resto, já se tornarabastante familiar para o Spray. Mas aquitenho de confessar um erro: abracei-mede mais. Por outras palavras, aoamanhecer de 11 de Dezembro, o Spraytinha pegado forte e bem no areal. Eraarreliador, mas depressa verifiquei que ocúter não corria perigo sério. Fora a falsaaparência dos medões que, sob a luzbrilhante da Lua, me enganara elamentava agora ter-me fiado nasaparências. O mar, embora razoa-velmente calmo, trazia ainda uma calemaque rebentava na praia com certa força.Consegui desembarcar o dóri e tirei umancorete e um virador; mas já era tardepara desencalhar, alando pelo ferro,porque a maré estava a vazar e o Spray já

se tinha enterrado uns 30 centímetros.Tratei então de largar a âncora maior, oque não foi tarefa fácil; logo que meti oferro e a amarra no meu único escaler, odorizito, com carga de mais para ele,encheu-se de água na rebentação. Cortei aamarra para a transportar em duas cargase consegui então sair à rebentação,levando a âncora talingada com quarentabraças e com uma bóia no chicote daamarra. Mas o dóri fazia muita água e, nomomento em que me encontreisuficientemente afastado para lançar aâncora, estava já cheio até ao alcatrate eafundava-se. Não podia desperdiçar ummomento; uma falha neste instante podiadeitar tudo a perder. Larguei os remos,pus-me de pé e erguendo a âncora porcima da cabeça, lancei-a para longe nopreciso instante em que o dóri se voltava.Lembrei-me então subitamente de que

não sabia nadar e agarrei-me ao alcatratedo barco emborcado. Tentei endireitá-lomas fi-lo com energia de mais e o dóri fezcambona para o outro lado deixando-me,como antes, agarrado à borda e com ocorpo dentro de água. Num momento deraciocínio frio, concluí que, embora ovento soprasse levemente para terra, acorrente puxava-me para o mar e algumacoisa teria de ser feita. Estive submersotrês vezes, tentando endireitar o dóri, e jáestava dizendo: «É agora que me afogo»,mas enchi-me de fúria decidido aendireitá-lo para que nenhum dos mausprofetas que deixara atrás de mimpudesse dizer: «Eu bem o avisei». Pormuito grande ou pequeno que tivessesido o perigo, posso dizer com toda averdade que o momento foi o mais serenoda minha vida.

Depois de endireitar o dóri pela quartavez, à custa dos maiores cuidados,consegui içar-me para dentro dele e, comum remo que apanhei, abiquei à praiaestafado e ensopado de água salgada. Aposição do cúter, agora completamenteem seco, preocupava-me, e só pensavaem pô-lo de novo a flutuar. Não foi difícilcarregar a segunda parte da amarra emanilhá-la à primeira, à qual tivera ocuidado de amarrar uma bóia antes de ameter no dóri. Trazer depois o chicote devolta para o cúter foi trabalho de poucamonta e creio mesmo ter sorrido dasminhas preocupações ao ver que, no meiodaquelas dificuldades, as minhas decisõesacertadas, ou a minha boa estrela, não meabandonaram. A amarra chegava daâncora, mergulhada em águas fundas, aocabrestante do Spray mesmo à justa, paradar uma volta na gola, sem sobrar um elo.

Tinha lançado o ferro à distância ideal.Tudo quanto agora podia fazer erarondar o brando da amarra e esperar pelamaré seguinte. Tinha feito trabalho bastante para estafarqualquer homem mais robusto que eu, emuito satisfeito me senti quando mepude estender na areia enxuta paradescansar; o Sol já ia alto, espalhando umcalor generoso sobre a Terra. Embora asituação pudesse ser pior, nem por issodeixava de me encontrar na costaselvagem de um país estranho, e não mesentia inteiramente seguro pela minhapropriedade como, de resto, cedo seconfirmou. Ainda não havia muito que estava napraia, quando ouvi o tape--tape de patasde cavalo aproximando-se pela praia; obarulho cessou mesmo junto do medãoatrás do qual me abrigava do vento.

Espreitando cautelosamente vi, montadonum cavalo, um rapaz que, com todas asprobabilidades, era o mais admirado detodos os rapazes de toda a costa. Tinhaencontrado um cúter! «Deve ser meu»,pensou ele, «pois não fui eu o primeiro avê-lo na praia?» Não havia dúvidas, aliestava ele, bem em seco e pintado debranco. Deu algumas voltas trotando emtorno do barco e, não encontrando odono, engatou o cavalico que ao cabrestodo Spray e começou de puxar por elecomo se o quisesse levar para casa mas, éclaro, aquilo era demais para um cavaloarrastar. Já com o dóri a coisa foidiferente, e arrastou-o numa certadistância, escondendo-o por trás de ummedão num maciço de ervas altas. Aideia dele seria talvez trazer mais cavalospara levar embora a preza maior, masquando se aprontava para marchar em

direcção à aldeia para ir buscar reforços,mostrei-me ao rapaz, com o que elepareceu aborrecido e desapontado.«Buenos dias, muchacho» disse-lhe eu.Resmungou uma resposta e olhou-meatentamente da cabeça aos pés. Depoisdesfechou-me uma catadupa deperguntas — mais que seis Ianques aomesmo tempo conseguiriam fazer — parase inteirar de onde viera o navio, quantotempo gastara no caminho e que estavaeu a fazer ali na praia de manhã tão cedo.«É fácil responder às tuas perguntas»,retorqui-lhe, «o meu navio veio da Lua,demorou um mês a chegar e está aquipara levar um carregamento de rapazes».Mas se não estivesse alerta, podia ter-mesaído caro insinuar uma tal coisa:enquanto falava, este filho do campo (1)enrolou o laço pronto a lançá-lo e, em vezde se deixar levar para a Lua, parecia

dispor-se a rebocar-me para casa atravésdos campos do Uruguai, à popa da pilecabrava. O local onde encalhara era CastilloChicos, umas sete milhas para Sul dafronteira do Brasil com o Uruguai e,naturalmente, os nativos daqui falavam oespanhol. Para me reconciliar com o meuvisitante matutino disse-lhe que tinhabiscoitos no barco e desejava trocá-los por leite e manteiga. Ao ouvir isto o rosto dorapazito iluminou-se num largo sorrisoque mostrava bem que ficara muitointeressado e que até no Uruguai umbiscoito de marinheiro alegra o coraçãode um rapaz e faz dele um amigo certo. Orapaz quase voou a caminho de casa paravoltar pouco depois com leite, manteiga eovos. Afinal, encontrava-me numa terrade abundância. Com ele vieram outros,novos e velhos, de ranchos vizinhos e um

colono alemão que muito boa ajuda meveio a prestar. Do Forte Teresa, distante poucas milhas,veio também um agente da políciamarítima, «para proteger os seus bensdos nativos da planície», disse ele.Aproveitei, porém, a ocasião para lhedizer que se tomasse conta da gente dasua própria aldeia, eu cá me encarregariade olhar pelos da planície, e apontei paraum indescritível «comerciante» que já metinha roubado da cabine o revólver eoutros artigos miúdos que eu sóconseguira recuperar mercê de um golpeousado. Este sujeito não era nativouruguaio. Aqui, como em outros lugaresque visitei, não são os nativos os queenvergonham o país. Nesse mesmo dia veio uma mensagem docapitão do porto de Montevideu cominstruções para os polícias da costa

prestarem toda a assistência ao Spray. Oque, de resto, não era necessário porquejá tinha um guarda vigiando o barco efazendo tanta zaragata como a que teriafeito o naufrágio de um vapor com milemigrantes a bordo. O mesmomensageiro trouxe, do capitão do porto, apromessa de mandar um rebocador paratomar à toa o Spray até Montevideu. Ooficial era homem de palavra: no diaseguinte chegava um potente rebocador;mas, para encurtar a história, com a ajudade um soldado, do alemão e de umitaliano chamado «Angelo de Milão», játinha desencalhado o cúter e seguia, deretranca bem folgada, na frente de umbelo vento de feição. A aventura custouao Spray não poucas pancadas na areiadura: perdeu a falsa quilha de ferro, partedo sobressano inferior e sofreu ainda

outras avarias, mas tudo isto se reparoufacilmente, mais tarde, na doca. No dia seguinte, ancorava emMaldonado. O cônsul britânico, com afilha e uma outra jovem, veio a bordotrazendo consigo um cabaz com ovosfrescos, morangos, garrafas de leite e umagrande carcaça de pão doce. Foi uma boaaportagem e a recepção foi bem melhorque aquela que em tempos tivera emMaldonado quando aqui entrei com aequipagem doente, a bordo da minhabarca, o Aquidneck. Nas águas da baía de Maldonado abundao peixe e, na época da reprodução, asfocas vêm abicar à ilha que fica fronteira àbaía. As correntes são grandementeafectadas, nesta costa, pelos ventosdominantes e, assim as marés podemsubir muito acima dos níveis normaisquando sopram temporais do Sudoeste

ou pelo contrário descer abaixo dos níveisnormais da baixa-mar quando sopra oNordeste. Precisamente o Nordeste quetrouxera o Spray a Maldonado tinhaprovocado uma dessas marés deixandoem seco, até uma boa distância da praia,rochas cheias de ostras e de outrossaborosos mariscos. Apanhei umabatelada de ostras e mexilhões, e umnativo que pescava na ponta de umasrochas a descoberto, servindo-se domexilhão para isca, apanhou uns tantossargos de bom tamanho. O sobrinho deste pescador, um petiz deuns sete anos de idade, merece umareferência especial por ser, para umrapazinho, o blasfemo mais completo queencontrei em toda a viagem. Chamava aovelho tio todos os nomes ordináriosjamais proferidos sob a luz do Sol porqueeste o não ajudava a passar o vau, e,

enquanto praguejava redondamente emtodos os modos e conjugações da línguaespanhola, o tio continuava pescando,cumprimentando-o uma vez ou outrapelas suas habilidades. Depois deesgotado um tão rico vocabulário, ogaroto pulou para os campos de ondevoltou logo em seguida com umramalhete de flores, e, todo ele sorrisos,ofereceu-mo com a inocência de um anjo.Lembrei-me de ter visto daquelas flores,alguns anos antes, nas ilhotas do rio, maispara montante. Perguntei ao pequenopirata porque razão mas tinha trazido.«Não sei», disse-me ele; «foi porque meapeteceu». Fosse qual fosse a influênciaque fez nascer tão delicado desejo norapaz selvagem das pampas, devia seruma razão de largo alcance, pensei eu, epoderosa, mais que os mares.

O Spray largava pouco depois paraMontevideu onde à chegada, no diaseguinte, foi recebido por entre os apitosdos vapores, de tal modo que me sentiembaraçado e cheguei a desejar terpassado despercebido. Viajar sozinho detão longe, pode ter parecido aosUruguaios um feito digno de sercelebrado; mas a viagem que ainda tinhaperante mim era tão extensa e tão árdua,que qualquer demonstração nestemomento me parecia como um elogioprematuro. Logo que o Spray ancorou emMontevideu, os agentes da Royal MailSteamship Company, os Srs. Humphreys& Co., mandaram-me dizer que tinhamresolvido docar e reparar de graça o barcoe oferecer--me vinte libras esterlinas, oque fizeram à letra, além de outras coisasmais. Os calafates de Montevideu

puseram o melhor do seu cuidado notrabalho de tornar o cúter estanque. Oscarpinteiros repararam a quilha e o salva-vidas (o dóri) que pintaram de tal formaque eu já mal o distinguia de umaborboleta. O Natal de 1895 veio encontrar o Sprayaparelhado e provido até de um fogãoimprovisado, feito a partir de um grandetambor de ferro em que se abriu um bomnúmero de furos para lhe dar tiragem; achaminé subia a direito, saindo pelacobertura da escotilha da vante. Não erapor favor que lhe chamava um fogão deaquecimento; estava sempre esfomeadomesmo de lenha verde, e, durante os diasfrios e molhados da terra do Fogo, fez-memuito bom jeito. A porta girava emmissagras de cobre que um dosaprendizes do estaleiro, animado delouvável zelo, tinha polido até aquilo

tudo reluzir como a bitácula de latão deum paquete da P. & O. O Spray estava agora pronto para o mar,mas em vez de se fazer logo ao largo, fezprimeiro uma excursão, rio acima, em 29de Dezembro. Um velho amigo meu, ocapitão Howard, famoso em Cabo Cod eno Rio da Prata, veio também até BuenosAires, onde chegámos na madrugadaseguinte com vento rijo e corrente tanto àfeição que o barquinho se excedeu a simesmo. Senti-me satisfeito por ter abordo um marinheiro com a experiênciado Howard, para testemunhar ocomportamento do Spray velejando semlevar qualquer ser vivo ao leme. OHoward sentou-se junto da bitácula semdespregar os olhos da agulha, enquanto oSpray ia seguindo tão serenamente que sediria que a rosa dos ventos estava presacom pregos. Nem tanto como a quarta

parte de uma quarta se desviou do rumo.O meu velho amigo tinha possuído ecomandado um cuter-piloto no Rio daPrata, durante anos, mas isto fê-lo sair desi, e acabou por bradar «Que eu encalheno Banco Chico se já alguma vez vi umacoisa assim!» Talvez que nunca tivessedado ao seu cúter a oportunidade demostrar do que era capaz. Acima do todoo resto, o que aqui mais interessasalientar é que o Spray ia a navegar sobrebaixos fundos, com uma forte corrente eem condições difíceis pouco comuns. O'Capitão Howard levou tudo isso emconta. Durante os largos anos que o Howardpassara longe da terra natal, nãoesqueceu a arte de preparar filetes depeixe ensopado (chowders) e, para odemonstrar, trouxe consigo uns belospeixes com que fez um cozinhado régio.

Logo que o ensopado ficou pronto,encaixou-se o tacho entre dois caixotes nopavimento da cabina, para não se voltar,e ali fomos comendo e desfiando históriaspassadas, enquanto o Spray ia subindosozinho o estuário no escuro da noite. OHoward contou-me histórias dos canibaisda Terra do Fogo e eu falei-lhe do pilotodo Pinta a governar-me o barco notemporal ao largo dos Açores, dizendo--lhe que olhava sempre para ver se ele iaao leme, quando o vento soprava rijocomo agora. Não acuso o Howard desuperstição — nenhum de nós ésupersticioso — mas quando lhe falei emvoltar no Spray para Montevideu, abanoua cabeça e embarcou num vapor. Havia já uns anos que não via BuenosAires. No local onde em tempos sedesembarcava dos paquetes para seguirde carroça para a cidade, tinham-se

construído docas magníficas edespenderam-se verdadeiras fortunas emremodelar o porto; os banqueiros deLondres podem dizê-lo. O capitão do porto mandou-me dizer queo procurasse sempre que necessitasse dequalquer coisa e fiquei certo de que podiacontar com a sua amizade. O cúter foimuito bem tratado em Buenos Aires; adocagem e as outras obrigaçõesportuárias foram gratuitas e afraternidade da marinhagem de recreioda cidade recebeu-me com a maior dasgentilezas. Na cidade as coisas nãoestavam tão modificadas como no porto edepressa me senti mais em minha casa. De Montevideu, tinha mandado umacarta de «Sir» Edward Hairby dirigida aoproprietário do «Standard», o sr. Mulhalle, em resposta, foi-me assegurada umacalorosa recepção pelo mais caloroso

coração, creio eu, que pulsa longe daIrlanda. Assim que o Spray amarrou, o sr.Mulhall, com uma parelha de cavalosfogosos, veio à doca para me levar ajantar a sua casa onde tinha um quarto àminha espera. E estávamos no dia de AnoNovo de 1896. A derrota do Spray tinhasido acompanhada nas colunas do«Standard». O sr. Mulhall levou-me gentilmente a veralguns melhoramentos da cidade edepois, fomos à procura de velhos pontosde referência. O homem que vendia«limonada» na plaza (1) quando pelaprimeira vez visitei esta maravilhosacidade, ainda lá estava vendendolimonada ao copo, por dois cêntimos;fizera já uma fortuna com aquilo. Umalguidar e uma bica que lhe ficava aliperto, uma quantidade modesta deaçúcar amarelo e uma meia dúzia de

limões a flutuar na água adocicada, eratudo quanto formava o seu equipamentoindustrial e a mercadoria. De vez emquando acrescentava a água com abomba amiga, mas os limões aguentavamaté ao fim, e tudo isto a dois cêntimos ocopo. Procurámos em vão o homem que emtempos vendia «whisky» e caixões emBuenos Aires; o avanço da civilizaçãotinha-o esmagado e do seu nome sórestava a memória. Era um homemempreendedor. Lembro-me de ver asrimas de pipas de «whisky» arrumadasnum dos lados do armazém e, no outrolado, separadas por um ligeiro tabique,ordenadas da mesma maneira, urnas detodos os tamanhos e em grande número.Aquela estranha arrumação pareciaobedecer a uma ordem bem determinadaporque por cada pipa que se esvaziava

enchia-se um caixão. Além do «whisky»barato e de muitos outros licores, vendia«cidra» que fabricava com uvas deMálaga estragadas. No campo dasactividades da sua empresa contava-setambém a venda de águas minerais, nãocompletamente virgens de micróbios.Não há dúvida de que este homemsatisfazia todos os gostos, exigências econdições dos fregueses. Mais além, na cidade, vivia ainda o bomhomem que escrevera numa parede doarmazém, para leitura e edificação doshomens de pensamento: «Este Mundoperverso vai ser destruído por umcometa! O proprietário deste armazémestá, por isso, disposto a vendê-lo porqualquer preço para se livrar dacatástrofe». O meu amigo, o sr. Mulhalllevou-me a ver o temível cometa comuma cauda em repuxo pintado em

tamanho desconforme nas paredesfrágeis da loja do comerciante. Ainda em Buenos Aires, tirei o mastro eencurtei-o de sete pés. Tirei também unscinco pés ao comprimento do pau dabujarrona, mas mesmo assim, parecia-meque ainda se estendia muito para fora daborda, e, mais que uma vez, ao ter de iraté ao cais para rizar a vela, lamentei nãolhe ter tirado mais um pé. . . . . . . . . . . .

CAPITULO VII Levantando ferro de Buenos Aires —Acesso de emoção — Cavalgado por umagrande vaga — Entrada tempestuosa noestreito — Bela oferta de uma saca detaxas, do capitão Samblich — Ao largo doCabo Froward — Perseguido por índiosda Baía de Fortescue — Um tiro deraspão para o «Pedro Preto» —Abastecendo de lenha e água na Enseadadas Três Ilhas — Vida animal. Em 26 de Janeiro de 1896, o Spray,alestado e bem abastecido, largou deBuenos Aires. Mal soprava uma bafagemà saída; as águas do grande rio pareciamuma superfície prateada e foi com muitoprazer que aceitei a toa de um rebocadorpara sair o porto. Mas logo a seguir veioum pé de vento que levantou um marmuito feio e o rio deixou de ser de prata

para ser todo ele lama. O Rio da Prata éum sítio falso para as tempestades equem nele navegue deve estar sempre deolho aberto às rajadas. Antes de escurecerfundeei a sotavento de terra no melhorsítio que encontrei mas fui sacudido todaa noite até me fartar de mares debailadeiras. Na manhã seguinte meti ocúter a caminho e, de pano rizado, fui abordejar rio abaixo com ventos ponteiros.Depois de passar essa noite no local ondeo piloto Howard tinha embarcado comigopara a viagem pelo rio acima, deitei parao largo, mareando de modo a passar aPonta do índio a um 'bordo e o BancoInglês no outro. Havia já muitos anos que não passavapara Sul destas paragens. Não possodizer que esperava encontrar apenas bomtempo no caminho para o Cabo Horn,mas enquanto estava ocupado a

manobrar velas e aparelho apenaspensava em seguir, seguir sempre. Era sóquando ancorava naqueles sítios desertosque se apoderava de mim o sentimentode temor, e no último fundeadouronaquele rio monótono e lamacento, aindaque fraqueza pareça, dei livre curso aosmeus sentimentos. Resolvi então nãovoltar a ancorar a Norte do Estreito deMagalhães. Em 28 de Janeiro, o Spray tinha passado aPonta do índio, o Banco Inglês e todos osoutros perigos do Rio da Prata e, comvento de feição, deitou para o Estreito deMagalhães, fazendo força de vela acaminho das terras encantadas do Sul, atéque acabei por esquecer as bênçãos dasnossas terras suaves do Norte. O meu navio passou à vontade a BaíaBranca, depois o Golfo de S. Matias e ocolossal Golfo de S. Jorge. Na ideia de

evitar as temíveis correntes de maré, oterror de todos os barcos grandes oupequenos ao longo desta costa, dobreitodos os cabos com um resguardo decinquenta milhas pelo menos, porqueestes perigos estendem-se muitas milhaspara o largo. Mas para evitar um perigofui meter-me noutro. Um dia, bem aolargo da costa da Patagónia, quando obarco seguia a um largo com o panorizado, uma vaga tremenda a culminaruma série de grandes vagas, veio paranós com grande escarcéu, rugindoenquanto se lançava para a frente. Foi sóo tempo de arriar todo o pano e de meiçar na adriça do pique, e, ao olhar, tinha-a sobre mim com a crista poderosa,alçando-se à altura de um mastro. Nomomento seguinte a montanha de águacavalgava o barco, submergindo-o. OSpray foi sacudido de alto a baixo e

adornou sob o peso do mar, mas adriçou-se e emergiu rapidamente, e galeougarbosamente as vagas que vinham aseguir. Podia não ter decorrido senão umminuto o tempo que estive refugiado noaparelho sem ver um só bocadinho docasco do Spray, podia até ter sido bemmenos que isso, mas a mim pareceu-melargo tempo porque sob tão grandeexcitação vive-se depressa e, em poucossegundos, uma pessoa pode pensar muitacoisa da sua vida passada. E não só opassado desfilou na minha frente com avelocidade de uma corrente eléctrica,como até tive tempo, enquanto memantinha em tão arriscada posição, paratomar resoluções para o futuro;resoluções essas que haviam de levarmuito tempo a realizar. A primeira,lembro-me, foi que, se o Spray se safassedeste perigo, havia de dedicar o melhor

das minhas energias a construir um naviomaior segundo as suas linhas; e estaespero ainda cumpri-la. As outraspromessas, menos fáceis de cumprir,devia tê-las feito sob reservas. Apesar detudo, o incidente, que me encheu demedo, foi apenas mais uma prova dasqualidades náuticas do Spray, etranquilizou-me perante a perspectiva doCabo Horn selvagem. Desde o momento em que a grande vagacavalgou o Spray até desfechar com oCabo das Virgens, nada ocorreu capaz deacelerar o pulso a uma criatura. Pelocontrário, o tempo descobriu, o maraquietou-se e a vida tornou-se serena.Assisti muita vez a fenómenos demiragem. Um albatroz poisado na águasurgiu-me um dia como se fora umgrande navio; duas focas que dormiam àflor da água pareciam duas baleias

enormes, e ia jurar que via terra onde sóhavia bruma. Depois o caleidoscópiomudava e, no dia seguinte, navegavanum mundo de anões. Em 1 de Fevereiro, o Spray dobrava oCabo das Virgens e entrava no Estreito deMagalhães. O cenário voltava a ser real elúgubre; o vento Nordeste, muito rijo,atirava com a surriada de um brancoimaculado ao longo da costa; fazia ummar de afundar qualquer navio menosmarinheiro. Ao aproximar-me da entradado estreito, vi que tinha pela frente duascorrentes de maré, uma junto à terra e aoutra mais ao largo. Meti o Spray, com opano nos últimos rizes, através da vaga,numa espécie de canal entre as duascorrentes. Fui assim uma boa distância,com um grande mar seguido, atéencontrar uma corrente muito forte pelaproa ao dobrar o cabo, mas o barco

venceu-a e depressa entrou em navegaralegremente a sotavento do Cabo dasVirgens onde encontrava águas calmas acada passo. Mas as algas enormes queondulavam sob a quilha agoirando rochassubmersas, e os destroços de um grandevapor esmagado na praia em frente,davam à cena um aspecto sinistro. Mas não era facilmente que eu ia poderpassar; as virgens tinham que cobrartributo do Spray por dobrar o seupromontório. Ao temporal do Nordesteseguiam-se aguaceiros de ventointermitentes do Noroeste. Rizei as velasdo cúter e, sentando-me na cabina pararepousar a vista, senti-me tão fortementeimpressionado com o que teria a esperarna minha frente que até o ar querespirava parecia avisar-me do perigo. Omeu subconsciente ouviu o brado «Ó doSpray!», como num grito de alerta. Saltei

para o convés espantado de alguém porali conhecer tão bem o meu barco para ochamar pelo nome na escuridão. Onegrume era cerrado em toda a volta,excepto ao longe onde se levantava ovelho e familiar arco branco, o terror doCabo Horn, impelido rapidamente porum temporal do Sudoeste. Tive só tempode arriar e abafar fortemente todo o pano,até ele atingir o Spray como um tiro decanhão; e a primeira meia hora que seseguiu foi qualquer coisa que nunca maisesquecerei em matéria de temporais.Durante trinta horas continuou a soprarvento duro, e o cúter não conseguia levarmais que o grande rizado nos terceiros eo estai; mas com este pano aguentou-sevalentemente e não se deixou levar parafora do estreito. Nas rajadas mais fortes, oque ocorria com frequência, tinha mesmode abafar todo o pano.

A este temporal seguiu-se uma brisaesperta, e o Spray, depois de passar osestreitos sem incidente, lançou ferro emPunta Arenas em 14 de Fevereiro de 1896. Punta Arenas (Ponta das Areias) é umaestação chilena de abastecimento decarvão e tem à roda de dois milhabitantes de várias nacionalidades, compredomínio da chilena. Quanto àcomunidade desta terra tristonha,dedicando-se à criação de carneiros, àextracção de ouro e à caça, não parecia sera pior deste nosso Mundo. Emcompensação, os nativos, da Patagónia eda Terra de Fogo, eram tão abjectosquanto as relações com negociantes semescrúpulos os podiam ter tornado. Umaboa parte do comércio por aqui era otráfico de aguardente. Se havia alguma leique proibia a venda do veneno, a verdadeé que ninguém a cumpria. Belos

exemplares da raça patagónica queentravam de manhã na cidade com arinteligente e desembaraçado, já antes danoite estavam animalescamente bêbadose despojados das peles que levavam paravender; bem se podiam arrepender dejamais terem visto um branco. Nessa altura, Punta Arenas era portofranco, mas já se encontrava em vias deconstrução um edifício alfandegário elogo que este esteja pronto passarão acobrar direitos e taxas portuárias. O lugarera guardado por polícia militar e, alémdisso, havia uma espécie de força devigilância que uma vez por outra tinha depegar em armas; mas por via de regra, naminha opinião, sempre que havia umaexecução não era o culpado que pagava.Pouco antes da minha chegada oGovernador, um sujeito de espírito jovial,tinha mandado um grupo de jovens

pilhar uma povoação de nativos do Fogoe arrasar tudo quanto pudessem, emrepresália do recente massacre datripulação de uma escuna, ocorrido emqualquer outro lado. A terra pelava-se por notícias e mantinhadois jornais — diários, creio eu. O capitãodo porto, um oficial de Marinha chilenoaconselhou-me a embarcar gente para medefender dos índios do canal mais paraOeste, e falou-me em esperar por umacanhoneira que me podia dar reboque.Depois de calcorrear o lugar, apenasdescobri um homem disposto a embarcare, mesmo este, só com a condição de euarranjar outro homem e um cão; mascomo não encontrasse mais ninguémdisposto a vir e não quisesse cães a bordo,não falei mais no caso e limitei-me acarregar as armas. Estava eu neste dilemaquando veio ter comigo o Capitão Pedro

Samblich, um austríaco de largaexperiência e uma bela alma, que meofereceu um saco de taxas de pregarpassadeiras, dizendo que aquilo valiamais que todos os atiradores e todos oscães da Terra do Fogo. Afirmei-lhe nãoter em que utilizar as tachas a bordo. OSamblich sorriu-se da minhainexperiência e teimou que havia usopara elas; «Mas tem de as utilizar comcautela», acrescentou, «quer dizer, nãolhe ponha você os pés em cima». Comesta discreta alusão ao emprego das taxasapanhei a ideia, e percebi a forma deconservar o convés a salvo durante anoite, sem ter de ficar de vigia. O Samblich interessou-se muito pelaminha viagem e pôs-me a bordo algunssacos de biscoitos e uma boa porção deveado fumado, declarando que o meupão, que era de massa de biscoito e

facilmente se partia, não era tão nutritivocomo o dele que era tão duro que só separtia com uma martelada tesa. Deu-me,depois, a bússola do seu próprio cúter,certamente bem melhor que a minha, eofereceu-se para lhe desenvergar o panogrande e dar-mo se eu o aceitasse. E porfim, este homem de coração grandetrouxe uma garrafa cheia de pó de oiro doFogo, que tinha escondida algures, epediu-me para tirar algum porque mepodia fazer jeito durante a viagem. Masnão quis fazer um tal saque a um amigo efiz bem. As taxas do Samblich, como ascoisas se passaram, foram de mais valiaque o ouro. O capitão do porto, vendo-me decidido apartir mesmo sozinho, e nada podendofazer para me impedir, não levantou maisobjecções mas aconselhou-me, no casodos selvagens me tentarem cercar nas

pirogas, a atirar a acertar, e a começar adisparar a tempo, evitando no entantomatá-los, se possível, com o queconcordei de bom grado. Depois destasexortações, o oficial deu-me a autorizaçãode saída isenta de qualquer taxa, elevantei ferro no mesmo dia, 19 deFevereiro de 1896. Não foi sem pensar emaventuras estranhas e movimentadas queporventura me esperassem, que deiteipara o coração do país dos selvagens daTerra do Fogo. Um vento de feição levou-me, noprimeiro dia, de Punta Arenas à Baía deSão Nicolau, onde me haviam dito quepodia encontrar selvagens; mas como nãovisse sinais de vida, ancorei por oitobraças de água e ali passei a noite acoberto de uma alta montanha. Foi aquique experimentei pela primeira vez osterríveis pés de vento a que chamamos

em inglês williwaws, que cursam aolongo do estreito, desde este ponto até aoPacífico. São rajadas de ar comprimidoque o Bóreas lança das montanhas emroldões. Um williwaw a valer é capaz depôr um navio, mesmo despido de velas,de cobertas a prumo; mas, como qualqueroutro vento de rajadas, abate a espaçosainda que seja por breve tempo. O dia 20 de Fevereiro, dia do meuaniversário, encontrou-me completa-mente só, não vendo sequer tanto comoum pássaro à vista, ao largo do CaboFroward o extremo meridional docontinente americano. Ao alvorecerestava eu a largar para o objectivoseguinte. Ventos de feição impeliram o Spray maistrinta milhas na sua rota, levando-o até àBaía de Fortescue, onde me viimediatamente rodeado por fogueiras de

sinais dos nativos, que ardiam por todosos lados. Durante o dia, as nuvens tinhamcorrido ao Oeste por sobre a montanha,mas à noite o meu bom vento Este faleceue, na vez dele, levantou-se vento duro doOeste. À meia-noite ancorei a sotaventoduma ilhota e tratei de preparar umachávena de café, de que me sentia muitonecessitado; para dizer a verdade, asúltimas horas a bordejar por entreaguaceiros e contra a corrente fizeram-sesentir a valer nas minhas forças. Depoisde verificar que o fundo era de boa tença,bebi a tisana. Pus àquele sítio o nome deIlha do Café. Fica a Sul da Ilha Carlos daqual um estreito canal o separa. Ao amanhecer, o Spray ia de novo acaminho numa bolina cerrada, masfundeei numa calheta da Ilha Carlos,depois de fazer duas milhas e meia decaminho. Aqui fiquei dois dias em

sossego, amarrado com dois ferros emfundo de algas. Na verdade, podia até terficado ali em sossego indefinidamente seo vento não abatesse: é que durante essesdias o vento soprou tão rijo que nenhumbarco se podia ter aventurado no estreito,e como os nativos andavam por outrosterritórios de caça, o ancoradouro da ilhaera seguro. No fim da tremendatempestade de vento, voltou o bomtempo; levantei ferro, então, e voltei adeitar ao longo do estreito. Em dado momento comecei a ser seguidopor pirogas tripuladas por selvagens deFortescue e, quando o vento começou acair, as pirogas começaram a ganharcaminho até chegarem ao alcance da voz.Nessa altura, um selvagem de pernastortas pôs-se em pé e gritou-me: «Yam-merschooner! yammerschooner!» que é asua maneira de pedir esmola. «Não!»

respondi eu. Como não queria quepercebessem que estava sozinho, salteipara a cabina, passei pelo paiol, mudandode roupa à medida que ia andando esurgi pela escotilha da vante. Depois,peguei no bocado que cortei ao pau dabujarrona em Buenos Aires e que aindatinha a bordo, dependurei-lhe umasroupas de marinheiro e instalei-o à proa,preso por um cabo por meio do qual eu opodia fazer mexer. Com este, fazíamostrês, e nenhum de nós queria«yammerschooner»; mas entretanto osselvagens aproximavam-se cada vez maisdepressa. Pude ver, na canoa que seencontrava mais perto, que, além dosquatro remadores, havia outros sentadosno fundo e com frequência os remosmudavam de mão. Quando chegaram aoitenta jardas, disparei um tiro a cruzar aproa da piroga mais próxima; pararam

todos, mas só por um instante. Vendo queteimavam em se aproximar mais, dispareio segundo tiro a passar tão perto dosujeito que queria «yammerschooner»,que mudou logo de ideias e berrouapavorado, «Bueno jo via Isla» esentando-se na piroga ficou um bocado aesfregar o braço esquerdo. Estava apensar no bom conselho do capitão doporto quando puxei o gatilho, e devia terapontado a acertar; ter falhado o sr.«Pedro Preto» de raspão, foi o mesmoque tê-lo falhado por uma milha. Pelaalgaravia espanhola e pela barba (osnativos do Fogo são imberbes) não tivedúvidas de que se tratava do tal vilão, ummestiço renegado, cabecilha de váriosmassacres e o pior assassino da Terra doFogo, que as autoridades procuravamhavia dois anos. Mas o indivíduo fugiupara terra e os outros foram atrás dele.

E foi tudo quanto se passou no meuprimeiro dia entre os selvagens. Fundeei,pela meia-noite na Enseada das TrêsIlhas, a umas vinte milhas da Baía deFortescue. Viam-se fogueiras de sinais eouvia-se o ladrar de cães na outramargem do estreito mas o local onde seencontrava o Spray estava deserto. Tomeicomo regra que, onde se vissem pássarossossegadamente poisados ou focasdescansando nas rochas, não seencontravam índios selvagens. Nãoabundam as focas nestas paragens mas naEnseada das Três Ilhas vi uma em cimadum rochedo, além de outros indícios daausência de selvagens. No dia seguinte, o vento soprava aindamuito duro e, embora estivesse asotavento da terra, o Spray garrou e eutive de içar velas e bordejar mais pelaenseada acima até fundear numa calheta

quase completamente fechada. Emqualquer outro momento ou local istoteria sido uma imprudência e mesmoagora era seguro unicamente porque ovento que me obrigou a abrigar-meimpedia os índios de atravessar o estreito.Vendo assim o caso, desembarqueiacompanhado de uma arma e ummachado numa ilha em que de modoalgum me deixaria surpreender; deiteiabaixo umas árvores e cortei cerca de umcord (1) de lenha que deu para carregar odóri várias vezes. Embora intimamente seguro de não haverselvagens nas proximidades, enquantocarregava a lenha, nas minhas idas evindas para o bote, não larguei a armapor um momento. Enquanto tivesse aespingarda e um campo de tiro de oitentametros, sentia-me absolutamente àvontade.

As árvores da ilha, muito escassas, eramuma espécie de faia e de cedro atrofiado,e ambas davam um belo combustível. Atéos ramos verdes da faia, que pareciam dequalidade resinosa, ardiam rapidamenteno meu soberbo fogão. Descrevi emdetalhe o modo como me abasteci delenha para que o leitor, que gentilmenteme seguiu até aqui, possa ver, como emtodos os outros pormenores da viagem,os cuidados que tomei contra todos osgéneros de surpresas, viessem elas deseres vivos ou dos elementos. No Estreitode Magalhães era indispensável a maiorvigilância. Nesta contingência, vi quetinha suspenso sobre mim o mais sériorisco de toda a viagem — a ameaça deselvagens astuciosos, contra a qual tinhade me precaver de forma muito especial. O Spray largou da Enseada das Três Ilhasde manhã, logo que o vento abateu, mas

teve de voltar a abrigar-se de outro pé devento. No dia seguinte tornou a deitarfora do fundeadouro e, poucas milhasmais para diante, aportou à Baía deBorgia, onde de vez em quando ancoravaalgum raro barco; nas árvores, em terra,viam-se tabuletas que as tripulações alitinham pregado, com a data daaportagem pintada ou gravada. Nadamais havia a indicar que alguma vez alitivesse desembarcado um homemcivilizado. Tinha acabado de inspeccionarcom o óculo aquele triste local epreparava-me para desembarcar no dóripara ir a terra tomar notas, quandoentrou a canhoneira chilena Huemel, e osoficiais, que vieram a bordo,aconselharam-me a sair dali quanto antesnão precisando de muita eloquência parame convencer. Aceitei a oferta gentil docapitão que se prontificou a dar-me

reboque até um local chamado Baía deNotch, umas oito milhas mais paradiante, onde ficaria a salvo do pior doshomens do Fogo, e ao escurecerancorávamos ali, enquanto o vento desciadas montanhas sobre nós em williwawsviolentos. Tivemos uma bela amostra do tempo noEstreito de Magalhães, quando o Huemel,uma canhoneira de boa construção emáquinas potentes, depois de ter tentadodeitar de novo a caminho no dia seguinte,se viu obrigado, pela força do vento, avoltar atrás, ancorar e esperar até o pé devento abater; e muita sorte teve emconseguir voltar atrás. O encontro com este navio foi um favordos deuses. Os oficiais eram marinheirosde alta classe e cavalheiros educados.Uma reunião que fizeram de improviso abordo do Huemel, em Notch, devia ser

difícil de bater mesmo em qualquer outrolugar do Mundo. Um dos guarda-marinhas cantou canções popularesfrancesas, alemãs, espanholas e até (assimo disse ele) uma russa. O facto doauditório não distinguir entre si aslínguas das canções, não foi coisa capazde estragar a festa. (*) Cerca de 3,6 m3. No dia seguinte, logo que o vento abateu,o Huemel seguiu viagem e voltei a ficarsozinho. Passei então o dia a embarcarmais lenha e água, e quando acabei já otempo melhorara. Fiz-me então de vela elarguei daquele lugar desolado. Sobre a primeira passagem do Spray aolongo do estreito, pouco haverá a dizerque difira do que já narrei. Ancorei elevantei ferro muita vez, lutei durantedias contra a corrente, com vento defeição, uma vez ou outra a ajudar-me a

fazer umas poucas milhas, até ir fundearabrigado em Porto Tamar, com o CaboPilar à vista pelo Oeste. Senti, então, pela primeira vez o latejar dogrande oceano que se estendia perantemim. Senti que deixara todo um mundopara trás e ia abrir um mundo novo naminha frente. Passara já os domínios dos selvagens. Viapela popa gigantescos amontoados degranito, montanhas de aspecto morto,desolado. Ressumava de toda a terra aimpressão de uma transformação ina-cabada. No monte que dominava PortoTamar, erguia-se um farolim a mostrarque já ali estivera um homem. Mas quemsabe se ele não morreu de isolamento etristeza? Não é uma terra desolada olugar para alguém gozar a solidão. Além de alguns cães pertencentes aosselvagens, não avistei animais no estreito

para Oeste do Cabo Froward. Aqueles viaeu muita vez, e ouvia-os uivar noite e dia.As aves eram raras. Surpreendia-me, porvezes, o grito penetrante de uma ave queme parecia ser o mergulhão. Via-se, porvezes, fugindo de algum perigo, o «pato-vapor», assim chamado por se deslocarcom as asas por cima da água. Não podevoar mas, batendo a água com as asas,move-se mais rapidamente que um barcoa remos ou uma piroga. As poucas focasque vi eram muito tímidas e, quanto apeixes, pouco ou nada vi. Não pesqueium único; mas devo dizer que raramentelançava um anzol durante toda atravessia. O que abundava ao longo detodo o estreito eram mexilhões deexcelente qualidade e deles me servilautamente. Havia também uma espéciede cisne, mais pequeno que o patoalmiscarado americano, que podia ter

abatido a tiro, mas numa tal solidão nãome sentia com alma para roubar umavida, a não ser em defesa própria.

CAPÍTULO VIII Do Cabo Pilar para o Pacífico — Impelidopara o Cabo Horn por uma tempestade —A maior aventura do Capitão Slocum nomar — Entrando no estreito pelo Canalde Cockburn — Alguns selvagensdescobrem as taxas — Perigo de tições —Uma série de williwaws — Rumo aoOeste, novamente. Foi em 3 de Março que o Spray largou doPorto Tamar pondo a proa ao Cabo Pilarcom um vento do Nordeste, que eufervorosamente esperava que se man-tivesse até me ver longe de terra; mas nãome estava reservada tão boa sorte.Depressa começou a chover e o Nordestecarregou-se não pressagiando nada debom. O Spray aproximou-se rapidamentedo Cabo Pilar e, sem hesitar, mergulhouno Oceano Pacífico, apanhando o seu

primeiro banho na tempestade quecrescia. Já não havia regresso ainda queeu o desejasse, porque a terra estavaagora escondida no negrume da noite. O vento espertou e eu rizei nos terceiros.O mar, desencontrado, estava ameaçador.Era num tempo assim que o velhopescador rezava: «Lembra-te, Senhor, deque o meu navio é tão pequeno e O' martão largo». Não via mais que as cristasbrilhantes das vagas que mostravam osdentes brancos quando o Spray sebaloiçava sobre elas. «Tudo para me fazerao largo» gritei, e dei todo o pano que obarco podia aguentar. Naveguei toda anoite a um largo mas, na manhã de 4 deMarço, o vento rondou para o Sudoeste edepois, bruscamente, para o Noroeste deonde soprou com força terrível, e o Spray,despido de velas, correu com o temporalem árvore seca. Nenhum navio do

Mundo podia navegar contra um ventotão duro. Sabendo que a tempestadepodia continuar durante dias a fio, e queseria impossível navegar para Oeste aolongo da costa da Terra do Fogo, nada merestava senão deixar-me levar para Este.De qualquer modo, a única manobrasegura, naquelas circunstâncias, eracorrer com o tempo. Assim segui para oSudeste, como que a deitar para dobrar oHorn, enquanto as vagas se erguiam ecaiam gritando a história do mar sem fim;mas a Mão que as erguia foi a mesma queamparou o Spray. O meu barco corriaagora com o estai rizado, de escotas bemcaçadas; para melhor o manter no rumo oquebrar o mar que se acastelava à popa,larguei dois cabos compridos pela ré, edepois amarrei o leme a meio. Com estamareação, foi correndo com o tempo semembarcar um só mar, e mesmo no auge

da tempestade não deixou de se portarvalorosa e nobremente. As apreensõesque sentia quanto às suas qualidadesforam-se para sempre. Depois de fazer tudo quanto tinha a fazerpela segurança do barco, corri para aescotilha da vante, entre duas vagas, epreparei café e um bom guisado irlandêsno fogão de lenha. Como sempre fiz abordo do Spray, procurava comerrefeições quentes, mas nesta corrida aolargo do Cabo Pilar, com marespantosamente encapelado e desen-contrado, senti o apetite esmorecer e sómais tarde voltei a cozinhar.(Confidencialmente — estava enjoado!) O primeiro dia da tempestade foi a provareal do Spray, no pior mar que o CaboHorn e as suas redondezas selvagens nospodiam ter oferecido; e em partenenhuma do Mundo se podia encontrar

mar mais duro que nestas paragens, aolargo do Cabo Pilar, a sentinela feroz doHorn. Mais para o largo, embora o marcontinuasse muito grande, sentia-memenos receoso de perigos. Aí correu oSpray, ora como um pássaro suspenso dacrista de uma onda, ora como um pobreser perdido nos abismos entre as vagas.Passaram-se dias inteiros que eu contavacomo quaisquer outros mas sempre comuma emoção especial — uma emoção dedelícia. No quarto dia do vendaval, como meestivesse aproximando rapidamente doextremo do Cabo Horn, marquei na cartao ponto estimado e soltei o rumo do Cabopara Port Stanley, nas Ilhas Falkland,onde podia de novo alestar e meter acaminho; quando acabava de fazer isto,avistei, através de uma aberta nas

nuvens, uma montanha alta distanteumas sete léguas pelo través. O pior dotemporal já tinha passado, por estaocasião, e o Spray já levava envergada naretranca uma vela redonda, em vez dagrande que ficara feita em tiras. Trateientão de colher os cabos que levava areboque e icei esta vela tosca, além doestai que já ia solto, orcei e fiz proa à terraque se me afigurava uma ilha. E eraefectivamente uma ilha, embora nãoaquela que eu pensava. Exultava com a ideia de voltar a entrar noEstreito de Magalhães e bordejar ao longodele até ao Pacífico, porque ao largoestava mais que duro; com efeito, o marestava enorme. Quando o cúter eraapanhado por rajadas, mesmo só sob oestai rizado, a vela ao grivar fazia-oestremecer da quilha aos topes! Sealimentasse ainda alguma sombra de

dúvida sobre a segurança do barco, seriacertamente o receio de abrir água pelastábuas de resbordo junto à carlinga, masnão tive de me servir da bomba uma sóvez. Entretanto, com todo o pouco panoque podia aguentar, o cúter seguia paraterra como um cavalo de corrida, egoverná-lo por sobre as cristas das vagasde modo a não o deixar atravessar, eraum belo trabalho. Conservei-me ao lemetodo o tempo, tirando do casco tudoquanto ele podia dar. A noite caiu antes de chegar a terra,deixando-me a apalpar o caminho nomeio da escuridão. Ao cabo de poucotempo avistei rebentação a alvejar naminha frente. Carreguei logo o leme edeitei para o largo mas fui imediatamentesurpreendido pelo bramir da rebentaçãopela proa, outra vez, e pela amura desotavento. Estranhei tal coisa porque nas

paragens onde julgava encontrar-me nãodevia haver mar a quebrar. Afastei-meum bom bocado, depois meti em cheio,mas voltando a encontrar rebentação metiproa à terra outra vez. Foi assim, entreperigos, que passei o resto da noite.Granizo e neve impelidos pelas rajadasferozes fustigavam-me a pele, até ficarcom a cara em sangue; mas queimportava? Ao amanhecer vi que estavano meio da Via Láctea do mar, a Noroestedo Cabo Horn; tinha sido a rebentação deum mar tremendo, sobre enormescachopos, que ameaçara destruir o meubarco durante a noite. Tinha sido a Ilhada Fúria, a ilha que, na véspera, avistei edemandei: e que panorama tinha agoraperante os meus olhos em todo o redor!Não era o momento próprio para mequeixar da pele ferida. Que podia eufazer senão meter-me por entre os

rochedos à procura de uma passagem? Seo Spray escapara aos cachopos durante anoite, com certeza que havia de encontrarmeio de sair dali durante o dia. Foi esta amaior aventura de toda a minha vida nomar. E só Deus sabe como o meu navioescapou. Acabei por alcançar sotavento de umasilhotas, onde me encontrei abrigado emáguas calmas, e subi então ao mastro paraobservar a cena que deixara atrás de mim.O grande naturalista Darwin viu um diaesta paisagem, do convés do Beagle, eescreveu no seu diário: «Qualquerhomem do campo que tenha visto a ViaLáctea, fica com pesadelos para umasemana». Podia bem ter acrescentado «ouqualquer marítimo». A boa fortuna do Spray seguia-nos deperto. Enquanto navegava por entre umlabirinto de ilhas, verifiquei encontrar-me

no Canal de Cockburn, que desembocano Estreito de Magalhães num pontofronteiro ao Cabo Froward, e ter jáultrapassado a Baía dos Ladrões, de nomesugestivo. E nessa noite, de 8 de Março,ancorava numa enseada acolhedora noTurn! A bordo do Spray, cada pulsaçãocontava por um agradecimento. Estive a meditar nos acontecimentos dosúltimos dias e, por estranho que pareça,em vez de me sentir repousar, sentado oudeitado, comecei a sentir-me abatido eextenuado; mas um prato quente deveado estufado depressa me pôs em boascondições para poder dormir. Quandocomecei a sentir sono, espalhei as tachasno convés e fui dormir recordando oconselho do meu bom amigo Samblich,de as não pisar eu. Tive o cuidado deverificar que não poucas ficavam com a«extremidade funcional» virada para

cima; é que, ao passar a Baía dos Ladrões,tinha visto duas canoas largar da praia eseguir na esteira do Spray: não podiaignorar que já não estava só. É do conhecimento geral que ninguémpisa uma tacha sem dizer qualquer coisaacerca do caso. Um bom cristão assobiaráao pôr um pé na «ponta de trabalho» datacha; um selvagem uivará e agitará osbraços no ar. Foi isto que aconteceu porvolta da meia-noite enquanto eu dormia.Os selvagens julgando que já me tinhamdeitado a mão, com cúter e tudo,mudaram de ideias ao saltar para oconvés, e julgaram então que eu ou umoutro qualquer lhes havia deitado a mãoa eles. Não precisei de um cão: osselvagens uivavam como uma matilha.Nem precisei da espingarda. Oscavalheiros saltaram desordenadamenteuns para as pirogas, outros para o mar

(para se refrescar, suponho eu), referindo-se ao caso em linguagem bastanteenérgica, enquanto se sumiam. Dispareialguns tiros quando subi ao convés, parafazer saber aos velhacos que estava emcasa, e depois voltei a ir dormir, nacerteza de não voltar a ser incomodadopor criaturas que se tinham ido emboratão cheias de pressa. Os do Fogo, sendo cruéis, sãonaturalmente cobardes, e olham umaespingarda com temor supersticioso. Oúnico perigo real a temer deles era queme cercassem o barco à distância de tirode flecha ou que armassem umaemboscada cercando-me num anco-radouro. E quanto a um assalto peloconvés, mesmo que não me servisse dastachas, podia tê-los corrido a tiro, dacabina ou da escotilha da vante.Conservava sempre algumas munições à

mão na cabina, no paiol e na escotilha davante, de modo que se tivesse de retirarpara qualquer deles, poderia «defender apraça» disparando através do convés. Talvez o maior perigo a temer fosse ofogo. Trazem lume em todas as pirogas eninguém pensa em tal coisa por sercostume dos selvagens comunicar entre sipor meio de sinais de fumo. Mas o tiçãoinofensivo que se conserva meio apagadono fundo da piroga, pode aparecer emchamas dentro de uma cabina se não seestiver alerta. O capitão do porto dePunta Arenas chamou-me especialmentea atenção para este perigo. Bem poucotempo antes tinham os selvagensincendiado uma canhoneira chilenaatirando-lhe tições para a câmara, pelasvigias da popa. O Spray não tinha outrasaberturas na cabina ou no convés, alémdas duas escotilhas, e eu prendia-as

sempre de tal modo que ninguém aspoderia abrir sem me acordar. Na manhã do dia 9, depois de um sonoreparador, tirei as tachas do convés, leveilá para fora toda a lona de reserva quetinha a bordo e comecei a coser os váriosbocados para acrescentar uma pena àminha vela grande redonda que aliás eraum toldo quadrado. Segundo todas asaparências, o dia prometia bom tempomas na Terra do Fogo as aparências nadasignificam. Estava eu a pensar por querazão não havia árvores na encosta quedominava o ancoradouro, meio decididoa largar o trabalho de veleiro e adesembarcar com uma espingarda àprocura de caça, quando me caiu em cimaum williwaw com tão terrível violênciaque as duas âncoras garraram e o Sprayfoi levado da enseada para águas fundascomo uma pena. Que admiração não

haver árvores na encosta! Grande Bóreas!A árvore teria de ser toda ela raízes parase aguentar com tão furioso pé de vento. Da enseada até à terra mais próxima porsotavento ia uma longa distância e tinhatempo de alar as duas amarras antes queo barco se avizinhasse de algum perigo, epor isso nada me resultou de mal. Nessedia e no seguinte não avistei selvagens;talvez que por qualquer sinal delesconhecido, pudessem prever aaproximação dos williwaws; pelo menosforam muito prudentes em não se meterao mar no segundo dia. Mal me meteraoutra vez ao trabalho de coser a vela, ovento voltou a apanhar o Spray e levou-opara fora com ferros e tudo, como navéspera. Este vento furioso, coisafrequente na terra de Magalhães,manteve-se pelo dia fora arrastando ocúter ao longo de algumas milhas de

arribas e precipícios que dominavam umapraia íngreme de aparência bravia e nadaconvidativa. Não foi contrariado queconsegui afastar-me dela, embora nãofosse praia paradisíaca aquela para ondesegui. Não tendo outra solução senãocontinuar para diante, fui seguindo sobvela em demanda da Baía de São Nicolau,de onde tinha largado em 19 deFevereiro. Estava-se hoje no dia 10 deMarço! Quando chegasse a esta baía pelasegunda vez, teria circum-navegado aregião mais selvagem da desolada Terrado Fogo. Mas o Spray ainda não tinhachegado a S. Nicolau e foi por um triz quese livrou de ir lá deixar os ossos. Foi orebentamento de uma escota do estai,quando o barco seguia a arfar num marturbulento que me fez ir à proa; nesseinstante vi um recife negro pela proa ecachopos por baixo das bochechas, tão

perto do barco que me senti perdido semremissão e, em pensamento, gritei:«Depois de tudo, estará a mão do destinocontra mim para me fazer acabar nesteburaco negro?» Pulei outra vez para apopa sem me importar com a vela quepanejava e carreguei o leme todo,esperando ouvir os madeiros esmagar-senos rochedos debaixo de mim quando obarco virou no cavado duma vaga. Massob a acção do leme, esquivou-se aoperigo e, no momento seguinte, já tinhapassado para sotavento do recife.Tratava-se da ilhota situada no meio dabaía que demandávamos, e tão a direitotínhamos aproado que quase aabalroámos. O ancoradouro ficava umpouco mais para diante, na baía; conseguichegar lá mas antes que tivesse podidolargar os ferros, outra rajada apanhou ocúter, fê-lo girar como um pião e levou-o

para sotavento da baía. Mais parasotavento avistava-se terra e tratei defazer proa para lá, embora assim voltasseatrás em direcção a Punta Arenas,correndo com o temporal do Sudoeste. Mas depressa consegui dominar o barco epouco tempo depois passava parasotavento de uma montanha, onde a águaera calma como a de uma lagoa e as velasficaram caídas panejando mansamente.Pensei que pudesse aqui ancorar edescansar até ao dia seguinte, sobre umfundo de oito braças, muito chegado aterra. Mas quando larguei a âncora, aindaela não tinha chegado ao fundo e já outrowilliwaw vindo da montanha levava oSpray para o largo, mais depressa do queeu podia dar filame à amarra. Assim, emvez de descansar estive «de serviço aocabrestante», a alar a âncora comcinquenta braças de amarra. Isto foi no

braço do estreito chamado Canal daFome. Ó triste Canal da Fome! Trabalheio resto da noite ao guincho, pensandoquanto mais fácil era a vida para mimquando podia dizer «faça isto!» ou «façaaquilo!», em vez de ser eu a fazê-lo. Maslá fui colhendo a amarra e cantando asvelhas canções dos meus tempos demarinheiro. Nestes últimos dias tinhapassado por muito maus bocados massentia-me agradecido por o meu estadonão ser pior. Rompia o dia quando a âncora chegou àbuzina. Por esta altura tinha caído ovento e, em vez dos williwaws,chegavam-nos agora umas bafagens,enquanto o barco ia descaindolentamente em direcção a Punta Arenas.Chegámos a ter à vista navios nasamarrações, e eu já estava meio decididoa tomar porto para arranjar velas novas,

mas levantou-se vento de Nordeste, quevinha a jeito para fazer cabeça em sentidooposto, e meti a proa do Spray ao Oeste,de novo para o Pacífico, para atravessarpela segunda vez a segunda metade daminha primeira derrota ao longo doestreito.

CAPITULO IX Reparando o pano do Spray — Selvagense uma âncora que dá que falar —Combate de aranhas — Encontro com oPedro Preto — Uma visita ao vaporColômbia — Na defensiva contra umafrota de pirogas — Memorial de viagensno estreito — Uma carga de banhainesperada. Estava resolvido a lançar mão apenas dosmeus fracos recursos para reparar osestragos causados pelo grande temporalque me arrastara para Sudoeste, emdirecção ao Horn, depois de ter saído doEstreito de Magalhães para o Pacífico. Porisso, ao voltar ao estreito pelo Canal deCockburn, em vez de prosseguir paraEste em busca de ajuda em Punta Arenas,meti outra vez para o braço ocidental doestreito, e lancei-me ao trabalho com o

repuxo e a agulha, aproveitando todos osmomentos quer sob amarra quer sob vela.O trabalho era demorado, mas, pouco apouco, o toldo quadrado que levava naretranca foi-se expandindo até àsdimensões de um latino razoável, comuma pena e um gurutil Se não era a velade mais belo corte que andava no mar,era pelo menos muito forte e capaz deaguentar um sopro valente. Um naviocom que mais tarde nos cruzámos, deunotícias nossas informando que o Sprayenvergava uma vela grande de corteaperfeiçoado, dispondo de sistema derizar patenteado; mas não era bem esse ocaso. Durante alguns dias, depois dostemporais, tivemos bom tempo, e o Sprayfez vinte milhas ao longo do estreito, oque, para este período de contrariedades,considerei uma boa distância. Disse eu

que o tempo esteve bom durante unsdias, mas também pouco descanso medeu. As preocupações pela segurança dobarco, e até pela minha vida, nãodiminuíram com a falta do mau tempo.Na verdade, o perigo era ainda maior,uma vez que os selvagens seaventuravam mais ao largo para as suasexcursões de rapina nos diasrelativamente bons; as pirogas erammuito frágeis, indignas até do nome deembarcações, e por isso, com mau marnem se mostravam. Por isso mesmo, ospés de vento eram acolhidos por mimcom maior prazer do que nunca, e oSpray nunca passou muito tempo semeles durante a sua luta contra o Horn. Decerto modo, habituei-me àquela vida ecomecei a pensar que, com mais umavolta pelo estreito, se porventura o cútervoltasse a ser arrastado, passaria eu a ser

o agressor e os selvagens passariaminteiramente à defensiva. Esta ideia apoderou-se de mim na BaíaSnug, onde ancorei de madrugada depoisde passar o Cabo Froward para descobrir,ao romper do dia, que duas pirogas quetentara despistar navegando toda a noite,vinham nesse momento a entrar a baíafurtivamente à sombra de umpromontório. Vinham bem guarnecidas, eos selvagens bem armados de zagaias earcos. A um tiro que disparei a cruzar-lhes a proa, guinaram ambas para umriacho fora do meu alcance. Em riscos deser flanqueado pelos selvagens que sepodiam esconder nas matas que seestendiam até junto de mim, vi-me nanecessidade de içar as velas que aindamal tinha arriado e a atravessar para ooutro lado do estreito, a umas seis milhasde distância. Nesta altura fiquei de mãos

atadas sem poder levantar ferro porque oguincho avariou-se e não havia forças queo fizessem trabalhar. Apesar disso deivelas e deitei para fora depois de tesar aamarra à mão. O cúter arrancou o ferro elevou-o consigo como se ele fora feitopara se rebocar sempre assim por baixoda quilha, e por sua vez a âncora rebocouuma tonelada de algas, ou mais, de umfundão da baía. E lá seguiu isto tudo aosom de uma bela brisa. Enquanto trabalhava até o sangue mecomeçar a correr dos dedos, ia olhandopor cima do ombro em cata de selvagense mandava uma bala a assobiar de cadavez que via mexer um ramo ou umapernada no arvoredo; conservei sempreuma espingarda à mão, e a aparição deum índio ao alcance de tiro seria tomadacomo declaração de guerra.

Tal como as coisas se passaram, porém, oúnico sangue derramado foi o meu emesmo este foi em consequência dealguns encontrões desagradáveis numcunho ou numa malagueta que estivesseao alcance das mãos enquanto eutrabalhava à pressa. Os golpes que fiz nasmãos a alar cabos molhados, endurecidos,tomavam-se, algumas vezes, muitodolorosos e, outras, sangravam abun-dantemente mas depressa cicatrizaram,logo que saí do estreito e veio o bomtempo. Logo que me achei ao largo da Baía Snug,aproei ao vento, reparei o guincho, icei aâncora até à buzina, espatilhei-a e depoisdeitei para um fundeadouro abrigado sobuma alta montanha, umas seis milhasmais para além. Ali fui ancorar por novebraças de fundo, abraçado com umpenhasco que virava para mim uma face

plana, vertical. Como ouvisse a minhavoz reflectida no penhasco, pus-lhe onome de «Montanha do Eco». Avisteiárvores secas um pouco mais para além,onde a riba dava lugar a um varadouro;tratei então de abicar à praia para meabastecer de combustível, não meesquecendo de levar, além do machado,uma espingarda que, durante esses dias,nunca deixei fora do alcance da mão; masnão vi qualquer ser vivo além de umaaranha metida num tronco seco quecarreguei para o barco. A conduta dobicho interessou-me mais que todo oresto em redor de lugar tão selvagem. Nacabina, encontrou-se, por obra do acaso,com outro bicho do mesmo tamanho efeitio, que já vinha no Spray desde Boston— um sujeitinho muito civilizado masterrivelmente desembaraçado. O do Fogo

levantou logo as patas da frente em ar deluta, mas o pequeno de Boston deitou-lhas abaixo num ápice, partiu-lhe aspernas e arrancou-lhas, uma a uma, tãodextramente que, menos de três minutosdepois do combate começar, a aranha doFogo já não se distinguia de uma mosca. Na manhã seguinte, apressei-me a zarpardepois de uma noite de vigília naquelazona fantasmagórica, mas antes delevantar ferro preparei uma chávena decafé quente sobre um belo lume nogrande fogão de Montevideu. No mesmolume foi incinerada a aranha do Fogo,morta na véspera pelo guerreiro deBoston a que, tempos depois, umasenhora escocesa da Cidade do Cabo pôso nome de «Bruce», ao ouvir da suaproeza na Montanha do Eco. E o Spraydeitou para a Ilha do Café, que avistara a

primeira vez no dia do meu aniversário,20 de Fevereiro. Aqui apanhou novo pé de vento que oobrigou a procurar abrigo a sotavento daIlha Carlos. Numa ponta escarpada dailha viam-se fogueiras e sinais, e umatribo de selvagens reunida aqui depois daminha primeira passagem, manobrou aspirogas para se chegar ao Spray. Não eraprudente ancorar porque o fundeadouroficava ao alcance de um tiro de flecha dapraia; mas fiz sinais dando a entenderque se podia aproximar uma piroga,enquanto o Spray ia seguindo sob vela asotavento da terra. Fiz sinais às restantespara se afastarem e, a propósito, pus umabela espingarda Martini-Henry bem àvista, ao alcance da mão, em cima dorufo. Na piroga que se aproximou,gritando sem cessar o seu lamento demendigos, «yammerschooner», vinham

duas mulheres e um índio, os maishorríveis exemplares da raça humana quevi em todas as minhas viagens.«Yammerschooner» era a sua lamúria aolargar da praia, e ainda vinham a dizer«yammerschooner» quando a piroga seprolongou com o Spray. As mulherespediram-me comida por sinais; o índio,um selvagem de cara negra, conservava-se taciturno como se a coisa em nada ointeressasse, mas quando virei as costaspara ir buscar biscoitos e carne para asmulheres, saltou para o convés e plantou-se-me na frente, dizendo em algaraviaespanhola que já se tinha encontradocomigo. Parecera-me reconhecer o tom doseu «yammerschooner» e agora pelabarba reconhecia nele o Pedro Preto aquem, na verdade, já havia encontradoantes. «Onde estão os outros?»perguntou, olhando à volta, receoso,

julgando talvez que da escotilha da vanteiria sair gente para o tratar como mereciapor vários assassinatos. «Há trêssemanas», continuou, «quando passouaqui, vi três homens a bordo. Onde estãoos outros dois?» Respondi-lhe que aindaestava a mesma tripulação a bordo.«Mas», disse ele, «vi-o fazer todo otrabalho», e acrescentou com um olhar deesguelha para o pano grande, «hombreValiente». Expliquei-lhe que era eu quemfazia todo o trabalho durante o dia,enquanto os outros dormiam para denoite estarem frescos para ficarem devigia contra os índios. Sentia-meinteressado pela manha do selvagem,conhecendo-o, como conhecia, melhorque ele supunha. Ainda que não metivessem avisado antes de sair de PuntaArenas, tê-lo-ia agora reconhecido comoum arqui-patife. Além disso, uma das

mulheres, num daqueles impulsos debondade que brotam por vezes do peitodo mais baixo dos selvagens, avisou-mepor um sinal para me manter em guarda.Mas o aviso era supérfluo porque jáestava em guarda desde o princípio e,nesse momento, tinha um belo revólverna mão, pronto a disparar. «Quando passou aqui, da outra vez,disparou um tiro contra mim», disse ele; eacrescentou, com certo calor, que tinhasido «muy maio». Fingi não o perceber e perguntei: «Vivesteem Punta Arenas, não viveste?» «Sim» respondeu ele sem rodeios; pareciaencantado por encontrar alguém vindoda velha terra querida. «Na missão?»voltei a perguntar. «Oh! Sim!» respondeu o homem,dirigindo-se para mim como se quisesseabraçar um velho amigo.

Fiz-lhe sinal para se afastar; não me sentiainclinado a compartilhar do seu humorprazenteiro. «E conheces o Capitão PedroSamblich?» «Conheço» respondeu o vilão que emtempos matara um parente do Samblich,«conheço, pois! é um grande amigo meu».«Eu sei» disse-lhe. O Samblich tinha-medito para o abater assim que o visse. Apontando para a espingarda sobre acabina, quis saber quantos tirosdisparava. «Cuantos?» (1) perguntou. Quando lhe expliquei que aquela armafazia tiro sem parar, escancarou a boca efalou em ir-se embora. Não o tenteidissuadir de tal coisa. Entreguei depois àsmulheres biscoitos e carne, e uma delasdeu-me, em troca, alguns nacos de banha,e creio que vale a pena referir que não medeu os bocados mais pequenos; pelocontrário, embora tendo de fazer maior

esforço, estendeu-me o maior naco quetinha na piroga. Nenhum cristão teriafeito melhor. Antes de afastar a piroga doSpray, o matreiro pediu-me fósforos epreparava-se para apanhar com a pontada zagaia a caixa que eu lhe oferecia; maspreferi estender-lha na boca do cano daespingarda que «atirava sem parar». Osujeito apanhou a caixa com todas ascautelas, e deu um pinote quando lhegritei «Quedao» (1) (Cuidado!), com oque as mulheres se riram com ar nadacontrariado. Talvez oi malandrim astivesse sovado essa manhã por não lheterem apanhado mexilhões bastantes parao pequeno almoço. Estabelecera-se umperfeito entendimento entre nós três. Da Ilha Carlos, o Spray cruzou para aBaía de Fortescue, onde ancorou e passouuma noite agradável a sotavento de umaterra alta, enquanto o vento uivava lá

fora. A baía estava então deserta. Foramíndios de Fortescue, os que avistei nabaía, e tinha a absoluta certeza de que nãopodiam seguir o meu barco sob vento tãoduro. Mas para não esquecer uma sóprecaução, espalhei tachas pelo convésantes de dormir. No dia seguinte, o isolamento do local foiquebrado com o aparecimento de umgrande vapor que entrou na baía com armajestoso. Não era barco de país delíngua espanhola. Conhecia-lhe o arrufoda borda, o modelo, o equilíbrio. Icei abandeira e vi logo de seguida as Estrelas eas Faixas desfraldadas no imponentenavio. Entretanto o vento abateu e, ao anoitecer,apareceram os selvagens da ilha, que sedirigiram logo ao navio pedinchando«yammerschooner». Depois voltaram aoSpray para pedir mais — ou roubar tudo

— declarando não terem obtido nada dovapor. Com eles vinha o Pedro Preto quetratou logo de acostar ao meu barco. Nemo meu irmão se mostraria tão satisfeitopor me ver. Pediu-me a espingardaemprestada para ir caçar um guanacopara mim na manhã seguinte. Afiancei aoparceiro que se continuasse na baía pormais um dia, lha emprestava, mas quenão tinha ideias de me demorar ali todoesse tempo. Dei-lhe um corteché e outrosutensílios miúdos que lhe podiam fazerjeito para a construção de pirogas, edepois mandei-o embora. Nessa mesma noite, a coberto do escuro,fui fazer uma visita ao navio que era,afinal o Colômbia, comandado peloCapitão Henderson, de Nova Iorque, emviagem para S. Francisco. Levei comigotodas as armas para o caso de ter de abriro caminho a tiro no regresso. Encontrei

no imediato do Colômbia, o sr. Hannibal,um amigo de longa data, e estivemos arecordar com saudade o tempo quepassámos em Manila, ele no SouthernCross e eu no Northern Light, dois naviostão belos como os seus nomes. O Colômbia levava a bordo provisõesfrescas em abundância. O capitão lá deuqualquer ordem ao despenseiro, elembro-me de o jovem me ter perguntadoinocentemente se eu me podia haver,além de outras coisas, com umas latas deleite e um queijo. Quando ofereci do meuouro de Montevideu para pagar osabastecimentos, o comandante rugiucomo um leão e mandou-me meter odinheiro no bolso. Foi uma cargagrandiosa de provisões de toda a espécie,que embarquei nessa altura. De volta ao Spray, onde encontrei tudoem boa ordem, alestei o barco para largar

de madrugada. Ficara combinado que ovapor dava um sinal de apito se fosse oprimeiro a largar. De vez em quando,pela noite adiante, fui espreitando ovapor só pelo prazer de lhe ver as luzeseléctricas, uma vista agradável emcontraste com as pobres pirogas do Fogocom o seu tição no fundo. O cúter foi oprimeiro a deitar fora do porto, mas oColômbia, que largou pouco depois,alcançou-o e saudou-o quando oultrapassava. Tivesse-me o capitão dadoo vapor, que a Companhia não viria aficar mais pobre do que ficou três mesesdepois. Bastante tempo mais tarde, vim aler num jornal atrasado da Califórnia:«Considera-se o Colômbia totalmenteperdido». Na segunda viagem para oPanamá, naufragou nos rochedos dacosta da Califórnia.

O Spray, como era usual no estreito,seguia agora contra vento e corrente. Asmarés do Atlântico e do Pacíficoencontram-se nestas paragens, provo-cando uma confusão de remoinhos ebailadeiras que, com vento fresco, setornam perigosos para as pirogas ououtras embarcações miúdas. Poucas milhas mais para diante estavaum grande navio naufragado na costa, defundo para o ar. Depois de passar esteponto, o barco entrou numa corrente devento muito fraco e — coisa muitonotável para o tempo do estreito — caiunuma calma podre. Acenderam-seimediatamente fogueiras de sinais a todaa volta e apareceram logo mais de vintepirogas direitas ao Spray. Logo quechegaram ao alcance da voz, os selvagenscomeçaram a gritar «Amigo (1)yammerschooner», «anelas aqui» (1),

«bueno puerto aqui» e outros farrapos deespanhol à mistura com a sua própriaalgaraviada. Nem por sombras pensei emancorar no tal «bom porto». Icei abandeira a tope e disparei um tiro queeles podiam tomar como uma saudaçãoamistosa e um convite para vir a bordo.Dispuseram-se em semicírculo masmantiveram-se para além das oitentajardas, que, para a minha defesa, eramconsideradas como linha de morte. No meio da frota vinha um escaler de umnavio, provavelmente roubado a uma.tripulação assassinada, movido por seisselvagens que remavam desajeitadamentecom as pás dos remos que se haviampartido. Dois dos selvagens, de pé nofundo do escaler, calavam botas de mar, oque mais me fez suspeitar que tinhamcaído sobre a equipagem de algum naviosem sorte e que já tinham feito uma visita

ao convés do Spray, tentando visitá-lo denovo se pudessem. As botas, não podiaduvidar disso, proteger-lhes-iam os pés,tornando as tachas inofensivas. Remandodesastradamente, seguiam ao longo doestreito, passando a umas cem jardas doSpray, com ar despreocupado, como sedirigissem para a Baía de Fortescue.Percebi tratar-se de um ardil e por issotratei de vigiar atentamente uma ilhotaque entretanto aparecera a vista entre elese o meu barco, e para a qual o Spray ia adescair ao sabor da maré, com todas asperspectivas de acabar por ir ali dar àsrochas. Com efeito, não havia aliancoradouro ou, pelo menos, não haviafundo que as minhas amarras pudessemalcançar. E, sem sombra de dúvida, viagitar-se a erva no cume da ilhota;tratava-se da Ilha Bonet, cuja altura é deuns quarenta metros. Disparei uns

quantos tiros para o sítio onde vira a ervamexer-se mas não voltei a ver sinais dosselvagens, Mas foram eles que agitaram ocapim: quando o Spray levado pelorebojo da corrente passou para o outrolado da ilha, lá estava varada aembarcação a revelar o estratagema.Nesse momento uma brisa rija que selevantou de súbito, dispersou as pirogas elivrou-me o barco duma situaçãoperigosa, muito embora o vento mesoprasse ponteiro. O Spray, lutando contra vento e maré,chegou à Baía de Borgia na tarde seguintee aí fundeou pela segunda vez. Gostariade descrever agora, se o pudesse fazer, ocenário do estreito sob a luz do luar,nessa noite. O pesado acastelado denuvens que encobria o céu dissipou-se e anoite tornou-se subitamente tão luminosacomo o dia. Na outra banda do canal

reflectia-se no mar uma montanhaaltaneira, e o Spray seguia acompanhadoda sua sombra como se fossem doisveleiros. Fundeado o cúter, lancei o dóri à água e,armado de machado e espingarda, vareina enseada para ir buscar água a umregato. Tal como da outra vez, não seviam vestígios de índios no local e porisso deambulei pela praia durante umahora ou mais. O bom tempo parecia, decerto modo, fazer realçar ainda mais asolidão de tais paragens, e ao chegar a umponto onde estava assinalada umasepultura, faltou-me a vontade deprosseguir na excursão. Regressando aocentro da enseada, descobri uma espéciede Calvário, pelo menos assim mepareceu, onde alguns navegantes tinhamerigido cruzes como sinal para os queviessem depois. Aqui tinham ancorado e

daqui seguiram todos menos o querepousava sob a humilde campa. Porcuriosa coincidência, uma das marcashavia sido deixada pelo vapor Colimbia,navio irmão do Colômbia, o meucompanheiro dessa manhã. Encontrei nomes de muitos outros navios;copiei alguns para o meu diário, outrosestavam ilegíveis. Algumas cruzeshaviam apodrecido e caído, e algumasdas mãos que ali as ergueram, e que euconhecera, estavam agora inertes. Pairavasobre o local uma atmosfera de angústia eapressei-me a voltar ao barco paraesquecer aquilo na viagem. Na madrugada seguinte deitei fora doporto, e, ao largo do Cabo Quod, onde ovento faleceu, tive de fundear durante,algumas horas num fundo de algas porvinte braças de água contra uma correntede três nós. Passei essa noite ancorado na

Baía de Langara, algumas milhas maispara diante, e descobri, ao amanhecer,que a praia estava cheia de destroços erestos de um naufrágio, que ali foram darà costa. Trabalhei todo o dia a salvar eembarcar um carregamento para o Spray.O grosso da mercadoria era de banha, embarris ou em grandes pedaços que sehaviam solto de barricas partidas; e, meiamergulhada nas algas arrojadas ao areal,estava uma pipa de vinho que tambémlevei a reboque do dóri. Icei tudo aquilocom a adriça da boca, depois de lhepassar o chicote no guincho da âncora. Opeso de alguns dos barris andaria pelosquatrocentos quilos. Não havia índios nas proximidades deLangara e era evidente que ainda poraqui não tinham vindo depois dotemporal que arrojou aqueles despojos àpraia. Fora talvez o mesmo vendaval que

arrastou o Spray ao largo do Horn de 3 a8 de Março. Centenas de toneladas dealgas tinham sido arrancadas pela base,em águas profundas, e atiradas à praiaonde jaziam em extensos alinhamentos.Um exemplar que encontrei inteiro,media de alto a baixo cento e trinta e umpés (1) .Nessa noite fiz aguada e largueidali na madrugada seguinte com ventode feição. (*) 40 m aproximadamente. Não tinha ainda navegado muito, porém,quando deparei com mais banha numapequena calheta onde tratei de fundear ecarregar como fizera antes. Choveu enevou a valer durante todo o dia, e nãoera nenhuma brincadeira carregar abanha à força de braço até ao dóri porcima dos penedos da praia, masprossegui no trabalho até o Spray estarcheio até aos gomes. Sentia-me satisfeito

com a perspectiva de vir a fazer bomnegócio mais para diante ao longo daviagem; os hábitos do velho mercadordespertavam de novo em mim. Largueida calheta por volta do meio-dia,engordurado dos pés à cabeça e com oSpray ensebado da quilha aos topes. Acabina, tal como o paiol e o convésestavam a abarrotar com banha e todo obarco estava besuntado dela. . . . . . . . . . . .

CAPITULO X Correndo para Porto Agosto numatempestade de neve — Uma escotapartida põe o Spray em perigo — O Spraycomo alvo de uma flecha índia — A ilhade Alam Erica — Outra vez no Pacífico —A caminho da ilha de João Fernandes —Um rei sem reino — No ancoradouro deRobinson Crusoé. Levantara-se, entretanto, outro pé devento mas soprava de feição e faltavam-me apenas vinte e seis milhas para PortoAgosto, um sítio tristonho, é certo, masonde podia encontrar ancoradouroseguro para estivar a carga e rever oaparelho. Para entrar o porto ainda dedia, fiz força de vela e assim correu oSpray, coberto de neve que caía espessa,mais parecendo uma ave dos pólos.Avistei, por entre os turbilhões, as

primeiras terras do meu porto mas,quando me aproximava da entrada, umsalto de vento apanhou-me o panogrande sobre, fê-lo cambar e, meu caro!meu caro! como estive à beira de umdesastre! A escota rebentou, a retranca foiatirada contra os ovens e nesta situaçãome encontrava com a noite já a cair.Transpirando dos pés à cabeça, trabalheicom todo o afã, procurando remediar aavaria antes do escurecer e, sobretudo,antes que o barco descaísse parasotavento do porto de abrigo. Masmesmo assim não consegui caçar aretranca e pô-la no descanso. Antes dissojá eu estava de água aberta com a entradado ancoradouro e só havia tempo paraaproar a ele se se não quisesse falhar; eentão, como uma ave com uma asaquebrada, o barco lá entrou a barra. Oacidente que assim pôs em perigo o meu

barco, resultou de uma escota de máqualidade, feita de sisal, uma fibratraiçoeira que tem sido a causa de muitopalavreado enérgico entre a gente domar. Em vez de levar o Spray para oancoradouro interior de Porto Angosto,fundeei sobre um fundo de algas aoabrigo de uma arriba, a bombordo dequem entra. Era um recantoextremamente acolhedor mas, apesar detudo, para me pôr bem a salvo de todosos possíveis williwaws, amarrei com doisferros e passei cabos da popa a árvoresem terra. No entanto, nunca o vento aliconseguiu chegar, salvo alguns sopros derebojo vindos das montanhas do outrolado do porto. Ali, como por todo o ladonesta região, o terreno era todomontanhas.

Era este o local onde tencionava preparar-me para seguir directamente pelasegunda vez, para o Cabo Pilar e para oPacífico. Aqui fiquei uns dias atarefadocom os trabalhos de bordo. Armazenei nopaiol a banha que estava no convés,arrumei melhor a cabina e abasteci-me delenha e água. Reparei também as velas e oaparelho, e armei uma catita, com o que aarmação do Spray mudou para a de iole,muito embora sempre lhe continuasse achamar um cúter por considerar a catitaum simples arranjo provisório. Mesmo nos momentos de maioractividade, não me esquecia de ter aespingarda à mão e pronta a disparar.Estava ainda em território dos selvagense, na primeira passagem pelo estreito,tinha visto pirogas neste local quandoancorei no porto mais próximo daembocadura. Creio que foi no segundo

dia, quando andava a trabalhar peloconvés, que ouvi o silvo de qualquercoisa que me passou perto do ouvido e,depois, um ruído sibilante na água, masnão vi coisa nenhuma. Convenci-me,porém, de que fora qualquer coisa comouma frecha quando uma outra, logo aseguir, passou não longe de mim e se foicravar no mastro onde ficou a vibrar como choque — um autógrafo do Fogo.Estava algum selvagem por ali perto, nãohavia dúvida, e provavelmente pretendiaalvejar-me para se apoderar do barco e dacarga. Peguei na minha velha Martini-Henry, a tal espingarda que atirava semparar, e ao primeiro tiro desentrincheireitrês índios que pularam de uma moitaonde se haviam escondido e fugirampelos montes acima. Disparei ainda umbom número de tiros, apontando-lhes umpouco abaixo dos pés para lhes dar ânimo

na escalada. A minha velha e queridaarma despertou os ecos das montanhas, ea cada estampido, os selvagens pulavamcomo fossem atingidos, e tão depressaquanto as pernas lho permitiam, puseramuma boa extensão do território do Fogoentre eles e o Spray. Mais que nunca,preocupei-me, então, a ter sempre todasas armas de fogo prontas para servir, euma boa dose de munições à mão. Osselvagens não voltaram e, embora todasas noites pusesse as tachas no convés, nãotornei a ver sinais de novas visitas; o quetinha era de limpar o convés, muitocautelosamente, todas as manhãs. À medida que os dias passavam, aestação tornava-se mais favorável parapoder deitar fora do estreito com ventode feição e, por isso, depois de seistentativas falhadas, resolvi não meapressar em largar. No meu último

regresso a Porto Angosto em busca deabrigo, o mau tempo obrigou acanhoneira chilena Condor e o cruzadorargentino Azopardo a tomar porto. Logoque este último fundeou, o CapitãoMascarella, seu comandante, mandouuma embarcação ao Spray informandoque me daria reboque até Punta Arenas,se eu quisesse desistir da viagem e voltaratrás — a última coisa em que poderiapensar. Os oficiais do Azopardodisseram-me que ao atravessar o estreito,depois da primeira passagem do Spray,tinham visto o Pedro Preto e souberamque ele me tinha visitado. Como oAzopardo era um vaso de guerraestrangeiro, não tinha poderes paraprender o fora-da-lei, mas o comandantecensurou-me por não ter abatido ovelhaco quando se aproximou do meubarco.

Obtive destes navios alguns cabos novose outras miudezas, e a oficialidade decada um deles ofereceu-me um jogo deroupas de agasalho de flanela, de quemuito necessitado estava. Com estasinovações na minha vestimenta e com obarco em boa ordem e compassado,embora um pouco mergulhado pelo pesoda carga, sentia-me preparado para novoencontro com o oceano do Sul, malbaptizado de Pacífico. O vento Sudeste que costuma soprar noHorn, no Outono e na Primavera,trazendo consigo melhor tempo que o deVerão, começou a soprar na primeirasemana de Abril, dissipando as nuvensmais altas; com um pouco mais depaciência, sempre havia de chegar otempo para largar com vento de feição. Encontrei em Porto Angosto o ProfessorDusen da expedição científica sueca à

América do Sul e ilhas do Pacífico. Oprofessor estava acampado na margemde um ribeiro, ao fundo da baía, ondehavia algumas variedades de musgos emque estava interessado, e onde a água,como dizia o cozinheiro argentino, eramuy rico. O campo estava guardado dosselvagens por três argentinos bemarmados. Mostraram-se aborrecidos poreu fazer aguada num regato junto ao meuancoradouro, desdenhando o seuconselho de ir buscar a água ao tal ribeiroque era muy rico. Mas eram todos elesbelos companheiros, e era coisa deespantar como não morriam de doresreumáticas, vivendo como viviam emcima da terra molhada. Não é minha intenção falar de todas ascoisas agradáveis ou desagradáveis quesucederam ao Spray, das várias tentativaspara se fazer ao largo e de cada uma das

vezes que teve de voltar em busca deabrigo. Contrariedades que o detiveramno porto, houve muitas, mas no dia 13 deAbril deitou fora do porto pela sétima eúltima vez. No entanto, as dificuldadesmultiplicaram-se de modo tão estranhoque se eu fora dado à superstiçãoacabaria por desistir de largar no dia 13, adespeito de o vento estar de feição.Alguns dos incidentes forampositivamente cómicos. Uma vez, porexemplo, em que me vi a desenvencilharo mastro dos ramos de uma árvore depoisde o barco ter dado três voltas em tornode uma ilhota, ao sabor da corrente, acoisa ultrapassou-me a resistência dosnervos, e tive de dizer qualquer coisa ouentão, julguei eu, estoirava; apostrofei obarco como um quinteiro descomporiaum cavalo ou um boi. «Tu não sabias»,berrei-lhe eu, «não sabias que não és

capaz de trepar às árvores?» Mas o pobree querido Spray se não conseguira subiràs árvores tinha pelo menosexperimentado, e com êxito, fazer quasetudo o mais, e senti o coração enternecer-se ao pensar no que o meu barquinhoconseguira. Até descobriu uma ilha. Nascartas, esta ilhota a que demos a volta portrês vezes, estava marcada como umaponta do continente. Pus-lhe o nome deIlha de. Alan Erric, em homenagem a umamigo escritor a quem encontrara porestranhas terras longínquas; e deixei láuma tabuleta a dizer «Não pisar a relva»,o que estava nos meus direitos dedescobridor. Mas o Spray levou-me, finalmente, paralonge da Terra do Fogo. Quer dizer,levou-me mas só depois de uma últimabarba, porque: chegou a bater com aretranca nas rochas da falésia ao dobrar

uma ponta. A coisa aconteceu no dia 13de Abril de 1896 - Mas uma boa barba euma escapadela por um triz não eramnovidade nenhuma para o Spray. Ao longo do estreito, as vagas tiravam assuas toucas brancas, cumprimentando-nos, enquanto seguíamos em muito bomandamento, levados pelo Sudeste, oprimeiro vento de inverno que sopravanesta estação; as perspectivas eram deconseguirmos dobrar o Cabo Pilar antesdo vento rondar, e assim aconteceu. Ovento soprava duro, como sempre sopraem redor do Cabo Horn mas, quandomudou, já tínhamos vencido a grandecorrente de maré do Cabo Pilar e dosEvangelistas, os rochedos mais avançadosda costa. Permaneci ao leme paragovernar o barco por entre as vagasdesencontradas, porque o mar estavamuito grande e não me atrevi a deixar

correr o Spray em direitura. Tinha deguinar constantemente, ora para aproarcom todo o jeito às vagas que vinhampelas amuras, ora para fugir ao maratravessado. Na manhã seguinte, 14 de Abril, já só seavistavam os cumes das montanhas maiselevadas, e o Spray, em bom seguimentocom a proa ao Noroeste, depressa osdeixou sumidos atrás de si. «Hurrah peloSpray! -», gritei eu às focas, às gaivotas eaos pinguins, já que não se avistavamoutros seres vivos; finalmente, tinhapassado além de todos os perigos doCabo Horn! E ainda por cima, depois desalvar um carregamento inteiro de quenão foi preciso alijar uma libra! E porquenão havia de me regozijar vendo realizar-se o meu desejo? Tirei um riz e icei a bujarrona, e, comotivesse muito mar limpo a toda a volta,

pude marear duas quartas mais a umlargo. O mar vinha agora pela alheta e oSpray corria magnificamente sob omáximo de pano que podia aguentar. Devez em quando, uma velha vaga feita doSudoeste apanhava-o pelo través mas nãolhe fazia qualquer dano. O vento espertouquando o Sol subiu a uns 30 graus, e o ar,que de madrugada era gelado, suavizou-se um pouco; mas não tinha tempo parame preocupar com coisas como estas. Nessa tarde, uma vaga mais gigantescaque muitas outras que o tinhamameaçado todo o dia — uma das que osmarinheiros chamam «vagas de bomtempo» — cavalgou o barco varrendo-oda popa à proa. A mim, que ia ao leme,deixou-me todo ensopado, mas foi aúltima vez que o Spray embarcou mar aolargo do Horn. Pareceu-me que levavapara longe os cuidados passados. As

preocupações ficavam-me para trás; tinhao Verão pela proa e o Mundo abria-se-mede novo na frente. Às 5 da tarde findou omeu «quarto» ao leme. Desde as onze damanhã anterior que eu não deixara aroda, o que perfez um belo quarto detrinta horas. Era chegado o momento deme descobrir, porque navegava sozinhocom Deus, A vastidão do oceanoestendia-se a todo o redor sem que nohorizonte despontasse algum vestígio deterra. Poucos dias depois, navegando atodo o pano, vi pela primeira vez o Spraycom a catita desfraldada. Era na verdadeum pequeno acontecimento, mas era umacontecimento resultante de uma vitória.O vento soprava ainda do Sudoeste mastinha moderado, e os mares trovejantesderam lugar a ondas murmurantes queafagavam e borrifavam o costadoenquanto o barco balançava pelo meio

delas, deliciado com as histórias que lhesouvia contar. Durante estes dias em quefomos correndo para os trópicos,sucediam-se rápidas transformações nascoisas que nos rodeavam. Apareceramnovas espécies de aves; os albatrozestornavam-se cada vez mais raros e deramlugar às gaivotas ligeiras que debicavamna esteira do barco. No décimo dia para além do Cabo Pilarapareceu um tubarão a navegarprolongado com o Spray, o primeiro dasua espécie que nesta parte da viagem seveio meter em sarilhos. Arpoei-o eguardei-lhe as feias mandíbulas. Até estemomento, não me sentira inclinado aroubar a vida a um animal mas quando oJoão Tubarão apareceu à vista a minhasimpatia foi-se com o vento. É autênticoque no Estreito de Magalhães deixei ir empaz muitos patos que teriam dado um

belo guisado, simplesmente porquenessas paragens desoladas não tivecoragem para destruir qualquer ser vivo. Do Cabo Pilar demandei Juan Fernandeze, no dia 26 de Abril, ao fim de quinzedias de navegação, desfechava comaquela ilha histórica mesmo pela proa. As montanhas azuladas de JuanFernandez, altaneiras por entre asnuvens, podiam-se ver de trinta milhasao largo. Apoderaram-se de mim milemoções quando avistei a ilha e, numareverência, baixei a cabeça até ao convés.Por muito que trocemos do salaamoriental, pela minha parte não achei outraforma de me exprimir. O vento manteve-se fraco e o Spray nãoconseguiu chegar à ilha antes doanoitecer. Com esse vento que apenaschegava para lhe encher as velas,conservei-me perto da costa nordeste,

onde o mar estava mais calmo, e alipassei a noite. Vi uma luzinha abruxulear mais para diante numaenseada e disparei um tiro; não obtiveresposta e, pouco depois, a luz sumiu-sepor completo. Ouvi durante toda a noiteo mar a mugir de encontro às arribas econclui que a calema ainda era grandeapesar de me parecer a mim, que a via doconvés, coisa pequena. Pelos gritos dosanimais, nas montanhas, que chegavamaté mim cada vez mais fracos, percebi queuma fraca corrente ia fazendo descair obarco para o largo, embora durante toda anoite me parecesse estar perigosamentechegado à terra; como a costa era muitoalta as aparências eram enganadoras.Logo ao amanhecer vi um barco que sedirigia para mim. Quando se aproximou,aconteceu-me pegar na espingarda queainda estava no convés, para a ir guardar

na cabina; mas a gente da embarcação aover-me' a arma nas mãos, fez meia voltanum instante e começou a remar para apraia que ficava a umas quatro milhas.Vinham no barco seis remadores e vi queremavam, com os remos assentes emforquetas, ao modo de marinheirosexperientes, donde concluí tratar-se degente civilizada; mas a opinião deles ameu respeito é que deve ter sido tudomenos lisonjeira, quando interpretarammal o facto de pegar na espingarda, etrataram de fugir para terra. Embora nãosem dificuldade, consegui fazer-lhescompreender por sinais que ia apenasguardar a arma na cabina e desejava quese aproximassem; logo que meperceberam, voltaram atrás e poucodepois subiam a bordo. Um dos do grupo, a quem os outroschamavam «rei», falava inglês; os

restantes falavam só espanhol. Todostinham sabido da viagem do Spray pelosjornais de Valparaíso e estavam ávidos denotícias acerca dela. Falaram-me de umaguerra entre o Chile a Argentina, mas nãotinha ouvido falar dela enquanto láestive. Acabava de visitar aqueles doispaíses e a voz que lá corria é que a ilha deJuan Fernandez se tinha afundado. (Estamesma notícia ainda era corrente naAustrália quando ali cheguei três mesesdepois). Já tinha preparado uma panela de café eum prato de filhoses que os ilhéus, depoisde algumas recusas corteses, acabarampor aceitar e comentar de bom grado, eem seguida tomaram o Spray a reboqueda embarcação e levaram-no a caminhoda ilha a uns bons três nós. O homem aquem chamavam rei, tomou o leme e, deo carregar a um e outro bordo, tanta

guinada deu ao Spray que me convencide que o meu barco nunca mais voltaria anavegar a direito. Os outros puxavam osremos com vontade. O rei, como vim asaber, era rei só por cortesia: por tervivido na ilha mais tempo que qualqueroutra pessoa deste Mundo — trinta anos— assim lhe deram o título. JuanFernandez estava então sob aadministração de um governador, deascendência aristocrata sueca, segundome disseram. Também me disseram que afilha dele era capaz de andar a cavalo nacabra mais brava da ilha. Na ocasião daminha visita, o governador estava emValparaíso onde fora meter os filhosnuma escola. O rei tinha estado foradurante um ano ou dois e, no Rio deJaneiro, casou com uma brasileira que oacompanhou para a ilha deserta. Eraportuguês, nascido nos Açores e navegara

em navios baleeiros de Nova Bedford,onde fora timoneiro de um barco. Soubetudo isto e muitas coisas mais antes dechegarmos ao porto. Entretanto levantou-se uma brisa do mar que encheu as velasdo Spray e o experiente marinheiroportuguês pilotou-o até um ancoradouroseguro, onde amarrou a uma bóia emfrente da povoação. . . . . . . . . . . . .

CAPITULO XI Os ilhéus de Juan Fernandez recebidoscom filhoses yankees — As beldades dosdomínios de Robinson Crusoé — Omonumento da montanha em memóriade Alexandre Selkirk — A caverna deRobinson Crusoé — Um passeio com ascrianças da ilha — Rumo ao Oeste comum pé de vento amigável — Um mês emdireitura, com o Sol e o Cruzeiro do Sulcomo guias — À vista das Marquesas —Episódio de navegação. Amarrado o Spray, os ilhéus voltaram aocafé e às filhoses, e senti-me mais quelisonjeado por não desdenharem dosmeus fritos de queijo, como fizera oprofessor no Estreito de Magalhães. Deresto, pouca diferença fariam os fritos dasfilhoses, além dos nomes. Uns e outrostinham sido fritos em banha e isto é que

era o ponto essencial porque não havia nailha coisa mais gorda do que uma cabra, ea cabra é um bicho bem magro, para nãodizer pior. Vendo então uma boapossibilidade de fazer negócio, arreigueio teque à retranca, pronto paradescarregar banha. Não havia ali nenhumguarda aduaneiro que me perguntasse«Para que é isso?» e antes do sol-pôr já oshabitantes tinham aprendido a arte defazer fritos de queijo e filhoses. O preçoque fiz pela mercadoria não era elevado,pois vim a vender mais tarde a umantiquário, que por elas me deu mais queo valor facial, as moedas antigas ecuriosas que recebi em pagamento,algumas das quais provinham dos restosde um galeão afundado na baía, não sesabe quando. Levei da ilha dinheiro detodas as nacionalidades e espécies, e

quase todo o que lá havia, pelo quesuponho. Juan Fernandez, como porto e escala éum sítio encantador. Os montes sãoarborizados, os vales férteis e pelasravinas correm ribeiros de águapuríssima. Não há serpentes na ilha, nemanimais selvagens além de porcos ecabras de que vi bastantes; além disso,haverá talvez um ou dois cães. Oshabitantes não consumiam rum oucerveja fosse de que espécie fosse. Aeconomia doméstica da ilha era o cúmuloda simplicidade. E as modas de Paris nãoafectavam os habitantes que se vestiamao gosto de cada um. Embora nãohouvesse ali um médico, os ilhéus eramsaudáveis e as crianças eram todasperfeitas. Havia na ilha quarenta e cincoalmas, ao todo. Os adultos provinhamsobretudo do continente sul-americano.

Uma senhora que fez uma giba para oSpray em troca de banha, seriaconsiderada uma verdadeira beldade emNewport. Abençoada ilha de JuanFernandez! Porque é que o AlexandreSelkirk te deixou, é coisa que não consigoentender. Algum tempo antes, tinha encalhado nabaía um navio com fogo a bordo e, comoo mar, depois de apagado o incêndio, otivesse desmantelado, os ilhéusaproveitaram as madeiras para construircasas que como é natural, ficaram comum ar muito marinheiro. A casa do rei deJuan Fernandez, Manuel Carroça, de suagraça, além de lembrar a arca de Noé,ostentava na sua única porta, pintada deverde, um puxador de latão polido.Fronteiro a esta entrada vistosa, erguia-seum mastro de sinais vestido a rigor e, nãolonge, estava varada uma elegante

baleeira pintada de vermelho e azul, adelícia do rei na sua velhice. Não deixei de ir em peregrinação aovelho posto de vigia do cume do monte,onde o Selkirk passou dias e diasesperando ver ao longe o navio queacabou por vir. Copiei, duma tabuletapregada à rocha, as seguintes palavras aliinscritas em maiúsculas: À MEMÓRIA DE ALEXANDRESELKIRK MARINHEIRO - Natural deLargo, do Condado de Fife, Escócia, queviveu nesta ilha em completa solidãodurante quatro anos e quatro meses. Foidesembarcado da galera Cinque Ports, de96 toneladas, 18 canhões, A. D. 1704, e,embarcou no Duke, navio de corso, em 12de Fevereiro, 1709. Morreu Tenente doNavio de Sua Majestade Weymouth, A.D. 1723(1), aos 47 anos de idade. Estaplaca é colocada junto do posto de vigia

de Selkirk pelo Comodoro Powell eoficiais do Navio de Sua MajestadeTopaze, A. D. 1868. A caverna em que Selkirk viveu,enquanto esteve na ilha, encontra-se aofundo da baía a que hoje se chama Baíade Robinson Crusoé que fica para alémde um cabo imponente, a Oeste do actualfundeadouro. Já ali têm ancorado algunsnavios, mas o local não é grande coisacomo porto. Qualquer dos doisfundeadouros está exposto aos ventos doNorte que, contudo, não chegam ali comgrande violência. (*) O Sr. J. Cuthbert Hadden, no númerode Julho de 1899 do «Century Magazine»,demonstra que a tabuleta está errada notocante ao ano da morte de Selkirk. Deviaser 1721. Como o fundo do ancoradouro que fica aNascente é de boa tença, já este se pode

considerar porto seguro, muito embora acorrente de fundo faca rabearterrivelmente qualquer navio que aliamarre. Fui de barco visitar a Baía de RobinsonCrusoé e, com alguma dificuldade aopassar a rebentação, varei na praia eentrei na caverna que me pareceu seca ehabitável. Está situada num lindo recantoabrigado das tempestades que, emboranão frequentes, varrem a ilha comviolência; é que os limites da zona doalísio passam perto da ilha que jaz nalatitude de 35° 1/2 Sul. A ilha tem cercade catorze milhas na maior dimensão,Este-oeste, e umas oito milhas de largura;a maior altitude é superior a novecentosmetros. A distância ao Chile, país a quepertence, é de cerca de trezentas equarenta milhas.

Juan Fernandez foi em tempos local deprisão de condenados. As cavernas emque os presos viviam, uns antroshúmidos e doentios, encontravam-seabandonadas e já não se mandavamcondenados para a ilha. O dia mais agradável que ali passei, senão o mais agradável de toda a viagem,foi o último que passei em terra — mas,de modo algum, por ter sido o último! —em que as crianças da pequenacomunidade, sem faltar uma, saíramcomigo a colher fruta brava para aviagem. Encontrámos marmelos,pêssegos e figos, e as crianças encheramum cesto de cada uma destas espécies.Não é preciso muito para contentarcrianças, e estes petizes que nunca tinhamouvido falar senão espanhol, fizeramecoar os montes com a sua pronúnciaalegre de sons ingleses, Perguntavam-me

o nome de todas as coisas que viam.Chegámos ao pé de uma figueira bravacarregada de frutos e, mais uma vez, tivede lhes ensinar como se chamavam eminglês. Enquanto não acabaram de enchero cesto gritaram: «Figgies, figgies!» aosquatro ventos. E então, quando lhes disseque uma cabra se chamava goat, riram abandeiras despregadas e rebolaram-se narelva, pensando que coisa engraçada erater vindo à ilha um homem que chamavagoat a uma cabra. A primeira criança nascida em JuanFernandez, disseram-me, fizera-se umalinda mulher que era hoje mãe de família.O Manuel Carroça e a boa alma que vieracom ele do Brasil tinham enterrado o seuúnico filho, uma menina, aos sete anos deidade, no adro minúsculo da terra. Nomesmo bocadinho de terra havia outrassepulturas, por entre as rochas de lava,

algumas de crianças nascidas na ilha,outras de marinheiros de navios emviagem, aqui desembarcados paraterminar os seus dias de sofrimento erepousar neste paraíso de homens domar. A falta que mais se fazia sentir na ilha eraa de uma escola. A turma seria pequena,evidentemente, mas para uma alma quegostasse de ensinar e apreciasse osossego, passar algum tempo em JuanFernandez devia ser delicioso. Larguei de Juan Fernandez na manhã de5 de Maio de 1896, depois de muitosmomentos agradáveis, entre os quais o davisita à autêntica caverna do RobinsonCrusoé. Daqui, deitei para o Norte epassei a ilha de S. Felix ainda antes dealcançar os alísios. Se o alísio chegou tarde, pelo menosquando chegou foi a valer e fez-me

ganhar o tempo perdido. O Spray, com opano rizado, umas vezes nos primeiros,outras nos segundos, navegou muitos emuitos dias na frente do vento rijo, comuns grandes bigodes, direito àsMarquesas, para o Oeste; avistei as ilhasdepois de quarenta e três dias de mar,mas continuei para diante. Durante todosesses dias tive o tempo sempre ocupado— mas não ao leme. Nenhum homem,creio eu, seria capaz de dar a volta aoMundo ao leme de um barco. O que eufazia era menos duro; sentava-me a ler oua dar algum ponto numa vela, cozinhavaas refeições e comia-as em paz. Jádescobrira que não é bom estar sozinho epor isso entretinha-me com a companhiade tudo quanto me rodeava; umas vezesa do Universo, outras a da minhainsignificante pessoa; mas os livros, aindaque o resto não contasse, foram sempre os

amigos fiéis. Nada podia ter sido maisfácil ou mais repousante que a minhaviagem nos alísios. Naveguei com o vento pela alheta, diaapós dia, marcando a posição do barco nacarta com precisão considerável; masfazia isto mais por intuição, creio eu, queà custa de cálculos laboriosos. Duranteum mês inteiro, o meu barco manteve orumo sem um só desvio; e eu nemcheguei a fazer tanto, sequer, comoiluminar uma só vez a bitácula. Avistavao Cruzeiro do Sul pelo través todas asnoites. O Sol nascia pela popa todas asmanhãs; punha-se pela proa todas astardes. Não desejei outras bússolas parame guiar; estas eram infalíveis. Seduvidasse das minhas estimas ao fim demuito tempo no mar só tinha que asverificar pelo relógio que o Grande

Arquitecto colocou por cima de mim; eesse estava certo. Não há que negar que aquela vidainvulgar também tinha as suas facetascómicas. Às vezes acordava com o Sol aentrar-me já pela escotilha; depois ouviao murmúrio da água através das tábuasque me separavam do abismo, eperguntava estremunhado: «Que é isto?»Mas estava tudo bem; era o meu navio anavegar como nenhum outro naviojamais navegara no Mundo. E orumorejar da água no costado dizia-meque o barco ia a toda a velocidade. Sabiaque nenhum ser humano ia ao leme, sabiaque não havia novidade com a «gente daproa» e que não havia motim a bordo. Os fenómenos da meteorologia do oceanoeram motivos de estudo de grandeinteresse, mesmo aqui nos alísios.Observei que, de sete em sete dias, pouco

mais ou menos, o vento espertava erondava umas tantas quartas para Sul,além do que era usual; quer dizer iarondando de Es-Sudeste para Sul-Sudeste, enquanto corria uma fortecalema do Sudeste. Tudo isto indicavaque corriam temporais nos contralíseos.Depois o vento rondava e quebrava, diaapós dia, até se fazer à ovo do Es-Sudeste.É este, mais ou menos, o estado constantedo alísio de Inverno nos 12° de latitudeSul onde «corri pela altura» (1) durantesemanas. Sabemos que o Sol é o geradordos alísios e de todo o sistema de ventossobre a Terra. Mas é a meteorologia dosventos oceânicos a mais fascinante detodas. De Juan Fernandez às Marquesasexperimentei seis mudanças destasgrandes palpitações dos ventos marinhose do próprio mar, por efeito de temporaisdistantes. O conhecimento das leis que

governam os ventos, e a consciência deque as conhecemos, dá-nos paz deespírito numa viagem; quando sedesconhecem, a simples aparição de umanuvem faz-nos tremer. E isto que éverdade nos alísios, com maioria de razãoo é nas regiões dos ventos variáveis, ondeas mudanças são extremas. A travessia do Pacífico, mesmo sob ascondições mais favoráveis, põe onavegante durante muitos dias emcontacto íntimo com a Natureza e dá-lhea dimensão real da vastidão do mar.Lenta mas seguramente, o ponto quemarcava a posição do Spray na carta, iaatravessando o oceano, embora a quilhamarcasse mais lentamente o mar que olevava. No quadragésimo terceiro dia deviagem — um longo período para estarsozinho no mar — numa noiteadmiravelmente limpa, de Lua Cheia,

peguei no sextante e, do resultado de trêsobservações, ao cabo de muito lutar comas tábuas lunares, verifiquei que alongitude observada coincidia, por umadiferença de cinco milhas, com alongitude estimada. Era extraordinário! É verdade que podiahaver erro nas duas mas de qualquermodo sentia-me seguro de que ambasestavam quase certas e de que em breveveria terra; e assim aconteceu. Poucashoras depois desfechei com a ilha daNukahiva, a mais meridional dasMarquesas, bem recortada no horizonte ealtaneira. A longitude verificada à vistade terra ficava entre os dois pontos quetinha determinado, o que era, semdúvida, extraordinário. Qualquernavegador sabe que, de um dia para ooutro, um navio pode ganhar ou perdermais que cinco milhas de caminho

navegado e, além disso, que em questãode observações lunares mesmo um peritocuja média dos resultados ande por oitomilhas da verdade, faz o que se podeconsiderar muito bom trabalho. Espero deixar bem claro não atribuiraquele resultado a esperteza ou a cálculoscomplicados. Creio já ter dito queestimava a longitude, pelo menos,principalmente por intuição. Traziasempre a reboque uma barca patente, écerto, mas há que descontar tanto para acorrente e abatimento — o que a barcanão mostra — que no fim de contas osresultados que ela dá são só umaaproximação a corrigir segundo o critérioe a experiência ganha pelo navegadornum sem número de viagens; e mesmoassim, se o mestre do navio é sensato,manda prumar e abrir os olhos.

(*) Correr pela altura é navegar ao longode um dado paralelo, mantendo sempre,portanto, a mesma latitude. O episódio que se passou comigo, noconvés do Spray, nestas coisas denavegação astronómica, foi único — tantoque não me parece despropositado contá-lo aqui. O primeiro conjunto de trêsobservações de que falei mais atrás,punham o meu barco muitos centos demilhas para Oeste da posição estimada, oque eu sabia ser impossível. Ao cabo deuma hora fiz novas observações com omáximo cuidado, mas o resultado damédia foi o mesmo das primeiras eperguntei a mim mesmo por que razãonão conseguia fazer melhor. Examineientão as tábuas à procura de umadiscrepância, e encontrei-a: uma colunadas tábuas, de onde tinha tirado umlogaritmo, estava errada. É um facto que

posso provar; e foi esse erro queprovocou tão grande diferença. Corrigidaa tábua, prossegui no caminho, sem queficasse abalada a confiança que tinha emmim mesmo. Naturalmente, o resultadodestas observações lisonjeou-me o amor-próprio, porque mesmo no convés de umgrande navio e com a ajuda de doisassistentes, obter-se um ponto tãopróximo da verdade por observação daLua, seria um resultado notável. Comoum dos mais pobres de todos osnavegadores americanos, senti-me orgu-lhoso pelo meu feito a bordo de tãopequeno barco, ainda que tivesse sido porsorte o que, de resto, é bem possível. Sabia agora, onde me encontrava, levadopor uma corrente imensa em que sentia aMão que criou todos os mundos.Compreendi a certeza matemática dosmovimentos desses mundos; a sua

regularidade é tal que os astrónomospodem elaborar as tabelas das posiçõesdos astros ao longo dos anos, dos dias eaté dos minutos de cada dia com talprecisão, que quem venha para o mar,mesmo cinco anos depois, pode, com asua ajuda, determinar o tempo médio emqualquer dado meridiano da Terra. A determinação do tempo local é coisasimples. A diferença entre o tempo local eo tempo médio corresponde à longitudeexpressa em tempo — quatro minutos detempo, todos o sabemos, correspondem aum grau de longitude. É este,sucintamente, o princípio que permitedeterminar a longitude indepen-dentemente do uso de cronómetros. Otrabalho das observações lunares, emborararamente praticado nestes nossos dias, émaravilhosamente edificante, e nada há

no domínio da navegação que mais nosfaça levantar o espírito em adoração.

. . . . . .

CAPITULO XII Setenta e dois dias sem ver terra —Baleias e aves — Uma olhadela à cozinhado Spray — Peixe-voador para o pequenoalmoço — Boas vindas em Apia — Umavisita da viúva de Robert Louis Stevenson— Em Vailima — Hospitalidade emSamoa — Detido por excesso develocidade — Um carrossel divertido —Professoras e alunas do Colégio dePapauta — A mercê das sereias. Estar sozinho quarenta e três dias, podeparecer muito, mas na realidade, mesmoem tão pequeno barco, os momentosvoavam ligeiros e por isso em vez deaportar a Nukahiva, segui em demandade Samoa onde pretendia fazer a próximaescala. Gastava assim mais vinte e novedias, o que deu um total de setenta e doisdias de porto a porto. Durante todo esse

tempo nunca eu me senti em apuros,fossem eles quais fossem. Nunca mefaltou companhia; os próprios recifes decoral me fizeram companhia, ou não mederam tempo para me sentir sozinho — oque vem a ser o mesmo — e havia muitosao longo da rota para Samoa. O mais notável dos incidentes da viagemde Juan Fernandez para Samoa (e que nãoforam muitos, aliás) foi a eminência deum abalroamento com uma baleiadesconforme que sulcava o oceanodespreocupadamente durante a noite. Obarulho que fez ao resfolegar e a agitaçãoque provocou no mar, ao guinar para sesafar do barco, fizeram-me acordar epular para o convés mesmo a tempo deapanhar uma molhadela com a água queo bicho fez saltar com as barbatanas. Omonstro parecia ter ficado assustado esafou-se a toda a pressa com a proa ao

Este; o Spray continuou para o Oeste.Logo a seguir passou outra baleia, umacompanheira da primeira, evidentemente,navegando-lhe na esteira. Quando nos aproximávamos de bancosde coral, era frequente termos acompanhia de tubarões famintos. Asatisfação que sentia em alveja-los a tiro,era a mesma que alguém poderá sentirem abater um tigre. No fim de contas, ostubarões são os tigres do mar, e nada hámais terrível para o espírito de ummarinheiro, creio eu, que um possívelencontro com um tubarão esfomeado. Andavam sempre uns quantos pássarosem volta do barco; uma vez por outra,poisava um deles no mastro olhando parao Spray e meditando talvez nas estranhasasas que o barco tinha — a vela grandedo Fogo feita, como a capa de José, demuitos remendos. Os navios são hoje

menos frequentes nos mares do Sul doque eram antigamente; durante toda atravessia do Pacífico não avistei umúnico. As minhas ementas durante estas longaspassagens consistiam, usualmente, debatatas, bacalhau e ainda de biscoitos quefazia duas ou três vezes por semana.Tinha sempre também café, chá, açúcar efarinha em quantidade. Trazianormalmente uma boa provisão debatatas, mas antes de chegar a Samoa tiveum contratempo que me deixou privadodeste altamente apreciado luxo demarinheiro. Por ter encontrado em JuanFernandez o luso-americano ManuelCarroça que me intrujou no negócio,fiquei sem batatas no meio do oceano efiquei desacreditado daí para diante.Orgulhava-me de ser um bom mercador;mas este português vindo dos Açores, via

Nova Bedford, que me deu batatas novasem troca das que eu recebera doColômbia, uns oito galões ou mais dasmelhores, deixou-me sem ânimo para megabar. Quis ficar com as minhas, disseele, «para mudar de semente». Quandome fiz ao mar descobri que os tubérculoseram rançosos e intragáveis, e a polpaestava cheia de laivos amarelos deaspecto repulsivo. Fechei o saco e volteiàs poucas batatas que ainda tinha dofornecimento anterior, pensando quetalvez as batatas da ilha melhorassem degosto quando me sentisse um diaverdadeiramente esfomeado. Trêssemanas mais tarde, quando fui a abrir osaco, saíram de lá milhões de insectosalados! As batatas do Manuel tinham-setransformado em traças. Atei o saco atoda a pressa e atirei com tudo aquilopela borda fora.

O Manuel tinha à mão uma larga colheitade batatas e, como sugestão para osbaleeiros, sempre desejosos de comprarvegetais, pediu-me para dar notícias debaleias que avistasse nas redondezas deJuan Fernandez. Avistei algumas, e dasgrandes, mas andavam muito ao largo. Tomando as coisas pelo largo, andeisempre muito bem em matéria deprovisões, mesmo durante a longatravessia do Pacífico. E encontrei semprepequenas coisas com que melhorar asementas; o que me faltava de carne frescacompensava-o com peixe fresco, pelomenos ao longo dos alísios, onde ospeixes-voadores ao saltar durante a noite,chocavam com as velas e caíam noconvés, umas vezes um ou dois, outrasvezes uma dúzia. Todas as manhãs,excepto durante a fase da Lua Cheia,arranjava um belo abastecimento que me

custava apenas o trabalho de apanhar ospeixes nos embornais de sotavento. Osalimentos enlatados ficaram esquecidos. No dia 16 de Julho, à custa de muitocuidado, alguma habilidade e não poucotrabalho, o Spray lançou ferro em Apia,no reino de Samoa, por volta do meio-dia.Depois de ancorar, estendi um toldo e,em vez de ir logo a terra, deixei-me ficarsentado à sombra pela tarde adiante,escutando com delícia as vozes musicaisdos homens e mulheres nativos. Uma piroga com três raparigas a bordodesceu a baía e deteve-se junto ao SprayUma das jovens da linda tripulação,depois de me gritar a Saudação ingénua«Talofa Lei!» (amor para ti!), perguntou-me: «Escuna vem a Milite?»

«Amor para ti!» respondi-lhe; eacrescentei «Vem». «Tu, homem, venssozinho?» «Sim», voltei a responder. «Não acredito. Tinhas outros homens ecomeste-os». As outras riram-se da saída eperguntaram: «Para que vens tão longe?» «Para ouvir estas senhoras cantar»respondi eu. «Oh, talofa lee!» gritaram em coro.Depois cantaram. As vozes das raparigasenchiam o ar com uma música ondulanteque se reflectia num maciço de palmeirasdo outro lado do porto. Pouco depois vieram seis rapazes nobarco do cônsul-geral dos EstadosUnidos, cantando ao ritmo da remada.Saí-me melhor da entrevista com eles doque com as raparigas da piroga. Traziamconvite do General Churchill para irjantar ao consulado. Sentia-se a presença

de uma mão feminina no consulado. Foraa Senhora Churchill que escolhera atripulação para o barco do general, lhesarranjara um uniforme elegante e cuidarade que todos soubessem cantar a cançãodos barqueiros samoanos. Ao fim daprimeira semana na ilha, a própriaSenhora Churchill já a sabia cantar comouma rapariga nativa. Na manhã seguinte, bem cedo, a Sra.Robert Louis Stevenson veio a bordo doSpray e convidou-me a ir a Vailima nodia a seguir. Não foi sem emoção que meencontrei frente a frente com esta mulherbrilhante, tantos anos companheira doautor que fizera as delícias da minhaviagem. Os olhos bondosos que meolhavam, brilhavam ao compararmosnotas de aventuras. Maravilhei-me comas experiências e perigos por que passara.Disse-me que, juntamente com o marido,

tinha navegado em embarcaçõesprimitivas de todos os tipos, por entre asilhas do Pacífico. E acrescentoupensativamente: «Tínhamos gostossemelhantes». A propósito de viagens, ofereceu-me osquatro volumes magníficos do roteiro doMediterrâneo, escrevendo no rosto doprimeiro: AO CAPITÃO SLOCUM Estes volumes foram lidos e relidos muitavez pelo meu marido e estou certa de queele se sentiria satisfeito por passarempara as mãos daquele género de homemdo mar que ele mais admirava. Fanny V. de G. Stevenson Ofereceu-me, também, um grande roteirodo Oceano Indico. Não foi sem umsentimento de temor reverente que recebios livros quase tão directamente das mãosdo Tusitala «que dorme na floresta».

Aolele! o Spray saberá apreciar a tuaoferta. O enteado do novelista, o Sr. LloydOsbourne, mostrou-me a mansão deVailima e convidou-me a escrever asminhas cartas na velha escrivaninha.Pareceu-me atrevimento aceitar tal coisa;já era muito para mim entrar no vestíbuloem que o «Escritor de Contos» secostumava sentar no chão à maneira deSamoa. Vindo um dia pela rua principal de Apiacom os meus hospedeiros, direitos aoSpray, a Sr." Stevenson a cavalo, eu a péao lado dela e logo atrás o Sr. e a Sra.Osbourne de bicicleta, ao dobrar umacurva apertada da estrada, vimo-nosmisturados no meio de um cortejo nativo,com uma banda de música, um tantoprimitiva, à frente. Quanto ao que vinhaatrás, não podíamos dizer se era uma

festa ou um funeral. Alguns homens dosmais robustos transportavam fardossuspensos de varas e não havia dúvida deque alguns dos fardos levavam pano detapa. Mas já um dos embrulhos,dependurado de um par de varas, maispesado que os restantes, não deixavaperceber facilmente o que levava dentro.Aquilo despertou-me a curiosidade eperguntei se se trataria de um porcoassado ou de qualquer outra coisa denatureza mais mórbida. «Não sei»,respondeu a Sr." Stevenson, «se é umcasamento ou um funeral. Mas seja comofor, capitão, o nosso lugar parece ser àfrente dele.» Como o Spray estivesse na corrente,embarcámos nele no dóri de Gloucester,que eu cortara ao meio e que estava agorapintado de verde vivo. O peso total dosocupantes fez mergulhar o barquinho até

ao alcatrate e tive de o governar commuita cautela para não o afundar. A aventura fez as delícias da SrªStevenson que, enquanto remávamos,cantou «They went to sea in a pea-greenboat» (Foram para o mar num barcoverde-ervilha). Compreendi bem o queela dizia de si e do marido: «Tínhamosgostos semelhantes». À medida que me afastava do centro dacivilização, cada vez menos ouviaperguntar se valia ou não a pena. Falandoda minha viagem, nunca a Sra. Stevensonme perguntou quanto ganharia com ela.Ao visitar uma aldeia samoana, o chefenão me perguntou qual o preço do gin,nem tão-pouco quis saber «Quanto quervocê pagar por porco assado?»; o que medisse foi «Dólar, dólar; o homem brancosó conhece dólar».

«Não se importe com dólar. A tapopreparou ava; vamos beber e alegrar-nos». A tapo é a hospedeira virgem daaldeia; naquela altura era Taloa, filha dochefe. «O nosso taro é bom; vamos comê-lo. Na árvore há fruta. Que os diaspassem; porque havemos de nos lamentarpor isso? Há milhões de dias para vir. Afruta-pão amadurece ao Sol, e o vestidoda Taloa veio da árvore do pano. A nossacasa, que é boa, só custou o trabalho de afazermos, e não tem fechadura na porta». Enquanto assim passam os dias nas ilhasdos mares do Sul, andamos nós, noNorte, em luta permanente pelasnecessidades mais comezinhas da vida. Para buscar alimentos, os ilhéus só têmde estender a mão e colher o que aNatureza lhes dá; se plantam umabananeira, o seu único cuidado é nãodeixar que o pé dê rebentos a mais.

O chefe da aldeia Caini, um homem deTonga, alto e digno, só podia serinterpelado através de um intérprete eintermediário. Foi perfeitamente natural apergunta que fez acerca do objectivo daminha visita e foi sinceramente que lhesrespondi que a razão da vinda a Samoafora ver os belos homens e também asbelas mulheres da ilha. Depois de umalonga pausa o chefe replicou: «o capitãoveio muito longe para ver tão pouco;mas», acrescentou, «a tapo deve sentar-semais perto do capitão». «Yack» disse aTaloa que quase aprendera a dizer simem inglês, e juntando a acção à palavra,mudou-se para um lugar mais perto, naroda que todos faziam sentados emesteiras. Era difícil dizer se estava maiscativado pela eloquência do chefe ouencantado com a simplicidade de tudo oque dizia. Não havia nele qualquer

espécie de enfatuamento; podia sertomado por um grande professor ouestadista, apesar de ser o menospresumido de todos os homens queencontrei na viagem. Quanto à Taloa,uma rainha de beleza, e às outras tapo,bem, é conveniente aprender o mais cedopossível os usos e costumes desta gentehospitaleira e, entretanto, não tomar porfamiliaridade excessiva o que pretendeser apenas uma homenagem ao conviva.Fui particularmente afortunado nasminhas visitas às ilhas e nada vi que mefizesse vacilar a fé que tinha na virtudedos nativos. Para um espírito poucoprotocolar, a etiqueta rigorosa é talvezum tanto penosa. Descobri, por exemplo,que ao beber a ava nas reuniões desociedade, antes de a levar à boca, deviadespejar um pouco por cima do ombro,ou fazer como se a despejasse, e dizer:

«Que os deuses bebam» . E o prato(invariavelmente uma casca de coco)quando vazio, em vez de se passarpolidamente à nossa maneira, é atiradopolidamente a girar por cima da esteiraaté às mãos da tapo. O erro mais terrível que cometi durante aestadia nas ilhas, foi por causa de umcavalicoque que, inspirado por um troçode boa estrada, entendeu dever meter atrote largo e assim entrou por uma aldeiadentro. No mesmo instante ouvi umbrado do delegado do chefe que, em vozcolérica me mandava parar. Percebendoque me tinha metido em sarilhos, pediperdão por gestos, embora não fizesseainda ideia da ofensa que podia tercometido. Entretanto o meu intérpretetinha-se aproximado e a coisa explicou-se,mas não sem primeiro termosparlamentado um bom bocado. O brado

do delegado, em tradução livre, seriamais ou menos: «Ó tu, que vais no cavalodesvairado! Não sabes que é contra a leicavalgar assim pela aldeia do nossopaís?» Apresentei quantas desculpasarranjei e propus-me desmontar, tal comoo meu criado, e agarrar o corcel pelaarreata; mas isso, disse-me o intérprete,seria também uma falta imperdoável,pelo que apresentei novas desculpas. Fuiintimado a comparecer perante o chefe;mas o intérprete, tão esperto quantovelhaco, explicou-me só então que eupróprio era também uma espécie de chefee como ia numa missão importante nãopodia ser detido. Em meu favor, apenasme ocorreu explicar que era umestrangeiro mas que apesar dissoreconhecia merecer que me assassem,com o que o chefe, divertido, mostrou

uma bela fileira de dentes e deixou-mepassar. O chefe dos Tongas com toda a suafamília, de Caini, retribuiu-me a visita etrouxe-me presentes de panos de tapa efruta. Taloa, a princesa, trouxe-me umagarrafa de óleo de coco para pôr nocabelo, presente este que, para algumoutro homem, se poderia considerarpresente tardio. Era-me impossível receber no Spray àmaneira régia como fora recebido pelochefe. A ementa que me tinham servidoincluía tudo quanto a terra dava: frutas,aves, peixes e carne; até um porco quefora assado inteiro. Pelo meu lado,ofereci-lhes porco e vaca de salmoura,cozidos, e à noite levei-os a umdivertimento novo na cidade, umcarrossel de cavalinhos, a que chamavamkee-kee, onde os meus convidados

trataram de arrancar os rabos aos cavaloscomo represália contra os donos, doiscompatriotas meus, lamento dizê-lo, quetinham corrido com eles quase à primeiravolta do carrocel. Não me senti poucoorgulhoso dos meus amigos de Tonga; ochefe, o mais garboso de todos, levavaconsigo uma clava imponente. Quanto aokee-kee, à custa da avidez dosproprietários estava-se tornando impo-pular, e os representantes dos trêspoderes locais, à falta de leis quepudessem impor, adoptaram uma políticaestrangeira enérgica, cobrando-lhes umataxa de vinte e cinco por cento sobre asreceitas de bilheteira. Foi um verdadeirorasgo no campo das reformas legislativas! Era hábito dos nativos que visitavam oSpray, embarcar pelas amuras entrando abordo com facilidade depois de sesuspenderem no aparelho da proa; para

voltar à praia, saltavam pela popa eseguiam a nado. Nada podia ser maisdeliciosamente simples. Os nativos,modestos, usavam fatos de banho delavalava, um tecido feito de casca deamoreira, e nunca fizeram dano ao Spray.As suas idas e vindas, em Samoa, a terrado eterno Verão, era apenas uma cenaalegre de todos os dias. Um dia, as directoras do Colégio dePapauta, Miss Schultze e Miss Moore,vieram a bordo com as suas noventa esete discípulas; todas vestidas de branco,com uma rosa vermelha nos cabelos,vieram, como é natural, de barco ou decanoa à maneira dos países frios. Deviaser difícil encontrar mais alegre rancho deraparigas. Logo que subiram a bordo, apedido de uma das professoras, cantaram«The Watch on the Rhine» que eu nuncaouvira antes. «E agora», disseram todas,

«vamos levantar ferro e vamos embora!»Eu é que não me sentia tentado a largarde Samoa tão cedo. Ao deixar o Spray,aquelas moças perfeitas, agarraram cadauma em seu remo ou numa folha depalmeira e foram elas que levaram ospróprios barcos. Qualquer delas podia terido a nado com a mesma facilidade e tê-lo-ia feito, creio eu, se não fossem osvestidos de musselina dos dias de festa. Não era raro ver em Apia uma rapariga aempurrar a nado uma piroga com umpassageiro para o Spray. O Sr. Trood, umantigo estudante de Eton, veio até ao meubarco desta maneira, e exclamou: «Jamaisalgum rei se fez transportar neste estilo?»Depois juntando a acção às palavras, deuà donzela tantas moedas de prata que osnativos que os viam da praia gritaram deinveja. A minha piroga, um pequenotronco escavado, emborcou-se um dia

comigo lá dentro e antes de ter tempopara recobrar o fôlego, já me encontravasentado em cima do fundo, às voltas emtorno do Spray, a reboque dum lindogrupo de banhistas, tentando descobrir oque iriam elas fazer a seguir. Mas eramseis, três de cada lado, e eu não podiafazer nada para me livrar. Uma dassereias, lembro-me, era uma joveminglesa mais divertida com a brincadeiraque qualquer das outras. . . . . . . . . . .

CAPÍTULO XIII Monarquia Samoana — O Rei Malietoa —Adeus aos amigos de Vailima —Deixando Fiji ao Sul — Chegada aNewcastle, na Austrália — Os iotes deSidney — Um mergulho a bordo doSpray — O Comodoro Foy presenteia ocúter com uma andaina nova — ParaMelbourne — Um tubarão valioso —Mudança de rota — A «chuva de sangue»— Na Tasmânia. Tive o prazer de conhecer em Apia o Sr.A. Young, pai da falecida RainhaMargarida que foi Rainha de Manua de1891 a 1895. O avô dela era ummarinheiro inglês que casou com umaprincesa nativa. O Sr. Young é hoje oúnico sobrevivente da família. Dois dosseus filhos, os últimos de todos eles,perderam-se a bordo de um barco de

cabotagem das ilhas, que poucos mesesantes largara de Apia para não maisvoltar. O sr. Young era um cavalheirocristão, e a filha, Margarida, tinha todosos dons de uma verdadeira senhora. Foicom desgosto que vi mais tarde nosjornais um relato sensacional da vida e damorte da rainha, extraído de um folhetode qualquer instituição de beneficência,mas o relato carecia de fundamento. E otítulo espalhafatoso «Faleceu a RainhaMargarida de Manua», já não eranovidade, em 1898, porque a Rainhamorrera três anos antes. No convívio que tive com a realeza local,falei com o próprio rei, o falecidoMalietoa. O Rei Malietoa era um grandegovernante; nunca recebeu menos dequarenta e cinco dólares por mês, pelassuas atribuições, conforme ele mesmodisse, e essa quantia fora ultimamente

aumentada de modo a poder viver nazona rica da ilha e deixar de ser chamado«Malietoa-lata-de-salmão» por algunsdesengraçados. Quando entrei, acompanhado dointérprete, pela porta principal dopalácio, o irmão do rei, que era vice-rei,arredando o reposteiro de taro, entroupela porta do fundo e veio acocorar-sejunto à porta e ali ficou enquanto eucontava ao monarca a minha história. OSr. W... de Nova Iorque, um cavalheirointeressado na obra missionária,incumbira-me de dar lembranças suas aorei das Ilhas dos Canibais, querendo, semdúvida, referir-se a outras ilhas, mas obom Rei Malietoa, não obstante o seupovo não ter comido um só missionárioem cem anos, mostrou-se muito agradadode ouvir notícias tão directas dos editores

da «Missionary Review» e pediu-me paralhes transmitir os seus cumprimentos. Sua Majestade retirou-se então, enquantofiquei conversando com a filha, a lindaFaamu-Sami (nome este que significa«Fazer o mar escaldar»), e regressoupouco depois metido no uniforme de galado comandante-chefe alemão, oImperador Guilherme. É que euimpensadamente, não tinha enviado ascredenciais à minha frente para que o reise pudesse vestir a preceito para mereceber. Vi o Rei Malietoa pela última vezquando, alguns dias depois, me fuidespedir da Faamu-Sami. De tudo quanto vi de notável em Apia,não posso deixar de recordar de modoespecial a pequena escola que ficavamesmo por trás das salas de leitura e docafé da Sociedade Missionária deLondres, onde a Srª Bell ensinava inglês a

uma centena de crianças nativas, rapazese raparigas. Seria difícil encontrarcrianças tão desembaraçadas. «Agora, meninos» disse a Sr." Bell, numdia em que visitei a escola, «vamosmostrar ao capitão que sabemos algumacoisa acerca do Cabo Horn, por onde elepassou no Spray. Um dos miúdos, umpetiz dos seus nove ou dez anos,adiantou-se lestamente e leu, e leu muitobem, a bela descrição que Basil Hallescreveu sobre o Cabo. Depois, numacaligrafia clara, copiou o ensaio paramim. Fui depois dizer adeus aos meus amigosde Vailima. Encontrei a Srª Stevenson dechapéu de Panamá na cabeça, eacompanhei-a numa volta pelapropriedade. Andavam alguns homens afazer uma limpeza ao terreno e a SrªStevenson mandou um deles cortar e

levar para o Spray dois pés de bambudum renque que mandara plantar quatroanos antes e já atingiam 18 metros dealtura. Conservei-os como mastreação dereserva e da ponta de um deles fiz umaretranca para a bujarrona, que fez muitobom serviço na viagem. Faltava-me agoraapenas beber ava com a família, antes deme fazer ao mar. A cerimónia, muitoimportante entre as gentes de Samoa,decorreu à maneira nativa. Um toque debúzio anunciou que a bebida estavapronta e, em resposta, todos nós batemospalmas. Como a solenidade fosse emhonra do Spray, pertencia-me ser oprimeiro a beber e a despejar um poucopor cima do ombro, ao modo da terra;mas, como me tinha esquecido da frasesamoana «Que os deuses bebam», disse-aem russo chinook, por me lembrar deuma palavra de cada, em consequência

do que o Sr. Osbourne me declarousamoano legítimo. Depois disse «Tofah!»aos meus amigos e, acompanhado dosbons desejos de todos, o Spray deitou forado porto em 20 de Agosto de 1896 paracontinuar a longa viagem. Quando asilhas desapareceram ao longe, senti cairsobre mim o sentimento da solidão e,para o vencer, larguei todo o pano rumo àAustrália que não era terra estranha paramim; mas durante muitos dias, continueia ver Vailima pela proa nos meus sonhos. Mal o Spray se fizera ao largo, e já umforte sopro dos alísios o obrigava a meteros rizes todos; e, no primeiro diafazíamos uma singradura de cento eoitenta e quatro milhas, das quais atribuíquarenta à corrente que era de feição.Como o mar estava duro, mareei a umlargo e deitei a passar a Norte das IlhasHorn e a Norte de Fiji em vez de as

dobrar pelo Sul como antes tencionava;depois corri a costa ocidental doarquipélago e deitei para a Nova Gales doSul, passando a sul da Nova Caledónia, echeguei a Newcastle depois de umatravessia de quarenta e dois dias em quepredominaram os temporais e ventosduros. Um temporal particularmente severo queapanhei perto da Nova Caledónia,afundou o clíper americano Patrician, umpouco mais para Sul. Depois, já maisperto da costa da Austrália, onde não deipor que o temporal fosse grande coisa,um paquete-correio francês em viagemda Nova Caledónia para Sidney, foiconsideravelmente desviado da rota e, àchegada ao porto, informou terencontrado um temporal desfeito. Aosamigos que lhe perguntavam por mim,respondia: «Oh! não sabemos o que terá

acontecido ao Spray. Avistámo-lo naforça da tempestade.» Mas o Spray tinhaatravessado e sentia-se como um pato naágua. Levava solto um pano reduzido etinha o convés enxuto enquanto ospassageiros do vapor, soube-o eu maistarde, andaram no salão com água pelojoelho. Quando o navio chegou a Sidneyofereceram uma bolsa de ouro ao capitãopela perícia com que os trouxera a portode salvamento. O capitão do Spray nãorecebeu nada deste género. Foi duranteeste temporal que desfechei com a terranas proximidades de Seal Rocks, onde ovapor Catherton se perdera, com muitasvidas, pouco tempo antes. Estive muitotempo tentando dobrar as rochas, embordos sucessivos, mas acabei por passar. A estação corria tempestuosa, e foi nafrente de um pé de vento que cheguei aNewcastle. O piloto do Governo, o

capitão Cumming, veio ao meu encontroà entrada da barra e, com a ajuda de umvapor, rebocou o Spray para umancoradouro seguro. Dos muitosvisitantes que vieram a bordo, o primeirofoi o cônsul dos Estados Unidos, o sr.Brown. Nada foi bom demais para oSpray. Dispensaram-no de todas asdespesas portuárias e, depois de algunsdias de descanso, um piloto do portorebocou-me para o largo. Daqui,naveguei costa a costa até ao porto deSidney, onde cheguei no dia seguinte, 10de Outubro de 1896. Fundeei numa enseada acolhedora, pertode Manly, para onde fui levado a reboquedo barco da polícia, e ali passei a noiteenquanto os agentes colhiam elementosde um dos meus velhos livros deapontamentos. Nada escapa à vigilânciada polícia da Nova Gales do Sul, e a sua

reputação tem renome mundial.Inteligentemente, pensaram que eu lhespoderia fornecer determinadas informa-ções úteis, e foram os primeiros a vir aomeu encontro. Houve quem dissesseterem vindo para me prender — deixá-losdizer. Aproximava-se o Verão e o porto deSidney enchia-se de iotes. Algunsaproximavam-se do Spray e navegavamem volta dele, em Shelcote, onde fundeeipor alguns dias. Em Sidney senti-meimediatamente entre amigos. O Spraydemorou-se nos vários pontos de aguadado grande porto durante umas boassemanas e aí recebeu a visita de muitaspessoas simpáticas, entre as quais, comfrequência, os oficiais do navio de SuaMajestade Orlando, na companhia deamigos seus. O capitão Fisher ocomandante, veio visitar-me um dia,

debaixo de uma chuva diluviana, comum grupo de jovens senhoras da cidade eoficiais do navio Nunca vi chover tanto,nem mesmo na Austrália, mas o grupoviera para se divertir e não foi a chuva,por muita que fosse, que lhes conseguiutirar a boa disposição. Todavia, por poucasorte, um jovem que viera com outrogrupo, metido no vistoso uniforme de umclube náutico muito importante, combotões de latão suficientes para o fazer irao fundo ao fugir apressadamente dachuva, enfiou-se de uma só vez, decabeça para baixo, numa barrica de águae, baixote como era, sumiu-se lá dentro equase se afogou antes de termos tempode o salvar. Pelo que sei, esteve para ser aprimeira e única baixa a bordo do Spray,em toda a viagem. O facto de o jovem tervindo a bordo apresentar cumprimentos,tornou o desastre mais embaraçoso. O

clube a que pertencia, entendera que oSpray não podia ser oficialmentereconhecido uma vez que não traziacredenciais de clubes náuticosamericanos, o que tornava ainda maisestranho e embaraçoso o ter apanhadoum dos seus membros numa barrica elogo quando não andava à pesca dedesportistas náuticos. O barco típico de Sidney é um cúterelegante de grande boca e superfícievélica desconforme; mas não é raro vê-losvoltar-se porque largam pano comovikings. Vi em Sidney, divertindo-se nabaía, todas as variedades de barcos desdea moderna lancha de vapor e do cúter deregata até aos botes e canoas maispequenos. Toda a gente tinha um barco.Se um rapaz australiano não tem dinheiropara comprar um barco, constrói-o ele

mesmo, e, em regra, não fica coisa de quetenha de se envergonhar. O Spray trocou a sua «capa de José», opano grande da Terra do Fogo, por umaandaina nova com que principescamenteo presenteou o comodoro Foy. Sob a novaandaina, teve a honra de ser o barcoporta-insígnia do Johnstone Bay FlyingSquadron, durante a regata anual emtorno da baía. O tempo voou depressa enquanto estivena Austrália, e em 6 de Dezembro de 1896o Spray largou de Sidney. A minhaintenção era dobrar o Cabo Leeuwin edeitar para as Maurícias e, nessa ideia,corri a costa em direcção ao Estreito deBass. Pouco há a dizer desta parte da viagem,além de ventos variáveis, pés de vento emau mar. Mas o dia 12 de Dezembro foiexcepcionalmente belo, com uma boa

brisa de terra, do Nordeste. Demadrugada passei a Baía de Twofold e,mais tarde, o Cabo Bundooro com marchão, abraçado com a terra. O farol doCabo arriou a bandeira em resposta àsaudação do Spray e, na varanda de umacasa junto à praia, viam-se criançasacenando-me com lenços. Poucas pessoasse viam em terra, mas a cena era dealegria. Havia grinaldas de verdura quefalavam já do Natal que se aproximava.Saudei aquela boa gente desejando--lhe«Feliz Natal» e ouvi, em resposta«Desejamos-lhe o mesmo». Depois do Cabo Bundooro, passei a ilhaCliff, no Estreito de Bass, onde troqueisinais com os faroleiros, enquanto o Spraypassava a sotavento da ilha. Todo aqueledia o vento não parou de uivar, enquantoo mar rebentava com violência contra acosta rochosa.

Poucos dias depois, 17 de Dezembro, oSpray aproximou-se do Promontório deWilson, à procura de abrigo. O faroleirodo promontório, o Sr. J. Clark, veio abordo e deu-me instruções para seguir atéà Baía de Waterloo, umas três milhas asotavento e eu deitei logo para lá, indoencontrar bom ancoradouro numa angrade areia abrigada dos ventos do Norte edo Oeste. Também ali estavam ancorados o Secret,uma chalupa pescareza, e o Mary, umpequeno cargueiro de vapor, aparelhadopara a pesca da baleia. O capitão do Maryera um génio, um génio do tipoaustraliano e esperto. Da equipagem, queviera de uma serração de madeiras, nemum só homem tinha visto uma baleia vivaantes de embarcar; mas eram todoshomens-do-mar, à maneira dosaustralianos, e o capitão tinha-lhes dito

que matar uma baleia não era mais quematar um coelho. Acreditaram-no eajustaram-se com ele. Com a sorte devida,a primeira que viram na campanha,embora uma feia baleia de corcova, nãotardou nada que não fosse um cadáver. Ocapitão Young, o patrão do Mary matou omonstro ao primeiro golpe do arpão.Depois, rebocaram o animal para Sidney,onde o tiveram em exposição. Nada, anão ser baleias, interessava os homens doMary, que passaram a maior parte dotempo na enseada a reunir combustívelpara uma campanha nos pesqueiros daTasmânia. De cada vez que sepronunciava a palavra «baleia», os olhosdos homens brilhavam de excitação. Passámos três dias nesta angra abrigada,ouvindo o vento uivar lá fora. Entretanto,o capitão Young e eu explorámos as

praias, visitámos minas abandonadas eapanhámos algum ouro para nós. À largada, os nossos barcos separaram-see seguiu cada um ao seu rumo, como avesmarinhas. Durante uns dias o ventomanteve-se moderado e, com um bomtempo pouco vulgar nestas paragens,cheguei às Cabeças de Melbourne em 22de Dezembro e entrei no porto a reboquedo Racer. Passei o dia de Natal amarrado no rioYarra, mas não tardei a mudar para St.aKilda, onde me conservei quase um mês. Excepto em Pernambuco, o Spray aindanão fora obrigado a pagar despesasportuárias, mas quando meteu o nariz naAlfândega de Melbourne, obrigaram-no apagar taxa de arqueação, a seis dinheirospor tonelada. O colector arredondou aconta para seis xelins e seis dinheiros, nãodescontando nada pela diferença para as

treze toneladas, quando afinal aarqueação exacta era de 12,70. Saldei acoisa, cobrando seis dinheiros a cadapessoa que viesse a bordo e, quando onegócio começou a cair, apanhei umtubarão e passei a cobrar seis dinheiros aquem o quisesse ver. O tubarão, umafêmea de três metros e oitentacentímetros de comprimento, trazia umaninhada de vinte e duas crias, nenhumadelas inferior a sessenta centímetros dofocinho à cauda; aberto o ventre da mãe,puseram-se dentro de uma canoa cheia deágua, onde se conservaram vivas um diainteiro. Menos de uma hora depois de sesaber que a fera andava por ali, já eu atinha no convés em exposição e já haviacobrado bastante mais que a quantia pagapela taxa de arqueação. Contratei entãoum bom irlandês, chamado Tom Howard— que sabia tudo acerca de tubarões,

tanto em terra como no mar, e se sentiacapaz de falar acerca deles — pararesponder a perguntas e palestrar.Quando não me sentia à altura deresponder às perguntas, endossava-lhe aresponsabilidade. Ao voltar do Banco onde fora depositardinheiro, ao princípio da tarde encontreio Howard no meio de um grupo muitointeressado, descrevendo hábitosimaginários do peixe. Era um beloespectáculo; o público desejava vê-lo, eera meu desejo que o vissem, mas devidoao entusiasmo delirante do Howard, vi-me obrigado a conceder-lhe a demissão.As receitas do espectáculo e o rendimentoda venda da banha apanhada no Estreitode Magalhães, cuja última porção vendi aum alemão fabricante de sabões emSamoa, deixaram-me muito bem definanças.

O dia 24 de Janeiro de 1897 veioencontrar o Spray, de novo a reboque doRacer, largando da Baía de Hobson,depois de uma agradável estadia emMelbourne e St. Kilda. Tão longa demorano porto deveu-se a sucessivosadiamentos por causa dos ventos deSudoeste, que pareciam não querer parar. Nos meses de Verão, isto é, Dezembro,Janeiro, Fevereiro e, por vezes, Março,predominam ventos do Este no Estreitode Bass e no Cabo Leeuwin; mas devido àpresença de grandes massas de geloarrastadas do Antárctico, o tempoalterara-se, com muito vento e mar, de talmodo que considerei impraticávelprosseguir naquela derrota. Assim, emvez de me lançar em direcção ao CaboLeeuwin tormentoso e frio, resolvi passaruma temporada mais agradável eproveitosa na Tasmânia, esperando a

estação dos ventos favoráveis no Estreitode Torres e na Grande Barreira de Recifes,derrota esta por que acabara por medecidir. Segui-la, seria aproveitar osanticiclones, que nunca faltam, e alémdisso, teria a oportunidade de pôr pé emterras da Tasmânia, em volta da qualnavegara anos antes. Julgo curioso mencionar que durante aestadia em Melbourne, ocorreu um dessesextraordinários fenómenos chamados porvezes «chuva de sangue», o primeiro dogénero na Austrália ao fim de muitosanos. O «sangue» não era mais que poeirafiníssima de argila trazida dos desertosem suspensão no ar. A tempestade dechuva que se formou, trouxe consigo estapoeira sob a forma de lama, e caiu em talquantidade que tirei dos toldos do Sprayum balde cheio. Quando me vi obrigado,pela força do vento, a tirar os toldos, as

velas que estavam envergadas nasretrancas ficaram manchadas da lama, daesteira à pena. O fenómeno das tempestades de areia,muito conhecido dos cientistas, não éinvulgar nas costas da África. Alcançandodistâncias apreciáveis por sobre o mar,atingem frequentemente as rotas dosnavios, como foi o caso sucedido com oSpray na primeira parte da viagem. Osmarinheiros já não olham estastempestades com medo supersticioso masos nossos crédulos irmãos de terra gritam«chuva de sangue!» aos primeirosborrifos da lama. A vaga ao largo das cabeças de PortPhillip, um lugar selvagem, estava grossaquando o Spray entrou a Baía de Hobson,e grossa estava quando saiu. Mas tendomuito mar livre, ao redor, logo que deuvelas e passou as cabeças encontrou

melhor mar. Com o vento de feição asoprar rijo, a travessia do estreito até àTasmânia foi uma questão de poucashoras. Trouxe comigo o tubarão de St."Kilda, empalhado, e ofereci-o ao Prof.Porter, conservador do Museu Victoria,de Launceston, na ponta de Tamar. Pormuitos dias vindouros pode ver-se ali otubarão de St.a Kilda. Ai de mim!,quando se puseram à venda os jornaisilustrados com fotografias do meutubarão. A gente boa mas ignorante deSt.a Kilda, entrou em fúria e queimoutodos os jornais que traziam qualquerreferência ao peixe; é que St.a Kilda eraum local de aguada — e a ideia deaparecer um tubarão ali! Mas a minhaexposição lá continuou. O Spray fundeou na praia de Launceston,junto a um pequeno molhe, nummomento em que a maré cheia, puxada

pelo mesmo vento rijo que me trouxeraao porto, atingira um nívelinvulgarmente alto; por isso, logo que amaré desceu, o barco ficou varado emseco, sem ter ao redor água que chegassepara molhar os pés. Quando resolvilargar, foi preciso cavar a areia por baixoda quilha para o pôr a flutuar. Aqui, deixara o barco à guarda de trêscrianças enquanto passeava a pé porentre os montes ou descansava os ossos,para o resto da viagem, nas rochascobertas de musgo de um vale próximoou entre os fetos que abundavam portodo o lado. O barco ficava bem entregue.Nunca regressei sem que descobrisse queo convés havia sido lavado, e sem queuma das crianças, a filhita do meuvizinho mais próximo do outro lado darua, estivesse na ponte a receber osvisitantes, enquanto os outros dois, irmão

e irmã vendiam recordações do mar, queiam tirando da carga, «por conta donavio». Era uma tripulaçãodesembaraçada e alegre, e as pessoasvinham de longe para ouvir falar dahistória da viagem e dos monstros dasprofundezas que «o capitão tinhamatado». Só tinha de me conservarafastado para me tornar um herói de maisalto quilate; e a coisa calhava-me muitobem por me dar tempo para me fortificarna floresta ou à beira dos regatos. . . . . . . . . .

CAPITULO XIV Homenagem de uma senhora —Cruzando ao redor da Tasmânia — Ocapitão faz a primeira palestra da viagem— Provisões abundantes — Vistoria aoSpray em Devonport — De novo emSidney — Proa ao Norte para o Estreitode Torres — Um naufrágio de amadores— Amigos na costa australiana — Perigosde um mar de coral. No dia 1 de Fevereiro de 1897, aoregressar ao barco encontrei à minhaespera uma carta de simpatia, quetranscrevo: Uma senhora envia ao Sr. Slocum ainclusa nota de cinco libras como símbolode apreço pela sua bravura au atravessaros mares vastos em tão pequeno barco, ecompletamente só, sem humana simpatia

a ampará-lo quando o perigo o ameaça.Deseja-lhe completo êxito. Até hoje, não soube quem a escreveu e,portanto, a quem fiquei devendo tãogenerosa oferta. Não podia recusar umacoisa de significado tão gentil, masprometi a mim mesmo passá-la a outrem,em sua intenção; e foi o que fiz antes dedeixar a Austrália. Como a estação do bom tempo no Norteda Austrália ainda viesse longe, visiteioutros portos da Tasmânia a começar porBeauty Point, em cujas proximidades seencontram Beaconsfield e a grande minade oiro que também visitei na devidaaltura. Tudo quanto vi na mina foramcentenas de pilões que iam esmagando epulverizando as pedras cinzentas, sembeleza nenhuma, à medida que as içavamda mina. Disseram-me que as tais pedras

continham ouro e não vi razões para nãoacreditar. Recordo Beauty Point pela sua floresta desombras magníficas e pela estrada quecorre entre eucaliptos gigantescos.Durante o tempo que ali estive, apareceuem viagem de recreio, o Governador da.Nova Gales do Sul, Lorde Hampden, coma família, num iote de vapor. O Spray,ancorado perto do cais de desembarque,içou a bandeira, como devia ser, e creioque nunca se vira neste local barco maisinsignificante com as Estrelas e Faixasdesfraldadas. Parecia, contudo, que ogrupo do Governador sabia da razão daminha presença e sabia tudo quanto serelacionava com o Spray. Quando ouviSua Excelência dizer: «Apresente-me aocapitão» — ou «Apresente-me o capitão»,não me lembro ao certo — senti-me desdelogo em presença de um cavalheiro e de

um amigo altamente interessado naminha viagem. Se alguém, do grupo, seinteressava mais que o Governador, era afilha, a Honourable Margaret. Quandonos separámos, o Lorde e a LadyHampden prometeram encontrar-secomigo a bordo do Spray na Exposição deParis, em 1900. «Se formos vivos»,disseram; e, por minha vez, acrescentei:«Excepto pelas fortunas do mar». Depois de Beauty Point, o Spray visitouGeorgetown, próximo da embocadura dorio Tamar. É este povoado, creio eu, quemarca o local onde, pela primeira vez ohomem branco pôs o pé na Tasmânia,embora, depois disso, nunca maispassasse de uma aldeola. Considerando que já tinha visto algumacoisa do Mundo e descobrindo que aspessoas da terra se interessavam pelaaventura, falei sobre a coisa perante o

meu primeiro auditório num pequenosalão à beira da estrada. Trouxeram umpiano de casa de um vizinho, e senti-meencorajado com a tareia que ele apanhoue com um «Tommy Atkins», cantado porum actor itinerante. Veio gente de muitolonge e o auditório deu-me um total deumas três libras esterlinas. A proprietáriado salão, uma bondosa senhora escocesanão me quis aceitar aluguer e, assim, aminha primeira palestra foi logo umêxito. Deste lugarzinho acolhedor, fiz-me devela para Devonport, uma terraprogressiva à beira do rio Mersey, apoucas horas de vela para Oeste ao longoda costa. Devonport está-se tornando oporto mais importante da Tasmânia.Entram ali constantemente grandesnavios de vapor para embarcar cargasenormes de produtos agrícolas, mas o

Spray foi o primeiro vaso a trazer aqui asEstrelas e Faixas, assim mo disse oharbour-master (1), o Capitão Murray, eassim ficou escrito nos registos do porto.Por tão grande distinção, o Spray foi alvode inúmeras gentilezas enquanto aliesteve sob âncora, coberto por toldoscontra a poeira, que o escondiam da popaà proa. Da casa do juiz, «Malunnah», situada naponta, veio a saudação com o pavilhãobritânico, à entrada e à largada, e a boaSrª Aikenhead, a castelã de Malunnah,abasteceu o Spray com compotas e geleiasde toda a espécie, preparadasexpressamente com frutas do seu ricopomar — de sobra para a viagem deregresso. A Srª Wood, que morava maispara montante do porto, trouxe garrafasde vinho de framboesas. Mais que nunca,

até aqui, encontrava-me numa terra debons petiscos. (*) Harbour-master é uma autoridadecom atribuições semelhantes às docapitão do porto, mas sem competênciamilitar. A Srª Powell mandou-me um achar demanga e limão, feito «como o preparamosna índia». Abundavam aqui o peixe e acaça, e ouvia-se a voz da abetarda; dePardo, mais para o interior, veio umqueijo enorme. E ainda há quem mepergunte: «De que vivia? Que é quecomia?» Sentia-me dominado pela beleza dapaisagem, pelos campos de fetos queestavam então a desaparecer, pelasflorestas de árvores copadas, nasencostas, e tive o prazer de conhecer umcavalheiro interessado em perpetuar, emobras artísticas, as belezas da terra.

Ofereceu-me várias reproduções da suacolecção de quadros, e até algunsoriginais, para mostrar aos meus amigos. Fui incumbido por outro cavalheiro, dedescrever as belezas da Tasmânia portodas as terras e a todo o momento. Era oDr. McCall, M. L. C. O doutor deu-me,também, conselhos muito úteis acerca daspalestras. Não foi, porém, sem receio queme fiz ao largo nesta nova rota e, possodizê-lo, foi devido apenas à gentileza esimpatia dos ouvintes que a minha barcaoratória não sossobrou. Logo a seguir àprimeira palestra o amável doutor veioprocurar-me com palavras de aprovação.Como em muitos dos meusempreendimentos, metera-me pelapalestra adiante sem pensar duas vezes.«Homem, homem», disse-me o médico,«o nervosismo é apenas sinal de miolos, equanto mais miolos um homem tem, mais

lhe custa livrar-se da atrapalhação; mas»,acrescentou ele pensativamente, «há-deacabar por vencê-la». Devo, no entanto,dizer em minha defesa que ainda não mesinto completamente curado. O Spray foi posto em seco na carreira daMarinha, de Devonport, e vistoriadocuidadosamente de alto a baixo, masverificámos que estava absolutamentelivre do teredo daninho, e nas melhorescondições, a todos os títulos. Comomedida de defesa contra os estragos dosgusanos, levou mais uma camada de tintade cobre, uma vez que tinha de atravessaros mares do Coral e Arafura antes denova revisão. Fez-se tudo quanto havia afazer para preparar o barco contra todosos perigos previsíveis. Mas não era semmágua que via aproximar-se o dia delargar de uma terra onde travara tãoagradáveis relações. Se houve, durante

toda a viagem, um momento em queestive à beira de desistir, foi aqui e nestaocasião; mas, não havendo vaga abertapara melhor emprego, levantei ferro em16 de Abril de 1897 e fiz-me ao mar. O Verão estava a chegar ao fim, e oInverno aproximava-se do Sul comventos de feição que me levassem para oNorte. Uma amostra de vento de Invernolevou o Spray a voar pelo Cabo Howe atéao Cabo Bundooro, que dobrou no diaseguinte. Foi uma bela singradura e umbom presságio para a longa viagem deregresso dos antípodas. Os amigos queencontrara em Bundooro, pelo Natal,estavam já acordados e voltámos a trocarsinais quando o Spray ali voltou a passarabraçado com a terra, sobre um marsereno. O tempo estava bom, e o céu manteve-selimpo durante o resto da travessia até

Port Jackson (Sidney) onde o Sprayentrou em 22 de Abril, para ir fundear naBaía de Watson, perto das cabeças, poroito braças de fundo. O porto, desde ascabeças até Parramatta, rio acima, estavamais que nunca repleto de embarcações eiotes de toda a espécie, numa cena deanimação difícil de igualar em qualqueroutra parte do Mundo. Poucos dias mais tarde, a baía foi varridapor vagas tempestuosas, e só os grandesnavios podiam aguentar pano.Encontrava-me então num hotel junto aoporto, a curtir uma nevralgia que meaparecera durante a viagem, e acabavaprecisamente de ver de relance a popa deum navio de vapor enorme, de difícilmanobra, passar no campo de visão dajanela, quando o miúdo de recados meentrou de roldão pelo quarto gritandoque o Spray tinha «ido com um

encontrão». Saí imediatamente e descobrique o «encontrão» tinha sido oabalroamento de um vapor; precisamenteo navio cuja popa avistei da janela,atingira o Spray com a proa. Verificou-se,porém, que o meu barco nada sofreraalém da perda duma âncora e respectivaamarra que, com o esticão, partira rente àbuzina. Mas não tive razões de queixa docapitão. Logo que o navio amarrou,mandou rebocar o Spray, baía acima, eem seguida mandou-o levar até ao seuanterior fundeadouro ao cuidado de umoficial e três marinheiros, com uma notamuito cortês em que se declarava prontoa reparar todos os prejuízos. Mas o quemeu barco guinava enquanto vinha comum estranho ao leme! O velho amigopiloto do Pinta não podia ser acusado detrabalho tão desastrado. Mas, para meualívio, lá conseguiram levar o Spray até

ao ancoradouro, e a nevralgia passou-meou, pelo menos, esqueci-a. O capitão donavio, como um verdadeiro homem domar, cumpriu à risca a sua palavra, e oagente, o Sr. Collishaw, entregou-menesse mesmo dia o preço do ferro e daamarra, e ainda alguma coisa mais, porconta da minha ansiedade. Lembro-meque me ofereceu doze libras, logo deinício; mas como o meu número de sorteera treze, pusemos a coisa em treze librase ficou tudo saldado. Meti ao mar, em 9 de Maio, na frentedum Sudoeste rijo que levou o Spray embom andamento até Port Stevens, ondeabateu e passou a soprar de proa. Mas otempo estava bom e assim se aguentoudurante vários dias, o que era uma felizmudança em relação ao que aqui apanheialguns meses antes.

Dispondo de um jogo completo de cartasda costa e da Grande Barreira, sentia-mesossegado. O Capitão Fisher da Marinhainglesa, que tinha navegado naspassagens da Grande Barreira a bordo doOrlando, aconselhou-me, desde oprimeiro dia, a seguir esta rota, e aindahoje não me arrependo de lhe ter seguidoo conselho. O vento, depois de dobrar Port Stevens,Seal Rocks e o Cabo Hawk, manteve-sefraco e ponteiro durante alguns dias.Estes pontos ficaram-me gravados namemória quando os passei à custa demuitos trabalhos, a caminho do Sul,alguns meses antes. Mas desta vez, comuma boa provisão de livros a bordo,estendia-me a ler, noite e dia,abandonando esta agradável ocupaçãoapenas para compassar o pano, despejarum bordo ou dormir, enquanto o Spray ia

papando milhas. Tentei comparar aminha situação com a dos velhos circum-navegadores que seguiram precisamentea rota que tomei a partir das Ilhas deCabo Verde até um ponto mais atrás e apartir de outro mais para além do lugaronde me encontrava mas não haviacomparação. As dificuldades terríveis porque passaram e as escapadas românticas— dos que escaparam à morte e asofrimentos piores — não entraram nasminhas experiências, enquanto navegueisozinho à volta do Mundo. Só posso falarde experiências agradáveis, tanto que asminhas aventuras não passam deprosaicas e pacatas. Acabara precisamente de ler algumas dasmais interessantes viagens de navios detempos idos, e estava a aproximar-se dePort Macquarie, quando avistei, em 13 de

Maio, um elegante barco moderno emdificuldades, ancorado junto à costa. (*) Com efeito, a derrota do CapitãoSlocum afasta-se da da frota de Fernão deMagalhães ao largo do Pacífico e volta aaproximar-se dela a meio do Indico. Deitei para lá e verifiquei que se tratavado iote Akbar que largara da baía deWatson, uns três dias antes do Spray, eque por certo se metera em dificuldades.Nada admira que assim tenha sido. Erauma história de meninos perdidos nafloresta ou de borboletas no mar. O dono,na sua primeira viagem, era todo elecalças de lona; o capitão, que sedistinguia pelo enorme barrete de pala,fora baleeiro no Murrumbidge (2) antesde assumir o comando do Akbar; e ooficial navegador, pobre rapaz, era quasetão surdo como uma porta e tão paradocomo uma porta fechada à chave. Estes

três lindos lobos do mar é que formavamtoda a tripulação. Nenhum deles sabiamais do mar ou de navios, que um recém-nascido sabe deste Mundo. Dirigiam-separa a Nova Guiné, assim o diziam. O proprietário, que eu tinha conhecidoantes de largar, propôs-me correr emregata com o Spray até à Ilha de Quinta-Feira, ao longo da minha derrota.Declinei o desafio, naturalmente, apretexto da desigualdade em que ficaria omeu velho Spray, de construção rústica eequipado por um marinheiro velho esozinho, contra três jovens nautas numbarco de regata. E no Mar do Coral é queeu não entrava em regatas fosse comofosse. «Ó do Spray!» gritavam eles agora,«Como vai estar o tempo? Irá soprar? Enão acha melhor voltarmos atrás parareparações?»

«Se alguma vez conseguirem voltar atrásnão voltem a aparelhar», pensei eu, masdisse-lhes: «Passem-me o chicote de umcabo e eu dou--lhes um reboque atéàquele porto além adiante; e se têm amorà vida, não vão para lá do Cabo Hawk,porque faz Inverno lá para o Sul». A ideia deles era deitar para Newcastlesob pano de fortuna; o pano grandeficara-lhes feito em farrapos, a catita foralevada com o vento, e o aparelhobalouçava-se com os chicotes soltos.Numa palavra, o Akbar estava como setivera naufragado. «Leva âncora», gritei, «leva âncora! edeixem-me rebocá-los até PortMacquarie, que são só doze milhas para oNorte daqui». «Não», gritou o dono, «vamos voltar paraNewcastle. Falhámos Newcastle à vindapara cá; não avistámos o farol, apesar de

não estar muito escuro». Esta última frasefoi dita em altos berros, aparentementepara eu ouvir, mas, pareceu-me que odono do Akbar falou muito perto dosouvidos do navegador. Fiz nova tentativapara os convencer a deixar-se rebocar atéao porto de abrigo que ficava tãopróximo; custar-lhes-ia apenas o trabalhode levantar ferro e passar-me um cabo,mas mesmo assim recusaram, ignorantesdemais para tomar uma decisão racional. (*) Akbar não era o seu verdadeiro nome,mas isso não interessa. (**) O Murrumbidgee é um regato queserpenteia por entre as montanhas daAustrália e seria o último lugar doMundo onde procurar uma baleia. «Que altura de água têm aí?», perguntei. «Não sabemos; perdemos a chumbada.Temos a amarra toda fora. Prumámoscom a âncora».

«Então mandem-nos o bote, que eu dou-lhes um prumo.» «Também perdemos obote.» «Deus é misericordioso, se não até vocêsse tinham perdido.» E tudo o mais quepude dizer foi «Adeus». O pequeno serviço que o Spray sepropunha fazer ter-lhes-ia salvo o barco. «Dê notícias nossas», gritaram elesquando meti a caminho, «dê notícia deque estamos sem velas, mas que não nosapoquentamos e não temos medo.» «Então já não há esperanças para vocês.Adeus!» Prometi dar notícias deles e assim o fiz naprimeira oportunidade; e, para além detodas as razões humanas, volto agora afazê-lo. No dia seguinte falei com o vaporSherman que seguia de costa a costa parao Sul, informei-o do iote em dificuldadese disse-lhe que seria um acto de

humanidade rebocá-lo para fora daquelaposição numa costa desabrigada. Se nãoaceitaram reboque do vapor, não foi porfalta de fundos com que pagar a conta; odono, que herdara recentemente umascentenas de libras, tinha dinheiro com ele.A projectada viagem à Nova Guiné tinhapor fim deitar uma olhadela à ilha, comvista à sua compra. Voltei a ter novas doAkbar uns dezoito dias depois, 31 deMaio, ao chegar a Cooktown, no RioEndeavour, onde li a notícia seguinte: 31 de Maio, o iote Akbar, de Sidney paraNova Guiné, três homens a bordo,perdido em Crescent Head; tripulaçãosalva. Afinal, ainda demoraram uns diasaté perderem o barco. Depois do encontro com o Akbar e oSherman, a viagem decorreu durantealguns dias sem acontecimentos dignosde nota, excepto pelo agradável episódio

de um diálogo por sinais com a gente deSouth Solitary Island, um amontoado depedras soturno, no oceano, logo ao largoda costa da Nova Gales do Sul, por 30° 12'de latitude Sul. «Que navio é esse?» perguntaram quandoo meu barco chegou em frente da ilha.Em resposta, icei as Estrelas e Faixas nopenol da carangueja. O sinal desceu atoda a pressa e no seu lugar subiu abandeira inglesa que logo arriaramcordialmente. Percebi por isto que mereconheceram e que sabiam tudo acercado Spray; nem fizeram mais perguntas.Não perguntaram, sequer, se «a viagemvalia a pena». O que içaram foi amensagem simpática «Desejamos-lhe boaviagem», desejo esse que naquelemomento estava sendo integralmentesatisfeito.

Em 19 de Maio, ao passar o Rio Tweed,recebi sinais de Danger Point; as pessoasde terra pareciam muito preocupadascom o meu estado de saúde, porqueperguntaram se «toda a gente» vinha bema bordo. Pude responder-lhes «Sim». No dia seguinte o Spray dobrava oGrande Cabo das Areias (Great SandyCape) e — o que era um acontecimentonotável em todas as viagens — entrava noalísio que, a partir daqui, seguiu o meubarco durante milhares de milhas, oramuito fresco, ora como uma brisa deVerão, mas nunca deixando de soprar,excepto a intervalos raros. Na cabeça do Cabo havia um soberbofarol que se avistava a vinte e sete milhas;depois de dobrar esta ponta, a caminhodo farol de Lady Elliott, que se erguesobre uma ilha como sentinela à entradada Grande Barreira, o Spray entrou

finalmente na bela via marítima do Norte.Alguns poetas têm escrito poemas afaróis e a fanais mas jamais algum poetaavistou o grande clarão de um farol numanoite escura, no meio de um mar decoral? Se assim foi, sabia o que queriadizer com tais poemas. O Spray vinha navegando um tantoindeciso, evidentemente tentando venceruma corrente. Quase desesperado, nadúvida deitei para o largo mas nessemomento, como que saindo do mar,apareceu-me o clarão do farol pela frente.«Excalibur!» gritou «toda a tripulação»que rejubilou. O Spray entrava agora emáguas abrigadas e mar estanhado, oprimeiro em que molhava a quilha depoisde Gibraltar; e que diferente ele era dapalpitação do mal-crismado Pacífico. O Pacífico não é talvez, visto no seu todo,mais turbulento que os outros oceanos,

muito embora me sinta à vontade paradizer que também não é mais pacíficosenão no nome. É, frequentemente,bastante selvagem numa zona ou noutra.Conheci em tempos um escritor que,depois de dizer coisas muito bonitas apropósito do mar, apanhou um ciclone noPacífico e tornou-se um homem diferente.Mas onde estaria afinal a poesia do marse não fossem as vagas bravias? Mas aqui estava o Spray, por fim, nummar de coral. O mar em si mesmo podia-se chamar calmo, não há dúvida, mas asrochas de coral são sempre ásperas,aguçadas e perigosas. Confiava-me agoranas mãos do Criador de todos os recifes,embora ao mesmo tempo me mantivessevigilante contra os perigos queespreitavam por todos os lados. Eis a Grande Barreira com as suas águasde muitas cores consteladas de ilhas

encantadas! Avistei entre elas muitosportos seguros, ou a minha vista já nãoenxerga bem. Em 24 de Maio, depois decobrir cento e dez milhas por dia, a partirde Danger Point, o cúter entrava aPassagem de Pentecostes (WhitsundayPass) e passou essa noite navegando porentre as ilhas. Quando o Sol nasceu, namanhã seguinte, olhei para trás earrependi-me de não ter feito aquelatirada durante o dia, porque o cenárioque deixara para trás era extremamentebelo e variado. . . . . . . . .

CAPITULO XV Chegada a Port Denison, naQueenslândia — Uma palestra -Reminiscências do Capitão Cook — Umapalestra de beneficência em Cooktovvn— Escapando com sorte de um recife decoral - Home Island, Sunday Island, BirdIsland — Um pescador de pérolasamericano — Celebrações em ThursdayIsland — Uma bandeira nova para oSpray — Através do Oceano Índico —Ilha do Natal. Na manhã de 26 encontrava-me perto daIlha de Gloucester e, à tardinha, o Sprayfundeou em Port Denison onde fica, sobreuma colina, a cidadezinha pacata deBowen, o futuro ponto de aguada eestância de repouso da Queenslândia.Toda a região que a circunda, respirasaúde.

O porto é de aproximação fácil, espaçosoe abrigado, e o fundo é de boa tença. Avida corria sossegada em Bowen quandoo Spray chegou e a boa gente que pôdedispor de uma hora na segunda tarde,desceu até à Escola das Artes paraconversar da viagem, a última novidadelocal. A palestra foi oportunamenteanunciada nos dois jornaizinhos«Boomerang» e «Nully Nully», navéspera do acontecimento e no dia que selhe seguiu, o que não fez qualquerdiferença para o editor nem para mim. Além disso distribuíram-se prospectosem grande profusão e pôs-se em campo o«melhor pregoeiro» da Austrália. Masapeteceu-me fazer passar o miserável porbaixo da quilha, com a campainha e tudo,quando se veio postar à porta da pensãoonde eu estava a jantar com os meusfuturos ouvintes, fazendo uma barulheira

capaz de acordar um morto, agitando asineta e gritando como um possesso as glórias da viagem do Spray«desde Boston a Bowen, os dois extremosdo eixo das rodas da Criação», como diziadepois o «Boomerang». O Sr. Myles, magistrado, harbour-master,negociante de terras, etc, etc, presidiu àsessão e apresentou-me. Para quê, não osei, a menos que fosse para me embaraçare amargurar a vida, porque Deus sabeque uma hora depois de pôr o pé em terrajá fora apresentado a todos os habitantesda cidade. Neste momento já os conheciaa todos pelos seus nomes e todos meconheciam a mim. Mas o Sr. Myles eraum bom falador. Tão bom que tenteiconvencê-lo a continuar e contar ahistória toda, enquanto eu ia mostrandoas gravuras, mas recusou a proposta.Devo dizer que a palestra era ilustrada

por meio duma lanterna de projecção. Asvistas eram bonitas mas a lanterna, umobjecto de trinta xelins, que funcionavacom uma lâmpada de petróleo, era umacalamidade. Por pensar que seria melhor assim,larguei na madrugada seguinte, antes desaírem os jornais. Soube depois queambos publicaram um artigo elogiandoaquilo a que chamavam uma conferência,sem esquecer, além disso, uma palavra deapreço para o pregoeiro. A partir de Port Denison, o cúter correucom o alísio igual, sem fazer paragemquer de dia quer de noite, até alcançarCooktown, no Rio Endeavour, ondechegou a 31 de Maio, segunda-feira,levado por um pé de vento furioso que secomeçara a fazer sentir nesse dia, umascinquenta milhas mais para o Sul. É poresta latitude que passa o eixo do alísio

que, por alturas de Cooktown atingefrequentemente a força de um ventomuito duro. Tinha sido aconselhado a navegar poraqui com cautelas extremas e a ir semprecom o prumo na mão. O experiente oficialda Armada inglesa que me aconselhou aseguir a rota da Grande Barreira,escreveu-me dizendo que a bordo doOrlando navegara a vapor, dias e noites,através deste mar mas que, sob vela,poria o barco em risco nos recifes de coralse fizesse o mesmo. Isto aqui para nós, não teria sido coisafácil encontrar fundeadouros todas asnoites. E o trabalho duro de uma largadapela manhã, esperava eu, acabara-se àsaída do Estreito de Magalhães. Alémdisso, as cartas do Almirantadopermitiam-me navegar noite e dia. Comefeito, com vento de feição e o céu limpo,

próprio da estação, a rota da GrandeBarreira era, sem dúvida, mais clara queuma rua de uma cidade populosa e, atodos os títulos, menos perigosa. Mas aalguém que tencione fazer esta viagemdirei que tenha cuidado com os recifes,quer de dia quer de noite, e, a quem fiqueem terra, que tenha ainda mais cautela. «O Spray entrou no porto voando comouma ave», diziam os jornais de Cooktownna manhã a seguir à chegada; «e pareciaestranho», acrescentavam, «ver-se um sóhomem a bordo, manobrando o barco». OSpray vinha a dar o máximo, não hádúvida, porque era quase noite, e estavacom pressa de encontrar poiso antes deescurecer. Bordejando por entre os barcosfundeados no porto, fui ancorar, ao Sol-pôr, quase em frente do monumento aoCapitão Cook, e na manhã seguinte saí

em terra para olhar com os meus olhos aspedras que o grande navegador vira.Sentia-me agora em terreno que, para oshomens do mar, é sagrado. Mas parecialevantar-se uma dúvida na gente deCooktown quanto ao local em que onavio, o Endeavour, tinha varado parareparações, durante a memorável volta aoMundo. Diziam alguns que não fora nosítio em que agora se erguia omonumento. Em dada manhã, calhou de se travardiscussão sobre o caso, estando eupresente, e uma senhora virando-se paramim como se eu fora uma autoridade emquestões náuticas, muito lisonjeiramentepediu-me a opinião. Bem, se o CapitãoCook resolveu reparar o navio em terrasdo interior, não via razões para que elenão tivesse escavado um canal até ao sítiodo monumento, para o aterrar de novo

depois do trabalho feito, se tivesse comele uma draga; é que o Capitão Cook eracapaz de fazer quase tudo quanto lheapetecesse, e nunca ninguém disse queele não trouxesse a draga consigo. Asenhora pareceu concordar com a minhamaneira de ver e, continuando a falar dahistórica viagem, perguntou-me se játinha visitado a ponta, mais para ajusante do porto, onde o capitão foraassassinado. A pergunta deixou-me semrespiração. Para me tirar de embaraços,valeu-me um petiz que se aproximou e,como faria qualquer aluno esperto, vendoque necessitavam informações,prontificou-se a fornecê-las: «O CapitãoCook não foi assassinado aqui, minhasenhora; foi morto em África: comeu-oum leão». Enquanto aqui me demorei, lembrei-mede tristes dias passados. Creio que foi em

1866 que o velho vapor Soushay, em rotade Bata via para Sidney, aportou aCooktown em busca de remédio para oescorbuto e, «incidentalmente», paradescarregar correio. Na lista dos doentesincluía-se a minha pessoa cheia de febre,e por isso só pude ver a terra ao voltaraqui trinta e um anos depois, a bordo doSpray. Desta vez, vi entrar no porto osdestroços físicos de mineiros de queregressavam da Nova Guiné, pobres edoentes. Alguns tinham morrido durantea viagem e foram lançados ao mar. Erapreciso ser-se um miserável empedernidopara ver o triste espectáculo, sem tentarfazer alguma coisa pelos homens. Todos se sentiram comovidos com apouca sorte dos padecentes, mas acidadezinha já se encontrava em apertospor uma longa sangria quegenerosamente sofrera. Lembrei-me da

dádiva que me fizera a senhora daTasmânia e que eu prometera conservarapenas como empréstimo, mas descobri,com grande consternação que já o tinhadado. Mas a boa gente de Cooktownestava pronta a ouvir uma história domar e de como a tripulação do Sprayviajou quando lhe entrou a doença abordo. Para isso, abriram-se as portas daigrejinha presbiteriana, toda a assistênciafalou e a sessão teve um êxitoretumbante. O Juiz Chester presidiu àconversa e isso bastava para que tudoresultasse num sucesso. Foi ele quemtomou posse da Nova Guiné para a Grã-Bretanha. «Quando tratei da coisa», diziaele, «anexei o melhor bocado daquilotudo». Na afirmação do juiz haviaressonâncias que eram uma delícia Paraum ouvido de marinheiro. Mas osalemães fizeram tamanho barulho

quando o juiz içou a vela grande, queacabaram por compartilhar da fortuna. Bem, eu ficava agora a dever aos mineirosde Cooktown o grande privilégio depoder contribuir com uma migalha parauma nobre causa, e toda a cidade ficou adever ao Juiz Chester um bocado bempassado. Larguei no dia 6 de Junho de 1897 acaminho do Norte, como antes. No dia 7,ao pôr do Sol, desfechei com umfundeadouro convidativo e ali passei anoite em frente do navio-farol deClaremont. Durante a passagem do canalda Grande Barreira, não falando dos diasque passei em Port Denison e no RioEndeavour, foi esta a única vez que oSpray ancorou. Mas, logo na noiteseguinte (8 de Junho), houve ummomento em que me arrependiprofundamente não ter fundeado antes

do anoitecer, o que teria sido fácil defazer a sotavento de um recife de coral. Acoisa passou-se assim. Depois de passar onavio-farol do Recife M, o Spray, a toda avelocidade, navegando com as escotasbem folgadas, embateu com o extremonorte do próprio Recife M, num pontoonde eu esperava encontrar um farolim. O barco guinou rapidamente sobre aquilha e com mais um salto na crista deuma onda cortou através do baixio tãodepressa que mal tive tempo de percebero que se passara. O farolim não estava lá;pelo menos que eu o visse. Não tivetempo para olhar à procura dele, depoisde bater no recife, e nessa altura tambémjá não fazia grande diferença quer o vissequer não. Mas isto permitiu-me deitar direito aoCabo Greenville. Enquanto o Spraycorria, podia ver passar por baixo da

quilha os cachopos ameaçadores e,mentalmente, verifiquei que a letra M é adécima terceira do alfabeto, e o treze,como havia muitos anos atrás, continuavaa ser o meu número da sorte. Osaborígenes do Cabo Greenville têm máfama e houve quem me aconselhasse apassar-lhes ao largo. Por isso, a partir dorecife M, governei a passar sempre pelolado do mar das ilhas próximas. Em bomandamento, o Spray dobrou a Ilha Home,ao largo da cabeça do Cabo, pouco depoisda meia-noite, e aí meteu em cheio rumoao Oeste. Pouco depois cruzava-me comum vapor que seguia para o Sul,apalpando o caminho no escuro etornando a noite ainda mais escura etriste com a fumarada preta que fazia. Da Ilha Home, demandei a Ilha deDomingo e logo que a tive pelo través,reduzi o pano para não desfechar com

Bird Island, um pouco mais para diante,antes do amanhecer porque o ventosoprava ainda fresco e as ilhotas sãobaixas e rodeadas de perigos. Em 9 deJunho, quarta-feira, tinha a ilha pela proa,a umas duas milhas e meia o queconsiderei bastante perto. Uma correnteforte ajudava o cúter a seguir caminho, e,nessa noite, não reduzi o pano muitocedo! A primeira e única pirogaaustraliana que apareceu durante aviagem, avistei-a nesta altura navegandocom um pedaço de vela içado, a caminhoda ilha. Um peixe comprido e esguio que caiu noconvés nessa noite, deu-me um belopequeno almoço. Aquele parceirodesembaraçado não era mais espesso queum arenque e, se não fora pelocomprimento que andava pelo triplo,parecia-se com o arenque em todos os

detalhes, e como sou perdido por arenquefresco, calhou lindamente ser assim tãocomprido. Vi muitas aves pescadorasdurante todo esse dia, que foi um dosmais belos deste Mundo de Deus. OSpray entrou no Passo de Albany nomomento em que o Sol se escondia noPoente por detrás das montanhas daAustrália. As 7.30 da tarde, já em pleno Passo deAlbany, o Spray lançou ferro numa angra,na costa continental, junto de um barcoda pesca de pérolas, o Tarawa, que ali seencontrava ancorado; foi o patrão dobarco que, do convés, me indicou ocaminho até ao fundeadouro. Acabada amanobra veio logo a bordo dar-me umaperto de mão. O Tarawa era daCalifórnia, e o Capitão Jones, o patrão, eraamericano.

Na manhã seguinte, o Capitão Jonestrouxe-me dois pares de belas conchasperlíferas, as mais perfeitas que jamais vi,e creio que eram mesmo as melhores queele tinha, porque o Jones era a nata dosmarinheiros. Garantiu-me que, seesperasse algumas horas, uns amigos queviviam em Somerset, ali perto, vir-nos-iam visitar, e a um dos homens datripulação, que estava no convés aescolher conchas, «palpitou-lhe» queviriam. O mestre teve o mesmo «palpite».Os amigos acabaram por vir, como atétinha «palpitado» ao contramestre e aocozinheiro. Tratava-se do Sr. Jardine,criador de gado, conhecido em todas asredondezas e da família. A Sr. Jardine erasobrinha do Rei Malietoa e prima dalinda Faamu-Sami («Fazer o marescaldar») que visitou o Spray em Apia. OSr. Jardine era um belo exemplar de

escocês e sentia-se contente por viver coma família em tão remoto lugar, rodeando-se dos confortos da vida. O facto de o Tarawa ter sido construídona América, explicava os bons palpites datripulação, incluindo o moço, Jim, e todosos restantes. Só me admirava que oCapitão Jones, o único americano abordo, fosse também o único a quem nãoouvi dizer que «lhe palpitava» fosse o quefosse. Depois de uma conversa agradável e dasdespedidas à gente do Tarawa e ao casalJardine, levantei ferro e deitei para a Ilhade Quinta-feira que se avistavalindamente a meio do canal, no Estreitode Torres, e ali cheguei pouco depois domeio-dia. O Spray demorou-se na ilha até24 de Junho. Como eu era o únicorepresentante americano no porto, ademora foi inevitável porque, em 22,

celebrava-se o jubileu da Rainha. Os doisdias que passei a mais foram, comodizem os marinheiros, para «ir à cidade». Passei bocados muito agradáveis por ali.O Sr. Douglas, o residente, convidou-mepara um cruzeiro de um dia, no seuvapor, pelo meio das ilhas do Estreito deTorres. Tratava-se de uma expediçãocientífica por conta do Prof. MasonBailey, botânico, e por isso demos umavolta pelas Ilhas Sexta-feira e Sábado,onde deitei uma olhadela à botânica. MissBailey, filha do professor, falou-me dealgumas plantas nativas de nomescompridíssimos. O dia 22 foi um grande dia na Ilha deQuinta-feira. As festas não se limitaramàs cerimónias do jubileu, e incluíram umagrande dança gentílica. O Sr. Douglastrouxe do continente uns quatrocentosguerreiros aborígenes com as respectivas

mulheres e filhos para dar à celebração otoque nativo. Quando se faz alguma coisana Ilha de Quinta-feira; faz-se logo emgrande, e a dança foi realmente um êxitoretumbante. Foi à noite que se realizou, eos dançarinos, pintados de coresfantásticas, dançaram e pularam em voltade uma fogueira gigantesca. Algunsestavam mascarados e pintados depássaros e feras, e a ema e o canguruestavam bem representados. Outros, como esqueleto pintado a branco sobre a pele,saltavam com ar ameaçador, de zagaiaem punho, como se fossem abaterqualquer inimigo imaginário. O cangurusaltava e dançava com facilidade e graçanatural, fazendo uma bela figura. Todosrespeitavam o ritmo da música vocal einstrumental. Os instrumentos (só denome!) eram pedaços de pau ou de ossoque, percutidos uns contra os outros,

produziam sons monótonos. Oespectáculo era a um tempo divertido,vistoso e horrível. Os guerreiros aborígenes que vi naQueenslândia, na sua maioria eram ágeise razoavelmente constituídos, mas defeições positivamente repelentes; asmulheres são, se tal é possível, ainda maismal dotadas. Notei que no dia do jubileu nenhumabandeira estrangeira fora içada noslugares públicos, excepto as Estrelas eFaixas que, Juntamente com o «UnionJack», dominavam os portões daresidência e tremulavam em muitosoutros locais, variando desde o tamanhode uma miniatura até às dimensõesnormais. Falando com o Sr. Douglas,arrisquei um comentário acerca destagentileza para com o meu país. «Oh!»disse ele «isto é uma festa de família, e

não consideramos as Estrelas e Faixasuma bandeira estrangeira.» O Spray, éclaro, embandeirou em arco e içou o«Jack», tal como o seu nobre pavilhão, omais alto que pôde. Em 24 de Junho o Spray devidamenteaparelhado, largou para a longa viagematravés do Oceano Indico, e o Sr. Douglasfez-lhe presente de uma bandeira antesde deixar a ilha. O Spray acabara desalvar quase todos os perigos do Mar doCoral e do Estreito de Torres, que narealidade, não eram assim tão poucos, edaqui para diante só tinha de seguirnuma direitura fácil. O alísio sopravaainda fresco e podia-se contar com ele àvontade até à costa de Madagáscar ou atémesmo para além, porque se estava aindano começo da estação. Não era meu desejo chegar ao Cabo daBoa Esperança antes de meados do Verão,

e ainda agora estávamos no começo doInverno. Dobrei em tempos aquele Caboem pleno Inverno; o navio quecomandava só encontrou por ali furacõesde respeito e sabe Deus os tormentos quepassou. Não me interessavam ostemporais de Inverno, não porque ostemesse mais a bordo do Spray que numgrande navio, mas porque preferia bomtempo em qualquer dos casos. É certo quese podem apanhar ventos muito duros aolargo do Cabo da Boa Esperança emqualquer altura do ano, mas no Verão sãomenos frequentes e menos prolongados.Deste modo, com tempo de sobra parapoder escalar as ilhas que se encontravamna rota, deitei para os Cocos Keeling,ilhas de lagamar, distantes umas duas mile setecentas milhas. Soltei o rumo a partirda Ilha Booby que passei de manhã cedo,e decidi, durante o caminho, deitar uma

olhadela a Timor, uma ilha de altasmontanhas. Já em tempos vira a Ilha Booby, umaúnica vez, de bordo do vapor Soushay. Iaeu então «virado à banda» com um acessode febres, mas quando o navio passoupor aqui, senti-me capaz de me arrastaraté ao convés para ver a ilha. Tinhamesmo que a ver ainda que depoismorresse. Nesses dias, os naviospassantes desembarcavam provisões quearmazenavam numa caverna da ilha, paramareantes naufragados ou em apuros. OCapitão Airy do Soushay mandou umaembarcação a terra com o seu contributopara a reserva de mantimentos. Asprovisões desembarcaram sem novidadee, no regresso, a embarcação trouxe,daquela estação postal improvisada, dozeou mais cartas, na sua maioria deixadasali por baleeiros com o pedido de serem

levadas pelo primeiro navio que passasseem demanda da terra de destino docorreio; durante muitos anos foi este ocostume de tão curioso serviço postal.Algumas das cartas trazidas pela nossaembarcação eram endereçadas a NovaBedford, e outras a Fairhaven,Massachussetts. A Ilha Booby tem hoje um farol ecomunicações marítimas regulares com oresto do Mundo, e a incerteza poética dodestino da correspondência ali deixada, ésimples recordação do passado. Nãoescalei a ilhota, mas ao passar-lhe perto,troquei sinais com o faroleiro. Logo emseguida, entrava no Mar de Arafura,onde, durante dias, naveguei em águasbrancas de leite, verdes e púrpura. Foiuma circunstância feliz ter entrado nomar com a Lua no quarto minguanteporque assim, nas noites escuras podia

ver o efeito da fosforescência das águasno seu maior esplendor. O mar, à medidaque o Spray o sulcava, parecia ficar embrasa e a luminosidade era tal que sepodiam ver os mais pequenos objectos noconvés, e a esteira ficava como umaestrada de fogo. Em 25 de Junho já o barco havia salvotodos os baixios e perigos e singravaagora, em águas serenas, tãoregularmente como sempre mas um tantomenos veloz. Tirei do paiol a giba feitaem Juan Fernandez e armei-a como a umavela de palanque por meio do bambumais sólido que a Sr." Stevenson me deraem Samoa. O palanque puxava como umcavalo, o bambu aguentou-se e o Sprayapressou o andamento. Alguns pombos que voavam da Austráliapara as ilhas, mudavam de rumo parasobrevoar o Spray. Em sentido contrário,

via passar aves mais pequenas. Na regiãodo Mar de Arafura, que atravesseiprimeiro, de pequena profundidade,avistei inúmeras cobras do mar coleandoao lume da água. No oceano, onde a águaé profunda, não vi uma única. Nos dias de tempo sereno não haviamuita coisa a fazer além de ler edescansar, para compensar o maispossível o mau tempo do Cabo Horn epreparar-me para o Cabo da BoaEsperança com uma boa reserva de vidatranquila. O diário não variava muito dedia para dia — como amostra, aqui vão osregistos dos dias 26 e 27 de Junho: 26 de Junho, de manhã, soprando umpouco às rajadas; mais tarde, pelo diaadiante, brisa igual. Distância navegada, pela barca, ao meio-dia 130 milhas Abatimento, subtrair 10120 Corrente, somar10 30

Latitude observada ao meio-dia 10° 23' S' Longitude, conforme marca na carta. Não havia muito trabalho de raciocínioneste diário, tenho a certeza. O dia 27 deJunho é ainda melhor, bem vistas ascoisas: A primeira coisa, hoje, foi um peixe-voador; fritei-o em manteiga. 133 milhasna barca. Abatimento, a subtrair, ecorrente, a somar, por palpite mais oumenos igual — fica assim mesmo.Latitude observada, ao meio-dia, 10° 25'S. Durante vários dias, o Spray seguiu oparalelo 10° 25' S, sem se desviar umcabelo. Se alguma vez se desviou, de diaou de noite, o que bem pode ter sucedido,lá estava ele outra vez ao meio-dia namesma latitude, por muito estranho quepareça. O mais difícil era calcular alongitude. O meu relógio de lata, o únicoa bordo, já não tinha o ponteiro dos

minutos e, depois de o meter em água aferver voltou a indicar as horas, o quedava uma precisão quase suficiente paratão longa derrota. No dia 2 de Julho, a grandiosa Ilha deTimor avistava-se ao longe para o Norte.No dia seguinte avistei a Ilha de Dana,não muito distante e, à noite, chegou atémim uma brisa de terra perfumada deespeciarias e outros aromas da costa. No dia 11, navegando a todo o pano ecom o palanque largo, avistei a Ilha doNatal a uma quarta pela amura deestibordo, por volta do meio-dia. Antesdo anoitecer tinha-a a duas milhas e meiapelo través. O contorno da ilha pareciauniformemente arredondado desde asuperfície do mar até uma alturaapreciável na sua parte média. A silhuetaera regular como a de um peixe, e a longacalema rebentava-lhe de encontro aos

flancos, como se fora um monstroadormecido que pairasse imóvel sobre omar. Parecia ter as proporções de umabaleia e quando o meu cúter a costeou atéà extremidade que correspondia à cabeça,verifiquei que nem as narinas lhefaltavam: um buraco da rocha, por ondesaía um esguicho de água, vivo e real,sempre que uma vaga vinha rebentarnaquela margem. Longo tempo passara depois que vi estailha pela última vez; mas lembro-me daadmiração que então senti pelocomandante do navio em que eu servia, oTanjore, quando, uma manhã, berrou ládo castelo da popa: «Vá lá acima um devós, com um par de olhos, e veja a Ilha doNatal». Não há dúvida; lá estava a ilhabem à vista das alturas da verga dojoanete. O Capitão M... conseguira umaverdadeira proeza e nunca mais se

esqueceu disso. O imediato, o terror dosmarinheiros do navio, que nunca passavapara barlavento do capitão, daí paradiante passou a andar-lhe só porsotavento e muito humildemente.Quando chegámos a Hong-Kong, nacorrespondência do navio havia umacarta para mim. Estive algumas horas naembarcação enquanto o capitão a tinhaem seu poder. Mas julgam que o capitãoti ia assim entregar a um marinheiro?Nem pensar nisso; nem a um marinheirode manobra. Quando chegámos ao navio,passou-a ao mestre; o mestre entregou-aao contramestre, e o contramestrecolocou-a, desdenhosamente, em cima dochapéu do cabrestante para eu a apanhar! . . . .

CAPITULO XVI Necessidade de navegação cuidada —Três horas ao leme em vinte e três dias —Chegada as ilhas de Cocos-Keeling —Capítulo curioso de história social —Boas-vindas das crianças das ilhas —Espalmando e pintando o Spray na praia— Um exorcismo maometano por umboião de geleia — Keeling, um paraíso —Aventura arriscada numa embarcaçãomiúda — Em demanda de Rodriguez —Tomado pelo Anticristo — O Governadoracalma os temores da população —Palestra — O convento da montanha. Para as ilhas de Cocos-Keeling faltavam-me apenas quinhentas e cinquentamilhas; mas embora a tão curta distânciatinha de tomar tento em seguir

rigorosamente o rumo ou arriscava-me anão dar com o lagamar. No dia 12, a umas centenas de milhas deIlha do Natal, vi nuvens do contra-alíseovoando do Sudoeste, muito acima dosventos regulares e a calema veio maisgrossa que o usual, feita também doSudoeste. Era algum temporal de Invernodesencadeado para os lados do Cabo daBoa Esperança. De acordo, orcei um tantopara descontar vinte milhas para acorrente, enquanto o tempo assim semanteve; e não foi de mais nem de menosporque foi mesmo neste rumo quedesfechei com os Cocos-Keeling mesmopela proa. O primeiro sinal inconfundívelda proximidade da terra foi a visitamatinal de uma andorinha do mar quepairou muito conscienciosamente emvolta do barco, acabando por deitar parao Oeste com ar atarefado. Os ilhéus

chamam à andorinha do mar o «pilotodos Cocos-Keeling». Mais adiante,encontrei um bando de aves pescando edisputando o que apanhavam. A minhaestima batia certo e, a meia altura domastro, avistei coqueiros que surgiam daságuas mesmo pela proa. Já esperava vê-los; mas apesar disso a emoção apoderou-se de mim como se fora uma descargaeléctrica. Deixei-me escorregar ao longodo mastro, tremendo sob as maisestranhas sensações e, incapaz de resistirao impulso, sentei-me no convés e deilargas às minhas emoções. Para a gentede terra, poderá isto parecer umafraqueza, na verdade, mas estou a contara história de uma viagem solitária. Não toquei no leme porque, com acorrente e o movimento do mar, o barcono fim da derrota acabou por se encontrarde água aberta com o canal. Nem na

armada tinham feito melhor! Depois,compassei o pano, peguei no leme egovernei o barco um par de milhas, oucoisa parecida, até ao porto onde lanceiferro às 3-30 da tarde de 17 de Julho de1897, vinte e três dias depois da Ilha deQuinta-feira. A distância navegada foi deduas mil e setecentas milhas em direitura.Teria sido uma viagem pacata noAtlântico. E foi um passeio de veladelicioso! Durante estes vinte e três diasnão passei, ao todo, mais de três horas aoleme, incluindo o tempo que levei abordejar até ao porto de Keeling. Limitei-me a amarrar o leme e deixar seguir;estivesse o vento pelo través ou à popaarrasada, era a mesma coisa: nunca oSpray se desviou do rumo. Durante todaa viagem, nunca até aqui fizera a coisa tãobem (1).

As Ilhas dos Cocos-Keeling, de acordocom o Almirante Fitzroy, da ArmadaInglesa, ficam entre as latitudes de 11" 50'e 12° 12' S e as longitudes 96° 51' e 96° 58'E. Foram descobertas em 1608-09 pelocapitão William Keeling, então ao serviçoda Companhia das índias Orientais. Ogrupo meridional é formado por sete ouoito ilhas e ilhotas do atolo que constituio esqueleto daquilo que qualquer dia, deacordo com a história dos recifes de coral,virá a ser uma só ilha. A Keeling do Nortenão tem porto, raramente a visitam e nãotem qualquer interesse. As Keeling do Sulsão um mundozinho exótico com umahistória muito peculiar. São visitadasocasionalmente pelo mastro, à deriva, dealgum navio desarvorado por umfuracão, por alguma árvore levada aosabor da corrente, desde a Austrália, poralgum navio malfadado lançado à costa, e

até por homens. Até uma rocha já ali deuà costa, presa nas raízes de uma árvorelevada pelo mar. (*) O Sr. Andrew J. Leach, escrevendo em21 de Julho de 1897, através doGovernador Kinnersley de Singapura, aoMinistro das Colónias, JosephChamberlain, dizia o seguinte, apropósito da visita do Iphegenia aolagamar: «Quando deixámos as profundidades dooceano, do azul mais intenso, e entrámosno círculo de coral, o contraste foiextraordinário. As cores brilhantes daságuas, transparentes até uma profun-didade de trinta pés, ora cor de púrpura,ora do mais claro azul celeste, ora verdes,com a carneirada branca a resplandecerao Sol, as circundantes... ilhas cobertas depalmares, os intervalos das ilhas,indescerníveis para o Sul, as praias de

areia branca e os recortes ainda maisbrancos onde aparecia a rebentação e,finalmente, a própria lagoa, de sete ouoito milhas de Norte a Sul e cinco a seisde Este a Oeste, apresentavam umespectáculo inesquecível. Depois de umabreve espera, veio ao nosso encontro o Sr.Sidney Ross, filho mais velho do Sr.George Ross, e, pouco depois,acompanhados do médico e de outraoficialidade, saímos em terra. «Ao chegar ao desembarcadouro,encontrámos, varado na praia paralimpezas, etc, o Spray de Boston, um iolede 12,70 toneladas grossas, propriedadedo Capitão Slocum. Chegou à ilha em 17de Julho, depois de vinte e es dias deviagem da Ilha de Quinta-Feira. Esteextraordinário viajante solitário largou deBoston há uns dois anos, sozinho,atravessou para Gibraltar, desceu até ao

Cabo Horn, passou pelo Estreito deMagalhães até às Ilhas da ociedade, daíaté à Austrália, e, através do Estreito deTorres, até à Ilha de Quinta-Feira». Depois que o capitão Keeling descobriuas ilhas, o primeiro visitante notável foi ocapitão John Clunis-Ross que, em 1814,ali tocou no navio Borneo, em viagempara a índia. O capitão Ross regressoudois anos depois com a mulher, os filhose a sogra, a Srª Dymoke, e oitomarinheiros-artífices (1), para tomarposse das ilhas, mas encontrou aliinstalado um tal Alexandre Hare que,entretanto, se apoderara do atolo como deuma espécie de Eden para um serralho demulheres malaias que trouxera da costade África (2). Ror ironia do destino fora opróprio irmão do Ross quem transportouo Hare e o seu rancho de mulheres paraas ilhas, desconhecendo as intenções do

capitão John de ocupar aquele pequenomundo. E assim, lá estava o Hare mais asua comitiva, com ideias de ficar. Na sua visita anterior, porém, o Rosstinha pregado uma bandeira inglesa nummastro na ilha de Horsburg, uma das dogrupo, e ao cabo de dois anos aindaadejavam ao vento farrapos da bandeira,e os seus marinheiros, nada contrariados,iniciaram logo a conquista do novo reinopara tomar posse dele com mulheres etudo. A força de quarenta mulheres sócom um homem a comandá-las, nãochegava para lançar ao mar oitomarinheiros robustos. A partir de então, o Hare começou apassar tempos difíceis. Ele e o Ross não seentendiam como vizinhos. As ilhas erammuito pequenas e próximas de mais paraa convivência de dois caracteres tãodiferentes. O Hare tinha «oceanos de

dinheiro» e poderia viver lindamente emLondres; mas fora Governador de umacolónia selvagem em Borneu e não sepodia confinar à vida pacata que acivilização prosaica concede. Agarrou-se,portanto, ao atolo com as suas quarentamulheres, retirando passo a passo nafrente do Ross e da sua valente tripulaçãoaté se encontrar com o seu harém nailhota conhecida hoje por ilha da Prisãoonde, como o Barba Azul, encerrou asmulheres num castelo. Mas o canal entreas ilhas era estreito, a água poucoprofunda, e os oito marinheiros escocesesusavam botas de cano alto. O Hare estavaconsternado. (*) Na descrição dada no «SailingDirectory» de Findlay há algumasdiscrepâncias cronológicas nosacontecimentos ocorridos. Cinjo-me aqui

à narrativa dos netos do capitão e aoutros testemunhos locais. (*) Além dos oito marinheiros escoceses,havia ainda a contar na comitiva dccapitão Ross, com um lavradorportuguês, um carpinteiro naval chinês eum plantador malaio. Para quem desejeaprofundar a história dos Cocos-Keeling,recomenda-se a leitura de excelentemonografia do Índico, Monsoon Seas, daautoria do navegador e escritoraustraliano, Capitão Alan Villiers. De acordo com a obra citada, o serralhodo Hare era formado por mulheresmalaias, chinesas, insulíndias etc, que elefora coleccionando pelo Oriente, e nãoapenas trazidas das costas africanas. Tentou entrar em acordo à custa de rum eoutras ofertas, mas isso só piorou ascoisas. No dia a seguir à festa de SantoAndré, o Hare, perdido de raiva e já de

relações cortadas com o capitão, mandou-lhe uma nota, dizendo: «Caro Ross:quando mandei rum e porco assado aosteus marinheiros, julguei que semantivessem a distância do meu jardim».Em resposta, o capitão, a arder deindignação, gritou de cima da ilha ondese encontrava: «Ó tu aí, da Ilha da Prisão!Tu, ó Hare, não sabes que o rum e o porcoassado não são o paraíso dosmarinheiros?» O Hare disse mais tardeque os rugidos do capitão se ouviam emJava. Entretanto as mulheres desertaram daIlha da Prisão e foram-se pôr sob aprotecção do Ross. O Hare, depois disso,retirou-se para Batávia onde veio amorrer. A minha primeira impressão aodesembarcar foi que o crime doinfanticídio ainda não havia chegado às

Ilhas dos Cocos. «As crianças vieram dar-lhe as boas-vindas», explicou-me o Sr.Ross, enquanto os miúdos secomprimiam no desembarcadouro, àscentenas, de todas as idades e tamanhos.As pessoas da terra eram todas muitotímidas mas, velhas ou novas, nuncapassavam por outra ou viam outrapassar-lhes à porta, sem uma saudação.Em voz musical, perguntavam: «Vai apassear»? («Jalan, jalan?») e a respostavinha logo: «Quer vir comigo?» Durante longo tempo após a minhachegada, as crianças olhavam o «navio-de-um-homem» com suspeita e temor.Um nativo fora arrojado para o maralguns anos antes, e então diziam unspara os outros que o homem se podia tertornado de preto em branco e regressadonaquele barco. Durante algum tempo,todos os meus movimentos eram

cuidadosamente observados.Interessavam-se especialmente por aquiloque eu comia. Um dia, depois de terestado a brear o casco com uma misturade alcatrão e outros materiais, enquantocomia o meu jantar acompanhado decompota de amoras pretas, ouvi umarestolhada, um grito e o ruído de umadebandada acompanhada de gritos dascrianças: «O capitão está a comer alcatrão!O capitão está a comer alcatrão!» Masdepressa descobriram que o tal «alcatrão»era muito bom para comer e que eutrouxera uma boa quantidade dele. Umdia em que estava a pôr compota numbiscoito para dar a um rapazito, ouvi osoutros dizer: «Chut-chut!», querendo comisso dizer que um tubarão me tinhamordido a mão que eles viram que estavaaleijada. Daí para diante passaram aolhar-me como um herói e eu já não tinha

dedos que chegassem para os petizes deolhos brilhantes que se queriam agarrar aeles para passear comigo. Até essa altura,se estendia a mão e dizia «Vem daí!»,metiam-se na casa mais próxima e diziam«Dingin» (Está frio), ou «Ujan» (Vaichover). Mas agora tinham concluído queeu não era o fantasma do homem perdidono mar e, fizesse chuva ou sol, tinhaimensos amigos em toda a ilha. Um dia depois disto, quando tenteidesvarar o barco e o encontrei fortementepegado na areia, os miúdos todosbateram palmas e gritaram que umkpeting (caranguejo) o estava a segurarpela quilha; e a Ofélia de uns dez ou dozeanos de idade, escreveu no diário doSpray: A hundred men with might and main On the windlass hove, yeo ho! The cable only carne in twain;

The ship she would not go; For, child, to tell the strangest thing, The keel was held by a great kpeting. Cem homens com força e poder Puxaram ao cabrestante, yeo ho! A amarra veio partida E o navio não largava; É que, filho, para dizer a coisa maisestranha, A quilha estava presa por um grandecaranguejo. Fosse ou não fosse essa a causa, ficouresolvido que o sacerdote maometano,Sarna o Emim, por um boião de compota,devia pedir a Maomé que abençoasse aviagem e convencesse o caranguejo alargar a quilha do barco, o que aconteceu,e o barco ficou a flutuar na maré seguinte.No dia 22 de Julho entrou no porto onavio de guerra Iphegenia, trazendo abordo o Juiz Andrew J. Leech e oficiais do

tribunal numa viagem de inspecção aosEstabelecimentos dos Estreitos, de que osCocos-Keeling são uma dependência,para atender reclamações e julgar causasque porventura haja que julgar.Encontraram o Spray varado no areal eamarrado a um coqueiro. Mas nas IlhasKeeling não havia uma reclamação aapresentar desde o dia em que o Hareemigrou, porque os Ross trataram sempreos ilhéus como se fossem família sua. Se há algum paraíso neste Mundo é emKeeling. Não havia um único caso paraum advogado, mas alguma coisa havia dese fazer, uma vez que havia dois naviosno porto, um grande vaso de guerra e oSpray. Em vez de uma sessão do tribunal,organizou-se um baile e todos os oficiaisque puderam deixar o navio saíram emterra. Compareceu toda a gente da ilha eo salão do Governador encheu-se a

transbordar. Só não dançou quem nãotinha forças para estar de pé, e os miúdosconservaram-se em grupos aos cantos dasala, divertindo-se a ver os outros dançar.A minha amiguinha Ophelia dançou como juiz. E quanto a música, havia duasrabecas que se esganiçaram a tocar vezessem conta a velha melodia «We won't gohome till morning» (Não vamos para casaantes do amanhecer). E não fomos. As mulheres de Keeling não fazem todosos trabalhos pesados, como sucedia emvários lugares que visitei durante aviagem. Havia de alegrar o coração deuma mulher do Fogo ver o rei da criaçãode Keeling trepar a um coqueiro. Além detrepar muito bem às árvores, os homensde Keeling constroem pirogas belamentetraçadas. Foi aqui que vi a mais perfeitamão-de-obra em construção deembarcações ao longo de toda a viagem.

Sob os palmares de Keeling viviam váriosmecânicos consumados e, de manhã ànoite, fazia-se ouvir o zumbido da serramecânica e o tinir da bigorna. Osprimeiros colonos escoceses deixaramaqui o vigor do sangue do Norte e aherança de costumes sóbrios. Jamais umasociedade de beneficência fez tanto porquaisquer ilhéus, como o nobre CapitãoRoss e seus filhos, que seguiram as suaspisadas de engenho e sobriedade. O Almirante Fitzroy, do Beagle, quevisitou esta terra de tão estranhoscontrastes falou «destas ilhas pequenasmas singulares, onde os caranguejoscomem cocos, o peixe come coral, os cãesapanham peixe, os homens cavalgamtartarugas e as conchas são perigosasarmadilhas para o homem», acrescentan-do que a maioria das aves marinhas faz

poleiro nas árvores, e os ratos fazemninho no cimo das palmeiras. Depois de aparelhar o barco, resolvicarregá-lo com as gigantescas conchas dafamosa tridacna de Keeling, que sepodiam encontrar nos baixios próximos.E ali mesmo à vista da aldeia, estive àbeira de perder «a tripulação do Spray»— não por meter o pé numa daquelasconchas-armadilhas, mas por me teresquecido, descuidadamente, de verificaros pormenores da embarcação que meconduziu através do porto, confiando-mea outrem que, simples mortal que era,talvez confiasse em mim. Fosse comofosse, acabei por me encontrar com umnegro africano desmiolado a bordo de umxaveco armado com uma vela podre, quese foi embora à primeira mão de vento,no meio do canal; e o mais sério é queestávamos sendo levados para o mar ao

sabor do vento, e, uma vez no mar,ficaríamos irremediavelmente perdidos.Com todo o oceano na nossa frente, e asotavento, vi então, consternado, que nãohavia sequer uma pangaia ou um remono bote! Havia uma âncora, é certo, mas aamarra não chegaria sequer para atar umgato, e entretanto já nos encontrávamosem águas fundas. Por muita felicidade,havia um pau. Deitei-me a ele e, com todaa energia, utilizei-o como a uma pangaiae com a ajuda de um pequeníssimo saltode vento, consegui levar o xaveco atéáguas baixas onde chegava com o pau aofundo e assim o zinguei até à praia.Tendo por costa mais próxima asotavento o litoral africano, a três milmilhas de distância, sem uma gota deágua no bote e tendo por únicocompanheiro um negro magro eesfomeado - bem, veja-se a coisa como se

vir, ao cabo de pouco tempo seria coisadifícil achar a tripulação do Spray no mar.Escusado será dizer que não me voltei ameter em tais riscos. Fui apanhar astridacnas num barco de confiança eembarquei trinta conchas em substituiçãode três toneladas de lastro de cimento quelancei pela borda fora, para ganharespaço e aligeirar o barco. Em 22 de Agosto, o kpeting, ou o querque prendia a quilha do cúter à ilha,largou a presa e o Spray fez-se ao marcom todo o pano largo, na rota deregresso. Depois de galear uma ou duasvagas de rolo na beira do lagamar, salveios recifes, e ainda bastante antes doescurecer as Cocos-Keeling, com as suasmil almas tão inocentes quanto umsimples mortal o pode ser, ficava-me foradas vistas, pela popa. Fora das vistas,quero dizer, mas não longe do coração.

O mar estava duro e o Spray passou aenxovalhar-se valentemente quandoorcei, mas tive de marear assim paradeitar para a ilha de Rodriguez, o que mepôs com o mar de través. O rumoverdadeiro para a ilha era 42° 1/2 SW e adistância era de mil e novecentas milhas,mas tinha de governar bastante parabarlavento para descontar o abatimentoprovocado pelo mar e outros factores.Neste rumo o meu cúter seguiu dias a fiosob pano rizado, sem se desviar. É claroque acabei por me cansar com omovimento incessante do mar e,sobretudo, por me encharcar de cada vezque me mostrava no convés. Sob tempotão pesado, o Spray parecia seguir maislentamente que o normal; pelo menos, foiao tempo que atribuí a diferença entre adistância marcada na barca e a que eucalculara mentalmente. Ao fim de 15 dias

de navegação a distância na barca era de150 milhas. À cautela, conservei-me devigia e, nesse mesmo dia, ao crepúsculo,pude ver mesmo pela proa um acasteladode nuvens imóveis enquanto as outrascorriam pelo céu; isto já era um sinal. Pelameia-noite, avistei uma massa negra noponto onde antes vira as nuvens paradas.Ainda ficava muito distante, mas. não meenganava: era a ilha altaneira deRodriguez. Meti a bordo a barca patenteque agora trazia a reboque mais porhábito que por necessidade, porque já hámuito que conhecia bem o Spray e os seuscostumes. Se alguma coisa se tornara bemevidente durante a viagem foi que podiaconfiar nele plenamente, mas mesmoassim mantinha-me sempre pronto aconceder-lhe o benefício de uma dúvidapor pequena que fosse. Os oficiais muitoscheios de si e convencidos de que «sabem

tanto como um tratado», pelo que tenhoobservado, são precisamente os queencalham mais navios e perdem maisvidas. Depressa descobri a razão dadiferença da distância indicada pelabarca: foi um encontro com algum peixegraúdo. Duas das quatro pás da héliceestavam amolgadas e torcidas, o quedevia ter sido obra de algum tubarão.Seguro agora da posição do meu barco,deitei-me a repousar e meditar. Aoamanhecer, tinha a ilha a umas trêsmilhas, pelo través. Naquela costa,apresentava um aspecto selvagem, batidado tempo como se fora uma terra desertaque flutuasse ao sabor do mar no meio doOceano Indico. O lado de barlavento nãoera nada convidativo, mas há um bomporto a sotavento e foi para lá que deiteicingido à bolina. Veio um piloto ao meuencontro para me conduzir até ao porto

interior, onde se chega ao longo de umcanal estreito, ladeado de recifes de coral. Um facto curioso que notei é que emtodas as ilhas se tomavam por fantásticosdeterminados fenómenos reais e setomavam, como coisa provada, certasideias impossíveis. Outro tanto aquisucedeu. Poucos dias antes, o bom abadetinha falado aos seus fiéis na vinda doAnticristo, e quando viram o Spray,branco de espuma, entrar no porto nafrente de um pé de vento e manobrar atéà praia com um só homem a bordo,gritaram: «Que o Senhor nos acuda! é ele,e veio num barco!», o que me parece seriao modo menos provável de ele vir. Mas anotícia correu célere por toda a terra, e oGovernador, o Sr. Roberts, veioimediatamente ver o que se passavaporque a cidade andava num reboliço.Uma mulher de idade, ao saber do meu

advento, correu para casa e fechou-se àchave; e quando soube que eu ia a subir arua onde morava, barricou as portas enão saiu de casa enquanto me demorei nailha, durante oito dias. O GovernadorRoberts e a família não compartilharamos temores do seu povo e vieram a bordo,ao cais onde o Spray amarrara, e oexemplo deles convenceu outros a virtambém. Os filhos do Governadortomaram logo conta do bote do Spray, e aminha visita custou a Sua Excelência,além da magnífica hospitalidade queme"dispensou, ter de mandar fazer paraos seus rapazinhos um dóri igual ao meu. O meu primeiro dia nesta Terra daPromissão, foi como um conto de fadas.Durante dias, estudara a carta e contara otempo que faltava para chegar a esteponto, como se ele fora a entrada para asIlhas do Altíssimo, por o olhar como o

termo da última longa rota batida, rotaque se tinha tornado penosa pela falta devárias coisas de que aqui me podiaabastecer com fartura. E, por fim, cáestava o meu barco em porto seguro,amarrado a um cais de Rodriguez. Naprimeira noite em terra, ao ver osguardanapos delicados e os cristaislapidados, vinha-me à ideia a visão dasminhas toalhas de cânhamo e dospúcaros de asas quebradas; e em vez deme sentir sacudido pelo mar, aqui estavaeu num salão resplandecente, numambiente de vivacidade encantadora, ajantar com o Governador da ilha!«Aladino!» gritei intimamente, «onde estáa tua lâmpada? A lanterna de pescador,que trouxe de Gloucester, tem-memostrado coisas bem melhores que as quejamais revelou a tua velha candeiafumarenta!»

Passei o segundo dia recebendovisitantes. A Srª Roberts foi a primeira avir, com as crianças, para «um aperto demão ao Spray». Já ninguém receava vir abordo, excepto a pobre velha quecontinuava a dizer que o Spray trazia oAnticristo no porão, se é que não o tinhajá desembarcado. Nessa tarde, oGovernador deu uma recepção e,gentilmente, convidou o «destruidor doMundo» a contar a sua história. Foi istoque ele fez, esmerando-se na descriçãoprofusa dos perigos do mar (o qual seriamuito mais manso se tivesse sido feitopor ele); por meio de um invento de luz esombra, exibiu na parede gravuras doslocais e países visitados durante a viagem(os quais, porém, não eram nada,comparados com os países que ele teriafeito), e das criaturas que vira, selvagensou não selvagens, enquanto ia

resmungando: «Mundo perverso! Mundoperverso!» Quando acabou a palestra, SuaExcelência o Governador, disse algumaspalavras de agradecimento, e distribuiumoedas de ouro. No dia seguinte, acompanhei SuaExcelência e família numa visita a SãoGabriel, na zona alta da ilha, entre asmontanhas. O bom abade de São Gabrielrecebeu-nos regiamente no convento e láficámos como seus convidados até ao diaa seguir. À despedida disse-me o abade:«Capitão, abraço-o e, qualquer que seja asua religião, o meu desejo é que alcancepleno sucesso na sua viagem e que Cristo,nosso Salvador, o acompanhe sempre».Às palavras deste homem, só posso dizer:«Meu caro abade, fossem todos os crentestão liberais, e muito menos sangue seteria derramado no Mundo».

O navegante que aporta a Rodriguezencontra agora todas as facilidades parase reabastecer de água pura e de boaqualidade, uma vez que o GovernadorRoberts construiu um reservatório namontanha, por cima da aldeia, e instalouuma canalização até ao cais, onde, naocasião da minha visita, havia cinco pés emeio na preia-mar. Em tempos passadosfazia-se aguada com água de poços, doque sempre resultavam doenças. Pode-seobter carne de vaca em qualquerquantidade, a pre-ços módicos. A batatadoce era abundante e barata; o grandesaco que comprei por cerca de quatroxelins, aguentou-se lindamente, emborame tivesse limitado a armazenar asbatatas no paiol seco. Quanto a fruta,havia romãs em extraordináriaabundância; por dois xelins comprei umgrande saco delas, tantas quantas o burro

pôde carregar do pomar, o qual, diga-sede passagem fora plantado pela própriaNatureza.

. . . . . . .

CAPITULO XVII Revista de saúde na Maurícia —Repetindo a viagem no edifício da Ópera— Uma planta recém-descoberta recebe onome do patrão do Spray — Um grupode raparigas num passeio à vela —Acampamento no convés — Recepçãocalorosa em Durban — Exame amigávelpelo Henry M. Stanley — Três boersprocurando demonstrar que a Terra éplana — Deixando a África do Sul. No dia 16 de Setembro, depois de oitodias refrescantes em Rodriguez, fiz-me devela para a Maurícia, onde cheguei no dia19 e, por volta do meio-dia, ancorava naquarentena. Nesse mesmo dia, foi o Sprayrebocado pela lancha do doutor depois deeste se ter convencido de que lheapresentei toda a tripulação. A princípiomostrou-se desconfiado e só mudou de

ideias quando examinou os papéis quereferiam uma tripulação de um sóhomem, de porto a porto, em toda aviagem. Nessa altura, entendendo que euestava suficientemente saudável paraconseguir chegar tão longe, deu-me livreprática sem mais discussão. Houve aindauma outra visita oficial antes do Sprayseguir mais para diante; o Governador deRodriguez que, muito gentilmente meentregara, além de uma mala postalregulamentar, algumas cartas pessoais deapresentação para amigos seus. Disse-meque a primeira pessoa com quem me iriaencontrar era o Sr. Jenkins do serviçopostal, uma excelente criatura. «Como está Sr. Jenkins?» gritei eu quandoo barco dela se prolongou com o meu. «O senhor não me conhece» disse ele. «Porque não?» «De onde vem o cúter?»

«Da volta ao Mundo» respondi mais umavez, solenemente. «E conhece-me?» «Desde há três mil anos», gritei eu,«quando você e eu tínhamos um empregomais quente que agora» (e mesmo esteera quente). «Você chamava-se entãoJenkinson, mas se mudou de nome nãolho levo a mal.» O Sr. Jenkins, uma alma compreensiva,entrou então no despique, o que foi umaboa coisa para o Spray porque quando sesoube desta conversa, a gente da terraconvenceu-se de que se alguém seaventurasse a vir a bordo depois doescurecer, o diabo deitava-lhe logo a mão.Podia assim ir a terra sem receio de meroubarem alguma coisa do barco durantea noite. É certo que me entraram nacabina, mas isso passou-se de dia e osgatunos não tinham conseguido deitar amão senão a uma caixa de arenque

fumado quando o Tom Ledson, um dosguardas do porto, os apanhou com a bocana botija e os meteu na cadeia. O episódiofoi desencorajante para os gatunos quetinham mais medo do Ledson que doSatanás em pessoa. Nem o MamodeWajee Ayoob que era o guarda de dia, abordo — mas foi-o só até que uma caixavazia que tombou dentro da cabina lhefez perder a cabeça com medo — seconvenceu a fazer guardas de noite oumesmo ao crepúsculo. «Sahib» disse-meele. «não é preciso», e o caso é que tinharazão. Na Maurícia, enquanto o Spraydescansava as asas, aproveitei para umalarga estadia na estação do bom tempo.Alguns oficiais de Marinha, experientes,calcularam que nove décimos dos riscosda viagem — se é que houvera riscos — jáhaviam ficado para trás, mas ainda assim

não conseguia esquecer que ainda tinhamuito que navegar até chegar aos EstadosUnidos. A gente bondosa das Maurícias, para metornar mais rico e mais feliz, preparoupara mim o edifício da Ópera, a que tinhaposto o nome de «Navio Pantai» Era umnavio todo ele conveses e sem fundo, massólido como uma igreja. Deixaram-meutilizá-lo gratuitamente para falar dasaventuras do Spray. Sua Honra, o«mayor», do convés da popa do Pantai,apresentou-me a Sua Excelência oGovernador. Pelo mesmo processo, fuitambém apresentado, e pela segunda vez,ao nosso estimado cônsul, o General JohnP. Campbell, que já antes me haviaapresentado a Sua Excelência. Estavaficando muito bem relacionado, mastinha de me lançar de novo na viagem doSpray. Como consegui contar toda a

história, é coisa que ainda hoje não seimuito bem. Fazia uma noite quentíssimae de boa vontade estrangularia o alfaiateque fez o casaco que vesti para a ocasião.O amável Governador viu que eu fizeraos possíveis por me vestir como umhomem de terra e convidou-me para ir àresidência do Governo, em Reduit, ondeme encontrei num círculo de amigos. Ainda fazia Inverno ao largo dotormentoso Cabo da Boa Esperança, masbem me importava com o barulho que astempestades lá fizessem. Tinha resolvidopassar o Inverno na amena Maurícia, visi-tando Rose Hill, Curipepe e outrospontos da ilha. Passei um dia com o Sr.Roberts, pai do Governador Roberts, deRodriguez, e com uns amigos seus, osRev.os Padres O'Loughlin e McCarthy.De regresso ao Spray, passei pelasgrandes estufas de flores, perto de Moka.

O proprietário tinha descoberto naquelamesma manhã uma planta nova, muitorobusta, e, para minha grande honra pôs-lhe o nome de «Slocum» que, disse ele,ficava automaticamente latinizado,poupando-lhe assim o trabalho de torceralguma palavra inglesa; e o bondosobotânico parecia muito satisfeito por euter aparecido por ali. Como as coisas sãodiferentes em países diferentes!Disseram-me que em Boston,Massachussets, por essa mesma altura,um cavalheiro pagou trinta mil dólarespara ter uma flor baptizada com o nomeda esposa, e nem sequer era uma flormuito grande, enquanto o «Slocum», queveio sem pedido nenhum, era maior queuma beterraba de forragem! Fui recebido principescamente em Moka,como fora em Reduit e em todos osoutros lugares — de uma vez, por sete

donzelas a quem me queixei de nãopoder retribuir tanta hospitalidade senãoà minha maneira modesta, levando-as apassear no cúter. «Isso mesmo! Issomesmo!» gritaram todas. «Então, façam ofavor de dizer quando» disse eu,submisso como Moisés. «Amanhã!»gritaram logo todas. «Ó tia, podemos ir,não podemos? Depois portamo-nosmuito bem durante uma semana inteira,tia! Diga que sim, tia querida!» E tudoisto depois de já terem dito «Amanhã»;afinal as raparigas da Maurícia são iguaisàs nossas raparigas da América; e a tiarespondeu «Também vou», mais oumenos como teria respondido uma tiaboa a valer, no nosso país. (*) Pantai=galinha da Guiné. Nessa altura fiquei perplexo porque melembrei que, precisamente «amanhã»,tinha de ir jantar com o harbour-master, o

Capitão Wilson. Todavia, pensei paracomigo: «O Spray depressa se afasta atéapanhar mar agitado; estas moças enjoame passam um mau bocado, e eu volto aoporto a tempo do jantar, afinal». Poismuito me enganava. Deitámos para olargo, quase a perder a ilha de vista maselas aguentavam e riam-se para as vagasque o Spray embarcava, enquanto eu, aoleme, ia fazendo o pior que podia dopasseio e contando histórias, à tia, acercade serpentes marinhas e baleias. Masquando acabei as histórias dos monstros,a querida senhora limitou-se a acenar-mepara um cesto de provisões que tinhatrazido consigo e que continha víverespara uma semana, uma vez que me tinhaqueixado da fraca categoria do meudispenseiro. Quanto mais o Spray fazia por enjoar asmoças, mais elas batiam palmas e diziam

«Que belo que isto é!» e «Que bem queele corre por cima do mar!» ou «Quelinda é a ilha vista de longe», e nãoparavam de pedir «Continue!» Andámosumas quinze milhas ou mais para o largoantes que deixassem de pedir paracontinuar. Nessa altura fiz meia volta,ainda na esperança de regressar a PortLouis a tempo do jantar. O Sprayalcançou a costa em pouco tempo, e voouao longo do litoral; mas cometi um erroao costear a ilha a caminho do porto,porque ao chegar em frente da Baía deTombo, a minha equipagem ficouperdida de encanto. «Oh! Vamos ancoraraqui!» gritaram todas. A este pedido,nenhum marinheiro deste Mundo teriacoragem para dizer não. Dez minutosmais tarde o Spray fundeava como elaspediram, enquanto numa arriba em frenteum jovem agitava o chapéu e gritava

«Vive la Spray!» As minhas passageirasviraram-se para a tia: «Tia, não podemostomar um banho na rebentação na praia?»Precisamente nesta altura aparecia alancha do harbour-master, que vinha aonosso encontro; mas já era tarde demaispara rebocar o barco para Port Louisnessa noite. A lancha chegou a tempomas foi para desembarcar a minha belaequipagem para um banho; e as jovensestavam resolvidas a não desertar do meunavio. Entretanto, com as velas armei umtoldo para passarem a noite no convés, eum criado Bengali preparou a refeição danoite. O Spray passou essa noite sobâncora, com a sua carga preciosa na Baíade Tombo. Na madrugada seguinte,ainda as últimas estrelas não haviamdesaparecido no céu, acordei com osussurro de orações no convés.

A lancha das autoridades do porto voltoua aparecer pela manhã adiante, desta vezcom o próprio Capitão Wilson a bordopara tentar levar o Spray para o porto,por ter sabido dos meus apuros. Valia apena ouvir um amigo nosso contar comoo capitão do porto da Maurício diziamuito convictamente: «Hei-de encontraro Spray e trazê-lo para o porto». O quedescobriu nele foi uma alegre equipagem.As jovens içavam as velas como velhosmarujos, e também as sabiam compassar.Sabiam tudo acerca das «capotas» dobarco, e valia a pena vê-las dar umacrescento na esteira da bujarrona.Sabiam varejar o prumo como os maisexperientes marinheiros de longo curso, e- tão certo como é verdade eu esperar vera Maurícia outra vez! - qualquer delas eracapaz virar o cúter por davante. Nuncaum navio teve mais perfeita equipagem.

Este cruzeiro foi um verdadeiroacontecimento em Port Louis. Coisa tãoestranha como um grupo de raparigaspassear à vela mesmo dentro do porto,nunca antes se ouvira. Enquanto estive na Maurícia, foiconcedida ao Spray a livre utilização dadoca militar, e as autoridades do portovistoriaram-no e repararam tudo quantofoi preciso. Devo ainda sincera gratidão aoutros amigos por muitas coisasnecessárias para a viagem, que metrouxeram a bordo, incluindo sacos deaçúcar vindos das famosas e velhasplantações. Chegou, entretanto, a estação favorável e,perfeitamente equipado, o Spray fez-se aomar em 26 de Outubro. Navegando comvento bonançoso, foi lentamente que meafastei da ilha, e na manhã seguinte aindapodia ver a Montanha de Puce, perto de

Moka. No dia seguinte o Spray passou aolargo de Galets, na Ilha da Reunião, e umpiloto saiu do porto e veio à fala. Passei-lhe um jornal da Maurícia mas continueia viagem, porque o mar corria muitogrosso nessa altura, tornando aaportagem impraticável. Da Reunião,deitei direito para o Cabo de Santa Maria,em Madagáscar. O meu barco singrava agora perto doslimites do alísio e a valente brisa que otrouxera, de escotas folgadas, durantemilhares de milhas desde o Cabo dasAreias, na Austrália, ia caindo cada vezmais de dia para dia até que, no dia 30 deOutubro, ficou encalmado sobre um marimóvel, mergulhado num Mundosilencioso. Ferrei as velas, sentei-me noconvés e ali fiquei a gozar a imensaquietação da noite.

Em 31. levantou-se uma brisa ligeira doEs-Nordeste e o barco dobrou o Cabo deSanta Maria por volta do meio-dia.Durante os dias 6, 7, 8 e 9 de Novembro,no Canal de Moçambique estive sob umforte vendaval do Sudoeste. O Sprayapanhou aqui o seu pior bocado, sóexcedido no Cabo Horn. A trovoada e osfuzis que precederam a tempestade forammuito duros. Daqui até atingir a costaafricana, o barco apanhou uma série detempestades de vento que o fizeramdescair ora para uma ora para outrabanda, mas em 17 de Novembro chegavaao Natal. Este local maravilhoso é o centrocomercial da «Colónia Jardim», e opróprio Durban, o centro da cidade, não ésenão a continuação dum jardim. Osinaleiro da estação semafórica dopromontório, referenciou-me a 15 milhas

de distância. O vento estava a refrescar, equando me aproximei a 8 milhas osinaleiro transmitiu: «O Spray está areduzir pano; o grande foi rizado e içadoem dez minutos. Todo o trabalho estásendo feito por um homem». Três minutos mais tarde, esta notícia eraimpressa num jornal de Durban, de queme foi entregue um exemplar quandocheguei ao porto. Era-me impossívelverificar o tempo que gastei a rizar a velaporque, como já disse, o ponteiro dosminutos do meu relógio fora-se embora;só sei que dei os rizes tão depressaquanto pude. O mesmo jornal, comentando a viagem,dizia: «A julgar pelo tempo tempestuosoque tem feito ao largo desta costa nasúltimas semanas, o Spray deve ter feitouma viagem muito tempestuosa daMaurícia ao Natal». Não há dúvida de

que o tempo teria sido consideradotempestuoso por marinheiros a bordo dequalquer navio, mas não causou ao Spraymaior contratempo que o atrasonaturalmente motivado por quaisquerventos ponteiros. A questão de como manobrava o cútersozinho, que muitas vezes me foi posta,julgo que melhor será respondida por umjornal de Durban. Sinto-me encolher detimidez com as palavras do editor mascreio haver boa razão para as transcrever.Têm sido feitos cálculos muito poucorealistas quanto ao grau de habilidade ede energia necessário para manobrar umcúter de tão pequena tonelagem como ado Spray. Ouvi da boca de um homemque se chamava a si mesmo marinheiro,que «seriam necessários três homens parafazer o que se afirmava» que eu fizerasozinho e que para mim fora fácil fazer

vezes sem conto; soube que houve quemtivesse feito observações disparatadassemelhantes, chegando-se a afirmar queacabaria por me matar de esgotamento.Mas aqui está o que dizia o jornal deDurban: Nota: Como referimos ontem sumaria-mente, o Spray, com uma tripulação deum só homem, chegou a este porto ontemà tarde, no seu cruzeiro à volta doMundo. O Spray fez uma entradaverdadeiramente auspiciosa no Natal. Ocomandante meteu o barco pelo canalacima, passou o cais principal, e foi lançarferro perto do velho Forerunner no rio,antes que alguém tivesse tido umaoportunidade para ir ao seu encontro. OSpray, naturalmente, foi alvo de grandecuriosidade da gente da Ponta, e achegada foi observada por uma grandemultidão. A habilidade com que o

Capitão Slocum manobrou o barco porentre os navios que ocupavam o canal,era coisa digna de se ver. Não eram de rapazinhos inexperientes osolhos que observavam a entrada do Sprayno Natal. Quando cheguei em frente dabarra, veio ao meu encontro o barco dospilotos, um rebocador valente, de belaslinhas, mas, como soprava uma vento rijoe o mar estava muito agitado para serrebocado em segurança, o rebocadorseguiu à frente para me ir indicando ocaminho pela barra acima, e enquanto oSpray lhe seguia na esteira fui-oobservando e vi como proceder paraentrar o porto em segurança: era, muitosimplesmente, manter-me do lado debarlavento do canal e receber a vaga pelapopa. Havia em Durban dois clubes náuticos,qualquer deles muito activo. Conheci

todos os membros dos dois, e velejei nomagnífico iote Florence do Royal Natalcom o Capitão Spradbrow e o RightHonourable Harry Escombe, primeiroministro da colónia. O pavilhão do ioteabria sulcos nos bancos de vasa e, deacordo com o Sr. Escombe, o Spradbrowaproveitaria depois aquela lavra paraplantar batatas. Mas a verdade é que,lavrando os terrenos do capitão, oFlorence ia ganhando regatas. Depois dopasseio, o Sr. Escombe ofereceu-se parame pilotar o Spray até para lá do Cabo daBoa Esperança, e apontou para a suafamosa tábua de marcar jogos de cartas,como sugestão para ajudar a passar otempo. Como réplica, o Spradbrowavisou-me: «Antes de dar a volta ao Cabojá você tinha perdido o barco». Paraoutros, não era provável que o primeiroministro do Natal jogasse as cartas ao

largo do Cabo da Boa Esperança aindaque fosse para ganhar o Spray. Não foi caso para me sentir poucoorgulhoso, aqui na África do Sul,descobrir que o humor americano tinhasempre lugar de honra; e a melhorhistória americana que jamais ouvi, foi-me contada pelo primeiro ministro. Umdia, quando jantava no Hotel Royal com oCoronel Saunderson, M. P., e filho, e oTenente Tipping, encontrei-me com o Sr.Stanley. O grande explorador acabava dechegar de Pretória e até já o PresidenteKrúger atacara com a sua pena afiada. Oque, de resto, não teve importâncianenhuma, porque ninguém no Mundosuporta melhor a ironia do que ele, nem opróprio Sultão da Turquia. O coronelapresentou-me ao explorador, e eu metide bolina cerrada, para seguir devagar,porque o Sr. Stanley era também um

nauta — navegou no Niassa, creio eu — eo meu desejo era causar a melhorimpressão a um homem com a suaexperiência. Olhou-me com atenção edisse: «Que exemplo de paciência!»«Paciência é tudo quanto se requer»,respondi eu. Perguntou-me então se omeu barco tinha compartimentosestanques. Expliquei-lhe que era todo eleestanque e todo ele compartimento. «E sebater numa rocha?», perguntou mais umavez. «Os compartimentos não osalvariam, se batesse em alguma rocha;tem de navegar longe delas», retorqui-lhe. Depois de uma longa pausa, o Sr.Stanley voltou a inquirir: «E se umespadarte lhe atravessar o casco com aespada». É claro que eu pensara nissocomo um perigo possível, como pensarana possibilidade de ser atingido por umraio. No caso do espadarte, arrisquei-me

a responder, «a primeira coisa seriasegurar-lhe a espada». O coronelconvidou-me para jantar com o grupo, nodia seguinte, para podermos continuar adiscussão, e assim tive o prazer de estarcom o Sr. Stanley uma segunda vez, maso explorador não voltou a fazerinsinuações sobre navegação. É coisa realmente estranha ouvirestudiosos e homens de Estado afirmarque a Terra é chata; mas é um facto quetrês bóeres apoiados pela opinião doPresidente Kruger estavam preparandouma obra em defesa da tese. Enquantoestive em Durban, vieram de Pretóriapara obter elementos por meu intermédioe mostraram-se aborrecidos quando lhesdisse que não podiam provar a tese pelaminha experiência. Depois de osaconselhar a chamar, para as suaspesquisas, algum fantasma da idade das

trevas, saí em terra deixando os trêssábios debruçados sobre a derrota doSpray marcada na carta, o que aliás nadaprovava porque a carta era uma projecçãoMercator e por isso mesmo era «chata».Na manhã seguinte encontrei um dos dogrupo, metido num trajo clerical esobraçando uma grande Bíblia, que emnada diferia da que eu lera, que veiodireito a mim e disparou: «Se respeita apalavra de Deus, tem de admitir que oMundo é chato». «Se a palavra de Deusafirma que o Mundo é plano...» comeceieu; mas não acabei. «O quê?» gritou eledesvairado, e levantando o braço como seme fosse a trespassar com uma zagaia. «Oquê?» voltou a berrar surpreso e furioso,enquanto eu saltava para o lado comopara me furtar à arma imaginária. Tivesseeste bom mas mal orientado fanático umaverdadeira arma na mão a tripulação do

Spray teria morrido mártir ali mesmo enaquele momento. No dia seguinte, aovê-lo no outro lado da rua, fiz-lhe umavénia e, com as mãos, tracei uma esferano ar. Respondeu, varrendo o ar com asmãos espalmadas, num movimentohorizontal, como a dizer, «a Terra échata». Antes de sair da África para aúltima travessia, recebi pelo correio umpanfleto destes geógrafos do Transvaal,com argumentos de toda a espécie emdefesa da sua teoria. Embora assim me refira à ignorânciadestes homens, não posso deixar de dizerda admiração que sinto pela sua coragemfísica. Quase tudo quanto vi do Transvaale dos bóeres, era admirável. Ninguémignora que são os mais corajosos doscombatentes, e tão generosos para oscaídos como bravos perante o inimigo. Sóentre os casmurros velhos se encontra

verdadeira intransigência, mas estaacabará por desaparecer de mortenatural, e até talvez muito antes de nósmesmos deixarmos de ser intransigentes. A educação não é coisa esquecida noTransvaal, ensinando-se o inglês e oholandês a quem tiver posses paraaprender as duas línguas; mas o impostosobre os livros ingleses é pesado e, porfalta de posses, a gente pobre continuapresa à língua bóer e ao mundo chato, demodo semelhante ao que acontece naSamoa e outras ilhas em que, devido auma política errada, os nativoscontinuam agarrados à língua canaca. Visitei algumas escolas públicas emDurban, e tive a satisfação de ver econhecer nelas muita criança inteligente. Mas tudo o que é bom tem de acabar umdia. Em 14 de Dezembro de 1897, atripulação do Spray, depois de uma bela

estadia no Natal, embarcou o dóri,amarrou-o no convés e fez-se ao mar coma brisa matutina que soprava da terra,salvou os perigos da barra e encontrou-sede novo sozinha no mar, «off on heralone», como dizem na Austrália.

CAPITULO XVIII A passagem do Cabo das Tormentas nosvelhos tempos — Natal agitado — OSpray amarra na Cidade do Cabo, parauma estadia de três meses — Viagem decomboio ao Transvaal — O PresidenteKruger dá uma estranha definição daviagem do Spray — Convidados distintosa bordo — Fibras de coco em vez dumcadeado — Gentilezas do almirante daArmada da Rainha — Rumo a SantaHelena — Terra à vista. O Cabo da Boa Esperança era agora oponto mais importante a passar. A partirda Baía da Mesa, podia depois contarcom alísios tesos que levassem o Spraydepressa até casa. No primeiro dia otempo esteve fagueiro e eu fiquei sentadoa pensar em todas estas coisas e no termoda viagem. A distância à Baía da Mesa

era de umas oitocentas milhas por sobreum mar que se podia tornar muito duro.Os antigos navegadores portugueses,cheios de paciência, andaram mais desessenta e nove anos lutando para dobraro Cabo até que conseguiram passá-lo echegar à Baía de Algoa mas aí atripulação amotinou-se. Os homensdesembarcaram numa ilhota, chamadahoje de Santa Cruz, onde devotamenteergueram um cruzeiro, e juraram cortar opescoço ao capitão se tentasse navegarmais para além. Acreditavam que paraalém deste ponto ficava o bordo doMundo que também julgavam ser chato;e temendo que o navio se despenhasse nobordo da Terra, obrigaram o CapitãoDias, comandante, a voltar atrás e todosse sentiram muito satisfeitos porregressar a casa (1). Um ano mais tarde,Vasco da Gama navegou com êxito para

além do Cabo das Tormentas — comoentão se chamava ao Cabo da BoaEsperança e, no dia de Natal, descobriu olugar a que deu esse mesmo nome. Daquipara a Índia, o caminho foi fácil. (*) Os factos passaram-se quase assimmas as razões foram diferentes. Que oMundo é redondo, já os navegadoressabiam muito bem e tanto assim que aexpedição de Bartolomeu Dias levava amissão de verificar até que latitude seestendia para Sul a costa de Africa, ebuscar a passagem que a Sudeste poria oAtlântico em comunicação com o Indico.A questão do «motim» foi outra. Antes dedobrar o cabo para Leste, BartolomeuDias navegara, primeiro para Sul fora dasvistas da costa; depois, aproveitando osalísios de Sudoeste, navegara para Lesteem busca da costa; nesta altura, já bempara Sul, nas latitudes austrais, faltando-

lhe a costa ao cabo de muito navegar,compreendeu que o litoral africano lhehavia já ficado para Norte e nesse rumodeitou até chegar à Baía de Algoa (a queentão deu o nome de Angra da Roca);daqui seguiu mais para Leste até à Ilha deSanta Cruz ou Ilhéu da Cruz, ondeergueram o padrão. Toda esta viagemlevou várias semanas, o navio dosmantimentos ficou para trás, e astripulações queixaram-se de esgotamentoe muito frio. De acordo com a carta decomando que lhe dera El-Rei, BartolomeuDias não devia tomar decisões sem tomaros votos dos seus oficiais. Foi isto que fezna Ilha de Santa Cruz, e a maioria, dadasas precárias condições em que se achava amarinhagem, pronunciou-se peloregresso, mas deu ainda um prazo dealguns dias ao capitão para se apalpar acosta mais para Leste. Aproveitando esta

concessão, Bartolomeu Dias seguiu comos seus dois navios até à foz do rio quehoje se chama Great Fish River e daíiniciou a rota de regresso, avistando oCabo da Boa Esperança, pela primeiravez, quando já vinham a caminho decasa. Donde também se conclui que nãohouve um motim, no sentido de rebeliãodas tripulações. Foram frequentes os pés de vento aolongo destas paragens, soprando, emmédia, um em cada trinta e seis horas;mas cada um deles era mais ou menos oque foi cada um dos restantes e nãotiveram outras consequências senão fazerdescair o Spray, quando eram ponteirosou fazê-lo ganhar caminho quando eramde feição. No dia de Natal de 1897,cheguei às águas do Cabo. O Spray ianessa altura a lutar com um ventoponteiro mas deu-me razões para esperar

dobrar o Cabo ainda antes da noite. Logopela manhã, o barco começou a caturrar ebalançar de bombordo a estibordo, damaneira mais inesperada, e vem apropósito dizer que, enquanto estive naponta do pau da bujarrona a rizar o panode proa, meteu-me debaixo de água portrês vezes, à laia de presente de Natal.Fiquei numa sopa e não gostei nada dacoisa: nunca, em qualquer outro mar,apanhei mais de um mergulho em tãocurto espaço de tempo — uns trêsminutos, talvez. Um grande vapor inglêsque passava, içou o sinal «Desejamos-lhefeliz Natal». Julgo que o capitão era umhumorista; até o navio dele ia a deitar ashélices de fora em cada vaga. Dois dias mais tarde, depois de ganhar ocaminho perdido com o pé de vento, oSpray, ajudado agora por um vento defeição, passou o Cabo das Agulhas

navegando de conserva com o navio devapor Scotsman. O faroleiro das Agulhastrocou sinais com o Spray e mais tardeescreveu-me para Nova Iorquefelicitando-me pelo êxito da viagem. Ainvulgar circunstância de passarem porali na mesma ocasião dois barcos de tãodiverso tipo, pareceu-lhe merecer lugarespecial numa tela, por isso tratou depintar a cena. Assim o soube pela suacarta. Em lugares solitários como este,encontram-se criaturas particularmentesensíveis, de coração simpático e atépoético. O Spray sentiu-o ao longo demuita costa bravia, e os sinais amáveisque lhe dirigiam de terra eram de moldea fazer nascer no espírito de qualquerhomem um sentimento de gratidão queabarcava o Mundo inteiro. Logo que passei o Cabo das Agulhascaiu-me em cima novo pé de vento mas o

Spray evitou-o metendo-se na BaíaSimons. Logo que o vento abrandou, metide bolina e assim dobrei o Cabo da BoaEsperança, onde dizem que ainda navegao Holandês Voador. A viagem parecia-meagora como se já estivesse acabada; sabiaque, daqui para diante, tudo ou quasetudo seria um velejar fácil. Cruzava agora a linha divisória de doisclimas. Para Norte fazia tempo calmo elimpo, para Sul dominavam os aguaceirosacompanhados, com muita frequência, deventos temíveis. Depois de sair do últimotemporal, o Spray achou-se pairandomelancolicamente no meio de calmapodre, à sombra da Montanha da Mesa;mas logo que o Sol generoso se ergueupor sobre a Terra, levantou-se uma levebrisa mareira. O rebocador Alert que saíra para o mar àespera de navios, encontrou-se com o

Spray ao largo da Anca do Leão e deu-lheuma tôa até ao porto, em vez de rebocaralgum navio maior. Como o mar estivessecalmo, fundeei na baía fronteira à Cidadedo Cabo e passei aqui um diasimplesmente para estar em sossego,longe do bulício do porto comercial. Ocapitão do porto, gentilmente, mandou-me a sua própria lancha para levar ocúter para um ancoradouro na doca, maspreferi ficar sozinho um dia, gozando osossego do mar e rememorando osepisódios da passagem dos dois cabos.Na manhã seguinte o Spray dirigiu-se sobvela para as Docas Secas de Alfred, ondeficou três meses ao cuidado dasautoridades portuárias enquanto eupasseava pelo país, de Simonstown aPretória, aproveitando-me do passe decaminho de ferro que me foi oferecidopelo Governo da colónia.

O passeio a Kimberley, Joanesburgo ePretória foi muito agradável. Encontrei-me nesta última cidade com o Sr. Kruger,Presidente do Transvaal. Sua Excelênciarecebeu-me cordialmente; mas o meuamigo Juiz Beyers, o cavalheiro que meapresentou, ao dizer que eu andava afazer uma viagem à volta do Mundo,involuntariamente ofendeu o venerávelestadista, o que ambos lamentámosprofundamente. O Sr. Kruger corrigiu ojuiz um tanto bruscamente, lembrando-lhe que o Mundo era chato. «O senhornão queria dizer à volta do Mundo», diziao Pre-sidente, «isso é impossível! Osenhor o que queria dizer é no Mundo.Impossível!» repetia ele «impossível!» Ojuiz olhava para mim e eu olhava para ojuiz, que devia saber o terreno que pisava,e o Sr. Kruger olhava ferozmente paranós dois. O meu amigo juiz parecia

confundido mas eu estava encantado, e oincidente agradou-me mais que qualqueroutra coisa que pudesse ter sucedido. Erauma informação preciosa extraída doOom Paul que tem algumas saídasfamosas. Dos ingleses, dizia ele:«Levaram-me, primeiro, o casaco e,depois, as calças». Dizia também: «Apedra angular da República Sul-Africanaé a dinamite». Só um ignorante podechamar obtuso ao Presidente Kruger. Pouco depois de chegar ao Cabo, oCoronel Saunderson (1), que viera deDurban, convidou-me para ir a NewlandsVineyard onde conheci um grupo depessoas encantadoras. Depois disso, SuaExcelência «Sir» Alfred Milner, oGovernador, dispôs de algum tempo paravir a bordo com um grupo de amigos. OGovernador, depois de uma olhadela foià cabine buscar uma caixa para se sentar;

Lady Muriel sentou-se num barril e LadySaunderson sentou-se ao meu lado, juntoda roda do leme, enquanto o coronel, demáquina fotográfica em punho, de bordoda embarcação, tirava fotografias ao cútere aos seus ilustres visitantes. O Dr. DavidGill, astrónomo real, que fazia parte dogrupo, convidou-me a ir no dia seguinteao famoso observatório do Cabo. Umahora com o Dr. Gill, foi uma hora passadaentre as estrelas. São bem conhecidas asdescobertas do doutor no domínio dafotografia estelar. Mostrou-me o relógioastronómico do observatório, e eumostrei-lhe o relógio de lata do Spray, oque deu para longa conversa sobre adeterminação da hora média no mar ecomo eu a determinava do convés domeu barquinho, sem o auxílio de relógiode qualquer natureza. Anunciou-se,depois, que o Dr. Gill presidiria a uma

palestra sobre a viagem do Spray e isso sópor si garantiu uma enchente. O salãoficou repleto e houve muita gente que jánão conseguiu entrar. Este êxito deu-medinheiro bastante para todas asnecessidades da estadia e da viagem deregresso. Depois de voltar de Kimberley e Pretória,e de verificar que tudo continuava emboa ordem a bordo do Spray, visiteiWorcester e Wellington, cidades famosaspelos seus colégios e seminários. Emtodos aqueles estabelecimentos de ensino,as senhoras quiseram saber como podiauma pessoa dar a volta ao Mundosozinha, o que me pareceu prenúncio devirmos a ter, em breve, patroas em vez depatrões do mar. E a coisa ainda acabaráassim se os homens continuarem a dizer«não podemos».

Viajando pelas planícies africanas,atravessei centenas de milhas de solo ricomas ainda inculto, coberto apenas detufos de arbustos raquíticos, em quepastavam rebanhos de carneiros. Osarbustos cresciam afastados uns dosoutros a uma distância como a de ocomprimento dum carneiro, e oscarneiros, pelo que vi, eram compridos,mas ainda havia pasto que chegasse paratodos os rebanhos. Apossou-se de mim odesejo de possuir uma nesga de terra,aqui onde havia tanta desocupada; masem vez de ficar a plantar florestas e aarrotear os campos, regressei às DocasAlfred onde o Spray me esperava, comtudo em ordem, tal como o deixara. (*) O Coronel Saunderson foi o melhoramigo do Sr. Kruger, atendendo a que oaconselhou a não continuar a montarcanhões.

Têm-me perguntado, muitas vezes, comofoi possível que nunca me roubassem obarco ou os seus pertences nos váriosportos onde o deixei sozinho durante diasseguidos, sem um único guarda a tomarconta dele. A coisa é simples: o Sprayraramente caiu no meio de ladrões. Nasilhas Keeling, Rodriguez e outros lugaressemelhantes, um simples cordel de fibrade coco passado nas armelas dasescotilhas, a indicar que o dono haviasaído, era quanto bastava para defenderos meus bens até de um simples olhar dedesejo. Mas já numa ilha importante,mais perto de casa, precisei de fechossólidos; na primeira noite que passei noporto, desapareceu-me uma porção decoisas que até aí costumava deixar adescoberto, como se o convés tivesse sidovarrido pelo mar.

As relações sociais do Spray com o Caboda Boa Esperança culminaram com umavisita do Almirante «Sir» Harry Rawson,da Armada Real, que veio a bordo com afamília. O almirante, que então coman-dava a esquadra sul-africana, actualcomandante da grande esquadra doCanal, mostrou o mais vivo interesse pelominúsculo Spray e pela forma como seportara no Cabo Horn, cujas águas já nãoeram desconhecidas para ele. Confessoque me senti encantado com as perguntasdo Almirante Rawson e que muitoaproveitei com algumas das suassugestões, apesar da grande diferençaexistente entre as unidades que cada umde nós comandava. Em 26 de Março de 1898, o Spray largouda África do Sul, a terra da imensidão edo ar puro, onde passou tão proveitoso eagradável tempo. O rebocador Tigre

rebocou-o do ancoradouro convidativodas Docas Alfred até ao mar, deixando-oem boa altura de seguir viagem. A brisamatinal muito leve, que mal lhe enfunavaas velas no momento em que o rebocadorsoltou a tôa, acabou por morrer e deixou-me a pairar sobre uma forte calema, bemà vista da Montanha da Mesa e dos altoscumes do Cabo da Boa Esperança. Agrandiosidade do cenário ajudou-me aesquecer a monotonia. Um dos velhoscircum-navegadores («Sir» Francis Drake,creio eu) quando pela primeira vezavistou este pilar magnífico, disse: «É acoisa mais bela e o cabo mais grandiosoque vi em toda a volta do Mundo». A vista era bela, sem dúvida, masninguém gosta de ficar muito tempo emcalmaria a olhar seja para o que for, equando notei que começava a vir marcurto, precursor do bom vento que

chegou no segundo dia, senti-me muitosatisfeito. As focas que brincaram todo odia em volta do Spray, olharam-no comuns olhos muito abertos quando, à tarde,abriu as asas ao vento como ave quetivesse estado poisada. Afastaram-se, e oSpray depressa deixava para trás,afogados no horizonte, os cumes maisaltos das montanhas, e o Mundo mudoude um simples panorama para a excitaçãode uma viagem de regresso. Toninhas,golfinhos e outros bichos semelhantesque faziam sem dificuldade singradurasde cento e cinquenta milhas,acompanharam-nos durante diasseguidos. O vento soprava do Sudeste, oque era mesmo de convir, e o Sprayseguia, sem abrandar, ao máximo do seuandamento, enquanto eu mergulhava noslivros que me ofereceram no Cabo,passando noite e dia a ler. 30 de Março foi

dia de jejum por intenção deles. Ia eu aler, esquecido da fome, do vento e domar, convencido de que tudo corria bem,quando, subitamente, uma vaga cavalgoua popa e enfiou-se descaradamente pelaescotilha, ensopando até o livro que tinhana mão. Não havia dúvida de que eratempo de dar rizes para o barco não seenxovalhar. Em 31 de Março o Sudeste fresco era jávento feito e o Spray corria com o granderizado nos primeiros, a bujarrona todalarga e a giba, fazendo de palanque,disparada no bambu de Vailima,enquanto eu lia a encantadora «InlandVoyage» de Stevenson. O cúter seguiafacilmente no seu caminho, quase semum balanço, correndo por entre acarneirada branca, rodeado por miltoninhas que o acompanhavambrincando. Encontrávamo-nos de novo

entre velhos amigos — os peixes--voadores, curiosos habitantes do mar.Saíam das ondas como flechas disparadasde um arco, corriam ao vento, de asasabertas, em curvas elegantes; depois,descaíam até tocar de novo a crista dasvagas para molhar as asas delicadas eretomar o voo. E assim alegravam amonotonia dos dias. Um dos espectáculosmais alegres dos dias de bom tempo nooceano é o voo incessante destes peixestão curiosos. Ê impossível que alguém se sinta sozinhonum mar assim. Além do mais, a leiturade aventuras admiráveis ainda dava maisrealce à cena. Sentia-me ao mesmo tempono Spray e a bordo do Arethusa, no Oise.E assim fomos vencendo milhas apósmilhas, em belas singraduras, até ao dia11 de Abril que chegou quase sem eu darpor isso. Nessa madrugada, muito cedo,

fui acordado por essa ave estranha que éo alcatraz; os grasnidos roucos pareciamdizer-me: «Patrão, há costa à vista». Puleilogo para o convés e — não havia dúvidanenhuma — na luz mortiça do crepús-culo, a umas vinte milhas pela proa, láestava Stª Helena. O meu primeiro impulso foi dizer: «Masque migalha no meio do mar!» É que ailha tem apenas nove milhas decomprimento e uns oitocentos ecinquenta metros de altura. Fui buscaruma garrafa de vinho do Porto, aoarmário, e bebi uma boa golada à saúdedo meu timoneiro invisível, o piloto doPinta. . . . . .

CAPITULO XIX Na ilha-exílio de Napoleão — Duaspalestras — Um hóspede no quarto dosfantasmas de Plantation House —Excursão ao histórico Longwood — Cafécom casca e uma cabra para o descascar— A pouca sorte do Spray com animais— Preconceitos contra cães — Um rato, aaranha de Boston e o grilo canibal — Ilhada Ascensão. Foi por volta do meio-dia que o Sprayancorou em Jamestown e, em seguida,«toda a tripulação» saiu em terra paraapresentar cumprimentos ao Governadorda ilha, «Sir» R. A. Sterndale. Aodesembarcar, Sua Excelência disse-meque nos tempos que correm, não éfrequente os circumnavegadorespassarem pelos seus domínios;apresentou-me cordiais boas-vindas e

arranjou as coisas para que eu pudessefalar da viagem, primeiro na Garden Hallpara os habitantes de Jamestown, edepois em Plantation House — aresidência do Governador, uma ou duasmilhas para o interior, nas montanhaspara Sua Excelência, para os oficiais daguarnição e seus amigos. O Sr. Poole,nosso respeitável cônsul apresentou-me,na palestra do castelo, e no decorrer dassuas observações, afirmou que a serpentemarinha era «Yankee». A tripulação do Spray foi principes-camente recebida pelo Governador.Fiquei dois dias em Plantation House, e,como um dos quartos da mansão,conhecido pelo «quarto Poente», fossevisitado por fantasmas, o mordomoinstalou-me nele por indicação de SuaExcelência — e como um príncipe.

Com efeito, para se assegurar de que nãohavia engano, Sua Excelência veio ver seeu estava no quarto que devia ser e dizer-me tudo quanto sabia dos fantasmas quevira ou de que ouvira falar. Descobrira-osjá a todos menos um, e, depois de medesejar sonhos agradáveis manifestou aesperança de eu receber a honra de umavisita do desconhecido do quarto Poente.Fiquei com a vela acesa durante o restoda noite, e fartei-me de olhar em volta,pensando que talvez me pudesse vir aencontrar cara a cara com o grandeNapoleão; mas não vi senão a mobília e aferradura pregada na porta em frente dacama. Santa Helena foi uma ilha de tragédias —tragédias que têm sido esquecidasenquanto se chora a morte do Corso. Nosegundo dia, o Governador levou-mepela estrada que atravessa a ilha. Em

determinado ponto do percurso, a estradaque corre serpenteando por esporões cravinas, formava um W perfeito empoucas dezenas de metros. Os caminhos,embora tortuosos e íngremes, erambastente bons, e senti-me impressionadopelo volume de trabalho que a suaconstrução deve ter custado. O ar nasgrandes altitudes era fresco e saudável.Diz-se que depois de a forca ter aquipassado de moda como pena para faltastriviais, ninguém morreu na ilha exceptopor ter caído de alguma falésia ouesborrachado por alguma pedra que sedesprendeu das montanhas íngremes!Houve tempo em que abundaram asbruxas em Santa Helena, como sucedeuna América nos dias da Cotton Mather.Hoje em dia, o crime é coisa rara na ilha.Enquanto ali estive, os juízes ofereceramum par de luvas brancas ao Governador

Sterndale, como oferta simbólica por nemum só caso de crime ter ido a tribunaldurante um ano inteiro. No regresso da residência do Governadorfui com o Sr. Clark, um compatriota meu,até Longwood, a casa onde viveuNapoleão. O Sr. Morilleau, agenteconsular francês, conserva o local emcondições razoáveis e os edifícios em bomestado. O agente vive em Longwood coma mulher e as filhas, nativas de SantaHelena, de maneiras distintíssimas, e aquipassa dias, meses e anos alegres, muitoembora nem ele nem a família tenhamvisto o Mundo para além do horizonte dailha. A 20 de Abril o Spray estava de novopronto para o mar. Antes de embarcaralmocei com o Governador e a família nocastelo. Lady Sterndale tinha mandadoum grande bolo de frutas, de

manhãzinha, de Plantation House, paraeu levar para a viagem. Era um bolograndioso, de conveses altos, e comi-oparcimoniosamente — pelo menos assimme pareceu — mas apesar disso nãodurou tanto quanto eu gostaria. Comi-lheo último bocado, a acompanhar a últimachávena de café, em Antígua, nas ÍndiasOcidentais, o que, vendo bem as coisas,foi um êxito. O que a minha irmã me fezna ilhota da Baía de Fundy no começo daviagem, durou mais ou menos o mesmotempo, isto é, quarenta e dois dias. Depois do almoço entregaram-me umamala de correio para a Ilha da Ascensão, aescala seguinte na minha rota. Depois, oSr. Poole e a filha vieram a bordo emvisita de despedida e trouxeram-me umcesto de fruta. Foi já pela tarde adianteque levantei ferro e deitei para Oeste,desgostoso por deixar os meus novos

amigos. Mas uma vez mais as velas seenchiam ao sabor do vento fresco, e fiqueiolhando o farol de Plantation House e osinal de despedida do Governador, até ailha se fundir no escuro da noite; à meia-noite já o próprio farol se sumira nohorizonte. Ao amanhecer não se avistava terra, e odia decorreu igual a tantos outros salvopor um pequeno incidente. OGovernador Sterndale tinha-me dado umsaco de café por descascar, e o Clark, oamericano, num momento infeliz trouxe-me para bordo uma cabra «para marrarno saco e fazer sair os grãos de café dacasca». Afiançou-me que o animal alémde ser útil seria tão bom companheirocomo um cão. Depressa descobri que omeu companheiro de viagem, umaespécie de cão com chifres, sócompletamente amarrado podia

continuar no barco. O erro que cometi foinão o ter amarrado ao mastro com umacorrente em vez de o prender com cabosde fibra e foi à minha custa que o aprendi.Tirando o primeiro dia, em que o animalainda não se adaptara ao mar, não volteia ter paz de espírito. A partir de então,levada talvez pela saudade daspastagens, esta incarnação do malameaçou devorar tudo a bordo desde asvelas de estai aos turcos da popa. Foi opior pirata que encontrei em toda aviagem. Começou os estragos comendo-me a carta das Índias Ocidentais nacabina enquanto eu trabalhava à proa,convencido de que a besta-fera estavabem amarrada pelas patas, no convés. Aide mim! não havia no barco um cabo queresistisse aos dentes terríveis daquelacabra!

Tornou-se claro, logo à primeiratentativa, que não tinha sorte comanimais a bordo. Foi o caso do caranguejodas Ilhas Keeling. Logo que conseguiudeitar uma tenaz fora da caixa ondeestava preso, o meu casaco de mar, queestava ali ao pé, ficou feito em tiras.Encorajado pelo êxito, esmigalhou a caixae escapuliu-se para a cabina onde rasgavaou partia o que apanhava a jeito,acabando por me ameaçar a vida durantea noite. Gostaria de levar o animal vivopara a América, mas não foi possível.Depois, a cabra comeu-me o chapéu depalha e quando cheguei ao porto seguintenão tinha nada com que cobrir a cabeçaem terra. Esta última partida de maugosto decidiu a sorte a dar-lhe. No dia 17de Abril o Spray chegou à Ascensão, queé guarnecida pela tripulação de um naviode guerra, e o contra-mestre veio a bordo.

Logo que pôs o pé no meu barco, a cabraamotinada saltou--lhe para a embarcaçãoe desafiou o contra-mestre e a equipagem.Encarreguei-os então de desembarcar ainfeliz, o que fizeram com a maior dassatisfações, e a cabra foi parar às mãos deum excelente escocês com todas asprobabilidades de nunca mais de lá sair.Estava condenado a navegar de novo nasprofundezas da solidão, mas estasexperiências não produziram mausefeitos em mim; pelo contrário, as longashoras de meditação que passei no martornaram-se cada vez mais forte osentimento da caridade e até abenevolência. Na solidão das terras desoladas do CaboHorn, vi-me sem ânimo para roubar umavida, a menos que fosse em defesaprópria e, à medida que vim navegando,este traço de espírito de ermitão foi-se

acentuando em mim até ao ponto de mesentir revoltado com a simples menção dematar um animal para comer. Por muitoque tivesse apreciado os guisados degalinha que comi em Samoa, repugnava-me a ideia — que ali me sugeriram — delevar galinhas para ir matando paracomer durante a viagem. E a SrªStevenson, ouvindo os meus protestos, foitambém de opinião que matar e comercompanheiros de viagem seria, naverdade, qualquer coisa parecida com umassassínio e canibalismo. Quanto a animais de companhia, nãohavia espaço no Spray para um cãocorpulento e nobre em tão longa viageme, durante muitos anos, associeimentalmente os cães pequenos com ahidrofobia. Assisti em tempo à morte deum jovem alemão que contraíra a terríveldoença e, pouco depois, soube que

morrera, também de hidrofobia, o jovemque acabara de me registar na suaCompanhia de seguros. Já vi toda atripulação de um navio trepar peloaparelho e pela mastreação para se pôr asalvo de um cão que corria pelo convéscom um ataque. Nunca eu arriscaria atripulação do Spray a uma talcontingência. Com estes preconceitosindelevelmente gravados no espírito,receio ter respondido frequentemente,com impaciência, quando meperguntavam se não gostaria de levar umcão comigo. Um gato seria talvez umanimal inofensivo, mas não há nada queum bichano possa fazer a bordo e, paranão dizer pior, é um animal insociável. Écerto que me entrou a bordo um rato nasIlhas dos Cocos-Keeling, e outro emRodriguez, juntamente com umaescolopendra; mas um deles, consegui

expulsá-lo do navio e o outro cacei-o.Tinha eu arranjado, à custa de muitotrabalho, uma armadilha para apanhar oprimeiro; mas o bicho esperto não sedeixou enganar, percebeu a coisa e fugiupara terra no dia em que a coisa ficoupronta. Segundo reza a tradição, é de bomaugúrio quando os ratos embarcam numnavio, e eu estava disposto a ignorar apresença do que entrou em Rodriguez;mas uma quebra de disciplina decidiu ascoisas contra ele. Uma noite enquantodormia, a navegar, tratou de vir passearpor cima de mim, começando pela cabeçaque é um dos meus pontos sensíveis.Tenho o sono leve. Antes que meconseguisse chegar ao nariz, gritei-lhe«Rato!», agarrei-o pela cauda e atirei comele ao mar, pela escotilha.

Quanto à escolopendra, não dei pelapresença dela senão quando o miserávelinsecto, todo ele patas e veneno,começando pela cabeça, como o rato, meacordou com uma valente ferroada nocoiro cabeludo. Foi mais do que eu podiatolerar. A picada venenosa, desagradávela princípio, depois de algumas aplicaçõesde petróleo não me deu mais maçadas. Depois disto, e durante algum tempo,nenhum outro ser vivo me perturbou asolidão. Nem insectos havia. Os únicosbichos presentes no barco eram a aranhade Boston, a fêmea e uma descendênciade aranhiços. Durante algum tempo,quero eu dizer até chegar à últimapassagem no Oceano Indico, onde osmosquitos vieram às centenas,juntamente com as chuvas que caíamcopiosamente dos céus. Foi apenas umbarril de água da chuva que ficou no

convés cinco dias ao Sol, creio eu, edepois começou a música. Conheci-lhelogo a toada; era a mesma que se ouve doAlasca a Nova Orleans. Mais adiante, na Cidade do Cabo, um diaem que jantei fora, senti-me encantadocom o barulho dos grilos, e o Sr.Branscombe, meu anfitrião, prontificou-sea arranjar-me um par. Mandaram-nos abordo no dia seguinte, metidos numacaixa com um rótulo que dizia: «Plutão eVadio». Arrumei a caixa na bitácula edeixei-os ali sem comida até me fazer aomar — alguns dias. Nunca ouvira dizerque um grilo comesse alguma coisa.Parece que o Plutão era canibal; quandoabri a tampa, só restavam, do pobreVadio, as asas quebradas no fundo dacaixa. E mesmo com o Plutão as coisastinham corrido mal, porque estava de

costas, espichado e rígido, incapaz devoltar a grilar. A Ilha da Ascensão, onde a cabradesembarcou, é conhecida pela StoneFrigate, R. N. (1) e é considerada comoponto de abastecimento para a esquadrasul-africana. Está situada à latitude de T55' Sul e à longitude de 14' 25' Oeste nocoração do alísio do Sudeste, e fica aumas oitocentas e quarenta milhas dacosta da Libéria. É uma massa de rochasvulcânicas erguidas do fundo do oceano,à altitude de 854 metros acima do níveldo mar. É um ponto estratégico epertence à Grã-Bretanha desde os temposem que o solo ainda não havia arrefecidocompletamente. No solo pouco extensomas rico das alturas das ilhas, entre asnuvens, conseguiu vingar algumavegetação, e está-se procedendo aculturas experimentais em pequena

escala sob a direcção de um cavalheiro doCanadá. Também se apascentam ali umaspoucas vacas e ovelhas para a messe daguarnição. O armazenamento de águafaz-se em larga escala. Numa palavra,este montão de cinzas e lava está bemabastecido e fortificado, e seria capaz desuportar um cerco. Logo que o Spray chegou, recebi umacarta do Capitão Blaxland, comandanteda ilha, agradecendo-me o correio trazidode Santa Helena e convidando-me aalmoçar com ele, a mulher e a irmã noquartel-general, não longe do porto.Escusado será dizer que aceiteiimediatamente a hospitalidade docapitão. Estava um carro à minha esperano cais, quando desembarquei, e ummarinheiro de sorriso franco, levou ocavalo à arreata pelo monte acima até àcasa do capitão, como se eu fora um lorde

do almirantado ou até mesmo umGovernador; e voltou a conduzi-locautelosamente, ladeira a baixo, quandoregressei. No dia seguinte, visitei o cume,no mesmo carro e acompanhado domesmo marujo que conduzia o cavalo.Ora a verdade é que, com todas asprobabilidades, não devia haver então nailha um homem em melhores condiçõesque eu para andar a pé; e o marinheirosabia-o. Acabei por sugerir quetrocássemos lugares. «Deixe-me pegar naarreata», disse-lhe eu, «e não deixe vocêque o cavalo dispare». «Grande Fragatade Pedra!» exclamou o homem, e desatoua rir; «este aqui, patrão, não era capaz deandar mais depressa que uma tartaruga. (*) Fragata de Pedra, Royal Navy. Se não fosse eu rebocá-lo nunca maischegávamos ao porto». Fiz a maior partedo caminho a pé pelas encostas íngremes,

e daí em diante o meu guia, marinheirodos pés à cabeça, tornou-se um grandeamigo meu. Chegado ao cume da ilha,encontrei-me com o Sr. Schank, oagricultor canadiano, que vivia com airmã numa casa muito convidativa, entreas rochas, e ali estavam tãoconfortavelmente e tão abrigados comocoelhos numa toca. Levou-me a ver aplantação; dois dos talhões estavamseparados por um esporão da montanhainacessível e a passagem dum para ooutro fazia-se por um túnel aberto narocha. O Sr. Schank disse que tinhaperdido algumas vacas, bezerros ecarneiros que, de vez em quando, sedespedaçavam nos precipícios. Disse-meele não ser raro uma vaca, à marrada,lançar outra por uma falésia abaixo e,depois, continuar a pastar sossega-damente. Parecia que os animais da

plantação, como a Humanidade do nossovasto Mundo, achavam que a ilha erapequena de mais para tanto habitante. Em 26 de Abril, enquanto estava em terra,levantou-se uma grande calema quetornou impossível a ida a bordo. Mascomo o cúter estava bem amarrado a umabóia, do lado de fora da rebentação, nãome preocupei pela sua segurança, e eu, omais bem instalado possível, passei otempo a ouvir belas histórias, entre osoficiais da Fragata de Pedra. Na tarde de29, o mar tinha acalmado e fui para bordotratar dos preparativos para largar namadrugada seguinte. Quando entrei paraa embarcação, no cais, o contramestre e atripulação despediram-se de mim comum aperto de mão cordial. Por razões de interesse científico, aqui nomeio do oceano, pedi que fizesse umainvestigação rigorosa acerca do rol da

equipagem do pray. Muito poucos apuseram em dúvida e talvez ainda menosduvidem daqui em diante; mas, paraelucidação desses poucos, quisdemonstrar, para além de toda a dúvida,que, para a expedição de um cúter umacircumnavegação, não era preciso maisque um homem para das as tarefas debordo e que um só homem navegava noSpray. Assim, o Tenente Eagles que foranomeado para esse efeito, veio a bordoquando eu já estava pronto para largar,de manhã cedo, e fumigou o barco,tornando impossível a presença de umhomem vivo no interior, e provando quesó uma pessoa estava no Spray quandoentrou o porto. Poderá parecer supérfluoum certificado desta natureza, além dosdocumentos oficiais de vários consulados,delegações de saúde e alfândegas; mas ahistória da viagem poderá cair nas mãos

de quem não esteja familiarizado com osprocessos seguidos por tais depar-tamentos oficiais para verificar que osdocumentos de um navio — sobretudo ascartas de saúde — estão em ordem. Aprontado o certificado do tenente, oSpray, alegremente, deu velas ao vento,salvou os rochedos batidos pelo mar, e oalísio, agradavelmente fresco e saudável,levou-o voando ao longo da sua rota. A 8de Maio de 1898, em demanda daAmérica, cruzei a derrota que fizera em 2de Outubro de 1895 na viagem para fóra.Passei Fernando Noronha, de noite,algumas milhas a Sul, e por isso nãoavistei a ilha. Senti-me satisfeito ao verque o Spray completava a volta aoMundo, e ainda que fora só por aventura,não me senti de modo algumdesencorajado quanto à utilidade daviagem. «Aconteça o que acontecer, a

viagem é já um facto», disse para comigo.Fizera-se uma época.

CAPITULO XX Na corrente favorável do Cabo de S.Roque, Brasil — Tudo quanto no mar sesabia da guerra hispano-americana —Troca de sinais com o couraçado Oregon— Em frente da prisão de Dreyfus, na lhado Diabo — Reaparecimento da Estrelado Norte — O farol da Trinidad —Recepção encantadora em Granada —Palestras para auditórios amistosos. No dia 10 de Maio, observei uma grandemudança nas condições do mar; se aindapudesse haver quaisquer dúvidas arespeito da longitude em que meencontrava, ter-se-iam agora dissipado. Oencrespado curioso, de há longo tempoesquecido, denunciador de uma corrente,vinha bater no costado do barco numamúsica grata de escutar; a toada cativou-me, e sentei-me, imóvel, a ouvi-la

enquanto o Spray seguia o seu caminho.Pelo encrespado da corrente, fiqueiseguro de me encontrar nas paragens deS. Roque, na corrente que corre ao redordo cabo. Os alísios — os marinheirossabem-no bem — originam esta correnteque, no seu caminho para além desteponto, segue a linha da costa do Brasil,Guiana e Venezuela, e, dirão alguns, adoutrina de Monroe. O alísio soprava rijo havia algum tempo ea corrente, agora na sua máxima força,chegava às quarenta milhas por dia. Isto,somado à singradura lida na barca, faziabelas singraduras de cento e oitentamilhas durante vários dias seguidos.Nada vi da costa do Brasil, embora nãonavegasse muitas léguas para o largo, eseguisse sempre a corrente. Não supunha que houvesse sidodeclarada guerra à Espanha e que

pudesse ser ali mesmo apanhado ecapturado pelo inimigo. Na Cidade doCabo, houve quem me dissesse, que, emsua opinião, a guerra era inevitável, e meavisasse: «Os espanhóis apanham-no! Osespanhóis apanham-no!» Tudo quantopodia responder é que se os espanhóis meapanhassem, não apanhavam grandecoisa. Mesmo no calor que se seguiu aodesastre do Maine, não julguei possíveluma guerra; mas eu não sou político. Narealidade, não pensei a sério na questão,uma única vez. No dia 14 de Maio, poucoao Norte do Equador e mais ou menospela longitude da foz do Amazonas,avistei um mastro com as Estrelas eFaixas no .tope, surgindo-me pela popa,como que brotando do mar e, depois,crescendo no horizonte como umacidadela, reconheci o Oregon! Quando seaproximou, vi que o grande navio içara o

sinal «C B T» que significa «Há navios deguerra próximo?» Mesmo por baixo dasbandeiras de sinais e maior que a velagrande do Spray — pelo menos, foi assimque me pareceu — estava a bandeiraespanhola mais amarela que vi até hoje.Tinha pesadelos, depois disso, só depensar nela em sonhos. Não distingui os sinais do Oregon senãoquando me passou para vante do través;o navio passou-me a duas milhas, eu nãotinha binóculo, e só então o pudeobservar bem. Mas logo que decifrei osinal, icei o meu «Não», porque não viranenhum; nem tinha andado à procura denenhum. Icei o meu último sinal«Conservemo-nos juntos, para protecçãomútua», mas o Capitão Clark não pareceujulgar isso necessário. Talvez que asminhas bandeiras, por pequenas, não sedistinguissem bem; de qualquer maneira,

o Oregon seguiu a toda a força dasmáquinas à procura de navios de guerraespanhóis. A bandeira do Oregon foiarreada cavalheirescamente três vezes,em resposta ao arriar da bandeira doSpray, na altura em que o navio de guerranos ultrapassava. Ambos tinham cortadoa linha poucas horas antes. Nessa noitemeditei longo tempo nos riscos de guerraque poderiam pôr o Spray em perigo,depois de ter passado a salvo todos ouquase todos os perigos do mar; mas osmeus receios acabaram por dar lugar aum forte sentimento de esperança. No dia 17 de Maio, o Spray, depois desair de um aguaceiro matinal, desfechoucom a Ilha do Diabo, duas quartas pelaamura de sotavento e não muito distante.O vento soprava rijo do mar. Avistavam-se distintamente os edifíciosacinzentados, em terra, quando o barco

lhe passou pelo través. Não vi qualquerbandeira ou outro sinal de vida naquelaterra desolada. Mais tarde, nesse mesmo dia, apareceu àvista uma barca francesa a caminho deCaiena, cingida à bolina com amuras abombordo e abatendo muito parasotavento. O Spray ia também à trinca,dando força de velas, com amuras aestibordo, procurando fazer-se ao largoporque a forte calema a empurrarademais para a praia, e ali estava eu agoraabarbado com a ilha, e pensar se havia ounão de rezar a pedir uma mudança devento. Já tinha gozado o meu quinhão deventos de feição ao longo dos grandesoceanos, e perguntava a mim mesmo seestaria certo pedir vento da quadra paramim, quando o francês ia a navegarprecisamente ao rumo oposto. A correntepelos queixos, que ia vencendo, e vento

escasso, já era mal que chegasse para ele.A única coisa que eu mentalmente podiapedir era «Senhor, deixai continuar ascoisas como estão, mas não ajudeis ofrancês mais do que agora, porque o quelhe seria favorável seria a ruína paramim!» Lembrei-me então que, quando era aindaum rapazito, ouvi um capitão dizerfrequentemente na igreja que, emresposta a uma sua oração, o ventorondara do Sudeste para o Noroeste,precisamente como melhor jeito lhe fazia.O capitão era uma excelente pessoa, masserá que a sua afirmação glorificava oGrande Arquitecto — o Senhor dosventos e das vagas? Além disso, pelo queme recordo, não foi o alísio que mudou aseu rogo mas sim um dos variáveis queacabam sempre por mudar se alguém opedir, desde que peça durante o tempo

bastante. Além disso, podia muito bemacontecer que o irmão deste homemestivesse navegando precisamente aorumo oposto, muito satisfeito por ir comvento de feição (1). No dia 18 de Maio de 1898, escrevi emletras grandes no diário do Spray: «Estanoite, à latitude de 7° 13' N, pela primeiravez desde há quase três anos, vi a EstrelaPolar». No dia seguinte o Spray tinhafeito cento e quarenta e sete milhas pelabarca; a este número juntei trinta e cincomilhas, para a corrente a favor. Em 20 deMaio, ao pôr do Sol, a ilha de Tobago, aolargo do Orinoco, apareceu à vista porNoroeste, a vinte e duas milhas dedistância. O Spray aproximava-serapidamente de casa. Nessa noite,enquanto corria com a costa de Tobago,com vento fresco de feição, fiqueialarmado com o súbito alvejar de

rebentação pela amura de bombordo, enão distante. Orcei imediatamente para olargo e depois virei por davante paraaproar à ilha. Poucos instantes depois via-me de novo em cima de terra e voltei avirar para o largo, mas sem modificargrande coisa a marcação dos perigos.Mareasse como quisesse, parecia bemclaro que se conseguisse salvar as rochasseria por uma barba, e eu via comansiedade, tentando vencer a corrente,que perdia constantemente caminho.Assim continuaram as coisas, hora apóshora, enquanto eu ia olhando os clarõesque alvejavam a espaços regulares comoo quebrar das vagas dum mar lançado, eque cada vez pareciam mais próximos.Era evidentemente um recife de coral —disto não tinha eu a menor dúvida — eum recife mau. Pior ainda, podia haveroutros recifes em frente, formando uma

enseada para onde a corrente mearrastasse e onde o Spray ficasseensacado e acabasse por se perder. Nãonavegava nestas águas desde o meutempo de rapaz, e amaldiçoei o dia emque deixei entrar a bordo a cabra que mecomeu a carta. Rebusquei as minhasrecordações de coisas do mar, denaufrágios em recifes submersos e depiratas abrigados entre recifes de coralonde outros navios não podiam entrar,mas nada do que eu recordava seaplicava à ilha de Tobago, excepto onaufrágio do Robinson Crusoé, na novela,e isso pouca informação me facultouacerca de recifes. Só me lembrava, no casode Crusoé, que ele tratou de conservar apólvora enxuta. «Mas lá está ele outravez», gritei eu «e que perto está agora! Aúltima onda rebentou quase a bordo! Mastu estás a ir-te embora, meu velho Spray!

(*) O Bispo de Melbourne (encomendem-me às suas orações) recusou-se a dedicarum dia para pedir chuva, recomendandoaos seus fiéis que poupassem a águadurante a estação das chuvas. Do mesmomodo, o navegante poupa o vento dandoatenção ao barómetro. Está pelo través, agora! Mais uma vaga! e,oh, mais outra assim e vão-se-te embora aquilha e as balizas!» Dei-lhe umaspalmadas no painel de popa, orgulhosodo seu último e nobre esforço para fugirao perigo, mas nesse momento uma vagamaior que as outras, ergueu-o mais alto, eeis que do alto dela pude ver então .tudoquanto havia do recife. Deixei-me cairnum pandeiro de cabo, sem fala eestupefacto, mas nada desanimado, bempelo contrário. Pela lâmpada de Aladino!Pelo meu farol de pescador! Fora ogrande farol de Trinidad, a trinta milhas

de distância, relampejando sobre asvagas, que me iludira. A cúpula do faroldesaparecia agora no horizonte, e quemaravilhosa vista era aquela! Mas meucaro Pai Neptuno... tão certo como é euestar vivo, depois de uma longa vida nomar, e boa parte dela entre corais, haviade fazer uma declaração solene àquelerecife! Durante o resto da noite só virecifes imaginários e, sem saber em quemomento o barco podia cair em cima deum verdadeiro, bordejei para lá e para cá,tanto quanto possível sobre o mesmocaminho, até ao amanhecer; e tudo istopor falta de uma carta. De boa vontadepregaria ao convés a pele da cabra deSanta Helena. Depois, deitei para Granada, para ondelevava correio da Maurícia. Por volta dameia-noite de 22 de Maio, cheguei à ilha eancorei em frente da cidade de S. Jorge e

entrei o porto interior ao amanhecer de23, o que fez quarenta e dois dias deviagem desde o Caibo da Boa Esperança.Podia chamar-se a isto andar bem; evoltei a tirar o chapéu ao piloto do Pinta. Lady Bruce, numa carta que escreveupara o Spray, em Port Louis, dizia queGranada era uma ilha encantadora, egostaria que o barco ali fizesse escala naviagem de regresso. Quando o Spraychegou, descobri que já ali era esperado.«Como é possível?», perguntei. «Ora,soube-mos que esteve na Maurícia»,disseram-me, «e, da Maurícia, depois deconhecer «Sir» Charles Bruce, o nossovelho Governador, soubemos que vinha aGranada». Foi uma apresentaçãoencantadora que me pôs em contacto compessoas que merecia a pena conhecer. O Spray largou de Granada em 28 deMaio e correu a costa a sotavento das

Antilhas, chegando no dia 30 a Dominicaonde, à falta de conhecenças, fundeei naárea de quarentena; é que ainda mefaltava uma carta das ilhas, que nãoconseguira obter em Granada. Aqui, nãosó tive mais um desapontamento a esserespeito, como ainda estive para sermultado pelo engano no local daancoragem. Não havia navios quer naquarentena, quer no fundeadourocomercial, e não consegui perceber quediferença fazia fundear num ou noutrosítio. Mas um preto que veio ter comigo,uma espécie de delegado do harbour-master, entendeu que fazia e mandou-memudar para o outro ancoradouro que, naverdade, eu já tinha visto mas que não meagradou por causa da calema forte quevinha de fora. Por isso, em vez de meatirar à manobra para mudar de sítio,disse-lhe que tencionava largar do porto

logo que arranjasse uma carta, e pedi-lheque mandasse alguém para ma comprar etrazer. «Mas estou-lhe a dizer que tem dese mudar antes de comprar seja o quefor», insistiu ele, e, levantando a voz parase fazer ouvido de toda a gente queestava por ali, acrescentou: «E é já!».Ficou perdido de raiva quando osassistentes em terra começaram a rir àsocapa, vendo a tripulação do Spraycalmamente sentada na borda falsa emvez de içar o pano. «Estou-lhe a dizer queisto é a quarentena», berrou ele muitomais alto do que antes. «Está bem,general» retorqui; «quero ficar dequarentena, de qualquer modo». «Estábem, patrão», gritaram alguns da praia,«está bem; fica de quarentena»; outrosgritavam para o delegado «fazer mudar obranco ordinário dali para fora».Formaram-se dois partidos na ilha, um a

favor e o outro contra mim. O homemque fizera tanta zaragata acerca do caso,quando descobriu que eu queria ficar dequarentena desistiu e mandou chamarum mestiço muito importante que veiologo atracar ao Spray, todo engomado daboca ao lais. Veio de pé na embarcação,tão direito como um mastro — umassombro de importância. «Cartas!»gritei-lhe logo que o colarinho do sujeitoapareceu por cima do talabardão docúter, «tem cartas?» «Não, senhor»,respondeu, na sua dignidadeempertigada, «não, senhor; não se criamcartas nesta ilha». Sem duvidar dainformação, levantei ferro imediatamente,como tencionava fazer desde início, elarguei todo o pano em demanda de S.João, na ilha Antigua, onde cheguei a 1 deJunho depois de navegar todo o caminhoa meio canal, com as maiores cautelas.

O Spray, sempre em boa companhia,encontrou-se à entrada do porto com alancha das oficialidades, que trazia abordo «Sir» Francis Fleming, Governadordas Ilhas de Sotavento; com grandesatisfação de «toda a tripulação» doSpray, o Governador deu instruções aooficial encarregado da lancha para merebocar o navio até ao porto. No diaseguinte, Sua Excelência e Lady Fleming,acompanhados do Capitão Burr, R. N.,fizeram-me uma visita. Como tinhasucedido em Granada, puseram a sala dotribunal à minha disposição e umbrilhante auditório encheu o salão paraouvir uma palestra sobre os mares que oSpray cruzara e os países que tinha . . . .

CAPITULO XXI Desembaraçado para o regresso — Nazona das calmas — O mar coberto desargaços — O estai da bujarrona partidonum pé de vento — Recebido por umtornado ao largo da Ilha do Fogo —Mudança de planos — Chegada aNewport — Fim de um cruzeiro de maisde quarenta e seis mil milhas — O Spray,de novo em Fairhaven. No dia 4 de Junho de 1898, o Sprayrecebeu o desembaraço do consulado dosEstados Unidos, e a licença para navegarcom um só tripulante, mesmo à volta doMundo, foi-lhe devolvida pela últimavez. O cônsul dos Estados Unidos, Sr.Hunt, antes de me devolver o papel,escreveu nele, como fizera na Cidade doCabo o General Roberts, um brevecomentário sobre a viagem. O

documento, depois de transitar pelas viasoficiais, encontra-se arquivado noDepartamento do Tesouro, emWashington, D. C. Em 5 de Junho de 1898, o Spray largou doporto, direito ao Cabo Hatteras. Em 8 deJunho passou, de Sul para Norte,precisamente sob o Sol; a declinação doSol era, nesse dia, 22° 54', e o Sprayatingiu essa latitude justamente antes domeio-dia. Muitas pessoas crêem que ocalor é excessivo quando se tem o Sol àvertical. Não é assim necessariamente.Com efeito, o termómetro fica num pontosuportável onde quer que haja uma brisaou um encrespado no mar, ainda que setenha o Sol no zénite. Com frequência,sente-se mais calor nas cidades ou empraias de areia em latitudes mais altas. O Spray seguia alegremente para casa,fazendo as boas singraduras do costume

quando, subitamente, deu consigo nazona das calmas, e as velas ficaram-lhecaídas desoladamente no meio da calma.Já tinha quase esquecido esta faixa decalmas, ou acabara por a considerar comoum mito. Mas agora parecia-me coisabem real, e difícil de atravessar. Mas isto,afinal, era como devia ser; no fim decontas, depois das fortunas do mar, datempestade de areia da costa de África,da «chuva de sangue» da Austrália, e dosperigos da guerra no regresso, faltaria àviagem mais esta experiência se passassesem sentir as calmas destas latitudes. Deresto, não era inoportuna esta ocasiãopara uma atitude filosófica, de outromodo, a paciência poderia faltar quase àentrada do porto. O período de provaçãofoi de oito dias. Noite após noite, duranteeste tempo, lia os meus livros à luz deuma vela no convés. Não havia uma

bafagem, e o mar tomou-se espelhado emonótono. Durante três dias tive à vistaum navio, com todo o pano largo, imóvelno horizonte. O sargaço estendia-se sobre o mar emmolhos, ou curiosamente alinhado pelovento em longas faixas, ou agrupado emlençóis extensos; estranhos animaismarinhos, grandes e pequenos, nadavamjunto dele! O mais curioso que vi foi umpequeno cavalo-marinho que apanhei elevei para casa conservado num frasco.Mas em 18 de Junho, começou a soprardo Sudoeste e o sargaço depressa sedispersou em molhos e em faixas. Nesse dia levantou-se vento, até de mais.E outro tanto se pode dizer do mar. OSpray encontrava-se no meio daturbulenta corrente do Golfo e saltavacomo uma toninha por cima das vagasdesencontradas. Como se estivesse

tentando recuperar tempo perdido,parecia tocar apenas as cristas. Sob aqueleesforço e tão súbitos choques, o aparelhocomeçou a dar de si. Primeiro, a alça domoitão da escota do grande foi-seembora; depois, foi o moitão da adriça dopique que se soltou da carangueja. Era aaltura de rizar e reparar os estragos, elogo que «toda a gente» subiu ao convés,atirei-me à faina. 19 de Junho foi um dia de bom tempo,mas na manhã de vinte levantou-se umpé de vento acompanhado de vagascruzadas que se entrechocavam esacudiam tudo a bordo, numa grandeconfusão. Mesmo na altura em que estavapensando em reduzir pano, o estai dabujarrona partiu junto ao tope e caiu, coma bujarrona e tudo, na água. Causou-me amais estranha das sensações ver cair avela enfunada, e onde ela se encontrava

não avistar senão espaço vazio. Mas eu jáestava à proa, com a presença de espíritosuficiente para a pescar na primeira ondaque passou, antes que se rasgasse ou semetesse sob a quilha. Por todo o trabalhoque fiz naquele espaço de três minutos,ou menos, descobri que a viagem não metinha deixado com as articulações perras;de qualquer modo, o escorbuto ainda nãose tinha instalado em mim, e agora,apenas a três graus do porto de destino,podia bem completar a viagem, penseieu, sem a ajuda de um médico. Não haviadúvida, a saúde estava boa e euconseguia mexer-me com desembaraçono convés; mas conseguiria trepar? Ogrande Rei Neptuno experimentou-meseriamente nesta altura porque, com oestai partido, o mastro balançava comoum junco ao vento e não foi nada fácilsubir. Mas armei um teque com que tesei

o estai, depois de fazer arreigada ao topedo mastro, porque tinha a bordo moitõesde reserva e cabo com que fazer otrabalho. Pouco depois, já a bujarronarizada nos primeiros estava de novo apuxar como um cavalo a caminho decasa. Não estivesse o mastro do Spraybem aguentado e ter-se-ia ido emboraquando o estai rebentou. O cuidado quepus na construção do barco foi-mesempre de grande ajuda. Em 23 de Junho já eu ia farto, farto derajadas desencontradas e de mar mal-humorado. Durante dias e dias nãoavistei um só barco onde esperavaencontrar pelo menos uma ou outraescuna de vez em quando. Quanto aoassobiar do vento no cordame e o baterdo mar no costado, a coisa era bonita noseu género e não podíamos ter passadosem aquilo, o Spray e eu; mas aquilo já

era tanto, e demorou tanto tempo! Porvolta do meio-dia levantou-se umtemporal inverniço do Noroeste. Apesarde se estar em fins de Junho, o granizoaçoitava o barco e os raios saíam dasnuvens, não isoladamente, mas quase emcorrentes contínuas. Mas bordejando láconsegui aproximar-me da costa. No dia 25 de Junho, em frente da Ilha doFogo, caí no meio do tornado que, umahora antes, bombardeara a cidade deNova Iorque com raios quedesmantelaram edifícios inteiros ereduziram árvores a estilhas; até algunsnavios rebentaram as amarras, nas docas,e esmagaram-se contra outros navios,provocando estragos incalculáveis. Foi ovendaval culminante da viagem, maspercebi do que se tratava a tempo de oreceber em árvore seca. Mesmo assim,quando chegou a primeira rajada o cúter

estremeceu todo e adornou, de mávontade, a ficar com as cobertas a prumo;mas filou ao vento, com um drogue largopela proa, adriçou-se e fez frente aotemporal. No meio da tempestade, nadamais podia fazer que olhar em volta; queé o Homem perante tamanho vendaval?Já tinha visto uma trovoada durante aviagem, ao largo da costa de Madagáscar,mas não fora nada que se parecesse comesta que durou muito mais tempo,enquanto os raios caíam no mar a toda avolta. Até esta altura, eu ia em demanda deNova Iorque; mas quando a tempestadepassou, levantei-me, dei velas, virei obarco em roda e, de amuras a bombordo,deitei para um porto sossegado parapensar calmamente; assim, enquanto obarco seguia a um largo com o panorizado a caminho de Long Island, sentei-

me a pensar e a olhar as luzes dos barcoscosteiros que se começavam a avistar.Apossaram-se de mim recordações daviagem já quase tão perto do seu termo.Vinham-me à memória toadas quecostumava cantarolar vezes sem conto, eencontrei-me a repetir fragmentos de umhino tantas vezes cantado por umapiedosa mulher de Fairhaven, enquantoeu reconstruía o Spray. Ouvia uma vezmais, mas uma vez só, na sua solenidadeprofunda, as palavras metafóricas : Soubatido e levado por vagas e vento. E, depois: Mas o meu pequeno navio vence, mesmoassim, os ventos trovejantes e as vagastempestuosas. Depois desta tempestadenão voltei a ver o piloto do Pinta. As experiências da viagem do Spray, quese estendiam por três anos foram paramim como a leitura de um livro; e de um

livro que se tornava cada vez maisinteressante à medida que o folheava.Chegava agora à última página, a maisinteressante de todas. Quando rompeu o dia vi que a côr domar mudara de verde escuro para verdeclaro. Lancei o prumo e achei fundo pelastreze braças Avistei terra pouco depois,algumas milhas a Este da Ilha do Fogo;daqui, deitei para Newport correndo acosta sob uma brisa agradável Passado otemporal desfeito, o tempo estava agoraextraordinariamente belo. O Sprayrondou Montauk Point ao princípio datarde; Point Judith estava pelo través aoescurecer; cheguei a alturas de Beavertaila seguir. Daqui para diante tinha maisum perigo a passar - o porto de Newportestava minado. O Spray passou pegadocom as rochas, por onde não podia passaramigo ou inimigo que calasse muita água,

e por este caminho não iria perturbar onavio que guardava o canal. Era fazer abarba às rochas, mas era mais seguro ircosido com as rochas que com as minas.Ao passar por um ponto baixo damargem em frente do navio-guarda, ovelho e caro Dexter que eu conheciamuito bem, ouvi alguém a bordo gritar:«Vai ali um barco!» Mostrei logo uma luze ouvi o brado «Ó do Spray!» Era a vozdum amigo e eu sabia que um amigo nãoia disparar contra o Spray. Folguei aescota do grande e o Spray fez cabeçapara os faróis do porto interior. Entrou,finalmente, no porto em boa ordem, e àuma hora da manhã de 27 de Junho de1898 lançou ferro, depois de um cruzeirode mais de quarenta e seis mil milhas emvolta do Mundo, e de uma ausência detrês anos e dois meses, e mais dois diaspara chegar à cidade.

A tripulação estava bem? ou não estava?Lucrara, em vários aspectos, com aviagem. Até engordara; na realidadepesava mais meio quilo que quandolarguei de Boston. Quanto a envelhecer,ora, o relógio da minha vida tinhaandado para trás, e todos os meus amigosdiziam «o Slocum está outra vez umrapaz». E estava; estava pelo menos dezanos mais novo que no dia em quederrubei a primeira árvore para aconstrução do Spray. Também o navio estava melhor quequando largou de Boston para a longaviagem. Estava rijo como o ferro eestanque como o melhor navio doMundo. Não fazia uma gota de água —nem uma gota! A bomba que poucoservira antes de chegar à Austrália, nãoteve sequer que ser armada depois disso.

O primeiro nome inscrito no livro devisitas do Spray, ao chegar ao porto dearmamento, foi o de quem sempre disse:«O Spray há-de voltar». O Spray nãosossegou enquanto não se fez de velapara a sua terra natal, Fairhaven,Massachussets, lá mais para diante. Eumesmo sentia o desejo de voltar ao lugaronde tudo começara e a partir de onde,como já disse, entrei de rejuvenescer. Porisso, em 3 de Julho, com vento de feição, omeu barco seguiu alegremente ao longoda costa e subiu o Rio Acushnet atéFairhaven, onde o amarrei ao poste decedro que espetara na margem para oprender quando foi lançado à água. Nãoo podia levar para mais perto de sua casa. Se o Spray não descobriu continentesdurante a viagem, foi talvez porque jánão há continentes a descobrir. Nãoaspirava por novos mundos nem queria

navegar para fazer alarde' dos perigos domar. O mar tem sido muito caluniado.Descobrir o caminho para terras jádescobertas, é uma bela coisa, e o Spraydescobriu que mesmo o pior dos maresnão é uma coisa terrível para um barco deboas qualidades. Nenhum rei, pais outesouro pagou fosse o que fosse para aviagem do Spray e ele realizou o queempreendeu. Mas para se conseguir, seja o que for, temde se lançar mão ao trabalho comconhecimento de causa e tem de se estarpreparado para todas as contingências.Ao olhar para trás, neste meu modestofeito, vejo um jogo não muito rico deferramentas de carpinteiro, um relógio delata e algumas tachas de pregar carpetes,que me facilitaram a empresa do modoque já citei na história. Mas acima de tudoquanto possa referir, vejo alguns anos de

escola em que estudei com diligência asleis de Neptuno; e foi a essas leis queprocurei obedecer. Valeu a pena. E agora, sem ter fatigado os meus amigos,espero eu, com descrições, teorias oudeduções científicas pormenorizadas,quero só dizer que procurei apenas narrara aventura em si mesma. Feito isto àminha modesta maneira, amarro o navio,seguro-lhe a amarra com abitadurainteira e deixo o Spray, por algum tempo,em porto seguro. . . . . . . . . .

APÊNDICE O que sei da sua genealogia — As linhasdo Spray — Qualidades de auto-governo— Plano vélico e aparelho do leme — Umfeito sem precedentes — Uma últimapalavra dirigida a navegantes empotencial. Perante o sentimento geral dedesconfiança relativamente aos velhosmarinheiros, procurei evitar nos capítulosprecedentes, que preparei para publicarno «Century Magazine», entrar nospormenores da construção do Spray e dosmétodos primitivos que segui na minhanavegação. Sem ter a mais leveexperiência da náutica de desporto, nãopodia calcular que, dos barcos elegantesque se vêem nos nossos portos ou juntoda costa, nem todos podiam fazer omesmo que o Spray, navegando, por

exemplo, a um rumo com o lemeamarrado. Sabia que nenhum outro barco navegaradeste modo em volta do Mundo masrepugnarme-ia dizer que nenhum outroseria capaz de fazer outro tanto, ou quenenhum homem tivesse navegado, embarco de um dado tipo, tão longe quantoquisesse e do mesmo modo. Senti-me,portanto, muito divertido ao ouvir umperito afirmar redondamente que a coisafora impossível. O Spray em que naveguei era um barcocompletamente novo construído a partirde um cúter do mesmo nome, que,segundo ouvi dizer, andara na pesca dasostras, há cerca de cem anos atrás, nacosta de Delaware. Não se encontrouqualquer registo na Alfândega dalocalidade em que foi construído ooriginal. Pertenceu, depois, a alguém de

Noank, Connecticut, esteve mais tardeem Nova Bedford, e quando o CapitãoEben Pierce mo ofereceu, no fim na suacarreira natural, encontrava-se varado eescorado num campo de Fairhaven, comojá tive ocasião de dizer. Crê-se que as suaslinhas fossem as de uma embarcaçãopescaresa do Mar do Norte. Aoreconstruí-lo, madeiro por madeiro etábua por tábua, acrescentei-lhe à bordalivre 12 polegadas a meia nau, 18polegadas à proa e 14 polegadas à popa,aumentando--lhe assim o arrufo da linhade borda e tornando-o, segundo creio, ummelhor barco para o mar. Não tencionorepetir a história da reconstrução doSpray, que já descrevi em pormenor noprimeiro capítulo; direi apenas que,depois de acabado, ficou com asseguintes dimensões:

36 pés e 9 polegadas de fora a fora, 14 pése 2 polegadas de boca e 4 pés e 2polegadas de calado; a tonelagem líquidaera de 9 ton., e tinha 12,70 ton. dearqueação (1). É com muito gosto que reproduzo aqui aslinhas do Spray, às quais junto assugestões que o meu limitadoconhecimento da navegação em barcoslatinos me permite. A minha vida do marfoi quase toda passada em barcos e outrosnavios redondos. Não se pouparamcuidados para as traçar com rigor. OSpray foi levado de Nova Iorque paraBridgeport, Connecticut, e aí, sob asupervisão do Park City Yacht Club, foiposto em seco e medido cuidadosamenteafim de se obter o traçadoescrupulosamente certo. O CapitãoRobins construiu o modelo. Os jovensdesportistas que velejam em «açucenas

do mar», naturalmente, não pensarãolisonjeiramente do meu barco. Têm odireito de ter a sua opinião, mas euagarro-me à minha. Farão certamenteobjecções aos seus pequenoslançamentos, mas a verdade é que sãomuito vantajosos com mar grosso. Poder-se-iam arrumar de modo diferentealgumas obras do convés do Spray, semque isso afectasse o barco de formapalpável. Não havia, por exemplo,inconveniente, se o barco se destinasse auma tripulação mais numerosa, emconstruir a cabina a meia nau, em vez dese instalar tanto à ré como a minha; talcomo está, o espaço entre a roda do lemee a contra-braçola do rufo é muitoreduzido. Dizem alguns que eu podia teraperfeiçoado as formas da popa.

(*) E o deslocamento, em toneladasmétricas, era de 16,16 ton. Não sei se assim é. A água corre ao longodas linhas de saída, deixando-as depoisde ter dado apoio ao casco até à últimapolegada, e não se forma sucção porefeito de um caimento excessivo. Os marinheiros de águas abrigadasdizem: «Mas onde estão os lançamentos?»É que nunca atravessaram a Corrente doGolfo debaixo do nordeste, e não sabem oque é melhor para todo o tempo. Sealguém tiver amor à vida, não queira umapopa de pato larga num navio que vápara o alto. Assim como um marinheirojulga o navio que comprar com umasimples olhadela — se é que estásuficientemente interessado para olharpara ele — assim eu julguei o Spray e nãome enganei.

O Spray fez parte da viagem, de Bostonao Estreito de Magalhães, armado emcúter, e teve assim ocasião deexperimentar diferentíssimas condiçõesde tempo. A armação de iole que entãoadoptei foi uma melhoria só na medidaem que reduziu a área duma vela grande,um tanto pesada, e melhorouligeiramente as qualidades de governo dobarco à bolina. Quando o vento sopravapara a ré do través não largava a catita;nessas condições deixava-a invaria-velmente ferrada. Com a retranca bemfolgada e o vento duas quartas pelaalheta, o Spray não se desviava um cabelodo seu rumo. Não levava muito tempo adescobrir o leme que era preciso paramanter o barco num dado rumo; assimque o descobria bastava-me amarrar aroda nessa posição. Depois, era a velagrande que o governava, e a bujarrona,

com a escota bem caçada ou ligeiramentefolgada a um ou outro bordo, contribuíagrandemente para compassar o barco.Por vezes, se o vento soprava forte eigual, ou de rajadas, largava uma gibaamurada a um pau disparado pelo dabujarrona, com a escota toda caçada, oque era seguro de fazer mesmo comventos muito duros. Foi necessário usaruma carregadeira à boca da carangueja;sem ela o pano grande não vinha abaixoquando o queria arriar sob vento. O lemecom que governava variava com a forçado vento e sua direcção. Mas todos estesdetalhes se apanhavam depressa com aprática. Em poucas palavras, direi apenas quequando navegava à trinca com ventosfracos e com todo o pano, o barco quasenão tinha tendência para o ló. Se o ventoespertava, punha o leme de encontro,

mais ou menos uma malagueta, e tornavaa amarrá-lo. Seria um prazer responder a perguntasque se referissem a todos os pormenores,mas isso sobrecarregaria demais o livro.Só posso aqui dizer que muita coisa surgecom a prática e que, para quem tinhaamor pela vela, depois da experiência é oengenho o melhor professor. Dispositivospara poupar trabalho? Não havianenhum. As velas eram içadas à mão; asadriças gorniam em moitões alceadosvulgares, com rodas de patente vulgares.Todas as escotas davam volta em cunhos,à ré, evidentemente. Para a manobra da amarra, utilizava umguincho. Tinha três âncoras, de 40, 100 e180 libras, respectivamente. O guincho, aâncora de 40 libras e a «carranca» oufigura de proa que se erguia no extremoda roda de proa, pertenciam ao Spray

original. O lastro, de betão, estavafirmemente arrumado no fundo doporão, e não havia ferro, chumbo ouqualquer outro peso na quilha. Se alguma vez lhe tirei medidas à régua,nunca tomei nota delas, e mesmo no finalde tão longa viagem não era capaz dedizer de repente o comprimento domastro, da retranca ou da carangueja.Quanto ao centro vélico não sabia nadadele a não ser que me servia muito bemna prática, no mar, mas isso não era coisaque me preocupasse. Mas os cálculosmatemáticos ficam bem num bom barco,e o Spray estava em condições de osaguentar. Casco e pano facilmente secompassavam. Alguns capitães, velhos e experimen-tados, têm perguntado como era possívelo barco navegar com ventos da popa semfugir do rumo, proeza que o Spray tez

durante semanas a fio. Um dessescavalheiros' um capitão muitoconceituado e amigo meu, declarou comoperito do Governo num famosojulgamento por homicídio, em Boston, enão há muito tempo, que um navio nãomanteria o rumo o tempo suficiente parao timoneiro largar o leme e cortar opescoço ao capitão. Normalmente seriaassim mesmo. Mas na altura da tragédiaem questão, navegava o Spray em voltado Mundo sem ninguém ao leme, exceptodurante raros períodos de tempo. Masdevo dizer que isto nada tem a ver com ocaso de homicídio, de Boston. Com todasas probabilidades, a Justiça deitou a mãoao verdadeiro celerado. Por outraspalavras, tratando-se de um casco earmação semelhantes aos do naviotrágico, teria testemunhado como o

fizeram os peritos náuticos nojulgamento. (*)Nota: As linhas a cheio representam oplano vélico do Spray ao largar para aviagem. Foi com este plano queatravessou o Atlântico até Gibraltar, e deGibraltar ao Brasil. Em águas sul-americanas encurtou-se-lhe a bujarrona ea retranca e acrescentou-se a catita; comesta nova armação de iole, indicada atracejado, realizou o Spray o resto daviagem. A primeira vela da vante é umagiba que se largava ocasionalmenteamurada a um bambu ligado ao pau dabujarrona. Não se indica neste desenho aforma como se arvorava e aguentava omastro da catita, mas pode ver-se isso emparte nos outros desenhos. Mas veja-se a rota que o Spray fez da Ilhade Quinta-feira até às Cocos-Keeling,duas mil e setecentas milhas em vinte e

três dias sem ninguém ao leme, de portoa porto, excepto durante cerca de umahora. Na História do Mundo, nenhumoutro navio, em condições semelhantes,realizou tal proeza em rota batida, numatão longa travessia. Mas foi um deliciosopasseio de Verão. Só os que já oexperimentaram fazem ideia do prazerque é navegar sobre os grandes oceanos.Para se experimentar o extraordinárioprazer de navegar em volta do Globo,não é necessário viajar sozinho, mas poruma só vez e pela primeira vez, viajarsozinho foi extremamente agradável. Omeu amigo perito do Governo, o maissalgado de todos os capitães do marsalgado, só por ter ontem pisado o convésdo Spray, convenceu-se das suasqualidades extraordinárias e falou comentusiasmo em vender a quinta que temem Cape Cod e voltar para o mar.

Aos jovens que sonhem com uma viagem,digo-lhes que vão. As histórias sobre osmaus tratos são quase somente exageros,como o são também as histórias dosperigos do mar. Tive uma razoávelaprendizagem nos chamados «naviosduros», no duro Oceano Pacífico e, dosanos que lá passei, não me lembro deuma só vez ter perdido a cabeça. Devotambém o aprendizado aos oficiais detodos os navios em que servi, quandorapaz e quando homem, e posso dizerque nunca algum deles levantou sequerum dedo para mim. Não vivi entre anjos,mas entre homens capazes de seencolerizar. No entanto, o meu desejo foisempre agradar aos oficiais do meunavio, fosse ele qual fosse, e consegui-o.Perigos, há-os no mar, é certo, como os háem terra, mas a inteligência e a habilidadeque Deus dá ao Homem reduzem-nos a

um mínimo. E por fim, voltamos àquestão do barco que terá de sersabiamente ideado para navegar sobre osgrandes oceanos. Fazer frente aos elementos, sem dúvida,não é coisa insignificante quando o marentra em fúria. É preciso então conhecer omar, saber que se conhece, e não esquecerque foi feito para se navegar por cima. Nos planos do Spray, apresentei asdimensões de um barco que considero deboas qualidades náuticas em todas ascondições de tempo e mar. Mas a verdadeé que para se poder conseguir algo derazoável deve também a experiência ir abordo. Poderei um dia descobrir motivos paraalterar o modelo do velho e queridoSpray, mas de acordo com a minhalimitada experiência, não posso senãorecomendar as suas linhas sadias que

considero bem preferíveis, por questõesde segurança, às dos barcos rápidos derecreio. Praticar num barco como o Sprayé uma boa aprendizagem para jovensmarinheiros, e uma boa preparação paranavios de maior posse. Eu próprioaprendi mais de marinharia no Spray doque a bordo de qualquer outro navio emque andei embarcado; e quanto apaciência, a maior das virtudes, mesmoao longo dos braços do Estreito deMagalhães, entre o continente ameaçadore o Fogo lúgubre, onde tive de governar obarco na mais intrincada das rotas,aprendi a sentar-me ao leme horasseguidas, e a contentar-me em fazer dezmilhas por dia contra a corrente; equando se perdeu todo o .trabalho de ummês, ainda me conseguia lembrar dealguma toada para ir cantarolandoenquanto repetia a rota já percorrida,

navegando, como da primeira vez, contravento e corrente. Nem as trinta horas aoleme, no meio de tempestade, forambastantes para pôr à provaexageradamente a minha resistência; edeitar a mão a um remo para tomarporto, em calma podre, não foiexperiência estranha para a tripulação doSpray. Os dias correram alegres em todosos lugares por onde o meu navio singrou.