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FLORIANÓPOLIS SC 2013 Fabio dos Santos Morais SITE SPECIFIC um Romance

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FLORIANÓPOLIS SC2013

Fabio dos Santos Morais

SITE SPECIFICum Romance

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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO ELABORADA JUNTO AO PROGRAMA DE PÓS!GRADUAÇÃOEM ARTES VISUAIS - MESTRADO, CEART/UDESC,

PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM ARTES VISUAIS.

ORIENTADORA: PROFA. DRA. REGINA MELIM

Fabio dos Santos Morais

FLORIANÓPOLIS SC2013

SITE SPECIFICum Romance

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FLORIANÓPOLIS, 30 DE JULHO DE 2013.

ORIENTADORA: PROFA. DRA. REGINA MELIM

PROFA. DRA. MARIA ANGÉLICA MELENDI

PROFA. DRA. RAQUEL STOLF

CEART/UDESC

EBA/UFMG

CEART/UDESC

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO ELABORADA JUNTO AO PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃOEM ARTES VISUAIS - MESTRADO, CEART/UDESC,

PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM ARTES VISUAIS, NA LINHA DE PESQUISA PROCESSOS ARTÍSTICOS CONTEMPORÂNEOS.

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RESUMO

O objetivo desta pesquisa de mestrado foi cercar de possíveis definições o termo “literartura” - um termo que, mais que querer cunhar, percebo na leitura de vários textos citados na pesquisa - e, a partir dele, produzir a obra literartística

. Para isso, foram pesquisadas obras que creio serem exemplos de literartura e, através desses exemplos, penso ter se insinuado uma definição. Estas obras formam um diálogo entrecruzado no próprio tecido textual de , texto que funde obra prática e dissertação de mestrado num só corpo.

Sempre desconfiando de que definir seja estranho a qualquer prática no campo da arte, sobretudo para um artista, esta vontade de definir o termo “literartura” me foi satisfeita ao produzir um texto onde pude experimentá-la: é minha crença de que cada obra (re)define em si o(s) gênero(s) a que pertence.

Assim, é minha experimentação e meu único modo possível de expressar o que penso, e sinto, ser literartura.

PALAVRAS CHAVES Literartura, Arte, Texto, Experimentação

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ABSTRACT

The goal of this research has been to encircle the term “literarture” with a number of possible definitions. The idea was less to coin a new term than to apply in writing what I perceived to surface already in various texts cited in this research in order to produce the literartistic piece Site Specific, a Romance. Its production consisted of delving into pieces I believe to be examples of literarture, and from the cross-referential dialogue established between them within the textual tissue of Site Specific, a Romance, I trust to have insinuated a definition to the term. Site Specific, a Romance is a text that fuses art praxis and academic dissertation in one single body.

Always suspicious that the act of defining is foreign to any practice in the field of art – especially to an artist – the will of defining “literarture” was nevertheless satisfied in producing a text where I could experiment with it: it is my belief that every work of art (re)defines in itself the genre(s) to which it belongs.

As such, Site Specific, a Romance is my experimentation and the only possible means I have to express what I think to be, or feel to be, literarture.

KEYWORDS Literarture, Site Specific, Art, Text, Experimentation.

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SITE SPECIFICum Romance

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SUICIDE

A b c d e fg h i j k lm n o p q rs t u v wx y z

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Z Y X W V U T S R Q P O N M L K I H G F E D C B A

Z A(elementar)

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ESPAÇO EXPOSITIVO, 17 PLANTA BAIXA, 19 READY-MADE, 21 VÍDEO, 23 NON-SITE, 25 SITE SPECIFIC, 29 HACHURA, 35 INSTALAÇÃO, 43 VELATURA, 46

A COLUNA INFINITA, 93

TEXTO DE PAREDE, 98

PLANO DE MONTAGEM

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ESPAÇO EXPOSITIVO

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ee ão oia eee. ue e oo ãooe oaua o ue ê ee u íio e ioiiiae. á

Eu oaa aa o oo aio oee, ua ee oaa e ee e oeio e íuo, oeo o óioao, auea aa aa uiaa, e aaa-o aeuao oee a i oeeo e ciuea. , eu ie êao e o ee iu aa eo, e eee. ee ouía u eio úio e iiui o eo a iuias o uo a aa o oo. Euiiaa uoo eeâia e, uao aaiaa aa eoe o o ão, eiaa aiuo, uo, uio, iaa ó o ao a oea.

ee é ia aa a uaiae. O ia e ue eei io, ue eo e o oo eaiaos ou a eouões eias ee é ia aa o uo, ae ee ee eaaóia, oi ee e iíi eee ue e aou a ia uao o aoioíe e, a ua, á ea o oeio ia, á aeaa aa eo aoua áea aeáe o uo.

. Mstr n pd ntndr. Qm tm snhs n pd cmpctr cm qm v nls m mnm d mpssbldd.

lhv pr crp frnzn d Mstr, s mnt ltd d tss cncts m crcl, mrdnd prpr rb,ql brb rl spn, chv- dqd smnt ml nvcnts cnqnt. , dss bbd Mstr r pr dntr, sm ntndr. Mstr pss m jt nc d dstrbr ps ds njstçs d mnd n trm ds sss. qulbrv tdcm lgnc , qnd bxv pr sclhr s LPs n ch, dxv cr td, td, tdnh, fcv s slt d cstl.

Mstr vtl prhmndd. d m q prcbr ss, q msm sm s snhs rlzds s rvlçs fts l vtl pr mnd, tlvz l ntr mprn, ps dv sr dfcl prcbr q s pss vd ltnd pr lg mpssvl , lt, j r bjtv fnl, j ltrv pr mlhr pcr ltrvl d mnd.

PLANTA BAIXA

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Ceci n’est pas une littérature. “This work originated from my fear of losing" everything. This work is about controlling my own fear. My work cannot be destroyed. I have destroyed it already, from day one. The feeling is almost like when you are in a relationship with someone and you know it’s not going to work out. From the very beginning you know that you don’t really have to worry about it not working out because you simply know that it won’t. The person then cannot abandon you, because he has already abandoned you from day one - that is how I made this work. That is why I made this work. This work cannot disappear. This work cannot be destroyed the same way other things in my life have disappeared and have left me. I destroyed it myself instead. I had control over it and this is what has empowered me. But it is a very masochistic kind of power. I destroy the work before I make it”, por Feliz Gonzalez-Torres. SPECTOR, Nancy. . New York: Guggenheim Museum Publications, 2007, p. 122.

"BISHOP, Elizabeth. New York: Farrar, Straus & Giroux, Inc, 1983.

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READY -MADE 1 2

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Em meio á fuga de côres, familiares rejuvenescidos permanecem fixados nas photographias dos annos 1970. Por traz da criança mais velha, o pai de costelletas accende a vela de tres annos. Sua mão está parada no ar emquanto o tom de sua pelle desbota rumo á monochromia magenta. A criança mais nova não está nestas photographias porque o encontro das duas é sómente d’aqui a tres decadas. Além d’isso, o outro garoto nasce seis mezes depois do anniversariante começar a se descolorir n’estas imagens reveladas tres dias apos a festa. Os dois garotos se conhecem na epocha em que as photographias já não são physicas, são códigos: envelhecem por effeitos de photoshop que, artificialmente, antecipam a mesma melancholia magenta dos thios bêbedos que, presos á descoloração analogica, desligam a vitrola laranja e puxam um parabem p’ra você, no anniversario do mais velho. Os dois garotos se conhecem, sessenta annos se passam, e são muitas as imagens dos dois que restam intactas em cantos da internet, HDs, CDs, DVDs, pen drives ou nos depositos onde esse lixo jaz superado. O mais velho está ha dias entubado pela medicina. O mais joven, embora bastante idoso, vai até a distante casa do mais velho para vasculhar albuns antigos, escolhe uma photographia setentista e a leva clandestinamente á UTI. D’esse modo, o môfo vence o codigo e o mais velho consegue morrer.

VÍDEO

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iogurte de ameixaqueijo minasrequeijão lightrizzoli quatro queijosgorgonzolacamembert ou brie (+ barato)pão integral de castanha do Parápão suecobiscoito de polvilhotorrada integral lightcookie de granolagranolabelisquete pra laricacaféchocolate amargopapaiaperaameixamorangolaranja-peralimãolichiamelão (meio)tomate cerejaberinjelaabobrinhamandioquinhabeterrabacenouraabóborapepinobrócoliscouvealfacerúculacebolaalhoalho porópimenta (com moedor)coentro (com moedor)noz moscada (com moedor)manjericãoazeite de oliva

NON-SITE

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tahinechampignonshoyosalmostardalentilhaarroz sete grãosarroz catetofarinha pra tabulegrão de bicosuco de mangaágua com gásbrejaEncuentro (ou espumante)protetor (gel 15 e creme 30)sabonetexampu (1 cabelo seco e 1 cabelo normal)pastabarbeador (pacote com 4)espuma de barbear (1 Nivea e 1 Gillette)cotonetepapel higiênicodesodorantedetergente glicerinaamacianteomodesinfetantepilha AAAfósforovelacandelabro (????) – se o design for bacanasulfite A4bic preta e azulcadeira de praiamala pequena com rodinhalâmpada 40wlâmpada friachuveiro (ver preço)repelentedetefoncopo americano (4)gérberas (1 girassol)grana pro táxi

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SITE SPECIFIC

e cê tivesse providenciado socorro e guarda-chuva, ninguém persistiria cuspindo aquela tempestade na cara de ninguém. o resgate teria acontecido sob o toldo e nem precisaria lamber a goteira na têmpora. têmpora tâmara tamarindo taí: tariaí: palavra-bibelô picabiaria rastaquerice. o corpo quente fulminaria a umidade sob o guarda-chuva, a temperatura individual destoaria do redor. cê o pé se afogaria na poça cê a barra do jeans secasse a ferro. cê houvesse tábua de passar, fingiria aquecimento central europeu na cidade tropical. cê sentiria no ar eslovaco? praga, não. o bairro seria toldo inarquitetura. o jeans seria pendurado na parapanturrilha da janela. depois, o fracasso molhado e poluído o forçaria para trás da geladeira. quem resistiria ao desfile sem jeans na cozinha? aguardaria a calça seca e, mesmo que houvesse súplica, não faria tradução simultânea de en relisant ta lettre do gainsbourg. pra quê? cê entendesse português... seminus são mais burros perto da pia. cê tivesse havido compreensão do que é um erro, fosse ortografia ou indelicadeza, existiria essa instalação d’água na chuva? e cê tivesse comprado camisa com listra vertical, ninguém ficaria disfarçando barriga by bouteille de bière buren. o adiposo teria se escondido atrás da modelagem e nem precisaria fingir gravidez no chalé. chalé chopp chinelo cheuvê: choveri’aí: feriado chuvoso enchaleraria pas des deux. a toalha mofada azedaria o prazer do banho, o sétimo miojo encruaria a tripa. cê o valete se ofereceria pro rei cê a dama se escondesse na manga. cê trapaceasse o manual de instrução, voltaria no último caiaque via rodoviária-enchente. cê arrependeria no primeiro chumaço de serra? chi, não. treta de viagem não surubaria serra. o vai tomar no cêu cu seria escrito com vapor de serração no vidro da poltrona trinta e três. depois, o palavrão picharia o box com o hálito do chuveiro. quem corrigiria os erros ortográficos dos desaforos? socaria o pé na porta e, mesmo que xingasse a árvore genealógica, não arremessaria mochila com laptop. pra quê? cê fosse a renata sorrah... possessos quebram coisas antes de liquidarem o carnê. cê tivesse arrancado o coringa, fosse da manga listrada ou de trás do mullet, terminaria sozinho esse fim de feriado? e cê tivesse fofocado no tom certo, ninguém amanheceria encarando personagem de comédia bate-portas. a intriga teria ficado no capítulo de segunda e nem precisaria trazer conflito aqui pra casa. aquipracasa quipracasa quiproquó quiproquo’raí: quiproquo’rariaí: os pensadores explicaria pegapacapá aristotélico. personagem a duelaria donzela do personagem z, zorro falso meteria a colher e o pau. cê o olho roxo se recuperaria com pepino cê a geladeira fosse à feira livre. cê assistisse a glória peres, desfecharia o drama pela felicidade final da glória pires. cê renderia à baixa cultura carioca? caraca, não. o funk asfixiaria direito à melancolia. o arrependimento seria coado na ressaca moral sem açúcar. depois, a explicação do inexplicável sapucairia enredo rumo à coleção julia ou sabrina. quem photoshoparia hematoma em capa de bestseller brinde de omo? atenderia o celular e, mesmo que tramasse cena, não alongaria perna curta de mentira maneta. pra quê? cê pecasse o capital... pinóquios crescem no

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que não precisa. cê tivesse inventado mentira branca, fosse pra melodrama ou pra melacomédia, choderlos de laclos’aria blondice glenn close? e cê tivesse atrasado conforme manual de etiqueta, ninguém estaria começando nada pelo meio. o drama teria antecipado saída de incêndio e nem precisaria relógio pra contar segundo. segundo cê gundo cê mulo cêmulaí: cê mulariaí: emburrado empacaria catraca. projetista cancelaria propaganda, pós letreiro inicial calaria papo pré sessão. cê o bilhete seria objeto de desejo cê quinze atrasados se acotovelassem na fila. cê vendesse entradas pro meio, compraria outro filme do lado de lá d’augusta. cê revelaria bom cambista? caramba, não. ingresso perdido confestaria asfalto e cabelo. cartaz francês arrombaria mais dezoito de saldo negativo. depois, a bláblázeria française exigiria boteco e nove cervejas. quem suportaria calado a rabugice do hemisfério norte? imitaria falatório europeu e, mesmo que admitisse infilosofia portuguesa, não esqueceria o conceito de terceira saidera. para quê? cê mijasse tudo de uma vez... alcoolizados usam mijo e cigarro para desfile noturno. cê tivesse se ausentado dez minutos depois, fosse pra wc ou pra fumar lá fora, flertaria segundos terceiros e quarto? e cê tivesse analisado a planta da sala, ninguém teria insistido em remover a coluna do meio. a teima teria reforçado o capricho visual e nem precisaria assumir fama de mal-humorado. mau humor malumor malamado peraí: perariaí: mores e humores oswaldiaria haroldice. a picareta surgiria da mochila, a marreta avolumaria a mala. cê o golpe arrancaria naco da coluna cê o edifício não exagerasse concreto. cê tivesse trator no muque, desabaria estuque no boné de time. subiria no lustre? saco, não. o desabamento lustraria rumo ao chão. a tragédia só seria evitada na rigidez da coluna. depois, o fracasso invencível devolveria instrumentos pra mala e mochila. quem conviveria com esteira de bagagem passando pela sala? amaldiçoaria a arquitetura e, mesmo que houvesse explicações, não reconheceria a culpa da engenharia. para quê? cê tivesse profissão... turistas não percebem ritmo cotidiano. cê tivesse eliminado andares na planta, fosse por medo de desaba ou deslizamento, casaria somente na defesa civil? e cê tivesse regado antúrio e samambaia, ninguém madrugaria sonambulando em prol do oxigênio da casa. o verde teria colorido desde o capacho e nem precisaria unhar a remela no ceasa. ceasa cê asa cê acha cê achaí: cê achari’aí: achismo mataria verde por sede. falta de regador secaria terra grudada na raiz, o metido a jardineiro fracassaria em palha. cê o cactus viveria solitário cê a horta não contrabandeasse goteira de chuva. cê houvesse diabo verde, adubaria os daninhos e os cogumelos pro talharim. cê mestrecucaria depois da colheita? ulálá, não. comida enlatada comes’e’beberia velório de hortaliça. planta seca seria ensacada pro lixeiro de terça. depois, multidão de minhocas promoveria festinha na varanda. quem bancaria o sem-terra arando a jardineira? despertaria às quatro da matina e, mesmo que bocejasse desistência, não abriria mão do ceásico passeio pré-sol. para quê? cê sonhasse dormindo... sonâmbulos nunca batem a testa em nada. cê tivesse matado a sede dos

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outros, fosse antúrio ou retirante de cena, espreguiçaríamos preguiça sob o pôr da lua? e cê tivesse cantado com banquinho e violão, ninguém continuaria pagando pato cuém-cuém. o swingnificado teria amolecido esqueleto e nem precisaria pigarrear cantoria em merz. merz, mrz, mmrrzz, mmmrrrzzz’aí: zzzzzzzzzari’aí: sonata-de-som-primitivo cochilaria melodia. o me-dá-um-dinheiro-aí LP’aria gringo no carnaval, dadaísmo alemão cinzearia quarta-feira monocromo. cê o refrão pigarrearia alalaô-lalaô-lalaô cê o llllll fosse rrrrrr com máscara de cebolinha. cê engaiolasse carcará, ganharia vida no disfarce de realejo. votaria em partido apolítico ppp? pqp, não. o gago toparia um top-top uuh. a plateia se encarregaria do lá-ihhh, lá-ihhh. depois, o bis bis bis voltaria com batimacumba em feira de mangaio. quem se lembraria de neném nadando com dólar? explicaria a confusão de nomes e, mesmo que entendesse lhufas, não trocaria schwitters por cobain. para quê? cê dadasse seattle em sampa... alemães não subvertem em verão de 35ºC. cê tivesse pppzado ursonata em rastapé, fosse pppato ou marrreco, entraríamos também nu’samba nu’samba nu’samba? e cê tivesse sampleado uma groovy promotion, ninguém playaria sedexando print scream de chat de skype. o papo teria rolado no puff da sala e nem precisaria cheirar a cara da yoko. cara da yoko carayoko carioca cariocaí: carioca e aíah?: campo’sailormoon brotheariam despoética ponte aérea. drink de grapefruit cannabilibidinaria pinga e gelo, papo de vitacopuplacer daria num troço qualquer. cê o groove sacolejaria nueva lorca cê o voo gru-jfk lesse a navilouca. cê despencasse prateleira de madeira, esparramaria palavra-conceito entre a varanda e as galáxias. existiria amor em sp? sorry, não. morangos mofados oitentariam década e decadência. terceira edição de ana c. cairia bêbada na franja do tapete. depois, página dura d’os anões serviria de porta-copos em começo de século cínico. quem trocaria o som? giraria globo de espelho no sopro e, mesmo que debandasse todo mundo, não decretaria cinzas antes do último vermute. para quê? cê sortisse a francesa... preguiçosos dançam conforme oráculo itunes. cê tivesse insistido no caminho do bem, fosse brasildiarreia ou descendo a ladeira, slow’motion’iaria nascer-do-sol escondido por construção embargada? e cê tivesse apostado num blá blá blá mais afinado, ninguém estaria domingando melodia onde não tem. o bolero teria lamentado meu nome e nem precisaria du bi du bi daum. dubidaum dubidauno bidaonomatô daonomatopariaí: onomatopearia aí: onomatopeia vitrolaria scat singing. pedido de desculpas estragaria o melhor da improvisação, a fala desafinada amoleceria o tímpano. cê o sotaque se afogaria na móoca cê o erro de português fundisse italiano. cê tivesse dicionário-teu-nome, traduziria o erro pelo acerto no fonético naipe de metal. cantaria all of me na plateia da dinah? putz, não. o dane-se mentiroso dinah’ria a inteligência. a ladainha seria evitada com caixa de ovo pra isolamento acústico. depois, as explicações de quinta deixariam o jazz com dolores e cotovelos. que drogaria medicaria duran a domicílio? escolheria a falsidade certa e, mesmo que fosse três números menores, não comentaria o ridículo da

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mentira baby look. pra quê? cê aumentasse o gogó.... desafinados reinventam melodia. cê tivesse cantarolado make someone happy, fosse pronunciando ou dubidubizando, te calaria agora com dolores no talo? e cê tivesse dado crédito pro locutor do aeroporto, ninguém estaria dando de cara com o gate nine closed. o embarque teria acontecido entre o bus e o plane e nem precisaria amaldiçoar curso vagabundo de língua universal. fisk fisque fique ficaí: ficariaí: book over the table losteria o flight. re-hospedaria dia e meio a mais na trip, hotel franquia desromantizaria jantar a dois. cê o sotaque se arranjaria no meu cê o th do think se contentasse com sopro de c. cê houvesse sap de pronúncia, abandonaria o i guess medroso por um achismo th. cê fluentearia cidadão do mundo? shit, no. passaporte mercosul prêt-à-portearia diccionario para road movie. o plane seria desenhado pelo taxista turco pra confirmação do we wanna heathrow. depois, o i could get pediria o desenho como souvenir de viagem. quem não escanearia o plane sap do taxista pra tela de descanso? faria strip-tease terrorista pro inglesinho do raio x e, mesmo que colasse estômago nas costas, não arredaria pé do painel de voos delayed. para quê? cê vigiasse fim de viagem... distraídos não parecem poliglotas. cê tivesse compreendido last call terça passada, fosse over ou in the table, desenharia de niro disfarçado de taxi driver? e cê tivesse trazido dois 2666 na bagagem de cabine, ninguém estaria disputando o silêncio mais pesado. o tijolo teria calado cada um num canto e ninguém precisaria dividir o duo da besta e meia. meia-mole meia-burra meia-bula meia-bolaí: meia-bolari’aí: aperto acenderia só agora. a página mudaria no placar, a meia marcha rebolaria leitura olímpica. cê o capítulo perderia liderança cê o fôlego não desse um tapa no espanhol. cê lesse esforço de tradutor, marcharia de mão dada com eudversário. assumiria empate? bolas, não. o pódio empilharia exemplares. a glória só seria alcançada sozinho na última página. depois, a solidão do vencedor voltaria um capítulo para leitura a dois. quem viraria a página um pro outro? acabaria um capítulo e, mesmo que esperasse a chegada eudversária, não dividiria sanduba com bolañitos famintos. para quê? cê fosse cubano em jogo panamericano... boxeadores comunistas não sabem o que é luta de classes. cê tivesse pingpongueado cada diálogo, fosse rusga de concordância ou declamação no chuveiro, comemoraria agora o 66 x 62 para latinos perdedores? e cê tivesse sacado a teoria, ninguém roncaria assistindo palestra de pós-doutor. fusca delê teria xavecado ka guatá e ninguém precisaria gabar dolce&gabbana ao rés da nota de rodapé. rodapé rodovia rodoviária rodaí: rodariaí: delê de pneu careca delegaria dp. o suborno brotaria do mastercard, o delega exigiria nota de cem. cê o retorno estouraria o limite cê a carona não fosse de quinta. cê voltasse a pé pra sampa, filosofaria delê até o entendimento total. acenderia outro? medo, não. patrulha rodoviária blitzaria a quinhentos metros. delê seria resgatado da dp com mão molhada a prestação. depois, mais um 1300 reprovaria no exame de poluição e ditadura da juventude. quem reemplacaria nossa necessidade mútua de fusca? perderia delê pro

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detran e, mesmo que suplicasse resgate, não restaria alternativa além da carona no meu guatá. para quê? cê ferrasse em ferro velho... fuscas já não comportam uma mesma relação. cê tivesse vendido delê pro desmanche, fosse pra reforma do guatá ou autorrefunilaria, precisaria dar entrevista em greve de ônibus? e cê tivesse convidado vô rrose pro piquenique no ibira, ninguém estaria domingando pega na praça comportado. a deformação artística teria cuspido na pintura e nem precisaria inventar papo de lubrificação do midium. midium merde meleca mel eca: eca!: vô rrose selav’aria limpinho. higiênico e intelectual vô rrose trocaria dedo de prosa com o rei, o olho no gato vesgaria a retina no peixe. cê o pega me pegaria no gira cê o fogo no queue denunciasse esconderijo. cê’la vie repreendesse comportamento, culparia netos maleducados pelo grand-père. tossiria o air de paris? pfff, não. o ibira pueraria pó no pulmão. vô rrose teria assinado a oca com vista pro engarrafamento. depois, vô r. mutt baby sitter band leader tocaria os netos pra casa dando sermão. quem resistiria à babá pervertida? atravessaria no farol vermelho pra pedestre e, mesmo que houvesse atropelamento, vô rrose não desgrudaria neto de cada lado. para quê? cê fosse exemplo... poema espiralado mete a língua no pound. cê tivesse havido atropelamento com perda total, fosse de boîte-en ou palavra-valise, acusaria maria-traveca com intimidade arregaçada pro motorista?

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Ouço Fuga N. 1 do Thiago Pethit e você me chega a essa hora, tenta a chave errada no trinco, ruído de tentativa e erro, teu chaveiro de acrílico no metal do trinco, aclílico, tlinco, aliterando chegada a essa hora?, pô, pra que ligar antes, né?, nem telefona, SMS o escambau, bate a porta, entra, lança no sofá O Paraíso É Bem Bacana que eu te pedi de volta, joga e sobe e voa e erra e cai no chão e rasga a capa que já tá chovida, pô, pra que rasgar capa de livro?, pensa que é cena?, a essa hora de 2012 ainda fingindo cinema?, só porque o iTunes DJ pesca a Anna Karina, Jamais je ne t’ai dit que je t’aimerais toujours, oh mon amour é um perigo, esse violãozinho safado de acampamento a essa hora da noite, madrugad’é emoção fácil e escapismo e lama e PT e a areia do teu All Star arranhando meu chão alugado, você me chega a essa hora, assim, arranhado, pô, me pede pizza e LP, pede pr’eu desligar meu iTunes pra tocar o Macalé, a essa hora?, a sala arranhada e tudo riscado e cê sabe que a vitrola laranja tá com a rotação acelerada um nadinha, cê sabe, pô, por isso a Gal fica com a voz ainda mais fina, cê me chega a essa hora e olha foto por foto do cabelo da Gal na capa do Legal, pô, me presenteia teu perfil distraído analítico e dubla baixo Meu amor me agarra e geme e treme e chora e mata e aponta abraço gay no cabelo da Gal na capa do Legal e erra a letra do Macalé, você me chega assim, a essa hora, lota o ar da casa contigo mesmo, liga a luminária, lança a luz pro alto sem dizer lhufas, dubla o Macalé cada vez mais baixo até virar só teu pensamento, pô, tá pensando o quê?, esqueceu qu’eu tô aqui?, hein?, a essa hora?, dublando pra dentro?, diz algo, pô, pel’amor, quem chega diz, combinado?, chegada é palavra, palavra é vício ocidental, todo mundo que se encontra só se encontra pra falar, pô, percebeu não?, te obrigo, pô, te peço, te digo, vai, diz algo, porra, silêncio a essa hora?, teu budismo o escambau que você é ocidental pra caralho, Nirvana se matou e passou o pinto na tela da Globo e engasgou o Roberto Marinho, lembra?, a gente era adolescente e vibrou e quis fazer também e pôs o vestido do Kurt e leu uma porrada de livros e depois envelheceu, fala, já que veio pronuncie, ok?, quem mandou?, pô, para de dublar o Macalé pra dentro, canta pra gente, porra, você me chega assim a essa hora, fala pouco e diz nada e quer pizza e mata num só gole meu malbec no gargalo, pô, pede pr’eu telefonar pr’algum disque-qualquer-porra e me pergunta se tem mais vinho, tem, sempre tem, cê sabe que tem, Encuentro argentino, tá em cima da geladeira, vai lá, saca-rolha?, tá’li, pô, pega você, é, o saca-rolha verde e enfia e machuca e esfarela e saca e serve o vinho e brinda teu copo americano no meu de requeijão, você me chega a essa hora, pô, me pede um pedido pra brindar, pô, pedido?, pedir?, olho no olho?, tem que pedir?, desejo?, utopia, a essa hora?, diz utopia, dis’utopia, distopia?, me chega a essa hora, porra, com joguinho de palavra, pô?, punhetagem de linguagem?, punheta língua?, a terceira sílaba do gole?, ’sa’ora?, só porque linguagem é religião que também dubla errado pra dentro e salva e mente e finge e explica e morde e hipnotiza e encoxa o próprio rabo, porra?, e a gente brinda e engole e pisca e risca o LP da sala, porra, tudo arranhado, tudo esfarelado, cê me

HACHURA

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chega a essa hora, porra, ’sa’ora?, invade tudo com teu All Star de 2005 e exige Encuentro, porra, afasta aí o livro, pô, papel e vinho não combinam não, já tá rasgado e amassado e lido e chovido e escrito e fodido e cê ainda quer manchar meu livro com nosso Encuentro, ’sa’ora?, cê me chega a essa hora, sem sono, sem dizer nada de mais, sem comunicar, porra, misturando areia de All Star com farelo de acrílico no chão da sala alugada, pô, pra ficar com a boca roxa fechada?, calada?, cê m’chega a essa hora, porra?, não, ’sas’ora?, me faz beber farelo de rolha misturado no vinho, porra, esse Encuentro argentino que vende no Pão de Açúcar que manda no país novo-rico lotado até a tampa de rico velho que decide se compra ou não a minha obra, porra, ’sa’ora?, cê m’chega, serve vinho em copo americano e fala nada, pô, aproveita qu’eu nunca acreditei em comunicação pra ficar calado?, deixa qu’eu falo, porra!, agora deixa qu’eu falo, cê sabe qu’eu prefiro muito mais linguagem se atritando do que se comunicando, galo de briga fogo de artifício bate-boca faísca de serralheria chamuscando peito de serralheiro desacordo sintático tiroteio rinha de gente, ’sas’ora?, e cê ainda fica quieto, porra?, s’eu acreditasse em comunicação eu não seria artista, porra, seria marqueteiro ou publicitário ou relações públicas qu’eu nunca entendi que porra de profissão é essa, deus que me livre e o capeta que nos garanta a liberdade, ’sa’ora?, é?, porra, é contraditório, lógico que é, dô confiança pra comunicação não, acredito nisso não, só o William Bonner acredita qu’ele tem trigêmeos pra criar, pô, prefiro voz escorando outra pra fazer melodia, porra, coro cacofonia, jazz que acompanha o pas des deux do ménage à trois, vamos parar de conversar palavra, porra, vamos falar melodia, diálogo Fred Astaire Elza Soares & Miltinho sincopado, né não?, não fala nada não, porra, cala a boca e toma o vinho, todo mundo tá falando demais, comentando demais, opinando demais, criticando demais, doutorando demais e criando assunto demais com melodia de menos, tautologia padronizada do rap, porra, ’sa’ora?, silêncio!, pô!, por que vocês não problematizam a puta que pariu?!, livro de filosofia a gente leu como má poesia, pô, p-r-o-s-a-p-o-é-t-i-c-a-s-e-m-r-i-t-m-o!, a gente é burro pra caralho!, para de rir, fala qualquer coisa transitiva pr’eu continuar, cê m’chega ’sa’ora?, pô, pr’eu dizer qu’eu admiro muito mais quem faz de tudo pra ouvir do que quem faz de tudo pra falar, porra, nem sei por que qu’eu tô pensando tudo isso, ’sa’ora?, é esse vinho que me deixa africano percussivo e atrasado pra narrar o que eu vejo, porra, cê m’chega, bebe Encuentro e me dá atenção, tira o farelo de rolha do teu lábio roxo e gruda na beira da mesa com esse teu gesto qu’eu só vô ter palavra pra narrar com o vocabulário do meu Alzheimer, porra, sas’ora?, sobra pra mim, eu passo um pano na mesa amanhã, porra, ok, sim, eu limpo, não tenho diarista não, porra, sou de classe social da qual a diarista podia ser eu, porra, cê m’chega a ess’ora, pô, presta atenção no vento que tilinta o chaveiro no metal do trinco mas não tem força pro redemoinho de areia do teu All Star no taco da sala, porra, só porque eu sempre gostei de parar pra te olhar nos momentos em q’cê para pra me escutar, pô, pode deixar, amanhã eu não varro o pó de redemoinho do teu All Star

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só pra guardar de lembrança a areia a ampulheta a caspa o vento o redemoinho o relevo do taco da sala onde você sambou sozinho e cantou errado o Macalé com a rolha roxa do nosso Encuentro grudada no lábio, cê m’chega sas’ora, a essa hora e esse teu silêncio do livro caído, a gente mata o Encuentro assim calado, porra, a garrafa inteira?, foi a gente que bebeu?, tava furada?, pô?, pera’í, manchou o taco?, s’a hora?, manchou nosso estômago?, porra, ’sa’ora?, a gente mata esse Encuentro barato de vinte mango com meia dúzia de talagadas, pô, pra quê?, porra, o vinh’acabou, LP’cabou, LP’caba, a gente nasceu nos 70 e sabe que shuffle é preguiça gorda, acaso controlado pelo Steve, porra, ’tão controlando até o acaso, pô?, pera’í, caralho!, ’sa’ora?, a gente ri roxo da piada besta a barriga treme engasga cospe Encuentro no taco alugado, ’sas’ora, pô?, m’pede guardanapo?, guar-da-na-po?, porra, mentira, ’sa’ora?, c’m’pede guardanapo?, pô, palavrinha feia pra porra da língua portuguesa, e a gente ri alto, sa-mam-bai-a, I-bi-ra-pu-e-ra, ditongo ou hiato?, a gente nem sabe, e a gente ri, ri, porra, ri e ri e ri desse português batucado pelo tupi latim tamborim, tó o guardanapo, limpa, a gente ri, pô, papel toalha limpa teu lábio, toalhábio, anota palavra valise no papel toalha de batata frita e eu nem como fritura, pô, palavracuspe no ouvido, papel toalha tem desenho bonito, compro pelo desenho que ainda me deixa feliz, finjo que é serigrafia, porra, ’sa’ora?, arte aplicada?, e a gente ri e ri e ri e ri no ritmo e ri e cospe farelo de rolha na areia do chão do teu All Star em redemoinho sambando o Macalé, pô, Piraquê?, quer?, não como essas porras não, tá vencido, a embalagem era da Lygia e comprei pela Lygia que ainda me deixa bem nesse mundo onde eu não tenho grana pra ter trabalho da Lygia, porra, então comprei essa porra de Piraquê no Pão de Açúcar, ’sa’ora?, comprando Lygia no Pão de Açúcar?, a gente elegendo artista que deixa a gente criança frente à embalagem de Piraquê?, porra, embalagem VIVA VAIA pra Elma Chips?, pra gente ficar feliz e gordo?, ’sa’ora?, feliz de quê, caralho?, feliz de nada?, então me abraça, ’sa’ora?, porra, vai lá, LP’cabou, LP’caba, teu jeans azul bunda estreita fundida no escuro frente à vitrola laranja que apressa a voz da Gal no Legal, porra, sas’ora, cê me chega sas’ora pra virar LP, porra, me fazer prestar essa atenção breaca na tua mistura de bunda com penumbra, azul laranja, a essa hora?, porra?, ’sa’ora?, pô, põe só mais esse lado do LP, falô?, só mais um lado B, fechô?, Louco por Você do Caetano tá no iTunes, sim, quero ouvir, vamo?, porra, ’sas’ora?, desliga a vitrola laranja que eu botei o Caetano Louco por Você, tá, sei que ele tá chato, opinando tudo quant’é coisa, baiano-oráculo-in-consciência-do-país, mas é gênio, fazer o quê, porra, sas’ora?, a gente deve o jeito como a gente sente ao modo como a turma dele sentiu o samba, pô, cê prefere gênio chato ou mauricinho blogueiro MTV?, porra?, qu’es que cê prefere?, a essa hora?, eu te fazendo escolher, porra, esperando teu comentário roxo, cê me chega a essa hora pra me aliviar, porra, e dizer que prefere os gênios chatos, loooooucooo por vocêêê, putz, ’ssas’ora?, a essa hora que toca a música mais filha da puta do mundo, porra, essa hora que toca a música mais linda desse mundo

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filho da puta, porra, loooooucooo por vocêêê, ’sa’ora?, viva os gênios chatos!!!, pô!, psiiiiiiiiiiiuuuu!, cala a boca, cadê nosso silêncio?, porra, bebeu?, ouve o final de Louco por Você, fui eu que coloquei e cê nem prestou atenção, pô, presta atenção no finalzinho do qu’eu faço, porra, cê nem percebeu direito esses nossos sete minutos, Caetano acabou e agora é hora da Cibelle cantando Álcool, daqui a pouco eu boto Louco por Você de novo, porra, cê me cheg’sas’ora pra gente matar um Encuentro entre Louco por Você e a voz alcoolizada da Cibelle em volume baixo e a gente de boca roxa esfarelada querendo comprar mais do nosso Encuentro, porra, Norton também é argentino e bom mas é mais caro que Encuentro, porra, cê me chega ’sa’ora?, porra, com esse brilho no olho riscado por esse pernilongo besta e opaco que voa no teu retrato que eu faço bêbado com meu olhar demorado embaçado barato pseudo-chinês com meio megapixel, ’sa’ora?, porra, cê m’chega ’sa’ora?, pô, pr’eu reparar tua respiração na tua barriga, porra, me chega sas’ora pra respirar fora do peito e atrair pernilongo alcoólatra?, porra, Só sei viver no samba, escuta a Cibelle cantando essa, porra, a essa hora você me chega?, esse pernilongo alinhavando a gente, envolvendo e voando à nossa volta, pô, para de voar na gente pernilongo!, casulo é brega pra caralho, n’é não?, para de fazer casulo de voo na gente, pernilongo cafona!, e a gente ri, porra, a gente ri, ri, ri, ’sa’ora?, a gente ri e ri porque a gente detesta artista plástico que faz casulo, porra, e a gente ri pra caralho, porra, casulo é arte premiada no Salão de Brejo das Baleias, pô, prêmio pago com cheque gigante entregue pela mulher do prefeito, porra, que dó, nossa primeira gargalhada boa e maldosa e filha da puta da noite, porra, humor tem que ter maldade, né não, porra?, a gente odeia clown, porra, a gente tem vergonha de artista que faz casulo, porra, a gente evita nego freudiano, porra, a gente acha infantil quem usa camiseta de banda, porra, a gente odeia quem problematiza, porra, humor tem que ser mais mau que Hitler, porra, ri, a gente ri e ri e ri e ri de nego em fase eu-lírica anal’oral o escambau, a gente ri, vai mundo, deixa a gente rir de você!, pô, p’l’amor de deus!, deixa a gente rir de você pra gente conseguir sobreviver, porra!, a gente ri de você sem maldade, só com maudade, porra!, nêgo não mata galinha pra comer e sobreviver?, e isso não é sem maldade?, pois é, a gente ri de todo mundo sem maldade também, porra!, é só sobrevivência, porra, s-o-b-r-e-v-i-v-ê-n-c-i-a, já que a gente nasceu a gente tem que dar um jeito de sobreviver!, né não?, a gente ri, porra, é o vinho, o riso mole do vinho, a gente pagou esse riso com MasterCard, vence dia 26 e a gente nem tem grana pra pagar esse riso que a gente já tá rindo!, porra, e a gente ri desse mundo ridículo cafona e caro, a gente ri pra gente poder rispirar, ’sa’ora?, cê m’chega ’sa’ora?, pô, pra gente ser cafona junto, porra, o samba é pura emoção, porra, deixa o dial azul da vitrola laranja aceso, porra, combina com madrugada e Encuentro e pernilongo e cafonice, vamo’sê cafona juntos, vamo?, vamo ri da nossa cara de otário, do nosso caráter de otário, do nosso caralho de otário, vamo ri do nosso riso, a Cibelle canta seja de Noel Rosa ou de Cartola, ouvir Paulinho da Viola, felicidade sem mais fim, porra,

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sas’ora, felicidade sem mais fim, mais fim?, que lindo porra, cê me chega roxo a essa hora e a gente ouvindo Cibelle cantando esse samba, porra, a gente samba miúdo e risca pequeno o taco da sala com areia de clown de All Star misturada a farelo de Encuentro e casulo caído de pernilongo que só chupa prefeito Hitler bêbado, cê pisa no casulo, porra, sas’ora cê me chega, tão tarde, porra, tudo que ressalta quer me ver chorar, porra, que shuffle o caralho, eu mesmo fui até o iTunes pra botar de novo esse Caetano chato com esse arranjinho anos 80 cafona pra caralho que só deixa a música mais linda e mais genial e mais escrota de nós dois, porra, cê me chega sas’ora pra me forçar a dizer escrota linda e nós dois, com a boca roxa, cafona pra caralho, o dial azul aceso da vitrola laranja iluminando ponto de luz no nosso olho, o iTunes, porra, loooooucooo por vocêêê, nada esquece de armar uma lágrima que às vezes vem bater na cara, me chega sas’ora pra gente fazer barulho de trinco na porta teu trinco de acrílico, tá na cara, cor multiplicada, som palavra mar, porque não sei dizer, saiba, me chega a essa hora e a gente nem consegue abrir a porta roxa pra gente sair desse arranjo oitentista péssimo desse apartamento alugado péssimo dessa música linda de escrota pra caralho e ir comprar mais do nosso Encuentro no Pão de Açúcar que monopoliza as embalagens do mundo neofauvista de hipermercado lotado com um monte de família administradora comprando queijo amarelo coca vermelha e remédio tarja preta na drogaria da saída, porra, ’sa’ora?, tudo que ressalta quer me ver chorar, tudo que ressalta quer me ver chorar?, pô?, peraí, tudo que ressalta quer me ver chorar???, que frase é essa, porra???, inveja da porra, só eu podia ter escrito entendido inventado possibilitado te dito essa frase olhando pra tua camisa aberta flanada no vento da maresia, porra, Álcool, Encuentro, sair a essa hora pra comprar mais Encuentro?, pô, Pão de Açúcar?, madrugada?, avenida?, faixa de pedestre?, porra?, levanta, ’sa’ora?, me ajuda a abrir a porta com teu chaveiro, pô, a porra do chaveiro que não abre a porra do trinco e a gente ri emperrado atrás da porta, porra, confusão de palavra, nome trocado, ’sas’ora roxa cheia de farelo de shuffle cê vem me evocar Chico Atrás da Porta?, logo agora?, porra, logo a gente que detesta quem entende a alma feminina?, e a gente ri ri rim rímel chora com dó de mim grita borra rímel rim ri hi Hitler, porra, o cacete, a gente ri sas’ora, porra, ’sa’ora?, tarde cinza lágrima prismática, loooooooucooo por vocêêê, o merda do chaveiro que não abre a porra da porta que tilinta a Lygia e a gente atrás da porta gargalhando mole enroscados sem conseguir sair tanto sangue correndo no nosso vinho, nossa mão bêbada que não consegue girar o chaveiro, porque não sei dizer saiba, diga você, agora é tarde, felicidade, vem, cê me chega a essa hora, sas’ora, pra conseguir abrir a porta, pô, pra gente juntar cartão de crédito, porra, e ir comprar outro Encuentro roxo no Pão de Açúcar que compra Brasília com cheque da FIESP, mas ninguém mais usa cheque!, porra, atrás da porta que ‘cabou de abrir a gente ri engasgado porque ninguém mais usa cheque, porra, capital irreal bolha economia abstrata valor digitalizado piadinha velha

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pra gente sê inteligente, porra, merlot ou cabernet?, porra, a essa hora?, cê m’chega sas’ora, pô, pra me barrar na porta e querer que eu resolva se merlot ou cabernet, porra, sas’ora?, escolher uva ’sa’ora?, quem cuspir mais longe escolhe a porra da uva, porra, sas’ora e a gente esquece até de fechar a porta pra cuspir campeonato de cuspe roxo lá longe e o cuspe cai na guirlanda da porta do ap da frente, porra, guirlanda de purpurina nojenta da porra, cafona pra caralho, cuspida e cheia de neve de algodão, porra, cê me chega a essa hora pra ’sas’ora a gente cuspir farelo roxo de Encuentro e cortiça e rir da purpurina da guirlanda desse Papa Produto da Europa decadente desempregada velha ranzinza saudosa de si mesma, porra, Papa Pão de Açúcar mauricinho industrial alemão nazi gringo que acha que pode resolver se biba pode andar na rua, porra?, sai pra lá Papa, com esse seu amorzinho católico cafona com contrato carimbado em cartório pago com cartão de crédito!, e a gente grita e ri e ri e ri e ri e ri pra caralho, ri pra Flávio de Carvalho, micropolítica de edifício, grita pra não acordar o vizinho, porra, ’sas’ora, ’sas’ora cê m’chega e a gente ri roxo no hall cheio de capacho escrito wellcome e a gente que gosta de ser bem-vindo a gente se abraça e se aperta e se quer e se ri e se silencia e se sei lá, porque a gente é do bem, só nosso humor é do mal, humorécadeialimentar, porra, ’sas’ora que o botão cuspido do elevador não apaga nem c’a porra, porra, a gente ri e continua rindo e riscando o chão do hall com areia de All Star e farelo de cortiça de rolha de Encuentro e purpurina de guirlanda das Lojas Vaticanas porque o botão cuspido do elevador não apaga nem c’a porra, porra, não tem um japonês ’trás de mim mas tem um japonês segurando o elevador lá em cima?, porra?, descarregando compra de supermercado, ’sa’ora?, será que ele trouxe Encuentro pra gente?, serve saquê, japonês!, cê grita e eu loooooucooo por vocêêê, porra, a gente ri e eu deixei o iTunes no repeat lá dentro da sala que a gente nem vai fechar a porta, porra, ’sa’ora?, a gente ri, o pernilongo risca teu olhar de novo, porra, ele tá seguindo a gente e o pernilongo alinhava o voo na gente e a gente ri de mais essa cafonice nosso abraço nosso casulo no Brejo das Baleias looooooucooo por vocêêê nesse arranjo brega oitentista e o japonês ’trás de mim segurando a porra do elevador descarregando sacola com Detefon, ’trás de mim?, como assim Chico?, pô?, rimar futebol com rock’n’roll?, cê não fez FAU?, e a gente ri, ri, rim, rima forçada, ri mais ainda, te perdoa a gente, Chico!, ’sa’ora?, cê m’chega ’sa’ora?, mata o pernilongo no batente do elevador, porra, tava gordo de sangue, era meu ou teu?, nosso?, porra, ‘sas’ora?, de quem é esse sangue que tava no pernilongo?!, d’alguém do prédio?, ’tamo devolvendo!, a gente grita e ri e se atrapalha no riso e na piada e se enrosca e se escora e ajuda o outro a não cair, porra, de quem é?!, Pernalonga promíscuo do caralho, tem medo de AIDS não?, não usa camisinha no ferrão não?, e a gente ri misturado e escorado loooooooucooo por vocêêê ferrão duro de Pernalonga, na boa, ’sas’ora?, pra quê?, porra, limpar o nosso sangue do Pernalonga que ficou grudado na mão, passar na placa do elevador, porra, e cê lê alto a placa sangrada e cuspida mandando ver se o

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elevador tá parado no andar pra só depois entrar, porra, ’sa’ora?, o acento do a do está manchado com nosso sangue do Pernalonga, pô, pra me dizer, ’sa’ora?, porra, ‘sas’ora?, porra, agora que o elevador tá chegando que o japonês ’trás de mim já recolheu as sacolas de iogurte, porra, pra me dizer, porra, que a gente antes de entrar precisa ver se este elevador está parado no andar, porra, ’sa’ora?, que a placa tá mandando verificar se o elevador está parado neste andar antes de entrar?, porra? e a gente ri, ri, ri que cair em fosso de elevador é cafona pra caralho, e a gente ri, ri, ri, rimtler, humor mau do bom, ’sa’ora?, se a gente cair vai levar xingão de bombeiro tanquinho acordado na madrugada de quinta, porra, ’sa’ora?, pô?, puto com a gente?, porra, bombeiro dando pito na gente?, pinto?, puto?, Clube das Mulheres?, e a gente ri, ri, ri, a gente ri, ri que cê vai virar pro bombeiro e dizer, porra, que a gente se descuidou, tentamos nos matar não, desculpa aí Seu Bombero, tira a gente do fosso, foi mal, fui mau, a gente se desescorou e se desequilibrou e se sobrou pra gente e se achou e se entendeu e se grudou e se riu e caiu no fosso do elevador, Seu Bombero, porra, ’sa’ora?, e cê vai fingir que tá sóbrio ’sa’ora?, e porra, cê vai respirar e dizer pro bombeiro que nesse caso a gente caiu por acidente, Seu Bombero, ’sculpa aí Seu Bombero, culpa do japonês ‘trás de mim que não liberou o elevador e confundiu a gente, a gente tem labirintite, a gente é meio tonto, Seu Bombero, foi suicídio fracassado não, Seu Bombero, porra, ’sa’ora?, e ainda vai jurar pro bombeiro que a gente tentou suicídio não porra, ’sa’ora?, foi suicídio não, Seu Bombero, e ainda vai dizer que por falar nisso, só pra não perder o assunto, tá ligado Seu Bombero?, a gente é meio cafona e meio demodê, meio sem grana pra bancar o pós-humano, saca Seu Bombero?, foi suicídio não, porra, ’sa’ora?, ‘sa’ora cê vai dizer pro bombeiro que a gente é cafona e pré-sentimental, tá ligado Seu Bombero?, por isso a gente respeita muito mais as obras de arte, Seu Bombero, que adiam o suicídio de quem as comete.

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pel, e no entanto. –Bisbis bisbis – dizia Feuille Morte. desenham uma andorinha. assim, – destruição dos cisnes. –Esperá que termine el pitillo. banco, olhando para o rio com seus olhos tristes. nável aquiescência. do pátio. venientes dessas opções. tudo, que não se fale mais nisso. ou na agressão macia dos teus seios. und zu leben in der Fülle der Zeiten. refrão… mundo, firmando-o em meio à própria natureza. l’assaut de son dieu? interessante… viu uma velhinha chorar. hand uphold and strengthen you in that. das Jahr, das bevorsteht, Sie darin erhalten und bestärken. confermarla in questo. ella. à venir vous y garder et vous y fortifier. inutilement les forces millénaires! Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais! Vil, no sentido mesquinho e infame da vileza. O verso ritmado e rimado é bastardo e ilegítimo.” O amigo enorme que a falar amamos. ninguém pode mais do que deus! que não tem mais fim… ter plena fruição. noite fui feliz. Algures estarei à tua espera. palpitante de alegrias! do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. meu reino a ser conquistado, futuro… a todas as coisas? irredutibilidade.” de sair tiro a luva, deixo aqui no espaldar desta cadeira. deste C.T.I. infame onde sou obrigada a viver. triste, escrevam-me depressa que ele voltou… Amsterdam, July, 1980 surge dos sombrios montes. dia? De hoje? –A transposição de todos os valores!… rer e cresceu meu saber. mem prefere a vontade do nada ao nada da vontade. Tem mais não. Copacabana, 15-4-1946 tropicais. Nunca mais a vejo. Perdeu-se na cidade. –No mundo do sofrimento. 31-5-929 Tenho dito. paz. ziam muito escuro. –A boiada vai sair. Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida. sobre Bouville. Paris, 14 de janeiro de 18**. Das mortes da minha vida. o rosto de meu pai. e rodei de volta a Los Angeles. de neve em forma de estrela… morrido, todas elas, para todo o sempre, perdedoras. lágrimas sólidas do Supermacho. mau eu sabê-lo. Um beijo de língua. Até mais. Cartel: fin de un principio. a janela, há alguns dias aprendi a voar. Sim. E dizem, vão dizer, estão dizendo, já disseram. Rio de Janeiro (Santa Teresa), 1983 Não, isto também não é verdade. dizer hoje, agora, aqui, assim, é isso. Saint-Cloud, mars 1929. Notas de 1929 e de 1930, Roquebrune. poético, uma ideia de algum eu maravilhosamente superior a Mim. Sem título, XXIX, 838.) melancolia. abril-agosto, 1873. Nas horas em que ansiar a morte. e o do sol. Toute Pensée émet un Coup de Dés. veja, sorri. le. Lua nova. Casa do Sol, 1985/1986 uma terra escura, às vezes madrepérola. (domingo, 9 de julho de1995) Guano sobre a tua cara. –Ai de ti, de sonhos exaltados. Casa do Sol, 12/12/1981 a 5/11/1982 Quando não sou líquida. sou e sem reservas, minha solidão conhece a sua.” Agora vá para a cama. Depressa. Depressa e devagar. a sentir saudade de todo mundo. tivesse reverberando entre quatro paredes de ladrilho. manteve imóvel, sorrindo para o teto. Trieste, 1914. 1948 19 de maio de 1960 14-16 de novembro de 1971 gnes de chiens… Ambos o mesmo pedaço azul de uma ideia? gica.” dem andar sozinhos, e para nós há apenas um lugar. teimoso ausente. As ondas quebram na praia. 11 de outubro de Mil Novecentos e Vinte e Oito. de volta aquele enorme feto. tória, na exaltada redenção do esquecimento. nuou inalterado. jovem. Era como se

INSTALAÇÃO

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a vergonha devesse sobreviver a ele. Rideau. PANO. recomeçar – tamanho documento. dito de modo nenhum em diante. 1947 FIM (1949) nunca mais cortina. para de noite. E as garças eram tarde demais. ro._ _ _ _ _ _ clareira violenta que talvez fosse um novo nascimento. Sim. que mereça tanto. – é que o vôo do poema não pode parar. porque de si mesmo é diverso. Tu te magoaste, meu filhinho? condenar seu exagero. do pesadelo americano. de ver-se converte-se na liberdade da contemplação. México, 1 de dezembro de 1989. DHARMAKIRTI E a outra? Onde está a outra água? Delhi, del 23 de julio al 25 de septiembre de 1966 Mexico, 1957 Cambridge, Mass., outubro de 1971 São Paulo, 22-9-69/1º-12-1972 eu vi o Senhor! Seu lado negro avança e draga. sob abas enormes, pesadas, sombrias? Hoje sombras sepultadas. ruy belo, era uma vez. Não sei. Tu tens razão. Eu realmente uma vida talvez talvez uma viagem. O nosso deus é um deus ofendido Madrid, 15/V/1977 será sempre tarde demais. Felizmente! m’accueillent avec des cris de haine. (1953.) só fui rir no elevador. o coração penetrou em dores. mouettes. Clichy, que a chuva cesse. PARA SER PUBLICADA. 81 o Buenos Aires, 03 de fevereiro de 1975 Breve saberei quem sou. aparecer na minha frente. predito. RIDEAU de marteau peuvent encore se faire entendre. lui-même. horas. Promette-se discreção. Hannah Arendt Juin 1963. Guy DEBORD efeitos abençoados da confusão de Babel.

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O baque do trem de pouso derruba minha Bic. Procuro-a sob a poltrona. Hoje é difícil achar uma. Desço as escadas e na pista sigo o fluxo de passageiros. O aeroporto parece uma rodoviária, lugar onde ônibus paravam. Lembro de ter viajado em alguns na infância. Recupero a bagagem. Procuro um táxi, entrego o endereço ao motorista e pegamos a autopista na saída do aeroporto. Comento qualquer coisa. O taxista responde que não é típico e à noite esfria. Chegamos. É um prédio baixo, sem porteiro. Bato na porta? Falta-me decisão, vim de impulso. Só agora me dou conta de que já estou aqui. Leio o nome dos moradores ao lado de cada campainha. Sem pensar, toco. !Senhor Fabio? Sou eu.!Já desço.Fabio pode destravar a porta automática. Mas prefere vir me receber aqui embaixo. A velhice tem cerimônias. A porta se abre.

!Podemos começar?Olho o relógio sobre os azulejos amarelos.!Respondo aqui da cozinha, a água ainda não ferveu. !Lembro-me do senhor. Da minha infância.!Poderia me chamar de você? !Claro. Desculpe.Silêncio.!Você foi amigo dos meus pais.Arrependo-me por começar deste modo.!Você gostava de mim. Fui percebendo isso quando me dei conta de que brincava com minha barba. Aí, cedi, pois eu nunca fui fascinado por crianças. Fabio se vira de frente para mim. Desvio o olhar do relógio para mirá-lo. Não há dúvida. Sua figura é parte da minha infância.!Você falou dos seus pais. Estão bem?Silêncio.!Morreram. Faz tempo.!Alguém me disse. Fabio equilibra as xícaras. Aproxima-se e tapa, com o rosto, o relógio sobre os azulejos.!Você veio falar sobre uma obra minha, não é?!Sim. Site Specific, um Romance. !Tem um exemplar? Fabio me encara. Pela primeira vez, com atenção.!Não. Minha mãe tinha um, com uma dedicatória sua: pour l’île. Nunca entendi.

VELATURA

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!Não vou explicar.Silêncio. !Quando ela morreu, vendi sua biblioteca. Para pesquisar seu livro, uso o exemplar que há na universidade. O do seu mestrado. Não sei de que forma começar. Fabio concordou que eu o entrevistasse. Estou aqui, mas sem nada preparado. Precipitei minha vinda.!O que lhe interessa nesse meu livro?Fabio dá o primeiro gole. Imito-o.!Nossa conversa pode se tornar difícil porque eu nunca mais li esse meu livro. Faz décadas que escrevi, já não me lembro. Quer me contar algo sobre o que escrevi? De que fala a estória?!Você não relê o que escreve?!Não.!Por quê?Silêncio. Fabio volta a xícara no pires e quase a derruba. Imito-o, com equilíbrio. !Palavras só correspondem ao pensamento que tive na hora de escrevê-las. Depois, elas passam a mentir sob minha autoria. Textos deveriam ter apenas uma edição, para que se deteriorassem com o papel. Ainda se escreve em papel? (Silêncio) Não importa. Mas não compreendo o que alguém da sua idade quer com um velho.!Não estou aqui por sua velhice.!Está sim. Se veio conversar sobre algo que escrevi há décadas é porque quer falar com a minha velhice. Só posso dialogar através dela.!Ainda escreve?!Não.!Produz algum trabalho de arte? !Não.!Considera-se artista?!Aposentado.Não evito o riso. Fabio me devolve um ar cúmplice, mais jovem que seu rosto.!Queria lhe perguntar muitas coisas. Mas acho que não vim preparado.

Passo dias debruçado sobre Site Specific, um Romance. A universidade não me empresta seu exemplar. Faço anotações na biblioteca e em casa reviro meus arquivos sobre as obras de Fabio. No aeroporto, ele me recebe no desembarque.!Você aqui?

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!Vamos a pé para casa. Andar alegra-me.!Meus pais comentavam que você era um andarilho.Saímos do saguão e chegamos à via que leva à autopista. É estranho caminhar pela beira da estrada. Elevo o tom de voz.!Site Specific, um Romance foi seu projeto de pós-graduação. O que o levou ao mestrado?Silêncio.!Meus amigos começaram a ter filhos e aos poucos me excluí de seus assuntos. Eu não entendia de cocô mole. Fui em busca de assuntos. Fabio tem um mau humor que, nele, soa autoral. Percebo isso desde nossa primeira conversa.!Também resolvi tornar-me professor. !Precisava de mestrado para dar aula?!Para o ensino superior, sim. Não tinha vontade de ensinar Educação Artística. !Educação Artística... o que era isso? Algo a ver com Fabio espera a ultrapassagem de uma carreta.!Nada a ver com Kaprow. Educação Artística era o termo que se usava para nomear a disciplina dada em escolas. Educação não pode conviver com arte, em um mesmo termo. Essa arbitrariedade já demonstrava o que vinha a ser Educação Artística, um ensino de técnicas de artesanato.!Era a formação básica das escolas, em matéria de arte?!Sim.!Não lhe interessava contribuir para essa formação?!Não sabia lidar com a ideia de disciplina.Mal ouço sua resposta abafada pelo tráfego.!O ensino básico não seria mais ideológico, desafiador? !Seria, se essa preocupação fosse real para mim. Não era. Preferi seguir o que em mim era natural. Também nunca gostei de adolescentes e muito menos de crianças. Você foi uma exceção. Fabio vira-se para mim com um sorriso. Um ônibus passa às suas costas.!Você queria dar aula para iniciados ou em início, era isso? !Sim. !Por quê?Silêncio.!Talvez para atuar na de Kaprow, que você citou há pouco, que via o módulo lunar como escultura e os consumidores em transe nos supermercados como coreografia de dança. Este exercício só seria possível com quem já estivesse inserido no pensamento da . (Silêncio) O bê-a-bá do ensino sempre me pareceu jesuítico demais. Eu não sabia

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o que era ensinar. Eu preferia pensar no desensinar, deformar, desaprender. Só assim minha prática como professor poderia ser uma extensão natural da minha prática artística. (Silêncio) Site Specific, um Romance partiu do meu desaprender pessoal. Eu sabia escrever, mas queria desaprender o modo como escrevia.Silêncio.!Acho que isso está evidente em seu romance. Cada capítulo tem uma escrita construída de forma distinta.!Sim, me lembro, esse era o desafio. Nenhum dos capítulos de Site Specific, um Romance tinha o meu jeito pessoal de escrever, a minha voz. Até hoje interesso-me por quem sabe um jeito de fazer algo e resolve deixar de saber. !O outrismo?Fabio demora a responder. Espera uma ultrapassagem barulhenta.!Sim, Filliou, o gênio sem talento. !Você queria lidar com quem se formava em arte para agir na de-formação, e digo de-formação com hífen separando o prefixo. Era isso? Por isso o leigo definitivamente não lhe interessava?!A arte que foi vital para mim estava na região que Kaprow chamou de , onde se começa a imaginar as coisas pelo que elas, sem o ponto de vista da arte, não mostram tão claramente ou, simplesmente, não são. Não importa o monocromo de Malevich, importa a relação que se terá com todos os brancos a partir dele. Isso passa a ser uma ética.!Que prescinde da estética, ou seja, uma que não precisa se tornar ?!Pode ser. A é o exercício primário para a .Silêncio.Há um carro no acostamento.!Como professor, eu não queria explicar para ninguém como Malevich chegou ao branco. Queria já partir de Malevich e estudar os brancos de todas as superfícies. Por isso eu não sabia o que dizer ao leigo, estávamos em regiões diferentes.!E o público leigo?Separamo-nos para desviar do carro parado no acostamento.!Não sei, nunca o conheci. !E o público?!Nunca pensei no público, admito. Não posso ser demagógico com você. Silêncio.!Seu livro Site Specific, um Romance é um feixe de citações. Todo o texto é estruturado por outros livros, outros textos e outros autores que o transpassam. Parece-me que os personagens protagonistas de Site Specific, um Romance são a intertextualidade e a metarreferência. Ao ouvir você dizer que não pensava no público, pergunto-me se essa

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intertextualidade não dificultava o acesso desse público ao texto.!Toda minha atividade artística foi uma escrita intertextual. A apropriação e a citação estão em quase tudo o que fiz.!Por quê? Era estratégico?!Não. Era apenas uma homenagem. Eu precisava homenagear os artistas, pois nunca estive à altura deles.Silêncio.!Modéstia?Penso em cinismo. Em frase de efeito. Fabio sabe que transcrevo tudo o que falamos.!Não. A apropriação para mim sempre teve um aspecto de homenagem. Para que o homenageado me socorresse, me desse a mão, me puxasse para a festa.Silêncio.!Pode-se dizer que a apropriação era uma moda, na época?!Não sei se era questão de moda. Talvez eu tenha atuado como artista no momento em que a arte chegou à idade adulta. Quando foi que a arte nasceu, no sentido em que a compreendemos? No Renascimento? No Iluminismo? Seja em que época foi, ela não tem mais que cinco séculos nos quais a arte usou o mundo como tema, a religião, a natureza, a história, o indivíduo, o subjetivo. No final do século XX, talvez a arte tenha se autopercebido como um universo constituído, tão complexo quanto a religião, a natureza, a história, o indivíduo e o subjetivo, e passou a se usar como tema, a se discutir e se autorreferenciar. Fui da turma da apropriação e da citação. A arte foi meu eu-lírico.Quero gravar nosso diálogo. Mas o barulho do tráfego impede. Da próxima vez, não aceito vir a pé. Não sei se consigo transcrever de memória tudo o que conversamos.!Mas se o público não conhece a história da arte, não sabe de onde vem a citação, ele não tem acesso à obra. É sobre isso que lhe pergunto.!Não sei. Como lhe disse, nunca pensei no público. Não fui um autor de novelas. A opinião pública nunca me interessou. Para isso, inventaram a eleição e o plebiscito, que de forma simplista aceitam que a maioria matemática vença. Não fui o tipo de artista que procurava um embate com o público. Sempre fugi, como o capeta da cruz, de artistas catequizadores. Eles funcionavam fetichizando o outro e, no Brasil, geralmente esse outro era da classe C, D ou E, mais fácil de ser persuadido por essa pregação artístico-intelectual. Se eu não quero um evangélico batendo na minha porta e fazendo exorcismos no meu quintal, e nem o McDonalds invadindo minha cozinha para me ensinar os melhores pratos, também não quero artistas-intelectuais entrando em minha casa para fazerem ação situacionista na minha sala. Como artista, eu nunca quis ser dono de um

infantil relacional, esta estética era moda na época, havia esse recalque europeu em se relacionar, viver em grupo, dividir, festejar, ser desinibido e extrovertido, recalque

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esse que avalizou certo tipo de arte brasileira como genial. Eu estava fora disso. Preferia os artistas tímidos, introspectivos, silenciosos, que discretamente duvidavam disso tudo. Para mim, quem realmente duvida não faz alarde, o alarde é uma afirmação, já não é uma dúvida. (Silêncio) Fui artista, não um crente. Detesto quem acredita na arte na mesma medida em que o crente no evangelho, ou o marido gordo no futebol. Detesto crentes.Fabio é mal-humorado e verborrágico. Um pouco mais do que eu esperava. Deve ser a idade e o isolamento. !Prefiro as coisas discretas que existem sem alarde. Quem quer contato com elas, vai lá e o estabelece. O artista tem de ir aonde o povo está me causa bocejos. (Silêncio) Não, não pensava no público. Minha relação era com a linguagem e o modo como ela tangenciava as coisas para se transformar em coisa. Silêncio.!Esse não pensar no público não seria egocentrismo?!Como lhe disse, segui o que em mim era natural. Isso foi mais que um lema.!Não pensar em um público não seria também solitário demais?!A linguagem é maior que qualquer população.Fabio fala em um tom professoral. Cheio de verbos de ligação. Artistas velhos são um pouco decepcionantes. Ele está meio passo à minha frente e para. Olha para a estrada. Aguarda alguns veículos passarem.!Cansei-me. Vamos pegar um táxi.Embarcamos e permanecemos calados. Fabio está virado para a janela. Ele é tão mal-humorado quanto frágil.!Quando caminhávamos, você disse que não considerava o público. Enquanto criava, nunca pensou no que fazia como um diálogo entre você e um público?!Não sou bom de diálogo. Nunca fui. As pessoas têm mania de conversar e puxam assunto em fila de padaria. Tenho inveja. Não foi essa a minha relação com a arte. Sempre foi um afetar, não um comunicar. Muitas vezes, tempos depois do meu contato com uma obra é que ela me afeta, contamina, entra nas correntes sanguínea, metabólica e do pensamento, e começo a distinguir os brancos. É como uma gripe, cujo sintoma vem bem depois da contaminação. Isso não é diálogo. É vírus que, ao entrar, passa também a compor o organismo assim que os anticorpos perdem a batalha. (Silêncio) Não, minha relação com arte nunca foi de diálogo. Quando era artista, nunca me senti conversando com alguém. Me sentia deixando vírus no ar pra quem quer que fosse, ou construindo lombadas na via expressa. Acho que foi o Thomas Bernhard que escreveu que uma obra é como uma batida de carros, acontece de repente sem que ninguém espere, e junta curiosos em volta.

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!Mas, quando você criava...!Não gosto do verbo criar. É um verbo que pertence apenas à Bíblia, um livro que não li.O taxista olha-nos pelo retrovisor. !Quando era artista, você não criava?!Não. !Fazia o quê?Silêncio.!Experiências. Como o cientista que mistura substâncias e elas explodem. Eu procurava a explosão, mínima faísca que fosse. (Silêncio) Eu misturava coisas reagentes entre si.A última frase de Fabio resgata-me de uma distração. Sei que a ideia de reagente é de Flávio de Carvalho. Ele escreve que sua foi um reagente sobre a população. Fabio não desconfia que conheço quase todas as suas fontes. Eu o estudo para vir aqui.!E o público não tinha nenhum papel em suas experiências?!Tentar linchar-me.Compartilhamos uma de nossas primeiras risadas. !Artistas não pensam no público?!Não sei. Só posso falar por mim, o termo “artistas” é amplo demais. Para mim, o público não existia. Meu campo não era o social, mas o da linguagem que, em última instância, possibilita o social.Silêncio.!Desculpe, mas confesso que não entendo.!Os cientistas dizem que procuram a cura de doenças para melhorar a vida humana. Mentira. Pesquisam a cura pelo desafio da pesquisa. Só acredito na potência atlética dos gestos pelos gestos. O outro não é tão desafiador a ponto de estabelecer a pesquisa. Seria uma filantropia barata. O desafio é atingir a substância, o reagente, a linguagem. Quem fará uso social, não importa. !Insisto que não compreendo.!Não existe público. Quem inventou a cocaína não teria paciência para conviver com quem a usa. (Silêncio) Eu também não me sinto público. Se leio um livro, sinto-me leitura, jamais leitor. Leio com meu corpo-linguagem. O eu é um troço pesado demais para que o carreguemos para nossa relação com arte. Com ela, relaciono-me de linguagem para linguagem. (Silêncio) Filliou dizia que ser artista era participar do sonho coletivo. Gosto disso. Meu livro Site Specific, um Romance foi um sonho que tive, o construí, e ele faz parte do sonho coletivo. Minha utopia é curta, só vai até esse ponto. Neste plano do coletivo sim, havia um diálogo com um outro qualquer, o outro desse coletivo, mas não com um outro específico. Aqui, ao meu lado, na relação doméstica que eu tinha com meu trabalho, não havia diálogo a não ser entre mim e ele, entre duas linguagens se

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construindo mutuamente.Pela primeira vez, Fabio parece empolgado em falar. !Quando escrevi Site Specific, um Romance, eu não queria distrair o leitor que toma sol na piscina. Eu queria atingir o que me propus no campo da linguagem, que era escrever um texto que fosse arte visual. Só isso. Se Site Specific, um Romance teve público, faz parte do jogo, o sonho é coletivo. Mas, escrevi para que tivesse leitura, não leitores. A ideia de leitor e público é do campo do diálogo, do cantor que pede que a plateia cante junto, do entretenimento de consumo, é uma ideia epidérmica. Em minha relação com meu trabalho, sempre fui mais visceral que isso. (Silêncio) A do Flávio, por exemplo, não teve público. Teve o reagente-Flávio sobre a substância-procissão. A procissão não era um público, era parte da experiência. É essa a relação que acho perfeita. Não há artista e nem público. Há as substâncias, os encontros e as explosões. A explosão é o ápice do sonho coletivo.Sinto-me um que assiste Fabio conversar consigo mesmo. Às vezes, o taxista me encara pelo retrovisor.!Público é a multidão que ascende o isqueiro e canta o refrão. É a lógica do espetáculo. Ainda existem espetáculos hoje em dia? Sabe-se lá, mal saio dessa cidade, é melhor que eu nem saiba. Aliás, foi num desses livros aqui, que eu lia hoje enquanto aguardava seu desembarque...Fabio abre a bolsa sobre o banco do táxi, cheia de livros....que o Erik Satie fala da música de mobiliário, que não pressupõe um público, mas sim um espaço, ela é tão espacial quanto um armário. Ela cria vibração, do mesmo jeito que a luz, o calor e o conforto atuam sobre a sensação. Dei pulos enquanto lia isso e lhe esperava. É a pré-história da música ambiente, porém com um aspecto bem mais objetual, já que mobiliário. Gosto dessa ideia, ainda que Satie dissesse que essa música satisfazia necessidades úteis, como um mobiliário, e a arte não entrava nesse hall de necessidades. Prefiro deturpar um pouco o pensamento de Satie e considerar que essa música era arte sem necessidade de público, mas sim de espaço onde acontecer, como o minimalismo.Fabio devolve o livro à bolsa.!Ao som, pode-se responder de duas formas: ouvindo-o com atenção ou batendo o pé. Acredito na mesma coisa em relação à leitura. Pode-se entender um texto com o intelecto, ou deixá-lo fundir no corpo-linguagem. Para ser sincero, gosto das duas possibilidades. Mas, na escola, o que aprendermos? A interpretar um texto. O que é isso? Entender seu assunto. Não aprendemos a apalpar a forma de um texto, a dançá-lo. Não se estimula a tatear a textura de um texto, a vê-lo e senti-lo como um móvel dentro de casa, mas apenas como um discurso na estante. Você pode considerar o capítulo Hachura, de Site Specific,

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um Romance, como um vidro craquelado caído no chão de sua biblioteca. Fabio vira-se para mim.!Site Specific, um Romance precisava ser compreendido, afinal era meu texto de mestrado. Mas me esforcei para que o ato de sua leitura fosse também um ato de dança, de gestos alavancados pelo ritmo, pelo choque de sílabas, pela aspereza sintática. O texto esculpia uma forma-leitura, ele era seu molde. Como minha matriz era as artes visuais, cuja tradição de forma é evidente, e era no contexto delas que eu escrevia, Site Specific, um Romance foi escrito seguindo uma obsessão pela forma, por ser físico. (Silêncio) Falei demais. Me perdi. O que você havia me perguntado?!Não me lembro.!Então, deixemos tudo isso para lá.Permanecemos calados. Demoro a reagir. Fabio ainda funciona no início do século XXI. É difícil questioná-lo. Falta-lhe um mecanismo contemporâneo para que entenda o que pergunto. Usamos vocabulários diferentes no tempo. Há um momento em que os conceitos giram e mudam de posição. Pulam de órbita. Parece que Fabio perdeu esse momento. Ele tem razão. Só consegue dialogar através de sua velhice. Já não sei mais o que perguntar.!Se você não considerava o público, para que fazia exposições? Por que tornava seu trabalho público? Isso não é contraditório?!Deve ser. A contradição acontece sempre que se juntam palavras para um texto. Silêncio. Fabio volta a ficar de perfil, sem me olhar. Dialoga com sua confraternização de fantasmas. É melhor que viva nessa cidade minúscula. Outra cidade não caberia nele. !Mas havia pessoas que iam às suas exposições. Foram elas que deram aval ao seu personagem social, não?!Não me culpe. Estamos inseridos em um modelo de sociedade, assim como a formiga fadada a ser soldado. Revoltar-se contra o modelo cansa. E revoltar-se é sempre querer tomar o poder pra si. Prefiro conspirar. Em silêncio, como disse há pouco. (Silêncio) Quanto aos que iam às minhas exposições, acontece às vezes de atrairmos quem a gente menos espera. Somos sempre charmosos para alguém.Fabio diz algumas frases porque pensa que vou publicá-las. É como quem escreve um diário para que um dia o mundo leia. Saltamos do táxi e entramos no prédio. Vamos direto à varanda do apartamento. Apoio-me na grade com todo meu peso, Fabio encosta apenas um dos cotovelos.!Gostaria de voltar a falar do seu mestrado.!Você trabalha muito. Não quer falar bobagens?!Desculpe.

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Silêncio.!Estava apenas brincando. Você veio até aqui para isso. Quer falar sobre o meu mestrado. Diga.Fabio me desconcerta e depois finge inocência. Para velhos, como ele, resta pouco. A não ser esses jogos vazios.!Site Specific, um Romance foi seu projeto de mestrado. Na época, você tinha trinta e seis anos. Por que tanto tempo entre a graduação e o mestrado?!Receio da academia. Espero que Fabio faça uma pausa grande para dramatizar o que acaba de dizer. Mas, apenas arruma a respiração. !Sempre fiquei muito confuso em meio a todos os sistemas de pensamento. Eu concordava com todos. Também discordava de todos. Para mim, todo mundo tinha razão. Qualquer tese me causava comoção. (Silêncio). Até hoje penso que todo mundo tem razão. Se uma pessoa diz o que diz, é porque acha que tem razão e, se acha que tem razão, é porque tem razão. Filliou dizia ter escolhido ser artista para que não precisasse ter razão. Sempre gostei de pensar em arte nesses termos. Se alguém olha para um armário e diz porta, quem sou eu para contestar? Sou antiquado, respeito mais o desvio do indivíduo do que a convenção coletiva (Silêncio). Acho que me perdi, qual foi mesmo sua pergunta?!O mestrado. O medo da academia. A confusão com os sistemas de pensamento.!Sim. Era isso, me lembrei. Os discursos e as ideias sempre me assustaram. Talvez porque eu sentisse que a arte não me parecia um discurso, não era desse universo, ela era um gesto, uma forma, um objeto, no mesmo sentido da batida de carros, que é algo físico, factual, inesperado e que só depois gera a vontade teórica para tentar cicatrizar o acidente. (Silêncio) Sempre me senti incapaz do discurso. Sou um ignoramus autêntico. Minha natureza sempre foi a de apenas bater os carros. (Silêncio) Nunca consegui me alinhar a um pensamento ou ser completamente contra um outro. Sempre fui simpático a todos. Cético em relação a todos. Eu detestava os que eram contra tudo, no momento em que estavam sendo. Abominava os que eram a favor, quando os via sendo. Enfim, eu era essencialmente à deriva. Por isso as batidas. Deixava-me levar por um pensamento, por um filósofo, por uma tese, por um nome porque desconfiava que iam na direção onde, naquele momento, eu também ia. Mas isso não significava aprofundamento ou fidelidade, da minha parte. Se meu desejo mudava de direção, eu retomava a deriva, me afastava, esperava pelo outro pensamento, muitas vezes contraditório em relação ao anterior, e me deixava levar. Pautei a vida pelo desejo à deriva. Paguei nota a nota o preço disso. Nada devo. Dispensei o troco. Estive em todas as batidas e fugi do Resgate da teoria. (Silêncio) Não acreditava que eu poderia continuar sendo assim na academia. !Assim como?

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!Uma puta, com seu amor confuso e passional de puta.Gargalhamos. Quando feliz, Fabio é bonito.!Você acreditava que na academia sua deriva seria ancorada?!Havia esse receio. Passei anos me relacionando com arte sem querer saber o que ela era, ou analisar seus mecanismos. Eu temia que, na academia, eu precisasse cercar essa relação com todos os instrumentos da nomenclatura e do entendimento. Eu tinha receio de começar a me encantar mais por conseguir nomear do que por fazer coisas sem nome. !Então, superou o receio de na academia começar a cicatrizar ao invés de machucar?!Quem continua puta, aos trinta e seis anos, não pode mais ter receio de nada.Não sei mais o que perguntar. Nossa conversa, hoje, desvirtua-se. Talvez eu não aproveite nada em minha pesquisa. Surpreende-me o quanto Fabio é antiquado e autoral no que diz. Tenho, à minha frente, um velho sem a menor importância para a arte atual. Alguém que ainda faz questão de fincar-se em um eu, só e autoral.!Crê que ainda vive à deriva?!É meu jeito. Almoçamos. No resto da tarde, falamos de coisas inúteis. É importante estabelecer um passatempo entre nós. Anoitece. Fabio me acompanha até a porta. Digo-lhe que não é necessário descer as escadas e me levar até a rua. Hoje, tive melhor noção da idade avançada que tem. Mas já estamos no fim das escadas.

Nos primeiros encontros com Fabio não consigo conduzir seu devaneio. Esqueço as perguntas que tinha programado e acabamos numa conversa sem sentido. Há muitos silêncios entre nós, que nada acrescentam. Desconfio que Fabio ache isso tudo patético. Um velho falando coisas do passado para um jovem curioso. Talvez ele aceite por não ter o que fazer. Ou por consideração aos meus pais. Por gostar de mim e querer me ajudar. Também por acreditar que de alguma forma ele é importante. Fabio não me pergunta para quê venho aqui. Eu também não lhe digo nada. Hoje é nosso nono encontro. Não sigo as perguntas que anotei na biblioteca. Tenho vontade de estar com Site Specific, um Romance aqui nas mãos. Fabio sabe que estou confuso. Mas não me ajuda. Hipnotiza-me com as contradições de seu maneirismo autoral, e perco o fio condutor do que havia planejado. Agora, Fabio responde a alguma pergunta minha, não me lembro qual. Sem atrair sua atenção, fuço a bolsa. Encontro meu caderno. Tateio sua capa enquanto Fabio diz algo que mostra o quanto está desatualizado. Tiro o caderno da bolsa sem alarde, mas Fabio percebe. Minha ação corta sua resposta. Improviso uma pergunta a partir do que leio sublinhado em minhas anotações:!Suponhamos que, na época em que você escrevia Site Specific, um Romance, você

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tivesse tido uma ideia. Escrever um capítulo onde, décadas depois, o jovem filho de um casal de amigos há bastante tempo mortos lhe entrevistasse sobre este mesmo romance. Com que pergunta o jovem pesquisador começaria essa entrevista?Silêncio.!Acho que eu escreveria que o jovem pesquisador teria me perguntado: !Site Specific, um Romance foi sua tentativa literária?!Não. Fecho o caderno e o devolvo à bolsa.!Eu nunca fiz literatura, é uma arte muito conservadora. Dava-me prazer lê-la, mas não produzi-la. Site Specifc, um Romance foi minha afirmação de que escrever uma ficção era tão arte visual quanto fazer um vídeo ou uma performance. Aliás, considere todo e qualquer trabalho que fiz como a escrita de um artista visual. Ainda se usa esse termo?!Qual?!Artista visual.!Não. Mas, historicamente, sabe-se do que se trata.!E escritor. Usa-se esse termo ainda?!Sim. !Os escritores não se extinguem. Olho para a biblioteca de Fabio, na parede lateral da sala. Abarrotada de literatura.!E em Duchamp, ainda se fala nele?!Pouco. Fala-se mais em Marcelo do Campo.Silêncio. !Você disse que não há mais o termo “artes visuais”. Há o quê? Ainda existem artes visuais?!Há algo semelhante. Mas com diferenças em relação ao que era entendido na primeira década deste século. Temo que Fabio aprofunde essa questão e perceba, pelas minhas respostas, que ele próprio não existe mais. Para meu alívio, ele emenda.!Deixe isso para lá. Não preciso mais entender essas coisas. Silêncio.!A literatura foi uma substância reagente sobre mim. Mais que as artes visuais, não posso negar. Sinto o tempo como narrativa e vejo coisas nas palavras. (Silêncio) As palavras também impediram minhas melhores horas de amor. !Então, não tentou ser escritor?!Não. A literatura serviu-me de paraquedas na queda livre das artes visuais. !Aproveitou-se do conservadorismo literário para dar-lhe segurança?!Pode-se dizer que sim. As artes visuais eram meu primo pervertido. A literatura, minha

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tia-avó.Silêncio.!Li em algum lugar de Site Specific, um Romance, acho que quando o jovem pesquisador lhe pergunta sobre sua relação com a literatura, que você via toda a sua obra como a escrita de um artista visual. Você foi um escritor diletante? !Não, esse é um raciocínio reducionista. Respondo a você com a ideia de Schwitters, de que atuar em diferentes gêneros artísticos era não se especializar em uma arte, mas ser um artista. Silêncio.!Merz.!Sim, claro, é esse o raciocínio. Mais que raciocínio, um sentimento. Schwitters escreveu naquele livro ali...Fabio aponta, de longe, um livro qualquer na estante....que no teatro Merz, ao contrário do teatro ou da ópera, o cenário, a música e a representação não serviam para ilustrar um texto. Texto, representação, música e cenário eram uma só coisa, elementos inseparáveis e indistinguíveis da obra total que era o teatro Merz. Eu sentia isso em relação aos meus trabalhos. Não havia fotografia, instalação, texto, livro, desenho ou o que quer fosse, como elemento isolado e categorizado, produzido segundo suas relações internas e particulares. Tudo fazia parte de uma fusão maior, que era minha prática como um todo. Minha escrita verbal era apenas mais uma das substâncias dessa fusão, desse meu Merz pessoal. Não era literatura. Silêncio.!Sim. Fui um escritor, é claro que fui, não tenho dúvida. Mas não de literatura. Nem para a literatura. Nem pensando nela. Fui escritor ao ser artista. É naquele livro ali...Fabio se vira e aponta outro livro qualquer na estante....que Cage diz que para seus textos de cunho literário utilizava essencialmente meios de composição musical. Ou seja, escrevia enquanto músico, não enquanto escritor. Já Carl Andre escreveu, naquele outro livro ali, que não compactuava com o fato da poesia ser subjugada à música, no que se refere à métrica, ao ritmo, à rima. Andre escreveu seus

sempre a partir do e dos procedimentos de sua prática escultórica. Cage e Andre praticaram uma escrita que não derivava da literatura.Fabio volta a ficar frente a frente comigo.!Tudo o que eu fazia era uma escrita, fosse uma instalação, fosse um objeto ou fosse um texto, tudo era ideogrâmico. A escrita foi meu vetor. Era um pouco complicado assumir isso num país onde o construtivismo abstrato era uma anomalia de nascença. Entre os dadaístas e os pintores, o país escolheu o bom comportamento dos segundos. A história da arte brasileira nunca soube o que fazer com Flávio de Carvalho. Provavelmente não

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saiba até hoje. O modernismo utópico, comportado e formalista realmente adaptou-se muito bem à classe média brasileira, financiadora da arte e feliz com o bibelô Brasília. Quando alguém me dizia que muitos dos meus trabalhos eram narrativos, dizia isso com receio, como se estivesse me xingando. Mal sabia que, para mim, isso era natural.!Sua obra era uma escrita, mas você não era um escritor. !Não no sentido literário. Eu escrevia assim como o usava o corpo como suporte e matéria, sem precisar do teatro, e o videoartista trabalhava com o audiovisual, sem precisar do cinema. Escrevi fora da literatura. As artes visuais acolheram todos que eram estranhos aos paradigmas de linguagem de cada modalidade de arte. !Por isso as ideias de escrita conceitual, algo em voga na época em que você escrevia Site Specific, um Romance, buscavam ligações históricas mais na arte conceitual das décadas de 1960 e 1970 do que na literatura?!Creio que sim. E isso era saudável. Se a literatura não considerou a escrita sem personagem e sem ação de Lawrence Weiner, era mais lógico que as ideias de escrita conceitual de Kenneth Goldsmith e Craig Dworkin, é deles que você está falando, não?, encontrassem eco na arte conceitual, e não na literatura. Eu preferia essa ponte do que a ponte entre a poesia concreta e a visualidade, que se dava sobre uma relação mais tradicional, mallarmaica e retiniana. Essa ponte era a mais comum no Brasil, por causa da tradição da poesia concreta. Mas eu também não me via nesta turma concreta. Se na época em que escrevi Site Specific, um Romance escritores estavam referenciando a escrita conceitual na arte conceitual de quarenta anos antes, esse era um apagamento de fronteira que me interessava. !Em Site Specific, um Romance, no capítulo Hachura, o personagem que chega ao apartamento joga um exemplar do livro sobre o sofá. Isto mostra que a literatura lhe informava de alguma maneira.!Sim, claro. Afinal, era com linguagem verbal que eu estava trabalhando em Site Specific, um Romance. E o desafio era, para uma experiência de arte visual no ato da leitura, usar somente texto. Eu não me interessava, em pleno 2012, pelos aspectos mallarmaicos da página como espaço, mas sim pelo texto como espaço expositivo. Para isso, eu precisava ter noção de como construir essa espacialidade textual. Então, escondido, li teorias sobre a narrativa. Mas, para mim, elas desmoronavam quando eu pensava que Sophie Calle era a única escritora contemporânea de língua francesa, e não digo escritora entre aspas, que realmente me interessava. Para que escrever narrativas sobre o amor, se Calle havia escrito, com textos, fotografias, ações, depoimentos e design gráfico, seu livro

? !A escrita além da narrativa verbal, dos artistas visuais, lhe interessava.!Muito.

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Fabio olha atento para sua biblioteca.!Quanto mais eu avançava na escrita de Site Specific, um Romance, mais eu sentia não fazer literatura. (Silêncio) Como disse há pouco, eu era um ser estranho a ela, essa senhora conservadora. Não havia futuro para nossa relação. Minha escrita não queria o território que a literatura me daria no exíguo espaço da narrativa verbal. (Silêncio) Nunca fui um contador de estórias e elas me cansam. Sempre detestei narrativas onde acontecem coisas demais. Gosto quando quem acontece é a linguagem.Silêncio.!Essa predileção pela linguagem não é valorizar mais o processo construtivo do texto que a fruição da leitura?!Sim, pode ser. Como escreveu Cage, naquele livro ali...Fabio aponta aleatoriamente outro livro qualquer na estante....escrever música não é executá-la e nem escutá-la. São três processos diferentes. Talvez ocorra o mesmo na escrita. Escrevi Site Specific, um Romance com a consciência dessa diferença, manipulando a leitura como quem manipula ferro derretido. Neste sentido, sim, é valorizar mais o processo construtivo, e a leitura do autor é algo importante neste processo, ela é a ferramenta que lapida, burila, dá forma ao texto. Escrever é criar a matéria-prima. Ler, editar, reler, editar, reler e editar e reler e editar é dar-lhe forma. Claro que é tudo um só processo e creio que tanto escrever quanto ler sejam objetuais. Minha matriz sempre foram as artes visuais, onde se vê espaço e forma em tudo, inclusive no texto, e onde processo é obra.!Por que toda essa necessidade de materializar a linguagem?Silêncio.!Pelo mesmo motivo que meus trabalhos visuais eram narrativos, eram texto latente. (Silêncio) Sempre quis inverter as coisas. Sou um invertido. É a chave da minha personalidade.Silêncio.!Em Site Specific, um Romance, o que o texto narra parece secundário. O importante é o texto desdobrando-se de várias formas.!Sim, era isso. Na vida não acontecem coisas demais, muito pelo contrário. Meses sem acontecer nada. Na vida, acontece texto demais. Linguagem demais. A gente fabrica uma tonelada de linguagem para dar conta do que é simples e sem nome. Prefiro obras onde quem acontece é a linguagem, é ela que está em conflito, não apenas o assunto. Criar conflitos entre personagens: como pôde a literatura ser escrava dos gregos por tanto tempo? Me interessa mais a massa do texto e sua substância, do que a estória contada. (Silêncio) Para mim, essa massa do texto era a mesma massa dos objetos, das instalações, dos livros, dos vídeos que eu fazia, e tudo isso era substância da minha escrita: madeira,

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metal, papel, texto, tinta, imagem, leitura. (Silêncio) Como artista visual, sempre vi matéria e substância em tudo, inclusive no texto. !Acho que foi Dworkin que escreveu que a desmaterialização do objeto de arte, entre os 1960-70, se deu às custas da materialização da linguagem verbal.!Sim, tenho este texto do qual você fala, está ali naquele livro...Fabio aponta a biblioteca....é quando o autor cita Smithson em “LANGUAGE to be LOOKED at and/or THINGS to be READ”. É a materialização da linguagem verbal. Sempre fui dessa turma, que via um texto como imagem, coisa, objeto, textura, calor, além de veículo de uma ideia. !Penso na tradição de separar texto e imagem. Talvez seja essa tradição que não permita ver o texto como um objeto.!As tradições são burras. Lembro-me que se eu ia a uma palestra e alguém começava a falar da relação entre imagem e texto eu me levantava e ia embora. Para mim, era como estar em uma palestra onde se discutisse a rede de transporte de bondes em São Paulo, em 1920. Só interessava aos saudosistas.!Eu lhe entendo. Mas insisto. Dizer que texto é objeto e substância não seria uma licença poética, uma fabulação que você usa porque o seu “papel”, e digo papel entre aspas, de artista lhe dá o direito à licença poética e à fabulação?Silêncio.!Assita , de Michael Snow. Perceba a escrita, e também a leitura, como uma experiência audiovisual. O texto é imagem, ator, paisagem, edição, drama, lírica, voz, autor em off. Cada palavra é um plano-sequência. Texto-cinema, construído com a sintaxe verbal, mas oferecido à leitura através da sintaxe cinematográfica. Sintaxe verbal fundida à cinematográfica, num textocinematexto. (Silêncio) E você vem me dizer que ver o texto como objeto e substância é apenas uma licença poética minha. Sua última pergunta foi de uma idiotice, estreiteza de pensamento e tradicionalismo que me espantam, me perdoe.Fabio diz isso com uma doçura e calma que me impedem de perceber seu insulto. Só me dou conta disso agora, ao transcrever sua fala.!Pare de papagaiar os livros, pelo amor de deus. As teorias não servem para a arte. Elas estão em outro campo. A relação com arte deve ser como a de um maratonista solitário. Quando as teorias chegarem, o maratonista já estará no banho. Se não for assim, arte não será arte, será apenas um artesanato filosófico, sociológico, intelectual. Alegoria e bibelô. Pense a arte através da arte. Primeiro isso. Depois, para confeccionar as franjas, para o rodapé e para o acabamento, procure os teóricos. Eles são o arremate final.!São a cicatrização.!Sim.

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Silêncio.Fabio nasceu no século passado. Realmente, ele ainda é utópico.!Pense na bola vermelha de Jesús Soto. Ela existe? Não, é ilusão, são fios esticados cuja junção das partes vermelhas faz a retina enxergar uma bola. Mas, a bola existe? É óbvio que existe, a retina vê a bola, se você tocar qualquer um dos fios esticados, na parte vermelha, você toca a bola. Um texto é a mesma coisa. Se a leitura sente a secura e a retidão do texto de Graciliano ou o fluxo caudaloso de um Waly, é o mesmo que sua retina enxergar a bola de Soto. O texto e a bola são táteis. !Acho que entendo. Essa era sua relação com o texto, a mesma da retina com a bola de Soto: ver uma forma objetual na junção das palavras, na narrativa, como nos fios vermelhos que formam a bola.!Sim, cada linha de um texto é como aqueles fios de Soto. Forjam uma forma no ato de leitura que, pelo forjar, existe como objeto. Creio nisso.Silêncio.!Quando você fala em escrita como matéria, objeto e substância, me lembro quando em Velatura, último capítulo de Site Specific, um Romance, o jovem pesquisador capta, em sua fala, a influência de Flávio de Carvalho.!Na ideia de reagente? Sim. Li o livro de Flávio assim que saí da faculdade, eu me lembro. A frase era muito simples...Fabio se levanta e vai à estante, direto ao exemplar de . Acha a página e lê....abre aspas, contemplei por algum tempo este movimento estranho de fé colorida, quando me ocorreu a ideia de fazer uma experiência, desvendar a alma dos crentes por meio de um reagente qualquer que permitisse estudar a reação nas fisionomias e blá blá blá, fecha aspas...Fabio fecha o livro. ...e o resto é a lenda, Flávio fura a procissão. Não é o máximo? Esse trecho alterou-me a vida. Arte como reagente, era tudo o que eu precisava visualizar. (Silêncio) E você ainda me pergunta se eu quis fazer literatura? Ora, francamente. Flávio escreveu o relato de uma ação que é reperformada no ato de leitura. Eu mesmo nunca me cansei de performá-la. Você acha que isso é literatura? Claro que não. O texto de Flávio é . Lendo-o, não sou seu leitor, sou seu . Se você lê meu livro Site Specific, um Romance como um leitor, vai detestá-lo... Não é literatura. Assim como quem lê “A Experiência” de Flávio como e vê os fios de Soto como uma bola, leia Site Specific, um Romance como alguém que percorre uma exposição de arte visual. E leia este capítulo Velatura como quem anda em torno de uma escultura percebendo transparências.Silêncio.Distraio-me um pouco do que Fabio diz. Ele se perde no devaneio. Há um momento

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em Velatura, último capítulo de Site Specific, um Romance, em que Fabio diz ao jovem pesquisador que prefere pensar a arte com os instrumentos da arte. Talvez por isso ele junte Soto, Flávio e Schwitters, com Cage e Filliou em torno, em um só discurso, sem cerimônias, para pensar sobre sua prática. Começo a entender melhor sua deriva. Penso em perguntar-lhe se é proposital que ele use os artistas visuais para referenciar sua escrita, e não os teóricos da literatura ou os escritores. Mas Fabio continua divagando. Olho a cozinha, às suas costas. De lá, Fabio sempre traz o café que hoje ainda não fez. O vitrô sobre a pia. Atrás dos vidros, a copa da árvore que fica na região onde sempre atravesso a rua. Fabio vai à estante guardar o . Seu movimento resgata minha atenção. Para voltar ao diálogo, pergunto o que me vem à cabeça.!Em algum momento de Velatura, último capítulo de Site Specific, um Romance, você diz ao jovem pesquisador que suas instalações, seus objetos, seus livros de artista, tudo isso era uma escrita.!Sim. (Silêncio) Comecei a perceber isso ao fazer exposições individuais. A forma como eu distribuía as obras no espaço era tão sintática quanto uma escrita. Era escrever de forma tridimencional no espaço tridimencional. Um desenho era subordinado a um objeto, uma instalação era complemento de uma fotografia, um livro de artista era o verbo de ligação entre o espectador e o espaço expositivo, o modo como eu tentava estabelecer o itinerário do observador, no espaço expositivo, era a pauta. Em toda exposição que eu fazia, pelo menos um trabalho era o vocativo. Claro que essa era uma escrita moldada e ditada pela arquitetura, que era sua página, o que me fez para sempre ter birra de arquitetos. São ditadores.!Mas a ditadura do arquiteto, para o artista visual, não era a mesma ditadura do livro, da folha A4, da página de livro pouco maior que A5, do texto escrito linearmente e da esquerda para a direita, do texto digitado em Word, da possibilidade do , da sintaxe, da ortografia e do idioma, para o escritor de literatura?Silêncio.!Pode ser. Tem razão. Para fugirmos de uma ditadura, caímos em outra. A liberdade é difícil. E talvez a liberdade total seja monótona, insustentável, um estado de coma vegetativo e de solidão extrema.Silêncio.!Você via suas exposições como uma escrita. Algo a ver com Harald Szeemann?!Devo ser sincero, não li . Não era preciso. Há títulos que não precisam do que eles nomeiam. Só a ideia de escrever exposição já me bastava. Esse título foi vírus na minha corrente sanguínea... falo sobre a ideia de vírus em algum trecho do capítulo Velatura, me lembro disso. (Silêncio) E podia acontecer ainda de eu ler os textos de Szeemann e me decepcionar, deles não serem nada daquilo que eu havia imaginado

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para o título do livro. (Silêncio) , é preciso ver esta exposição? Não, o título já basta, ainda mais para mim que, como já lhe disse, reajo às palavras. Eu daria um Nobel para Szeemann pelo título

. Confesso que, para mim, o que o século XX deixou de interessante na arte foram as atitudes como forma e a linguagem como matéria.Silêncio.!Marcel Broodthaers também foi uma influência para você.!Sim, claro.!Cite alguma obra dele.!Não era uma questão de obra. (Silêncio) O museu fictício, claro, quem não gosta? Mas não eram as obras em si que me atraíam em Broodthaers. E sim o fato de que sua escrita não coube na literatura. Seu museu fictício foi um romance que jamais caberia dentro do texto. O não se ajusta à sintaxe verbal. Silêncio.!Você acha que transformar o museu fictício em texto o reduziria?!Sim. Como assunto para um romance não era o que a literatura elege, ela jamais conseguiu se livrar do humano como personagem. Além disso, a linearidade do texto asfixiaria o fato de Panamarenko ter ganhado a corrida de bicicleta, de volta a Bruxelas, na primeira mudança do museu. Isso viraria apenas uma anedota. Sorte de quem esteve presente na corrida e percebeu que aquilo tudo era a escrita de Broodthaers deslizando entre os corpos. O fato da corrida ter realmente acontecido, para que a comitiva que acompanhava a mudança voltasse para Bruxelas, é um acontecimento tridimencional cheio de simultaneidades e de ar. Textos não têm ar, somente silêncios. Textos não lidam com o ar. Talvez, por isso, a literartura necessite o além da escrita verbal. Tento, disto, extrair uma pergunta para Fabio. Não consigo. Então, continuo.!Mas Broodthaers abandonou a literatura para se dar bem e ganhar dinheiro com as artes visuais. Ele mesmo assumiu isso. E com sua visão crítica e cínica, desmascarou a ideologia do museu que oficializou o modernismo.!Sim, mas isso é folclore. Se Broodthaers tivesse cabido na literatura teria continuado nela. Ele poderia ter desmascarado o sistema de museus escrevendo textos. Mas sua crítica seria anêmica se fosse texto. A literatura o asfixiava. Seus poemas são apertados e presos. Sua escrita como artista visual, seja o próprio museu, seja as cartas abertas redigidas no contexto do museu, é mais ampla. Enquanto fala, Fabio se levanta e vai à estante. Volta com um livro com a obra completa de Broodthaers. Acha a página que quer.!Veja essas fotografias de homens descarregando pesadas esculturas de águias de dentro do caminhão, para colocá-las no espaço expositivo do museu real que abrigava o museu

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fictício de Broodthaers. Esse descarregamento tem a mesma fluência de um texto. É ação fictícia escrita no espaço físico, atitude que toma forma, texto materializado. Ao invés de palavras, objetos físicos e ação ortográfica. É uma escrita. Limite entre a ficção e a não-ficção.!Teatro? !Não. Teatro é ficção. Broodthaers estava em outra região. Silêncio.!Não sei por quê, mas acabo de pensar em Sophie Calle.!É evidente. Sophie Calle foi a única escritora francesa contemporânea que me interessou, quando escrevi Site Specific, um Romance. E o que acabo de dizer tem a arbitrariedade do gênero, coisa de língua latina. Sophie Calle foi o único escritor francês que me interessou também. Quando ela pede que um detetive a siga, para anotar seus passos e escrever um relatório que será texto, primeiro Sophie Calle escreve seus gestos no espaço físico: passeia por Paris, entra por ruas, vai ao museu e tudo isso é caligráfico. Cada passo seu é o que liga duas serifas. Ela está escrevendo. Seu corpo é verbo. Esse cotidiano que ela forja é uma escrita. Adoraria copiar o que ela fez. Sentar-me num banco de praça sabendo que esse ato é uma escrita. É como se o personagem manipulasse o escritor, uma marionete invertida. O que o detetive fez depois, foi traduzir a escrita de Calle para a linguagem verbal. Quase um retrocesso.Silêncio.!Então, os escritores que não cabem no texto deveriam abandoná-lo?!Quem sou eu para dizer o que alguém deve fazer? Se nem eu soube o que fazer. Apenas tentei. (Silêncio) Joyce não coube no texto, mas ao invés de saltar da literatura, aumentou a possibilidade de texto dentro do próprio texto. Foi um terrorista dinamitando o próprio quintal. Broodthaers foi uma espécie de terrorista internacional, saltou da literatura para o território das artes visuais. Aumentou territórios. Sem dúvida, isto me interessava mais. Monte uma das seções do museu de Broodthaers e dê o nome de “Quando atitudes se tornam forma”. Isto é um exemplo perfeito de uma escrita física e fictícia incompatível com a literatura. !Eu poderia acrescentar, nesta seção, o texto , de Flávio de Carvalho, uma escultura-texto de Lawrence Weiner, uma instrução de pintura de Yoko Ono e uma música mobília, de Satie?Rimos juntos.Fabio se levanta. É o gesto que revela que vai à cozinha. No caminho, devolve o livro de Broodthaers à biblioteca. Olho em volta. Seus móveis são velhos. Seu apartamento é antiquado. Não consigo detectar em Fabio o mesmo nervosismo do capítulo Hachura, de ritmo acelerado e abuso de palavrões e aliterações. Hoje, é sua fragilidade que me chama

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a atenção. Ele volta. A água demora a ferver. Atrás dele, os vidros do vitrô embaçam. Já não me lembro do que falávamos. !É difícil ler seu livro Site Specific, um Romance e pensar que seu autor é atualmente um artista aposentado.Não disfarço um riso tímido.!Qual é o problema?Pela primeira vez, em semanas, Fabio tem uma expressão jovial. Parece que ao ouvir-me falar artista aposentado, se desaposenta.!Você acredita que arte não tem prazo de validade? Que artista não estraga? Tudo estraga, fica velho. Apodrece. A arte deve ter herdado da religião essa ideia de eternidade, onde os mitos jamais devem ser superados. Essa era digital que vocês vivem introduziu eternidade nas coisas? A mesma eternidade dos códigos matemáticos? (Silêncio) Esqueça, nem me responda, não tenho mais idade para o presente. (Silêncio) É romântico achar que um artista tem o que dizer a vida toda. E mais romântico ainda achar que as obras de arte são eternas. Quando o modelo de indivíduo renascentista for superado, e creio que esta superação está atrasada, a primeira coisa a fazer é doar a Mona Lisa para algum museu de História Natural. Silêncio.!Por isso você diz ao jovem pesquisador, no capítulo Velatura, que textos deveriam ter apenas uma edição, para que deteriorassem e sumissem com o papel. Então você não acredita na arte trans-histórica. Você acredita na história? !Envelheço.Silêncio.!No capítulo Vídeo, logo no início de Site Specific, um Romance, o mais jovem dos personagens leva uma fotografia mofada ao hospital para que o mais velho seja contaminado e consiga morrer. Você acredita que as coisas precisam morrer. !Não precisam. Elas morrem. Não me lembro bem, mas acho que em algum lugar de Site Specific, um Romance eu escrevi que cientistas buscam a pesquisa, e não o outro. Escrevi isso, não foi?!Sim, mais ou menos isso.!Pois é. Se buscassem o outro, planejariam melhor sobre o que esse outro poderia fazer quando atingisse cento e oitenta anos. Mas não. O que move os cientistas é apenas atingir os cento e oitenta anos, ou seja, o formalismo científico. Não pensam que talvez cento e oitenta anos seja tedioso e demasiado. Eu, pessoalmente, não quero atingir essa idade. O corpo pode atingir cento e oitenta anos, mas o encaixe que cada um tem com o presente, com a história, com a humanidade, com o outro, com o mundo, não dura tanto. Quando o indivíduo morria aos quarenta anos, não era preciso aposentadoria. Se

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o indivíduo vai a cento e oitenta anos, pelo menos cento e vinte serão de aposentadoria, ócio e conservadorismo. Velhos são sempre conservadores. O que a ciência deveria, era tentar aumentar a adolescência, para que durante quarenta e cinco anos fôssemos rebeldes, inovadores, progressistas, corajosos, libidinosos, irresponsáveis, abertos, ocos, burros e leves. Mas a ciência só consegue aumentar a velhice. (Silêncio) Enfim, falei demais. Só respeito que as coisas acabem. Como artista, meu fôlego acabou.Os azulejos da cozinha também embaçam. Em alguns, já há uma gota escorrendo. A água ferve. Isso me distrai, não sei por quanto tempo. Volto a prestar atenção em Fabio. !Quando eu tinha sua idade, lembro que havia lapsos de até um ano inteiro que eu não tinha nada a dizer, não produzia sequer um trabalho de arte. Passava um ano lendo livros, indo ao cinema, ouvindo música. Se isso acontecia naquela época, imagine depois de décadas. Eu respeitava os lapsos, afinal, eu não era um funcionário de mim mesmo e nem corretor na bolsa de valores do meu trabalho. Havia artistas que se adequavam a essa lógica de mercado, de bolsa de valores, de sua obra como uma empresa que não pode falir e nem mesmo entrar em recesso. Não era meu caso. Até tentei, mas não consegui. Eu nem pendia para o industrial, nem para o agricultor. Arte não é indústria. Nem agricultura. É terremoto. Inevitabilidade. Mato que nasce no concreto. Não é cadeia de produção. Eu não era artista vinte e quatro horas por dia. Talvez venha daí eu não ter me tornado um artista de vida inteira. (Silêncio) Não sei se todo artista é assim. Comigo, foi. Mas não se trata de procurar o silêncio. Sou ocidental. Aqui, o silêncio incomoda. Não me silenciei. Apenas apodreci. Mofei. (Silêncio) Entende?!Acho que sim. Silêncio. !Logo no início de Velatura, o último capítulo de Site Specific, um Romance, você diz ao jovem pesquisador que as palavras só correspondem ao momento em que foram escritas. Sinto que as palavras, em seu livro, não lhe correspondem pelo fato de você não ser mais artista. Antes, eu não conseguia deixar de pensar em você, ao ler o livro. Mas depois que você me disse que se aposentou, é como se o texto não tivesse mais voz. Acabo de pensar que isso não ocorre quando leio um autor morto. Ele continua falando. Será que é por que ele apenas morreu? Não renunciou à própria voz?!Mas eu não renunciei à minha voz. Parei de falar, só isso. Acabou. (Silêncio) Voz, ainda tenho, mas sem o que dizer. Falei o que falei, na época em que falei. Só falei aquilo porque era naquela época. Porque algumas pessoas estavam vivas. Porque algumas coisas estavam acontecendo. Porque eu era aquele. Hoje, não falo mais. Aposentei-me. É isso, é simples. (Silêncio) O simples não requer explicação.!As explicações é que complicam o simples?Fabio sorri o sorriso do cúmplice. Como num jogo, minha última pergunta origina-se

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de um lance seu. Sinto-o orgulhoso disso. Ele se levanta e volta à cozinha. De lá, fala um pouco mais alto:!Quando eu tinha dezoito anos, achava que arte era expressão. (Silêncio) Teve algum artista que disse que expressão é peido. Sabe quem foi? Fabio me olha num perfil de três quartos, sem girar o corpo. Aponta o dedo para lugar nenhum.!Verifique quem foi, por favor, e bote na epígrafe de sua pesquisa: Expressão é peido. (Silêncio) Adotei isso para mim: se você quer se expressar, peide. Não faça arte. Ela não é uma excreção existencial. Eu sentia que arte para mim era esta escrita feita de substância escrita, e não um manancial de assuntos. Silêncio.!Este não é um pensamento formalista?!Não me insulte, rapaz, você está na minha casa. Me xingue do que quiser, menos de formalista. (Silêncio) Não esqueça que tudo o que lhe digo é absolutamente contraditório. A contradição foi meu melhor exercício físico, pratiquei-a na Academia para enrijecer minha musculatura artística. É a contradição quem dinamita a fronteira entre as coisas, ela é a terrorista que o próprio texto produz contra si. Foi me contradizendo que tive as ideias mais claras, que derrubei meus auto-impedimentos e de onde saíram meus trabalhos mais ousados. (Silêncio) Mas, para lhe responder: é claro que há assunto. Mas ele não é o que move, se fosse, tudo isso deixaria de ser arte para ser política, sociologia, filosofia, militância. Ainda existem essas divisões?Fabio volta e me passa uma xícara. Perto, seu tom de voz volta ao normal. !Se eu fosse um artista que se expressasse, ou seja, peidasse, eu continuaria até hoje, pois quanto menos o ser humano tem importância para o mundo mais ele gosta de se expressar. Gente que peida alto, geralmente não tem brilho próprio. É o desespero. Aliás, sempre achei também a tagarelice uma forma de desespero. Essas últimas declarações são bons aforismos para abrir um capítulo. Fabio fala muito por aforismos. O aforismo talvez seja uma forma de desespero. E isso também é um aforismo. !Em arte, nunca me expressei. Nada do que fiz foi uma opinião. Foi uma fabulação. E também uma fabulação formal. Um jogo, essa é a melhor palavra. Jogos acabam, mesmo sem vencedor. Meu jogo acabou faz tempo. Empatei comigo mesmo. (Silêncio) Me perdi na resposta, sou um pouco digressivo, não sou? Te respondi?Jogo-lhe um sorriso que, penso, lhe conforta. !Gosta de aforismos?!Não. (Silêncio) São curtos, não dão espaço à contradição. Só servem às dissertações, não à arte.

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Não sei o que responder. Não entendo a resposta de Fabio. Ela tem a falsidade e as lógicas internas, apenas internas, de um aforismo. O domingo termina. De forma inconsciente, organizo minha bolsa. É a vontade de ir embora. Minhas conversas com Fabio começam a fluir. A fala de hoje me deixa mais empolgado, apesar de excessiva. Fabio sempre diz coisas além do que pergunto. Não tem com quem conversar e se excede. Agora, preciso me centrar em Site Specific, um Romance. Lê-lo novamente depois de ouvir Fabio dizer tanta coisa. É o começo da noite e ele me acompanha até a porta. Da rua, vejo que ele se senta numa das cadeiras da varanda e abre um livro. Qual livro será? Não consigo enxergar lá de baixo. No próximo encontro, pergunto.

!Eu trouxe vinho.Fabio interrompe o que fazia.!Que uva? !Cabernet. Mais clássica. Não entendo de vinhos.!Então, hoje você quer conversar sobre Hachura. É esse o nome do capítulo do porre, não é?Fabio busca o saca-rolha verde. Agora, possui taças. Sinal de velhice. Deve tê-las comprado com o salário de professor. Fabio começa a nos servir. Não tenho chance de lhe falar que hoje não quero conversar sobre seu livro. !Não me lembro muito bem de Hachura.!Parece que em Hachura você abriu um dique, é uma enxurrada de palavras, sons, aliterações e opiniões. É nervoso, excessivo, verborrágico. Fabio nos serve. O vinho o deixa cerimonioso.!É o capítulo que termina no elevador, não é?!Sim.!Seria necessário termos o livro aqui. Realmente, seria. Não me lembro do que escrevi nele. Site Specific, um Romance não passa hoje, para mim, de alguns .Narro-lhe Hachura. Não sei o capítulo de cor. Mas, me esforço. Narro o capítulo traduzido por minhas palavras, com meu ritmo. Aos poucos, Fabio se lembra do que escreveu. !Nesse capítulo eu queria dar mais informações sobre os dois personagens. Agora me lembro. Nos anteriores, os dois eram muito bidimencionais. O modo de dar-lhes tridimencionalidade foi forjar volume no texto, como num desenho realista. Sabe o que é hachura?!Pesquisei em dicionários velhos. Por isso a repetição de frases e palavras? Como a repetição maneirista do traço, numa trama hachurada?!Sim. A repetição dava volume à escrita e à relação dos dois. Dava uma sensação de

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textura na leitura. Quando a hachura estimula a vontade de passar o dedo sobre o desenho, para sentir sua forma, o dedo se suja de grafite e nada acontece, você não tocou o objeto representado na imagem. Queria que a relação dos personagens fosse sentida na sujeira da leitura. Foi o que eu tentei. Não me lembro se consegui.!Já no capítulo Site Specific, de seu livro Site Specific, um Romance, o personagem parece ser a estrutura que se repete durante todo o capítulo, e não os dois personagens propriamente ditos. É como no último capítulo, Velatura, onde o personagem principal é o próprio texto que se dobra sobre si mesmo para se autoexplicar, fundindo tempos, vozes e personagens. !Sim, Velatura não é a história de duas pessoas que dialogam, é uma escultura-texto dobrada sobre si mesma, cheia de transparências que a revelam.Silêncio.Fabio se levanta e vai à estante apanhar seu . Procura por uma página. Anuncia que lerá o primeiro manifesto dadaísta escrito em alemão, por Richard Huelsenbeck. Anoto esses dados. No final da leitura, Fabio fecha o livro e me encara.!Prestou atenção na última sentença? Ser contra este manifesto é ser dadaísta. É um texto que também dobra sobre si mesmo, forjando a transparência entre o ser contra e o ser a favor. Um texto que funde nele mesmo a possibilidade de seu contrário.!Como se essa dobra fosse o real vocabulário do texto.!Sim, é ela que faz o texto acontecer, sua principal palavra é essa dobra. A palavra “este” em “ser contra este manifesto é ser dadaísta” é o que torna o texto um objeto. !Em Velatura há um momento em que você diz ao jovem pesquisador que sempre preferiu textos que acontecem como linguagem, a textos que narram acontecimentos.!Sim. Nunca fiz literatura, não me interessava narrar. Muito menos encontrar a palavra justa. Fui artista visual. Interessava-me a plasticidade, o movimento e a performatividade da leitura. (Silêncio) Uma vez, li uma entrevista na qual Vito Acconci falava que a retórica, e eu arriscaria dizer que também a literatura, é persuasiva, e que a ele interessava mais concentrar sua escrita na percepção do leitor sobre a experiência da leitura do que em sua persuasão. !Você também diz ao jovem pesquisador que nunca foi leitor, mas sim leitura. A leitura era, para você, o material com o qual trabalhava como artista visual, ao escrever?!Não sei se em tudo que escrevi... mas na maioria, sim. Eu moldava o texto pensando na leitura como sensação e não só como cognição. Se você trabalha sobre o conceito de imagem, também é possível trabalhar sobre o de leitura. Ambas não existem, como objeto palpável, mas sabemos que existem, há aí um delicioso paradoxo. !Para você, imagem e leitura são correlatas, no sentido da sensação que provocam. !Sim. Alimentei esse pensamento como um dispositivo pessoal que me guiasse em

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minha produção. Não entendi a maioria dos filósofos que li. Mas, senti seus textos como textura.!Você fala sobre isso quando, em Velatura, cita a bola vermelha de Jesús Soto para o jovem pesquisador. Silêncio.!Cito o quê?!A bola vermelha formada por fios esticados. A obra de Jesús Soto.!Não me lembro disso. (Silêncio) Mas, enfim, nunca me interessou narrar, eu não era escritor. (Silêncio) Há uma ideia de Szeemann, sobre o seu Museu de Obsessões, que gosto muito. Ele diz que as mitologias individuais se dão em uma seleção de signos que forma uma outra língua, a do idioma pessoal. Claro, li isso em uma tradução francesa, nunca sabemos como o tradutor transluciferou o texto. Sem falar na nossa própria transluciferação pessoal, de querer entender de um jeito que, muitas vezes, o autor não disse, mas que é o jeito que precisamos entender naquele momento. (Silêncio) Mais que narrar, me interessava esse idioma natural de cada texto, sua mitologia. Hachura só podia ser escrito daquela forma, Velatura, desta aqui. Comecei a pensar cada texto como um Museu de Obsessões de si mesmo, emprestando e deturpando um pouco a ideia de Szeemann.!Mas, você fala de Szeemann e...!Sim, está naquele livro ali.Fabio aponta a biblioteca. Fico surpreso.!Mas, em Velatura, você diz ao jovem pesquisador que não leu !É verdade, me lembro disso. Quando escrevi o trecho em que digo que não li, eu realmente não havia lido. Mas, depois, li.Silêncio.!E por que não consertou essa informação?!Consertar? Para quê? Que bobagem. Site Specific, um Romance era apenas um processo dito em voz alta. Silêncio.!Bem, acabo de pensar que não consertar, não apagar o processo de escrita e de mudança do texto faz jus à ideia de Velatura, que é o capítulo onde você fala de Szeemann. Admitir que leu depois de ter dito, páginas antes, que você não o havia lido, é uma Velatura.!Um palimpsesto. Ao longo de muitas páginas falamos de processo, de rasura, de edição, de opiniões que vão mudando. Brigas, conquistas e mortes. Velatura poderia se chamar Vídeo.!Como um ? O que me levaria a perguntar: gostou de ?

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Nossas taças estão vazias.!Gostei. Não me lembro o que eu esperava dele. A parte em que Szeemann fala de curadoria, instituições, etc, talvez tenha passado batida para mim. Mas foi uma leitura importante. A ideia de Szeemann, da mitologia individual como o idioma pessoal que um indivíduo imprime no idioma coletivo através de seu vocabulário determinado por obsessões, me fez pensar que solidificar a leitura através de um texto-objeto foi minha obsessão pessoal, minha contribuição-contaminação ao idioma-sonho coletivo. !Explique-me “solidificar a leitura”.!Interessava-me criar formas com a leitura, dobrá-la, ritmá-la, texturizá-la, fazer dela uma experiência, como disse Acconci.Fabio percebe que nossas taças estão vazias.!Por isso, a leitura do capítulo Site Specific parece construir um lugar? À medida que se lê, percebe-se que a leitura está cercada por um limite, ela está presa num labirinto sintático, ou num trilho fechado. É como se a estrutura sintática e os tempos verbais de Site Specific fossem um lugar, tanto quanto o apartamento onde acontece Hachura. !Sim. O capítulo Site Specific era um construído dentro de uma estrutura sintática. O sintático do texto era correlato ao arquitetônico de um espaço expositivo. Silêncio.!Você repete várias vezes ao jovem pesquisador, em Velatura, que nada do que você escreveu é literário.!Não, nada em Site Specific era literatura. Era literartura.!Era nesse ponto que eu queria chegar. Quando você serve vinho ao jovem pesquisador e lhe diz que seu livro é uma literartura. Exatamente aqui, eu queria chegar. Gostaria que você definisse essa palavra. Literartura.!Foi um termo que adotei. Por não ter uma definição exata, era mais generoso com o que eu escrevia. Como Merz. Um termo que vai se redefinindo pela própria prática.Fabio vai à cozinha e volta com uma jarra de água e copos. !Fale-me sobre sua ideia de literartura.!Como lhe disse...Fabio passa-me a água....não havia uma definição exata. Era como o termo “ ”. Havia milhões de definições, mas o que importava é que cada redefinia o termo. Para mim, Site Specific, um Romance era literartura porque tratava a escrita mais como leitura que como veículo de ideia, e a leitura como imagem e tridimensionalidade, espaço, substância e matéria, algo sensorial; então, se aproximava das artes visuais. Mas, ao mesmo tempo, era uma obra de linguagem verbal, aproximando-se da literatura. Não havia novidade nenhuma nesse hibridismo...

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Fabio serve mais vinho.... é poesia, evento e performance ao mesmo tempo; as conferências de Cage são textos ensaísticos e partituras musicais; a é um registro de ação, conto, e texto performativo; os cem trilhões de poemas de Queneau são poesia, matemática e livro-objeto; a resposta literária de Sophie Calle ao romance de Paul Auster é uma escrita acontecida no tridimensional e na ação, não só na linguagem verbal; as esculturas de Weiner só existem na leitura... Fabio termina de se servir....o museu de Broodthaers é uma não-ficção escrita com acontecimentos reais; o

de Morris é a autobiografia do objeto escrita no próprio objeto; as listas de quem On Kawara encontrou são registro de ação, diário autobiográfico e ; aquele livro de Jaroslaw Kozlowski, somente com a pontuação de um texto de Kant, é um livro de desenhos e uma anotação musical de pausas e silêncios; o contínuo de Opalka é a mais perfeita autobiografia já escrita e ao mesmo tempo a única pintura que me interessa a partir da década de 1960... Brindamos....o fato do livro , de Claude Closky, começar com o termo “ ”, por simples questão de ordem alfabética, sepulta qualquer poema de amor e é ainda listagem, coleção, ficção, publicação de artista e poesia; as estrelas baleadas na bandeira brasileira, pelo Marcelo do Campo, são acontecimento histórico, biografia tridimensional, ficção histórica e ação performática; a placa de plástico de Luis Camnitzer, onde está escrito “ ”, explica esta nossa conversa e explica de forma precisa por que sempre me considerei leitura, e não leitor.Fabio toma o vinho. Ele me olha.!Todos esses exemplos definem muito bem, cada um a seu modo, o que eu imaginava ser literartura. O termo surgiu em minha leitura, e não em meu trabalho como artista. Fui percebendo que a literatura me cansava, não me desafiava mais, ela ia deixando de ser reagente, em mim. Passou a ser um líquido neutro, água. Cansei de personagens, de narrativas, de estórias contadas. Ao mesmo tempo, percebia que Sophie Calle, por exemplo, era a escritora francesa que mais me interessava. Ou que as obras verbais da arte conceitual e dos anos 1960-70, de Acconci, Barry, Huebler e companhia, eram a única poesia que realmente me tocava. Elegi como meu livro de poemas do século XX, e como meu livro predileto de literatura non-site, ou literartura, brasileira. (Silêncio) Enfim, minha leitura passou a se interessar por obras que fossem fusão de linguagens, e não a especialização em uma. Silêncio.

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!Como se a arte fosse um reagente e a literatura, outro. A reação dessa mistura seria a literartura?!Pode-se dizer que sim. Obras que, antes de se configurarem como uma linguagem específica, deixavam-se reagir pela arte e pela literatura. !E se afastavam das duas?Fabio nos serve novamente.!Se afastavam mais da literatura, que é sempre conservadora. Se aproximavam mais da arte, um com espaço de sobra para acolher o experimento. !Por isso você diz ao jovem pesquisador, em Velatura, que a escrita conceitual, praticada no início do século XXI, mirava-se muito mais na arte conceitual da segunda metade do século XX, do que na literatura.!Sim. Nem me lembrava que eu havia escrito isso. Sem dúvida, a arte lidava melhor com os tubos de ensaio. O experimentalismo na arte chegava a ser uma espécie de tradição às avessas, como a tradição da ruptura de Paz. A ruptura, mesmo como tradição, é mais animada e arriscada, com mais frio na barriga que o tradicionalismo literário. A literatura conservava o mesmo e suas pequenas variações, a arte conservava o outrismo. (Silêncio) No dia em que li Filliou, meu eixo gravitacional mudou alguns graus, foi então que...Eu não trouxe vinho porque quero falar sobre Hachura. Esse raciocínio é de Fabio. Sigo seu rumo. Trouxe vinho porque quero ficar bêbado com ele. A ideia é perguntar que livro Fabio começou a ler na varanda, depois que fui embora da última vez. A partir daí, pretendo saber o que Fabio lê hoje em dia. Quero falar com ele sobre nossa paixão pela literatura, que resultou em nossa paixão pela literartura. Sua associação do vinho com o capítulo Hachura desvirtua tudo. Era para ser uma conversa solta, de dois bêbados que falam sobre os livros que leem. Fabio continua falando de Robert Filliou. Já que não é possível a conversa descompromissada, quero voltar a Site Specific, um Romance.!Em Hachura, a repetição de frases e termos aumenta à medida que os dois ficam bêbados. Você costumava ficar repetitivo quando ficava bêbado? Fabio interrompe seu devaneio outrista. Novamente, nos serve.!Bote repetitivo nisso. Chamava-me a atenção como lidar com as palavras também se alterava no estado bêbado. O desequilíbrio não era só físico, de andar em círculos, de tropeçar. Havia um desequilíbrio com a linguagem. Isto está em Hachura.!Mas não em Velatura, quando você conversa com o jovem pesquisador enquanto tomam vinho. A escrita é equilibrada. Nem parece que vocês estão ficando bêbados.!Tratava-se de uma escolha formal. Cada capítulo tinha uma forma e uma textura particulares. Cada capítulo estruturava-se sobre seu próprio Museu de Obsessões que, em Hachura, tratava-se da verborragia, do ritmo percursivo da repetição, da escrita

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próxima à fala. Em Velatura, a forma de mostrar que os dois estavam ficando bêbados era outra. Em Hachura, por exemplo, lembro que...Fabio continua falando do livro. Do capítulo Hachura. Pego a bolsa em busca das minhas anotações. Nossa conversa não consegue uma deriva. Mesmo bêbado, Fabio não me pergunta sobre o que faço. Qual é minha pesquisa. O que penso sobre seu romance. Já que nossa conversa não supera a metarreferência, devo anotar o que Fabio diz sobre a literartura. !O álcool aumenta a intimidade entre pessoas.!Sim, aumenta. Gosto deste estado.!Qual?!Perceber que há uma substância estranha em meu sangue. Que...Fabio se levanta e vai buscar outro vinho na cozinha....enquanto meu corpo tenta eliminá-la, fico bem. Mesmo estando mal, é o estar bem dentro do estar mal. (Silêncio) Filosofei agora, não é? Minha idade me dá direito ao discurso.Só lhe resta discurso. Fabio é apenas um punhado de palavras. Deve ter a plaqueta do Camnitzer no lugar do espelho do banheiro. Posso imaginá-lo barbeando-se em frente a ela. Fabio está falando algo sobre Hachura. Nossa noite de pré-amigos bêbados vai por água abaixo. Acho algumas anotações de perguntas que devo fazer. Vou interrompê-lo.!No final de Hachura, um dos personagens diz que só lhe interessa a arte que adia o suicídio de quem a comete. Já em Velatura, você diz ao jovem pesquisador que arte não é expressão, que expressão é peido. Ainda em Velatura, páginas depois, o jovem pesquisador, que só gostaria de tomar um porre com você, vê seus planos irem por água abaixo pela vontade que você tem de continuar falando sobre seu antigo romance, ao invés de jogar conversa fora. Então, o jovem pesquisador retoma a metarreferência do encontro, anota sua definição sobre literartura, e lembra-se de uma pergunta que havia anotado em seu caderno, na biblioteca da universidade. Ele pega as anotações na bolsa e lhe pergunta se não há uma contradição entre a ideia da arte que adia o suicídio, em Hachura, e de uma arte que não é expressão, em Velatura. !Eu escrevi tudo isso?!Sim. Estamos sendo lidos.Fabio abre a garrafa, nos serve, e nos olhamos. !Preciso pensar.Pela primeira vez em nossos encontros, Fabio anuncia o silêncio.Silêncio. Ele faz o gesto, com a taça, de que quer fazer mais um brinde.!Qual foi mesmo a pergunta? Me perdi em meu sistema de pensamento.

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!Eu disse que, em Velatura, o jovem pesquisador lhe pergunta sobre o final do capítulo Hachura, onde um dos personagens diz que só lhe interessa a arte que adia o suicídio de quem a comete. Em um trecho de Velatura, você dá a entender que a contradição é importante, ou ao menos inevitável, no campo da arte, quando fala de sua relação pessoal com a contradição. Então, o jovem pesquisador lhe pergunta se as ideias de que a arte adia o suicídio de quem a comete e de que arte não é expressão, não são contraditórias entre si, o que garante a contradição que, em Velatura, você dá a entender que é necessária como exercício ao artista?!Acho que nesse caso, infelizmente, não há contradição. E quem disse isso, no texto, foi o personagem, não fui eu. Não coloque as palavras que escrevi em minha boca. Em algum lugar de Velatura, me lembro que citei Cage, que dizia que escrever música é uma coisa, tocá-la é outra. Pois bem, escrever é uma coisa, falar é outra. (Silêncio) Mas você deveria perguntar tudo isso aos personagens. (Silêncio) Quanto à sua pergunta, devo admitir que eu pensava assim na época. Não há contradição aí. !O que você acha da contradição? !Palavras mentem. Acho que por isso Carl Andre dizia que o mais natural poema sobre algo é seu próprio nome. O nome é o espaço da ficção. (Silêncio) A contradição não é um problema. Depois, com calma, leia isso tudo o que você transcreveu das nossas falas. Tenho certeza que achará um monte de contradições. Pinte-as com marca-texto. Ficará lindo. Penso que... Fabio fica bonito em frente aos seus livros. Seu cenário perfeito. Ele sempre se senta na cadeira em frente à estante. Parece um antigo apresentador de telejornal....preferia que houvesse.Sua última frase me pega de surpresa. Mudo a pergunta que eu estava preparado para fazer.!Como? Preferia que houvesse o quê? !Contradição, nisso tudo. Mas não há. Se a contradição é inevitável, como você diz que escrevi no capítulo Velatura, então ela é o estado natural das palavras e do discurso. É o exercício do pensamento mostrando-se vivo e com sangue nas veias, como se...Não gosto do rumo que a conversa toma. Não quero continuar nessa direção. Detesto filosofia de boteco fora do boteco. Fabio deve gostar da ideia de Gênio de Café, de Filliou. Quero interrompê-lo novamente.!Qual dos personagens de Site Specific, um Romance é você?Fabio volta da cozinha, com mais água. Somente agora percebo sua ausência. Ele mal entra na sala, quando lhe pergunto. Surpreendo-o. O silêncio entre minha pergunta e a resposta de Fabio tem uma duração inédita. Diferente de todas, desde nosso primeiro encontro. Ele se senta.

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!Acho que nosso silêncio também começa a ficar bêbado.Silêncio.!Ora, nenhum personagem sou eu. Há coisa mais ridícula do que o eu lírico? Francamente, penso que...Jogo-lhe um sorriso cínico. Não sei se para lhe salvar, ou salvar-me. Interrompo-o.!Acho que não acredito. Aquelas opiniões, em Hachura, eram suas, não?Silêncio.!Não me lembro quais eram, mas seriam opiniões minhas se tudo fosse dissertativo. Não era, era um exercício com matéria escrita. Fosse imagem, fosse objeto, fosse texto, em arte eu não me expressava, eu exercitava a substância à minha mão. Se você acha que tudo o que fiz em arte partiu de opiniões, sentimentos e crenças pessoais, então você acredita que um ginasta lhe receberá em casa dando piruetas. Não confunda o exercício com o corpo que exercita. Como eu lhe disse algumas páginas atrás, não fui um crente. (Silêncio) Tem horas que o exercício se traveste de espetáculo, de olimpíada na TV, de exposição de arte. Mas, em essência, continua sendo apenas mais um exercício. (Silêncio) Como exercício, qualquer pensamento é possível ao se revelar na substância do texto. Através da escrita pode-se defender a eugenia da raça, mesmo não acreditando nela. O texto é a engrenagem de tudo que nunca se pensou em dizer. Meu trabalho como artista não foi produto de minha visão de mundo, ou de um eu lírico fiel a si mesmo. A lírica é um cacoete ultrapassado. E o eu? O que dizer do eu a essas alturas? É um obeso mórbido ocupando três poltronas. Nada em Hachura era minha opinião, tudo era texto burilado em um arranjo possível de palavras, era uma com o trio formado por música, escultura e desenho, e não a estreiteza de um texto lotado de significados lineares que... Fabio enxerga sua vida como uma narrativa. É isto, está explicado. É o que estraga suas horas de amor. Deve tentar lê-las, ao invés de vivê-las. Como Miss Cíclone, também é deformado sentimentalmente pelos livros. !Coloque na sua pesquisa que Hachura é . Talvez, um de beira de estrada, um...Não acredito em nada do que Fabio diz. Está bêbado. Lembro de quando, em Velatura, ele fala ao jovem pesquisador sobre o amor de puta. Mais que uma puta apaixonada, Fabio é uma dançarina que balança o ventre de seu discurso capenga, tentando seduzir quem o ouve. É para que ninguém perceba as contradições primárias do que diz. Fabio está em silêncio, só percebo agora. Nos olhamos, desviamos nosso olhar, voltamos a nos mirar. Fabio dá outro gole. Imito-o. Talvez esse tenha sido o silêncio mais longo dos nossos encontros. Será o vinho que bebemos que altera a duração dos nossos atuais silêncios? !Há uma frase bonita escrita por você em Velatura, o capítulo final de Site Specific, um Romance. Está no trecho onde você bebe vinho com o jovem pesquisador, filho de seus

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amigos mortos. No meio do diálogo, o jovem pesquisador percebe silêncios maiores entre vocês. Diferentes dos que estavam acostumados. Isso faz você comentar: !Acho que nosso silêncio também começa a ficar bêbado.Silêncio.!Isso é bonito. Escrevi isso? É uma pena que eu não me lembre.!É uma pena não termos um exemplar do seu livro aqui. Teria prazer em lê-lo para você.Sirvo mais vinho. Erro a taça.!Em Velatura, quando você escreve sobre a duração dos silêncios, você se refere a Cage?!Sim. Deve ser em , Cage diz que a única coisa que há em comum entre o som e o silêncio é a duração. Numa das versões da partitura de 4’33’’, a que é texto ao invés de partitura, Cage anota em que momento o pianista deve quebrar o silêncio.!É performático.!Sim, é. Partitura para performance, e toda e qualquer partitura para performance é silenciosa, só passa a funcionar com o PLAY do leitor. Também é um momento onde a linguagem se materializa, onde poesia ou literatura deixam de ser metafóricas e migram para a partitura, para a anotação coreográfica do gesto que será físico. Depois virão os eventos de George Brecht e o de Yoko, que...Aproveito que Fabio dará mais um gole e procuro perguntas em minhas anotações. Ele é lento, posso aproveitar esse tempo. Folheio o caderno. Enquanto não acho nada, retomo o que falávamos.!É realmente difícil admitir que Hachura não é um amontoado de opiniões suas. Que, no texto, à medida que você, desculpe, o personagem fica bêbado, ele se solta e diz com mais radicalidade o que você pensa. Eu sempre li o texto dessa forma.!Você lê meu texto da sua forma. É simples assim. Se não querem decepção, as pessoas não deveriam conversar com artistas. Somos mais limitados que nossa obra.Damos o último gole de vinho de nossas taças.!Leio Hachura pensando que o morador do apartamento é você.!Se você me conhecesse além da sua infância, me veria mais no personagem que chega ao apartamento e fica calado todo o capítulo. Ouço muito mais do que falo. Tudo o que falei até agora, falei porque você me pergunta e porque isso tudo é texto. Falo melhor de forma escrita. E você só está aqui para que eu fale. Obedeço à circunstância. Mas nenhum dos dois personagens sou eu. Escrever na primeira pessoa só é uma aventura se essa primeira pessoa for outra, uma terceira pessoa forjada em primeira, é isso que...Fabio forja-se no que escreve. Sempre li seus escritos dessa forma. Toda sua escrita é ele mesmo, falsificado. . É um egocêntrico. Realmente, está fora do mundo atual, seria bom se... !O que tanto você procura neste caderno?

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Há minutos procuro algo em minhas anotações. Não percebo a dificuldade. É o álcool. De manhã, acordo assustado. Estou no quarto de Fabio. Dormi calçado, devo ter sujado sua cama. Ao meu lado, de costas para mim, um velho de pijama. Fabio está levemente encolhido, roubei seu cobertor a noite toda. Levanto-me com vergonha. Faço barulho, mas Fabio não reage. Terá morrido? De frio? Coma alcoólico? Aproximo-me. Sobrancelhas grossas e brancas, boca roxa, respiração lenta. Está vivo. Minha boca deve estar roxa também. Deixo um bilhete sobre o criado mudo e saio do quarto. Vejo cinco garrafas de vinho vazias na mesa da sala. É estranho. Eu só trouxe duas. Como em um piquenique, há muitos livros espalhados sobre o tapete. O poemobile VIVA VAIA está em pé, perto da mesa de centro, ao lado de uma taça caída. Há respingos de vinho no branco do papel. Sobre a mesa, há outros poemobiles fechados. Alguns estão abertos numa das prateleiras da biblioteca. Há outro no chão, na passagem entre a sala e a cozinha. Acabo de me lembrar, ontem eu e Fabio brincamos de decorar a casa com poemobiles. No canto do sofá onde sempre me sento, está aberto, de bruços. No outro extremo do assento há uma coluna de livros empilhados de forma improvisada. A capa amarela de chama a atenção. Fabio diz que esse livro sempre o emociona, me lembro vagamente disso. Essa lembrança é interrompida pelo espanto que

me provoca. O livro de Queneau está aberto, como um ouriço jogado no chão entre a sala e a varanda. Acabo de me recordar, Fabio lê em voz alta um trecho de e se lembra do ouriço de Queneau. Vai buscá-lo e deixa comigo o Perec, que agora vejo abandonado perto do VIVA VAIA. No outro canto da mesa de centro há vários Goldsmiths, com marcando alguma página dentro de . Ambos em cima de . Não me lembro se lemos algum deles. No canto da sala, perto da luminária onde Fabio passa boa parte da noite, está aberto sobre o fac-símile de . Meu estômago dói. Sinto meu corpo estranho. É a ressaca. Preciso de água. Na estante, vejo o de Ginsberg, intacto. Tenho a sensação de o termos lido ontem. É quando Fabio mostra-me vários textos de artistas pós-minimalistas e conceituais, eu me lembro disso. Lemos trechos de Smithson, Graham e LeWitt, reparando em como citam-se uns aos outros. Artistas avalizando os amigos artistas. Rimos, eu e Fabio, de como se acham os gênios da raça, reunidos num só grupo ligado pela amizade. Comentamos que isso é comum, os concretos brasileiros fazem o mesmo em seus textos, os neoconcretos, os tropicalistas. Recordo-me que a certa altura Fabio lê

. Explica ser a tradução mexicana de um texto de Smithson onde novamente o autor cita os amigos, analisando a escrita de cada um. Quando escrevi Site Specific, um Romance, Fabio diz, eu quis empurrar a linguagem, que ficava nas imediações da arte, para seu centro, onde eu pudesse fundi-las. É quando levanto-me e vou à estante.

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Pego o e leio vários trechos ao mesmo tempo em que Fabio lê o de Smithson. Leio poemas onde Ginsberg também cita seu Clube do Bolinha, Solomon, Kerouac, Burroughs, Cassady. Lembro-me de tudo agora. Chego ao poema “Peço-lhe que volte & fique contente”, de Ginsberg. Fabio se levanta, vai à estante e retorna com . Ele espera quando, no final do poema de Ginsberg, leio “Essas Galáxias cruzam-se como roldanas”, e nesse momento Fabio começa a falar as de Haroldo. Gargalhamos da arbitrariedade em misturar concretos com beats. Fabio diz que não há problema, aqui nada pode ser tão radical, podemos apartar a briga, brasileiro tem o defeito de ser da turma do deixa-disso. Depois, lembro que Fabio vai à estante e volta lendo um trecho da primeira inconferência de cummings. Pois enquanto um conferencista genuíno tem de obedecer as regras da conveniência mental e vestir as suas idiossincrasias pessoais de generalidades coletivamente aceitáveis, um ignoramus autêntico permanece de todo inconvenientemente livre para falar como lhe apeteça. Há um momento na noite que Fabio aperta o PLAY da escrita de Hélio, fala dos cruzamentos inusitados de diferentes referências, um sampler contínuo de bobagens cotidianas atravessadas por citações eruditas. Quase num sussurro, Fabio cita o escrevo por que li, de Barthes. Sinto a boca seca. Quero água. Preciso ir embora. Estou prestes a perder meu voo. Lemos trechos aleatórios, em voz alta um para o outro, estamos na terceira garrafa. Minha cabeça dói. Temos uma ideia, não me recordo de quem foi. Usar o acaso que compõe um poema através do sorteio de palavras recortadas de um jornal, de Tzara, para lermos

. Vou à estante pegá-lo, Fabio aponta-me a lombada do , está ao lado do . Abrimos o livro de Waly ao acaso, NÃO VOU PRODUZIR MUITA COISA NESTE

MUNDO. Já sei., e lemos o primeiro trecho que nos vem ao olhar. Inimigo é uma coisa, invasor é outra coisa. Invasor contrário de inimigo, Fabio lê e rimos alto. É o riso cínico do colonizado, Fabio comenta. Brincamos de oráculo, com essa leitura ao acaso. Ficamos muito tempo lendo dessa forma, Você sabia? Você sabia que o último longplay de Caetano Veloso em 1968 ia se chamar Boleros & Sifilização?, alternamos as jogadas-leituras de Me Segura entre nós, Me Segura qu’Eu Vou Dar um Troço apocalipópótico. TRASHico. retarDADAico. Final dessublimador: não sou escritor coisíssima nenhuma, não passo de um leitor A-pressado B-obo C-alhorda vá desfiando letra por letra o ABC do cretinismo até o Pê de pretensioso, leitor apressado bobo calhorda... pretensioso de Sousândrade Oswaldândrade Guimarosa ou seja leitor do certeiro corte dos concretos. Leitor dos fragmentos 45 e 81 da edição brasileira bilíngue dos Cantares. Nem sei que horas são, estou atrasado. Ficamos muito tempo lendo Waly, minha ocupação é inventar metas pra atravessar, ver através – exemplo atual: anarcisismo. Onde coloquei minha bolsa? Tenho de achá-la e ir embora. Vou fazer uma pergunta ingênua: —Você torce pra que tudo meu dê certo? Rio fev 71, leio mais esse trecho de . Eu me lembro,

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passamos muito tempo nesse jogo. Estamos na varanda, aqui onde procuro minha bolsa para ir embora. Estou cada vez mais atrasado. Eu e Fabio declamamos em frente à noite, evitem: comprem Me Segura. The end pra passar na alfândega aduana: declarar como documento patológico pra congresso internacional de psiquiatria. Rimos alto deste despacho internacional para a arte. Minha perna esbarra no . Está na beira da poltrona do canto e cai aberto no chão. Ele estava sobre . De repente, me recordo. A certa altura da noite, leio em voz alta vários contos anônimos do livro de Dora García. Fabio diz que é para que tudo, absolutamente tudo, passe pelos lábios do leitor. É o que Dora García propõe nesse trabalho onde qualquer um contribui com uma história, me diz Fabio. Onde está minha bolsa? Vejo páginas picadas atrás do sofá próximo à varanda. Fabio vai à estante e pega outro cummings, acabo de me lembrar. Isso acontece antes de lermos Waly. Fabio abre cummings no clássico poema da folha que cai por dentro da palavra solidão, e diz que esse poema é a mais bela instalação já feita. Lembro de comentar com Fabio sobre a Coluna Infinita, espécie de bibliografia de seu livro Site Specific, um Romance. Nela, Fabio enxerta a bibliografia dentro do poema de cummings, com Ana Cristina Cesar caída lá no fim, que é quem inspira a forma dessa bibliografia. Fabio diz não se lembrar disso. É uma pena, mas não se lembra, e repete que o poema de cummings é uma instalação perfeita. Diz que é aqui, exatamente aqui nesse poema de cummings que a linguagem verbal se materializa de vez. É incrível, Fabio continua falando enquanto nos serve mais vinho, a força das obras-primas discretas. Então, Fabio soletra, de memória, o de Aragon, enquanto arranca a página do poema de cummings, picota e joga os pedaços para cima. Como um dia Fabio fez com Ruy, penso. Quero ir embora. Meu corpo está estranho. Estou atrasado para o voo. Acabo de me recordar, depois de soletrar o de Aragon, Fabio vai à estante e volta com um livro aberto no poema , de Schwitters. Fabio comenta que embora semelhantes, prefere o de Aragon. Diz que ele olha para o mundo através do ponto de vista da linguagem, enquanto que o de Schwitters olha para a linguagem através do ponto de vista da linguagem. Tenho genética trágica, Fabio comenta para si, e ouço. Meu olhar é atraído pelos azulejos amarelos que reproduzem a capa de t, na parede atrás do fogão. Vou até a cozinha apanhar água contra a ressaca. O livro de Yoko também está na cozinha, não apenas o azulejo. Está ao lado de um poemobile amarelo e azul, sobre a pia. Lembro-me, na cozinha eu e Fabio lemos a homenagem a Dick Higgins e Yoko Ono, em . Fabio vai até a sala, recordo-me agora, e volta com e . Retorno à sala. Reparo que no armário onde ficam os copos, está aberto o , em cima de . Acho minha bolsa que eu havia jogado num canto perto da varanda, sem perceber. À esquerda da bolsa, um livro aberto numa das páginas onde Pape recriou o . Me recordo. Eu e Fabio ficamos muito

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tempo inventado frases para as páginas do livro de Pape. Fabio serve-me e diz que agora vamos achar swingnificados sailormoonicos para as páginas de Lygia. Fotografamos as páginas do ao lado de cada garrafa de vinho aberta. Vou em direção à porta desviando-me do que restou do piquenique de livros. Por acidente, chuto uma pilha de Gonçalo M. Tavares. Os livros caem sobre o meu pé, como terra que planta-me no chão. Que metáfora barata. Ainda estou bêbado, é evidente. Detesto amanhecer bêbado. Livro-me dos Gonçalos e seu Clube também do Bolinha, onde só há homens e senhores eruditos. Há uma frase de Fabio que ecoa na minha cabeça, me recordo agora, ele traz os Gonçalos da estante e diz que há anos espera que ele escreva sobre o Senhor Cortázar, mas já não importa, sua mãe já não vive para que eu lhe dê de presente o Senhor Cortázar, de Gonçalo M. Tavares, Fabio diz. Caminho com decisão até a porta. Abro-a e, perto dela, no chão e quase encostado no batente, parece se despedir de mim, aberto na página onde Filliou e Spoerri conversam bêbados. Bato a porta, desço as escadas e saio do prédio. Olho para trás e vejo que a lâmpada da sala está acesa. Não a acendi, agora de manhã. Acho que esquecemos de apagá-la. Chego atrasado ao aeroporto. Perco o avião e só consigo voo para daqui a algumas horas. Faço a higiene matinal no banheiro da área de embarque. Limpo o roxo da boca e vou tomar um café. Abro meu caderno de anotações e me surpreendo com um escrito estranho. É a continuação de um dos publicados por Filliou em um conjunto de cartões postais. Acabo de me lembrar, eu e Fabio continuamos juntos o poema que começa com , continua com vários , para serem infinitamente completados, e termina com Em meu caderno, a continuação do poema alterna minha caligrafia com a de Fabio. Na terceira página de nossa anotação, está escrito num canto, com minha caligrafia, que Fabio compara as cores dos postais de Filliou com as cores dos , e vai buscá-los na estante, para brincarmos. O avião estaciona. O embarque é convocado. Subo as escadas e entro na cabine. Sento-me na 9C. Volto em dez dias. Preciso reler Site Specific, um Romance antes de retornar. É provável que eu passe toda a sexta-feira na biblioteca da universidade, para isso. Desço o encosto da poltrona e tento ler. Não consigo me concentrar. Detesto esse efeito tardio do álcool em meu corpo. Fecho os olhos, com sono.

Pego minha mala, desembarco e na saída do saguão compro girassóis. !Há quinze dias aconteceu algo estranho.Fabio para no meio da escada. Avanço dois degraus e olho para trás. Ele passa a correspondência à mesma mão que segura os girassóis. Sua mão esquerda agarra sem força o corrimão. Fabio dá o impulso para recomeçar a subir. Só então mostra interesse

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no que acabo de dizer.!O que aconteceu?Chego à biblioteca da universidade e enfio o guarda-chuva dentro do saco plástico oferecido na porta. Vou à estante de sempre. Site Specific, um Romance não está lá. É estranho. É provável que tenham guardado o livro no lugar errado. Sei mais do que ninguém onde é seu lugar. Pelo menos a mim deveria ser dado o privilégio de eu mesmo devolvê-lo à estante, após minhas consultas. Penso novamente em roubá-lo. Demorei a tomar essa atitude. A caminho do balcão, meus passos fazem barulho. Aproximo-me da atendente enquanto penso em um plano para furtar o livro da biblioteca. Em casa, eu leria Site Specific, um Romance com mais atenção e conforto. Depois de roubá-lo, eu poderia levar o exemplar ao próximo encontro com Fabio. Leríamos juntos. Piso mais leve para que o barulho do caminhar não atrapalhe o senhor que consulta um livro na mesa por onde passo. A atendente percebe minha aproximação e se põe à minha espera. Se eu roubar Site Specific, um Romance e levá-lo ao próximo encontro com Fabio, causarei a ele uma surpresa que pode ser perigosa. Posso enfartá-lo? Isso é preconceito. Ele está velho, mas parece saudável. Ninguém perceberá que roubei o livro, nem mesmo os bibliotecários. A biblioteca é grande e morta. Encosto-me no balcão e jogo um sorriso à atendente que, sem me cumprimentar, diz:!Até que enfim aparece alguém além de você interessado em Site... como é mesmo o título inteiro?!Como?!O título do livro. O único que você consulta nesta biblioteca.!Site Specific, um Romance. Mas ele não está na estante. Acabei de ver. Terá sido guardado no lugar errado?!Está lá, sendo consultado.A atendente aponta a mesa por onde acabei de passar.!Eu acreditava que somente eu consultava esse livro.Falo isso em voz alta, mas o diálogo é interno. A atendente se vê no direito de rebater.!O livro é tão ruim assim?Silêncio. Fabio não demonstra estar feliz em saber que seu livro é consultado por mais alguém. Passa por mim equilibrando a correspondência e os girassóis. Abre a porta do apartamento com indiferença. Entramos.!Desconfia quem seja?!Quem?!Quem também consulta seu livro na biblioteca, além de mim. Eu o vi. Era o senhor por quem passei enquanto ia ao balcão. Tem recebido alguma correspondência? Alguém

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tem tentado contato? Sabe de alguma pesquisa sobre Site Specific, um Romance além da minha?!Você é a única pessoa fora do perímetro dessa cidade que tem contato comigo e ousa vir aqui. Seria mais fácil você ter perguntado para o próprio, quem ele era.!Fiquei constrangido. Silêncio.É um momento grande de silêncio. Maior do que aquele entre Fabio e o jovem pesquisador, citado no meio do capítulo Velatura. Fabio coloca a correspondência sobre a mesa de canto. Abre a passagem entre a sala e a varanda. Às vezes, encaramo-nos por um segundo, e ele continua agindo em pequenas coisas. Ajeita, numa garrafa, os girassóis que eu lhe trouxe. Presumo que seja de um dos vinhos que bebemos no encontro passado. Fabio vai à cozinha e traz um copo com água para encher a garrafa. !Começamos?Fabio se dirige à varanda, gesto que exige que eu o acompanhe.!Sim, começamos. Mas, se houvesse alguém consultando Site Specific, um Romance, creio que eu teria percebido. Um amassado a mais na página. Uma anotação feita. Alguma coisa eu teria percebido. Mas não. E, de repente, aparece alguém. Não desconfia quem seja?!Natural que um livro seja consultado em uma biblioteca. Por que não seria? Meu livro é tão ruim assim?A atendente aponta com precisão quem está consultando Site Specific, um Romance. Mas não tenho coragem de abordar o velho sentado perto de onde acabei de passar. É sexta-feira. Vou embora e não penso em outra coisa todo o final de semana. Volto na segunda-feira, o exemplar está normalmente na estante. Pego-o, vou até a mesa, saco meu caderno e lápis e começo a copiá-lo. Essa foi a decisão dos últimos dois dias. Resolvo copiar Site Specific, um Romance à mão. O manuscrito tem de ser idêntico ao original. É preciso atenção, palavra por palavra, pontuação por pontuação. Vídeo, um dos primeiros capítulos do livro, tem uma ortografia antiga, hoje errada. A cópia precisa ser minuciosa.!Vídeo, um dos primeiros capítulos de Site Specific, um Romance é todo escrito com uma ortografia antiga. Fabio lança o olhar para o teto, como quem olha para si mesmo.!Puxa!Seu entusiasmo me espanta.!Não me lembrava mais disso... é verdade.!Então fale sobre essa decisão.!O primeiro capítulo, Vídeo, cobria quase um século na vida dos dois personagens, não foi isso que escrevi?

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!É o que é lido.!Por isso atrasei a ortografia, como se tivesse sido escrito cem anos antes. Como projeções de películas antigas e cheias de riscos que dão textura à imagem, eu queria que a estranheza da ortografia esfregasse um índice de tempo na leitura.!Por quê?!O capítulo era um Vídeo. Eu achava que vídeos não eram imagem, eram tempo.!Somente a fotografia era imagem.!Sim.!Por isso, o capítulo Vídeo, ao invés de falar de vídeo, fala de fotografias.!Sim. Porque o vídeo é a superação da imagem, que se estraga em frações de segundo e dá lugar à seguinte. Em sua pele, o vídeo é imagem, mas para se tornar projeção, ele a supera e se torna devir. !Somente a fotografia é imagem.!Sim. Mas, se conseguíssemos acompanhar seu lento desbotar perceberíamos que a fotografia também é um vídeo. É o vídeo natural.Não entendo. Fotografias não desbotam. É mais uma frase retórica e sem sentido, de Fabio.!Quase um século na vida dos dois personagens contado em pouco menos que uma lauda. Por que a compressão de tempo?!Porque é impossível fazer qualquer coisa com o tempo a não ser vivê-lo. O cinema e o vídeo trabalham com a maior inveja do ser humano: a edição. (Silêncio) Não dá para editar o cotidiano, nem diminuir ou aumentar o tempo. Por vingança e inveja, editei um século em dois parágrafos.!É um só parágrafo. Olhe só.Saco a cópia manuscrita de Site Specific, um Romance da minha mochila. Reparo na surpresa de Fabio.!Veja. É um só parágrafo. Eu copiei.Passo toda a segunda-feira na biblioteca, copiando Site Specific, um Romance. É trabalhoso. Caio sempre na tentação de furtá-lo. Mas não. Encanta-me poder, no final da pesquisa, presentear Fabio com um manuscrito meu. Por essa tarde, canso-me de escrever. Reviso o que copiei. Confiro palavra por palavra, pontuação por pontuação, principalmente em Vídeo, que foi escrito com uma ortografia desatualizada. Preciso perguntar a Fabio se isso é uma referência a Glauco Mattoso. Fecho o livro e o caderno, apanho o lápis. Estou quase pronto para me levantar e um velho se aproxima de mim. Ele me pede que eu não devolva Site Specific, um Romance ao balcão. Ele irá ler. É o mesmo velho que, na sexta-feira anterior, descobri que consultava o livro. Sou pego de surpresa e fico sem ação. Pergunto-lhe o que lhe interessa no livro. Ele me responde que hoje

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está interessado no capítulo Vídeo. Pergunto o porquê. Ele diz que desconfia que o mais jovem dos velhos, o que leva a fotografia mofada à UTI para que o outro morra, seja ele.Fabio me olha.!É verdade. Escrevi Vídeo em um só parágrafo. Não me lembrava.Mostro meu manuscrito para Fabio. Reparo em sua reação.!Veja aqui na minha cópia. Em Velatura, o jovem pesquisador diz que o velho que lê seu livro na biblioteca afirma desconfiar que ele seja o personagem mais novo. Você acredita que seja ele mesmo?!É difícil saber. !Gostaria de encontrá-lo? Podemos ir juntos à biblioteca e esperá-lo.!Para quê? O que eu precisava dele, já tive.!O quê, exatamente?!Imaginação.!Ele é apenas imaginação?!Somos leitura.!Personagens?!Leitura.Volto vários dias para continuar a cópia manuscrita de Site Specific, um Romance. Algumas vezes, quando chego, o velho está lendo o livro sobre a mesa. Ele me percebe e faz sinal para que eu pegue dele o exemplar. No começo, me recuso por educação. Mas ele insiste. Faz questão. Não quer atrapalhar meu trabalho. Ele me observa de longe, em outra mesa, enquanto copio. Estranhamente, isso não me inibe. Pergunto-lhe por que ele me passa o livro e fica me observando, por que não vai embora para voltar mais tarde ou no dia seguinte. Ele me responde que quer continuar fazendo parte de toda essa estória.!No final de Hachura, você larga o leitor perdido, sem saber o que aconteceu com os personagens depois que o elevador chega e eles vão comprar vinho. Aliás, nem se sabe se o elevador chegou e se foram comprar vinho. Em Velatura, você também não explica o que o jovem pesquisador pesquisa. Em Vídeo, você não relata as circunstâncias em que o mais novo fica sabendo do estado terminal do mais velho. Em Velatura, o capítulo Ready-made é citado apenas uma vez. Agora, Ready-made é citado duas. Há outros capítulos de Site Specific, um Romance que você sequer cita em Velatura. É o caso de Instalação, que presumo ser formado pelas últimas linhas dos livros que estavam em determinada ordem, num determinado dia, na estante. Mesmo o velho que, na metade final de Velatura, aparece na biblioteca para espanto do jovem pesquisador, não se sabe de onde surgiu. Enfim, Site Specific, um Romance é cheio de lapsos. Silêncio.!Eu não era escritor.

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!Site Specific, um Romance não é literatura?!Não. Isto aqui não é uma literatura.!É o quê?!Uma exposição de arte visual. Em Site Specific, um Romance eu não tinha que explicar nada. Eu não era escritor. Não tinha que ler manuais de como funciona uma narração. Eu era artista visual, não funcionava por mecanismos literários, não estava contando uma estória. Nada daquilo era para ser lido em domingos tediosos. Não era para passar o tempo e nem prender o leitor num quebra-cabeça que se encaixa aos poucos. Eu estava somente escrevendo uma escrita. Esculpindo, moldando, editando, deletando, ritmando, velando, colando, elegendo, desenhando, me apropriando. Eu não era escritor. Não tinha o menor pacto com a verossimilhança da narrativa. Eu era artista visual. (Silêncio) Você entende tudo da sua vida? Está tudo explicado? Todas as coisas se encaixam? Sua trama pessoal tem todas as respostas?Faço uma expressão de que, obviamente, não.!Pois é, geralmente os escritores tentam fazer as coisas se encaixarem, em suas narrativas. A posição do escritor como um paralelo de deus é um clássico. Sempre achei isso patético. A literatura sempre foi antropocêntrica, nunca se livrou do personagem porque escritores gostam de ser deus. Mas eu não era escritor. Era artista visual. Não brincava de ser deus. Brincava de encontrar a sensação de visualidade e tridimensionalidade da leitura.Às vezes incomoda-me copiar o romance sendo observado pelo velho. Continuamos trocando uma palavra ou outra em nossos poucos segundos de convívio: quando chego e ele me passa o livro, quando vou embora e passo o livro para ele. Num desses diálogos curtos, pergunto ao velho se, em Hachura, ele é o dono do apartamento. Ele me responde que até hoje não entendeu. Mas que considera ser um falastrão, provavelmente ele é o dono do apartamento. Porém, ele jamais gostou de música brasileira e isso o confunde. Ele não sabe quem ele é. O velho se afasta, senta-se longe e recomeço o trabalho. Estou no início da cópia de Velatura quando o jovem pesquisador chega à pequena cidade onde Fabio vive. O velho olha-me de vez em quando. Passam algumas horas, ele já esperou muito. Por gentileza, desisto da cópia por hoje, a biblioteca fecha em quarenta minutos, o velho terá pouco tempo para ler. Passo-lhe Site Specific, um Romance e nos despedimos. Na saída, olho para trás e percebo que o velho roubou minha ideia e acaba de sacar caderno e lápis para fazer uma cópia do livro para si.!Não fica surpreso que o velho da biblioteca copie Site Specific, um Romance para si também?Fabio dá de ombros.!Fico surpreso de vocês se darem tanto trabalho.

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!Na metade final de Velatura, o jovem pesquisador começa a fazer uma cópia manuscrita de Site Specific, um Romance, ato copiado pelo velho da biblioteca. É uma referência ao conto de Borges, onde alguém copia o Dom Quixote e essa cópia idêntica é outro Dom Quixote?! Não. Isto não é uma literatura.!É o quê?!Um espaço expositivo. !Então, o capítulo Velatura é uma pintura, como o título sugere?!Não. Velatura é uma obra literartística.Da vez seguinte que o velho me passa o romance original, digo-lhe que percebi que ele também faz uma cópia e pergunto em que capítulo está. Ele diz que hoje, logo que eu for embora, iniciará o capítulo Velatura. Ele copia rápido. Afinal, sempre está aqui antes de eu chegar e permanece depois que vou embora. Digo a ele que estou fazendo uma pesquisa e tenho contato com Fabio e, se quiser, posso aproximar os dois. !Em Velatura, o jovem pesquisador conhece, na biblioteca, um dos personagens de Site Specific, um Romance e diz a ele que pode apresentá-lo ao autor. O velho da biblioteca diz que não é preciso. No parágrafo seguinte, o jovem pesquisador pergunta se você quer se encontrar com o velho da biblioteca, vocês podem ir juntos e esperá-lo.!Para quê? O que eu precisava dele, já tive.!Neste momento, em Velatura, o jovem pesquisador faz um comentário sobre a imaginação. Mas, antes disso, não posso deixar de lhe perguntar o porquê de você ter escrito que não queria se encontrar com o velho da biblioteca.Silêncio.!Eu nunca tive o menor problema em responder a perguntas sobre os trabalhos de arte que fiz. Tudo é explicável. Não fui um modernista, nunca estive próximo a uma arte autônoma e não verbalizável. Mas não posso negar que há perguntas cujas respostas são: porque sim; porque não.!Entendo. Silêncio.Começo a devolver minhas coisas à bolsa. É meu gesto de que o encontro de hoje chegou ao final. Só vim presentear Fabio com seu romance. Ele prepara-se para me levar à porta.!Isto é para você.Dou para Fabio a cópia manuscrita de Site Specific, um Romance. Fabio não mostra emoção. Folheia várias vezes, para em algumas páginas e continua folheando. Se detém no capítulo Velatura, nas frases que indicam que o velho da biblioteca não fez questão de aceitar o convite do jovem pesquisador, de levá-lo para se encontrar com Fabio.!Vai passar esta noite lendo seu romance?

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!Não. Não é meu romance. Se você o copiou de próprio punho então foi você quem o escreveu. Ele vai para a pilha ao lado do criado mudo. Tenho uma fila de coisas para ler. Não demoro mais que alguns dias para copiar Site Specific, um Romance. No dia em que termino Texto de Parede, numa sexta-feira no final da tarde, passo o livro para o velho da biblioteca e digo-lhe que acabei a cópia, provavelmente não voltarei mais, foi um prazer conhecê-lo. O velho diz que tentará terminar sua cópia hoje também. Acostumou-se comigo, não quer voltar e não me encontrar. Nos despedimos.!Como vocês não fizeram questão de se encontrar, não peguei o contato do velho.Fabio coloca a cópia manuscrita por mim, de Site Specific, um Romance, numa das prateleiras da biblioteca. Ele me acompanha até a saída e, já com a porta aberta, me pergunta se a cópia que lhe dei foi a manuscrita por mim ou a manuscrita pelo velho da biblioteca. Jogo-lhe um sorriso e digo que a cópia que lhe dei de presente é a que está sendo lida agora.

Desde o último encontro não é mais necessário que eu venha aqui. Não há mais compromisso. Então, começo a fazer perguntas aleatórias.!A arte muda o mundo?!Essa pergunta sempre volta. Há essa mania em relação a ela. É estranho que você, tão jovem, nascido fora das utopias, me pergunte isso. (Silêncio) Não, não muda.Silêncio.!Algo me dizia que você acreditava na mudança. Ainda que eu previsse sua resposta. Mas o rock mudou o mundo, no século passado.!Não foi o rock. Foi a indústria fonográfica que resolveu fazer dinheiro enlouquecendo os jovens. A arte, em si, não muda nada, não serve para isso. Se é preciso uma revolução qualquer, não é em arte que se irá pensar, não é ela quem será convocada. A arte é da parte pequena da vida, coisa de criança mal educada que deixa a festa mais divertida. Nos momentos limite, não serve para muita coisa, para isso existe o poder, o dinheiro, o instinto, a adrenalina, a animalidade, a libido, a força, o comando, o assassinato, a Cruz Vermelha, a dialética, o governo, a porrada, o tiro, o sexo. Olhe para uma cidade devastada por um terremoto nove minutos depois dele acontecer: ali, não há o menor espaço para a arte. Mas talvez ainda haja para o sexo. Arte só tem sentido no momento em que a vida fica insuportavelmente a mesma, parada, sem tarefas e acontecimentos a não ser o orgânico do corpo e do pensamento para o lazer da linguagem. Arte é representação. Linguagem. Eco. Só isso. (Silêncio) Talvez por isso ainda exista arte. Porque a vida é insuportavelmente a mesma, sem tarefas a não ser o orgânico do corpo e do pensamento num enorme domingo reservado ao crelazer da linguagem.

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!Acha poucos os momentos limites?!Levando-se em conta o tempo de vida humana, sim. O resto, é a manutenção arrastada do mesmo.!E aí a arte preenche o vazio.!Não, não se trata de preencher. Nem de vazio. Não gosto dessas ideias, foram elas que idiotizaram o amor e criaram um exército de carentes. Não há vazio. Olhe em volta. Se você considera tudo isso vazio, falta-lhe inteligência. Trata-se de um terreno onde a arte pode nascer sem sentido e paralela. Sempre paralela a tudo isso aqui. Ela precisa ser paralela.!Nascer de onde? De uma geração espontânea?!Pode ser. Não sei. Não posso ter certeza. Mas prefiro acreditar que sim.Silêncio.Reparo que a cópia manuscrita de Site Specific, um Romance que dei para Fabio está sobre uma prateleira da biblioteca, diferente da que ele a colocou no nosso último encontro. Há um marcador nas páginas finais do romance.!Se a arte não muda o mundo...!Não muda. Ela dá potência ao mínimo. Atua na célula, é homeopática, é a gota diluída em zilhões. A arte é mínima, átomo. Não queira dar à arte a gordura e a robustez das coisas pesadas e determinantes, como a religião. Deixe ao menos a arte ter a leveza do imaginário e do amoral. Você imagina um átomo mudando seu mundo?!Sim.!Eu também. Então, estamos respondidos.!A bomba atômica.!Realmente, estamos respondidos.Silêncio.Fabio se levanta e vai até a cozinha fazer o milésimo café desde que começamos a nos encontrar. De onde estou, sua nuca tapa o relógio sobre os azulejos. Imagino que, nesse momento, o ponteiro dos minutos dê uma volta inteira, face a face com seu rosto.!Em Velatura você distribuiu muitos silêncios ao longo dos diálogos. Eram para minha mãe?Fabio mostra-se surpreso com a pergunta.!Claro que era. Estou preparado para que Fabio me pergunte se quando me desfiz dos livros de minha mãe, reparei se seu exemplar de Site Specific, um Romance estava cheio de filipetas coloridas.Fabio fica calado.!Quando leio Site Specific, um Romance tenho a sensação de que você não o escreveu

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para o mundo, mas para outros artistas. Como minha mãe.!Eu o escrevi para mim. Mas entendo sua sensação. Talvez você tenha mais razão do que eu, nesse aspecto. Se eu fosse um jogador de futebol, provavelmente teria mais prazer em fazer o passe ousado do que o gol perfeito.Silêncio. !Tenho uma última pergunta. Fabio continua de costas, em frente à pia.!Eu não lhe disse, mas hoje é o último dia que venho. Acho que já tenho o que queria. Agora, preciso me dedicar à redação da pesquisa.!Percebi que já estávamos no fim. !No final de Velatura o jovem pesquisador lhe dá uma cópia manuscrita do romance. Presume-se que você a leu. É em Velatura que você escreve também sobre os lapsos e não explicações que há no livro. Então, pelo lapso, o jovem pesquisador prefere acreditar que você leu a cópia. Bem, tendo lido tudo o que escreveu em Site Specific, um Romance, você acha que, no futuro, acreditará e concordará com tudo o que está escrito?!Precisarei envelhecer para saber. Fabio me leva à porta sem me acompanhar ao aeroporto, diz que toda despedida deve ser feita num recinto íntimo, levá-la a lugares públicos é ridículo, deveria se restringir sempre à casa, nem ao portão, assim, quem fica leva a despedida à cozinha e a limpa, como quem tira a espinha dos peixes, e quem vai, não carrega o último abraço como excesso de bagagem. Fabio abre a porta. !Despedir-se é incômodo.Peço o aeroporto ao taxista. A autopista encurtou. Mal consigo abrir a cópia digitalizada do meu manuscrito de Site Specific, um Romance e já chegamos. Na sala de embarque, abro-a novamente, depois de voltar do banheiro e comprar água. Atrás do vidro, o avião estaciona. Demoram para liberar o embarque. Enquanto espero, leio as frases finais do capítulo Velatura, quando Fabio diz ao jovem pesquisador que arte não é ato, é gesto, e sobe a escada sem fechar a porta.

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ÍNDICE ONOMÁSTICO

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246 Little Cloudsa: A Novel

Against ExpressionAll the StoriesAllan Kaprow

leAndré Sant’Anna

Art Conceptuel: une EntologieArte como Questão

Breakthrough FictioneersClaude Closky

Conceptual WritingDan Graham

Daniel SpoerriDavid Foster Wallace

Duda Mirandaaf

E os hipopótamos foram cozidos em seus tanquesErik Satie

eu:seis inconferênciasEunoia

Experimentar o Experimentalfa

Flávio de CarvalhoFrancis PicabiaGeorges Perec

Gonçalo M. TavaresGrapefruit

Irmãos CamposHilda HilstJohn Cage

A COLUNA INFINITA

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Jonathan MonkKenneth Goldsmith

llLawrence WeinerMaurice Blanchot

Marcel BroodthaersMarcelo do CampoMarguerite Duras

Merzs)

Miranda JulyNavilouca

On KawaraOs Autonautas da Cosmopista

Oswald de Andradeone

OuLiPoPanamérica

PLAYRaymond Queneau

Robert FilliouRrose Sélavy

Seis años: la desmaterialización de objeto artístico de 1966 a 1972Sophie Calle

Something Else PressSo Is This

Thomas BernhardTree of CodesUlises Carrión

When Attitudes Become Forml

Waly SalomãoWords to be looked at, Langauge in 1960s Art

inessAna Cristina Cesar

DEDICATÓRIAPour l’île.

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O desafio ao editar era o fato dele ser um livro cuja natureza fazia com que toda palavra impressa em suas páginas espelhasse o próprio texto. Em uma das muitas discussões de nossa equipe editorial, chegamos a traçar uma analogia entre , e as salas com cubos espelhados de Robert Morris ! talvez o exemplo mais perfeito do que é um ! onde parece não haver uma obra, mas núcleos de espelhamento do entorno. não aparentava existir como romance, mas como uma escrita que se autorrefletia e acabava refletindo quem, e o que, lidava com ela. A forma, ou fórmula, do livro ! uma espécie de espiral estilhaçada em um caleidoscópio! não admitia ao editor qualquer ato que, de imediato, escapasse de ser transformado em frase, em parágrafo, em capítulo e, finalmente, em metarreferência. Com tantos espelhos, era impossível evitar ser refletido. Quando decidimos editar o romance, pouco antes da morte do autor, assumi com cuidado esta tarefa. Eu intuía que, no contexto de

, esta edição seria um fato de sua história que automaticamente comporia sua estória. Negar isto seria um ato de traição ou covardia: era preciso entrar neste jogo de regras tão definidas. Por isso, este posfácio do editor passa a partir de agora a se chamar “Texto de Parede”.Embora a tradição oulipiana não tenha encontrado tanta ressonância no Brasil, eu a usei como um norte, ou uma armadura, para editar um livro que certamente imporia a mim suas regras de construção e, dessa forma, faria de mim seu personagem e operário ! como eram os oulipianos em suas oficinas de fazer literatura. De início, o fato de nunca ter sido publicado provocou-me o desejo de criar uma boa via de acesso para seu leitor-observador. Se esta se daria através de um prefácio, de um posfácio ou de um texto de parede, era algo que neste primeiro momento eu não precisava definir. Encarreguei alguns assistentes de minha enxuta equipe editorial de pesquisarem ! talvez o melhor verbo fosse investigarem ! tudo e qualquer coisa sobre e seu autor. Fizemos um amplo levantamento das referências e citações ! literárias e de artes visuais ! que cruzam todo o romance; do contexto em que o texto foi escrito; das poucas cópias existentes, obedecendo à demanda acadêmica ! o que nos motivou a providenciar uma cópia manuscrita com a qual pudéssemos trabalhar; de toda a produção artística do autor; e, por fim, ainda tivemos a sorte de, a tempo, entrevistá-lo. Foi a partir das entrevistas que, para nossa surpresa, começou a aumentar de tamanho. O último capítulo, “Velatura”, que até então apresentava-se apenas como latência, tomou forma e passou a crescer conforme as pesquisas avançavam. À medida que os quandos, porquês e comos da obra eram respondidos pelo próprio texto através das entrevistas com seu autor, essas respostas entravam na composição do romance e o engordavam. Isso foi algo que eu não havia previsto por pura falta de imaginação pois, pensando agora, quem pesquisa a sala de cubos

NOTA DO EDITOR

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espelhados de Morris automaticamente se vê refletido dentro da obra e, talvez, precise falar de si mesmo na própria pesquisa.O progressivo aumento de fez-me perceber que seria difícil designar alguém que escrevesse uma orelha, a introdução, um prefácio, um posfácio ou um texto de parede destinado ao leitor-observador que pela primeira vez toma contato com este romance-exposição. Eu não poderia convidar alguém para escrever sobre uma obra que ainda estava sendo construída, que crescia dia a dia conforme seus pesquisadores e editores nela eram refletidos e por ela apropriados. Além disso, quem escrevesse essa introdução acabaria também diante do cubo de espelhos, engolido por

. Com meu tino de editor, intuí que esta narrativa não precisava de mais personagens. Eu seria o último.

UM TEXTO PODE SER LIDO COMO OBRA DE ARTE VISUAL?

Não foram apenas as questões formais e particulares de , mencionadas há pouco, que se impuseram à sua edição desde o início. Já no momento de categorizar a obra dentro de uma linha editorial ! a necessidade de classificação é do ser humano desde a antessala de parto: menino ou menina? ! surgiu a dúvida: trata-se de uma obra de literatura ou de artes visuais? Dúvida essa que levava a outra: um texto pode ser lido como obra de arte visual? Como uma forma de friccionar diferentes campos, agradava-me ver

publicado pela linha editorial de artes visuais. Eu já almejava isso muito antes de ler, nas entrevistas transcritas que chegariam depois, que o mesmo era desejado pelo autor, com quem eu partilhava a constatação de que muitas categorias foram ao longo do século XX agregadas ao que se convencionou denominar artes visuais ! as artes do corpo, as obras sonoras, a videoarte, entre tantas outras. Isto levou-me a crer, e parece que o autor acreditava também, na possibilidade do mesmo acontecer com a escrita. É comum que as artes visuais, que um dia foram artes plásticas, dispensem o segundo termo e passem a ser chamadas apenas de arte, mantendo em seu centro a arrastada tradição da pintura, da escultura e de seus derivados, e em seu entorno e subterrâneo, para evitar a desgastada palavra margem, aquilo que nasce por miscigenação de linguagens, o que parecia ser o caso de . Ocorre-me ainda que, além de margem, eu poderia também querer evitar aqui a palavra periferia, porém ela me agrada pelo sentido de ser a única região por onde um território pode aumentar e confundir-se com outro, exatamente pela miscigenação mais do que natural em zonas de fronteira, onde também me parecia se encontrar não somente , mas toda a história da , da videoarte, da e dos livros e publicações

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de artista, só para citar alguns.O início de nosso trabalho editorial foi cercado de muitas questões. Há diferença entre uma escrita que é obra de arte visual e a escrita literária? Para um texto que não quer ser literatura, mas arte visual, quais são os parâmetros de sua construção e leitura? Se a narrativa é a natureza da literatura, qual seria a de um texto que é arte visual? Essas dúvidas ficaram mais claras ! ou menos obscuras, ou, ainda, mais naturais e serenas !, quando o aumento do romance chegou ao ponto onde o miscigenado termo “literartura” é usado entre os personagens no capítulo das entrevistas para se referirem à escrita construída a partir das artes visuais, sob seu sistema de pensamento, e para que seja obra de arte visual. Passamos a esperar, cada vez mais ansiosos, pela chegada das entrevistas transcritas a fim de entender melhor o que o autor chamava de literartura. Foi neste momento que cheguei a cogitar entre nossa equipe se seria o caso de inaugurar uma linha editorial para esse gênero.

TEXTANDO

Ao ler o capítulo “Velatura”, percebemos que o autor buscava a definição de literartura nas variadas formas como artistas textaram o texto a partir de parâmetros que escapavam da literatura para se contaminarem pelo vocabulário, pela sintaxe, pelos procedimentos, pelos métodos e pela história de outras artes, como as visuais, o cinema ou a música. Pareceu-nos que, para o autor, seu entendimento de literartura se dava na superação da fronteira entre diferentes linguagens, e era complementado através de um olhar retroativo sobre uma produção artística que já havia experimentado essa superação, retroativo de modo que o passado incluísse o presente sem preocupações em relação a hierarquias históricas ou cronológicas, algo que fosse percebido em uma rede onde o contemporâneo, ou o presente, não fosse considerado nem o centro e nem a dianteira, mas apenas um ponto dessa rede de experimentações textuais. Nas conversas do capítulo Velatura é citada a antologia

, organizada por Craig Dworkin e Kenneth Goldsmith, que cobre dos escritos dadaístas à escrita conceitual do início do século XXI. A ideia desta escrita é exemplificada entre escritores, artistas visuais e músicos, estabelecendo entre as obras ligações que ignoram a linearidade temporal, conceitual ou de linguagem, reunindo em ordem alfabética nomes tão díspares, para um primeiro olhar, como Vito Acconci, Louis Aragon, Dana Teen Lomax, Carl Andre, John Cage, Tristan Tzara, Gertrude Stein e Claude Closky, entre outros. No livro, o que une esses nomes e textos é exatamente a ideia de escrita conceitual, entendida como a negação da expressão lírica como ponto de partida para diferentes tipos de experimentações, com exemplos que vão de (1964),

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onde o escritor norte-americano William Burroughs compõe textos dobrando páginas na vertical, de modo que metade das frases correspondam ao texto da frente da página e a outra metade ao do verso; a (1999), onde o artista francês Claude Closky se apropria de textos de anúncios publicitários colocando-os em primeira pessoa, para a composição da autobiografia de um consumidor passivo, alienado e conformado; passando por (1999) onde a artista britânica Emma Kay escreve de memória a história do mundo, com todos os erros e lapsos que esse procedimento certamente promove. Ao que parece, a desierarquia descronológica pouco preocupada com a fronteira entre arte e literatura, que compõe a antologia

, esteve também na base intertextual de e na metodologia usada por seu autor para buscar exemplos do que ele intuía ser literartura. Nossa pesquisa mostrou-nos, ao desvendarmos a intrincada amarração de citações e apropriações ao longo do livro, uma predileção do autor por textos que, ao seguirem os sistemas de pensamento e de procedimento das artes visuais, ou de alguma arte que não a literatura ! como a música, no caso de Jonh Cage ! haviam rompido as formas e os paradigmas da literatura e inaugurado outras formas e outros paradigmas para si mesmos. Como exemplos, em meio ao tiroteio de citações que há em , o leitor se vê atingido de raspão pelas conferências-partituras de John Cage, pelas esculturas-textos de Lawrence Weiner, pela performance-relato !de Flávio de Carvalho, pelas instruções-poemas de Yoko Ono, pelas partituras-eventos de George Brecht, pela escrita verbo-visual de Sophie Calle, pela escrita conceitual de Kenneth Goldsmith e de Claude Closky, pela escrita , coloquial e de composição centrifugada de Waly Salomão ! este último, um dos poucos escritores apropriados em

, provavelmente por sua radical experimentação com a escrita. Assim, fica claro que o termo “literartura” é buscado pelo autor entre experimentos textuais ao longo do último século, seja na literatura ou fora dela, que se caracterizaram por uma postura conceitual frente à escrita, subvertendo suas formas tradicionais. Lembrando que foi resultado da pesquisa de mestrado de seu autor, pareceu-nos que esta vontade de agarrar-se a um termo ! literartura ! estava mais ligada a um impulso em nomear seu objeto, ou território, de pesquisa, do que em inventar mais uma espécie atrasada de “ismo”. Lembro-me que, em uma conversa com meu assistente designado a fazer as entrevistas, este me disse, num comentário despreocupado, que o autor de parecia-lhe um velho materialista decadente e fora de moda, alguém que odeia modos e qualidades, por isso usa poucos advérbios e adjetivos, se satisfazendo apenas com objetos. Isto me chamou a atenção e me fez pensar que talvez viesse daí o desejo do autor em objetificar ainda mais seu objeto de pesquisa através de um substantivo: literartura.

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ENTRE

Se nascera da intenção de textar um texto, continuávamos nos perguntando que texto era esse e, consequentemente, qual era seu lugar ! mesmo nos parecendo que a origem do livro estava nas artes visuais, já que seu autor atuara nesse campo e escrevera sempre a partir dele. Com a publicação do romance ! se é que podemos chamá-lo assim ! nossa dúvida certamente seria qual lugar o romance-exposição ocuparia no mundo dos livros e livrarias; afinal, já em seu título havia a palavra .A partir de nosso melhor entendimento do que era literartura, a vontade de uma classificação para entre artes visuais e literatura sempre provocou discussões em nossa equipe, pois até então não criaríamos a nova linha editorial de literartura. Até que, à medida que as conversas com o autor, transcritas e trazidas pela equipe de pesquisa, eram lidas e discutidas por nós, tornou-se mais claro o “entre” a literatura e as artes visuais onde o romance se localizava e, mais claro ainda, que considerar um texto como obra de artes visuais não era de modo algum negar a literatura, mas tentar a literartura. Experimentar a linguagem verbal como arte é fatalmente usar recursos literários. A região de fricção ou estranhamento de estava no fato de se tratar de uma escrita formalmente literária, mas que nascia a partir da história e dos pensamentos das artes visuais de forma autônoma à literatura ! do mesmo modo como o audiovisual ganhou características autônomas no campo da arte diferenciando-se, em termos de linguagem, do cinema; o mesmo acontecendo com a e sua autonomia em relação ao teatro ou à dança. Era como se onde, por que e para que a obra nascera ! toda sua gama de estímulos ! fossem indagações vindas de Marcel Duchamp, John Cage e George Brecht, enquanto a matéria necessária para que ela existisse formalmente ! o momento pós-estímulo, de dar forma à vontade ! viesse da literatura. Lendo o capítulo das entrevistas, cada vez mais parecia-nos que o autor situava nesta região “entre”, ou seja, na intersecção da arte e da literatura, como duas cidades encostadas uma à outra que fundem suas periferias numa só, fazendo com que o morador desse “entre” já não saiba mais, ou pouco se importe, se mora em São Paulo ou Guarulhos. A decisão de que sim, iniciaríamos na editora uma coleção de literartura, ou seja, uma coleção de obras cafusas e mamelucas, viria somente no final de nossos trabalhos.São muitas as obras cafusas citadas ao longo da intertextualidade de

. Elas parecem servir de pistas para que o leitor intua o que o autor acreditava ser literartura, crença alimentada por suas pesquisas que procuravam detectá-la em obras textuais ao longo do último século. Um exemplo é o poema l(a de e. e. cummings, citado

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no romance como uma instalação ou escultura ! com sua verticalidade e construção totêmica com letras, o poema serve de letreiro final e bibliografia no capítulo-escultura “A Coluna Infinita” ! mas que, seguindo a ideia de literartura, também pode ser considerado um vídeo ! por sua leitura em queda acompanhando o flanar da folha; movimento, aliás, que nos remete aos móbiles de Calder ou às obras de Abraham Palatnik.

l(a le af fa ll s) one l iness

Se este é um poema que se miscigena ao expandirmos sua natureza literária para considerá-lo um poema-escultura ou um poema-vídeo ! e somente aqui já temos as fusões de três linguagens !, então fica claro que para o autor de não bastava exercitar a literartura na escrita do próprio romance, mas buscá-la, e entendê-la, nas mais diversas obras em diversas épocas, como neste poema de cummings. Assim, para se compreender, por exemplo, o uso da repetição como forma de hachurar a leitura e ao mesmo tempo reforçar o estado bêbado do narrador, em “Hachura”, pode-se pensar em um outro exemplo de escrita também hachurada na aliteração, figura de linguagem usada para representar os saltos de uma rã pela mata na letra da música :

! Coro de cor sombra de som de cor de mal me quer De mal me quer de bem de bem me diz De me dizendo assim serei feliz Serei feliz de flor de flor em flor De samba em samba em som de vai e vem De verde verde ver pé de capim Bico de pena pio de bem-te-vi

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Amanhecendo sim perto de mim Perto da claridade da manhã A grama a lama tudo é minha irmã A rama, o sapo, o salto De uma rã

Se a repetição de palavras e frases em “Hachura” serve para sujar o texto, nesta letra de Caetano Veloso para a música de João Donato semelhante repetição de aliterações, monossílabos e dissílabos corporifica a rã que salta de sílaba em sílaba, como diz os versos finais: . Na gravação de Gal Costa, de 1974, o próprio texto salta sobre si mesmo quando, na primeira vez que é cantado, do antipenúltimo verso a cantora volta ao início, incluindo os dois últimos versos somente na segunda vez que a letra é cantada. Com olhos literartísticos, pode-se considerar essa letra de música um poema-vídeo semelhante ao caso do poema de cummings. Em “Hachura”, é de causar espanto que o autor tenha escolhido , também de Caetano Veloso, como a principal trilha sonora do capítulo e não , que ilustraria de forma tão clara o que para ele era a hachura textual.Para o autor de , esse “entre” letra de música, poema, escultura, instalação, vídeo, etc, alimentava a escrita de seu romance e lhe fazia entender a sensação de literartura que sempre teve ao ler certos textos que considerava estarem em um “entre”. Assumir “o entre” como um lugar foi fundamental para o método de escrita de . Adotando dois clichês como pontos de partida ! o romance para a literatura e o para as artes visuais ! e friccionando-os de modo que um moldasse a forma e possibilitasse a existência do outro, o autor partiu do modelo oulipiano de escrever sob regras e leis auto-impostas e, buscando sempre a materialidade e espacialidade do texto, submeteu-o a clichês das artes visuais, ao ponto de pouco detectarmos o romance nesta obra, mas sermos engolidos pelo site specific. Assim, o capítulo “Vídeo”, escrito com uma ortografia desatualizada, impõe à leitura um índice de tempo correspondente à película cinematográfica que, através de riscos projetados ou da cor desbotada, dá ao obervador a sensação de envelhecimento da imagem. Como foi escrito no da tecnologia digital, a questão central do capítulo “Vídeo” é a da impossibilidade dessa tecnologia adquirir uma estética do envelhecido, semelhante à era da película cinematográfica. Neste sentido, o envelhecimento estético da imagem digital não estaria ligado à deterioração de seu suporte físico, como no caso analógico, mas sim às mudanças e superações tecnológicas como, por exemplo, uma imagem datada pelas cores e textura típicas da tecnologia usada nos anos 2010. Isto é semelhante à escrita, cuja característica que data um texto não surge

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do papel e da tinta, tão suportes quanto a película cinematográfica, mas das mudanças do idioma por reformas ortográficas ou pelo seu uso cotidiano, o que corresponde às mudanças de tecnologia da imagem. Embora essa estética do envelhecido seja mais comum à película, de modo irônico o autor de escolheu o termo “vídeo” para o título do capítulo, talvez já na intenção de citar a diferença entre o cinema ! ou seja, o gênero clássico do audiovisual, como é a literatura para a escrita ! e o vídeo ! audiovisual decorrente, mas autônomo, da linguagem cinematográfica, como a literartura é em relação à literatura. O método de impor clichês das artes visuais à escrita está também na lista de supermercado que provoca um olhar sobre a vida dos dois personagens, em “Non-site”; na estrutura sintática criando uma edificação onde o texto acontece e ao mesmo tempo está preso na construção de si mesmo, em “Site Specific”; na escrita suja, maneirista e artificiosa de “Hachura”; no texto repleto de fusões e transparências em “Velatura”; ou mesmo na necessidade de um “Texto de Parede” legendando esse espaço expositivo. O tratamento da textualidade sob conceitos ou questões pertinentes às artes visuais foi a metodologia prática da obra, enquanto a metodologia de pesquisa foi a busca desierarquizada e descronológica de experimentos textuais preferencialmente não literários, como já afirmei neste “Texto de Parede”. Se foi ao mesmo tempo a obra artística e a dissertação de mestrado de seu autor em Processos Artísticos Contemporâneos, o próprio texto foi um que respondia a um lugar ! a academia ! e a um contexto ! o mestrado prático que exigia também um texto dissertativo. Dessa forma, “o entre” a literatura e as artes visuais do romance é espelhado no “entre” a obra prática e a dissertação sobre o processo dela mesma, diluídos num só corpo textual. Penso que ter a obra artística fundida à dissertação faz com que, anos depois, quem for pesquisar na biblioteca da universidade tenha sempre acesso primário à obra prática, algo impossível quando a obra é descolada da dissertação. Foi exatamente isso que aconteceu quando iniciamos os trabalhos para a edição do romance, buscando-o na biblioteca da universidade. Tínhamos à mão a obra e a pesquisa que a sustentou.

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ENTRE ESPELHOS

Quando o capítulo Velatura se dobra em direção aos outros capítulos do livro, a metarreferência passa a ser a base de . Infelizmente, esse ponto não é aprofundado no capítulo das entrevistas ! o que nos provocou os primeiros desejos de demitir o entrevistador ao percebermos que ele se seduzia pela verborragia do entrevistado, deixando escapar detalhes vitais para nosso trabalho editorial. Nestes lapsos, onde não tínhamos a palavra do autor, optei por confiar em minha análise crítica sobre o romance. Como citei há pouco, o “entre” também foi uma das bases de

: entre a literatura e as artes visuais; entre a obra prática e a dissertação sobre seu processo. Mas, pensando agora, há também um “entre vozes” no qual todas as vozes narrativas e personagens do romance, entre os quais me incluo, surgiram do “entre” a obra e a exigência quase impossível do autor lançar-lhe um olhar minimamente reconhecedor. É comum que a produção artística seja fruto da ignorância, da dúvida e da cegueira de seu autor em relação a ela e às questões que ela abarca, o que impulsiona seu querer conhecê-la, querer sabê-la, querer enxergá-la e fazer com que ela exista. Talvez, a dificuldade do autor enxergar com nitidez o que produziu só possa ser superada com o distanciamento temporal ! pouco, nos dois anos de uma pós-graduação ! entre essa produção e o olhar de reconhecimento lançado sobre ela por seu autor. Portanto, minha análise do romance neste “Texto de Parede” é mais um “entre” de "#$%!

: o entre seu autor e as vozes narrativas por ele criadas para falarem de sua obra ! talvez porque seja mais fácil ver-se no outro, mesmo que este outro seja o do espelho. Confesso também que tenho dúvidas se a obra sempre concorda com tudo o que o autor diz sobre ela. No capítulo “Velatura”, inclusive, o autor diz que a obra é sempre mais inteligente do que quem a produz, o que me faz ir mais além e desconfiar que o mundo é que agrega real significado à obra, e aquele agregado pelo autor é apenas a ficção inicial, o “era uma vez...” a ser completado por qualquer um. Talvez o distanciamento temporal seja na verdade o tempo da obra atingir sua fase adulta, quando as leituras e usos que o mundo faz dela conseguem libertá-la de seu autor, que deixa de ser autor para ser apenas mais um que a lê e a usa.Aos artistas que faziam mestrado, na época de , era exigido um trabalho prático e um texto dissertativo sobre seu processo. Como já disse neste “Texto de Parede”, o autor de decidiu pela fusão das duas coisas em um só corpo de texto no qual é narrado o processo de pesquisa, cuja textualidade é a matéria-prima e o lugar, ou espaço expositivo, da obra prática. Ou seja, criar a obra prática, analisá-la, contextualizá-la dentro de um universo teórico que a cercava, contextualizá-la dentro de um universo de obras artísticas que a nutriam e, dessa alimentação, continuar realizando a obra, que inclusive narrava todo esse processo, foram procedimentos que criaram um em si, em um circuito fechado. É bem provável que o autor tenha

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chegado à ideia de não pelo uso clássico do termo e de sua prática a partir dos anos 1970, mas através da radicalização da autorreferência de . O mesmo sugerem os cubos de espelhos de Robert Morris que, como uma autorreferência ao espaço levada às últimas consequências, atingem o .Enquanto um de meus assistentes fazia as entrevistas do último capítulo, outra parte de nossa equipe pesquisava as mais variadas fontes. Dentre os muitos materiais aos quais conseguimos ter acesso, encontramos a transcrição de uma palestra do autor de onde ele aborda a metarreferência e essa espécie de

em circuito fechado em sua obra. Ele diz, abre aspas, que a metarreferência e a metalinguagem parecem ser um recurso sofisticado, acadêmico e da alta literatura. Ledo engano, fecha aspas. E, segundo a transcrição da palestra ! cuja gravação audiovisual soubemos que existia, mas nunca encontramos ! o autor deixa escapar a música

de seu computador, enquanto batuca na mesa:

Quando eu canto meu sambinha Batucada A turma fica abismada Com a bossa que eu faço Faço, não me embaraço Porque não há tempo Marco o meu contratempo Dentro do compasso Quem não tiver o ritmo na alma E nem cantando com mais calma Faz o que eu faço Samba-canção, samba de breque, Batucada Para mim não é nada O que vier eu traço Não tenho veia poética Mas canto com muita tática Não faço questão de métrica Mas não dispenso a gramática Não me atrapalho na música Nem mesmo sendo sinfônica Procuro tornar simpática A minha voz microfônica

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é um samba de 1926, dos portelenses Zé Maria e Alvaiade. A letra comenta o modo como o intérprete canta essa canção, ressaltando inclusive a dificuldade que a melodia impõe ao modo de cantar a letra !

! forçando que o próprio intérprete se gabe ao comentar/cantar como doma a rapidez da música que aumenta de velocidade a cada vez que a letra é cantada !

Segundo a transcrição dessa palestra do autor de , foram duas as versões da música tocadas por ele na ocasião, a clássica de Ademilde Fonseca e uma mais recente, do final dos anos 1970, de Baby Consuelo. Ao final das duas, o autor teria dito que, abre aspas, John Cage costumava palestrar sob um ritmo e tempo predeterminados, considerando que palestrar também era um concerto. É o caso de (1958), conferência lida conforme a duração de , cujo processo de composição era o assunto dessa conferência. Assim, abre aspas para John Cage, cada linha do texto, seja discurso ou silêncio, requer um segundo para sua interpretação, com a intenção de que quando eu deixe de falar se escute a parte correspondente a

. A música não se sobrepõe ao discurso, é ouvida somente nas interrupções deste (...), fecha aspas para John Cage. O mesmo modelo de conferência-partitura está em (1959) e (1959), duas conferências clássicas de Cage. Mais de trinta anos antes, e a milhares de quilômetros de Nova York, o samba

, de Zé Maria e Alvaiade, propunha um texto autorreferente que comentava a si mesmo e o seu modo de ser cantado por um intérprete à altura da técnica de canto que a relação melodia-texto exigia. Aliás, a tradição do samba está repleta de autorreferências onde a canção discute a si mesma, assim como as conferências-concerto de Cage, fecha aspas para o autor de . De certa maneira, percebemos nessas palavras do autor que situava-se nessa tradição de uma autorreferência que estabelece uma forma fechada, como no samba . Ao entrar na academia, o autor construiu com a metarreferência de seu texto e de seu mestrado em si ! um cômodo, ou ateliê, onde pôde trabalhar. E, a partir daí, o trabalho se deu na carne dessa autorreferência, ou seja, na textualidade do texto. Se até aqui tudo isto fazia lembrar os cubos espelhados de Morris, este construir um texto de dentro dele mesmo leva ao filme

(1971) de John Baldessari, onde o artista, também preso em um cômodo, é filmado do teto enquanto pinta continuamente todas as paredes e o chão. Não que haja uma metarreferência aí, mas de certo modo esse filme trata da pintura pintando-se. Analisando a obra do autor de , vê-se que havia muitos assuntos, ou objetos de pesquisa, que poderiam ser tratados no contexto de sua pós-graduação. Porém, fica claro que ele preferiu lançar-se ao desafio de ater-se a um objeto que não fosse

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a decorrência direta do que ele já vinha tratando em sua produção anterior. Certamente, o romance já estava em estado de latência em meio a toda a produção artística do autor, pois todas as questões que estão no texto já vinham movendo-o em sua atuação artística. Porém, fora do contexto acadêmico, provavelmente jamais fosse escrito. Quando começamos a pesquisar sua obra anterior ao romance, percebemos que a relação do autor com a linguagem verbal vinha de longa data. Mas, analisando suas primeiras experiências com escrita, pareceu-nos que estas tratavam o texto como veículo de uma informação, posteriormente instalado nos mais variados espaços ! cubo branco, paredes, páginas de livros ou revistas. parece ter sido o momento em que o autor passou a experimentar o texto não só como informação ou enunciado mas também como espaço, assumindo a página onde está impresso não como lugar, mas apenas como a inevitabilidade de um suporte físico, um chão, já que o espaço, a arquitetura e o lugar da obra é o próprio texto. Pareceu-nos que o capítulo “Espaço Expositivo”, com o alfabeto escrito na horizontal, ilustrava esse chão análogo à página que recebeu a obra em sua edificação textual, ou seja, a combinação quase infinita das letras do alfabeto, tijolos, em texto. E esse texto, construído como as paredes o são, seria um cômodo autorreferente onde o autor trabalhou a obra prática e o texto dissertativo sobre ela, um cômodo-ateliê-obra, como no filme de Baldessari.

PALAVRAS PARA SER OLHADAS E/OU COISAS PARA SER LIDAS

Se o que o leitor tem nas mãos agora é um livro cheio de páginas, é claro que a página é um lugar para , não só o próprio texto. Penso que há, também neste aspecto, um “entre” que liga os dois espaços: a página ! como o espaço mallarmaico a ser experimentado ! e o texto ! como espaço e construção, arquitetura e lugar em si, um cômodo.No texto “My Works for Magazine Pages: A History of Conceptual Art” (1985), que faz parte do livro (1993), Dan Graham lança um olhar sobre a arte norte-americana dos anos 1960-70 e levanta uma diferença que havia entre a arte pop e o minimalismo: a primeira se referenciava no mundo midiático da cultura de massa ! um olhar externo ao mundo da arte ! enquanto o segundo se relacionava e se adequava à arquitetura interna e aos contextos do espaço expositivo que era, portanto, não somente parte da obra, mas o que estabelecia sua estrutura formal ! ou seja, um olhar interno ao mundo da arte. Juntando essas duas posturas à experiência de Graham como galerista, que o fez perceber que não bastava uma obra ser exposta, era preciso que sua imagem e

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textos sobre ela fossem veiculados em revistas e jornais para que ela fosse legitimada e valorizada pelo circuito, o artista passou a considerar páginas de revistas como espaço expositivo tanto quanto era uma galeria ou museu, juntando assim as implicações midiáticas e de circulação da arte pop e as relações formais entre a obra e o espaço que a contém ! neste caso, a página ! do minimalismo. Pensar a página como um espaço, e não apenas o suporte de uma obra, leva ao poema inaugural do modernismo, (1897) de Stéphane Mallarmé e a grande parte da poesia do século XX, como a de e. e. cummings que citei neste “Texto de Parede”. Porém, no caso de Graham, é curioso perceber como sua relação com a página não vem da poesia, mas sim da dependência que o minimalismo teve em relação ao espaço expositivo, semelhante à ligação intrínseca entre a página e o trabalho de arte feito para ela. Desse pensamento surgem obras de Graham feitas exclusivamente para revistas ou jornais. É o caso de (1966), um esquema que classifica e quantifica componentes gráficos e verbais como adjetivos, gerúndios, linhas, tamanho da página, tipo de fonte tipográfica, tipo de papel, entre outros, ou seja, um trabalho que depende do contexto onde é publicado, numa relação semelhante da obra minimalista com o espaço expositivo que a compunha e a tornava possível. As experimentações com linguagem verbal, livros e páginas feitas pelos artistas conceituais certamente informaram o autor de . Em

! livro citado na bibliografia-letreiro final do romance !, ao abordar as obras verbais de Graham no capítulo “Poetry from Object to Action”, a autora Liz Kotz sustenta que, no contexto da produção do artista, a linguagem é cada vez mais entendida não apenas como um material, mas como uma espécie de lugar. Esta mesma tentativa de estabelecer um lugar na linguagem é evidente em

. Vito Acconci, outro artista dos anos 1960-70 com larga produção escrita ! com a particularidade de ter começado na poesia para dedicar-se depois às artes visuais, principalmente à performance e à ação ! diz em uma entrevista de 1995 que “Parecia impossível usar, na página, palavras como ‘árvore’, como ‘cadeira’, porque elas se referiam a outro espaço, um espaço fora da página. Mas eu poderia usar palavras como ‘lá’, ‘depois’, ‘naquele tempo’, palavras que se referiam à minha atividade sobre a página, ao meu ato de nela escrever. De fato, com o tempo, cheguei a uma espécie de beco sem saída quando, a fim de preservar a literalidade da página, a única coisa que eu poderia usar sobre ela eram vírgulas, pontos, sinais de pontuação.” Na análise que Liz Kotz faz da prática escrita de Acconci em , fica claro que o artista construía seus poemas, considerando-os espaços performáticos em si, quando ele diz, por exemplo, que “pensava na página e no livro enquanto um campo para eu percorrer, como escritor. Assim, esta página seria um campo para você, leitor,

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também passar e percorrer”; ou ainda quando Acconci fala de seu processo, onde “a página tem que ser reduzida a si mesma, tratada como um espaço separado do entorno. 1. Use palavras que tocam umas nas outras e voltam-se para si mesmas, permanecendo confinadas na página. 2. Use material que exista apenas quando falado, que exista apenas na linguagem (por exemplo, expressões idiomáticas... chamando a atenção para a linguagem utilizada).” Embora não seja correto usar o termo minimalista em relação à produção de Vito Acconci, sua submissão à literalidade da página pode ser vista como semelhante à de Graham, esta sim com uma ligação direta com o pensamento minimalista.Na revista de 1972, Acconci declara ainda que “usa a linguagem mais para cobrir um espaço do que para descobrir um significado, (...) posso considerar meu uso da página como um modelo de espaço, um lugar em miniatura para performances.” Penso aqui em (2006), recente publicação com documentações e projetos de ações de Acconci entre 1969 e 1973, onde a vontade de usar a página e a escrita como lugar de performance é desmembrada em fotografia e texto, para a construção desse lugar. Talvez, neste sentido, a sensação de transparência que fica na mente do leitor do capítulo “Velatura”, ou a sensação de envelhecimento estético na retina de quem lê o capítulo “Vídeo”, também sejam semelhantes ao “entre” o texto e a imagem, no de Acconci, porém sem o uso físico da imagem, no caso de . Foram muitos os modos como os artistas conceituais e pós-minimalistas investigaram o uso não literário da linguagem, como escreve Liz Kotz. Ainda no capítulo “Poetry from Object to Action”, a autora sustenta que os escritos de Carl Andre, por exemplo, produzidos com métodos impessoais como isolamento, repetição, listagem, ordenação alfabética, engradeamento, etc, de palavras ! métodos semelhantes aos de suas esculturas minimalistas !, visavam a fragmentação da linguagem não para suprimir sua referencialidade, mas para evidenciar as qualidades táteis e materiais das palavras através da dissolução da sintaxe, o que, por sua vez, as isola e coisifica. Se a sintaxe é o que conecta uma palavra a outra para a produção de sentido, segundo Kotz, dispensar a sintaxe e trabalhar com as palavras como coisas isoladas, para Carl Andre, partia da confiança no fato de que as palavras sempre se conectam quando agrupadas.Penso aqui no capítulo “Non-site”, de , cuja conexão que o leitor faz entre as palavras distribuídas em uma lista de supermercado é a sintaxe que constrói o texto que não existe ali, um não-texto que descreve a vida cotidiana dos dois personagens, ilustrada, manipulada, caracterizada e determinada por seus objetos de consumo. Penso ainda no capítulo “Instalação”, que parece ser composto pelas últimas linhas dos livros organizados na prateleira, naquela sequência em um determinado dia, cuja organização objetual forma a única sintaxe que serve de ligação e sentido entre as frases que compõem o capítulo, a mesma sintaxe do acaso de Cage. Para Carl Andre, “(...)

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certamente, meu interesse em elementos isolados ou partículas, em escultura, é paralelo ao meu interesse por palavras como partículas de linguagem”. Isso mostra que, para o artista, seus escritos não nasceram somente de referências literárias, mas também da transposição da prática de suas esculturas minimalistas para a linguagem verbal. O modo como Andre faz a transposição dos procedimentos de suas esculturas para os de sua escrita é um bom exemplo de uma escrita produzida a partir das artes visuais e não da literatura ! ainda que Andre não negue esta última, já que o artista sempre chamou esses escritos de . Essa transposição foi, basicamente, o que o autor de

chamou de literartura e experimentou em seu romance, com a diferença de que Andre trabalhou em seus poemas na escala da palavra como unidade, enquanto o autor de Site Specific, um Romance se ateve ao texto narrativo-temporal como unidade. Neste sentido, busca uma reconciliação com a narrativa literária que a arte conceitual não estava disposta. Se no poema , como se vê no cartaz da exposição de Carl Andre Poems 1958-74, realizada em 1975 no Museum of Modern Art de Oxford, a palavra é datilografada inúmeras vezes dentro de uma estrutura-grade semelhante às esculturas instalativas e planares do artista, criando um campo conceitualmente verde, essa tentativa de criar o verde verbal, em

, se daria na junção da narrativa e da textura do texto. Lembro que o autor de diz, na entrevista, que “Velatura” é uma escultura cheia de transparências; portanto, presume-se, melhor vista se o observador der uma volta ao seu redor, algo que só é possível no tempo, ou seja, essa volta ao seu redor é a leitura do texto-escultura. Assim, a forma escultórica de “Velatura” corporifica-se no tempo de sua narrativa quando lida, enquanto a platitude de de Carl Andre é da mesma natureza da platitude de suas esculturas no chão, ou seja, tem uma temporalidade mais ligada à letra datilografada uma a uma, nos poemas, ou às unidades colocadas lado a lado, uma a uma, nas esculturas planares, do que ao tempo que o leitor-observador leva para abarcar a obra-texto como um todo. Se para os pós-minimalistas e conceituais a linguagem verbal era matéria e espaço, para o autor de ela era matéria, espaço e também construção, esta última dando-se no tempo de leitura da narrativa. Talvez venha daí a insistência do autor em afirmar, no capítulo das entrevistas, que seu foco era a leitura e não o leitor.Ainda tentando entender via o instrumental da arte dos anos 1960-70, se para Carl Andre, “a poesia que tento escrever é aquela que elimina o poeta, ou o faz invisível em relação ao assunto de que trata”, em esse exercício pareceu-nos também ter sido adotado pelo autor quando ele diz que as opiniões em “Hachura” não eram suas, eram apenas uma verborragia que sujava ainda mais a hachura do texto. De certa forma, forjar tal intimidade na escrita ! ao contrário de Andre e dos artistas conceituais, que praticavam textos impessoais, desestetizados,

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não metafóricos e pouco referenciais ! é também eliminar o poeta em busca da voz que o texto exige, ou da textualidade, como fazia Acconci ao tentar achar as palavras que a própria página pedia. Neste sentido, a escrita em não busca nem mesmo a voz dos personagens ou do narrador, mas apenas a voz, por exemplo, de um texto-hachura ou de um texto-vídeo. A impessoalidade de uma escrita produzida pela mecânica conceitual da linguagem, em detrimento de uma voz lírica, é uma característica central da arte conceitual que não é verificada em . O que quero dizer é que, no romance, o autor parte de procedimentos semelhantes aos que tinham os escritos de artistas conceituais e minimalistas, porém com uma vontade narrativa que não havia em Graham, Acconci ou Andre, por exemplo. É como se a escrita ! e as ideias ! desses artistas tivesse se tornado, quarenta anos depois, um instrumento de trabalho nas mãos do autor de "#$%!

a ser usado no nível de radicalidade necessário às suas intenções. Desvendar as intertextualidades de , e também listar as referências que o autor cita no capítulo das entrevistas, serviu-nos para mapear por onde percorreria nossa pesquisa para a edição do romance e, por consequência, por onde percorreu a pesquisa de mestrado de seu autor. Sem dúvida, encontramos na arte norte-americana dos anos 1960-70 procedimentos textuais originados diretamente da produção em artes visuais que nos esclereceram o que seria literartura. Detectar a arte conceitual como o disparador de muitas das ideias que influenciaram a escrita de

nos levou diretamente a outro termo usado pelo autor e que também foi campo de sua pesquisa: a escrita conceitual.

ESCRITA CONCEITUAL

No capítulo das entrevistas com o autor de , fica nítida a importância dada por ele à escrita conceitual como um instrumento de trabalho ! tanto quanto a Bic caída embaixo do banco do avião era um instrumento importante para meu assistente que não conseguiu evitar que esse seu acontecimento pessoal, entre tantos outros, fosse refletido no cubo de espelhos morrisiano do texto, o que me convenceu de sua demissão antes do final de nossos trabalhos. Tanto que, se analisarmos o romance, pouca coisa acontece entre os personagens, e o que acontece parece estar em segundo plano em relação à importância dada ao exercício conceitual da escrita que, por exemplo, tenta uma textualidade hachurada ou uma sintaxe site specific. Isto ocorre a ponto de, quando questionado pelo entrevistador se no capítulo hachurado todas as opiniões emitidas pelo personagem-narrador eram suas, o autor responder que não, sua escrita

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não era um peido, não era expressiva, o que parecia expressivo, ou seja, a enxurrada de opiniões, era um recurso conceitual para dar um tom ainda mais sujo, verborrágico e desesperado à textualidade hachurada. O autor chega a afirmar que para ele o que deveria acontecer era a linguagem.Se buscarmos interlocuções contemporâneas a ! a arte conceitual que influenciou o romance não era contemporânea a ele ! encontraremos o tratamento conceitual da escrita na obra do artista Kenneth Goldsmith, um dos organizadores de , em livros como

(2000), (2001) e (2005-2008), onde Goldsmith transcreve o cotidiano em forma de texto ! apropriado, no caso de ! numa clara referência a (1968), de Andy Warhol ! que, por sua vez, é uma referência a(1922) de James Joyce. Com exceção deste último, todos os livros que acabo de listar são citados em na passagem do porre em meio ao piquenique de livros, onde o autor constrói uma topografia de livros espalhados pela casa de forma mais uma vez desierárquica e descronológica, talvez a fim de dinamitar de uma vez por todas a ponte entre e , ou seja, entre arte e literatura, para uni-las numa só paisagem, a do piquenique de literartura. Naturalmente, a ênfase numa escrita conceitual em levou-nos primeiro à arte conceitual dos anos 1960-70. Ainda em

, Craig Dworkin escreve que a desmaterialização da obra de arte, nos anos 1960-70, se deu às custas da materialização da linguagem, ideia citada numa das entrevistas do último capítulo de . Em sua bibliografia-letreiro-final, onde a vontade de literartura funde e solda Ana Cristina Cesar, e. e. cummings e Brancusi para erguer uma escultura-instalação, há a revista (1967-1969), editada por Vito Acconci e Bernardette Mayer; o clássico

(1973), de Lucy Lippard; (2008), organizada por Gauthier Herrmann, Fabrice Reymond e Fabien Vallos;

(2007), de Liz Kotz, já bastante citado neste “Texto de Parede”, e cujo título a autora se apropria de uma sentença de Robert Smithson; e

(1982), filme de Michael Snow. Ou seja, cercou-se, respectivamente na ordem dos títulos que acabo de citar, de uma revista que misturou literatura, poesia, escrita conceitual, oulipianios, artes visuais, , artistas pós-minimalistas e artistas conceituais; de um livro produzido no calor da hora da arte conceitual, que acontecia e se fundia à crítica e à produção de si mesma; da produção de obras-textos que trataram a linguagem como matéria, tanto quanto eram tratadas madeira, paisagem natural ou tinta; de uma análise da linguagem verbal na arte dos anos 1960 três décadas mais tarde ! com o distanciamento para traçar linhas como a que parte do objetual duchampiano e chega ao temporal de George

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Brecht, passando pelo acaso de John Cage; e, por fim, de um filme-texto cuja sintaxe da edição cinematográfica se funde à leitura do texto composto segundo a sintaxe da escrita. É sintomático ainda que a obsessão por quebrar hierarquias, cronologias e classificações de gênero artístico em esteja presente também nesta bibliografia-letreiro-final que, embora tenha a linearidade como aspecto formal ! seja em sua configuração de letreiro de filme, seja na referência à retilínea escultura de Brancusi ! agrega tempos, obras e autores absolutamente diversificados, como é toda a intertextualidade do romance. Neste ponto, lembro de uma questão surgida nas discussões de nossa equipe, quando líamos as últimas entrevistas transcritas que nos chegavam: se as referências que alimentavam a ideia de literartura, e a própria intertextualidade do livro, fugiam de qualquer linearidade, hierarquia ou cronologia, por que o autor de

havia optado por uma estrutura linear ao iniciar o livro com o que parecia ser a obra, seguida da pesquisa sobre a obra através do depoimento de seu autor e, por fim, pela crítica feita à obra, neste “Texto de Parede”? Ao surgir esta questão, percebi em nossa equipe uma certa decepção por encontrar nesta estrutura tão clássica, básica e linear, uma contradição que minava certa experimentação de . Porém, antes dessa decepção nos incentivar a desistir da edição e da linha editorial de literartura, uma providencial conversa de bar nos fez chegar à conclusão de que todo radicalismo começa cruel, incisivo, explosivo, para ir se adequando aos poucos, ir assentando a poeira até ter a quietude e a paz da tradição e do descanso. Dentro desse pensamento, o que nos importava era o momento de explosão, pois era ele quem desestabilizava a estória da história. Naquele dia, enquanto a conta e a terceira saideira não chegavam, cada um de nós elegeu qual era o capítulo de radicalidade explosiva dentro de

havendo empate entre alguns. Na sexta saideira, chegamos à conclusão que a linearidade que havia nos decepcionado na construção de , além de necessária como estrutura, era falsa, já que essa linha voltava-se sobre si mesma a todo instante em uma temporalidade esburacada, espiralada, um tempo presente que a todo momento era apenas o passado do capítulo futuro indo e voltando. Se havia linearidade, a linha era transparente, como a usada em pesca, e a leitura-ato-escultórico se dava enrolando-a em voltas, como um novelo. A linearidade era a corda-bamba onde o autor equilibrava o leitor.Mas, voltando dessa digressão para retomar a ideia de escrita conceitual e

de certas obras publicadas na última década do século XX e primeiros anos do XXI ! e de sua clara ligação com a arte conceitual dos anos 1960-70 !, certamente essa junção serviu de instrumento de trabalho para o autor de embora o romance conte uma estória muitas vezes em primeira pessoa. Portanto, a ideia de e os procedimentos da arte conceitual serviram não para produzir

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uma escrita radicalmente impessoal, mas para reforçar o aspecto matérico e espacial do texto, colocando esse aspecto no mesmo nível, às vezes acima, do aspecto expressivo ou lírico. e os procedimentos da arte conceitual foram um buril.

AS ARTES VISUAIS NÃO POSSUEM IDIOMA

Outra questão discutida entre nossa equipe quando ainda decidíamos a linha editorial pela qual seria publicado, foi o fato de que, ao desvendar sua intertextualidade, percebemos que suas referências brasileiras estavam mais no campo da literatura do que da arte ! salvo Flávio de Carvalho e a escrita PLAY e o Conglomerado Newyorkaises, de Hélio Oiticica ! como Waly Salomão e Ana Cristina Cesar. Isso nos fez perceber que, para o autor, o que ele entendia como literartura nunca fora praticado em português na mesma proporção que em outras línguas ! sobretudo o inglês. Realmente, talvez não haja no Brasil uma tradição de experimentos que friccionem arte e literatura no sentido adotado pelo autor, que é o da linguagem verbal também como matéria e espaço, e não somente como enunciado ou veículo de informação e sentido. Temos sim, no Brasil, a interlocução entre poesia e artes visuais desde os primórdios do nosso modernismo, apoiada pelos experimentos espaciais sobre a página mallarmaica, praticados pela tradição construtivista brasileira na poesia concreta. Mais uma vez, as referências brasileiras de vêm da literatura quando lemos que VIVA VAIA e outros poemas de (1968-1974), de Augusto de Campos e Júlio Plaza, e (1984), de Haroldo de Campos, compunham a topografia de livros esparramados pelo piquinique bêbado. Isso quer dizer que a poesia concreta brasileira teria sido, para o autor, uma prática próxima ao que ele chamou de literartura ! ainda que ela não satisfizesse seu desejo narrativo, nem o que o autor entendia como texto matérico e espacial para a construção sintática do espaço expositivo, ou seja, o lado de dentro do texto. Mesmo assim, em português brasileiro, a poesia concreta parece ter informado o autor de . Não à toa, a produção dos irmãos Campos influenciou também a escrita PLAY de Helio Oiticica, como mostra

(2010), de Frederico Coelho, e também a escrita de Waly Salomão ! tão sampleado em ! quando este se diz ser, por exemplo, um “leitor apressado bobo calhorda... pretensioso de Sousândrade Oswaldândrade Guimarosa ou seja leitor do certeiro corte dos concretos”, em

(1972). A escrita de Oiticica, no campo da arte, e a de Wally, no da literatura, somadas à poesia concreta brasileira, talvez tenham sido o que em português brasileiro mais influenciou

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. Coincidência ou não, essa reunião de referências pode ser encontrada na revista (1974), editada por Waly Salomão e Torquato Neto, presente na bibliografia-letreiro-final de , revista que pode ser considerada um análogo brasileiro à norte-americana ! também presente na bibliografia-letreiro-final ! no que diz respeito à reunião de poetas, escritores e artistas visuais sob uma vontade de interlocução descronológia, com citações de Sousândrade e Oswald de Andrade, por exemplo, na de 1972, e com Gertrude Stein e Robert Walser na dos anos 1960. e foram duas revistas que se configuraram como campo para a miscigenação de linguagens, cada uma em seu contexto.Após a demissão de nosso entrevistador ! que, além de trancrever as entrevistas em tom literário, era influenciado demais por questões de infância entre ele e o autor de "#$%!

! intuímos que as entrevistas que tínhamos já nos satisfaziam, e nos dedicamos então aos trabalhos de edição, até mesmo para finalizar a história desta estória. Suspender as entrevistas foi um erro. Não tivemos tempo, antes da morte do autor, de confirmar com ele o que em nossas discussões editoriais pareceu claro: que não tendo encontrado em português ! o idioma em relação ao qual é também um , muitas vezes intraduzível ! e no campo da arte brasileira a produção artística que mais se ajustava à sua percepção de literartura, o autor viu-se naturalmente influenciado pela arte conceitual norte-americana de quarenta anos antes e pela escrita conceitual, contemporânea ao romance, passando a buscar escritos em português que, se não eram exatamente correspondentes às experimentações que fazia, alimentavam-no no trato do idioma. É o caso de (1931), de Flávio da Carvalho, texto muito citado pelo autor no capítulo das entrevistas. Trata-se de uma das primeiras, se não a primeira, documentação de performance de que se tem notícia. É interessante atentar que, dentro desse campo, os anos 1960-70 estabeleceram o texto e a fotografia como documentação e registro de ações, mas com uma diferença em relação ao relato de Flávio: a frieza do registro impessoal meramente mecânico, seja de uma escrita distanciada e apenas informativa, seja no uso desestetizado da fotografia. Os registros, escritos ou fotográficos, de Vito Acconci em (2006), por exemplo, não têm a primeira pessoa emocional, nervosa, sarcástica, desafiadora e medrosa do Flávio de Carvalho do texto de

. Provavelmente, se essa ação fosse de Acconci, o texto não passaria de “Colocar um chapéu, entrar em sentido contrário dentro de uma procissão de Corpus Christi e flertar com as mulheres”. A diferença talvez esteja no fato de que para Acconci os textos eram projetos para uma ação ! por isso a frieza de um projeto ! enquanto para Flávio o texto de foi o relato de uma ação já realizada que, inclusive, não teve qualquer projeto, foi decidida e feita de improviso. Assim, todo o nervosismo e medo de Flávio são relatados, mas também transpostos

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para a concordância quando, por exemplo, no auge do perigo de linchamento, o relato se dá intercalando, dentro de um mesmo período, de forma até mesmo confusa para o leitor, verbos no pretérito imperfeito com verbos no tempo presente, como se o pânico confundisse o autor que, no calor do momento, enxerga e sente tudo presentificado mas, já com a intenção de documentar tudo posteriormente, consegue um olhar que tenta ser uma memória do que está acontecendo neste mesmo presente. Poderíamos dizer inclusive que esse entrelaçamento de vários tempos verbais regendo um só momento dá ao leitor uma dimensão cinematográfica de corte e edição, como se os verbos no presente mostrassem o momento da ação de Flávio, enquanto os no pretérito se referissem a Flávio horas depois da ação, relatando-a de memória, em frente à máquina de escrever.É bem provável que a percepção do tratamento passional dado ao texto por Flávio ! inclusive um tratamento errado, ou deselegante, do ponto de vista do português correto ! tenha provocado um suspiro no autor de que, embora se apoiasse na arte conceitual dos anos 1960-70 e na escrita conceitual a partir dos anos 1990, não compactuava com a frieza mecânica dessas duas referências.

DEPOIS QUE O ROMANCE ACABA

termina no capítulo “Vídeo”, quando o mofo vence o código e o mais velho consegue morrer. Terminados os nossos trabalhos editoriais, restou-nos confiar nas transcrições de meu assistente demitido e publicamos aqui uma das cópias manuscritas do romance, com a devida autorização de parentes próximos ao autor. Estávamos em vias de fechar a edição quando tivemos a oportunidade de acessar seu espólio deixado a um familiar. Em meio a tantos HDs e pen drives ultrapassados, encontramos palimpsestos digitais de textos e mais textos digitados em Word que serviram ao mestrado do autor de

. Por curiosidade ! semelhante a quando se publicam fac-similes de manuscritos e rascunhos mofados e desbotados de autores mortos há bastante tempo ! achamos que seria interessante transcrever o texto que segue, cujo título do arquivo era resumo.doc e foi encontrado em uma pasta que se chamava romance, no de um computador velho:

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MINHA EXPERIMENTAÇÃO NO CAMPO DA LITERARTURA

O objetivo desta pesquisa de mestrado foi cercar de possíveis definições o termo “literartura” ! um termo que, mais que querer cunhar, percebo na leitura de vários textos citados na pesquisa ! e, a partir dela, produzir a obra literartística

. Para isso, foram pesquisadas obras que creio serem exemplos de literartura e, através desses exemplos, penso ter se insinuado uma definição. Estas obras formam um diálogo entrecruzado no próprio tecido textual de , texto que funde obra prática e dissertação de mestrado num só corpo.Sempre desconfiando de que definir seja estranho a qualquer prática no campo da arte, sobretudo para um artista, esta vontade de definir o termo “literartura” me foi satisfeita ao produzir um texto onde pude experimentá-la: é minha crença de que cada obra (re)define em si o(s) gênero(s) a que pertence. Assim, é minha experimentação e meu único modo possível de expressar o que penso, e sinto, ser literartura.

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